Lamego no séc. XIX - Câmara Municipal de Lamego
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“LAMEGO NO SÉCULO <strong>XIX</strong>”<br />
A visão <strong>de</strong> um viajante inglês<br />
(<strong>no</strong>ta introdutória)<br />
“Portugal Illustrated” é o título <strong>de</strong> uma obra que resultou da reunião <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> cartas<br />
que o viajante inglês W.M. Kinsey escreveu <strong>no</strong> primeiro terço do <strong>séc</strong>ulo <strong>XIX</strong> sobre o que foi<br />
observando <strong>no</strong> <strong>no</strong>sso país. Esta obra, editada em Londres em 1829, constitui uma das mais<br />
curiosas e valiosas crónicas <strong>de</strong> viagens escritas por estrangeiros relativamente a Portugal. Os<br />
relatos <strong>de</strong> Kinsey são porme<strong>no</strong>rizados, <strong>de</strong>ixando-<strong>no</strong>s, em <strong>de</strong>nsas páginas, uma visão<br />
imparcial e bem interessante sobre a realida<strong>de</strong> que observou <strong>no</strong> Portugal profundo da época,<br />
nem sempre abordada pelos autores nacionais do <strong>séc</strong>ulo <strong>XIX</strong>, quiçá mais influenciados e<br />
absorvidos pelas vivências políticas, sociais e económicas vertidas <strong>no</strong>s centros <strong>de</strong>cisórios da<br />
capital. No que concerne à região <strong>de</strong> <strong>Lamego</strong> e à <strong>no</strong>ssa cida<strong>de</strong> em particular, por on<strong>de</strong> o autor<br />
também viajou, retiramos as partes mais significativas que aqui damos a conhecer.<br />
[...] As vinhas são geralmente cultivadas em terraços, e o solo é entregue duas vezes por a<strong>no</strong><br />
à mão <strong>de</strong> obra <strong>de</strong> galegos. Ambos os locais são fornecidos com pão <strong>de</strong> <strong>Lamego</strong>, do outro<br />
lado do Douro, na província da Beira 1 , cuja população, segundo <strong>no</strong>s dizem, é constituída<br />
principalmente por <strong>no</strong>bres, pa<strong>de</strong>iros e sacerdotes. Observamos inúmeras mulheres galegas<br />
<strong>de</strong>scendo a colina abaixo até ao Douro para ven<strong>de</strong>rem na Régua comida e flores<br />
1 Durante muitos a<strong>no</strong>s, e até aproximadamente os a<strong>no</strong>s 70, a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Lamego</strong> era frequentemente<br />
referenciada em vários textos como cida<strong>de</strong> “Beirã”.<br />
Vista do Douro 1817 (Joseph Shalton)<br />
1
embrulhadas, peles <strong>de</strong> porco, feixes <strong>de</strong> tojo e animais. Durante o tempo em que Silveira 2<br />
permaneceu na ocupação <strong>de</strong> <strong>Lamego</strong>, estas ligações habituais foram interrompidas e os<br />
barcos foram afundados, e em consequência, a miséria reinante na Régua aumentou, cujos<br />
habitantes são principalmente constituídos por galegos comerciantes <strong>de</strong> vinho que vivem <strong>de</strong><br />
pão pesado amarelo feito a partir do milho 3 , uma mistura que para aqueles que o po<strong>de</strong>m<br />
comer é particularmente saudável, um pouco <strong>de</strong> vinho, castanhas cozidas, bacalhau ou arroz<br />
temperado com óleo <strong>de</strong> sardinhas. De facto o lugar é muito peque<strong>no</strong> e não <strong>de</strong>ve ter mais <strong>de</strong><br />
dois mil habitantes. Durante a permanência da feira, <strong>no</strong> mês <strong>de</strong> fevereiro ou março, as<br />
quintas vizinhas e casas particulares estão lotadas com os comerciantes já que não existem<br />
pousadas para os receberem. Os membros da Companhia do Alto Douro têm um edifício<br />
situado <strong>no</strong> centro da cida<strong>de</strong> que é unicamente <strong>de</strong>stinado ao seu próprio alojamento […]<br />
Na travessia do Douro da Régua para <strong>Lamego</strong>, <strong>de</strong>ixamos a Capela <strong>de</strong> São Domingos para a<br />
esquerda, e uma rua estreita para a uma certa distância se alongar uma estrada <strong>no</strong>va e<br />
excelente que sobe gradualmente ao lado <strong>de</strong> uma montanha íngreme. Naquelas al<strong>de</strong>ias,<br />
ambas com o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Portela 4 e que só são separadas pela distância <strong>de</strong> uma milha, os<br />
habitantes tinham sido recentemente abençoados por uma visita das tropas <strong>de</strong> Silveira.<br />
Como um camponês <strong>no</strong>s disse, o próprio herói arrancou para o lugar como um louco, e<br />
bebeu nas ruas abertas vinho da casa como um tropeiro. As suas tropas irregulares<br />
cometeram gran<strong>de</strong>s excessos em <strong>Lamego</strong>, e foram impostas aos comerciantes severas taxas.<br />
Ele entrou naquela cida<strong>de</strong> a cavalo, gritando Vivas para Silveira, e obrigou os moradores a<br />
<strong>de</strong>corar as suas casas, em honra <strong>de</strong> sua chegada, mesmo com os lençóis das suas camas.<br />
Outra história que po<strong>de</strong> estar relacionada com este ilustre e po<strong>de</strong> ajudar a clarificar o seu<br />
verda<strong>de</strong>iro carácter. Num bairro <strong>de</strong> <strong>Lamego</strong> entrou numa casa ao meio-dia, e exigiu jantar<br />
para ser servido imediatamente. Alguns atrasos inevitáveis ocorreram e tão exasperado ficou<br />
o <strong>no</strong>bre chefe, que subiu para a cozinha, açoitando a totalida<strong>de</strong> dos servos com o seu<br />
chicote, e impondo uma porção <strong>de</strong>smedida <strong>de</strong> disciplina para o cozinheiro infeliz, que não<br />
foi igualmente rápido a servir.<br />
A Marquesa <strong>de</strong> Chaves, que acompanhou o marido na ocasião, roubou numa casa em<br />
<strong>Lamego</strong>, em que ela se intrometeu, uma jarra <strong>de</strong> prata e bacia, e uma colcha valiosa <strong>de</strong><br />
tecido <strong>de</strong> ouro, que <strong>no</strong> conjunto tinham um valor consi<strong>de</strong>rável. Ela montou numa mula, com<br />
uma faixa militar presa à volta da sua cintura, e o seu chapéu amarrado por um lenço<br />
vermelho, juntamente com os soldados comuns, à maneira <strong>de</strong> Comandante dos Caçadores.<br />
Aparentando-se a uma Amazona, ela é publicamente acusada <strong>de</strong> ter encorajado seus homens<br />
2 Este Silveira, presumimos tratar-se <strong>de</strong> Manuel da Silveira Pinto da Fonseca Teixeira, 1º Marquês <strong>de</strong> Chaves,<br />
um dos principais apoiantes do miguelismo, opositor ao regime saído da Revolução Liberal <strong>de</strong> 1820. Era filho<br />
<strong>de</strong> Francisco da Silveira Pinto da Fonseca Teixeira, 1º Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Amarante.<br />
3 Broa <strong>de</strong> milho amarelo (?)<br />
4 Presumimos tratar-se do lugar <strong>de</strong> Portelo <strong>de</strong> Cambres<br />
2
durante a sua marcha para a prática das mais vis actos <strong>de</strong> assassinato, estupro e pilhagem,<br />
nas casas <strong>de</strong>ssas pessoas conhecidas por <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem ou serem afectas aos princípios<br />
constitucionais. Parece, na generalida<strong>de</strong>, claro que a conduta da Silveira e dos seus<br />
bandidos, nesta última tentativa para subverter as liberda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu país, foi tal que incitou<br />
ainda maior horror e repulsa contra o seu partido, e <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> proporção <strong>de</strong> seus<br />
amigos, o mesmo suce<strong>de</strong>ndo em <strong>de</strong>terminados adversários que converteu em seus inimigos<br />
pessoais.<br />
A cida<strong>de</strong> Comarca <strong>de</strong> <strong>Lamego</strong> está situada na base do Monte Penu<strong>de</strong>, nas margens do rio<br />
Balsemão, numa região célebre pela fertilida<strong>de</strong> e pelas excelentes qualida<strong>de</strong>s dos seus<br />
vinhos. A sua fundação é atribuída ao povo <strong>de</strong> Laconia, 360 a<strong>no</strong>s antes <strong>de</strong> Cristo, e diz-se<br />
que foi reconstruída por Traja<strong>no</strong>, e <strong>de</strong><strong>no</strong>minada Urbs Lamace<strong>no</strong>rum. A Catedral, que<br />
visitámos, foi construída por or<strong>de</strong>m do Con<strong>de</strong> D. Henrique, e, além disso, há um outro<br />
edifício interessante, que era uma antiga mesquita, mas, agora transformada num local <strong>de</strong><br />
culto cristão. O palácio episcopal é uma estrutura gran<strong>de</strong>, mas sombria. Na Igreja antiga,<br />
situada à direita da estrada, ao entrar em <strong>Lamego</strong>, foram convocadas as célebres Cortes<br />
realizadas em 1144, em que foi confirmada a eleição militar <strong>de</strong> Afonso I, pelos prelados,<br />
<strong>no</strong>bres e plebeus do rei<strong>no</strong>, reunidos com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar a base <strong>de</strong> um gover<strong>no</strong><br />
constitucional e uma monarquia limitada.<br />
O chá Hyson bom ou chá pólvora custa aqui cerca <strong>de</strong> quatro cruzados ou <strong>no</strong>ve xelins na<br />
<strong>no</strong>ssa libra, e é consi<strong>de</strong>rado caro. O chá preto não está em voga em Portugal, excepto em<br />
famílias gran<strong>de</strong>s e para os funcionários, e custa cerca <strong>de</strong> três xelins a libra. O uso do chá é<br />
cada vez mais comum entre as classes portuguesas mais baixas.<br />
As ruínas do antigo castelo dos Mouros que dominam a cida<strong>de</strong>, e um reservatório <strong>de</strong> água<br />
para as tropas 5 ainda são mostrados ao viajante curioso. <strong>Lamego</strong> é, <strong>no</strong> entanto, <strong>no</strong> conjunto,<br />
um lugar triste, <strong>de</strong>sagradável, maçante, embora algumas poucas ruas sejam aceitáveis, a<br />
generalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>las são estreitas, escuras e sujas. Aqui, como na Régua, como os soldados<br />
não têm nada para fazer, em grupos peque<strong>no</strong>s <strong>de</strong>sfilam nas ruas durante parte do dia para<br />
diversão, ao que parece, dos lojistas. As armas reais <strong>no</strong>s diversos escritórios e igrejas estão<br />
neste momento cobertas com um pa<strong>no</strong> preto por todo o rei<strong>no</strong>, em consequência da morte da<br />
rainha <strong>de</strong> Portugal e imperatriz do Brasil.<br />
Biblioteca <strong>Municipal</strong> <strong>de</strong> <strong>Lamego</strong><br />
Novembro <strong>de</strong> 2012<br />
In Portugal illustrated : in a series of letters / by the Rev. W. M. Kinsey.... London : Treuttel, Würtz, and Richter, 1829.<br />
Letter XII, pp. 317-321.<br />
5 Tratava-se da Cisterna do Castelo<br />
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