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Filmes Históricos e o Ensino em História da Educação - Faced.ufu

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FILMES HISTÓRICOS E O ENSINO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO<br />

RESUMO<br />

1092<br />

Fátima Maria Neves<br />

Universi<strong>da</strong>de Estadual de Maringá<br />

A construção de conhecimentos no processo de ensino e de pesquisa <strong>em</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> v<strong>em</strong>, desde<br />

1990, por meio de uma adensa<strong>da</strong> produção historiográfica, ganhando novos contornos e novas<br />

perspectivas. A fim de participar desta construção este estudo t<strong>em</strong> o intuito de contribuir com o conjunto<br />

de imagens mentais dos diferentes períodos históricos, promovidos pela socie<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>porânea,<br />

analisando a plurali<strong>da</strong>de ou a diversi<strong>da</strong>de do universo cultural e educacional, no Brasil, no início do século<br />

XVI. Explicitando como v<strong>em</strong> se realizando a história destes t<strong>em</strong>as, no período colonial, condicionados<br />

pela linguag<strong>em</strong> fílmica. Para tanto, enfoca-se como fonte, o filme DESMUNDO (2003), dirigido por<br />

Alain Fresnot. DESMUNDO é um filme histórico, baseado no livro homônimo de Ana Miran<strong>da</strong>, lançado<br />

<strong>em</strong> 1996, pela Companhia <strong>da</strong>s Letras. A narrativa fílmica inicia-se com um excerto de uma carta de 1552,<br />

enviado pelo Padre Manuel <strong>da</strong> Nóbrega ao Rei D. João, solicitando órfãs do Reino para se casar<strong>em</strong> com os<br />

homens brancos <strong>da</strong> terra a fim de diminuir os “pecados <strong>da</strong> terra”. O foco central do roteiro destaca o<br />

<strong>em</strong>bate entre Oribela, órfã portuguesa de 16 anos, religiosa fervorosa educa<strong>da</strong> <strong>em</strong> um convento e<br />

Francisco de Albuquerque, um degre<strong>da</strong>do português que enriqueceu com as terras e escravos que adquiriu<br />

por aqui. Oribela, apavora<strong>da</strong> diante do mundo - “desmundo”, “não-mundo” ou fim de mundo - que não<br />

compreende e tenta, s<strong>em</strong>pre que pode, fugir e voltar a Portugal. Com esse intuito se envolve com Ximeno<br />

Dias, mercador espanhol, cristão-novo. Reconhece-se teórica e metodologicamente a importância <strong>da</strong><br />

utilização de filmes como estratégia ou recurso pe<strong>da</strong>gógico para o ensino e para a pesquisa <strong>em</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Educação</strong>. Neste âmbito, DESMUNDO permite o estudo de diferentes eixos t<strong>em</strong>áticos que permeiam o<br />

panorama cultural do período colonial que acabam por desestabilizar o discurso histórico tradicional e<br />

oficial. Pode-se destacar a plurali<strong>da</strong>de conflituosa do universo lingüístico, presentes no século XVI, no<br />

Brasil. Observa-se que a fala <strong>da</strong>s personagens foi construí<strong>da</strong> <strong>em</strong> português arcaico e, por isso, há legen<strong>da</strong>s<br />

<strong>em</strong> português atual. Entretanto, os diálogos <strong>em</strong> hebraico, nagô e tupi, não receberam, intencionalmente, o<br />

mesmo tratamento. Outros t<strong>em</strong>as como a geografia local, a ambientação do cotidiano dos portugueses no<br />

Brasil, o estágio do desenvolvimento tecnológico <strong>da</strong> época, a pe<strong>da</strong>gogia jesuítica para os índios, as<br />

referências à antropofagia entre os índios, o universo f<strong>em</strong>inino, b<strong>em</strong> como a viag<strong>em</strong> <strong>em</strong>ocional que se faz<br />

por meio <strong>da</strong> trilha sonora também são objetos de análise. Entr<strong>em</strong>entes, o cin<strong>em</strong>a ou o filme é reconhecido<br />

e legitimado, internacionalmente, como objeto de estudos nas universi<strong>da</strong>des européias, americanas e no<br />

Brasil como indústria cultural. O cin<strong>em</strong>a, os filmes e to<strong>da</strong>s as relações e circunstâncias que os envolv<strong>em</strong><br />

estão sob os ditames <strong>da</strong> maquinaria, são estigmatizados pelo signo <strong>da</strong> mercadoria. Faz-se oportuno<br />

ressaltar que o orçamento de DESMUNDO foi de R$ 6 milhões. Arrola-se como um dos primeiros<br />

resultados deste estudo, que a noção de cin<strong>em</strong>a como sétima arte, cunha<strong>da</strong> por Ricciotto Canudo, cedeu<br />

lugar a outras pr<strong>em</strong>issas que entend<strong>em</strong> o cin<strong>em</strong>a e o filme como técnica de reprodução. Outro resultado<br />

destaca que, apesar de DESMUNDO ter sido aclamado como o melhor filme no Festival de Cin<strong>em</strong>a<br />

Brasileiro de Paris, não foi b<strong>em</strong> aceito pelo grande público. Diferent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>s histórias conta<strong>da</strong>s por<br />

Hollywood, DESMUNDO t<strong>em</strong> uma cadência lenta, que não glorifica n<strong>em</strong> <strong>em</strong>beleza a história, mas que<br />

r<strong>em</strong>ete o expectador-leitor a sintonizar-se e a probl<strong>em</strong>atizar uma série de questões que conformam o início<br />

do processo civilizatório brasileiro, possibilitando, apesar <strong>da</strong> artificiali<strong>da</strong>de cênica, uma reflexão para<br />

superaração de um deslumbramento ingênuo que permeia boa parte do imaginário cont<strong>em</strong>porâneo à cerca<br />

deste período histórico. Um outro resultado que se obtém, ao se trabalhar pe<strong>da</strong>gogicamente com filmes, é<br />

o de se verificar o desenvolvimento de competências próprias, observa<strong>da</strong>s pelos próprios participantes,<br />

quando constatam que não apenas “ouviram ou viram” histórias mas que, também, produziram suas<br />

próprias idéias acerca dos t<strong>em</strong>as <strong>em</strong> debate. Concluí-se, portanto, que é possível promover o alargamento<br />

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<strong>da</strong> percepção humana por meio <strong>da</strong> utilização de filmes, entre os participantes envolvidos <strong>em</strong> processos<br />

pe<strong>da</strong>gógicos.<br />

Palavras-chave: Campos disciplinares; <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>, <strong>Educação</strong> no período colonial; Cin<strong>em</strong>a;<br />

Desmundo.<br />

INTRODUÇÃO<br />

TRABALHO COMPLETO<br />

A construção de conhecimentos <strong>em</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> v<strong>em</strong>, desde 1990, por meio de uma<br />

adensa<strong>da</strong> produção historiográfica, ganhando novos contornos e novas perspectivas. A partir deste<br />

período, observa-se que o campo disciplinar v<strong>em</strong> se constituindo t<strong>em</strong>ático e teoricamente, diferenciado e<br />

fértil. As diferentes e novas perspectivas de investigação juntamente com os tradicionais t<strong>em</strong>as adensam o<br />

debate, desta disciplina, que compõe o núcleo de Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>.<br />

Essa nova conformação também se verifica no processo do ensino e <strong>da</strong> aprendizag<strong>em</strong> porque<br />

novas fontes e novas possibili<strong>da</strong>des se interpretações surgiram.<br />

Neste processo, a educação no período colonial que, por diferentes motivos, s<strong>em</strong>pre careceu de<br />

investigações, ganhou novo alento.<br />

A fim de participar deste movimento de renovação, <strong>em</strong> particular, do eixo t<strong>em</strong>ático <strong>da</strong> ou sobre a<br />

educação no período colonial brasileiro, este estudo t<strong>em</strong> intuito de contribuir para com o conjunto de<br />

imagens mentais que t<strong>em</strong>os dos diferentes períodos históricos. A intenção é a de analisar a plurali<strong>da</strong>de ou<br />

a diversi<strong>da</strong>de do universo cultural e educacional, no Brasil, no início do século XVI, visualiza<strong>da</strong> pela<br />

socie<strong>da</strong>de cont<strong>em</strong>porânea. Buscando explicitar a construção de recortes t<strong>em</strong>áticos, do período colonial,<br />

condicionados pela linguag<strong>em</strong> fílmica.<br />

Há que se ressaltar que a cont<strong>em</strong>poranei<strong>da</strong>de, por meio do cin<strong>em</strong>a, v<strong>em</strong> criando possibili<strong>da</strong>des,<br />

ficcionais, é ver<strong>da</strong>de, mas ain<strong>da</strong> sim, oportuni<strong>da</strong>des para sofisticar o vasto conjunto de imagens sobre<br />

lugares e períodos históricos diferenciados, como é o período colonial brasileiro.<br />

Para tanto, enfoca-se como fonte, o filme de Alain Fresnot, DESMUNDO (2003). To<strong>da</strong>via, antes<br />

de ser filme, Desmundo foi romance, lançado <strong>em</strong> 1996, pela Companhia <strong>da</strong>s Letras e escrito por Ana<br />

Miran<strong>da</strong> (1951-), uma cearense autora de vários outros livros 1 , contos e crônicas, que também escreve<br />

como colaboradora <strong>da</strong> revista Caros Amigos e do Correio Braziliense.<br />

Pavam (2005) conta que Miran<strong>da</strong> estranhou, inicialmente, o interesse de Fresnot pelo livro, visto<br />

que to<strong>da</strong> a trama se desenrola a partir do ponto de vista do universo f<strong>em</strong>inino <strong>da</strong> personag<strong>em</strong> portuguesa<br />

de Oribela. E ela sabia que ele não desejava fazer um filme f<strong>em</strong>inino, <strong>em</strong> razão do seu "compromisso com<br />

seu público de cin<strong>em</strong>a". Apesar <strong>da</strong>s diferenças interpretativas, Ana Miran<strong>da</strong> gostou do resultado final.<br />

Compreendeu, por se tratar de um filme, a opção de Fresnot por abandonar o “ponto de vista único de<br />

Oribela na narrativa e assumisse a terceira pessoa” (PAVAN, 2005).<br />

1 – ALAIN FRESNOT (1951-) 2<br />

Aos 6 anos de i<strong>da</strong>de, o parisiense, Alain mudou-se para o Brasil com a família. Em 1974,<br />

graduou-se <strong>em</strong> Cin<strong>em</strong>a pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) 3 . Para Pavam (2005), foi a<br />

1 Seu romance, o Boca do Inferno, foi incluído na lista dos c<strong>em</strong> maiores romances do século, <strong>em</strong> língua portuguesa,<br />

publica<strong>da</strong> no caderno Prosa & Verso do Jornal O Globo, <strong>em</strong> 1998.<br />

2 Agradeço as informações ofereci<strong>da</strong>s, gentilmente, pelo Prof. Dr. Afrânio Mendes Catani – FE/USP.<br />

3 Em sua filmografia constam os trabalhos realizados como diretor: Doces e salgados (Brasil, cm, 1973), Pêndulo<br />

(Brasil, cm, 1974), Nitrato (Brasil, cm, 1975), Tr<strong>em</strong> fantasma (Brasil, 1977), Capoeira (Brasil, cm, 1979), Amor que<br />

fica (Brasil, cm, 1986), Lua cheia (Brasil, 1989), Pé de pato (Brasil, cm, 1994), Ed Mort (Brasil, 1997),: Desmundo,<br />

(Brasil-Portugal, 2002).<br />

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irreverente teimosia de Fresnot que desenhou o filme Desmundo. “Enjoado” <strong>da</strong>s comédias desejava dirigir<br />

ação dramática. Se “interessou de cara” pelo romance porque visualizou uma possibili<strong>da</strong>de contrária de<br />

realização do que tinha produzido até então. Ele identificou a oportuni<strong>da</strong>de de mostrar um Brasil, no início<br />

de sua colonização, no século XVI, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que poderia envere<strong>da</strong>r pelo universo íntimo do<br />

ser humano deste período. Para Pavam (2005), o principal mérito do filme, foi o “de tentar recuperar, e <strong>em</strong><br />

alguns momentos conseguir, uma história <strong>da</strong>s mentali<strong>da</strong>des para o século 16 brasileiro”.<br />

Fresnot imaginou <strong>da</strong>r à aquela linguag<strong>em</strong> “megera”, quase onírica e psicológica do livro, um tom<br />

realista, mas b<strong>em</strong>-humorado. Penso que não é s<strong>em</strong> propósito que ele próprio interprete o vigia que,<br />

displicent<strong>em</strong>ente, permite a primeira fuga de Oribela, porque <strong>em</strong> vez de vigia-la preferiu se entregar a<br />

outros afazeres mais prazerosos. A meu ver, Fresnot tinha <strong>em</strong> mente a relação dos brasileiros para com os<br />

portugueses, ora lúdica e piadistas para uns, ora reativa à colonização para outros.<br />

Alain fez um filme que respeitou a história, o romance escondido “naquele <strong>em</strong>aranhado de fala<br />

portuguesa quinhentista reproduzi<strong>da</strong> ficcionalmente pela escritora” mas, de fato, não fez um filme<br />

f<strong>em</strong>inista. Seu esforço se concentrou na busca de um ritmo que pudesse envolver, como já tinha registrado<br />

Ana Miran<strong>da</strong>, seu público. Fresnot conta que<br />

fez uma opção clara de eliminar devaneios subjetivos de meu filme. Fugi<br />

disso como o diabo <strong>da</strong> cruz. Essa parte onírica é algo muito difícil de ser<br />

solucionado no cin<strong>em</strong>a, dentro do cin<strong>em</strong>a brasileiro, <strong>em</strong> particular.<br />

Precisa ser muito fera para misturar os discursos - como fez o diretor<br />

Fernando Cony Campos <strong>em</strong> seus filmes, por ex<strong>em</strong>plo. E o risco de ficar<br />

patético é grande (PAVAM, 2005).<br />

To<strong>da</strong>via, <strong>em</strong> algumas cenas a fuga “desta cruz” impede que o espectador não compreen<strong>da</strong> a ação<br />

<strong>em</strong>preendi<strong>da</strong>. Intencionalmente, Fresnot assume a despreocupação com certas cenas. Admite que<br />

Quanto mais a imag<strong>em</strong> fica, mais você a decodifica", pondera Fresnot,<br />

como justificativa. "Se você dá t<strong>em</strong>po ao espectador para ver, dá mais<br />

t<strong>em</strong>po para pensar. Se você dá mais t<strong>em</strong>po para pensar, certas perguntas<br />

pod<strong>em</strong> começar a surgir, que não são interessantes que surjam (PAVAM,<br />

2005).<br />

Esta opção na direção do filme não passou incólume pela análise de Pavam (2005), que<br />

considerou a película contraditória porque, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que, o filme se revela como um<br />

ambicioso e culto épico, íntimo, não hesita <strong>em</strong> colocar o pensamento, do expectador, de lado.<br />

To<strong>da</strong>via, apesar <strong>da</strong> consistência <strong>da</strong> ponderação de Pavam (2005), a opinião que se constelou foi a<br />

de que Fresnot, com Desmundo, encarou um dos maiores desafios para um cineasta nacional, o de realizar<br />

um filme histórico (TRIBUNA DA IMPRENSA, 2002). Destacam a ousadia de Fresnot <strong>em</strong> “retratar o<br />

século XVI como um período <strong>em</strong> que os personagens eram toscos, rudimentares”. Procurando mostrar que<br />

o Brasil de hoje é muito diferente, não encontramos hoje, qualquer traço, vestígio, do Brasil do século<br />

XVI, uma terra habita<strong>da</strong> pela população indígena (MACHADO 2005). Sua ousadia foi recompensa<strong>da</strong>.<br />

DESMUNDO foi aclamado como o melhor filme no Festival de Cin<strong>em</strong>a Brasileiro de Paris e, também, foi<br />

o segundo longa-metrag<strong>em</strong>, mais pr<strong>em</strong>iado, no Grande Prêmio Cin<strong>em</strong>a Brasil, <strong>em</strong> Brasília, nas categorias:<br />

o Melhor Figurino, a Melhor Maquiag<strong>em</strong> e a Melhor Direção de Arte.<br />

2 – DESMUNDO 4<br />

4 Ficha técnica: Produção: Van Fresnot; Roteiro: Sabina Anzuategui e Alain Fresnot; Direção: Alain Fresnot;<br />

Direção de Arte: Adrian Cooper e Chico Andrade; Figurino: Marjorie Gueller; Fotografia: Pedro Farkas; Trilha<br />

sonora: John Neschling; Estúdio de produção e de distribuição: Columbia Pictures do Brasil; Edição: Júnior<br />

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DESMUNDO, filme histórico, baseado no livro homônimo de Ana Miran<strong>da</strong>, inicia sua narrativa<br />

com um fragmento de uma carta de 1552, enviado pelo Padre Manuel <strong>da</strong> Nóbrega ao Rei D. João. Na tela<br />

v<strong>em</strong>os o excerto na íntegra:<br />

já que escrevi a Vossa alteza a falta que nesta terra há de mulheres, com<br />

qu<strong>em</strong> os homens cas<strong>em</strong> e vivam <strong>em</strong> serviço de Nosso Senhor, apartados<br />

dos peccados, <strong>em</strong> que agora viv<strong>em</strong>, mande Vossa alteza muitas orphãs. E<br />

si não houver muitas, venham de mistura dellas e quaesquer, porque são<br />

tão deseja<strong>da</strong>s as mulheres brancas cá, que quaesquer farão cá muito b<strong>em</strong><br />

á terra, e ellas se ganharão, e os homens de cá apartar-se-hão do peccado<br />

(Carta de Manoel <strong>da</strong> Nóbrega ao El Rei D. João, de 1552) 5 .<br />

Na seqüência, v<strong>em</strong>os a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s órfãs, vin<strong>da</strong>s do reino, para se casar<strong>em</strong> com os brancos, a fim<br />

de diminuir os pecados dos brasilis. Sob este mote se construiu a idéia do filme.<br />

O roteiro destacou o <strong>em</strong>bate entre a órfã portuguesa Oribela - com 16 anos de i<strong>da</strong>de, educa<strong>da</strong> <strong>em</strong><br />

um convento, religiosa fervorosa -, e Francisco de Albuquerque um degre<strong>da</strong>do português que enriqueceu<br />

com as terras e escravos que adquiriu na colônia. Oribela, apavora<strong>da</strong> diante de um mundo - desmundo,<br />

não-mundo ou fim de mundo - que não compreende e tenta, s<strong>em</strong>pre que pode, fugir e voltar a Portugal.<br />

Com esse intuito se envolve com Ximeno Dias, mercador espanhol, cristão-novo.<br />

O desenrolar, na tela, do enredo de Desmundo representa uma outra reali<strong>da</strong>de: as imagens<br />

veicula<strong>da</strong>s, os sons produzidos e, principalmente, as linguagens orais utiliza<strong>da</strong>s permit<strong>em</strong> a construção de<br />

in<strong>da</strong>gações sobre diferentes eixos t<strong>em</strong>áticos que permeiam o panorama cultural, do período colonial.<br />

Desmundo começa, pelo título, probl<strong>em</strong>atizando a plurali<strong>da</strong>de conflituosa do universo lingüístico,<br />

presentes no século XVI, no Brasil.<br />

Falta para a Oribela, a personag<strong>em</strong> de Ana Miran<strong>da</strong>, um termo para expressar o que é aquela nova<br />

terra, o que sente nela e por ela quando vê que seu destino tomou um “desrumo” 6 .<br />

Se intencionass<strong>em</strong>os analisar Desmundo utilizando o corpus teórico <strong>da</strong> literatura, o rico universo<br />

literário criado por Guimarães Rosa (1908-1967) ampararia a estudo, to<strong>da</strong>via, como não é este o<br />

propósito, cabe-nos tão somente informar ao leitor interessado que, Desmundo, como tantos outros termos<br />

que aparec<strong>em</strong> no filme, advém de uma linhag<strong>em</strong> rosiana, que se caracteriza por mesclar palavras,<br />

aportuguesar formas <strong>em</strong> latim, criar neologismos, inventar sufixos, trocar a ord<strong>em</strong> <strong>da</strong>s palavras, enfim,<br />

conjugar, de um jeito muito próprio, “poesia e reali<strong>da</strong>de”. Estudos na área apontam que no léxico de<br />

Guimarães Rosa, dentre oito mil verbetes analisados, aproxima<strong>da</strong>mente 30% são invenções dele, ou seja,<br />

são palavras não-dicionariza<strong>da</strong>s (PIZA, 2006, p. 34).<br />

O léxico rosiano somado ao português arcaico exigiu que Fresnot incluísse legen<strong>da</strong>s, <strong>em</strong><br />

português atual, para que seu público compreendesse os diálogos. Para essa tarefa o diretor contou com o<br />

auxílio do professor de lingüística <strong>da</strong> USP Helder Ferreira e <strong>da</strong> supervisão de Heitor Megale.<br />

Entretanto, os diálogos <strong>em</strong> hebraico, nagô e tupi, não receberam, intencionalmente, o mesmo<br />

tratamento. Ao que parece Fresnot desejou manter a platéia com a mesma sensação de estupefação de<br />

Oribela diante do desconhecido universo babélico brasilis (PAVAM, 2005). Do romance de Ana Miran<strong>da</strong>,<br />

Fresnot manteve o plurilingüísmo, a diversi<strong>da</strong>de social <strong>da</strong>s línguas, o conflito lingüístico que também se<br />

revela como conflito social e cultural.<br />

Carone, Mayalu Oliveira e Alain Fresnot; Ano: 2003; País: Brasil; Gênero: Drama; Duração: 100 minutos; Elenco:<br />

Simone Spoladore (Oribela); Osmar Prado (Francisco de Albuquerque); Caco Ciocler (Ximeno Dias); Berta Z<strong>em</strong>ei<br />

(Dona Branca); Beatriz Segall (Dona Brites) e outros.<br />

5 NÓBREGA, 1988, p.133.<br />

6 Em t<strong>em</strong>po: informo ao leitor que controle o desejo de abrir o dicionário para investigar os termos desmundo e<br />

desrumo, pois seria per<strong>da</strong> de t<strong>em</strong>po. Ambos são termos ausentes na língua oficial, são palavras não-dicionariza<strong>da</strong>s.<br />

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A apresentação desse universo lingüístico conflituoso, <strong>em</strong> Desmundo, oportuniza tecer relações<br />

com t<strong>em</strong>as pertinentes ao ensino <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong> do período colonial, como, por ex<strong>em</strong>plo, as<br />

d<strong>em</strong>an<strong>da</strong>s que giram <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> primeira gramática brasileira, organiza<strong>da</strong> por Anchieta, <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> de 1560.<br />

3 - DESMUNDO E A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO SÉCULO XVI<br />

3.1 – Enfrentando a babelis brasilis<br />

Entendo que, no ensino de <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>, é importante que se crie oportuni<strong>da</strong>des para<br />

historicizar não só a sua elaboração como, também, reconhecer, ain<strong>da</strong> que minimante, a <strong>em</strong>preita<strong>da</strong><br />

realiza<strong>da</strong>, pelos padres jesuítas para estabelecer a comunicação com os índios.<br />

Manoel <strong>da</strong> Nóbrega, desde sua primeira carta, <strong>em</strong> 1549, já revelava que, todos que vieram com<br />

ele, estavam <strong>em</strong>penhados <strong>em</strong> dominar a linguag<strong>em</strong> dos nativos. E, também, já revelava que qu<strong>em</strong> mais<br />

d<strong>em</strong>onstrava facili<strong>da</strong>des no aprendizado era o Pe. Navarro (NÓBREGA, 1988, p. 73).<br />

Nóbrega (1988, p. 105), um ano depois, ain<strong>da</strong> continuava preocupado porque ele e os outros<br />

Padres ain<strong>da</strong> eram rudes e mal exercitados 23 na língua nativa. Ao que consta, mesmo com todo o<br />

<strong>em</strong>penho, sobretudo porque era gago 7 , Nóbrega não conseguiu dominar “a língua”. Sentimentos<br />

motivados pela inveja, pela vergonha soma<strong>da</strong> a sensação de desonra permeavam o cotidiano dos padres<br />

que não conseguiam aprender a conversar com os índios para dizer, s<strong>em</strong> intérpretes o que queriam, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, ensinar (PIRES, 1988, In: AZPILCUETA, p. 102, 302).<br />

Neste complexo processo de aprendizado <strong>da</strong> ou <strong>da</strong>s línguas diversas foram às estratégias<br />

utiliza<strong>da</strong>s. Uma delas foi a de inserir a figura de um intérprete. Esta personag<strong>em</strong> ficou conheci<strong>da</strong> como<br />

“meninos-língua”. Este foi o termo utilizado para identificar os primeiros órfãos que chegaram com as<br />

primeiras expedições e conseguiam, com a convivência aprender com maior rapidez a estrutura lingüística<br />

local.<br />

Para ficar sob os cui<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> Cia. vieram, de Lisboa, muitos órfãos que auxiliaram na tarefa<br />

civilizadora dos padres. Nóbrega revela que por meio destes meninos ele e os outros padres, aprendiam a<br />

língua, pregavam e atraíam os filhos dos “gentios” (NÓBREGA, 1988, p. 115). Na falta deles a tarefa<br />

evangelizadora ficava comprometi<strong>da</strong> (NÓBREGA, 1988, p. 145).<br />

Ao crescer<strong>em</strong> os órfãos, os meninos-língua se tornavam padres <strong>da</strong> Cia. de Jesus; como cresceram<br />

junto com uma geração de índios conseguiam conquistar espaços, no interior de suas comuni<strong>da</strong>des com<br />

uma marg<strong>em</strong> de resistência menor à sua presença, na tarefa evangelizadora. O trabalho realizado pelos exórfãos<br />

e meninos-língua Antonio de Pina e João Pereira foi elogiado e reconhecido pelo Pe. Blasquez<br />

(1988, In: AZPILCUETA,p. 447).<br />

Percebe-se que o trabalho pe<strong>da</strong>gógico dos jesuítas, ou qualquer outra ativi<strong>da</strong>de colonizadora,<br />

ficava comprometido se não houvesse comunicação entre eles e os homens <strong>da</strong> terra. Para além <strong>da</strong><br />

utilização dos meninos-língua, auxiliaram e atuaram como interpretes personagens como Antonio<br />

Rodrigues, João Ramalho, Diogo Correia, o Caramuru, suas mulheres e filhos (ANCHIETA, 1988, p.484).<br />

Essas informações permit<strong>em</strong> entender que a presença de colonizadores que já estavam, há mais t<strong>em</strong>po, na<br />

colônia, ajudou a diminuir a distância, imposta pela dificul<strong>da</strong>de <strong>da</strong> comunicação entre padres e índios.<br />

Anchieta (1988, p. 48) registra que Pero Corrêa, por ser morador naquela região, desde 1533, possuía<br />

grandes conhecimentos <strong>da</strong> língua dos índios e isso os auxiliou <strong>em</strong> muito.<br />

To<strong>da</strong>s essas dificul<strong>da</strong>des encontra<strong>da</strong>s e outras que não ponderamos pod<strong>em</strong> auxiliar a compreender<br />

porque Pe. Geral Luiz <strong>da</strong> Grã exigiu que todos os m<strong>em</strong>bros <strong>da</strong> Cia. de Jesus, residentes na colônia,<br />

estu<strong>da</strong>ss<strong>em</strong>, diariamente, a Gramática elabora<strong>da</strong> por Anchieta 8 . Pe. Mello (1988, In: AZPILCUETA, p.<br />

279), <strong>em</strong> 1560, registrou que “desta licção n<strong>em</strong> reitor, n<strong>em</strong> pregador, n<strong>em</strong> uma outra pessoa é isenta”.<br />

23 : Nóbrega. p.105, Anchieta. p. 482..<br />

7 Cf. Anchieta, 1988, p.482; Cf. Vasconcelos, 1977, Vº I, p.175.<br />

8 Na colônia sue estudo se <strong>da</strong>va por meio de manuscritos. Em 1595 foi impressa <strong>em</strong> Coimbra.<br />

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O estudo <strong>da</strong> Gramática, ain<strong>da</strong> que de forma lenta, permitiria que, aos poucos, o estabelecimento<br />

<strong>da</strong> comunicação até então parcial, limita<strong>da</strong> e angustiante, caracteriza<strong>da</strong> pela imitação, pela improvisação,<br />

pelo uso de acenos (NÓBREGA, 1988, p. 95) se amparasse <strong>em</strong> um aprendizado menos rudimentar.<br />

Anchieta (1988) relatava que os índios <strong>da</strong> província do Brasil eram inumeráveis, de várias nações,<br />

costumes e linguagens, mas não<br />

têm escrita, n<strong>em</strong> caracteres, n<strong>em</strong> sab<strong>em</strong> contar, n<strong>em</strong> têm dinheiro (...) sua<br />

língua é delica<strong>da</strong>, copiosa e elegante, t<strong>em</strong> muitas composições e sincopas<br />

mais que os Gregos, os nomes são todos indeclináveis, e os verbos têm<br />

suas conjugações e t<strong>em</strong>pos. Na pronunciação são subtis, falam baixo que<br />

parece que não se entend<strong>em</strong> e tudo ouv<strong>em</strong> e penetram; <strong>em</strong> sua<br />

pronunciação não põ<strong>em</strong> F, L, Z, S e RR, n<strong>em</strong> põ<strong>em</strong> muta com liqui<strong>da</strong><br />

como Bra, Craze (ANCHIETA, 1988, p. 441).<br />

Este fragmento <strong>da</strong> Carta de Anchieta “Informação <strong>da</strong> Província do Brasil”, de 1585, foi<br />

reproduzido inúmeras vezes justificando interesses diferenciados. Gabriel Soares de Sousa, um dos<br />

primeiros viajantes, do século XVI, redigiu o Tratado Descritivo do Brasil, <strong>em</strong> 1587, e reproduziu,<br />

parcialmente, o conhecimento <strong>da</strong> língua nativa construído pelo jesuíta, atribuindo valores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

colonial para a ausência, não de to<strong>da</strong>s mas, de somente de três letras. Segue a reprodução <strong>da</strong> sua idéia:<br />

[...] faltam-lhes três letras <strong>da</strong>s do ABC, que são F, L, R grande ou<br />

dobrado, coisa muito para se notar; porque, se não têm F, é porque não<br />

têm fé <strong>em</strong> nenhuma coisa que ador<strong>em</strong> (...) se não t<strong>em</strong> L na sua<br />

pronunciação, é porque não te lei alguma que guar<strong>da</strong>r (...) e se não t<strong>em</strong><br />

esta letra R na sua pronunciação, é porque não t<strong>em</strong> reio que os reja, e a<br />

qu<strong>em</strong> obedeçam (SOUSA, 1971, p. 302).<br />

Pero de Magalhães Gan<strong>da</strong>vo, outro viajante do século XVI, reproduziu a idéia de Sousa (1971)<br />

declarando que por carecer<strong>em</strong> <strong>da</strong>s três letras, F, L e R “cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé,<br />

n<strong>em</strong> Lei, n<strong>em</strong> Rei; e desta maneira viv<strong>em</strong> s<strong>em</strong> Justiça e desordena<strong>da</strong>mente” (GANDAVO, 1980, p. 52).<br />

Deixando de lado as descaracterizações culturais dos viajantes, registramos que Pe. Vieira<br />

descreveu, com rigorosa precisão, sobre as dificul<strong>da</strong>des que se apresentavam na decifração <strong>da</strong> língua e na<br />

sua transcrição. Vamos à descrição:<br />

(...) Por vezes me aconteceu estar com o ouvido aplicado à boca do<br />

bárbaro e ain<strong>da</strong> do intérprete, s<strong>em</strong> poder distinguir as sílabas, n<strong>em</strong><br />

perceber as vogais ou consoantes de que se formavam, equivocando-se a<br />

mesma letra com duas e três s<strong>em</strong>elhantes, ou compondo-se (o que é mais<br />

certo) com mistura de to<strong>da</strong>s elas: umas tão delga<strong>da</strong>s e sutis, outras tão<br />

duras e escabrosas, outras tão interiores e escuras e mais afoga<strong>da</strong>s na<br />

garganta que pronuncia<strong>da</strong>s na língua; outras tão curtas e subi<strong>da</strong>s, outras<br />

tão estendi<strong>da</strong>s e multiplica<strong>da</strong>s, que não perceb<strong>em</strong> os ouvidos mais que a<br />

confusão, sendo certo <strong>em</strong> todo rigor, que as tais línguas não se ouv<strong>em</strong>,<br />

pois se não ouve delas mais que o sonido, e não palavras desarticula<strong>da</strong>s e<br />

humanas (VIEIRA, s/d, p. 138).<br />

Este ex<strong>em</strong>plo de Vieira permite algumas ousadias. A primeira é de criar uma imag<strong>em</strong> <strong>da</strong> situação.<br />

Os detalhes <strong>da</strong> descrição nos fornec<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos para que a imaginação produza uma visualização.<br />

Imagino a cena que Fresnot poderia fazer com ela. Outra ousadia é a propor a realização do seguinte<br />

exercício:<br />

1097


1098<br />

- seleciona-se alguém que desconhece a língua francesa e solicita-se que escreva a seguinte frase:<br />

Comment tu t’appeles? 9 Ou a palavra Beaucoup 10<br />

Como resultaria a escrita <strong>da</strong> frase, sabendo que o solicitado foi feito a um desconhecedor <strong>da</strong>s<br />

regras normativas <strong>da</strong> língua? Dos seus recursos?<br />

Atrevo-me a inferir que a escrita poderia aparecer <strong>da</strong> seguinte forma: comom ti tapele e bocú.<br />

Penso que o procedimento de transcrição, <strong>da</strong>s línguas nativas, pelos padres, se realizou de forma<br />

bastante pareci<strong>da</strong> com a proposta do ousado exercício. Como descreveu Pe. Vieira, a transcrição do tupi<br />

ou de qualquer outra língua dos índios foi realiza<strong>da</strong> a partir de el<strong>em</strong>entos fonéticos, posto que não havia<br />

código escrito. Portanto, não se pode deixar de registrar que os códigos, os signos advindos <strong>da</strong> cultura oral<br />

não tinham relações com os códigos, signos e significados atribuídos a ela pela cultura escrita européia.<br />

Pe. Vieira continua a contribuir quando nos revela a acentua<strong>da</strong> diferença entre aprender uma<br />

língua de tradição oral, como era a dos nativos <strong>da</strong> colônia brasileira e uma outra, por mais estranha que<br />

soasse aos ouvidos lusitanos, que tinha tradição escrita, como a dos orientais. Segue o excerto quando ele<br />

compara e distingui o esforço <strong>em</strong>preendido no aprendizado <strong>da</strong>s línguas:<br />

As letras dos chinas e dos japões, muita dificul<strong>da</strong>de têm porque são letras<br />

hieroglíficas, como as do egípcios, mas enfim, é aprender língua de gente<br />

política e estu<strong>da</strong>r por letra e por papel. Mas haver de arrostar com uma<br />

língua bruta e de brutos, s<strong>em</strong> livro, s<strong>em</strong> mestre, s<strong>em</strong> guia, e no meio<br />

<strong>da</strong>quela escuri<strong>da</strong>de e dissonância haver de cavar os primeiros alicerces e<br />

descobrir os primeiros rudimentos dela; distinguir o nome, o verbo, o<br />

advérbio, a proposição, o número, o caso, o t<strong>em</strong>po, o modo e modos<br />

nunca vistos n<strong>em</strong> imaginados, como de homens enfim tão diferentes dos<br />

outros nas línguas como nos costumes, não há dúvi<strong>da</strong> que é <strong>em</strong>presa<br />

muito árdua a qualquer entendimento, e muito mais árdua à vontade que<br />

não estiver muito sacrifica<strong>da</strong> e muito uni<strong>da</strong> com Deus (VIEIRA, s.d.<br />

p.139).<br />

Limito essas considerações sobre a questão <strong>da</strong> plurali<strong>da</strong>de lingüística, <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des do<br />

estabelecimento <strong>da</strong> conversação, enfim, do universo babélico do período colonial, encontrado nos relatos<br />

<strong>da</strong> época, no romance de Ana Miran<strong>da</strong> e no filme de Fresnot, observando que a compreensão e o<br />

entendimento do funcionamento <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> cultura oral auxiliam no trabalho pe<strong>da</strong>gógico, inclusive,<br />

permitindo que se ponderasse acerca <strong>da</strong> complexa estrutura lingüística dos índios. Na dinâmica para se<br />

dominar o idioma local, foi um aprendizado revelador quando identificavam que diferenças lingüísticas se<br />

explicavam ou se originavam a partir <strong>da</strong>s relações sociais e familiares <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des. Ex<strong>em</strong>plificando e<br />

esmiuçando esta idéia pod<strong>em</strong>os identificar que, se na língua portuguesa encontrava-se um significado<br />

único para os termos irmãos, irmãs, tios, tias, primos e primas na linguag<strong>em</strong> indígena essa normatização<br />

inexistia (VICENTE DO SALVADOR, 1982, p. 77/78). A relação familiar <strong>da</strong>va significado e fornecia os<br />

termos, diferenciando, por ex<strong>em</strong>plo, o tio paterno do materno....por aí vai ......<br />

Para o ensino <strong>da</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>, Desmundo permite o estudo e a análise de diversos outros<br />

t<strong>em</strong>as relacionados ao século XVI, período do início <strong>da</strong> colonização do Brasil. O filme revela questões<br />

inerentes à geografia local, a ambientação do cotidiano dos portugueses na colônia, o estágio do<br />

desenvolvimento tecnológico <strong>da</strong> época, o universo f<strong>em</strong>inino e, principalmente, a estratégia <strong>da</strong> utilização<br />

<strong>da</strong> música como uma <strong>da</strong>s características definidoras <strong>da</strong> pe<strong>da</strong>gogia jesuítica para os índios.<br />

“Falando” <strong>em</strong> música, faço parênteses, para observar que o filme, Desmundo, permite que o<br />

expectador realize uma viag<strong>em</strong> <strong>em</strong>ocional por meio <strong>da</strong> sua trilha sonora. A utilização de instrumentos<br />

como o violino, o violão, a guitarra e flauta não só fornec<strong>em</strong> el<strong>em</strong>entos para a diferenciação dos<br />

9 Como você se chama?<br />

10 Muito.<br />

1098


1099<br />

sentimentos como também “buscam” aflorar sensações desconheci<strong>da</strong>s na e para a platéia quando, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, os recursos <strong>da</strong> percussão se faz<strong>em</strong> ouvir ou sentir.<br />

Retornando à pe<strong>da</strong>gogia jesuítica, considero relevante destacar as referências que Desmundo traz<br />

acerca <strong>da</strong> antropofagia entre os índios.<br />

3.2 – Desmundo e a pe<strong>da</strong>gogia jesuítica<br />

Os padres, na sua prática educativa, começam utilizando na organização do trabalho pe<strong>da</strong>gógico<br />

as expressões artísticas como o canto, a música e a <strong>da</strong>nça. Os Padres, <strong>em</strong> diversas passagens nas Cartas,<br />

mas <strong>em</strong> uma, principalmente, percebe que o canto do índio:<br />

[...] era a cousa que eles mais prezavam. Era na doçura do canto que<br />

colocavam a felici<strong>da</strong>de humana. Acreditava que o meio era pôr na<br />

harmonia do canto as orações e documentos mais necessários a fé, as<br />

coisas do céu entravam <strong>em</strong> suas almas pela suavi<strong>da</strong>de do canto<br />

(NÓBREGA apud VASCONCELOS, 1977, p. 237).<br />

Talvez isso explicasse o porquê dos índios, inúmeras vezes, amoitavam-se para escutar os padres<br />

cantar seus cânticos espirituais. O gosto natural pelo canto, o gosto pela música e <strong>da</strong>nças assegurou, de<br />

início, garantiu o trabalho pe<strong>da</strong>gógico dos jesuítas.<br />

Os padres, quando intencionalmente organizaram o trabalho de doutrinação com o índio,<br />

partindo <strong>da</strong>s manifestações artísticas não as <strong>da</strong> cultura nativa como também as manifestações artísticas <strong>da</strong><br />

civilização moderna. À medi<strong>da</strong> que os índios iam correspondendo à sofisticação nas artes, como na<br />

música, <strong>da</strong>nça e canto, iam colocando outras estratégias <strong>em</strong> funcionamento, tais como a poesia, o teatro, e<br />

os atos de caráter estritamente religioso, como a missa, o sermão e a procissão.<br />

Tal como a música e o canto, o sermão se realizava originalmente com a mesma perspectiva<br />

psicológica de atingir os ouvintes pela <strong>em</strong>oção. Já as Missas, como todo ritual, eram revesti<strong>da</strong>s do maior<br />

caráter solene e minuciosamente prepara<strong>da</strong>s e organiza<strong>da</strong>s. A Procissão ass<strong>em</strong>elhava-se, acreditava o<br />

índio, ao ritual de recepção e acompanhamento do pajé à aldeia ou a qualquer outro visitante (VALE,<br />

1988, In: AZPILCUETA, 1988, p. 374). Mas era no Teatro que se revelava à elaboração acaba<strong>da</strong> do ato<br />

pe<strong>da</strong>gógico, to<strong>da</strong>via, esse t<strong>em</strong>a é objeto para outra conversa textual.<br />

Considero que o filme Desmundo apresenta inúmeras possibili<strong>da</strong>des de leituras e de análises.<br />

Justifico sua utilização porque, primeiramente, as inter-relações entre cin<strong>em</strong>a, história e educação são<br />

múltiplas, segundo, porque oferece indícios t<strong>em</strong>áticos e uma linguag<strong>em</strong> a mais na elaboração do<br />

conhecimento histórico, haja vista a compreensão de que para muitos a única história que existe é a<br />

história que Hollywood conta.<br />

Apesar de Desmundo ter sido aclamado como o melhor filme no Festival de Cin<strong>em</strong>a Brasileiro de<br />

Paris, não foi b<strong>em</strong> aceito pelo grande público. Diferent<strong>em</strong>ente <strong>da</strong>s histórias conta<strong>da</strong>s por Hollywood,<br />

Desmundo t<strong>em</strong> uma cadência lenta, que não glorifica n<strong>em</strong> <strong>em</strong>beleza a história, mas que r<strong>em</strong>ete o<br />

expectador-leitor a sintonizar-se e a probl<strong>em</strong>atizar uma série de questões que conformam o início do<br />

processo civilizatório brasileiro, possibilitando, apesar <strong>da</strong> artificiali<strong>da</strong>de cênica, uma reflexão para<br />

superaração de um deslumbramento ingênuo que permeia boa parte do imaginário cont<strong>em</strong>porâneo à cerca<br />

deste período histórico. Não me parece insignificante as possibili<strong>da</strong>des que Desmundo oferece para a<br />

construção de conhecimentos, sob a perspectiva histórica, referentes ao universo brasileiro colonial<br />

Reconhece-se teórica e metodologicamente a importância <strong>da</strong> utilização de filmes como estratégia<br />

ou como recurso pe<strong>da</strong>gógico para o ensino e para a pesquisa <strong>em</strong> <strong>História</strong> <strong>da</strong> <strong>Educação</strong>. O pressuposto que<br />

amparou este trabalho foi mostrar de que a priori<strong>da</strong>de no ensino não é a de ensinar ou <strong>da</strong>r respostas mas, a<br />

de proporcionar meios para as questões as perguntas se realiz<strong>em</strong>.<br />

1099


1100<br />

Desenvolvi, sob a perspectiva do historiador <strong>da</strong> educação, formas de olhar, de estudá-lo e de<br />

analisá-lo s<strong>em</strong> dispensar o conhecimento teórico como faz<strong>em</strong> os profissionais e teóricos <strong>da</strong> estética<br />

cin<strong>em</strong>atográfica ou como os críticos do discurso artístico, mas preocupando-me, primeiramente, <strong>em</strong> não<br />

olvi<strong>da</strong>r que os filmes, Desmundo, <strong>em</strong> particular, traz<strong>em</strong> a marca de seu t<strong>em</strong>po. Segundo, buscando evitar<br />

simplificar esta questão e reduzir a produção <strong>em</strong> relações ou associações mecânicas entre a obra e seu<br />

t<strong>em</strong>po.<br />

Com isto posto, considero importante levar Desmundo para a sala de aula não só como um recurso<br />

a mais para ser utilizado no processo de ensino/aprendizag<strong>em</strong>, como também, propiciar sua análise como<br />

produto cultural.<br />

O cin<strong>em</strong>a é, e os filmes são reconhecidos e legitimados, internacionalmente, como objeto cultural<br />

de estudos nas universi<strong>da</strong>des européias, americanas e no Brasil, to<strong>da</strong>via, também, são vistos como produto<br />

<strong>da</strong> indústria cultural. Não se pode deixar de registrar que o cin<strong>em</strong>a, os filmes e to<strong>da</strong>s as relações e<br />

circunstâncias que os envolv<strong>em</strong> estão sob os ditames <strong>da</strong> maquinaria, são estigmatizados pelo signo <strong>da</strong><br />

mercadoria. Faz-se oportuno ressaltar que o orçamento de Desmundo foi de R$ 6 milhões.<br />

Um dos primeiros resultados deste estudo destaca a importância <strong>da</strong> operação de deslocamento <strong>da</strong><br />

noção de cin<strong>em</strong>a. Atualmente, os discursos sobre cin<strong>em</strong>a e sobre os filmes destacam as pr<strong>em</strong>issas teóricas<br />

que afirmam o cin<strong>em</strong>a como técnica de reprodução. Este tratamento não enfatiza mais a noção de cin<strong>em</strong>a<br />

como sétima arte, cunha<strong>da</strong> por Ricciotto Canudo, historiador italiano <strong>da</strong> cultura francesa.<br />

Esta compreensão permite que se desfaçam as ligações ingênuas com o cin<strong>em</strong>a e com os filmes e<br />

que estabeleçamos outras possibili<strong>da</strong>des de interpretações, quando se trabalha pe<strong>da</strong>gogicamente com eles.<br />

Para Sergei Mikhailovitch Eisentein (1898-1948), renomado cineasta russo, o cin<strong>em</strong>a não se<br />

limita a contar uma história. Para ele o cin<strong>em</strong>a pode produzir idéias buscando manter o espectador ativo e<br />

participante.<br />

Os filmes, como discurso, tal como a historiografia, não contêm to<strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de - nenhum discurso<br />

contém. É interessante verificar como os diversos discursos ora difer<strong>em</strong>, ora combinam entre si, e como<br />

eles “funcionam” simultânea e combina<strong>da</strong>mente. Neste espaço se abre a oportuni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> criação, <strong>da</strong><br />

participação, do desenvolvimento de competências, de produção de idéias próprias acerca, não só dos<br />

t<strong>em</strong>as <strong>em</strong> debate mas também <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de <strong>em</strong> que se vive.<br />

Finalizo esta apresentação, observando que acredito na promoção do alargamento <strong>da</strong> percepção<br />

humana por meio <strong>da</strong> utilização de filmes, destaca-se Desmundo para o momento, entre participantes<br />

envolvidos <strong>em</strong> processos pe<strong>da</strong>gógicos. Penso que outros profissionais <strong>da</strong> área também acreditam diante<br />

<strong>da</strong>s inúmeras propostas de trabalhos pe<strong>da</strong>gógicos que utilizam filmes, que faz<strong>em</strong> do cin<strong>em</strong>a instrumento<br />

não só de ensino como também de pesquisa e <strong>da</strong> extensão universitária.<br />

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1101

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