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O Higienismo na Educação Escolar - Faced.ufu

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O HIGIENISMO NA EDUCAÇAO ESCOLAR<br />

RESUMO<br />

6516<br />

Maria Lucia Boarini<br />

Universidade Estadual de Maringá<br />

Este texto tem como objetivo refletir sobre a significativa atuação dos médicos higienistas, integrantes<br />

ou não, da Liga Brasileira de Higiene Mental <strong>na</strong>s orientações e encaminhamentos do sistema escolar<br />

brasileiro <strong>na</strong>s primeiras décadas do século XX. Tal retorno a historia tem como estimulo a nossa<br />

hipótese de que estas orientações seguem vigorosas, em nossos dias, apesar de quase um século<br />

transcorrido. Sustentamos esta afirmação <strong>na</strong> comprovada freqüência da busca de recursos no campo da<br />

saúde, pelos educadores, para solucio<strong>na</strong>r dificuldades encontradas no processo pedagógico, sobretudo<br />

no Ensino Fundamental (não aprendizagem, comportamento indiscipli<strong>na</strong>do etc.) e <strong>na</strong>s respostas<br />

oferecidas pelos psicólogos e médicos a esta demanda escolar. Reconhecemos que esta tarefa a que nos<br />

propomos não é simples esgotando-se em um estudo de um único pesquisador. Até porque as<br />

orientações dos higienistas e eugenistas não se circunscreveram ao campo escolar, mas ramificou-se <strong>na</strong>s<br />

diferentes instituições brasileiras. Sob esta perspectiva recorremos a uma estratégia didática que é a<br />

criação de um Grupo de Estudos e Pesquisa cuja sigla é GEPHE, devidamente cadastrado no CNPq.<br />

Atualmente o GEPHE, incorpora além deste estudo que ora apresentamos vários projetos, sob esta<br />

temática, de dissertação de mestrado ligados ao Programa de pós-graduação de Fundamentos da<br />

<strong>Educação</strong> da Universidade Estadual de Maringá. Não se pretendeu com o presente estudo (e não se<br />

pretende com o GEPHE) interpretar como iguais peculiaridades de diferentes estágios de<br />

desenvolvimento social. Partimos do principio que as sociedades vão se construindo e se transformando<br />

para atender as necessidades geradas pela busca de sobrevivência o que vale dizer que nosso referencial<br />

para leitura e interpretação dos dados coletados é a epistemologia materialista histórica. Assim sob esta<br />

coorde<strong>na</strong>da teórica o procedimento inicial foi re-visitar os documentos da época e as preocupações dos<br />

integrantes da LBHM, registradas ou descritas por eles mesmos no campo da educação escolar<br />

circunscrevendo para a<strong>na</strong>lise três categorias históricas: a infância, a escola e a ciência psicológica. E um<br />

dos principais desafios metodológicos postos no desenvolvimento deste estudo foi o rigor <strong>na</strong><br />

observação do distanciamento temporal e das necessidades sociais da época quando da a<strong>na</strong>lise das<br />

fontes primarias consultadas e no conjunto dos dados coletados referentes ao período estudado. Por ora,<br />

temos que fundamentados teórica e principalmente nos avanços da ciência biológica os militantes da<br />

higiene mental e da eugenia justificavam suas ações pela necessidade de prevenção da doença mental,<br />

das mazelas de caráter social e da “melhoria da raça” e. Desta forma estaria sendo construída a Nação<br />

brasileira, onde se realizaria o lema positivista da “ordem e progresso”. Sob esta perspectiva a LBHM<br />

não mediu esforços <strong>na</strong> realização de campanhas para prevenir o desajustamento social e psíquico,<br />

promovendo intervenções, principalmente, <strong>na</strong> educação escolar, pois “um dos melhores meios de se<br />

fazer prophylaxia mental consistia em agir sobre as crianças das escolas” afirmavam Juliano Moreira e<br />

Henrique Roxo, importantes médicos membros da LBHM. Seguindo o “feitio lógico e scientifico”,<br />

orientavam os professores primários através do ensino de Psicologia <strong>na</strong>s escolas normais, recorriam a<br />

psicometria para auxiliar <strong>na</strong> distribuição das classes classificando e separando os alunos de acordo com<br />

seu desenvolvimento mental dentre outros encaminhamentos. Desta forma, o individuo (no caso a<br />

criança) era o principal objeto de a<strong>na</strong>lise e intervenção dos higienistas que, via de regra, perdiam de<br />

vista as contradições sociais que historicamente dá a cor e o tom do fenômeno educativo. Atualmente,<br />

sem as limitações históricas vividas pelos membros da LBHM e com o beneficio do tempo transcorrido<br />

é possível observar que o discurso preventivista em busca da homogeneidade, pautado em bases<br />

teóricas, nem sempre coerentes entre si, abriu um importante espaço no campo do poder a estes<br />

profissio<strong>na</strong>is. Poder e intervenções que, em geral, não apresentaram resultados concretos aos problemas<br />

que se propunham resolver, até porque eram problemas de caráter complexo que a interpretação<br />

organicista da sociedade não dá conta. Atualmente, salvo erro de interpretação da nossa parte, há si<strong>na</strong>is<br />

de aproximações com os discursos e encaminhamentos de caráter higienista quando educadores<br />

recorrem com freqüência ao campo da saúde para sa<strong>na</strong>r dificuldades geradas no processo pedagógico E<br />

quando a ciência se propõe a classificar e justificar a superioridade ou inferioridade de indivíduos, de


6517<br />

etnias, de classes sociais pelas diferenças <strong>na</strong>turais, pode instituir-se a rejeição ao diferente por<br />

representar o signo de “fora do padrão” e a intolerância passa a ser a norma. Esta parece ter sido uma<br />

das mais importantes lições que a ciência do passado nos legou da qual nos incluímos como aprendizes.<br />

TRABALHO COMPLETO<br />

Este texto tem como objetivo refletir sobre a significativa atuação dos médicos higienistas,<br />

integrantes ou não da Liga Brasileira de Higiene Mental 1 <strong>na</strong>s orientações e encaminhamentos do<br />

sistema escolar brasileiro <strong>na</strong>s primeiras décadas do século XX. Tal retorno <strong>na</strong> história tem como<br />

estimulo a nossa hipótese de que estas orientações seguem vigorosas em nossos dias, apesar de<br />

transcorrido quase um século. Fundamentamos esta afirmação <strong>na</strong> comprovada freqüência da busca de<br />

recursos no campo da saúde, por parte dos educadores, para solucio<strong>na</strong>r dificuldades encontradas no<br />

processo pedagógico (não-aprendizagem, comportamento indiscipli<strong>na</strong>do etc.), sobretudo no Ensino<br />

Fundamental, e <strong>na</strong>s respostas oferecidas pelos psicólogos e médicos a esta demanda escolar.<br />

Aliás, esta não é uma informação inédita, se considerarmos as inúmeras reflexões sobre a<br />

“medicalização” das questões pedagógicas 2 já pontuadas em “verso e prosa” <strong>na</strong> literatura, em<br />

congressos científicos e trabalhos acadêmicos. Grosso modo, esta situação vem sendo justificada pela<br />

impossibilidade de o aluno acompanhar os conteúdos escolares, por problemas físicos, psíquicos,<br />

familiares e outros. Atualmente temos um novo desdobramento deste procedimento, que<br />

provisoriamente estamos denomi<strong>na</strong>ndo de “farmacologização” 3 , ou seja, o uso sob prescrição médica,<br />

por parte de um grande número de alunos do Ensino Fundamenta, de remédios “controlados” 4 . como<br />

solução para manifestações de comportamentos diagnosticados como transtorno de déficit de atenção e<br />

hiperatividade 5 .<br />

À primeira vista talvez, por conta da nostalgia, não raro ouvimos que “antigamente a escola era<br />

bem melhor” e outros discursos do gênero, que, diga-se de passagem, a história não confirma, a se<br />

considerar o lamento do professor Lourenço Filho ao prefaciar o livro intitulado “O ensino primário no<br />

Brasil” FREITAS (1934). Mesmo para o ensino fundamental comum, a taxa dos alunos, que chegam a<br />

concluir o curso não atinge a seis por cento. O rendimento efetivo, real do ensino primário, no Brasil,<br />

é, pois, dos mais pobres em todo o mundo, à vista desta deserção".<br />

Diante disso, vai-se delineando a velha pergunta: como entender esta suposta crise da educação<br />

escolar que se mantém há quase um século? Tentar responder a esta questão não nos parece tarefa<br />

simples, especialmente no que tange ao aspecto metodológico. Senão vejamos: é difícil (para não dizer<br />

impossível) compreender qualquer fenômeno no campo das relações sociais quando fazemos parte deste<br />

cenário e respondemos por um determi<strong>na</strong>do script. Sob esta ótica, insistir <strong>na</strong> leitura e análise de um<br />

fenômeno social da época da qual somos os atores poderá nos levar a conclusões que o tempo<br />

transcorrido pode não confirmar.<br />

Tendo clara a necessidade de distanciamento do fenômeno para melhor compreendê-lo e, ainda,<br />

a necessidade de recuperar a gênese desta suposta crise da educação escolar, recuamos no tempo e<br />

demarcamos para nosso estudo importantes intervenções no setor escolar, <strong>na</strong>s primeiras décadas do<br />

1 A Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em 1923 por iniciativa do médico Gustavo Riedel. Por<br />

força do Decreto 4778 de 27/12/1923 foi reconhecida de utilidade pública, passando a receber uma subvenção<br />

para o desempenho de suas atividades. Um de seus objetivos era a “realização de um programa de Higiene<br />

Mental e de Eugenética no domínio das atividades individuais, escolares, profissio<strong>na</strong>is e sociais LBHM (1925,<br />

p.223). Dela faziam parte importantes médicos (em sua maioria), juristas, educadores, alguns ocupavam cargos<br />

políticos.<br />

2 É importante relembrar que este termo foi criado por Ivan Ilich (1975) indicando a invasão pela medici<strong>na</strong> de<br />

um número cada vez maior de áreas da vida individual independente de haver ou não sintomas mórbidos...” .<br />

3 “O termo fármaco é a tradução do grego phármakon, que tanto desig<strong>na</strong> medicamento como veneno, ou seja,<br />

qualquer substância capaz de atuar no organismo, seja em sentido benéfico ou maléfico... Percebe-se, contudo, nos<br />

textos médicos atuais, uma clara tendência de conferir à palavra droga o mesmo significado de fármaco,<br />

sobretudo quando se trata de substância química sintetizada pela indústria farmacêutica.” In: Rezende (2005).<br />

4 Referimo-nos neste caso a Ritali<strong>na</strong> e Concerta.<br />

5 Sucupira (1986), Perozim (2005), Collares & Moises (1996)


6518<br />

século XX, orientadas por médicos defensores da vertente preocupada com a higiene mental 6 , os quais<br />

constituíam importante segmento da intelectualidade brasileira da época. Reconhecemos que o estudo<br />

do movimento higienista 7 não é tarefa que se possa exaurir no estudo de um único pesquisador, até<br />

porque as orientações de <strong>na</strong>tureza higienista não se circunscreveram ao campo escolar, mas<br />

ramificaram-se <strong>na</strong>s diferentes instituições brasileiras 8 . Assim, recorremos a uma estratégia didática, que<br />

é a criação de um grupo de estudos e pesquisa, cuja sigla é GEPHE, devidamente cadastrado no CNPq 9 ,<br />

do qual o presente estudo faz parte. Não se pretende com o estudo que ora apresentamos (e não se<br />

pretende com o GEPHE) interpretar como iguais peculiaridades de diferentes estágios de<br />

desenvolvimento social; ou tomar a singularidade do fenômeno educativo divorciado das contradições<br />

fundamentais da sociedade que o mantém. Partimos do princípio de que as sociedades vão se<br />

construindo e se transformando para atender às necessidades geradas pela busca de sobrevivência, o que<br />

vale dizer que nosso referencial para leitura e interpretação dos dados coletados é a epistemologia<br />

materialista histórica. Sob esta perspectiva, um dos principais desafios metodológicos postos no<br />

desenvolvimento deste estudo é o rigor <strong>na</strong> observação das necessidades sociais da época, quando da<br />

análise das fontes primárias consultadas e do conjunto dos dados coletados. Com este cuidado teórico e<br />

metodológico o procedimento inicial foi revisitar os documentos da época e as preocupações dos<br />

médicos higienistas, registradas ou descritas por eles no campo da educação escolar. Outrossim,<br />

reconhecemos os limites de um texto desta <strong>na</strong>tureza, e por esta razão, dos documentos estudados<br />

circunscrevemo-nos para análise, ainda não exaustiva, a duas categorias históricas: a infância e a<br />

educação escolar, categorias que podem favorecer a compreensão deste histórico procedimento que se<br />

constitui a medicalização das questões pedagógicas.<br />

A INFÂNCIA É DESCOBERTA<br />

A mortalidade infantil é um flagelo <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e social (Bon<strong>na</strong>ire). As <strong>na</strong>ções<br />

que querem viver, devem ter crianças, pois ao contrario, podem preparar-se<br />

a desaparecer. (Lannelongue).<br />

É com estas duas epígrafes que o médico Vicente Pascarelli inicia o Capítulo I da sua tese de<br />

doutorado intitulada “Da proteção à primeira infância em São Paulo” apresentada à Faculdade de<br />

Medici<strong>na</strong> de São Paulo, defendida em 26 de dezembro de 1926 e “aprovada com distinção”. Este é<br />

ape<strong>na</strong>s um dos exemplos dentre tantos outros estudos que revelavam a grande preocupação com a saúde<br />

da criança. Cuidados com a higiene, com o vestuário, com os exercícios físicos, com a alimentação,<br />

com a amamentação pela mãe biológica etc. a fim de prevenir a formação de adultos “entorpecidos,<br />

viciados, doentes” era a ordem do dia. A criação dos jardins de infância e creches e o desenvolvimento<br />

da puericultura passaram a fazer parte do cotidiano das cidades mais populosas, tais como São Paulo e o<br />

Rio de Janeiro. E a infância era e<strong>na</strong>ltecida: “o futuro pertence à criança e é em favor dela que devemos<br />

dedicar os nossos maiores esforços, a nossa propaganda, os nossos sacrifícios. Ela nos pertence,<br />

oferece-nos obediência e docilidade. Só precisamos saber aproveitar inteligentemente a sua boa e<br />

<strong>na</strong>tural disposição e dela tirar o melhor proveito.” HERMANY FILHO (A<strong>na</strong>is, 1926). Embora com<br />

destaque à infância, os cuidados com a saúde, em geral, foram temas freqüentes <strong>na</strong>s reuniões,<br />

congressos científicos, debates políticos, em livros, artigos em periódicos e jor<strong>na</strong>is das primeiras<br />

6<br />

“Essa higiene mental apresenta duas faces: uma, tendo em vista o trabalho defensivo contra as causas da<br />

degeneração psíquica, é a profilaxia mental; outra, procurando preparar o equilíbrio de adaptação entre a<br />

mentalidade individual e o meio físico e social, é a higiene mental propriamente dita.” Fontenelle (1925, p.1). “A<br />

Higiene Mental é a ciência que tem por fim manter em equilíbrio o psiquismo humano, melhorando as condições<br />

do funcio<strong>na</strong>mento cerebral.” Guerner (1928, p.7) “a higiene mental cuida da saúde psíquica 'no sentido estático da<br />

sua conservação' e a eufrenia cuida da saúde ‘no sentido dinâmico da sua formação’”. CALDAS (1934c, p. 174).<br />

7<br />

Este movimento não tem origem no Brasil e tem importante parceria com a eugenia sobre a qual não vamos<br />

tratar neste estudo. Ape<strong>na</strong>s assi<strong>na</strong>lar que as orientações de <strong>na</strong>tureza higienista sempre caminharam pari passu com<br />

as medidas de caráter eugênico.<br />

8<br />

Vale lembrar que já existem importantes estudos sobre esta tematica, dos quais sugerimos, dentre outras,<br />

Costa (2004).<br />

9<br />

Atualmente o GEPHE, incorpora além deste estudo que ora apresentamos vários outros estudos sob esta<br />

temática, ligados ao Programa de pós-graduação de Historia da <strong>Educação</strong> da Universidade Estadual de Maringá.


6519<br />

décadas do século XX. Há que se lembrar que o desencadear do processo de industrialização promoveu<br />

o êxodo rural, que <strong>na</strong> seqüência produziu uma desorde<strong>na</strong>da aglomeração de pessoas nos centros<br />

urbanos, cuja precariedade de infra-estrutura, aliada a i<strong>na</strong>dequados hábitos de higiene, passa a ser foco<br />

de inúmeras e variadas doenças que atingiam sobretudo a infância. Como corolário, o cotidiano vivido<br />

pela maioria da população recém-urbanizada caracterizava-se pelo excesso de trabalho, alimentação<br />

deficiente, alcoolismo, moradias insalubres, doenças causadas por falta de água potável e higiene - tais<br />

como as verminoses e a escabiose, além de outras doenças que <strong>na</strong> época eram fatais, como, por<br />

exemplo, a sífilis, a febre tifóide e a tuberculose, dentre tantos outros males. Esta situação não passava<br />

despercebida aos higienistas, que ponderavam:<br />

“os fatores sociais são da mais alta importância ... a condição econômica, o êxodo da<br />

população das zo<strong>na</strong>s rurais para as cidades são fatores que pesam muito no problema de saúde e de<br />

doença.” Pollock (apud Lopes, 1925). No que se refere à higiene mental, ressaltavam que, além da<br />

contribuição da hereditariedade, “o meio físico e social, criando, às vezes condições adversas, que<br />

podem perturbar e, em grau extremo, até esmagar as mentalidades mais firmemente equilibradas.”<br />

Fontenelle (1925)<br />

Ora, ao se considerar a perspectiva de industrialização vivida pela sociedade brasileira, cujo<br />

projeto político era transformar o Brasil em uma grande <strong>na</strong>ção, formada por uma raça forte e sadia, esta<br />

situação não era <strong>na</strong>da interessante. A meta da nova ordem social era diminuir a grande incidência da<br />

mortalidade infantil, aumentar demograficamente o número de pessoas sadias e convencidas de que o<br />

trabalho não é aviltante e neste sentido não cabe só ao escravo realizá-lo, tal como se pensava no Brasil<br />

Colônia. O lema do capitalismo, que se punha tardiamente no Brasil, era que o trabalho “dignifica o<br />

homem”, traz bem-estar material ao individuo e progresso para a Nação. É necessário lembrar que é<br />

deste período o registro de importantes debates sobre a composição racial do brasileiro, entendido como<br />

degenerado por ser uma mistura do branco, do negro e do índio. Não é nosso objetivo neste texto fazer<br />

incursões nesta questão, mas ape<strong>na</strong>s destacar que, como desdobramento dessa polêmica, ia ganhando<br />

força a idéia de que eram a doença e a ignorância que mi<strong>na</strong>vam a possibilidade de o Brasil se tor<strong>na</strong>r<br />

uma grande <strong>na</strong>ção. Foi este o alerta de Belisário Pen<strong>na</strong> em seu pronunciamento <strong>na</strong> I Conferência<br />

Nacio<strong>na</strong>l de <strong>Educação</strong>, realizada em Curitiba, em 1927. “Quem percorre o território brasileiro e observa<br />

a apavorante condição patológica do povo, com a mentalidade envolta <strong>na</strong>s trevas da ignorância e do<br />

vício alcoólico, quem atenta à a<strong>na</strong>rquia mental das classes dirigentes, chega fatalmente à conclusão de<br />

que o trabalho improdutivo, a miséria econômica, a falência fi<strong>na</strong>nceira e, pior ainda, a do caráter, são<br />

conseqüências inevitáveis da doença multiforme e generalizada, da ignorância e do vício do povo,<br />

i<strong>na</strong>pto para cumprir a fi<strong>na</strong>lidade biológica do homem, para constituir uma mentalidade equilibrada e<br />

firmar a consciência <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.” E citando o eugenista espanhol Luis Huerta, (apud Pen<strong>na</strong>, 1927, p. 32)<br />

Pen<strong>na</strong> foi enfático “A vida política, a econômica, a jurídica, a escolar e a familiar têm todas que evoluir<br />

no sentido biológico. O problema humano é um problema de higiene, resolvido o qual, desaparecerão as<br />

causas da miséria huma<strong>na</strong>.“ Um exemplo emblemático desta idéia foi o perso<strong>na</strong>gem Jeca Tatu,<br />

representante caricatural do brasileiro, criado por Monteiro Lobato, o qual teve um significativo<br />

comparecimento nos alma<strong>na</strong>ques desse período e estimulou acirrados debates nos meios intelectuais e<br />

artísticos da época. Sob esta perspectiva cabia à Medici<strong>na</strong> e à <strong>Educação</strong> a nova configuração da<br />

sociedade brasileira. A educação, todavia, não poderia se limitar ao “superficial ensino literário” -<br />

continuava Belisário Pen<strong>na</strong> (1927, p.32) -, mas “A missão da educação moder<strong>na</strong> é mais biopsicossocial<br />

do que literária, consistindo no respeito às leis inflexíveis da biologia huma<strong>na</strong>, pela prática dos preceitos<br />

da higiene e da eugenia...”. Nestes termos, “a educação higiênica será o alicerce, sobre o qual se há de<br />

erigir, com solidez, o edifício da <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>lidade brasileira” PENNA (apud Hermany Filho, 1926), E “a<br />

melhor época, se não a exclusiva para a realização da educação higiênica, é a infância, graças à<br />

maleabilidade psicológica do indivíduo” ALMEIDA JUNIOR (1926). Assim sendo, a escola primária<br />

destacava-se como o lugar privilegiado para tal tarefa, considerando-se que “a freqüência escolar<br />

pondo ao alcance do higienista grandes massas de crianças, oferece-lhe oportunidade de iniciar a<br />

formação de hábitos sadios”. PERNAMBUCO (1926). Além disso é <strong>na</strong> “escola primária, aonde vão ter<br />

todos os tipos de mentalidades, em suas primeiras fases evolutivas”, desta forma representando o campo<br />

em que as medidas preventivas podem ser aplicadas com maiores probabilidades de êxito.” ANDRADA<br />

(1929). É necessário lembrar também que é neste período (anos 1930) que os defensores da Escola<br />

Nova estavam elaborando o "Manifesto dos Pioneiros da <strong>Educação</strong> Nova", em defesa de uma escola<br />

pedocêntrica (“criança no centro, ativa, livre”), contrariando a escola tradicio<strong>na</strong>l (“magistrocêntrica”).


6520<br />

Em linhas gerais, historicamente o reconhecimento da infância é gerado, estimulado e<br />

fortalecido pelas contingências colocadas pela transição de uma sociedade escravista para uma<br />

sociedade baseada no trabalho livre, que requisitava para seu desenvolvimento um grande número de<br />

pessoas sadias e discipli<strong>na</strong>das para o trabalho. Coube ao médico e ao educador a tarefa de cuidar do<br />

corpo e modelar as idéias.<br />

“NO BRASIL SÓ HÁ UM PROBLEMA NACIONAL: A EDUCAÇÃO DO POVO”<br />

Este é o titulo da conferência proferida pelo médico Miguel Couto <strong>na</strong> Associação Brasileira de<br />

<strong>Educação</strong>, no dia 2 de julho de 1927. Como encerramento desse evento, esse ilustre orador afirma: “Nós<br />

também seremos um dia grande povo; mas, enquanto não chega a redenção do Brasil pela cultura dos<br />

seus filhos, continuemos a gritar para todos os lados, entre alter<strong>na</strong>tivas de fé e desalento, ansiosamente,<br />

pedindo socorro. Pensai <strong>na</strong> educação, brasileiros!”. Esta conferência foi publicada e foi autorizada pelo<br />

Conselho Municipal do Distrito Federal a sua distribuição pelas escolas públicas, pela Escola Normal e<br />

institutos profissio<strong>na</strong>is, “onde os respectivos professores farão do mesmo folheto uma leitura publica a<br />

seus alunos – em classe aberta.” COUTO (1927, p.2). Orientados pelos ideais iluministas, os higienistas<br />

apostavam no poder redentor da educação escolar, convictos de que é “a elite intelectual a causa do<br />

progresso, que sem ela inda se conservaria nos primórdios da civilização” FARANI (1925). Apoiados<br />

nos dogmas da ciência da <strong>na</strong>tureza e seguindo os preceitos da Sociologia, os higienistas acreditavam-se<br />

capazes de redimir as “degenerações sociais”, cuja repercussão adentrava o recôndito escolar, e assim<br />

dispuseram-se a formatar a escola primária, principalmente, para atender a sua verdadeira função:<br />

difundir os modos de vida civilizados e tor<strong>na</strong>r-se o si<strong>na</strong>l dos novos tempos, do progresso, tal como<br />

preconizava o sociólogo francês Emile Durkheim: “ [...] as escolas públicas são e devem ser a mola<br />

reguladora da educação <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Aliás, contrariamente à opinião muito expandida segundo a qual a<br />

educação moral caberia sobretudo à família, penso, ao contrário, que a obra da escola no<br />

desenvolvimento moral da criança pode e deve ser da mais elevada importância. DURKHEIM (apud<br />

Fer<strong>na</strong>ndes, 1994. p. 44)”. Para tanto, o espaço escolar, tanto quanto as cidades, deveria ser<br />

esquadrinhado para atender ao projeto político de moralização e regeneração da população brasileira,<br />

que trazia os velhos e i<strong>na</strong>dequados costumes do Brasil Colônia. Imbuídos dos padrões de racio<strong>na</strong>lidade<br />

técnica e eficiência, do universo escolar <strong>na</strong>da escapou aos higienistas. Desde a arquitetura, o mobiliário,<br />

o ensino propriamente dito até o controle da saúde física, do comportamento social, intelectual e<br />

psíquico de cada aluno, tudo foi alvo de preocupações médicas de caráter higienista. “ Assim evitar-seiam<br />

os malefícios da dissolução dos costumes, das intoxicações euforísticas em geral, da miserabilidade<br />

e do pauperismo que dificilmente podem cercar os espíritos educados <strong>na</strong>s regras dos ideais de Justiça,<br />

de nobreza e de eficiência prática, que são o apanágio das Sociedades válidas.” Carrilho (1925). A<br />

titulo de ilustração, relembramos que a idéia de graduação do ensino e a avaliação da capacidade<br />

intelectual dos alunos para classificá-los e separá-los em classes homogêneas foram propostas<br />

higienistas que, dentre outras, e com algumas diferenças <strong>na</strong> forma, o sistema escolar mantém até os dias<br />

atuais. Entendiam que com estas medidas prevenir-se-iam os “desregramentos morais” e a indiscipli<strong>na</strong><br />

que o convívio de crianças em idades e performances intelectuais diferentes poderia trazer. E assim,<br />

com estas e outras medidas introduzidas no campo escolar, os higienistas sentiam-se mais tranqüilos:<br />

“Pouco a pouco, está caminhando, em nosso meio, a idéia de cuidar-se da saúde das crianças das<br />

escolas, de fazer-se-lhes a educação higiênica, de exami<strong>na</strong>r-se-lhes sistematicamente o corpo e o<br />

espírito e de corrigirem-se-lhes os defeitos e desvios” afirmava o Dr. J.P. Fontenelle (1925) <strong>na</strong><br />

apresentação do tema “O que se faz e o que se pode fazer no Brasil em Higiene Mental”, durante o<br />

Segundo Congresso Brasileiro de Higiene Mental, em Belo Horizonte, 1924. Nesta batalha pela<br />

correção, bem como pela prevenção dos “defeitos e desvios”, condição sine qua non para a construção<br />

da Nação brasileira, onde se realizaria o lema positivista da Ordem e Progresso”, o professor era<br />

considerado um importante parceiro. Por esta razão “a escola deve ser posta em condições de contribuir<br />

utilmente para a obra da profilaxia mental. Isso poderá ser obtido, preparando, em primeiro lugar, o<br />

professor para essa nova função que lhe incumbe” LOPES (1930). E para o “melhoramento da<br />

instrução técnica das professoras primárias” FONTENELLE (1925) as escolas normais ensi<strong>na</strong>vam<br />

Psicologia, ministrada pelos próprios médicos higienistas. Para a atuação no interior das escolas<br />

primárias foi sugerido e de fato aceito, que fossem assistidas “não só por médicos escolares que cuidem<br />

do lado orgânico das crianças, como por psicólogos escolares, para dirigir a observação sistemática,


6521<br />

classificar as crianças atrasadas e especialmente adiantadas, investigar o grau de adaptabilidade da<br />

criança ás profissões futuras, e junto com os pedagogos elaborar os métodos educativos e didáticos”.<br />

RADECKI (1925).<br />

Isso não significava desconsiderar a importância do papel das mães e amas <strong>na</strong> importante tarefa<br />

de formação de hábitos sadios e vigilância sobre a conduta das crianças, tendo como meta principal uma<br />

adequada “adaptação individual” das crianças em idades anteriores ao período escolar. Nestes termos,<br />

era “necessário instituir o trabalho educativo das mães, amas e professoras, no sentido de criar bons<br />

hábitos de vida mental, desde o <strong>na</strong>scimento.... (LBHM, 1925a)<br />

À PSICOLOGIA UM LUGAR DE DESTAQUE<br />

Tanto <strong>na</strong> capacitação de professores quanto <strong>na</strong>s demais intervenções higienistas no campo<br />

escolar, a Psicologia, <strong>na</strong> vertente psicométrica, foi um dos mais importantes recursos adotados. Com<br />

menor destaque, também foi objeto de estudo de alguns higienistas a Psicanálise, da qual não nos<br />

ocuparemos neste texto. Vale lembrar que nessa época a Psicologia foi se afastando da Filosofia e<br />

gradativamente se aproximando das bases teóricas da ciência da <strong>na</strong>tureza. Apropriando-se de conceitos<br />

básicos do evolucionismo, tais como “variação”, “seleção” e “adaptação”, e dos métodos das ciências<br />

exatas - a estatística, por exemplo -, a Psicologia criou os testes psicológicos, que iam mostrando a<br />

possibilidade de medir em quantidade as diferenças individuais do individuo, o que fez dela uma<br />

importante parceira <strong>na</strong> causa higienista, como afirmava o professor e médico Henrique Roxo: “a<br />

psicologia moder<strong>na</strong> se serve principalmente de testes e por este motivo se compreende bem que a sua<br />

execução não exigirá dispêndios excessivos e que qualquer serviço bem organizado de profilaxia mental<br />

a poderá realizar com facilidade”. A Psicologia prestava, desta forma, valiosa contribuição à tarefa<br />

preventiva da higiene mental, como segue afirmando o professor Roxo (1925): “Verificado que um<br />

individuo é um predisposto às doenças mentais, deve-se evitar desde logo, todas as causas de fadiga<br />

intelectual, ativa e passiva. É a mesma coisa que se faz em relação a quem sofre do rim e a quem se<br />

prescreve uma dieta que impeça retenção de tóxicos e sobrecarga do órgão”. A concepção <strong>na</strong>turalista do<br />

psiquismo humano e a opção pelo pragmatismo da metrificação da capacidade huma<strong>na</strong> favorecem a<br />

inclusão da psicometria como um dos principais instrumentos do ideário higienista. Medir a aptidão do<br />

homem para melhor adaptá-lo ao meio, através de hábitos sadios, que <strong>na</strong> seqüência gerariam uma<br />

conduta moral mais adequada e mais eficaz, portanto maior ajustamento individual à ordem social, era<br />

o grande desafio do Brasil que debutava <strong>na</strong> era industrial. Diante desta necessidade a Psicologia,<br />

fundamentada em concepções <strong>na</strong>turalistas da essência huma<strong>na</strong>, iria paulati<strong>na</strong>mente ganhando o<br />

importante status de ciência. Assim, a psicometria chegava ao Brasil já com notoriedade inter<strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e<br />

não tardaria a ganhar celebridade entre os médicos higienistas, que acreditavam, desta forma, estar de<br />

posse de um instrumental cientifico e confiável: “As pesquisas psicológicas, seguindo linhas<br />

experimentais anteriormente lançadas, estão dando a educação um magnífico aparelhamento para aferir<br />

a capacidade mental, verificar o rendimento dos processos didáticos e avaliar os resultados obtidos”<br />

BRAGA (1931). Foram muitos e variados os estudos levados a cabo pelos higienistas para traduzir,<br />

padronizar e validar os testes que mensuravam a capacidade intelectual. Neste particular ganha destaque<br />

o teste de Binet-Terman, sobre o qual vários estudos foram realizados e publicados nos “Archivos<br />

Brasileiros de Hygiene Mental”, periódico da Liga Brasileira de Hygiene Mental. Comparavam o<br />

processo de educação escolar ao processo de organização do trabalho industrial, cuja eficiência foi<br />

alcançada graças aos parâmetros da Psicologia Experimental, segundo os quais, <strong>na</strong> tradução de Taylor, 10<br />

é necessário colocar “o homem certo no lugar certo”. Revelando o caráter pragmático da adoção, pela<br />

escola, deste recurso oferecido pela Psicologia, PENAFIEL (1925) com uma certa dose de critica assim<br />

se manifestava: “Já se pretende que também a taylorização do trabalho intelectual <strong>na</strong>s escolas seguirá a<br />

10 Frederick Winslow Taylor (1856-1915), engenheiro americano que buscava o aperfeiçoamento da<br />

eficiência industrial. Passou para a historia como um líder intelectual da era industrial. Popularizou-se por cunhar<br />

o termo scientific ma<strong>na</strong>gement publicado em 1911 no artigo inintitulado "The Principles of Scientific<br />

Ma<strong>na</strong>gemen,".Entretanto havia contestadores de sua teoria e referiam-se a ela desdenhosamente como Taylorismo.<br />

Maiores informações estão disponíveis no site http://en.wikipedia.org/wiki/Frederick_Winslow_Taylor. Acessado<br />

em 11/02/2006.


6522<br />

mesma lei, emprestando-se a esse termo a significação de um sistema orgânico de economia do trabalho<br />

intelectual, mais produtivo a curto e a longo prazo, mais vantajoso para o desenvolvimento individual<br />

de cada aluno, pondo-se em valor suas aptidões pessoais e, portanto, preparando-o para uma maior<br />

utilidade social”. Para auxiliar no alcance deste novo padrão de escola, a Liga Brasileira de Higiene<br />

Mental i<strong>na</strong>ugurou, em 1932, uma clínica psicológica, denomi<strong>na</strong>da Clinica de Eufrenia, exclusivamente<br />

para o atendimento de crianças, tendo como objetivo a preservação da higiene mental da criança.“ ...<br />

um serviço não ape<strong>na</strong>s com fi<strong>na</strong>lidades corretivas ou de reajustamento psíquico, mas, também com<br />

objetivos construtivos, isto é, de aperfeiçoamento do psiquismo, através de uma atuação médicopedagógica<br />

direta no período inicial do desenvolvimento mental infantil.“ CALDAS (1932b). A<br />

expectativa era a freqüência intensiva “quando estejam abertas as escolas primárias”. (LBHM, 1932b).<br />

Por razões de ordem fi<strong>na</strong>nceira essa clínica não conseguiu desenvolver-se conforme o plano inicial,<br />

“não obstante, fizeram-se funcio<strong>na</strong>r alguns dos aparelhos mais indispensáveis e os testes mentais foram<br />

largamente experimentados <strong>na</strong>s Escolas públicas por um grupo de professoras, sob a direção do<br />

Professor Er<strong>na</strong>ni Lopes 11 .” (LBHM, 1932b).<br />

Desta forma, buscando alcançar os padrões de racio<strong>na</strong>lidade técnica e eficiência observados no<br />

campo industrial, os higienistas participaram ativamente da organização de um novo modelo escolar.<br />

“... a vida psíquica, sintetizando todas as funções adaptativas do indivíduo ao ambiente, é a única base<br />

científica em que podem repousar os sistemas pedagógicos, higiênico-sociais, que se presumem capazes<br />

de realizar uma educação racio<strong>na</strong>l ANDRADA (apud LBHM, 1929).<br />

Ancorados nesta idéia e seguindo rigorosamente a cartilha do Positivismo, cujo lema é “prever<br />

e propor”, os higienistas dedicaram-se com determi<strong>na</strong>ção à prevenção e adequação do comportamento<br />

dos indivíduos, ainda <strong>na</strong> infância, a fim de evitar a “a<strong>na</strong>rquia social” materializada através das greves e<br />

demais movimentos reivindicatórios da classe operária dessa época. Sem a intenção de adentrar em<br />

discussões acerca deste importante aspecto da história do Brasil que representa os movimentos<br />

operários, lembramos, com Basbaum (1976, p. 209), que “Movimentos grevistas jamais faltaram no<br />

Brasil... E pode-se afirmar que não houve, neste século (referia-se ao século XX) um só ano em que não<br />

registrasse uma greve em qualquer ponto do país. Foi, entretanto, nos anos de 1917/1918 que os<br />

movimentos grevistas recrudesceram, notadamente em São Paulo e Rio de Janeiro, onde havia maior<br />

concentração operária.” Há que se lembrar que a miserável condição de vida da classe trabalhadora era<br />

um importante galvanizador dos movimentos paredistas tal como nos aponta RODRIGUES (apud Luz,<br />

1982, p. 61):<br />

“A ‘porcaria’ era permanente <strong>na</strong>s fabricas e ofici<strong>na</strong>s! Os patrões ficavam alheios às<br />

mais primárias regras de higiene! As multas impostas pelos industriais e seus mestres<br />

para punirem faltas e enganos cometidos chegavam a 50% do salário; os castigos<br />

corporais, espancamentos de mulheres, os salários de fome, a inexistência do seguro<br />

de acidentes, foram algumas das razoes da insubordi<strong>na</strong>ção proletária, o gérmen<br />

motivador de inúmeras greves, que as autoridades policiais nunca quiseram entender,<br />

preferindo abafá-las, <strong>na</strong> maioria das vezes ocasio<strong>na</strong>ndo choques, com prisões, feridos<br />

e mortos, acrescidos das famosas expulsões dos ‘agitadores’ “.<br />

Não obstante as evidencias, dentro e fora das fabricas, a ciência médica encontrava a explicação<br />

para tanta “rebeldia” destes trabalhadores, como podemos constatar <strong>na</strong>s palavras de Lopes (1930), ao<br />

resenhar o livro intitulado “A higiene mental do operário”, de autoria de Stocker, A. Nessa resenha<br />

Lopes destaca que trabalho em ambientes superaquecidos podem “produzir sérias pertubações mentais”,<br />

o que pode explicar “as fáceis revoltas e da adoção impulsiva de doutri<strong>na</strong>s extremistas por parte da<br />

laboriosa classe dos gráficos, em nosso Brasil”. Lopes relembra ainda nessa resenha “a opinião de um<br />

notável técnico em higiene mental, Stewart Paton, segundo o qual devem ser considerados esses<br />

movimentos como reações de defesa de i<strong>na</strong>daptáveis.”. Salvo erro de generalização, esta explicação de<br />

Lopes era a versão médico – cientifica dos movimentos sociais próprios de uma sociedade em crise;<br />

crise esta produzida pelo fato de que o progresso técnico-cientifico não estava se traduzindo em<br />

igualdades econômicas, sociais e políticas entre todos os homens, conforme o prometido pela sociedade<br />

burguesa. Pelo contrário, saltava aos olhos a “miséria huma<strong>na</strong>”, como afirmava em alto e bom tom<br />

Pen<strong>na</strong> (1927, p.31), o que significa que nunca negaram esta situação. Mas ao tomar o <strong>na</strong>tural como<br />

11 Medico, Presidente da Liga Brasileira de Higiene Mental <strong>na</strong>quele periodo.


6523<br />

social, compreendiam e justificavam as contradições sociais como resultantes das diferenças de aptidão<br />

dos indivíduos para cuidar da saúde física e mental, dos costumes morais, e nestes termos este era um<br />

problema cuja solução estava em mãos do educador e do médico, familiarizado com os “temas da<br />

psiquiatria e higiene mental”. Não há como desconsiderar o entusiasmo e a euforia existentes neste<br />

período, promovidos pelo desenvolvimento das ciências <strong>na</strong>turais e exatas (biologia, fisiologia, química,<br />

matemática etc.). Entretanto, recorrer a este paradigma científico para explicar os conflitos sociais e os<br />

dilemas humanos é negar o processo histórico e social da humanidade. Implementar a tecnologia<br />

derivada das ciências <strong>na</strong>turais e exatas às práticas pedagógicas é ignorar as contradições sociais que dão<br />

a cor e o tom do fenômeno educativo. Acreditar <strong>na</strong> possibilidade de metrificar a capacidade huma<strong>na</strong> é<br />

tomar como sinônimo o corpo e o psiquismo, colocando-os, sem distinção, no plano do biológico, do<br />

<strong>na</strong>tural. Aqui nos deparamos com um imbróglio teórico-metodológico. Em outras palavras,<br />

desconsiderando as condições sócio-históricas da ocorrência de qualquer fenômeno social, como é o<br />

caso da educação escolar, presume-se que já existe uma determi<strong>na</strong>ção biológica. Retira-se do homem a<br />

sua condição de ser capaz, enquanto coletivo, de interferir nos rumos da sociedade.<br />

Atualmente, sem as limitações históricas vividas pelos médicos higienistas e com o benefício<br />

do tempo transcorrido, é possível observar que o discurso científico em busca do ajustamento social e<br />

psíquico produzido através da “criação dos bons hábitos mentais” abriu um importante espaço no<br />

campo do poder a estes profissio<strong>na</strong>is; poder e intervenções que, em geral, não apresentaram resultados<br />

concretos aos problemas que se propunham resolver, até porque eram problemas de caráter complexo<br />

de que a interpretação organicista da sociedade não dá conta.<br />

É indiscutível a pertinência das preocupações dos intelectuais da época, em especial dos<br />

médicos higienistas, em relação aos cuidados com a saúde física e mental dos indivíduos. A saúde não é<br />

um bem particular, mas coletivo. Isto é uma evidência. Porém, tomar o aspecto biológico do homem<br />

como responsável direto pelas contradições sociais inerentes a uma sociedade de classes tal qual a que<br />

vivemos é negar o processo histórico produzido e gerido pelo conjunto dos homens.<br />

Atualmente, salvo erro de interpretação da nossa parte, há si<strong>na</strong>is de aproximações com os<br />

discursos e encaminhamentos de caráter higienista quando educadores recorrem com freqüência ao<br />

campo da saúde para sa<strong>na</strong>r dificuldades geradas no processo pedagógico E quando a ciência se propõe a<br />

classificar e justificar a superioridade ou inferioridade de indivíduos, de etnias, de classes sociais pelas<br />

diferenças <strong>na</strong>turais entre os indivíduos, pode-se instituir a rejeição ao diferente, por representar o signo<br />

de “fora do padrão”, e a intolerância passa a ser a norma. E quando a educação escolar, alem da<br />

Psicometria, recorre também à psicofarmacologia para adequar o aluno à norma social vigente, a nosso<br />

juízo, “ há algo errado no reino” da <strong>Educação</strong> escolar, parafraseando o velho mestre Shakespeare,<br />

sobretudo quando se perde de vista que, em qualquer época, a ciência, solitariamente, não tem<br />

possibilidade de sa<strong>na</strong>r problemas sociais produzidos historicamente. Esta parece ter sido uma das mais<br />

importantes lições que a ciência do passado nos legou, da qual nos incluímos como aprendizes.<br />

Palavras-chave: <strong>Educação</strong> escolar; higienismo, psicometria, Psicologia.<br />

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