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CONTO DE QUINHO Marco Aurélio, se chamava ... - ppgel/ileel/ufu

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A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516<br />

Seção Verbare, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 99-103, jan./jun. 2010<br />

Autor: Mateus Duque Erthal | e-mail: mateu<strong>se</strong>rthal@gmail.com<br />

<strong>CONTO</strong> <strong>DE</strong> <strong>QUINHO</strong><br />

<strong>Marco</strong> <strong>Aurélio</strong>, <strong>se</strong> <strong>chamava</strong>. Os colegas de trabalho o tratavam<br />

por Quinho, Quinho Biroba. Sabe-<strong>se</strong> lá o porquê do Biroba. É certo que<br />

Quinho (chamemos assim o rapaz) tinha poucos amigos, <strong>se</strong> os tinha.<br />

Restavam-lhe mesmo os colegas.<br />

Quinho era um funcionário da pequena fabriqueta de calçados de<br />

S., cidadezinha conhecida por grandes fazendas do período colonial e<br />

pelas coxinhas do bar de Seo Zéfiro. Tornaria mais interessante esta<br />

historia que agora conto <strong>se</strong> Quinho fos<strong>se</strong> um funcionário exemplar.<br />

Infelizmente, não era es<strong>se</strong> o caso. Quinho mal chegava ao medíocre, o<br />

que, convenhamos, estava de acordo não só com os calçados rasteiros<br />

que ele costurava, mas também com <strong>se</strong>us colegas, com a fábrica, com<br />

a cidade e <strong>se</strong>us habitantes. Talvez o único que fugis<strong>se</strong> des<strong>se</strong> mar de<br />

mediocridade fos<strong>se</strong> mesmo Seo Zéfiro, por suas coxinhas...<br />

Eu mesmo me lembro dos sapateiros de minha terra. Não cheguei<br />

a conhecer, pelo menos não me vem à memória, um só <strong>se</strong>nhor que<br />

usas<strong>se</strong> sapatos feitos por um sapateiro. Mas o fato é que havia, sim,<br />

uma pequena lojinha no centro, portas abertas (exceto na hora do<br />

almoço), cheiro de cola, <strong>se</strong>rragem e couro mofado. Lá dentro, um<br />

<strong>se</strong>nhor de óculos e lentes incrivelmente grossas, costurando com<br />

afinco calçados que pertenciam a clientes imaginários, escutava as<br />

músicas e notícias de futebol em <strong>se</strong>u radinho vermelho, velho. Mas<br />

mesmo este <strong>se</strong>nhor gozava de um certo respeito. Todos sabiam quem<br />

era o sapateiro, todos conheciam <strong>se</strong>us filhos e netos e sabiam, <strong>se</strong>m<br />

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A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516<br />

Seção Verbare, Uberlândia, ano 3, n. 5, p. 99-103, jan./jun. 2010<br />

Autor: Mateus Duque Erthal | e-mail: mateu<strong>se</strong>rthal@gmail.com<br />

sombra de dúvida, que o dinheiro do trabalho daquele homem os havia<br />

feito o que eram então.<br />

Mas nada disso <strong>se</strong> aplica a S.. Desde que <strong>se</strong> conhece por cidade,<br />

S. depende da produção de calçados daquela fabriqueta. Quem ali<br />

trabalha não é um sapateiro. Só costura, cola, corta, <strong>se</strong>rra, curte o<br />

couro, jornadas de oito horas, uma hora de almoço. A economia da<br />

cidade girava em torno daquilo tudo, mas o <strong>se</strong>ntimento que <strong>se</strong> tinha<br />

era um só: vergonha. Vergonha dos sapatos de má qualidade, mau<br />

gosto, de uso popular. Vergonha da fachada hedionda, quadrada, de<br />

tijolinhos vermelhos desbotados. Tudo cheirava a decadência, a uma<br />

decadência que parecia estar ali desde as origens da fabriqueta. Sim, a<br />

fabriqueta havia nascido decadente, e disso sabiam os que ali<br />

trabalhavam.<br />

Quinho, o medíocre, o ordinário, também <strong>se</strong> poderia <strong>se</strong> <strong>se</strong>ntir<br />

opressora e desoladamente decadente. Chegara aos trinta e três anos<br />

<strong>se</strong>m qualquer conquista ou realização digna de nota. E, <strong>se</strong>jamos<br />

sinceros, ele já havia <strong>se</strong> convencido de que não era capaz de realizar<br />

coisa alguma, nunca o havia sido. Nunca foi um bom aluno, nunca jogou<br />

futebol, nunca foi um bom pescador de lambaris, nunca soube<br />

conquistar uma garota. Não gostava de ler, de ir ao cinema (longe, na<br />

cidade de P....), de tomar cerveja no boteco. Não lia jornais, não sabia<br />

das guerras e de novos presidentes em paí<strong>se</strong>s distantes. De fato,<br />

deste último não <strong>se</strong> pode dizer que <strong>se</strong>ntiria falta...<br />

O que realmente importa é que Quinho vivia naquela bolha<br />

cinzenta de S. e ali morreria. Seguia sua vida <strong>se</strong>m amigos e <strong>se</strong>m amores,<br />

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Autor: Mateus Duque Erthal | e-mail: mateu<strong>se</strong>rthal@gmail.com<br />

comendo, dormindo e costurando sapatos. Há pessoas que esperam por<br />

toda a vida por algo de inusitado, um momento que venha finalmente a<br />

justificar sua existência. Nem <strong>se</strong>mpre este momento chega, e enfim<br />

contenta-<strong>se</strong> com o inexorável momento da morte, em que finalmente<br />

pode-<strong>se</strong> dizer que somos todos protagonistas (salvo, é claro, em<br />

ocasião de grandes desastres...). Quinho não tinha tal expectativa, pelo<br />

menos não lhe era consciente. Mas, com efeito, algo lhe ocorreu, algo<br />

digno de relato (mesmo que breve, como pede o gênero).<br />

Quinho saía às dezoito horas da fábrica, todos os dias. Nunca<br />

fazia hora extra, não valia a pena. Era, então, um dia de inverno. A<br />

essa hora, já qua<strong>se</strong> <strong>se</strong> havia posto o Sol e as montanhas de S.<br />

ajudavam a escurecer ainda mais cedo. O ar estava absolutamente<br />

parado e pairava um silêncio aterrador, o que não havia sido, porém,<br />

notado por Quinho. Este vinha caminhando pela estrada de pedras<br />

rodeada de mato denso que levava a sua casa. Seus colegas haviam <strong>se</strong><br />

dirigido à cidade, tomariam por aí algumas do<strong>se</strong>s de cachaça e leite-de-<br />

onça. Quinho dispensara os convites, alegando que o cansaço o impelia<br />

a dormir mais cedo.<br />

Caminhava olhando o céu, limitado pelas copas das árvores mais<br />

altas, e suas primeiras estrelas. Não que <strong>se</strong> interessas<strong>se</strong> realmente<br />

por elas. Só achava que <strong>se</strong>ria algo normal a <strong>se</strong> fazer. Pessoas<br />

ob<strong>se</strong>rvam estrelas, e o fazem por motivos diferentes. Quinho só as<br />

ob<strong>se</strong>rvava, nada mais.<br />

Mas talvez o cansaço, que era real, ou o fato de manter a<br />

cabeça ao alto por muito tempo, o levaram a uma espécie de torpor.<br />

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O ar <strong>se</strong> adensara, a ausência de ruídos era agora cada vez mais<br />

aparente, mais notável. O escuro <strong>se</strong> aprofundava, as sombras <strong>se</strong><br />

impunham cada vez mais pesadas. Foi neste momento que Quinho viu o<br />

homem.<br />

As estrelas iluminavam o peito do homem. Completamente nu, o<br />

corpo pintado de um vermelho sangue forte. Algumas penas<br />

acinzentadas eram visíveis por sobre <strong>se</strong>us ombros, como parte de um<br />

cocar ou asas recolhidas. Se colocara em frente a Quinho, exatamente<br />

no meio da estrada, e o olhava com olhos negros e absolutamente<br />

penetrantes. Chorava, em silêncio, <strong>se</strong>m soluços ou murmúrios de<br />

lamentação. A pintura vermelha de <strong>se</strong>u rosto escorria com suas<br />

lágrimas, deixando aparente sua pele de cor de jambo maduro. Trazia<br />

as mãos livres e alguns chocalhos no pé. Só <strong>se</strong> podia imaginar o<br />

barulho de tais chocalhos, o homem não <strong>se</strong> movia. Quinho não <strong>se</strong>ntia<br />

medo, não <strong>se</strong>ntia nada.<br />

Quinho desviou, passou ao lado do homem nu. Este o ob<strong>se</strong>rvava,<br />

o convidava a conversar. Talvez tives<strong>se</strong> algo realmente relevante a<br />

dizer, algo importante o suficiente para fazê-lo sair de onde quer ele<br />

tenha vindo apenas para este encontro, nesta cidade, nesta estrada,<br />

neste anoitecer, com este Quinho. Mesmo que tenha reconhecido o<br />

de<strong>se</strong>spero e a angústia no rosto e nas lágrimas do homem, Quinho<br />

apenas <strong>se</strong>guiu <strong>se</strong>u caminho, <strong>se</strong>m olhar para trás. Anoiteceu, enfim.<br />

Alguns dias depois, Quinho morreu. Foi acometido de febres,<br />

tremores, bubões, etc... Nada contagioso, nenhum de <strong>se</strong>us colegas<br />

apre<strong>se</strong>ntou os mesmos sintomas. A jornada de trabalho na fabriqueta<br />

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durou neste dia duas horas a menos, para que <strong>se</strong> pudes<strong>se</strong> comparecer<br />

ao funeral. E ali jazia Quinho, o medíocre, protagonista em sua morte.<br />

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