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Quando o corpo conta histórias 1 Ursula Patrícia Neves Leite2 Devo ...

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<strong>Quando</strong> o <strong>corpo</strong> <strong>conta</strong> <strong>histórias</strong> 1<br />

<strong>Ursula</strong> <strong>Patrícia</strong> <strong>Neves</strong> Leite 2<br />

<strong>Devo</strong> confessar que um dos motivos de escolha do meu ofício é o gosto<br />

pelas <strong>histórias</strong>. Gosto de ouvi-las e contá-las. E ao longo do meu percurso pela<br />

psicanálise e pela clínica aprendi que esta última implica inclinação. Aprendi, também,<br />

com um bom mestre e amigo, que se essa inclinação-clínica não for<br />

amorosa/transferencial, que se esse encontro com o outro que nos procura não<br />

possibilitar isto, não é possível que nada mais aconteça. 3<br />

Nesse texto trago uma história que pude acompanhar de perto, que me<br />

inclinei sobre ela, destacando, sobretudo, o quanto fomos afetadas, eu e minha clínica<br />

com o seu enredo. Penso que nunca mais, depois de estar com aquelas crianças, escutei<br />

da mesma forma; embora, todo o inusitado da situação parecesse-me, a princípio,<br />

distanciar o método e a técnica, quebrar regras, pondo-me, de fato, no lugar de não<br />

saber. Eu, sempre tão rigorosa em defesa do setting, do contrato terapêutico, do lugar do<br />

analista, precisei escrever aquilo que chamei “Diário de Bordo” para dar <strong>conta</strong>, fazer<br />

trabalhar esse sentimento de inadequação. Hoje essa história é aqui narrada, e mais<br />

tranqüila lembro Winnicott 4 que diz: Meu ofício consiste em ser eu mesmo...<br />

Foi no ano de 2005 que começou tal história. À época fazia um curso de<br />

especialização em psicologia clínica-psicanálise no EPSI: Espaço Psicanalítico, o qual<br />

mantinha uma linha de estágio na área institucional. Próximo ao período do estágio,<br />

1 Texto construído a partir da pesquisa O <strong>corpo</strong> e a linguagem abrigam do caos a brincadeira, desenvolvido como<br />

parte do projeto de pesquisa Corpo, Pulsão e Linguagem realizado pelo EPSI – Espaço Psicanalítico em parceria<br />

com Universidade Católica de Pernambuco na linha de pesquisa Por uma metapsicologia do <strong>corpo</strong>.<br />

2 Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica Psicanálise, Especialista em Saúde Pública, Membro da Sociedade<br />

Psicanalítica da Paraíba, Membro do EPSI – Espaço Psicanalítico e do Laboratório de Psicopatologia Fundamental do<br />

EPSI.<br />

3 Ver O <strong>corpo</strong> na Clínica psicanalítica Contemporânea em ALMEIDA, Ronaldo M. O Lugar da Cura: construção da<br />

situação psicanalítica. João Pessoa: Editora Universitária/ UFPB, 2007.<br />

4 WINNICOTT, D. W. Tudo começa em Casa. 3ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

1


uma colega que desenvolvia um trabalho de estimulação cognitiva com crianças d’A<br />

Casa 5 , inspira um grupo de estagiárias e um projeto ao nos apresentar João, criança que<br />

chegou na Casa bebê, e àquele tempo, já menino com pouco mais de dois anos, é<br />

apontado como louco, por não falar e se comunicar aos gritos e pontapés.<br />

Encarregada de fazer a primeira visita à CASA para apresentar o projeto<br />

de trabalho, prevendo a escuta à instituição e o atendimento a grupos de crianças,<br />

formado por aquelas apontadas pelos técnicos do abrigo como as que apresentavam<br />

maiores dificuldades, me deparo com um casarão de dois andares e janelas altas que se<br />

abrem para o jardim e pátios. Não podendo precisar o que mais impressiona nessa<br />

primeira visita, lembro-me apenas dessa casa “aberta” como sendo “sem cor”, cinza; e<br />

qual não é meu espanto ao descobrir, meses depois, que o casarão tem paredes brancas<br />

ornadas de rosa e verde. Nunca antes tinha visto essas cores, somente o cinza que lá não<br />

estava. Lembro-me, também, dos rostinhos das crianças, e de <strong>corpo</strong>s feridos e olhar de<br />

angústia, uma visão igualmente cinza. Pergunto-me se não vejo a casa “cinza, esse lugar<br />

sem cor” com e através do olhar desamparado das crianças que encontro por lá.<br />

Ao chegar lá não encontro João. Ele fora adotado na semana anterior e<br />

mudou para outra casa. Já mais tranqüilo, seu terror, expresso aos gritos, parece ter<br />

encontrado um lugar de acolhida e contenção junto ao trabalho feito pela colega e a<br />

esses pais que lhe escolhem e abrigam.<br />

Iniciam-se os atendimentos, em dois grupos que chamamos oficinas<br />

terapêuticas, um com crianças em idade que variavam entre 3 e 5 anos e outro com<br />

crianças entre 5 e 7 anos. A proposta é um espaço que propicie a brincadeira; então, fico<br />

responsável por acompanhar o grupo de crianças entre 3 e 5 anos. Posteriormente<br />

chamamos o espaço de oficina do brincar, e por fim entendemos tratar-se de um Espaço<br />

Terapêutico, uma vez que possibilita elaborações e produz um efeito sobre as crianças.<br />

5 Abrigo de menores órfãos, abandonados e/ou sob proteção judicial, mantido pela FUNDAC, órgão público estadual.<br />

2


<strong>Devo</strong> dizer que as particularidades da formação destes grupos nunca nos autorizaram a<br />

falar, com tranqüilidade, que se tratava de um grupo terapêutico nos moldes que<br />

conhecemos.<br />

As cenas falam, e, no primeiro dia de grupo, loucura e caos. Somos,<br />

terapeutas e crianças, abrigados em um grande pavilhão com um palco alto ao fundo.<br />

Deparo-me com <strong>corpo</strong>s que se atiram e grudam ao meu, com mãos estiradas a solicitar<br />

insistentemente para que seus nomes sejam escritos nelas e no meu caderno. Essa cena<br />

me choca, incomoda, mobiliza; penso que elas parecem ter a necessidade dessa<br />

inscrição nos seus <strong>corpo</strong>s e fora deles.<br />

Nesse momento, um movimento se destaca: pular do palco alto ao som<br />

da música, uma vez, vezes repetidas; o mais impressionante é que pulam sem esperar<br />

que me coloque em sua frente para segurá-los. Assim, eles acabam caindo, mas não<br />

choram. Parece que não lhes dói o <strong>corpo</strong>.<br />

Meu olhar se volta para o lugar ocupado pelo <strong>corpo</strong> nessa realidade, o<br />

modo como cada criança usa seu próprio <strong>corpo</strong> para se mostrar, experimentar e falar.<br />

Observo a falta de limites e o transbordamento pulsional quando vejo crianças se<br />

expondo a situações de perigo, subindo em parapeitos de janelas, paredes e móveis; se<br />

jogando de mesas; escalando os <strong>corpo</strong>s dos outros; desafiando as leis da física tentando<br />

passar por espaços estreitos e impossíveis; e reagindo sempre aos berros, chutes e tapas<br />

frente a qualquer situação de frustração.<br />

Nesses primeiros momentos a leitura de Maria Helena Fernandes 6<br />

adverte e, em certa medida, me tranqüiliza quando diz “que a escuta, tomada em seu<br />

sentido analítico, supõe que exista sempre uma palavra a ser ouvida, mais<br />

precisamente a ser acolhida. Mas será que a escuta implica apenas o que pode ser<br />

6 FERNANDES, Maria Helena. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.<br />

3


ouvido? O trabalho cotidiano nas instituições de saúde em geral mostra que não<br />

podemos ”escutar” sem “ver”... (2003, p. 28).<br />

Outro encontro, uma porta de comunicação entre as salas é descoberta.<br />

Uma morena ativa, Flávia, se agarra à mesa da segunda sala e tenta fazê-la passar pela<br />

porta se atirando junto com a mesa ao vão desta, numa cena violenta e bizarra. Observo<br />

perplexa e lhe digo: “Não cabe Flávia, não vai dar para passar por aí”. Ela continua<br />

tentando até a exaustão.<br />

Nesse mesmo dia, <strong>Patrícia</strong> se recusa a devolver a boneca que segura no<br />

fim da sessão e a sair pela porta já aberta; insisto, e a angústia refletida em seus olhos<br />

grandes e no <strong>corpo</strong> encolhido cresce. Sugiro que ela não quer sair desse lugar e parece<br />

querer levar algo. A resposta é um brilho no olhar opaco. Saco, então, uma fita azul da<br />

sacola de brinquedos e amarro no seu braço, dizendo que é um pedacinho do grupo e de<br />

mim que pode ir com ela, ficar com ela e voltar na próxima semana. Impressiono-me<br />

com o efeito: ela larga a boneca, despede-se e deixa a sala. Os outros, a partir daí,<br />

passam a recorrer à fita frente a qualquer momento de maior angústia na hora de deixar<br />

a sala em que acontece o grupo.<br />

Uma outra cena: Marcos sobe em uma mesa e chama minha atenção:<br />

“vou pular!”. Respondo que pode pular, estou ali de seu lado. Para minha completa<br />

surpresa ele se joga da mesa se atirando no chão e se machuca seriamente. Essa cena<br />

choca-me como nenhuma outra. Vejo Marcos se jogando ao chão e não brincando de<br />

pular; vejo nesse <strong>corpo</strong> atirado ao abismo, algo de desligamento, de morte.<br />

Certo dia um espelho é descoberto; eu me questiono se nunca antes essas<br />

crianças haviam se visto, já tinham entre 3,4 anos. Marina se espanta e brinca com a<br />

própria imagem, e Francisco, atônito, parece não acreditar que fosse ele refletido; digo<br />

“é você” e ele levanta lentamente braços e pernas como que para se certificar.<br />

4


Certa feita, Joana e Marcos sobem na bancada e brincam de saltar, mas<br />

agora pedem ajuda e esperam que estejamos de braços estirados para lhes segurar. Algo<br />

se passava, e penso que uma mudança se punha em marcha.<br />

Ainda, a essa época, vejo <strong>corpo</strong>s repletos de ferimentos, alergias e<br />

machucados, e intuo que aquela riqueza de “sintomas somáticos” fala da situação<br />

psíquica das crianças, ou, pelo menos, tenta responder a esta.<br />

Ocorre uma mudança na direção do abrigo e nesse tempo as crianças são<br />

fardadas, aparecem “iguais”, todas calçadas, andando em filas indianas. Neste<br />

momento, volta o caos nas sessões. Também o número de machucados aumenta e as<br />

manchas vão (re)aparecendo no <strong>corpo</strong>.<br />

As janelas durante bom tempo são atração, não as deixam fechadas. Vão<br />

lá, abrem, sobem no parapeito, e olham quem passa, criando <strong>histórias</strong>, provocando<br />

brigas. Brinquedos são lançados longe; as pessoas na calçada são sempre alguém<br />

importante que vem visitá-los: pai, mãe, avós; a rua é bela e os carros levam ao caminho<br />

da praia. Querer abrir as janelas, olhar por ela, se debruçar – o mundo de fora ou o de<br />

dentro que é visto? Durante esse tempo passei do choque, da paralisia, à narrativa e à<br />

interpretação.<br />

A colega que me acompanhava constata: “você agora narra o grupo, o<br />

que acontece, e isso tem um efeito”. Gilberto Safra 7 chama atenção para o papel e efeito<br />

da narrativa na clínica, considerando-a um elemento fundamental que refere à<br />

possibilidade de compartilhar experiência em “que o analisando possa vir a<br />

experimentar a presença do Outro-raiz que de alguma forma lhe possibilite o acesso ao<br />

pertencer e à experiência do reconhecimento de si” (2006, p. 29). Esse autor destaca<br />

7<br />

SAFRA, Gilberto. Desvelando a memória do humano: o brincar, o narrar, o <strong>corpo</strong>, o sagrado, o silêncio São Paulo: Edições<br />

Sobornost (Coleção Pensamento Clínico de Gilberto Safra), 2006.<br />

5


que a narrativa contempla a origem, o caminho e o fim, assim é composta de passado,<br />

presente e futuro.<br />

Quero acreditar que quando passo a narrar, não as <strong>histórias</strong> dos livros,<br />

mas os acontecimentos do grupo, começa um movimento de certa continência para<br />

essas crianças.<br />

Tempos depois as janelas são esquecidas, trancadas, e por eles<br />

amarradas, literalmente. Interpreto que nada pode sair daquele lugar, ficar à vista.<br />

Diminuem as brigas, mordidas, tombos e machucados; começam as brincadeiras.<br />

Percebo que o <strong>corpo</strong> mostra-se como a forma possível de expressão<br />

dessas crianças. De início indago o porquê, e se o espaço do grupo possibilitaria ampliar<br />

essa linguagem.<br />

Renate Sanches 8 sugere que crianças duramente privadas apresentam<br />

dificuldades em simbolizar, carecem de experiências no concreto, pois não vivenciaram<br />

o espaço de transicionalidade. Ao que parece, o <strong>corpo</strong> destas crianças abrigadas não foi<br />

erotizado. As crianças do grupo precisavam viver e falar com o <strong>corpo</strong> todas as coisas;<br />

vislumbro esses <strong>corpo</strong>s e imagino um primeiro tempo de muita privação, a falta de uma<br />

mãe para tocar, conter, erotizar, dar significado e apresentar o mundo.<br />

Então surgem outros tempos. Tempos em que os livros da estante mudam<br />

o foco da cena. Eles passam a espalhar os livros guardados na prateleira pelo chão,<br />

deitam sobre eles, folheiam, e encantam-se nas descobertas de figuras que podiam ser<br />

até nós mesmos; e Francisco sempre às voltas com um escrito em francês cujo título,<br />

surpreendentemente, é “Quem sou eu?”<br />

Tempos em que brincam de casinha, formando quadrados com as<br />

cadeiras. Também de polícia e bandido e não se esmurram; apenas encenam a prisão.<br />

8 SANCHES, Renate Meyer. Winnicott na clínica e na instituição. São Paulo: Editora Escuta, 2005.<br />

6


Sara passa a brincar sempre com dois bonecos, seus bebês, e como são mal tratados<br />

esses bebês, jogados, esmurrados... Desse movimento todos participam. Um dia digo-<br />

lhe que os bebês choram muito, seus <strong>corpo</strong>s doem, estão com fome e frio. Sara passa a<br />

cuidar dos bebês: eles são, a partir de então, alimentados e agasalhados, sustentados de<br />

braço em braço sem nunca mais ficar no chão.<br />

A porta e as janelas, já trancadas, são vigiadas por eles; Joana esbarra na<br />

porta e Kaio lhe diz “não cabe não, não passa, está trancada”. O dentro e o fora, o <strong>corpo</strong><br />

e o ambiente já não brigam e se chocam. Os limites e as regras do grupo, e também a<br />

sobrevivência nossa, terapeutas e grupo em si, a esse primeiro tempo de loucura, caos e<br />

ódio parece ter funcionado como protetor e estruturante.<br />

Partindo da perspectiva do <strong>corpo</strong> como a primeira possibilidade de<br />

constituição da subjetividade, da pulsão como conceito limite situado entre o psíquico e<br />

o somático, e destacando o elo entre <strong>corpo</strong> e psiquismo, esse <strong>corpo</strong> “habitado” pelas<br />

pulsões, entendo que tivemos acesso ao acontecer psíquico das crianças através de suas<br />

manifestações <strong>corpo</strong>rais. Como Freud, que, no primeiro tempo escutou o <strong>corpo</strong> das<br />

histéricas, vejo o <strong>corpo</strong> das crianças roubar a cena e entendo, não sem antes passar pelo<br />

túnel nebuloso de angústia e incertezas, que precisava de olhos para ouvir esses <strong>corpo</strong>s,<br />

uma vez que eles foram a única expressão de linguagem possível até certo tempo.<br />

Aprendo que nesse lugar a escuta precisa ser ampliada, implica ver para escutar.<br />

Edilene Queiroz 9 aponta, quando analisa a clínica da perversão, que a<br />

psicanálise põe a percepção auditiva em primeiro plano, e indagando-se como agir<br />

frente ao “espaço siderado pela imagem”, fala que o perverso diz mostrando, que para<br />

ele o olhar do outro é indispensável; assim sendo, o analista precisa “escutar-olhando”.<br />

Para as crianças que atendi também o <strong>corpo</strong> apresenta-se como recurso para dizer,<br />

encenar o que não era possível sair com palavras. Não foi simbolizado? Podemos pensar<br />

9 In QUEIROZ, Edilene Freire. A Clínica da Perversão São Paulo: Editora Escuta, 2004;.<br />

7


que a linguagem do <strong>corpo</strong> é bastante arcaica, diz mostrando, sentindo, gozando, como<br />

bem ressalta Edilene.<br />

Para essas crianças, tão duramente privadas, a subjetivação ainda passa<br />

pelo <strong>corpo</strong>, e a palavra não assumiu a função mediadora. A elas, n’A Casa, não é<br />

facilitada à mínima singularização, tudo é de e para todos, roupas, brinquedos, material<br />

de higiene. Recordo Safra quando diz: “O ser humano, a fim de que possa acontecer,<br />

emergir como si mesmo, precisa iniciar seu processo de constituição a partir de uma<br />

posição, de um lugar. Esse lugar não é um lugar físico, é um lugar na subjetividade de<br />

um outro...” (2001, p. 18) 10 .<br />

As <strong>histórias</strong> das crianças, <strong>conta</strong>das pela instituição, apontam sempre um<br />

quadro de separação precoce, de perdas, de privações econômicas, entendo também<br />

privação psíquica. Sabemos que a mãe, ou seu substituto, é esse lugar subjetivo que se<br />

empresta e media as primeiras aproximações entre o bebê e o mundo, entre o dentro e o<br />

fora, tocando, cuidando, traduzindo, dando contorno e continência, possibilitando a<br />

simbolização. Entretanto, observo que no abrigo o cuidado é descontínuo, não afetivo,<br />

lidava com a manutenção da vida, algo de auto-conservação; pouco espaço é dado à<br />

vida psíquica, ao acontecer subjetivo, e essa falha no cuidado se apresenta através<br />

desses <strong>corpo</strong>s falantes, que se punham claramente à frente como para responder aos<br />

conflitos internos.<br />

O grupo como lugar de continência e investimento foi estabelecido e<br />

fortalecido ao longo das sessões, na medida em que ampliamos nossa escuta. Ouvíamos/<br />

víamos esses <strong>corpo</strong>s, e conseqüentemente interpretávamos, começando a falar por eles.<br />

Ao que parece o grupo em certa medida serviu para libidinizar os <strong>corpo</strong>s dessas<br />

crianças.<br />

10 in COMPARATO, Maria Cecília M e Monteiro, Denise de S. Feliciano (org). A criança na contemporaneidade e a<br />

psicanálise: mentes e mídia: diálogos interdisciplinares II. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001.<br />

8


Então, a palavra toma lugar. Uma palavra especialmente é usada: cuidar.<br />

Cuida-se do bebê, das feridas, da casinha, da comidinha... É tempo de despedidas, disso<br />

também se cuida; uma festa é montada, e a volta para casa é falada e antecipadamente<br />

comemorada, isto quando surge a possibilidade de Joana sair do abrigo com os irmãos e<br />

ir para outra instituição. Certa feita, Flávia está brincando estirada no chão, pede para<br />

deitar na barriga da terapeuta, se acalma, fecha os olhos, levanta-se e diz que vai pra<br />

casa. Vale lembrar, que também a essa época, a sala era sempre arrumada por eles<br />

mesmos antes do final das sessões, chão varrido e cadeiras alinhadas.<br />

Durante o tempo do grupo, pouco mais de meio ano, eles cresceram,<br />

<strong>corpo</strong> físico e também o outro, psíquico. O caos dos primeiros encontros foi dando lugar<br />

às brincadeiras, e as cenas de <strong>corpo</strong> versus outros <strong>corpo</strong>s, versus ambiente (cadeiras,<br />

paredes, portas, estantes, etc) foram se acalmando.<br />

O brincar, no primeiro tempo nada diz, não é um meio de expressão<br />

possível a eles; carrinhos são puxados sem rumo, atirados pelas janelas, bonecas não<br />

podem ser ninadas, não são bebês... Entendi que isso se dá em função dessa falha no<br />

cuidado, na tradução, na passagem desse <strong>corpo</strong> biológico ao psi.<br />

Aos poucos, vislumbra-se uma mudança, a brincadeira toma lugar de<br />

expressão, e então a saída, a perda da diretora é por eles encenada em uma brincadeira<br />

em que a raiva e tristeza podem se presentificar.<br />

Francisco e Marcos, por sessões seguidas, tiram os livros da estante,<br />

sobem nela e brincam de dormir na prateleira. Mariana, vez ou outra, se esconde em<br />

baixo da mesa. Nessas ocasiões repetíamos que brincavam de esconder/aparecer, e<br />

ressaltávamos que podíamos ver seus <strong>corpo</strong>s.<br />

9


O cumprimento das regras do grupo igualmente ocupa lugar importante,<br />

estruturante diria, e interpreto que o dentro, embora angustiante, pode ser “vivido”<br />

naquele continente.<br />

Os movimentos de subir e escalar, de gritar de se baterem, de tentar<br />

alcançar aquilo que está no alto, o inatingível, sempre se repetem. Mas então as regras já<br />

estão postas e aquele que bate sai do grupo. Mas, a princípio, sai aos berros, se jogando<br />

no chão. Certo dia Flávia me morde e olha-me com ar de contentamento, repito a regra,<br />

tiro-a do grupo, ao que reage chorando, se debatendo no chão, gritando. Ela sai como<br />

ferida aberta, mas sai, voltando na sessão seguinte.<br />

Lembro Francisco, um menino de <strong>corpo</strong> franzino que mais parece um<br />

“prego” sempre de pé e alerta, que no primeiro dia, lançando-se loucamente de cá pra lá<br />

a correr e pular, gritando a canção “poeira, poeiraaaa, levantou poeira...”, cantou e<br />

tocou sem parar, juntando-se ao caos que se espalhava pela sala.<br />

Compreendo que do caldeirão que ferve com o caos, o ódio, a dor, o<br />

abandono, tudo de mais primitivo, o grupo consegue caminhar e elaborar, chegando a<br />

um ponto de “fervura” em que se evidenciam as expressões, representações, e a<br />

elaboração.<br />

Volto a Francisco. No último dia, ele, que antes corre batendo nos<br />

móveis e gritando a canção, monta uma festa imaginária com bolos e bolas e se despede<br />

de mim cantando parabéns, seguido de uma brincadeira em que salta como um pássaro<br />

da mesa e me deixa segurar “seu bebê”, para no final me olhar e dizer “agora eu cuido<br />

dele”. Esse é meu último registro no Diário de Bordo, o registro de um Francisco<br />

dizendo o que sente, brincando, fazendo festa, fantasiando, achando os livros muito<br />

mais interessantes que as paredes e janelas, comunicando para além do <strong>corpo</strong> “prego”<br />

10


que sempre a postos e em defesa dá lugar à leveza, quando aparece a fantasia e a<br />

palavra, e ele voa como pássaro, multicolorido.<br />

Para re<strong>conta</strong>r essa história, frente à dificuldade de ser objetiva, recorro,<br />

novamente, a Maria Helena Fernandes que nos diz: “A partir do momento em que a<br />

posição do observador se vê transformada pelo risco transferencial, uma escrita que<br />

pretende ser meramente um relato do que é observado no paciente torna-se, por isso<br />

mesmo, duvidosa, senão impossível” (2003 , p. 70). Assim sendo, volto ao início e<br />

termino reforçando as palavras ditas ao começar, o quanto fomos afetadas eu e a minha<br />

clínica por essa experiência.<br />

Referências<br />

ALMEIDA, Ronaldo M. O Lugar da Cura: construção da situação psicanalítica João Pessoa: Editora<br />

Universitária/UFPB, 2007.<br />

COMPARATO, Maria Cecília M e Monteiro, Denise de S. Feliciano (org). A criança na<br />

contemporaneidade e a psicanálise: mentes e mídia: diálogos interdisciplinares II. São Paulo: Casa do<br />

Psicólogo, 2001.<br />

FERNANDES, Maria Helena. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.<br />

LAPLANCHE, Jean & PONTALIS [tradução Pedro Tamen] Vocabulário a Psicanálise São Paulo.<br />

Martins Fontes, 1992.<br />

QUEIROZ, Edilene Freire. A Clínica da Perversão São Paulo: Editora Escuta, 2004.<br />

SAFRA, Gilberto. Desvelando a memória do humano: o brincar, o narrar, o <strong>corpo</strong>, o sagrado, o<br />

silêncio. São Paulo: Edições Sobornost, 2006.<br />

SANCHES, Renate Meyer. Winnicott na clínica e na instituição. São Paulo: Editora Escuta, 2005.<br />

WINNICOTT, D. W. Tudo começa em Casa 3ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 1999.<br />

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