A oferenda literária: referências musicais na escrita de Julio ... - FALE

Belo Horizonte, v. 7, p. 35-43, dez. 2003
Ajustadas as seções do conto aos movimentos da peça, na seção correspondente
ao canon por aumentação, as palavras refletem o sistema de composição (“há noites
agora em que tudo parece prolongar-se interminavelmente”). Na seção do canon
circular por tons, o texto diz que “como em uma modulação ascendente, os conflitos
duravam horas até a negociação ou o acordo momentâneo.” O retorno ao tom é mencionado:
“Cada madrigal de Gesualdo acrescentado ao repertório era um novo confronto, talvez
o retorno à noite em que o príncipe havia desembainhado o punhal olhando os amantes
nus e adormecidos.” O texto do largo do trio-sonata tem caráter reflexivo enquanto
os dos allegro têm diálogos, as vozes seguem direções contrárias, e se diz que “o
problema não é mudar de direção”. O cantus firmus que esteia uma das séries de
cânones vem ao texto: “Transforma-se, porém, em uma obsessão, uma espécie de cantus
firmus em torno do qual gira a vida do grupo.” Na seção do canon caranguejo, o
destino do grupo é Buenos Aires, seu ponto de partida.
Enfocando um grupo vocal que canta madrigais de Gesualdo, príncipe
italiano renascentista, alaudista e mecenas, “Clone” tem referências musicais que
vão de tango a ricercari. Tudo ocorre “diante de uma partitura”, “entre dois
concertos, quase entre dois madrigais”, “no final das turnês”. Os personagens
entrelaçam vida e música (“a mulher o enganava e ele a matou, um tango a mais”),
creditando ao tormento a belíssima música (“...encerrar-se em castelos onde haviam
de se tecer ao longo dos anos as refinadas teias de aranha dos madrigais”),
reverenciando um compositor que propôs em música o mesmo que Cortázar na literatura:
o esgarçamento do material em busca de suas possibilidades. “Clone” prossegue o
trabalho de Gesualdo, “buscando a melhor maneira de aliar os poemas à melodia como
o príncipe de Venosa fizera à sua obscura, genial maneira”. Segundo Cortázar, sua
grande surpresa, a certeza de que a idéia tinha um sentido maior que o vislumbrado
inicialmente, foi perceber que, no final do conto ainda sem desfecho, o fato do
último movimento da peça usar apenas sete vozes implicava a ausência de um dos
personagens, relacionando o conto, do ponto de vista temático, à tragédia de
Gesualdo, que matou a esposa Ana d’Avalos e seu amante por traição.
A música como tema do conto atesta seu valor na escrita de Cortázar. O
emparelhamento rigoroso da métrica do conto à da peça mostra o quanto o autor
aprofunda a influência da música em sua escrita. Mas Cortázar vai além do proposto:
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