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ursinhos, fraldinhas... por que as crianças se apegam tanto ... - Unitau

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URSINHOS, FRALDINHAS... POR QUE AS CRIANÇAS SE<br />

APEGAM TANTO A ALGUNS OBJETOS ?<br />

UMA DISCUSSÃO SOBRE OS OBJETOS E FENÔMENOS<br />

TRANSICIONAIS, A PROPÓSITO DO FILME A ÁRVORE DE<br />

NATAL<br />

TEREZA ELIZETE GONÇALVES<br />

Departamento de Psicologia<br />

Universidade de Taubaté<br />

RESUMO<br />

O pre<strong>se</strong>nte estudo examina a emergência e instalação dos objetos e fenômenos transicionais, <strong>se</strong>gundo o pensamento de D.<br />

W.Winnicott, <strong>que</strong> os identificou como um traço habitual entre <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> da tenra infância, de ambos os <strong>se</strong>xos. Contudo,<br />

quando ocorrem distúrbios no amadurecimento <strong>por</strong> perd<strong>as</strong> precoces, surgem falh<strong>as</strong> na transicionalidade, o <strong>que</strong> gera<br />

com<strong>por</strong>tamentos distorcivos tais como de adesão exagerada ou desapego dos objetos afetivos primordiais. O enredo do<br />

filme “A árvore de Natal” <strong>se</strong>rve de argumento para a apre<strong>se</strong>ntação do tema, pois o filme é, no entender da autora, muito<br />

ilustrativo sobre <strong>as</strong> patologi<strong>as</strong> da transicionalidade.<br />

PALAVRAS-CHAVE: objetos e fenômenos transicionais; transicionalidade; verdadeiro e falso-<strong>se</strong>lf; símbolo; ambiente<br />

facilitador<br />

“É impossível alguém aprender a <strong>se</strong>parar-<strong>se</strong>,<br />

<strong>se</strong>m a ilusão de novos encontros gratificantes.”<br />

(Ra<strong>que</strong>l Goldstein)<br />

Há encontros em noss<strong>as</strong> vid<strong>as</strong> <strong>que</strong> são<br />

fundamentais, fornecem elementos para o viver,<br />

permitem a emergência da subjetividade e do auto<br />

conhecimento. São chamados de terapêuticos, pelo poder<br />

transformador <strong>que</strong> contêm. Os consultórios estão, <strong>por</strong><br />

excelência, repletos de enredos desta natureza, <strong>que</strong> não<br />

vêm a público <strong>por</strong> razões étic<strong>as</strong> e de sigilo óbvi<strong>as</strong>.<br />

Pertencem à necessária intimidade dos protagonist<strong>as</strong> <strong>que</strong><br />

os tecem. Por sorte, a vida nos brinda, <strong>por</strong> vezes, com<br />

encontros potencialmente terapêuticos, fora mesmo dos<br />

âmbitos dos consultórios. Históri<strong>as</strong> dignificantes de<br />

encontros e <strong>se</strong>parações, <strong>que</strong> de tão constitutiv<strong>as</strong>, têm a<br />

força de romper di<strong>que</strong>s e de mudar o curso de noss<strong>as</strong><br />

vid<strong>as</strong>.<br />

O cinema é a arte de trazer algum<strong>as</strong> dess<strong>as</strong><br />

históri<strong>as</strong> e nos fazer revivê-l<strong>as</strong> com grande do<strong>se</strong> de<br />

emoção, tornando <strong>as</strong> dores mais processáveis, à medida<br />

em <strong>que</strong> podemos fazer de cada história um enredo.<br />

Parceri<strong>as</strong> ines<strong>que</strong>cíveis: o carteiro diante do poeta, Dora<br />

e o órfão Josué da<strong>que</strong>la Estação do Br<strong>as</strong>il, Richard e<br />

Anna... estes, os protagonist<strong>as</strong> de A árvore de Natal. 1<br />

Vamos nos deter na trama desta obra, para<br />

pensarmos o tema deste artigo. O filme <strong>se</strong> p<strong>as</strong>sa em torno<br />

de dois personagens extremamente fóbicos com a vida.<br />

Ele, um paisagista <strong>que</strong> temia qual<strong>que</strong>r relação de<br />

intimidade e de troca, era na verdade um individualista,<br />

<strong>que</strong> vivia atirando-<strong>se</strong> numa maratona de relacionamentos<br />

vazios com companheir<strong>as</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong>mpre o abandonavam.<br />

... Talvez pela sua inaptidão para relações fecund<strong>as</strong> e<br />

verdadeir<strong>as</strong>. O enredo permite entrever <strong>que</strong> <strong>se</strong> tratava de<br />

uma personalidade falso <strong>se</strong>lf, 2 <strong>que</strong> <strong>se</strong> mantinha<br />

mínimamente como pessoa, operando exclusivamente no<br />

1 O filme foi exibido em canal <strong>por</strong> <strong>as</strong>sinatura, a HBO, durante o ano de 2000 e<br />

está disponível n<strong>as</strong> locador<strong>as</strong>, em vídeo.<br />

2 Este conceito, de D. W. Winnicott, refere-<strong>se</strong> a uma divisão na personalidade<br />

na qual o <strong>que</strong> há de mais pessoal e verdadeiro <strong>se</strong> opõe ao <strong>que</strong> há de concessão<br />

e submissão às convenções sociais. O falso <strong>se</strong>lf socializado e civilizado, na<br />

saúde, protege e permite a realização do verdadeiro <strong>se</strong>lf <strong>que</strong> não pode <strong>se</strong><br />

comunicar diretamente. Trata-<strong>se</strong> do “<strong>se</strong>lf cuidador”. Na doença, ele usurpa o<br />

lugar da autenticidade, fazendo com <strong>que</strong> a pessoa perca contato com o <strong>que</strong> há<br />

de mais criativo em si, resultando em falta de <strong>se</strong>ntido, futilidade e irrealidade.<br />

Refere Winnicott <strong>que</strong> “um colapso potencial domina a cena”, quando uma<br />

fachada falso <strong>se</strong>lf <strong>se</strong> transforma numa defesa contra o verdadeiro <strong>se</strong>lf. Tais<br />

idéi<strong>as</strong> constam do artigo de 1964, O conceito de falso <strong>se</strong>lf . In: Tudo começa<br />

em c<strong>as</strong>a. São Paulo: Martins Fontes, 1989.


domínio de uma <strong>se</strong>xualidade desafetivizada. Ela, tornada<br />

Irmã Anthony, vive reclusa num convento rural, longe do<br />

contato com o mundo lá fora. Entre eles, um majestoso<br />

pinheiro.<br />

Richard procura mais <strong>que</strong> uma árvore, precisa de<br />

um vegetal à altura de <strong>se</strong>r um símbolo para o Natal de<br />

Nova York. E é num viveiro de plant<strong>as</strong> <strong>que</strong> ele vai<br />

encontrar a freira: pretendia obter dela uma autorização<br />

para remover a árvore plantada numa clareira da fazenda.<br />

As pergunt<strong>as</strong> iniciais <strong>que</strong> ela lhe dirige são<br />

desconcertantes e vão perfurando a carapaça falso <strong>se</strong>lf<br />

da<strong>que</strong>le jovem <strong>que</strong> <strong>se</strong> apre<strong>se</strong>nta pelo <strong>que</strong> tem:<br />

apartamento, carro, amigos, diploma. M<strong>as</strong> ela lhe<br />

pergunta <strong>se</strong> ele <strong>se</strong> tornou alguém... Se há um lugar em<br />

<strong>que</strong> ele <strong>se</strong> sinta pleno, onde pertença...?<br />

Já <strong>que</strong> ele <strong>se</strong> diz paisagista, ela o interroga acerca<br />

do <strong>se</strong>u de<strong>se</strong>jo pelo <strong>que</strong> faz: <strong>se</strong> ele entende de árvores<br />

viv<strong>as</strong>, <strong>se</strong> já plantara alguma...ou <strong>se</strong>ja, <strong>se</strong> ele entende<br />

daquilo <strong>que</strong> <strong>que</strong>r simbolizar. Impele-o para o encontro<br />

perturbador com o “Árvore”: __ Sinta-<strong>se</strong> amado. Você<br />

<strong>se</strong>nte o amor? Acho <strong>que</strong> há uma árvore para cada um de<br />

nós na vida. Nós devemos achá-l<strong>as</strong> e ter a coragem de<br />

abraçá-l<strong>as</strong>.<br />

Com simplicidade e sabedoria ela vai lhe<br />

revelando a própria história, para permitir a Richard<br />

encontrar a sua. Quando menina, sofrera inúmer<strong>as</strong><br />

perd<strong>as</strong>: os pais, o sobrenome, <strong>as</strong> lembranç<strong>as</strong> da vida<br />

pregressa. Dela sabia-<strong>se</strong> apen<strong>as</strong> <strong>que</strong> <strong>se</strong> chamava Anna.<br />

Enviada a um orfanato frio, cinzento, de fato era<br />

um depósito de órfãos, uma instituição <strong>que</strong> obrigava ao<br />

trabalho na qual viria a perder a infância, o prazer lúdico,<br />

os sonhos, deixando definitivamente de falar.<br />

Ainda <strong>as</strong>sim, apesar d<strong>as</strong> experiênci<strong>as</strong> tão<br />

esmagador<strong>as</strong> de si, vinculou-<strong>se</strong> a um menino, o Tom, <strong>que</strong><br />

lhe pre<strong>se</strong>nteou com uma bolsa de tecido repleta de folh<strong>as</strong><br />

de árvores <strong>se</strong>c<strong>as</strong>, <strong>que</strong> para a menina eram mágic<strong>as</strong>. Deste<br />

objeto jamais <strong>se</strong> <strong>se</strong>parava. Uma outra criança cultivou<br />

nela a necessária ilusão de poder mágico sobre o destino,<br />

tornando possível su<strong>por</strong>tar a dura realidade de perd<strong>as</strong> em<br />

tempos de guerra.<br />

“ O Tom era o meu melhor amigo e me fazia<br />

sobreviver.”, refletiu a freira em <strong>se</strong>u relato ao<br />

interlocutor <strong>que</strong>, apesar de relutante, cada vez mais <strong>se</strong><br />

enternecia com a<strong>que</strong>la história. A freira pros<strong>se</strong>guiu<br />

contando <strong>que</strong> nem desta vez <strong>se</strong>ria poupada, tendo sido<br />

transferida para o convento. A <strong>se</strong>paração brusca deste<br />

protetor trouxe o pesadelo <strong>que</strong> povoou su<strong>as</strong> noites de<br />

terror: este consistia em uma estrela fulgurante no céu<br />

<strong>que</strong> quando tocada transformava-<strong>se</strong> num monstro.<br />

Con<strong>se</strong>qüência talvez d<strong>as</strong> desilusões precoces frente aos<br />

revezes da vida.<br />

A menina, desolada, foi levada para o convento e<br />

lá vinculou-<strong>se</strong> à Irmã Mary <strong>que</strong> <strong>se</strong>nsível ao interes<strong>se</strong> da<br />

menina pel<strong>as</strong> estrel<strong>as</strong> no céu começou a dar-lhe aul<strong>as</strong><br />

com um telescópio. E são estrel<strong>as</strong> <strong>que</strong> a protagonista<br />

Anthony mais tarde envia a Richard; diríamos <strong>que</strong> <strong>se</strong><br />

trata de um símbolo, ainda <strong>que</strong> precário, do <strong>que</strong> ela<br />

precisaria desvelar da própria história.<br />

Apoiada pela relação afetuosa com a freira,<br />

recuperou a capacidade para a linguagem, restaurando<br />

também a alegria e o brincar. Lá aprendeu poesia,<br />

matemática, literatura, francês... adquiriu cultura <strong>se</strong>m<br />

nunca trans<strong>por</strong> os muros do lugar, <strong>se</strong><strong>que</strong>r para ir à escola.<br />

Quem decide partir desta vez é Mary, a freira mais<br />

<strong>que</strong>rida e mais próxima; ela decide partir em missão<br />

voluntária para ajudar os feridos da guerra. Tentou<br />

explicar à menina <strong>que</strong> precisava ir para dar o melhor de<br />

si. A menina <strong>que</strong> não sabia <strong>se</strong> despedir, pois <strong>se</strong>mpre fora<br />

af<strong>as</strong>tada da<strong>que</strong>les aos quais <strong>se</strong> ligava, refugiou-<strong>se</strong> sob o<br />

pinheiro <strong>que</strong> denominara “Árvore” e, com a in<strong>se</strong>parável<br />

bolsa presa ao corpo como <strong>se</strong> fora um pedaço de si,<br />

agarrou-<strong>se</strong> ao pinheiro plantado ali, concebendo <strong>que</strong> este<br />

jamais a deixaria, já <strong>que</strong> <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> amad<strong>as</strong> <strong>se</strong>mpre <strong>se</strong><br />

iam. Este <strong>se</strong> constituiu, para ela, num verdadeiro objeto<br />

transicional, no dizer de D. Winnicott.<br />

Como o filme é pródigo no <strong>se</strong>ntido de explicitar<br />

es<strong>se</strong> fenômeno e <strong>as</strong> patologi<strong>as</strong> da transicionalidade,<br />

vamos nos deter <strong>por</strong> ora nestes conceitos com mais<br />

vagar. Este autor interessou-<strong>se</strong> <strong>por</strong> um acontecimento<br />

muito comum à primeira infância: o forte apego d<strong>as</strong><br />

crianç<strong>as</strong> a determinados objetos, chegando a alterar o<br />

ritmo de sono, de alimentação e caindo em estados<br />

profundos de aflição ao terem de <strong>se</strong> desprender deles.<br />

Constituir um objeto transicional é evidência de um<br />

considerável de<strong>se</strong>nvolvimento psíquico, atesta a<br />

evolução do estado <strong>se</strong>nsual puro dos primeiros me<strong>se</strong>s de<br />

vida, para operações mentais muito complex<strong>as</strong>.O<br />

de<strong>se</strong>nvolvimento dar-<strong>se</strong>-á da sucção auto-erótica do<br />

polegar, <strong>que</strong> <strong>se</strong>rá substituído pelos objetos transicionais,<br />

e daí para <strong>as</strong> autêntic<strong>as</strong> relações de objetos permitindo o<br />

acesso ao simbolismo, ao pensar criativo e à vida<br />

cultural. Os bebês começam a acariciar cobertores,<br />

bichinhos de pelúcia, paninhos, enquanto mamam ou<br />

succionam o polegar, manu<strong>se</strong>io acompanhados <strong>por</strong><br />

balbucios. Alguns objetos macios são especialmente<br />

eleitos, <strong>fraldinh<strong>as</strong></strong>, cobertores, traves<strong>se</strong>iros, bonecos, um<br />

ursinho de pelúcia, tornam-<strong>se</strong> companheiros<br />

privilegiados à medida em <strong>que</strong> a criança cresce,<br />

ganhando significação notável. Constata-<strong>se</strong> um<br />

com<strong>por</strong>tamento de adicção da criança a eles.<br />

Tais objetos são carinhosamente afagados ou<br />

mutilados quando sobrevêm a fúria e a excitação<br />

impiedos<strong>as</strong> da criança, investid<strong>as</strong> às quais os objetos<br />

devem sobreviver. Esta impiedade é necessária no<br />

caminho de constituir a externalidade, diferenciando o<br />

<strong>que</strong> é próprio de si. Que a criança possa ir realizando<br />

est<strong>as</strong> descobert<strong>as</strong> do modo mais pessoal e criativo<br />

possível é imprescindível para a saúde. Ob<strong>se</strong>rvamos o<br />

uso dos objetos transicionais pel<strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>,<br />

especialmente em situações de trânsito, <strong>por</strong> exemplo,<br />

entre a vigília e o sono (durante <strong>as</strong> quais cantig<strong>as</strong>,<br />

históri<strong>as</strong>, bichinhos de cabeceira <strong>se</strong>rvem tão bem...),


quando vão deixar o ambiente <strong>se</strong>guro do lar para ir à<br />

escola, ou em situações <strong>que</strong> impli<strong>que</strong>m <strong>se</strong>paração ou<br />

espera. É comum <strong>por</strong> exemplo, <strong>que</strong> corram ao ‘paninho’<br />

ou ‘cheirinho’ quando os pais vão <strong>se</strong> despedir del<strong>as</strong>,<br />

protegendo-<strong>as</strong> dos efeitos corrosivos de uma ansiedade<br />

depressiva.<br />

Não <strong>se</strong> ob<strong>se</strong>rvam diferenç<strong>as</strong> substanciais no<br />

tocante ao com<strong>por</strong>tamento de meninos e de menin<strong>as</strong><br />

quanto à constituição do objeto transicional, embora<br />

Winnicott , em 1959, tenha estabelecido uma distinção<br />

quanto à preferência <strong>por</strong> objetos, a saber: o elemento<br />

feminino em crianç<strong>as</strong> de ambos os <strong>se</strong>xos tende a manter<br />

o interes<strong>se</strong> n<strong>as</strong> característic<strong>as</strong> de suavidade e textura,<br />

enquanto o elemento m<strong>as</strong>culino <strong>as</strong> leva a buscar objetos<br />

mais duros.<br />

É im<strong>por</strong>tante ressaltar <strong>que</strong>, no pensamento deste<br />

autor, não im<strong>por</strong>ta o objeto em si, m<strong>as</strong> o uso <strong>que</strong> a<br />

criança faz dele. O <strong>que</strong> o objeto transicional evidencia é<br />

existência de uma área intermediária de experiência <strong>que</strong><br />

permite o trânsito entre <strong>as</strong> realidades subjetiva e<br />

objetivamente percebid<strong>as</strong>. Neste <strong>se</strong>ntido, o objeto<br />

transicional antecede a função simbólica <strong>que</strong> advirá<br />

quando a criança já puder distinguir entre fant<strong>as</strong>ia e<br />

objetividade. De fato, na saúde <strong>se</strong> tudo vai bem, “...<br />

quando o crescimento é constante, o objeto transicional é<br />

o primeiro símbolo”(WINNICOTT, 1959, p. 44) 3 . Por<br />

outro lado, <strong>se</strong> a criança não alcançar a transicionalidade,<br />

a aceitação de símbolos <strong>se</strong>rá precária, <strong>as</strong>sim como a<br />

capacidade de pensar. Além disso, sua vida cultural e<br />

artística na maturidade <strong>se</strong>rá empobrecida ou inexistente.<br />

Os objetos <strong>se</strong> constituem e trafegam nesta área<br />

potencial, <strong>se</strong>de legítima do brincar e do viver autênticos.<br />

Esta tem im<strong>por</strong>tância enquanto área <strong>que</strong> intermedia e faz<br />

borda entre o dentro e o fora, <strong>por</strong><strong>tanto</strong>, enquanto brinca<br />

na transicionalidade, a criança repousa da árdua e<br />

incessante tarefa de ter <strong>que</strong> discriminar <strong>as</strong> realidades<br />

interna e externa:<br />

(...) ele é oriundo do exterior, <strong>se</strong>gundo nosso<br />

ponto de vista, m<strong>as</strong> não o é, <strong>se</strong>gundo o ponto de<br />

vista do bebê. Tampouco provém de dentro; não<br />

é uma alucinação (WINNICOTT, 1988, p. 18 ).<br />

Sua im<strong>por</strong>tância reside no fato de nem <strong>se</strong>r um<br />

objeto interno fant<strong>as</strong>iado, fruto de projeções (pois tem<br />

materialidade, atualidade), nem <strong>se</strong>r eminentemente um<br />

dado externo, real e não manejável subjetivamente.<br />

Tecido no campo da ilusão e produto da criatividade<br />

primária da criança, sua existência não poderá jamais <strong>se</strong>r<br />

contestada, sob o risco de comprometer todo o potencial<br />

criativo do indivíduo. E a criatividade é, para Winnicott,<br />

o próprio viver no <strong>se</strong>u <strong>se</strong>ntido mais pleno. Para o autor, a<br />

criação do objeto transicional resulta da tentativa da<br />

3 Neste mesmo texto, Winnicott afirmará <strong>que</strong> “os objetos e os fenômenos<br />

transicionais encontram-<strong>se</strong> na própria b<strong>as</strong>e do simbolismo.”<br />

criança de restituir, de fazer algo acerca do buraco<br />

imaginativamente produzido no corpo materno, quando,<br />

no apogeu instintual <strong>se</strong>ja produzido pela fome, <strong>se</strong>de ou<br />

frio. Constituído para evocar a união perdida com a mãe<br />

e significar a ausência materna, o objeto transicional terá<br />

mais im<strong>por</strong>tância do <strong>que</strong> o objeto originário. Com ele a<br />

criança poderá su<strong>por</strong>tar a espera pelo reencontro <strong>se</strong>m <strong>se</strong><br />

de<strong>se</strong>sperar, ou com um limiar de angústia mais<br />

modulado, e, <strong>as</strong>sim, <strong>se</strong>ntir-<strong>se</strong> encorajada a explorar os<br />

limites e testar a durabilidade do mundo. O<br />

reconhecimento do não-eu, de <strong>que</strong> há objetos fora da<br />

esfera de <strong>se</strong>u controle pessoal, pressupõe crescimento<br />

emocional e depende da permanência e indestrutibilidade<br />

de tais objetos.<br />

Renata Gaddini (1985), também citada <strong>por</strong><br />

Winnicott (1988), no artigo <strong>que</strong> ele dedica ao tema,<br />

pesquisou os precursores dos objetos transicionais,<br />

a<strong>que</strong>les pertencentes ao estágio pré-objetal, quando a<br />

individuação ainda não foi alcançada, e o objeto é tão<br />

somente subjetivo. Os precursores diferem dos<br />

transicionais <strong>por</strong><strong>que</strong> nem foram criados pela criança,<br />

nem estão <strong>se</strong>parados de <strong>se</strong>u corpo. O objeto transicional<br />

é a primeira pos<strong>se</strong>ssão não-eu (WINNICOTT, 1988),<br />

embora não tão distintamente reconhecido pela criança<br />

como fora dela, <strong>que</strong> <strong>se</strong> torna parte im<strong>por</strong>tante do <strong>se</strong>u <strong>se</strong>lf,<br />

<strong>se</strong>ndo <strong>por</strong><strong>tanto</strong> vital ter absoluto domínio sobre ele. Por<br />

não <strong>se</strong> tratar de um objeto natural, existente a priori, não<br />

pode <strong>se</strong>r dado, m<strong>as</strong> tem <strong>que</strong> <strong>se</strong>r constituído e destituído<br />

pela criança. Não há como forjar um objeto transicional<br />

para a criança, embora a mãe (ou substituto desta), possa<br />

facilitar tais processos, desde <strong>que</strong> posicionada num<br />

estado de devoção ao infante.<br />

E o <strong>que</strong> é devido à mãe (esta como equivalente<br />

ao ambiente total da criança)? Ela permite <strong>as</strong><br />

experiênci<strong>as</strong> de ilusão, colocando o objeto devido<br />

exatamente onde e no momento em <strong>que</strong> a criança<br />

necessita dele. Para <strong>que</strong> <strong>se</strong> constitua a capacidade<br />

saudável de ilusionar, <strong>que</strong> fornece <strong>as</strong> b<strong>as</strong>es para a<br />

criatividade, é preciso <strong>que</strong> a ânsia pelo objeto (da parte o<br />

bebê) e a apre<strong>se</strong>ntação do objeto (da parte da mãe),<br />

estejam afinad<strong>as</strong>. A criança alucina o objeto e a mãe, em<br />

sintonia com <strong>as</strong> necessidades do bebê, não <strong>se</strong> antecipa<br />

nem invade, espera e vai ao encontro do gesto<br />

espontâneo do filho, atendendo às necessidades e<br />

ímpetos pulsionais em curso. Sustentada no auge da<br />

excitação pela apre<strong>se</strong>ntação do objeto, a criança irá<br />

conceber <strong>que</strong> foi ela <strong>que</strong>m criou o <strong>que</strong> de fato concebeu,<br />

e con<strong>se</strong>qüentemente, <strong>que</strong> ela poderá ter tudo o <strong>que</strong><br />

necessita através do poder de criação. Trata-<strong>se</strong> aqui do<br />

paradoxo winnicottiano de <strong>que</strong> tudo o <strong>que</strong> é criado,<br />

precisa <strong>se</strong>r antes encontrado. Reconhecer-<strong>se</strong> como tendo<br />

o dom da criação instaura toda uma positividade e<br />

f<strong>as</strong>cínio na relação com o externo: “(... ) a criança fica<br />

com a ilusão de <strong>que</strong> o mundo pode <strong>se</strong>r criado e de <strong>que</strong> o<br />

<strong>que</strong> é criado é o mundo.”(WINNICOTT, 1994, p. 44).


Porém, este gesto de criar o mundo não <strong>se</strong> b<strong>as</strong>eia<br />

num fant<strong>as</strong>iar de<strong>se</strong>nfreado e <strong>se</strong>m vinculação com os<br />

dados da vida objetiva; o psiquismo poderá <strong>se</strong>r<br />

enri<strong>que</strong>cido com elementos da realidade externa <strong>que</strong>, <strong>por</strong><br />

possuir limites e contornos próprios, poderá refutar e<br />

submeter à prova a realidade interna; esta sim, <strong>por</strong> não<br />

ter freios, pode vir a tornar-<strong>se</strong> <strong>as</strong>sustadora. É esta a<br />

contribuição <strong>que</strong> a realidade externa poderá dar ao<br />

amadurecimento, pois quando os objetos do mundo<br />

compartilhado interagem com os elementos d<strong>as</strong> fant<strong>as</strong>i<strong>as</strong>,<br />

há um maior interes<strong>se</strong> pelos objetos reais, além do<br />

incremento considerável da vida imaginativa, do<br />

pensamento, curiosidade e pesquisa. Deste modo,<br />

conclui-<strong>se</strong> <strong>que</strong> a <strong>se</strong>nsorialidade dos objetos capturados<br />

via visão, paladar e cheiro, fornecerão detalhes reais às<br />

fant<strong>as</strong>i<strong>as</strong> <strong>as</strong>sim enri<strong>que</strong>cid<strong>as</strong>. Na perspectiva<br />

winnicottiana, a criança estaria mais apta a evocar o <strong>que</strong><br />

está realmente disponível, criando-<strong>se</strong> um ciclo benigno<br />

na relação com o externo.<br />

Progressivamente, a partir do encontro<br />

estimulante e criativo com os objetos do mundo<br />

compartilhado, irá ocorrerá um enri<strong>que</strong>cimento da<br />

<strong>se</strong>nsibilidade, da coordenação motriz, da <strong>se</strong>nsorialidade<br />

labial, olfativa, tátil além da afetividade. Winnicott<br />

denominou realização o modo pelo qual a criança<br />

adquire a sofisticada capacidade de criar e de <strong>se</strong><br />

relacionar com os objetos externos, distinguindo-os<br />

da<strong>que</strong>les do mundo subjetivo. Trata-<strong>se</strong>, como <strong>se</strong> pode<br />

depreender, de uma im<strong>por</strong>tante conquista do<br />

de<strong>se</strong>nvolvimento essa tarefa de constituir e de transitar<br />

pel<strong>as</strong> realidades. Ob<strong>se</strong>rvamos <strong>que</strong> distúrbios na<br />

realização podem levar <strong>as</strong> pesso<strong>as</strong> a viverem tão<br />

ancorad<strong>as</strong> na realidade externa <strong>que</strong> ficam impedid<strong>as</strong> de<br />

sonhar, fant<strong>as</strong>iar, atendo-<strong>se</strong> tão somente ao factual e<br />

ordinário d<strong>as</strong> situiações; outr<strong>as</strong>, ao contrário, produzem<br />

um sistema delirante no qual a realidade externa é<br />

<strong>se</strong>mpre capturada como um fenômeno subjetivo.<br />

Por todo o descrito acima, conclui-<strong>se</strong> <strong>que</strong> o<br />

objeto transicional é único e insubstituível, não devendo<br />

ter su<strong>as</strong> qualidades alterad<strong>as</strong> ao <strong>se</strong>r limpo, polido ou<br />

renovado. Perdê-lo antes <strong>que</strong> a criança tenha podido<br />

dispensá-lo pode <strong>se</strong>r des<strong>as</strong>troso: resultará não em perda<br />

do objeto, m<strong>as</strong> do “eu” e do <strong>se</strong>ntido da existência,<br />

sobrevindo reações de mar<strong>as</strong>mo e <strong>as</strong> angústi<strong>as</strong><br />

impensáveis 4 , de efeitos cat<strong>as</strong>tróficos. É toda uma<br />

possibilidade de enlace <strong>que</strong> <strong>se</strong> perde:<br />

4 Winnicott refere-<strong>se</strong> às agoni<strong>as</strong> primitiv<strong>as</strong>, de natureza psicótica, como reação<br />

ao <strong>se</strong>ntimento de <strong>que</strong> o núcleo do <strong>se</strong>lf foi violado e experimentou ameaça de<br />

descontinuidade ou aniquilamento. Resultam de traum<strong>as</strong> ocorridos no estágio<br />

de dependência absoluta, período no qual a criança não tem defes<strong>as</strong>, tais como<br />

a capacidade de repre<strong>se</strong>ntar, pensar o <strong>que</strong> <strong>se</strong> p<strong>as</strong>sa com ela: a agonia<br />

av<strong>as</strong>saladora <strong>que</strong> subjaz é impensável. O autor relaciona angústi<strong>as</strong> primitiv<strong>as</strong>,<br />

tais como a perda da relação com o próprio corpo, do <strong>se</strong>ntido de real, o<br />

<strong>se</strong>ntimento de <strong>que</strong>da infinita, desintegração, despedaçamento somático e<br />

incomunicabilidade. A propósito, ler O medo do colapso (Breakdown). In:<br />

Explorações Psicanalític<strong>as</strong> D. W. Winnicott. Porto Alegre: Artes Médic<strong>as</strong>,<br />

1994.<br />

“O bebê quando perde o objeto transicional perde<br />

ao mesmo tempo a boca e o <strong>se</strong>io, a mão e a pele da mãe,<br />

a criatividade e a percepção objetiva. O objeto é uma d<strong>as</strong><br />

pontes <strong>que</strong> tornam possível o contato entre a psi<strong>que</strong> do<br />

indivíduo e a realidade externa.” (WINNICOTT, 1980, p.<br />

176).<br />

Podemos nos interrogar agora acerca do destino<br />

desta relação tão poderosa <strong>que</strong> <strong>se</strong> instalou. Ocorre <strong>que</strong> a<br />

própria criança vai dar sinais de <strong>que</strong> pode <strong>se</strong> <strong>se</strong>parar do<br />

objeto transicional, <strong>que</strong> então sim poderá <strong>se</strong>r dispensado<br />

<strong>se</strong>m dor e <strong>se</strong>m pranto, pois <strong>que</strong> <strong>se</strong> tornou <strong>se</strong>m significado<br />

para ela. Winnicott (1988) vislumbrou na brincadeira do<br />

bebê <strong>que</strong> atira longe os brin<strong>que</strong>dos para <strong>que</strong> alguém os<br />

recupere, a experiência de lidar com a <strong>se</strong>paração, <strong>se</strong>ndo<br />

indicador da possibilidade de <strong>se</strong> desmamar. Os objetos<br />

transicionais, quando <strong>se</strong> esgotam, não são alvo de<br />

repressão, es<strong>que</strong>cidos ou pranteados, apen<strong>as</strong> relegados<br />

ao limbo (WINNICOTT, 1994). A <strong>se</strong>paração não<br />

implicará em perda e isolamento, podendo o<br />

de<strong>se</strong>nvolvimento, avançar às etap<strong>as</strong> de transição.<br />

Referimo-nos aos objetos transicionais e à im<strong>por</strong>tância<br />

<strong>que</strong> eles cheguem a um bom termo; contudo, na medida<br />

em <strong>que</strong> os processos de amadurecimento evoluem, eles<br />

dão lugar aos fenômenos transicionais <strong>que</strong> nunca cessam,<br />

espraiando-<strong>se</strong> pelos interes<strong>se</strong>s culturais, atividades<br />

artístic<strong>as</strong> e experiênci<strong>as</strong> religios<strong>as</strong>.<br />

Tal processo é também explicitado no filme, no<br />

relato da perda da bolsa. Anna parece amputada de uma<br />

parte de si, sobrevêm o pânico, <strong>as</strong> perturbações<br />

somátic<strong>as</strong>, uma angústia av<strong>as</strong>saladora. Mais uma vez ela<br />

buscou refúgio junto à<strong>que</strong>le <strong>que</strong> <strong>se</strong>mpre estava lá: o<br />

Árvore. “Sem a bolsa eu sinto medo.”, alegava a jovem<br />

tentando explicar à freira a qual não compreendia a<br />

intensidade d<strong>as</strong> su<strong>as</strong> reações. Esta entende <strong>que</strong> é hora da<br />

jovem lidar com o <strong>que</strong> lhe faltava, su<strong>por</strong>tando o dissabor<br />

da ausência e da espera, ensinando-a a orar. Falou-lhe<br />

profundamente da pos<strong>se</strong> definitiva de Deus dentro de<br />

nós; ao final da conversa a garota <strong>se</strong>ntia-<strong>se</strong> grata e em<br />

paz, além do <strong>que</strong> descobriu sua vocação. “Descobri uma<br />

parte de mim na oração.”<br />

Outro <strong>as</strong>pecto relativo à transicionalidade<br />

evidenciado no filme <strong>se</strong> p<strong>as</strong>sa quando a pe<strong>que</strong>na Anna<br />

<strong>se</strong>ntiu necessidade de nomear a “sua” árvore, como<br />

fazem tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong> neste processo de apropriação do<br />

objeto. Fruto da mais absoluta singularidade, essa<br />

denominação <strong>por</strong> vezes monossilábica e “estranha”, lhes<br />

<strong>as</strong><strong>se</strong>gura a pos<strong>se</strong> definitiva sobre ele. O objeto<br />

transicional pleno precisa <strong>se</strong>r denominado, apelidado,<br />

<strong>por</strong><strong>que</strong> tem vitalidade para a criança, possui calor,<br />

<strong>se</strong>ntimentos, dialoga e em contrapartida, pode entendê-la<br />

e conferir-lhe um <strong>se</strong>nso de existência. Em outr<strong>as</strong><br />

palavr<strong>as</strong>, o relacionamento e o uso des<strong>se</strong> objeto <strong>por</strong> ela<br />

animado lhe permite a fruição do viver. Difere<br />

consideravelmente dos objetos autísticos (TUSTIN,<br />

1975) <strong>que</strong> são bizarros, rígidos e <strong>por</strong><strong>tanto</strong>, imanejáveis,


não permitindo os deslizamentos próprios do registro<br />

simbólico.<br />

Winnicott tematizou sobre o efeito d<strong>as</strong> perd<strong>as</strong><br />

afetiv<strong>as</strong> sobre <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>, podendo <strong>se</strong>r um dos pais, um<br />

animal de estimação, um objeto significativo... perd<strong>as</strong><br />

ocorrid<strong>as</strong> no estágio de relação de objeto, antes <strong>que</strong> a<br />

criança pudes<strong>se</strong> alcançar a possibilidade de usá-lo. A<br />

capacidade para usar um objeto é mais elaborada do <strong>que</strong><br />

a capacidade para <strong>se</strong> relacionar com ele, supõe o objeto<br />

colocado fora da órbita do <strong>se</strong>lf, p<strong>as</strong>sando a contribuir<br />

para a realidade interna. Quando <strong>as</strong> perd<strong>as</strong> <strong>se</strong> dão nes<strong>se</strong>s<br />

estágios iniciais, o efeito é nef<strong>as</strong>to: a criança pode tornar<strong>se</strong><br />

compulsiva, voraz, agressiva, in<strong>se</strong>gura e<br />

excessivamente dependente. Ou, de modo ainda pior, ela<br />

perde o <strong>se</strong>nso de existência, e p<strong>as</strong>sa a <strong>se</strong> af<strong>as</strong>tar de tudo o<br />

<strong>que</strong> é vivo e dá <strong>se</strong>ntido genuíno à vida. A situação para a<br />

criança complica-<strong>se</strong> ainda mais, principalmente quando<br />

não lhes é reconhecido o direito à sua dor. Ora<br />

mergulhada na tristeza e de<strong>se</strong>sperança subjacentes, ora<br />

numa vivacidade e es<strong>que</strong>cimento <strong>que</strong> “engana a todos<br />

menos à criança” 5 , alerta Winnicott (1997). Ela acaba<br />

criando uma falsa personalidade,<br />

(...) uma personalidade jocosa e vazia e<br />

infinitamente dispersiva. E então surge a <strong>que</strong>ixa<br />

de <strong>que</strong> a criança nunca <strong>se</strong> concentra em nada,<br />

ou p<strong>as</strong>sa de um relacionamento para outro <strong>se</strong>m<br />

a capacidade de fazer amigos. (WINNICOTT,<br />

1977, p. 65).<br />

Em nossa prática de supervisão junto à Clínica<br />

Psicológica da UNITAU, no estágio de Teori<strong>as</strong> e<br />

Técnic<strong>as</strong> de Atendimento Infantil, através d<strong>as</strong> centen<strong>as</strong><br />

de pais e crianç<strong>as</strong> tratad<strong>as</strong> ao longo da última década,<br />

temos podido pesquisar e relacionar a não-instauração<br />

plena da transicionalidade aos com<strong>por</strong>tamentos de<br />

adesividade patológica à figura materna, fobi<strong>as</strong>, aos<br />

desvios de conduta tais como mentira, furtos, fug<strong>as</strong>,<br />

destrutividade e melancolia, ainda na primeira infância.<br />

M<strong>as</strong> a constituição des<strong>se</strong> organizador psíquico<br />

só <strong>se</strong> torna possível, repetimos, com a sustentação<br />

ambiental. É preciso, para a emergência d<strong>as</strong> transições,<br />

<strong>que</strong> a mãe não capture a criança como uma extensão de si<br />

mesma, num conluio fusional perigoso. Contudo, o<br />

necessário af<strong>as</strong>tamento resultante da desilusão pelo<br />

reconhecimento da <strong>se</strong>paração e diferenç<strong>as</strong> não pode <strong>se</strong>r<br />

abrupto e tão decepcionante <strong>que</strong> não possibilite à criança<br />

ir constituindo algo a partir da ausência.<br />

Vemos deste modo <strong>que</strong>, <strong>se</strong> a <strong>se</strong>paração materna<br />

for <strong>por</strong> demais imprevisível e prolongada, a criança<br />

poderá perder a mãe internalizada <strong>que</strong> tinha, e “(...) o<br />

objeto transicional deixa de significar alguma coisa. Em<br />

outr<strong>as</strong> palavr<strong>as</strong>, o objeto de transição é simbólico do<br />

objeto interno <strong>que</strong> é mantido vivo pela pre<strong>se</strong>nça viva da<br />

mãe.”(WINNICOTT, 1994, p. 48).<br />

5 WINNICOTT, D. W. O efeito da perda sobre <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>. (1968) In:<br />

Pensando sobre crianç<strong>as</strong>. Porto Alegre: Artes Médic<strong>as</strong>,1997, cap. VII, p. 65.<br />

Se não for devidamente experienciado, o objeto<br />

transicional pode tornar-<strong>se</strong> <strong>se</strong>m <strong>se</strong>ntido, surgindo um<br />

silencioso processo de isolamento <strong>por</strong> parte da criança,<br />

com perda da realidade interna, da ilusão criativa e da<br />

capacidade de evocar a mãe bondosa. Como<br />

con<strong>se</strong>qüência, toda a potencialidade para o simbolismo<br />

<strong>se</strong>rá afetada, <strong>as</strong>sim como os processos de integração,<br />

personalização e de realização. Poderá haver também<br />

uma <strong>as</strong>similação ob<strong>se</strong>ssiva, fóbica ou melancólica da<br />

realidade, ocorrendo uma aderência a objetos<br />

re<strong>as</strong><strong>se</strong>guradores toda vez <strong>que</strong> sobrevier uma privação. A<br />

criança então não con<strong>se</strong>guirá evoluir da constituição dos<br />

objetos transicionais para os fenômenos transicionais. “O<br />

objeto transicional pode acabar <strong>por</strong> <strong>se</strong> transformar num<br />

objeto de fetiche e <strong>as</strong>sim persistir como uma<br />

característica da vida <strong>se</strong>xual adulta.”(WINNICOTT,<br />

1988, p. 24).<br />

Como efeitos d<strong>as</strong> falh<strong>as</strong> na constituição da<br />

transicionalidade teríamos um le<strong>que</strong> de possibilidades de<br />

desvios e soluções patológic<strong>as</strong> tais como: <strong>as</strong> fobi<strong>as</strong> e os<br />

enclausuramentos, os estados mentais simbióticos (com<br />

uma dificuldade incontornável em reconhecer a<br />

autonomia do outro), os despedaçamentos somáticos<br />

diante d<strong>as</strong> situações de <strong>se</strong>paração. Incluiríamos também,<br />

a persistência de um padrão rígido n<strong>as</strong> relações, a adesão<br />

à droga para negar <strong>as</strong> vivênci<strong>as</strong> penos<strong>as</strong> de perda, o<br />

apego duradouro e exagerado a alguns objetos, talismãs e<br />

amuletos. Estes visariam manter o indivíduo ao abrigo<br />

d<strong>as</strong> angústi<strong>as</strong> inimagináveis.<br />

Voltemos ainda mais uma vez ao filme <strong>que</strong> nos<br />

<strong>se</strong>rve de argumento: o tempo parecia não p<strong>as</strong>sar em torno<br />

da<strong>que</strong>la menina, tão plantada na<strong>que</strong>le lugar, quanto<br />

a<strong>que</strong>la árvore. Na adolescência uma única paixão: Roy.<br />

Porém, quando ele a <strong>que</strong>r levar dali, ela foge <strong>as</strong>sustada,<br />

temerosa não podendo <strong>se</strong> desprender da<strong>que</strong>le local.<br />

Ocorre outra <strong>se</strong>paração <strong>se</strong>m despedida. “... É <strong>as</strong>sustador<br />

<strong>se</strong> apaixonar.” refletiu a freira a Richard, tão íntima d<strong>as</strong><br />

dificuldades <strong>que</strong> os habitavam. O roteiro vai delineando<br />

cada vez mais a emergência da transicionalidade: a freira<br />

começa a corresponder-<strong>se</strong> com Richard, envia-lhe<br />

chamamentos <strong>por</strong> cart<strong>as</strong> contendo estrel<strong>as</strong>, <strong>as</strong> quais no<br />

início ele não con<strong>se</strong>guia significar. Cart<strong>as</strong> bem <strong>se</strong><br />

prestam a transitar num espaço potencial, <strong>se</strong>ndo uma<br />

forma de comunicação im<strong>por</strong>tante frente às experiênci<strong>as</strong><br />

de ausência e <strong>se</strong>paração.<br />

A história pros<strong>se</strong>gue com o pedido da freira a<br />

Richard de <strong>que</strong> a árvore fos<strong>se</strong> levada, na<strong>que</strong>le ano, para<br />

enfeitar o natal novaiorquino. É verdadeiramente<br />

surpreendente <strong>que</strong> ela pudes<strong>se</strong> ficar <strong>se</strong>m <strong>se</strong>u velho<br />

pinheiro, m<strong>as</strong> ela agora compreendia <strong>que</strong> ele precisava,<br />

como a Irmã Mary lhe ensinara, cumprir sua “missão”,<br />

“dar o melhor de si”, e desta vez ela <strong>que</strong>ria despedir-<strong>se</strong><br />

<strong>se</strong>m <strong>se</strong> <strong>se</strong>ntir desapossada. Sabia <strong>que</strong> a existência do<br />

pinheiro chegava próximo à idade final. Retira dele um<br />

galho <strong>que</strong> foi plantado e <strong>as</strong>siste comovida, <strong>por</strong>ém de um<br />

modo su<strong>por</strong>tável, a retirada da árvore rumo à grande


cidade. Apoiada pela mão do amigo Richard, a freira vai<br />

até New York para vê-lo iluminado, cumprindo sua<br />

missão de produzir sonhos e encantamentos no natal.<br />

Tratava-<strong>se</strong> de um gesto dela na direção da cultura, <strong>por</strong><br />

meio do qual ganhava cidadania e saía da longa clausura.<br />

Todo <strong>se</strong>r social precisa de um lugar onde pôr o<br />

<strong>que</strong> vai criando/encontrando e fazendo existir ao longo<br />

da vida. Este lugar, para Winnicott, é o acervo comum da<br />

humanidade, <strong>que</strong> ele denomina Cultura. Através da<br />

relação com o <strong>se</strong>u “Árvore”, o objeto transicional <strong>que</strong> foi<br />

mantido de modo tardio, m<strong>as</strong> posteriormente dispensado,<br />

a freira pôde constituir um símbolo do <strong>se</strong>u <strong>se</strong>lf, agora<br />

colocado no mundo através de <strong>se</strong>u gesto. Gesto de<br />

enlace, <strong>que</strong> continha a materialidade necessária. O<br />

mundo, ao recebê-lo, permitiu a ela integrar-<strong>se</strong> e<br />

enri<strong>que</strong>cer-<strong>se</strong>.<br />

Neste encontro primordial, <strong>as</strong> lembranç<strong>as</strong> sobre a<br />

família, sobre sua infância e a agonia da guerra foram<br />

surgindo. A amnésia cedia, gradualmente, frente ao<br />

trabalho psíquico de desfazer os efeitos da repressão. O<br />

res<strong>se</strong>ntimento pelo abandono lhe roubara lembranç<strong>as</strong><br />

precios<strong>as</strong> sobre o pai, sua doença e morte, permanecendo<br />

apen<strong>as</strong> o f<strong>as</strong>cínio pelo <strong>que</strong> simbolizava a sua ligação com<br />

ele: a estrela brilhante no céu. Por fim, a estrela pairava<br />

irradiante no alto do pinheiro enfeitado, ela <strong>se</strong> recordava<br />

menina, no colo do pai em <strong>se</strong>u derradeiro natal.<br />

Richard também sai enri<strong>que</strong>cido. Ele con<strong>se</strong>guiu<br />

superar a sua aridez afetiva, recuperando-<strong>se</strong> a tempo de<br />

viver um amor pleno, junto a alguém <strong>que</strong> lhe oferecia o<br />

<strong>que</strong> ele <strong>tanto</strong> necessitava, <strong>por</strong>ém <strong>se</strong> recusava a receber..<br />

Concluo, com uma reflexão da freira sobre a<br />

vida:<br />

“Acho <strong>que</strong> há uma árvore para cada um de nós<br />

na vida. Nós devemos é achá-l<strong>as</strong> e ter a coragem de<br />

abraçá-l<strong>as</strong>.”<br />

Ao término do filme, não resta dúvida ao<br />

espectador <strong>que</strong> foi possível aos <strong>se</strong>us protagonist<strong>as</strong><br />

realizar tal aventura.<br />

ABSTRACT<br />

The pre<strong>se</strong>nt study examines the emergency and the<br />

installation of the objects and transitional phenomena <strong>as</strong><br />

a habitual line among the early childhood children, from<br />

both <strong>se</strong>xes. However, when the mature proces<strong>se</strong>s occured<br />

by precocious los<strong>se</strong>s, flauis ri<strong>se</strong> up in the transitionality<br />

that generate distorced behaviours such <strong>as</strong> exaggerating<br />

adhesion or detachement of the primordial affective<br />

objects. The plot of the film “A árvore de Natal” <strong>se</strong>rves<br />

<strong>as</strong> an argument for the pre<strong>se</strong>ntation of the theme, becau<strong>se</strong><br />

the film is very illustrative about the pathologies of the<br />

transitionality under the writer’s point of view.<br />

KEY-WORDS: transitional objects and transitional<br />

phenomena, the true and the fal<strong>se</strong> <strong>se</strong>lf, symbol, the<br />

facilitating environment.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

GADDINI, R. The precursor of Transitional Objects and<br />

Phenomena. The Journal of The Squiggle Foundation.<br />

Londres, Spring, n. 1, 1985.<br />

TUSTIN, F. Autismo e Psico<strong>se</strong> Infantil. Rio de Janeiro:<br />

Imago, 1975.<br />

WINNICOTT, D. W. Objetos transicionais e fenômenos<br />

transicionais. In: ______. Textos <strong>se</strong>lecionados: da<br />

Pediatria à Psicanáli<strong>se</strong>. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco<br />

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emocional normal.In: ______. Textos <strong>se</strong>lecionados: da<br />

Pediatria à Psicanáli<strong>se</strong>. Rio de Janeiro: Francisco Alves<br />

Ed., 1988.<br />

_______(1959) O destino do objeto transicional. In:<br />

WINNICOTT, C. (Org). Explorações psicanalític<strong>as</strong> D.<br />

W. WINNICOTT. Porto Alegre: Artes Médic<strong>as</strong>, 1994, p.<br />

44 - 48.<br />

_______( 1968) O efeito da perda sobre <strong>as</strong> crianç<strong>as</strong>. In:<br />

SHEPHERD R.; JOHNS, J.; ROBINSON, H. T. (Org.).<br />

Pensando sobre crianç<strong>as</strong>. Porto Alegre: Artes Médic<strong>as</strong>,<br />

1997, cap. 7, p. 64-65.<br />

Tereza Elizete Gonçalves é Psicanalista, Mestre em<br />

Psicologia Clínica pela PUC-SP, Professora e<br />

Supervisora no Departamento de Psicologia da<br />

Universidade de Taubaté.

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