Quando o corpo conta histórias 1 Ursula Patrícia Neves Leite2 Devo ...
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O cumprimento das regras do grupo igualmente ocupa lugar importante,<br />
estruturante diria, e interpreto que o dentro, embora angustiante, pode ser “vivido”<br />
naquele continente.<br />
Os movimentos de subir e escalar, de gritar de se baterem, de tentar<br />
alcançar aquilo que está no alto, o inatingível, sempre se repetem. Mas então as regras já<br />
estão postas e aquele que bate sai do grupo. Mas, a princípio, sai aos berros, se jogando<br />
no chão. Certo dia Flávia me morde e olha-me com ar de contentamento, repito a regra,<br />
tiro-a do grupo, ao que reage chorando, se debatendo no chão, gritando. Ela sai como<br />
ferida aberta, mas sai, voltando na sessão seguinte.<br />
Lembro Francisco, um menino de <strong>corpo</strong> franzino que mais parece um<br />
“prego” sempre de pé e alerta, que no primeiro dia, lançando-se loucamente de cá pra lá<br />
a correr e pular, gritando a canção “poeira, poeiraaaa, levantou poeira...”, cantou e<br />
tocou sem parar, juntando-se ao caos que se espalhava pela sala.<br />
Compreendo que do caldeirão que ferve com o caos, o ódio, a dor, o<br />
abandono, tudo de mais primitivo, o grupo consegue caminhar e elaborar, chegando a<br />
um ponto de “fervura” em que se evidenciam as expressões, representações, e a<br />
elaboração.<br />
Volto a Francisco. No último dia, ele, que antes corre batendo nos<br />
móveis e gritando a canção, monta uma festa imaginária com bolos e bolas e se despede<br />
de mim cantando parabéns, seguido de uma brincadeira em que salta como um pássaro<br />
da mesa e me deixa segurar “seu bebê”, para no final me olhar e dizer “agora eu cuido<br />
dele”. Esse é meu último registro no Diário de Bordo, o registro de um Francisco<br />
dizendo o que sente, brincando, fazendo festa, fantasiando, achando os livros muito<br />
mais interessantes que as paredes e janelas, comunicando para além do <strong>corpo</strong> “prego”<br />
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