Páginas - ed. 91 - Todas - Arquidiocese de Florianópolis
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6-<br />
Junho 2004<br />
Conhecendo as cartas <strong>de</strong> São Paulo (6)<br />
Aos Coríntios (1Cor 6-10): Os Cristãos no Mundo<br />
Depois <strong>de</strong> ter abordado o problema das<br />
divisões e partidos na comunida<strong>de</strong> (capítulos<br />
1-4), bem como o caso mais gritante<br />
do incestuoso (capítulo 5 o ), Paulo se<br />
volta agora para a presença dos cristãos<br />
no mundo, e para uma série <strong>de</strong> questões<br />
que daí <strong>de</strong>correm. Começa com o fato <strong>de</strong><br />
que alguns estavam recorrendo, nos seus<br />
<strong>de</strong>sentendimentos, a tribunais civis pagãos,<br />
em vez <strong>de</strong> recorrerem aos “santos”,<br />
isto é, aos membros da própria Igreja (6,1).<br />
E argumenta: Então vocês não sabem que<br />
os cristãos é que julgarão o mundo? (6,2)<br />
Isto, evi<strong>de</strong>ntemente, na m<strong>ed</strong>ida em que<br />
forem realmente justos, santos, porque<br />
então a sua própria justiça vai ser o julgamento<br />
<strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação dos injustos. Agora,<br />
porém, recorrendo à soci<strong>ed</strong>a<strong>de</strong> injusta<br />
para resolver os seus problemas, alguns<br />
cristãos <strong>de</strong> Corinto estavam reforçando o<br />
ciclo da injustiça, em vez <strong>de</strong> quebrá-lo <strong>de</strong><br />
vez. No entanto, como Paulo relembra – e<br />
são elencados <strong>de</strong>z tipos <strong>de</strong>sses “injustos”<br />
– os injustos não terão parte no reino <strong>de</strong><br />
Deus (6,9-10).<br />
Liberda<strong>de</strong> e libertinagem<br />
Comentando o princípio do qual alguns<br />
abusavam, <strong>de</strong> que “tudo é permitido”, Paulo<br />
faz duas restrições: mas nem tudo me<br />
convém, e não me <strong>de</strong>ixarei dominar por<br />
coisa alguma (6,12). Assim, aos que <strong>de</strong>fendiam<br />
a idéia <strong>de</strong> ampla permissivida<strong>de</strong><br />
sexual, normal entre os pagãos <strong>de</strong> Corinto,<br />
Paulo afirma que o corpo não é para a prostituição<br />
mas para o Senhor. E que os nossos<br />
corpos, membros do Cristo, não <strong>de</strong>veriam<br />
tornar-se membros <strong>de</strong> uma prostituta<br />
(6,15). Isso também porque, se um membro<br />
da comunida<strong>de</strong> se prostitui, ele está<br />
comprometendo a aliança com Deus, cujo<br />
sinal é a união matrimonial estável. Por<br />
esse motivo é preciso fugir da imoralida<strong>de</strong><br />
(6,18), e respeitar o corpo, um do outro,<br />
porque nosso corpo é templo do Espírito<br />
Santo que mora em nós, e não nos pertencemos<br />
a nós mesmos (6,19). A seguir, aludindo<br />
aos escravos comprados nos mercados<br />
da cida<strong>de</strong> portuária, Paulo conclui:<br />
Fostes comprados, por preço muito alto.<br />
Glorificai a Deus no vosso corpo (6,20).<br />
Casamento e celibato<br />
No capítulo 7 o , Paulo aborda várias<br />
questões do dia-a-dia, para as quais ele<br />
próprio confessa não ter a melhor solução.<br />
Às vezes afirma que é o Senhor<br />
quem or<strong>de</strong>na, e então não há discussão.<br />
Noutros casos, reconhece não ter “um<br />
preceito do Senhor”, e limita-se a aconselhar.<br />
Em Corinto, naquele tempo, como<br />
hoje, em nossas comunida<strong>de</strong>s, não há<br />
respostas prontas para tudo. É preciso<br />
adaptar-se às circunstâncias que vão<br />
surgindo, embora mantendo-se a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong><br />
no essencial. Assim, quanto ao<br />
casamento, Paulo dá sugestões práticas<br />
e realistas (7,1-7). E aconselha solteiros<br />
e viúvos a permanecer como ele, isto é,<br />
celibatários, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que consigam dominar-se<br />
(7,8-9). Reconhece, porém, que<br />
cada um recebe <strong>de</strong> Deus um dom particular,<br />
uns, para o celibato, e outros, para<br />
o casamento. Este, porém, segundo o<br />
preceito do Senhor, <strong>de</strong>ve ser preservado<br />
indissolúvel: nem a mulher se separe do<br />
marido, nem o marido repudie a mulher<br />
(7,10-11). No caso, porém, <strong>de</strong> casados,<br />
dos quais um converteu-se à fé e o outro<br />
BÍBLIA<br />
não, Paulo admite a separação, quando<br />
não seja mais possível a convivência em<br />
paz (7,15).<br />
O tempo encurtou-se<br />
Continuando suas consi<strong>de</strong>rações, o<br />
Apóstolo refere-se à brevida<strong>de</strong> do tempo<br />
(7,29). Seria uma alusão à proximida<strong>de</strong><br />
da segunda vinda do Senhor? ou ao fato<br />
<strong>de</strong> que a vida passa rápido, e o tempo, a<br />
oportunida<strong>de</strong> que Deus nos dá, logo se<br />
esvai? Em todo caso, essa constatação<br />
<strong>de</strong> fundo nos leva a relativizar as coisas e<br />
a não dar importância <strong>de</strong>masiada às circunstâncias,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se viva na ob<strong>ed</strong>iência<br />
aos mandamentos <strong>de</strong> Deus (7,19).<br />
Assim, Paulo relativiza o fato <strong>de</strong> alguém<br />
ser circuncidado ou não (7,19), ser escravo<br />
ou livre (7,21), casar-se ou não casarse<br />
(7,25-28). E expressa, mais uma vez,<br />
a sua preferência pelo estado celibatário,<br />
não porque o casamento seja menos perfeito,<br />
mas porque a virginda<strong>de</strong> consagrada<br />
está mais disponível para as coisas do<br />
Senhor. Da mesma forma, a viúva: ela está<br />
livre para casar-se com quem quiser, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
que seja no Senhor. Mas será mais<br />
feliz, diz Paulo, continuando viúva (7,40).<br />
O que ele <strong>de</strong>seja é levar-nos ao que é<br />
melhor e à d<strong>ed</strong>icação integral ao Senhor,<br />
sem outras preocupações (7,35).<br />
Conhecimento e consciência<br />
No capítulo 8 o , Paulo aborda um problema<br />
que reaparece nos Atos dos Apóstolos<br />
(At 15,29 e 21,25) e nas cartas às<br />
igrejas do Apocalipse (Ap 2,14 e 20): evitar<br />
<strong>de</strong> comer, ou não, da carne sacrificada aos<br />
ídolos. Por quê? Na mentalida<strong>de</strong> judaica,<br />
esse alimento era “impuro” e implicava certa<br />
“comunhão” com os ídolos aos quais<br />
havia sido oferecido. Alguns na comunida<strong>de</strong>,<br />
porém, argumentando que os ídolos não<br />
eram nada, comiam livremente <strong>de</strong>ssa carne,<br />
e escandalizavam os outros. Paulo,<br />
então, embora concordando que o argumento<br />
<strong>de</strong>les era válido e que o “conhecimento”<br />
que tinham era verda<strong>de</strong>iro, alerta<br />
contra o escândalo que estavam provocando,<br />
e contra o <strong>de</strong>srespeito à “consciência<br />
fraca” dos menos instruídos. Por isso afirma,<br />
enfaticamente: O conhecimento incha;<br />
o amor constrói (8,1). E conclui: Enquanto<br />
um alimento, por exemplo, a carne<br />
sacrificada aos ídolos, for ocasião <strong>de</strong> escândalo<br />
para alguém, não comerei <strong>de</strong>la,<br />
para não escandalizar um irmão (8,13). Isto<br />
não significa, evi<strong>de</strong>ntemente, que se <strong>de</strong>va<br />
<strong>de</strong>ixar o irmão na ignorância. Esclarecer,<br />
instruir, evangelizar é preciso, para que ele<br />
possa alcançar a verda<strong>de</strong>ira “liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consciência”, à qual Cristo chamou todos,<br />
não só alguns.<br />
A renúncia <strong>de</strong> Paulo<br />
A seguir, comentando essa liberda<strong>de</strong><br />
e os direitos que ela nos dá, aos quais,<br />
porém, às vezes <strong>de</strong>vemos renunciar, Paulo<br />
fala <strong>de</strong> si mesmo, e da sua própria renúncia<br />
aos direitos que a pregação do<br />
Evangelho lhe conferia. Por exemplo, apesar<br />
<strong>de</strong> o Senhor ter estabelecido que vivam<br />
do Evangelho os que pregam o Evangelho<br />
(9,14), Paulo, como também<br />
Barnabé (9,6), sustentava-se com o trabalho<br />
<strong>de</strong> suas próprias mãos, renunciando<br />
a uma série <strong>de</strong> direitos. Ele, porém,<br />
não reclama, pois a sua recompensa está<br />
no próprio fato <strong>de</strong> anunciar gratuitamente<br />
o Evangelho (9,18), ob<strong>ed</strong>ecendo a um<br />
impulso irresistível: Ai <strong>de</strong> mim, se eu não<br />
anunciar o Evangelho! (9,16) Assim, livre<br />
em relação a todos, Paulo tornou-se o<br />
servo <strong>de</strong> todos, a fim <strong>de</strong> ganhar o maior<br />
número possível para o Cristo (9,19). E<br />
conclui com o exemplo dos atletas no<br />
estádio: como eles se impõem uma dura<br />
disciplina, para conseguirem um prêmio<br />
perecível, tanto mais razão temos nós<br />
para renunciar e disciplinar o nosso corpo,<br />
a fim alcançarmos, nós, sim, uma<br />
coroa incorruptível (9,24-27).<br />
Israel no <strong>de</strong>serto<br />
No capítulo 10 o , Paulo argumenta com<br />
o exemplo dos hebreus no Êxodo. Eram<br />
o povo escolhido, a nação santa que Deus<br />
havia libertado do Egito. Haviam atravessado<br />
o mar Vermelho, haviam comido do<br />
maná celeste e bebido da água do roch<strong>ed</strong>o...<br />
E no entanto <strong>de</strong>sagradaram a Deus,<br />
pois murmuraram, foram infiéis, quiseram<br />
até voltar atrás para a situação <strong>de</strong> escravidão,<br />
e por isso pereceram (10,1-10). Ora,<br />
todas essas coisas aconteceram e foram<br />
escritas, diz Paulo, para servir <strong>de</strong> advertência<br />
para nós (10,11). Também fomos<br />
libertados, batizados, alimentados pelo<br />
Senhor, para construirmos o seu Reino<br />
entre nós... E no entanto, po<strong>de</strong>mos sentir<br />
a tentação <strong>de</strong> voltar “ao Egito” <strong>de</strong> uma soci<strong>ed</strong>a<strong>de</strong><br />
injusta e idolátrica. Portanto,<br />
quem julga estar <strong>de</strong> pé, tome cuidado para<br />
não cair (10,12). Isto, porém, sem per<strong>de</strong>r<br />
a certeza <strong>de</strong> que Deus é fiel, e não permitirá<br />
que sejamos tentados acima <strong>de</strong> nossas<br />
forças (10,13).<br />
Um só pão, um só corpo<br />
Depois <strong>de</strong> ter evocado a tentação na<br />
qual sucumbiram os hebreus no <strong>de</strong>serto,<br />
Paulo adverte contra o forte atrativo que a<br />
idolatria continua tendo para os seus con-<br />
1) De que maneira os cristãos é que julgarão<br />
o mundo? 2) Até on<strong>de</strong> vai a nossa liberda<strong>de</strong>?<br />
Em que sentido “tudo é permitido”?<br />
3) Que aconselha o Apóstolo sobre o<br />
Para refletir:<br />
Foto JA<br />
vertidos em Corinto. Por isso, a sua exortação<br />
insistente: Meus amados, fujam da<br />
idolatria (10,14), isto é, não apenas do culto<br />
aos <strong>de</strong>uses <strong>de</strong> mármore e ma<strong>de</strong>ira, mas<br />
dos ídolos mais sutis e mais po<strong>de</strong>rosos do<br />
prazer, do ter e do po<strong>de</strong>r, naquela cida<strong>de</strong><br />
cosmopolita. A seguir, reprovando a audácia<br />
dos que, pelo fato <strong>de</strong> os ídolos “não<br />
serem nada”, achavam que podiam não só<br />
comer da carne a eles sacrificada (cf 8,1-<br />
13) mas também participar das cerimônias<br />
sacrificais pagãs, Paulo adverte: Vocês<br />
não po<strong>de</strong>m beber do cálice do Senhor e<br />
do cálice dos <strong>de</strong>mônios; não po<strong>de</strong>m participar<br />
da mesa do Senhor e da mesa dos<br />
<strong>de</strong>mônios (10,21). E então argumenta a<br />
partir da Eucaristia: O cálice sobre o qual<br />
pronunciamos a bênção não é comunhão<br />
com o sangue <strong>de</strong> Cristo? E o pão que partilhamos,<br />
não é comunhão com o corpo do<br />
Senhor? (10,16) Pelo fato <strong>de</strong> que há um só<br />
pão, nós, embora sendo muitos, somos um<br />
só corpo, pois todos participamos <strong>de</strong>sse<br />
único pão (10,17). “Um só corpo”, <strong>de</strong> duas<br />
maneiras: não só pela comunhão que nos<br />
une entre nós, mas pela comunhão com<br />
Cristo, que é a cabeça <strong>de</strong>sse corpo.<br />
Tudo para a glória <strong>de</strong> Deus<br />
Retomando uma última vez o problema<br />
<strong>de</strong> comer ou não da carne sacrificada aos<br />
ídolos, Paulo reafirma o princípio já exposto<br />
no capítulo 8 o : não há mal nenhum em servir-se<br />
<strong>de</strong>sse alimento, disponível no mercado,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se respeite a consciência do<br />
irmão. Por isso, na presença <strong>de</strong> alguém se<br />
escandalizaria com isso, não se <strong>de</strong>veria servir<br />
<strong>de</strong>ssa carne (10,28-29). De resto, cuidando<br />
para não escandalizar ninguém, mas<br />
<strong>ed</strong>ificando a todos, o que importa é fazer<br />
tudo – quer comendo, quer bebendo – fazer<br />
tudo para a glória <strong>de</strong> Deus (10,31).<br />
Pe. Ney Brasil Pereira<br />
Professor <strong>de</strong> Exegese Bíblica no ITESC<br />
casamento? e sobre o celibato? 4) Explique<br />
como “o conhecimento incha”, enquanto “o<br />
amor constrói”. 5) Também nós estamos sujeitos<br />
a “cair”? <strong>de</strong> que maneira?<br />
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