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A sociedade do século XIX era apoiada em bases ... - ppgel/ileel/ufu

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Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes<br />

AMOR X DOR: A INFLUÊNCIA DA SOCIEDADE E DA MORAL RELIGIOSA NAS PERSONAGENS<br />

FEMININAS EM “A DAMA DAS CAMÉLIAS” E “LUCÍOLA”<br />

Adriana Célia Alves (UFU)<br />

Aline Tavares e Soares Guimarães (UFU)<br />

Andréa Landell Martinelli (UFU) 3<br />

Márcio Issamu Yamamoto (UFU)<br />

“A<br />

influência não cria nada: ela desperta”, é esta reflexão de Gide é que vai nos<br />

conduzir ao longo deste trabalho, mostran<strong>do</strong> que o processo de criação pode<br />

se dar pela influência de outra obra, mas que isso não implica <strong>em</strong> cópia, e sim<br />

<strong>em</strong> insights para o desenvolvimento de uma nova obra.<br />

Para tal análise escolh<strong>em</strong>os nos restringir nas características <strong>do</strong> Romantismo <strong>do</strong> <strong>século</strong><br />

<strong>XIX</strong>, dan<strong>do</strong> especial ênfase na influência que o Romantismo francês teve sobre o Romantismo<br />

brasileiro, analisan<strong>do</strong> duas obras b<strong>em</strong> conhecidas <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>: “A dama das Camélias” de<br />

Alexandre Dumas e “Lucíola” de José de Alencar.<br />

A leitura dessas duas obras literárias nos levou a uma série de discussões principalmente<br />

sobre a atualidade das personagens f<strong>em</strong>ininas nesses <strong>do</strong>is romances, o papel da cortesã da<br />

<strong>sociedade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> e a tentativa de quebrar estereótipos. Notamos também uma forte<br />

influência da religião nas duas obras através da busca de redenção pelo amor puro ou mesmo<br />

pela <strong>do</strong>r, que, nos <strong>do</strong>is casos, se des<strong>do</strong>bra <strong>em</strong> morte.<br />

O romantismo... ici et ailleurs<br />

O romantismo é um movimento filosófico, artístico e estético surgi<strong>do</strong> na Al<strong>em</strong>anha e na<br />

Inglaterra no final <strong>do</strong> <strong>século</strong> XVIII, mas que logo se espalhou por toda a Europa. Já no Brasil, o<br />

romantismo aparece no <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> coincidin<strong>do</strong> com manifestações libertárias e abolicionistas<br />

como a independência política <strong>em</strong> 1822 no Segun<strong>do</strong> Reina<strong>do</strong> e a Guerra <strong>do</strong> Paraguai. Dessa<br />

forma, t<strong>em</strong>os o nacionalismo e a busca por uma identidade como umas das características<br />

marcantes desse perío<strong>do</strong>. Além disso, pod<strong>em</strong>os citar como características românticas o lirismo,<br />

o sonho, o escapismo, a subjetividade, o pessimismo, a sensibilidade, a idealização da mulher, o<br />

individualismo e a aventura.<br />

No Brasil, a lit<strong>era</strong>tura torna-se mais popular, e com a vinda da família real, a impressa se<br />

desenvolve propician<strong>do</strong> a divulgação <strong>do</strong>s romances publica<strong>do</strong>s <strong>em</strong> capítulos nos jornais da<br />

época, os “romances folhetinescos” que difund<strong>em</strong> a lit<strong>era</strong>tura e ating<strong>em</strong> cada vez mais pessoas,<br />

principalmente mulheres e o público jov<strong>em</strong>.<br />

Na França, o movimento romântico surge e se desenvolve no desenrolar da Revolução<br />

de 1789, sen<strong>do</strong> que esta se torna um mito para os escritores românticos2, principalmente por<br />

3 E-mail: de_martinelli@yahoo.com.br<br />

2 Os principais escritores românticos são: Victor Hugo, Théophile Gautier, G<strong>era</strong>rd de Nerval, Alexandre Dumas o pai e o filho,<br />

Alfred de Vigny, Alphonse de Lamartine e Jacques Michelet.<br />

A MARg<strong>em</strong> - Estu<strong>do</strong>s, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 27-38, jan./jun. 2008 27


Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes<br />

trazer a noção de indivíduo essencial, que reivindica a singularidade e a originalidade de cada<br />

pessoa.<br />

Les sentiments transmis sont toujours relatives à son état d’âme: la tristesse, la<br />

<strong>do</strong>uceur, la solitude, l´amour, le chagrin, le couer, les larmes, la <strong>do</strong>uler… 3<br />

E são essas características, incluin<strong>do</strong> também a religiosidade, que encontrar<strong>em</strong>os nas<br />

comparações das obras românticas “Lucíola”, de José de Alencar, e “La Dame aux Camelias” de<br />

Alexandre Dumas Filho.<br />

Os autores, as obras e as personagens... algumas comparações<br />

O papel social da mulher e da cortesã no <strong>século</strong> <strong>XIX</strong><br />

A <strong>sociedade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> <strong>era</strong> <strong>apoiada</strong> <strong>em</strong> <strong>bases</strong> religiosas cristãs, <strong>em</strong> que a família <strong>era</strong><br />

<strong>do</strong> tipo patriarcal, na qual as mulheres da época <strong>era</strong>m responsáveis pelos serviços <strong>do</strong>mésticos,<br />

pela reprodução e a educação <strong>do</strong>s filhos. Como se comprova no depoimento de Louisa Garret<br />

Anderson, mulher que viveu no <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>.<br />

Permanecer solteira <strong>era</strong> consid<strong>era</strong><strong>do</strong> uma desgraça e aos trinta anos uma mulher<br />

que não fosse casada <strong>era</strong> chamada de velha solteirona. Depois que seus pais<br />

morriam, o que elas podiam fazer, para onde poderiam ir? Se tivess<strong>em</strong> um irmão,<br />

poderiam viver <strong>em</strong> sua casa, como hóspedes permanentes e indeseja<strong>do</strong>s. Algumas<br />

4 5<br />

tinham que se manter e, então, as dificuldades apareciam.<br />

Desta forma qualquer manifestação f<strong>em</strong>inina que se desviasse <strong>do</strong>s patrões pré–<br />

estabeleci<strong>do</strong>s pela <strong>sociedade</strong> patriarcal <strong>era</strong> vista com maus olhos. Além disso, a virgindade <strong>era</strong><br />

consid<strong>era</strong>da fator de orgulho e definição da chamada “boa moral”, pois ser virg<strong>em</strong> <strong>era</strong> sinal de<br />

honestidade. Ao tomar como t<strong>em</strong>a as “mulheres cortesãs”, Alencar e Dumas denunciam a visão<br />

cruel que a <strong>sociedade</strong> tinha das prostitutas.<br />

– Qu<strong>em</strong> é esta senhora? Perguntei a Sá.<br />

– Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la?<br />

No <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> a alta <strong>sociedade</strong> foi invadida pelos elegantes bailes, pelas apresentações<br />

de óp<strong>era</strong>s, festas, passeios, cafés e bares. Nesse contexto v<strong>em</strong>os presente a figura da cortesã. A<br />

cortesã é uma mulher cuja profissão é o amor e cujos clientes pod<strong>em</strong> ser mais ou menos<br />

distintos, ela escolhe seus amantes. A maioria delas tinha seu próprio hotel, cavalos e<br />

carruagens, jóias, roupas e muita influência sobre os homens da época. Como pod<strong>em</strong>os ver na<br />

3 “Os sentimentos transmiti<strong>do</strong>s são s<strong>em</strong>pre relativos à seu esta<strong>do</strong> de alma: a tristeza, a <strong>do</strong>çura, a solidão, o amor, o pesar, o<br />

coração, as lágrimas, a <strong>do</strong>r...”, extraí<strong>do</strong> de um texto encontra<strong>do</strong> no site: .<br />

4 Depoimento de Louisa Garrett Anderson, escrito de 1860. Disponível <strong>em</strong>: .<br />

5 DUMAS FILHO, Alexandre. La dame aux Camélias. (TIRADO DO LIVRO ONLINE)<br />

6 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Editora Ática S.A., 1978. p. 12.<br />

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6


descrição de Alexandre Dumas <strong>em</strong> Dama das Camélias:<br />

Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes<br />

Or, s’il y a une chose que les f<strong>em</strong>mes du monde désirent voir, et il y avait là des<br />

f<strong>em</strong>mes du monde, c’est l’intérieur de ces f<strong>em</strong>mes, <strong>do</strong>nt les équipages<br />

éclaboussent chaque jour le leur, qui ont, comme elles et à côté d’elles, leur loge à<br />

l’Opéra et aux Italiens , et qui étalent, à Paris, l’insolente opulence de leur<br />

beauté, de leurs bijoux et de leurs scandales.(p. 10) 7<br />

Il n’en était pas ainsi pour Marguerite. Elle arrivait aux Champs-Élysées toujours<br />

seule, dans sa voiture, où elle s’effaçait le plus possible, l’hiver enveloppée d’un<br />

grand cach<strong>em</strong>ire, l’été vêtue de robes fort simples… Ses deux chevaux<br />

l’<strong>em</strong>portaient rapid<strong>em</strong>ent au Bois. Là, elle descendait de voiture, marchait<br />

pendant une heure, r<strong>em</strong>ontait dans son coupé, et rentrait chez elle au grand trot<br />

8 9<br />

de son attelage.<br />

O preconceito com as cortesãs pode ser percebi<strong>do</strong> <strong>em</strong> toda <strong>sociedade</strong> <strong>do</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>,<br />

Lúcia, personag<strong>em</strong> de José de Alencar, é o ex<strong>em</strong>plo de uma mulher inspirada nas cortesãs da<br />

época, assim perceb<strong>em</strong>os a própria personag<strong>em</strong> com consciência desse preconceito. V<strong>em</strong>os<br />

que tanto Alencar quanto Dumas exib<strong>em</strong> de forma crítica a <strong>sociedade</strong> da época, pois “A<br />

10<br />

<strong>sociedade</strong> que renega os vícios e a mesma que os alimenta”.<br />

– Ah, esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um<br />

carro de praça, que não pode recusar qu<strong>em</strong> chega. Estes objetos, este luxo, que<br />

comprei muito caro também, porque me custaram vergonha e humilhação, e nada<br />

11<br />

disto é meu.<br />

Que importa? Contanto que tenha goza<strong>do</strong> de minha mocidade! De que serve a<br />

velhice de mulheres como eu?<br />

Porque lhe falaste nesse tom? Naturalmente a trataste por senhora como da<br />

12<br />

primeira vez; e lhe fizeste duas a três barretadas.<br />

A religiosidade nas obras românticas “La dame aux camélias” de Alexandre Dumas e “Lucíola” de<br />

José de Alencar<br />

7 “Ora, se há algo que as mulheres da alta roda - é a intimidade dessas mulheres, cujo séqüito macula a cada dia os seus, que<br />

têm, como dama da <strong>sociedade</strong>, o seu assento no Opéra e no Theâtre Italiens e que espamarram, <strong>em</strong> Paris, a insolente<br />

opulência de sua beleza, de suas jóias e de seus escândalos.” Tradução: DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das Camélias.<br />

Porto Alegre: Editora L&PM. 2004. p. 10.<br />

8 FILHO DUMAS, Alexandre. A dama das Camélias. São Paulo: Editora. p. 15.<br />

9 “Não <strong>era</strong> assim com Marguerite. Ela chegava na Champs-Élysées s<strong>em</strong>pre só, no seu veiculo, onde fazia o possível para não<br />

chamar a atenção: no inverno, enrolada <strong>em</strong> uma grande cax<strong>em</strong>ira, no verão com vesti<strong>do</strong>s b<strong>em</strong> simples... Ela não passeava <strong>em</strong><br />

círculos na avenida Champs-Élysées, como faz<strong>em</strong> e faziam todas as suas colegas. Seus <strong>do</strong>is cavalos levaram rapidamente ao<br />

Bois. Lá descia da condução, caminhava durante uma hora, tornava a subir no cupê e voltava para casa ao trote de sua<br />

parelha.”<br />

10 ANDRADE, Juliana Cristina; SILVA, Francis Pauline Lopes. A prostituta na lit<strong>era</strong>tura: contestação e denúncia. Disponível <strong>em</strong>:<br />

.<br />

11 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Editora Ática S.A., 1978. p. 68.<br />

12 Id<strong>em</strong>, p. 20<br />

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Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes<br />

A religiosidade, sen<strong>do</strong> uma das características <strong>do</strong> Romantismo como movimento<br />

literário, permeia os romances de Dumas e Alencar <strong>em</strong> todas as esf<strong>era</strong>s sobressain<strong>do</strong>-se através<br />

<strong>do</strong>s personagens, da <strong>sociedade</strong>, b<strong>em</strong> como da alma humana e suas limitações.<br />

Os autores apresentam suas personagens, não só como cortesãs de uma <strong>sociedade</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, mas também como símbolos da condição humana que abriga <strong>em</strong> um só ser, o b<strong>em</strong> e<br />

o mal, o peca<strong>do</strong> e a redenção, o ser transgressor e o ser indulgente.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que dá indícios de que o amor divino redime e transforma o<br />

hom<strong>em</strong> como ser espiritual, Dumas questiona, <strong>em</strong> sua obra, quanto a se per<strong>do</strong>ar os<br />

transgressores, já que o ex<strong>em</strong>plo de Cristo <strong>era</strong> o <strong>do</strong> perdão diante da peca<strong>do</strong>ra Maria Madalena.<br />

Le christianisme est là avec sa merveilleuse parabole de l'enfant prodigue pour<br />

nous conseiller l'indulgence et le par<strong>do</strong>n. Jésus était plein d'amour pour ces âmes<br />

blessées par les passions des hommes, et <strong>do</strong>nt il aimait à panser les plaies en<br />

tirant le baume qui devait les guérir des plaies elles-mêmes. Ainsi, il disait à<br />

Madeleine: ‘Il te s<strong>era</strong> beaucoup r<strong>em</strong>is parce que tu as beaucoup aimé’, sublime<br />

par<strong>do</strong>n qui devait éveiller une foi sublime.<br />

Pourquoi nous ferions-nous plus rigides que le Christ? Pourquoi, nous en tenant<br />

obstinément aux opinions de ce monde qui se fait dur pour qu'on le croie fort,<br />

rejetterions-nous avec lui des âmes saignantes souvent de blessures par où,<br />

comme le mauvais sang d'un malade, s'épanche le mal de leur passé, et<br />

n'attendant qu'une main amie qui les panse et leur rende la convalescence du<br />

cœur? (L.D.A.C., p. 19) 13<br />

No Romance de José de Alencar, essa postura indulgente se manifesta mais<br />

explicitamente na opção de Paulo <strong>em</strong> aceitar a identidade de Lúcia como sen<strong>do</strong> sua também,<br />

não no aspecto devasso, mas no de redenção. Contu<strong>do</strong> essa verdade não é mais evidente na fala<br />

daquele, senão na desta. Ao aceitar a vida com Lúcia, ele abdica <strong>do</strong> privilégio de constituir uma<br />

família, ou uma vida <strong>em</strong> <strong>sociedade</strong> de uma forma tradicional, com o leito imacula<strong>do</strong>. Ele se torna<br />

o “salva<strong>do</strong>r” daquela que <strong>era</strong> rejeitada, desprezada e rechaçada por uma <strong>sociedade</strong> que defendia<br />

a integridade moral de seus indivíduos.<br />

Não te desprezo, tenho pena de ti. (L., p. 46)<br />

Quan<strong>do</strong> ela colou a sua boca na minha pareceu-me que to<strong>do</strong> o meu ser se difundia<br />

na ardente inspiração; senti fugir-me a vida, como o líqui<strong>do</strong> de um vaso hauri<strong>do</strong> <strong>em</strong><br />

ávi<strong>do</strong> e longo sorvo. (L., p. 47)<br />

Esta metáfora usada por Alencar ex<strong>em</strong>plifica a <strong>do</strong>ação da vida de Paulo para seu amor,<br />

Lúcia. “... obrigan<strong>do</strong>-o a sacrificar –lhe a honra, a dignidade, o sossego, bens que ela não<br />

possui...” (p.55) “...Não sou eu criatura tua? Não renasci pela luz que derramaste <strong>em</strong> minha<br />

13 “O Cristianismo está presente com sua maravilhosa parábola <strong>do</strong> Filho Pródigo para nos aconselhar à indulgência e ao<br />

perdão. Jesus tinha muito amor por essas almas feridas pelas paixões <strong>do</strong>s homens. Ele amava tratar suas feridas tiran<strong>do</strong> delas<br />

o bálsamo que seria capaz de curá-las profundamente. Assim ele dizia à Madalena: “Muito te será da<strong>do</strong>, porque muito<br />

amaste,” sublime perdão que deveria despertar uma fé sublime. Por que nós seriamos mais rígi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que o Cristo? Por que<br />

aceitaríamos tão obstinadamente a opinião deste mun<strong>do</strong> que se faz duro para que o acredit<strong>em</strong>os forte. Rejeitaríamos assim as<br />

almas sangran<strong>do</strong> pelas feridas por onde se esgota o mal de ser passa<strong>do</strong>, que esp<strong>era</strong>m somente uma mão amiga que não os<br />

cure e lhes devolva a convalescência <strong>do</strong> coração?” (tradução nossa).<br />

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alma? Não és meu senhor? meu artista, meu pai e meu cria<strong>do</strong>r?” (L. p.121)<br />

Esses autores também denunciam o meio <strong>em</strong> que viv<strong>em</strong> essas pessoas. Dumas, ao<br />

comentar o status das madames e senhores quan<strong>do</strong> da venda das posses de Marguerite, critica a<br />

postura hipócrita daquela <strong>sociedade</strong>. Alencar a delata como uma <strong>sociedade</strong> moralista. Porém<br />

não se conforman<strong>do</strong> com este “mal <strong>do</strong> <strong>século</strong>”, eles propõ<strong>em</strong> um caminho diferente daquele<br />

que suas <strong>sociedade</strong>s estavam seguin<strong>do</strong>: o da hipocrisia vestida de falso moralismo religioso.<br />

Se tivesse ao meu la<strong>do</strong> o Sr. Couto, estou certo que ele me aconselharia para as<br />

ocasiões difíceis uma reticência. Com efeito, a reticência não é a hipocrisia no livro,<br />

como a hipocrisia é a reticência na <strong>sociedade</strong>?(L., p. 38).<br />

C'est à ma génération que je m'adresse, ...La science du bien et du mal est à<br />

jamais acquise; la foi se reconstruit, le respect des choses saintes nous est rendu,<br />

et si le monde ne se fait pas tout à fait bon, il se fait du moins meilleur. Les efforts<br />

de tous les hommes intelligents tendent au même but, et toutes les grandes<br />

volontés s'attellent au même principe: soyons bon, soyons jeune, soyons vrais! Le<br />

mal n'est qu'une vanité, ayons l'orgueil du bien, et surtout ne désespérons pas. Ne<br />

méprisons pas la f<strong>em</strong>me qui n'est ni mère, ni sœur, ni fille, ni épouse. Ne<br />

réduisons pas l'estime à la famille, l'indulgence à l'égoïsme. Puisque le ciel est<br />

plus en joie pour le repentir d'un pécheur que pour cent justes qui n'ont jamais<br />

péché, essayons de réjouir le ciel. Il peut nous le rendre avec usure. Laissons sur<br />

notre ch<strong>em</strong>in l'aumône de notre par<strong>do</strong>n à ceux que les désirs terrestres ont<br />

perdus, que sauv<strong>era</strong> peut-être une espérance divine, et, comme disent les bonnes<br />

vieilles f<strong>em</strong>mes quand elles conseillent un r<strong>em</strong>ède de leur façon, si cela ne fait<br />

pas de bien, cela ne peut faire de mal. (L. D. A. C., p. 20) 14<br />

Por meio da personag<strong>em</strong>, Alencar tenta, na fala de Lúcia, quebrar o paradigma religioso<br />

da época e mostra que o livro favorito de Lúcia <strong>era</strong> a própria Bíblia. Nas entrelinhas, ele critica os<br />

moralistas de então e propõe uma nova forma de se ver o que <strong>era</strong> analisa<strong>do</strong> de uma forma<br />

legalista, s<strong>em</strong> compaixão e amor. Ou seja, como poderia uma cortesã ter como leitura predileta<br />

um livro sagra<strong>do</strong> que a exortaria a uma conduta regrada diferente daquela <strong>em</strong> que Lúcia vivia? A<br />

cortesã que luta contra suas limitações na obra literária, não representa simplesmente a<br />

limitação de uma meretriz, mas sim aquela da própria humanidade com seus dil<strong>em</strong>as<br />

existenciais, morais e espirituais. Mulheres como Lúcia e Marguerite personificam não só a<br />

licenciosidade das mulheres daquela época, mas também a dualidade humana de lutar e decidir<br />

entre assumir condutas que lev<strong>em</strong> ao b<strong>em</strong> ou ao mal.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que os autores pintam a imag<strong>em</strong> dessas mulheres como virginais,<br />

inocentes e puras, eles também revelam a concupiscência da carne que as leva a viver de<br />

maneira dissoluta. “Tens razão, Laura, perdi a vergonha para ganhar o dinheiro de que<br />

14 “É a minha g<strong>era</strong>ção que eu me dirijo,... A ciência <strong>do</strong> b<strong>em</strong> e <strong>do</strong> mal nunca é adquirida; a fé se reconstrói; o respeito às coisas<br />

santas nos é devolvi<strong>do</strong> e se o mun<strong>do</strong> não se faz completamente bom, ele se faz pelo menos melhor. Os esforços de to<strong>do</strong>s os<br />

homens bons se dirig<strong>em</strong> para o mesmo objetivo, e todas as grandes vontades se atrelam ao mesmo princípio: sejamos bons,<br />

sejamos jovens, sejamos verdadeiros! O mal é somente uma vaidade, tenhamos orgulho <strong>em</strong> fazer o b<strong>em</strong> e sobretu<strong>do</strong> não nos<br />

desesper<strong>em</strong>os. Não desprez<strong>em</strong>os a mulher que não é mãe, irmã, filha, n<strong>em</strong> esposa. Não produzamos a amizade somente a<br />

família, à indulgência, ao egoísmo. Uma vez que o céu fica mais feliz pelo arrependimento de um peca<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que por c<strong>em</strong><br />

justos que nunca pecaram, tent<strong>em</strong>os agradá-lo. Deix<strong>em</strong>os sobre nosso caminho a dádiva <strong>do</strong> nosso perdão àqueles que os<br />

desejos terrestres fiz<strong>era</strong>m se perder, que salvará talvez uma esp<strong>era</strong>nça divina, e como diz o dita<strong>do</strong> popular: se o r<strong>em</strong>édio não<br />

faz b<strong>em</strong>, ele não pode fazer mal. (tradução nossa).<br />

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precisas; e desci a este ponto, Nina, desde que me habituei a desprezar o insulto, tanto como o<br />

corpo que nós costumamos vender.” (p.44)<br />

A apresentação desses estereótipos contrapon<strong>do</strong>-se à religiosidade r<strong>em</strong>ete a imag<strong>em</strong><br />

das prostitutas e santas que a tradição judaica cristã traz para a civilização ocidental: Maria<br />

Madalena, a prostituta redimida, e Maria, a mãe de Cristo.<br />

Comment sa vie ardente laissait-elle au visage de Marguerite l'expression<br />

virginale, enfantine même qui le caractérisait, c'est ce que nous sommes forcé de<br />

constater sans le comprendre. (L.D.A.C., p. 11) 15<br />

[...] Mas se me voltava para aquela fisionomia <strong>do</strong>ce e calma, perfumada com uns<br />

longes de melancolia; se encontrava o seu olhar límpi<strong>do</strong> e sereno; se via o gesto<br />

quase infantil, o sorriso meigo e a atitude singela e modesta [,..](L., p. 18)<br />

Ao retroceder no t<strong>em</strong>po e na história, observamos que esta imag<strong>em</strong> da Virg<strong>em</strong> Maria<br />

pode corresponder à imag<strong>em</strong> das deusas da mitologia grega e romana, que ora são defensoras<br />

<strong>do</strong> casamento, da família e <strong>do</strong> lar, ora são as deusas <strong>do</strong> amor carnal, <strong>do</strong> prazer libidinoso, às<br />

vezes incestuoso.<br />

L<strong>em</strong>br<strong>em</strong>o-nos de Afrodite e Vênus, entre outras que, posteriormente serão absorvidas<br />

pela tradição judaico-cristã simbolizan<strong>do</strong> a virg<strong>em</strong> Maria ou Nossa Senhora. Daí a possibilidade<br />

de interpretarmos a imag<strong>em</strong> da Nossa Senhora da Glória, no primeiro encontro de Paulo com<br />

Lúcia, no Rio de Janeiro, e a descrição tão ambígua da “Senhora Lúcia” e da “Cortesã Lúcia”,ou<br />

“Lúcifer”, estrela caída, como diriam os amigos de Sá.<br />

[...] À mais leve resistência <strong>do</strong>brava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os<br />

dentes de pérola talhavam mais rápi<strong>do</strong>s <strong>do</strong> que a tesoura o cadarço de seda que lhe<br />

opunha obstáculos...e eu vi aparecer aos meus olhos pasmos, nadan<strong>do</strong> <strong>em</strong> ondas<br />

de luz, no esplen<strong>do</strong>r de sua completa nudez, a mais formosa bacante que esmagara<br />

outrora com o pé lascivo as uvas de Corinto.” (L., p. 24-5)<br />

A mensag<strong>em</strong> central, proveniente da fé cristã, a que os autores faz<strong>em</strong> alusão é a <strong>do</strong><br />

amor sacrificial e <strong>do</strong> perdão incondicional o qual o hom<strong>em</strong> não merece, poden<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>,<br />

receber.<br />

O sacrifício que tanto Marguerite como Lúcia faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> prol <strong>do</strong> amor puro, místico e<br />

transcendental é o que leva à purificação da alma e, aos olhos humanos, serve como “preço”<br />

pago pelos peca<strong>do</strong>s outrora cometi<strong>do</strong>s pelo peca<strong>do</strong>r, elevan<strong>do</strong>-o até mesmo a um status de<br />

deificação.<br />

Celle chez qui me trouvais était morte: les f<strong>em</strong>mes les plus vertueuses pouvait<br />

<strong>do</strong>nc pénétrer jusque dans sa chambre. La mort avait purifié l'air de ce cloaque<br />

splendide,... Malheureus<strong>em</strong>ent les mystères étaient morts avec la déesse, et,<br />

malgré toute leur bonne volonté, ces dames ne surprirent que ce qui était à<br />

15 “Como é que o seu ardente viver deixava no rosto de Margarida a expressão virginal, infantil até, que o caracterizava, é o<br />

que somos obriga<strong>do</strong>s a afirmar s<strong>em</strong> o perceber.”<br />

A MARg<strong>em</strong> - Estu<strong>do</strong>s, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 27-38, jan./jun. 2008 32


As obras e as personagens<br />

vendre depuis le décès,[...] ”(L.D.A.C., p. 2) 16<br />

Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes<br />

Estas páginas foram escritas ...para lhe transmitir um perfume da mulher sublime,<br />

que passou na minha vida como sonho fugace.<br />

Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que flui<strong>do</strong> misterioso, que comunica<br />

com o nosso espírito. A senhora há de amar Lúcia, tenho a certeza; talvez pois<br />

aquela relíquia, ainda impregnada de seiva e fragrância da criatura Angélica, lhe<br />

revele o que eu não pude exprimir. (L., p. 128)<br />

É interessante observar o trabalho que os autores desenvolv<strong>em</strong>, uma vez que ambas as<br />

obras, lingüísticamente, são muito b<strong>em</strong> escritas, ten<strong>do</strong> <strong>em</strong> vista a construção <strong>do</strong>s diálogos, o<br />

desenvolvimento das descrições tanto das personagens como da <strong>sociedade</strong> da época e o<br />

vocabulário escolhi<strong>do</strong>. Esses são procedimentos encontra<strong>do</strong>s pelos autores para fazer um<br />

retrato da <strong>sociedade</strong> carioca e parisiense de acor<strong>do</strong> com a visão de cada um deles.<br />

As histórias têm um narra<strong>do</strong>r s<strong>em</strong>elhante, ambas são contadas por pessoas que<br />

‘ouviram’ relatos de outr<strong>em</strong> e receb<strong>era</strong>m a incumbência de redigir um livro relatan<strong>do</strong> a história<br />

de vida de duas mulheres admiradas pela <strong>sociedade</strong>, apesar de ser<strong>em</strong> conhecidas por sua<br />

profissão: cortesãs.<br />

A descrição das personagens é outro aspecto similar nas duas obras. Paulo descreve<br />

Lúcia como um ser puro, cândi<strong>do</strong>, limpo, s<strong>em</strong>pre d<strong>em</strong>onstran<strong>do</strong> alto grau de admiração por ela,<br />

como pod<strong>em</strong>os observar nos trechos abaixo:<br />

[...] uma linda moça, que parara um instante para cont<strong>em</strong>plar no horizonte as<br />

nuvens brancas esgarçadas sobre o céu azul e estrela<strong>do</strong>. Admirei-lhe <strong>do</strong> primeiro<br />

olhar um talhe esbelto e de supr<strong>em</strong>a elegância. O vesti<strong>do</strong> que o moldava <strong>era</strong><br />

cinzento com orlas de velu<strong>do</strong> castanho e dava esquisito realce a um desses rostos<br />

suaves, puros e diáfanos, que parec<strong>em</strong> vão desfazer-se ao menor sopro, como os<br />

tênues vapores da alvorada. Ressumbrava na sua muda cont<strong>em</strong>plação <strong>do</strong>ce<br />

melancolia e não sei que laivos de tão ingênua castidade, que o meu olhar<br />

repousou calmo e sereno na mimosa aparição. 17 (grifo nosso).<br />

Uma encanta<strong>do</strong>ra menina, sentada ao la<strong>do</strong> de uma senhora i<strong>do</strong>sa, se recostava<br />

preguiçosamente sobre o macio estofo, e deixava pender pela cobertura derreada<br />

<strong>do</strong> carro a mão pequena que brincava com um leque de penas escarlates. Havia<br />

nessa atitude cheia de aban<strong>do</strong>no muita graça; mas graça simples, correta e<br />

harmoniosa; não desagarro com ares altivos, decidi<strong>do</strong>s, que afetam certas mulheres<br />

à moda.<br />

No momento <strong>em</strong> que passava o carro diante de nós, ven<strong>do</strong> o perfil suave e delica<strong>do</strong><br />

que iluminava a aurora de um sorriso raian<strong>do</strong> apenas no lábio mimoso, e a fronte<br />

límpida que à sombra <strong>do</strong>s cabelos negros brilhava de viço e juventude, não me<br />

pude conter de admiração.<br />

Durante que se desimpedia o caminho, tínhamos para<strong>do</strong> para melhor admirá-la; e<br />

16 “Aquela <strong>em</strong> casa de qu<strong>em</strong> eu me encontrava, já morr<strong>era</strong>; as mais virtuosas senhoras podiam por conseguinte penetrar no<br />

seu quarto. A morte purificara o ar dessa casa esplêndida ,... Infelizmente os mistérios tinham morri<strong>do</strong> com a deusa, e, apesar<br />

de toda a sua boa vontade, essas senhoras não surpreend<strong>em</strong> senão o que estava para se vender depois <strong>do</strong> óbito,...”<br />

17 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo. Editora Moderna. 1998. p. 19.<br />

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então ainda mais notei a serenidade de seu olhar que nos procurava com ingênua<br />

curiosidade, s<strong>em</strong> provocação e s<strong>em</strong> vaidade[...] 18<br />

(grifo nosso)<br />

Essa atitude descritiva segue <strong>em</strong> toda obra, um artifício utiliza<strong>do</strong> para que o leitor<br />

também admire a personag<strong>em</strong>. Esse artifício é utiliza<strong>do</strong>, de forma muito similar, na obra de<br />

Alexandre Dumas Filho, Marguerite também é descrita como ex<strong>em</strong>plo de beleza, candura e<br />

simplicidade:<br />

[...] et avoir alors r<strong>em</strong>arque en elle une distinction peu commune à ses<br />

s<strong>em</strong>blables, distinction que rehaussait encore une beauté vraiment<br />

exceptionnelle. 19<br />

Grande et mince jusqu’à l’exagération, elle possédait au suprême degré l’art de<br />

faire disparaître cet oubli de la nature par le simple arrang<strong>em</strong>ent des choses<br />

qu’elle révélait. 20<br />

La tête, une merveille, était l’objet d’une coquetterie particulière. Elle était toute<br />

petite, et sa mère, comme dirait de Musset, s<strong>em</strong>blait l’avoir faite ainsi pour la<br />

faire avec soin. 21<br />

Comment sa vie ardente laissait-elle au visage de Marguerite l’expression<br />

virginale, enfantine même qui le caractérisait, c’est ce que nous sommes forcés<br />

22 23<br />

de constater sans le comprendre. (grifo nosso)<br />

Quan<strong>do</strong> l<strong>em</strong>os as duas obras e nos dispomos a observar os pontos <strong>em</strong> comum,<br />

perceb<strong>em</strong>os que Marguerite e Lúcia têm personalidades e atitudes muito parecidas: a vida de<br />

prostituição, o desejo de redenção, a mudança de vida pelo sofrimento, a separação da alma<br />

pura e <strong>do</strong> corpo impuro através da morte. Acrescentamos ainda, a personalidade forte de Lúcia,<br />

pois mesmo não ‘merecen<strong>do</strong>’ o amor puro de Paulo, ela resolve fazer uma mudança completa<br />

de vida, muda-se para o campo para viver ‘dignamente’ ao la<strong>do</strong> da irmã, como pod<strong>em</strong>os<br />

comprovar através <strong>do</strong>s trechos a seguir:<br />

– Amanhã mu<strong>do</strong>-me. Venha-me buscar ao romper <strong>do</strong> dia. Desejo... careço de<br />

entrar <strong>apoiada</strong> ao seu braço na casa onde vou viver a minha nova existência. 24<br />

(grifo<br />

nosso)<br />

Lúcia não poderia aceitar o amor de Paulo, mas gostava de tê-lo s<strong>em</strong>pre por perto, pois<br />

18 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Editora Moderna, 1998. p. 21.<br />

19 “... e ter então nota<strong>do</strong> nela uma certa distinção pouco vulgar entre as suas s<strong>em</strong>elhantes, distinção que <strong>era</strong> ainda realçada<br />

pela sua beleza verdadeiramente excepcional.” (tradução nossa)<br />

20 “Alta e magra até quase exag<strong>era</strong>r, possuia no supr<strong>em</strong>o grau a arte de fazer desaparecer esse esquecimento da natureza pelo<br />

mo<strong>do</strong> singelo com que arranjava as coisas que a revestiam.” (tradução nossa)<br />

21 “A cabeça, uma maravilha, <strong>era</strong> objeto de uma garridice espetacular. Era pequenina, e sua mãe, como diria Musset, parecia<br />

tê-la feito assim para a fazer com mais perfeição.” (tradução nossa)<br />

22 DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das Camélias.<br />

23 “Como uma vida ardente ainda deixou <strong>em</strong> Marguerite uma expressão virginal, e até mesmo infantil, que somos obriga<strong>do</strong>s a<br />

constatar s<strong>em</strong> entender.” (tradução nossa)<br />

24 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo. Editora Moderna. 1998. p. 107.<br />

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os olhos de Paulo s<strong>em</strong>pre a olhavam com brandura, simplicidade e admiração.<br />

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– Paulo! Paulo... Tu b<strong>em</strong> sabes que com essa palavra me farias cometer crimes, se<br />

crimes foss<strong>em</strong> necessários para te provar que eu só vivo da vida que me dás, e me<br />

podes tirar com um sopro. Não sou eu criatura tua? Não renasci pela luz que<br />

derramaste <strong>em</strong> minha alma? Não és meu senhor, meu artista, meu pai e meu<br />

cria<strong>do</strong>r? 25<br />

É com estas palavras que perceb<strong>em</strong>os a influência da presença de Paulo na vida da excortesã,<br />

e também uma imag<strong>em</strong> cristã: renascer pela luz.<br />

Marguerite, decide mudar de vida com o amor de Armand Duval, mas quan<strong>do</strong> é<br />

obrigada a deixá-lo, ela decide voltar a vida antiga, como observamos no bilhete que ela envia<br />

terminan<strong>do</strong> o relacionamento:<br />

Outras comparações<br />

A l’heure ou vous lirez cette lettre, Armand, je s<strong>era</strong>i déjà la maîtresse d’un autre<br />

homme. Tout est <strong>do</strong>nc fini entre nous. Retournez auprès de votre père, mon ami,<br />

allez revoir votre sœur, jeune fille chaste, ignorante de toutes nos misères, et<br />

auprès de laquelle vous oublierez bien vite ce que vous aura fait souffrir cette<br />

fille perdue que l’on nomme Marguerite Gautier, que vous avez bien voulu aimer<br />

un instant, et qui vous <strong>do</strong>it les seuls moments heureux d’une vie qui, elle l’espère,<br />

26<br />

ne s<strong>era</strong> pas longue maintenant.<br />

É possível observar ainda nesse trecho que Marguerite deseja morrer e faz de tu<strong>do</strong> para<br />

que isso aconteça b<strong>em</strong> rápi<strong>do</strong>, por isso volta à vida de cortesã, aos bailes e às orgias. Ela prefere<br />

morrer à continuar a viver s<strong>em</strong> a presença de Armand.<br />

Duas passagens significativas <strong>do</strong>s romances “Lucíola” e “A dama das Camélias” nos levam<br />

a refletir a respeito da s<strong>em</strong>elhança entre as duas obras. A primeira passag<strong>em</strong> pode ser<br />

encontrada no capitulo XV <strong>do</strong> livro “Lucíola” 27 e a segunda no capitulo III de “A dama das<br />

, sen<strong>do</strong> que ambas têm <strong>em</strong> um objeto, um livro, o centro da tensão de ambos<br />

Camélias” 28<br />

capítulos.<br />

Começan<strong>do</strong> pela comparação que nos parece mais visível, t<strong>em</strong>os no capitulo XV de<br />

“Lucíola” um interessante acontecimento: <strong>em</strong> uma de suas costumeiras visitas à casa de Lúcia,<br />

Paulo se depara com uma situação que lhe chama atenção: “Chegan<strong>do</strong> uma tarde vi Lúcia<br />

29<br />

assustar-se e esconder sob amplas <strong>do</strong>bras <strong>do</strong> vesti<strong>do</strong> um objeto que me pareceu um livro” .<br />

A novidade não se dá pelo ato de leitura da cortesã, e sim pela tentativa de esconder o<br />

25 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo. Editora Moderna. 1998. p. 114.<br />

26 “À hora <strong>em</strong> que ler esta carta, Armand, eu serei amante de outro hom<strong>em</strong>. Está tu<strong>do</strong> acaba<strong>do</strong> entre nós. Volte para junto de<br />

seu pai, vá tornar a ver sua irmã, casta menina que ignora todas as nossas misérias, e junto da qual b<strong>em</strong> depressa esquecerá<br />

as <strong>do</strong>res que lhe infligiu esta mulher perdida que se chama Marguerite Gautier, que se dignou amar por um instante, e que<br />

lhe deve os únicos momentos felizes de uma vida, essa a esp<strong>era</strong>nça que ela t<strong>em</strong>, que já agora não será longa.” (tradução<br />

nossa)<br />

27 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Editora Ática S.A., 1978. 128 p.<br />

28 FILHO, Alexandre Dumas. A Dama das Camélias. São Paulo: Editora Brasileira LTDA, 1963. (?)<br />

29 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Editora Ática S.A., 1978. p. 82.<br />

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que estava len<strong>do</strong> e depois, ainda maior admiração, pela obra que estava len<strong>do</strong>: “Era um livro<br />

muito conheci<strong>do</strong> – A Dama das Camélias” 30 . Não pod<strong>em</strong>os supor que o pensamento <strong>do</strong><br />

personag<strong>em</strong> seja um reca<strong>do</strong> <strong>do</strong> próprio José de Alencar sobre a influência que sofreu de<br />

Dumas31, mas pod<strong>em</strong>os inferir que pelo menos a intenção <strong>era</strong> de mostrar a tentativa de busca<br />

de um “espelho” na cortesã de Dumas pela própria Lúcia:<br />

Muitas vezes lê-se, não por hábito ou distração, mas pela influência de uma<br />

simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas<br />

páginas mudas de um escritor.Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o<br />

32<br />

amor? Sonharia com as afeições puras <strong>do</strong> coração?<br />

Neste momento é importante estabelecer a ligação da obra de Alencar com a de Dumas,<br />

uma vez que no capítulo III de “A Dama das Camélias”, o narra<strong>do</strong>r trata com especial atenção<br />

33<br />

um livro da cortesã que havia si<strong>do</strong> leiloa<strong>do</strong>. Trata-se de Manon Lescaut de Giacomo Puccini , e<br />

o título chama tanta atenção quanto a dedicatória que havia na primeira página.<br />

Não se torna clara a intenção <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r na compra de tal livro, mas a análise que faz<br />

dele, se ocupan<strong>do</strong> de alguns parágrafos nos levam a pensar que, assim como na obra de José de<br />

Alencar, Alexandre Dumas Filho nos queria dar uma pista a respeito da construção da<br />

personag<strong>em</strong> de Marguerite ou até mesmo mostrar a influência que teria recebi<strong>do</strong> de Puccini.<br />

Nas palavras <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r:<br />

Manon Lescaut est une touchante histoire (…) Manon était morte dans un<br />

désert, il est vrai, mais dans les bras de l’homme qui l’aimait avec toutes les<br />

énergies de l’âme, qui, morte, lui creusa une fosse, l’arrosa de ses larmes et y<br />

ensevelit son cœur; tandis que Marguerite, pécheresse comme Manon, et peut-être<br />

convertie comme elle, était morte au sein d’un luxe somptueux, s’il fallait en<br />

croire ce que j’avais vu, dans le lit de son passé, mais aussi au milieu de ce désert<br />

du cœur, bien plus aride, bien plus vaste, bien plus impitoyable que celui dans<br />

34 35<br />

lequel avait été enterrée Manon”<br />

Mas não é só o narra<strong>do</strong>r que faz a comparação de Marguerite com Manon, a própria<br />

36<br />

Marguerite o faz no capítulo XVII <strong>do</strong> mesmo livro na versão francesa original . Nas palavras de<br />

Armand: “Elle me disait toujours que lorsqu’une f<strong>em</strong>me aime, elle ne peut pas faire ce que<br />

faisait Manon...”. Mesmo que a comparação seja de forma a rejeitar a s<strong>em</strong>elhança, tornan<strong>do</strong> o<br />

30 Id<strong>em</strong>, p.83.<br />

31 Segun<strong>do</strong> muitos críticos, como Joaquim Nabuco, a obra de Alencar não passa de uma cópia <strong>do</strong> romance francês, para tal<br />

vide: .<br />

32 Pensamentos de Paulo sobre o motivo que teria leva<strong>do</strong> Lucia a escolher tal romance para leitura. ALENCAR, José de.<br />

Lucíola. São Paulo: Editora Ática S.A., 1978. p. 83.<br />

33 Giacomo Puccini é autor da óp<strong>era</strong> entitulada Manon Lescaut.<br />

34 FILHO, Alexandre Dumas. A dama das Camélias. São Paulo: Editora Brasileira LTDA, 1963. p. 255. (As palavras <strong>em</strong> negrito<br />

são para reforço da comparação)<br />

35 “Manon Lescault é s<strong>em</strong> dúvida uma tocante história (...) Manon morr<strong>era</strong> num deserto, é verdade, mas morr<strong>era</strong> nos braços<br />

<strong>do</strong> hom<strong>em</strong> que a amava com todas as energias de sua alma, que lhe abriu a cova, regou-a com suas lágrimas, e nela sepultou<br />

o seu próprio coração; enquanto Margarida, peca<strong>do</strong>ra como Manon, e talvez convertida como esta, morr<strong>era</strong> no seio de um<br />

luxo suntuoso, a avaliar pelo que eu vira, no leito <strong>do</strong> seu passa<strong>do</strong>, mas também no meio desse deserto <strong>do</strong> coração, muito<br />

mais ári<strong>do</strong>, muito mais vasto, muito mais despie<strong>do</strong>so <strong>do</strong> que aquele <strong>em</strong> que fora sepultada Manon.”<br />

36 Disponível <strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 2 abr. 2008.<br />

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ex<strong>em</strong>plo de Manon um oposto <strong>do</strong> que Marguerite consid<strong>era</strong>va como amor, t<strong>em</strong>os de ressaltar<br />

esse trecho da obra uma vez que nos r<strong>em</strong>ete à mesma atitude de Lúcia ao se comparar com<br />

Marguerite.<br />

Isso se dá a partir da leitura de “Dama das Camélias” por Lúcia. Ela nega a possibilidade<br />

de que um dia amaria, uma vez que o amor não pode ter vínculos com o prazer carnal, <strong>do</strong><br />

contrário seria confundi<strong>do</strong> com um vício. Para Margarida isso já se daria de outra forma: o amor<br />

puro e verdadeiro purificaria o corpo de peca<strong>do</strong> e este pensamento é reforça<strong>do</strong> nas palavras de<br />

Gustavo: “... a inocência das mulheres pertence ao primeiro amor e não ao primeiro amante”. 37<br />

Lúcia ainda enfatiza a distância entre o prazer e o amor:<br />

O que há de real e de melhor na vida é o prazer, e esse dispensa o coração. O<br />

prazer que se dá e recebe é calmo e <strong>do</strong>ce, s<strong>em</strong> inquietação e s<strong>em</strong> receios. Não<br />

conhece o ciúmes que desenterra o passa<strong>do</strong>. (...) Quan<strong>do</strong> lhe ofereço um beijo<br />

meu, que importa ao senhor que mil outros tenham toca<strong>do</strong> o lábio que o provoca?<br />

A água lavou a boca, como o copo que serviu ao festim; e o vinho não é menos<br />

bom, n<strong>em</strong> menos generoso, no cálice usa<strong>do</strong>, <strong>do</strong> que no cálice novo.<br />

Mas o tom – descrito por Paulo – com que Lúcia diz estas palavras e depois ainda como<br />

confirma a Paulo que n<strong>em</strong> ela é Marguerite e n<strong>em</strong> Paulo é Arman<strong>do</strong>, soa a Paulo como uma<br />

38<br />

“solenidade que me pareceu caricata” . Lúcia não aceita o que Marguerite consid<strong>era</strong> como<br />

amor, mas o nervosismo descrito pelo personag<strong>em</strong> quan<strong>do</strong> Lúcia diz: “O amor! O amor para<br />

uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-me” e também pela<br />

pergunta que faz a Paulo “E pod<strong>em</strong>os nós ser amadas de outro mo<strong>do</strong>? Como? Arrependen<strong>do</strong>nos,<br />

e rompen<strong>do</strong> com o passa<strong>do</strong>?”, nos levam a crer que a personag<strong>em</strong> busca sua “forma de<br />

amar”, mesmo que sen<strong>do</strong> rejeitan<strong>do</strong> a posição de Margarida que, uma cortesã como ela,<br />

escolheu o amor.<br />

A riqueza encontrada nesses <strong>do</strong>is trechos das obras nos deixam claro o espelhamento<br />

que ambos autores buscaram <strong>em</strong> outras obras para a criação ou mesmo para a justificativa da<br />

ação das personagens, que nos <strong>do</strong>is casos negam tomar rumos pareci<strong>do</strong>s com as personagens<br />

<strong>do</strong>s livros que lê<strong>em</strong>. De qualquer forma, a influência de uma obra na outra só nos mostra a<br />

riqueza <strong>do</strong> que pode ser desperta<strong>do</strong> a partir de uma leitura, s<strong>em</strong> que se rotule qualquer uma<br />

delas como um mero plágio.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, 1981. 128 p.<br />

ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ed. Moderna, 1998. 120 p.<br />

ALENCAR, José. Lucíola. 5. ed. São Paulo: Ática, 1978. 128 p.<br />

CANDIDO, Antonio; CASTELO, Ad<strong>era</strong>l<strong>do</strong>. Romantismo. In: ___. Das Origens ao romantismo. 2. ed. São Paulo:<br />

Difusão Européia <strong>do</strong> Livro, 1966.<br />

37 A conversa se dá entre Gustavo, Nichette e Margarida, esse trecho não é encontra<strong>do</strong> no livro original <strong>em</strong> prosa, somente na<br />

adaptação <strong>do</strong> romance ao teatro. Vide: FILHO, Alexandre Dumas. A dama das Camélias. Peça <strong>em</strong> 5 atos. São Paulo: Editora<br />

Brasiliense. Cena III, p. 56<br />

38 ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Editora Ática S.A., 1978. p. 85.<br />

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DUMAS FILHO, Alexandre. A dama das Camélias. v. 11. Peça <strong>em</strong> 5 atos. São Paulo: Editora Brasiliense. 108 p.<br />

Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes<br />

DUMAS FILHO, Alexandre. La dame aux Camélias. 10. ed. Project Gutenberg G-TM Ebooks. Disponível<br />

<strong>em</strong>: . Acesso <strong>em</strong>: 19 abr. 2008. Disponível <strong>em</strong>:<br />

. Acesso <strong>em</strong>: 02 abr. 2008.<br />

MENDES, Oscar. José de Alencar: romances urbanos. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1965.<br />

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