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Sophia de Mello Breyner Andersen O Livro Sexto.

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<strong>Sophia</strong> <strong>de</strong> <strong>Mello</strong> <strong>Breyner</strong> An<strong>de</strong>rsen<br />

O <strong>Livro</strong> <strong>Sexto</strong>. Lisboa: E. da A., 1962; 6ª ed., Edições Salamandra, 1985.<br />

I<br />

AS COISAS<br />

Algarve<br />

1<br />

A luz mais que pura<br />

Sobre a terra seca<br />

2<br />

Um homem que sobe o monte <strong>de</strong>senhando<br />

A tar<strong>de</strong> transparente das aranhas<br />

3<br />

A luz mais que pura<br />

Quebra a sua lança<br />

As Cigarras<br />

Pescador<br />

1<br />

Irmão limpo das coisas<br />

Sem pranto interior<br />

Sem introversão<br />

2<br />

Este que está inteiro em sua vida<br />

Fez do mar e do céu seu ser profundo<br />

E manteve com serena luci<strong>de</strong>z<br />

Aberto seu olhar e posto sobre o mundo<br />

Barcos


Um por um para o mar passam os barcos<br />

Passam em frente <strong>de</strong> promontórios e <strong>de</strong> terraços<br />

Cortando as águas lisas como um chão<br />

E todos os <strong>de</strong>uses são <strong>de</strong> novo nomeados<br />

Para além das ruínas <strong>de</strong> seus templos<br />

Reino<br />

Reino <strong>de</strong> medusas e água lisa<br />

Reino <strong>de</strong> silêncio luz e pedra<br />

Habitação das formas espantosas<br />

Coluna <strong>de</strong> sal e círculo <strong>de</strong> luz<br />

Medida da Balança misteriosa<br />

Gruta do Leão<br />

Para além da terra pobre e <strong>de</strong>sflorida<br />

Mostra-me o mar a gruta roxa e rouca<br />

Feita <strong>de</strong> puro interior<br />

E povoada<br />

De cava ressonância e sombra e brillho<br />

A Conquista <strong>de</strong> Cacela<br />

As praças forte foram conquistadas<br />

Por seu po<strong>de</strong>r e foram sitiadas<br />

As cida<strong>de</strong>s do mar pela riqueza<br />

Porém Cacela<br />

foi <strong>de</strong>sejada só pela beleza<br />

Musa<br />

Musa ensina-me o canto<br />

Venerável e antigo<br />

O canto para todos<br />

Por todos entendido<br />

Musa ensina-me o canto<br />

O justo irmão das coisas<br />

Incendiador da noite<br />

E na tar<strong>de</strong> secreto<br />

Musa ensina-me o canto<br />

Em que eu mesma regresso


Sem <strong>de</strong>mora e sem pressa<br />

Tornada planta ou pedra<br />

Ou tornada pare<strong>de</strong><br />

Da casa primitiva<br />

Ou tornada o murmúrio<br />

Do mar que a cercava<br />

(Eu me lembro do chão<br />

De ma<strong>de</strong>ira lavada<br />

E do seu perfume<br />

Que atravessava)<br />

Musa ensina-me o canto<br />

On<strong>de</strong> o mar respira<br />

Coberto <strong>de</strong> brilhos<br />

Musa ensina-me o canto<br />

Da janela quadrada<br />

E do quarto branco<br />

Que eu possa dizer como<br />

A tar<strong>de</strong> ali tocava<br />

Na mesa e na porta<br />

No espelho e no corpo<br />

E como os ro<strong>de</strong>ava<br />

Pois o tempo me corta<br />

O tempo me divi<strong>de</strong><br />

O tempo me atravessa<br />

E me separa viva<br />

Do chão e da pare<strong>de</strong><br />

Da casa primitiva<br />

Musa ensina-me o canto<br />

Venerável e antigo<br />

para pren<strong>de</strong>r o brilho<br />

Dessa manhã polida<br />

Que poisava na duna<br />

Docemente os seus <strong>de</strong>dos<br />

E caiava as pare<strong>de</strong>s<br />

Da casa limpa e branca<br />

Musa ensina-me o canto<br />

Que me corta a garganta<br />

Manhã<br />

A manhã estática parada<br />

Entre o Tejo azul e a Torre branca<br />

Que branca e barroca sobe das águas


Manhã acesa <strong>de</strong> silêncio e louvor<br />

Na breve primavera violenta<br />

Assim a minha vida que era calma<br />

De repente se tornou ânsia e sauda<strong>de</strong><br />

Mas a brisa da varanda é doce e suave<br />

Um pássaro canta porque alguém regou<br />

Pátios<br />

A Vaga<br />

Como toiro arremete<br />

Mas saco<strong>de</strong> a crina<br />

Como cavalgada<br />

Seu próprio cavalo<br />

Como cavaleiro<br />

Força e chicoteia<br />

Porém é mulher<br />

Deitada na areia<br />

Ou é bailarina<br />

Que sem pés passeia<br />

Caminho da Manhã<br />

Vais pela estrada que é <strong>de</strong> terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As cigarras<br />

cantarão o silêncio <strong>de</strong> bronze. À tua direita irá primeiro um muro caiado que <strong>de</strong>senha a<br />

curva da estrada. Depois encontrarás as figueiras transparentes e enroladas; mas os seus<br />

ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com a pesada mão do<br />

Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz levíssima e fresca. Até<br />

chegares às muralhas antigas da cida<strong>de</strong> que estão em ruínas. Passa <strong>de</strong>baixo da porta e<br />

vai pelas ruas estreitas, direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma gran<strong>de</strong><br />

praça quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o mar até<br />

ao mercado que fica <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma alta pare<strong>de</strong> amarela. Aí <strong>de</strong>ves parar e olhar um<br />

instante para o largo pois ali o visível se vê até ao fim. E olha bem o branco, o puro<br />

branco, o branco <strong>de</strong> cal on<strong>de</strong> a luz cai a direito. Também ali entre a cida<strong>de</strong> e a água não<br />

encontrarás nenhuma sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra<br />

no mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em frente da<br />

terceira banca <strong>de</strong> pedra compra peixes. Os peixes são azuis e brilhantes e escuros com<br />

malhas pretas. E o homem há-<strong>de</strong> pedir-te que vejas como as suas guelras são encarnadas<br />

e que vejas bem como o seu azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente<br />

a mar. Depois verás peixes pretos e vermelhos e cor-<strong>de</strong>-rosa e cor <strong>de</strong> prata. E verás os<br />

polvos cor <strong>de</strong> pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a luz se tornará<br />

líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá correndo sobre uma mesa <strong>de</strong> pedra. Á<br />

tua direita então verás uma escada: sobe <strong>de</strong>pressa mas sem tocar no velho cego que<br />

<strong>de</strong>sce <strong>de</strong>vagar. E ao cimo da escada está uma mulher <strong>de</strong> meia ida<strong>de</strong> com rugas finas e<br />

leves na cara. E tem ao pescoço uma medalha <strong>de</strong> ouro com o retrato do filho que<br />

morreu. Pe<strong>de</strong>-lhe que te dê um ramo <strong>de</strong> louro, um ramo <strong>de</strong> orégãos, um ramo <strong>de</strong> salsa e


um ramo <strong>de</strong> hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os figos não são pretos mas<br />

azuis e <strong>de</strong>ntro são cor-<strong>de</strong>-rosa e <strong>de</strong> todos eles corre uma lágrima <strong>de</strong> mel. Depois vai <strong>de</strong><br />

ven<strong>de</strong>dor em ven<strong>de</strong>dor e enche os teus cestos <strong>de</strong> frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e<br />

limões. Depois <strong>de</strong>sce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cida<strong>de</strong>.<br />

Agora aí verás que ao longo das pare<strong>de</strong>s nasceu uma serpente <strong>de</strong> sombra azul, estreita e<br />

comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará a mão da sombra, no<br />

outro a mão do sol. Caminha até encontrares uma igreja alta e quadrada.<br />

Lá <strong>de</strong>ntro ficarás ajoelhada na penumbra olhando o branco das pare<strong>de</strong>s e o brilho azul<br />

dos azulejos. Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas<br />

coisas visíveis que é a tua oração em frente do gran<strong>de</strong> Deus invisível.<br />

As Grutas<br />

O esplendor poisava solene sobre o mar. E - entre as duas pedras erguidas numa relação<br />

tão justa que é talvez ali o lugar da Balança on<strong>de</strong> o equilíbrio do homem com as coisas é<br />

medido - quase me cega a perfeição como um sol olhando <strong>de</strong> frente. Mas logo as águas<br />

ver<strong>de</strong>s em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido<br />

dos peixes. Porém a beleza não é solene mas também inumerável. De forma em forma<br />

vejo o mundo nascer e ser criado. Um gran<strong>de</strong> rascasso vermelho passa em frente a mim<br />

que nunca antes o imaginara.<br />

Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente<br />

lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pe<strong>de</strong> novas palavras, porém é tão<br />

gran<strong>de</strong> o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na<br />

superfície das águas lisas como um chão.<br />

As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além <strong>de</strong> mim. Talvez eu vá<br />

ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.<br />

Estarão as coisas <strong>de</strong>slumbradas <strong>de</strong> ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar?<br />

Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando <strong>de</strong>ixou redondo e doirado o<br />

quarto <strong>de</strong> areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no<br />

alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as<br />

pequenas praias.<br />

Eis o mar e a luz vistos por <strong>de</strong>ntro. Terror <strong>de</strong> penetração na habitação secreta da beleza,<br />

terror <strong>de</strong> ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror <strong>de</strong> olhar <strong>de</strong> frente as imagens<br />

mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros<br />

cercados <strong>de</strong> água e plantas roxas. Atravesso gargantas <strong>de</strong> pedra e a arquitectura do<br />

labirinto paira roída sobre o ver<strong>de</strong>. Colunas <strong>de</strong> sombra e luz suportam céu e terra. As<br />

anémonas ro<strong>de</strong>iam a gran<strong>de</strong> sala <strong>de</strong> água on<strong>de</strong> os meus <strong>de</strong>dos tocam a areia rosada do<br />

fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e ver<strong>de</strong> on<strong>de</strong> rápidos, rápidos fogem <strong>de</strong><br />

mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e <strong>de</strong>senham a clarida<strong>de</strong> dos espaços<br />

matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao<br />

princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.<br />

O meu olhar tornou-se liso com um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.<br />

E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e<br />

pare<strong>de</strong>s. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio.<br />

Quereria que o contivesse para sempre o círculo <strong>de</strong> espanto e <strong>de</strong> medusas. Aqui um<br />

líquido sol fosforescente e ver<strong>de</strong> irrompe dos abismos e surge em suas portas.<br />

Mas já no mar exterior a luz ro<strong>de</strong>ia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um<br />

vidro. O azul recorta os promontórios aureolados <strong>de</strong> glória matinal. Tudo está vestido <strong>de</strong>


solenida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> nu<strong>de</strong>z. Ali eu quereria chorar <strong>de</strong> gratidão com a cara encostada contra as<br />

pedras.<br />

Ressurgiremos<br />

Ressurgiremos ainda sob os muros <strong>de</strong> Cnossos<br />

E em Delphos centro do mundo<br />

Ressurgiremos ainda na dura luz <strong>de</strong> Creta<br />

Ressurgiremos ali on<strong>de</strong> as palavras<br />

São o nome das coisas<br />

E on<strong>de</strong> são claros e vivos os contornos<br />

Na aguda luz <strong>de</strong> Creta<br />

Ressurgiremos ali on<strong>de</strong> pedra estrela e tempo<br />

São o reino do homem<br />

Ressurgiremos para olhar para a terra <strong>de</strong> frente<br />

Na luz limpa <strong>de</strong> Creta<br />

Pois convém tornar claro o coração do homem<br />

E erguer a negra exactidão da cruz<br />

Na luz branca <strong>de</strong> Creta.<br />

II<br />

A Estrela<br />

Eu caminhei na noite<br />

Entre silêncio e frio<br />

Só uma estrela secreta me guiava Gran<strong>de</strong>s perigos na noite me apareceram<br />

Da minha estrela julguei que eu a julgara<br />

Verda<strong>de</strong>ira sendo ela só reflexo<br />

De uma cida<strong>de</strong> a néon enfeitada<br />

A minha solidão me pareceu coroa<br />

Sinal <strong>de</strong> perfeição em minha fronte<br />

Mas vi quando no vento me humilhava<br />

Que a coroa que eu levava era <strong>de</strong> um ferro<br />

Tão pesado que toda me dobrava<br />

Do frio das montanhas eu pensei<br />

«Minha pureza me cerca e me ro<strong>de</strong>ia»<br />

Porém meu pensamento apodreceu<br />

E a pureza das coisas cintilava<br />

E eu vi que a limpi<strong>de</strong>z não era eu<br />

E a fraqueza da carne e a miragem do espírito<br />

Em monstruosa voz se transformaram<br />

Disse às pedras do monte que falassem<br />

Mas elas como pedras se calaram<br />

Sozinha me vi <strong>de</strong>lirante e perdida


E uma estrela serena me espantava<br />

E eu caminhei na noite minha sombra<br />

De <strong>de</strong>smedidos gestos me cercava<br />

Silêncio e medo<br />

Nos confins <strong>de</strong>solados caminhavam<br />

Então eu vi chegar ao meu encontro<br />

Aqueles que uma estrela iluminava<br />

E assim eles disseram: «Vem connosco<br />

Se também vens seguindo aquela estrela»<br />

Então soube que a estrela que eu seguia<br />

Era real e não imaginada<br />

Gran<strong>de</strong>s noites redondas nos cercaram<br />

Gran<strong>de</strong>s brumas miragens nos mostraram<br />

Gran<strong>de</strong>s silêncios <strong>de</strong> ecos vagabundos<br />

Em direcções distantes nos chamaram<br />

E a sombra dos três homens sobre a terra<br />

Ao lado dos meus passos caminhava<br />

E eu espantada vi que aquela estrela<br />

Para a cida<strong>de</strong> dos homens nos guiava<br />

E a estrela do céu parou em cima<br />

<strong>de</strong> uma rua sem cor e sem beleza<br />

On<strong>de</strong> a luz tinha a cor que tem a cinza<br />

Longe do ver<strong>de</strong> azul da natureza<br />

Ali não vi as coisas que eu amava<br />

Nem o brilho do sol nem o da água<br />

Ao lado do hospital e da prisão<br />

Entre o agiota e o templo profanado<br />

On<strong>de</strong> a rua é mais triste e mais sozinha<br />

E on<strong>de</strong> tudo parece abandonado<br />

Um lugar pela estrela foi marcado<br />

Nesse lugar pensei: «Quanto <strong>de</strong>serto<br />

Atravessei para encontrar aquilo<br />

Que morava entre os homens e tão perto»<br />

No Poema<br />

Transferir o quadro o muro a brisa<br />

A flor o copo o brilbo da nia<strong>de</strong>ira<br />

E a fria e virgem liqui<strong>de</strong>z da água<br />

Para o mundo do poema limpo e rigoroso<br />

Preservar <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência morte e mina


O instante real <strong>de</strong> aparição e <strong>de</strong> surpresa<br />

Guardar num mundo claro<br />

O gesto claro da mão tocando a mesa<br />

Eis-Me<br />

Eis-me<br />

Tendo-me <strong>de</strong>spido <strong>de</strong> todos os meus mantos<br />

Tendo-me separado <strong>de</strong> adivinhos mágicos e <strong>de</strong>uses<br />

Para ficar sozinha ante o silêncio<br />

Ante o silêncio e o esplendor da tua face<br />

Mas tu és <strong>de</strong> todos os ausentes o ausente<br />

Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca<br />

O meu coração <strong>de</strong>sce as escadas do tempo em que não moras<br />

E o teu encontro<br />

São planícies e planícies <strong>de</strong> silêncio<br />

Escura é a noite<br />

Escura e transparente<br />

Mas o teu rosto está para além do tempo opaco<br />

E eu não habito os jardins do teu silêncio<br />

Porque tu és <strong>de</strong> todos os ausentes o ausente<br />

Despedida<br />

Na estação na tar<strong>de</strong> o fumo<br />

O rumor o vaivém as faces<br />

Anónimas<br />

Criam no interior do amor um outro cais<br />

As lágrimas<br />

O fogo da minha alma as queima antes que brotem<br />

Meio da Vida<br />

Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado<br />

Porque o meio-dia<br />

Em seu <strong>de</strong>spido fulgor ro<strong>de</strong>ia a terra<br />

A casa compõe uma por uma as suas sombras<br />

A casa prepara a tar<strong>de</strong><br />

Frutos e canções se multiplicam<br />

Nua e aguda<br />

A doçura da vida<br />

O Poema


O poema me levará no tempo<br />

Quando eu já não for eu<br />

E passarei sozinha<br />

Entre as mãos <strong>de</strong> quem lê<br />

O poema alguém o dirá<br />

Às searas<br />

Sua passagem se confundirá<br />

Com o rumor do mar com o passar do vento<br />

O poema habitará<br />

O espaço mais concreto e mais atento<br />

No ar claro nas tar<strong>de</strong>s transparentes<br />

Suas sílabas redondas<br />

(Ó antigas ó longas<br />

Eternas tar<strong>de</strong>s lisas)<br />

Mesmo que eu morra o poema encontrará<br />

Uma praia on<strong>de</strong> quebrar as suas ondas<br />

E entre quatro pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong>nsas<br />

De funda e <strong>de</strong>vorada solidão<br />

Alguém seu próprio ser confundirá<br />

Com o poema no tempo<br />

Felicida<strong>de</strong><br />

Pela flor pelo vento pelo fogo<br />

Pela estrela da noite tão límpida e serena<br />

Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo<br />

Pelo amor sem ironia - por tudo<br />

Que atentamente esperamos<br />

Reconheci tua presença incerta<br />

Tua presença fantástica e liberta<br />

Traduzido <strong>de</strong> Kleist<br />

Dizem que no outro mundo o sol é mais brilhante<br />

E brilha sobre campos mais floridos<br />

Mas os olhos que vêem essas maravilhas<br />

São olhos apodrecidos.<br />

Labirinto<br />

Sozinha caminhei no labirinto


Aproximei meu rosto do silêncio e da treva<br />

Para buscar a luz dum dia limpo.<br />

Tempo<br />

Tempo<br />

Tempo sem amor e sem <strong>de</strong>mora<br />

Que <strong>de</strong> mim me <strong>de</strong>spe pelos caminhos fora<br />

Campo<br />

Estou só nos campos<br />

A doce noite murmura<br />

A noite me ilumina<br />

Corre em meu coração um rio <strong>de</strong> frescura<br />

De tudo o que sonhou minha alma se aproxima<br />

A Pura Face<br />

Como encontrar-te <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter perdido<br />

Uma por uma as tar<strong>de</strong>s que encontrei<br />

O ser <strong>de</strong> todo o ser <strong>de</strong> quem nem sei<br />

Se po<strong>de</strong>s ser ao menos pressentido?<br />

Não te busquei no reino prometido<br />

Da terra nem na paixão com que eu a amei<br />

E porque não és tempo não te <strong>de</strong>i<br />

Meu <strong>de</strong>sejo pelas horas consumido<br />

Apenas imagino que me espera<br />

No infinito silêncio a pura face<br />

Pr'além <strong>de</strong> vida morte ou Primavera<br />

E que a verei <strong>de</strong> frente e sem disfarce<br />

Inscrição<br />

Quando eu morrer voltarei para buscar<br />

Os instantes que não vivi junto do mar<br />

Para atravessar contigo o <strong>de</strong>serto do mundo<br />

Para atravessar contigo o <strong>de</strong>serto do mundo<br />

Para enfrentarmos juntos o terror da morte<br />

Para ver a verda<strong>de</strong> para per<strong>de</strong>r o medo<br />

Ao lado dos teus passos caminhei Por ti <strong>de</strong>ixei meu reino meu segredo<br />

Minha rápida noite meu silêncio<br />

Minha pérola redonda e seu oriente<br />

Meu espelho minha vida minha imagem


E abandonei os jardins do paraíso<br />

Cá fora à luz sem véu do dia duro<br />

Sem os espelhos vi que estava nua<br />

E ao <strong>de</strong>scampado se chamava tempo<br />

Por isso com teus gestos me vestiste<br />

E aprendi a viver em pleno vento<br />

Fernando Pessoa<br />

Teu canto justo que <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nha as sombras<br />

Limpo <strong>de</strong> vida viúvo <strong>de</strong> pessoa<br />

Teu corajoso ousar não ser ninguém<br />

Tua navegação com bússola e sem astros<br />

No mar in<strong>de</strong>finido<br />

Teu exacto conhecimento impossessivo.<br />

Criaram teu poema arquitectura<br />

E és semelhante a um <strong>de</strong>us <strong>de</strong> quatro rostos<br />

E és semelhante a um <strong>de</strong> <strong>de</strong>us <strong>de</strong> muitos nomes<br />

Cariáti<strong>de</strong> <strong>de</strong> ausência isento <strong>de</strong> <strong>de</strong>stinos<br />

Invocando a presença já perdida<br />

E dizendo sobre a fuga dos caminhos<br />

Que foste como as ervas não colhidas.<br />

Carta aos Amigos Mortos<br />

Eis que morrestes - agora já não bate<br />

O vosso coração cujo bater<br />

Dava ritmo e esperança ao meu viver<br />

Agora estais perdidos para mim<br />

- O olhar não atravessa esta distância -<br />

Nem irei procurar-vos pois não sou<br />

Orpheu tendo escolhido para mim<br />

Estar presente aqui on<strong>de</strong> estou viva.<br />

Eu vos <strong>de</strong>sejo a paz nesse caminho<br />

Fora do mundo que respiro e vejo.<br />

Porém aqui eu escolhi viver<br />

Nada me resta senão olhar em frente<br />

Neste país <strong>de</strong> dor e incerteza.<br />

Aqui eu escolhi permanecer<br />

On<strong>de</strong> a visão é dura e mais difícil.<br />

Aqui me resta apenas fazer frente<br />

Ao rosto sujo <strong>de</strong> ódio e <strong>de</strong> injustiça<br />

A luci<strong>de</strong>z me serve para ver<br />

A cida<strong>de</strong> a cair muro por muro


E as faces a morrerem uma a uma<br />

E a morte que me corta ela me ensina<br />

Que o sinal do homem não é uma coluna.<br />

E eu vos peço por este amor cortado<br />

Que vos lembreis <strong>de</strong> mim lá on<strong>de</strong> o amor<br />

Já não po<strong>de</strong> morrer nem ser quebrado.<br />

Que o vosso coração que já não bate<br />

O tempo <strong>de</strong>nso <strong>de</strong> sangue e <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong><br />

Mas vive a perfeição da clarida<strong>de</strong><br />

Se compa<strong>de</strong>ça <strong>de</strong> mim e <strong>de</strong> meu pranto<br />

Se compa<strong>de</strong>ça <strong>de</strong> mim e <strong>de</strong> meu canto<br />

Os Aspho<strong>de</strong>los<br />

Colhe pálida sombra os aspho<strong>de</strong>los<br />

Roxos do prado on<strong>de</strong> caminha a vida<br />

Cujo <strong>de</strong>stino foi só não ser vivida<br />

Põe coroas <strong>de</strong> pranto em teus cabelos<br />

Primavera<br />

As heras <strong>de</strong> outras eras água pedra<br />

E passa <strong>de</strong>vagar memória antiga<br />

Com brisa madressilva e primavera<br />

E o <strong>de</strong>sejo da jovem noite nua<br />

Música passando pelas veias<br />

E a sombra da folhagem nas pare<strong>de</strong>s<br />

Descalço o passo sobre os musgos ver<strong>de</strong>s<br />

E a noite transparente e distraída<br />

Com seu sabor <strong>de</strong> rosa <strong>de</strong>nsa e breve<br />

On<strong>de</strong> me lembro amor <strong>de</strong> tere morrido<br />

- Sangue feroz do tempo possuído<br />

Dia<br />

Meu rosto se mistura com o dia<br />

Nuvens telhados ramagens e Dezembro<br />

Apaixonada estou <strong>de</strong>ntro do tempo<br />

Que me abriga com canto e com imagens<br />

Tão abrigada estou <strong>de</strong>ntro da hora<br />

Que nem lamento já a tar<strong>de</strong> antiga<br />

Tudo se torna presente e se <strong>de</strong>mora<br />

Será que o dia me pe<strong>de</strong> que eu o diga?


A Pequena Estátua<br />

Presença ritual e tutelar<br />

Companheira da sombra <strong>de</strong>senho do silêncio<br />

Instante<br />

Deixai-me limpo<br />

O ar dos quartos<br />

E liso<br />

O branco das pare<strong>de</strong>s<br />

Deixai-me com as coisas<br />

Fundadas no silêncio<br />

Cida<strong>de</strong><br />

As ameaças quase visíveis surgem<br />

Nascem<br />

Do exausto horizonte mortas luas<br />

E estrangulada sou por gran<strong>de</strong>s polvos<br />

Na tristeza das ruas<br />

O Hospital e a Praia<br />

E eu caminhei no Hospital<br />

On<strong>de</strong> o branco é <strong>de</strong>solado e sujo<br />

On<strong>de</strong> o branco é a cor que fica quando não há cor<br />

E on<strong>de</strong> a luz é cinza<br />

E eu caminhei nas praias e nos campos<br />

O azul do mar e o roxo da distância<br />

Enrolei-os em redor do meu pescoço<br />

Caminhei na praia quase livre como um <strong>de</strong>us<br />

Não perguntei por ti à pedra meu Senhor<br />

Nem me lembrei <strong>de</strong> ti bebendo o vento<br />

O vento era vento e a pedra pedra<br />

E isso inteiramente me bastava<br />

E nos espaços da manhã marinha<br />

Quase livre como um <strong>de</strong>us eu caminhava<br />

Porém no hospital eu vi o rosto<br />

Que não é pinheiral nem é rochedo<br />

E vi a luz como cinza na pare<strong>de</strong><br />

E vi a dor absurda e <strong>de</strong>smedida<br />

III


AS GRADES<br />

Pátria<br />

Por um país <strong>de</strong> pedra e vento duro<br />

Por um país <strong>de</strong> luz perfeita e clara<br />

Pelo negro da terra e pelo branco do muro Pelos rostos <strong>de</strong> silêncio e <strong>de</strong> paciência<br />

Que a miséria longamente <strong>de</strong>senhou<br />

Rente aos ossos com toda a exactidão<br />

Do longo relatório irrecusável<br />

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento<br />

E pela limpi<strong>de</strong>z das tão amadas<br />

Palavras sempre ditas com paixão<br />

Pela cor e pelo peso das palavras<br />

Pelo concreto silêncio limpo das palavras<br />

Don<strong>de</strong> se erguem as coisas nomeadas<br />

Pela nu<strong>de</strong>z das palavras <strong>de</strong>slumbradas<br />

- Pedra rio vento casa<br />

Pranto dia canto alento<br />

Espaço raiz e água<br />

Ó minha pátria e meu centro<br />

Me dói a lua me soluça o mar<br />

E o exílio se inscreve em pleno tempo.<br />

Pranto pelo infante D. Pedro das sete partidas<br />

(poema escrito na noite <strong>de</strong> 17-12-1961, e interrompido pela notícia da entrada dos<br />

soldados indianos em Goa)<br />

Nunca choraremos bastante nem com pranto<br />

Assaz amargo e forte<br />

Aquele que fundou glória e gran<strong>de</strong>za<br />

E recebeu em paga insulto e morte<br />

PRANTO PELO DIA DE HOJE<br />

Nunca choraremos bastante quando vemos<br />

O gesto criador ser impedido<br />

Nunca choraremos bastante quando vemos<br />

Que quem ousa lutar é <strong>de</strong>struído<br />

Por troças por insídias por venenos<br />

E por outras maneiras que sabemos<br />

Tão sábias tão subtis e tão peritas<br />

Que nem po<strong>de</strong>m sequer ser bem <strong>de</strong>scritas


Exílio<br />

Quando a pátria que temos não a temos<br />

Perdida por silêncios e por renúncia<br />

Até a voz do mar se torna exílio<br />

E a luz que nos ro<strong>de</strong>ia é como gra<strong>de</strong>s<br />

Data à memória d'Eustache Deschamps<br />

Tempo <strong>de</strong> solidão e <strong>de</strong> incerteza<br />

Tempo <strong>de</strong> medo e tempo <strong>de</strong> traição<br />

Tempo <strong>de</strong> injustiça e <strong>de</strong> vileza<br />

Tempo <strong>de</strong> negação<br />

Tempo <strong>de</strong> covardia e tempo <strong>de</strong> ira<br />

Tempo <strong>de</strong> mascarada e <strong>de</strong> mentira<br />

Tempo <strong>de</strong> escravidão<br />

Tempo dos coniventes sem cadastro<br />

Tempo <strong>de</strong> silêncio e <strong>de</strong> mordaça<br />

Tempo on<strong>de</strong> o sangue não tem rasto<br />

Tempo da ameaça<br />

A Veste dos Fariseus<br />

Era um Cristo sem po<strong>de</strong>r<br />

Sem espada e sem riqueza<br />

Seus amigos o negavam<br />

Antes do galo cantar<br />

A polícia o perseguia<br />

Guiada por Fariseus<br />

O po<strong>de</strong>r lavou as mãos<br />

Daquele sangue inocente<br />

Crucificai-o <strong>de</strong>pressa<br />

Lhe pedia toda a gente<br />

Foi cuspido e foi julgado<br />

No centro <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong><br />

Insultos o perseguiram<br />

E morreu <strong>de</strong>sfigurado<br />

O templo rasgou seus véus<br />

E Pilatos seus vestidos<br />

Rasgaram seu coração<br />

Maria Mãe <strong>de</strong> João<br />

João Filho <strong>de</strong> Maria


A treva caiu dos céus<br />

Sobre a terra em pleno dia<br />

Nem uma nódoa se via<br />

Nas vestes dos Fariseus<br />

As pessoas sensíveis<br />

As pessoas sensíveis não são capazes<br />

De matar galinhas<br />

Porém são capazes<br />

De comer galinhas<br />

O dinheiro cheira a pobre e cheira<br />

À roupa do seu corpo<br />

Aquela roupa<br />

Que <strong>de</strong>pois da chuva secou sobre o corpo<br />

Porque não tinham outra<br />

O dinheiro cheira a pobre e cheira<br />

A roupa<br />

Que <strong>de</strong>pois do suor não foi lavada<br />

Porque não tinham outra<br />

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"<br />

Assim nos foi imposto<br />

E não:<br />

"Com o suor dos outros ganharás o pão."<br />

Ó vendilhões do templo<br />

Ó constructores<br />

Das gran<strong>de</strong>s estátuas balofas e pesadas<br />

Ó cheios <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção e <strong>de</strong> proveito<br />

Perdoai-lhes Senhor<br />

Porque eles sabem o que fazem.<br />

O Super-Homem<br />

On<strong>de</strong> está ele o super-homem? On<strong>de</strong>?<br />

- Encontrei-o na rua ia sozinho<br />

Não via a dor nem a pedra nem o vento<br />

Sua loucura e sua irrealida<strong>de</strong><br />

Lhe serviam <strong>de</strong> espelho e <strong>de</strong> alimento<br />

Círculo<br />

Num círculo se move<br />

Num círculo fechado


Sua morte o envolve<br />

Como uma borboleta<br />

Seus verdugos o cercam<br />

Como quem cerca o toiro<br />

Em sua volta não vê<br />

Nenhuma porta aberta<br />

Gran<strong>de</strong>s panosa <strong>de</strong> sangue<br />

Sobre os olhos lhe esten<strong>de</strong>m<br />

A sua hora estava<br />

- Como se diz - marcada<br />

Pegador não houve<br />

nem pega <strong>de</strong> caras<br />

E as portas estavam<br />

Sobre o grito fechadas<br />

Babilónia<br />

Com pátios interiores e com palmeiras<br />

Com muros <strong>de</strong> tijolos com pequenos tanques<br />

Com fontes com estátuas com colunas<br />

Com <strong>de</strong>uses <strong>de</strong>senhados nas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> barro<br />

Com corredores e silêncio e penumbras<br />

Com vestidos <strong>de</strong> linho tocando a pedra pura<br />

Com cinamomo e nardo<br />

Com jarras don<strong>de</strong> corria azeite e vinho<br />

Com multidões com gritos com mercados<br />

Com esteiras claras sob os pés pintados<br />

Com escribas com magos e advinhos<br />

Com prisioneiros com servos com escravos<br />

Com luci<strong>de</strong>z feroz com amargura<br />

Com ciência e arte<br />

Com <strong>de</strong>sprezo<br />

Babilônia nasceu <strong>de</strong> lodo e limo<br />

O Velho Abutre<br />

O velho abutre é sábio e alisa as suas penas<br />

A podridão lhe agrada e seus discursos<br />

Têm o dom <strong>de</strong> tornar as almas mais pequenas.


Cantar<br />

Tão longo caminho<br />

E todas as portas<br />

Tão longo o caminho<br />

Sua sombra errante<br />

Sob o sol a pino<br />

A água <strong>de</strong> exílio<br />

Por estradas brancas<br />

Quanto passo andado<br />

País ocupado<br />

Num quarto fechado<br />

As portas se fecham<br />

Fecham-se janelas<br />

Os gestos se escon<strong>de</strong>m<br />

Ninguém lhe respon<strong>de</strong><br />

Solidão vindima<br />

E não querem vê-lo<br />

Encontra silêncio<br />

Que em sombra tornados<br />

Naquela cida<strong>de</strong><br />

Quanto passo andado<br />

Encontrou fechadas<br />

Como vai sozinho<br />

Desenha as pare<strong>de</strong>s<br />

Sob as luas ver<strong>de</strong>s<br />

É brilhante e fria<br />

Ou por negras ruas<br />

Por amor da terra<br />

On<strong>de</strong> o medo impera<br />

Os olhos se fecham<br />

As bocas se calam<br />

Quando ele pergunta<br />

Só insultos colhe<br />

O rosto lhe viram<br />

Seu longo combate<br />

Silêncio daqueles<br />

Em monstros se tornam<br />

Tão poucos os homens<br />

Posfácio

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