14.05.2013 Views

as imagens da água nas poesias hilstianas - ppgel/ileel/ufu

as imagens da água nas poesias hilstianas - ppgel/ileel/ufu

as imagens da água nas poesias hilstianas - ppgel/ileel/ufu

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

AS IMAGENS DA ÁGUA NAS POESIAS HILSTIANAS<br />

Revista Eletrônica de Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong>, Letr<strong>as</strong> e Artes<br />

Marlúcia S. Braga (UFU) 1<br />

N<br />

<strong>as</strong>ci<strong>da</strong> em Jaú, São Paulo, em abril de 1930, Hil<strong>da</strong> Hilst é uma autora<br />

contemporânea que, por cerca de cinqüenta anos, escreveu uma obra<br />

multifaceta<strong>da</strong> e singular, segundo seus críticos. Publicou seu primeiro livro,<br />

Presságio, em 1.950 e o último, Do amor, em 1.999, alguns anos antes de sua morte. Durante<br />

esse tempo foi agracia<strong>da</strong> com os mais importantes prêmios literários br<strong>as</strong>ileiros e viu vári<strong>as</strong> de<br />

su<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> serem traduzid<strong>as</strong> para diversos idiom<strong>as</strong>.<br />

Poeta, dramaturga, cronista e ficcionista, Hilst tem sua obra constantemente envolta por<br />

uma aura de impenetrabili<strong>da</strong>de reforça<strong>da</strong> pela mescla desta obra com seus <strong>da</strong>dos biográficos,<br />

que revelam a personali<strong>da</strong>de ímpar <strong>da</strong> mulher que, vivendo reclusa em uma chácara em<br />

Campin<strong>as</strong> desde 1.965, a qual chamou “A c<strong>as</strong>a do sol”, instituiu um certo mistério à sua<br />

existência, transformando a vitali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> mulher encanta<strong>da</strong> com vi<strong>da</strong> mun<strong>da</strong>na em energia<br />

interior.<br />

Tendo declarado por divers<strong>as</strong> vezes a inconformi<strong>da</strong>de com a pouca atenção do público<br />

leitor dirigi<strong>da</strong> à sua obra, Hil<strong>da</strong> forneceu mais subsídio à imprensa que se encarregou em<br />

difundir o mito <strong>da</strong> escritora genial e incompreendi<strong>da</strong>. Entretanto, mesmo reconhecendo que<br />

por algum tempo realmente não houve espaço de destaque para sua produção literária, seria<br />

hipocrisia não considerar hoje o gra<strong>da</strong>tivo aumento dos estudos hilstianos, bem como a atenção<br />

dispensa<strong>da</strong> por importantes críticos à sua obra, entre eles Anatol Rosenfeld, Nelly Novaes<br />

Coelho e Alcir Pécora, organizador de su<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> quando <strong>da</strong> publicação dest<strong>as</strong> pela editora<br />

Globo.<br />

Hilst apostava em tem<strong>as</strong> tidos como socialmente desconcertantes, por exemplo, o<br />

lesbianismo e a homossexuali<strong>da</strong>de, m<strong>as</strong>, também, tem<strong>as</strong> que revelavam seu grande<br />

conhecimento erudito, recorrendo por vezes a idéi<strong>as</strong> filosófic<strong>as</strong>, religios<strong>as</strong> e mític<strong>as</strong>, que exigiam<br />

uma expressão verbal própria e original. Entretanto, ess<strong>as</strong> característic<strong>as</strong> renderam à sua obra<br />

um caráter hermético que ajudou a mantê-la af<strong>as</strong>ta<strong>da</strong> do público acostumado à facili<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

cultura midiática de m<strong>as</strong>sa, predominante no Br<strong>as</strong>il n<strong>as</strong> últim<strong>as</strong> décad<strong>as</strong>.<br />

Como trabalha muito com a imagem, Hilst buscou no léxico de nossa língua, por<br />

exemplo, aquele que desperta em nosso imaginário <strong>as</strong> <strong>imagens</strong> dos quatro elementos – <strong>água</strong>, ar,<br />

terra e fogo – muito recorrentes em sua poesia. Destes, o que mais interessa a este estudo é a<br />

<strong>água</strong> e o modo como este elemento é apresentado na literatura hilstiana, <strong>as</strong>sumindo <strong>as</strong> mais<br />

diferentes significações.<br />

Considerando que a imagem <strong>da</strong> <strong>água</strong> possui divers<strong>as</strong> simbologi<strong>as</strong>, de acordo com a<br />

cultura que a elabora e apresenta, conhecer essa simbologia torna-se imprescindível para<br />

compreensão e interpretação d<strong>as</strong> obr<strong>as</strong> hilstian<strong>as</strong>, além de ser essencial para o estudo <strong>da</strong><br />

imagem perceber o seu feixe de significações afinal, como ressalta Mircea Eliade em sua obra<br />

Imagens e Símbolos (1.979, p. 15), “Traduzir uma imagem numa terminologia concreta,<br />

1 E-mail: malubragalet@yahoo.com.br<br />

A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 39-45, jan./jun. 2008 39


Revista Eletrônica de Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong>, Letr<strong>as</strong> e Artes<br />

reduzindo-a a um só dos seus planos de referência, é pior do que mutilá-la: é aniquilá-la, anulá-la<br />

como instrumento de conhecimento”. Por isso, propõe-se agora uma apresentação do que foi<br />

pesquisado a esse respeito, apontando algum<strong>as</strong> considerações mais recorrentes ao projeto<br />

desenvolvido.<br />

De acordo com O Dicionário de Símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1.990,<br />

p.15), a <strong>água</strong> está sugestivamente liga<strong>da</strong> a três tem<strong>as</strong> dominantes – fonte de vi<strong>da</strong>, meio de<br />

purificação, centro de regenerescência – sendo que “esses três tem<strong>as</strong> se encontram n<strong>as</strong> mais<br />

antig<strong>as</strong> tradições e formam <strong>as</strong> mais variad<strong>as</strong> combinações imaginári<strong>as</strong>”. Na obra de Hil<strong>da</strong> Hilst,<br />

ess<strong>as</strong> combinações remetem a questões como a sensuali<strong>da</strong>de, o feminino ou o m<strong>as</strong>culino, a<br />

pureza, o tempo que p<strong>as</strong>sa como <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> correntes, a morte, etc.<br />

Em G<strong>as</strong>ton Bachelard, A Água e os sonhos (1.997, p. 17/18), pode-se perceber que o<br />

autor desenvolve uma teoria atraente sobre a imaginação poética. A maioria dos exemplos<br />

utilizados sobre a <strong>água</strong> são extraídos <strong>da</strong> poesia porque, segundo ele, to<strong>da</strong> psicologia <strong>da</strong><br />

imaginação somente pode ser esclareci<strong>da</strong> pelos poem<strong>as</strong> que ela inspira. “A imaginação não é,<br />

como sugere a etimologia, a facul<strong>da</strong>de de formar <strong>imagens</strong> <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de; é a facul<strong>da</strong>de de formar<br />

<strong>imagens</strong> que ultrap<strong>as</strong>sam a reali<strong>da</strong>de, que cantam a reali<strong>da</strong>de”.<br />

Na antologia organiza<strong>da</strong> por Antônio Carlos Diegues e intitula<strong>da</strong> A Imagem d<strong>as</strong> Águ<strong>as</strong><br />

(2.000, p. 16), a antropóloga Lúcia Helena de Oliveira Cunha, em seu artigo Significados<br />

Múltiplos d<strong>as</strong> Águ<strong>as</strong>, afirma que por mais impalpável e simbólica, a <strong>água</strong> não deixa de ser<br />

matéria e, por mais material que seja, inspira a poesia bem como embala sonhos. Levar essa<br />

teoria de encontro à poesia de Hilst seria dizer que nesta poesia a <strong>água</strong> está presente, <strong>as</strong>sim<br />

como a poesia está presente na <strong>água</strong> enquanto matéria.<br />

É possível afirmar que a <strong>água</strong> está ao mesmo tempo na natureza e na cultura, nos mitos<br />

e na história, n<strong>as</strong> estações do ano: <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> de janeiro, primeir<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>, “<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> de março<br />

fechando o verão”, como canta Tom Jobim, <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> de outono ou primaveris. Encontra-se,<br />

também, na vi<strong>da</strong> dos amantes, nos beijos molhados, nos corpos umedecidos pelo suor que se<br />

enlaçam e se fundem no ato do amor. Está na vi<strong>da</strong> e na morte, nos cerimoniais do adeus a <strong>água</strong><br />

<strong>da</strong> lágrima, no batismo, a <strong>água</strong> benta simbolizando a purificação divina. Portanto, está presente<br />

não só na cultura considera<strong>da</strong> erudita, como também na cultura popular, no conhecimento<br />

cotidiano.<br />

Com todos esses sentidos, a <strong>água</strong> <strong>as</strong>sume característic<strong>as</strong> que perp<strong>as</strong>sam <strong>as</strong> <strong>da</strong> matéria,<br />

p<strong>as</strong>sando a ter cor, gosto e cheiro: são clar<strong>as</strong> ou escur<strong>as</strong>, doces ou salgad<strong>as</strong>, branc<strong>as</strong> ou turv<strong>as</strong>.<br />

São profund<strong>as</strong> ou superficiais (inferior ou superior), vêm do céu, chuva, ou estão no mar<br />

(simbolicamente alto ou baixo), representam não só ess<strong>as</strong> duali<strong>da</strong>des como também o<br />

constante p<strong>as</strong>sar do tempo, <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> correntes, ou ain<strong>da</strong> a morte, <strong>as</strong> águ<strong>as</strong> parad<strong>as</strong> ou<br />

dormentes, usando o vocabulário bachelardiano (1.997, p. 49).<br />

Para Chevalier e Gheerbrant (1.990, p. 21), a <strong>água</strong> pl<strong>as</strong>ma, doce, lacustre, é feminina,<br />

enquanto a do oceano, fecun<strong>da</strong>nte, é m<strong>as</strong>culina. De acordo com Bachelard (1.997, p. 121) a<br />

<strong>água</strong> pode ser representa<strong>da</strong> por metáfor<strong>as</strong> lácte<strong>as</strong> à medi<strong>da</strong> que para a imaginação material todo<br />

líquido é <strong>água</strong> e, em seu significado mais profundo (inconsciente), to<strong>da</strong> <strong>água</strong> é leite. “Se agora<br />

levarmos mais longe nossa busca no inconsciente, (...), deveremos dizer que to<strong>da</strong> <strong>água</strong> é um<br />

leite”. Para este autor <strong>as</strong> <strong>imagens</strong> literári<strong>as</strong> tendem a sugerir que tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> águ<strong>as</strong>, inclusive <strong>as</strong> dos<br />

próprios mares, são maternais, feminin<strong>as</strong>, pois recebem <strong>as</strong> aparênci<strong>as</strong> leitos<strong>as</strong>, <strong>as</strong> metáfor<strong>as</strong><br />

lácte<strong>as</strong>.<br />

A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 39-45, jan./jun. 2008 40


Revista Eletrônica de Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong>, Letr<strong>as</strong> e Artes<br />

Ilustrando o que foi exposto até o momento, p<strong>as</strong>sa-se a breves análises de poesi<strong>as</strong> de<br />

Hil<strong>da</strong> Hilst, enfatizando nel<strong>as</strong> o tema que é a b<strong>as</strong>e deste estudo, com o objetivo de mostrar<br />

como sua obra se relaciona com <strong>as</strong> teori<strong>as</strong> do imaginário que se desenvolveram em torno d<strong>as</strong><br />

significações do elemento <strong>água</strong>.<br />

A primeira poesia analisa<strong>da</strong> será o canto II <strong>da</strong> obra Cantares do Sem Nome e de Parti<strong>da</strong>.<br />

Esta obra foi lança<strong>da</strong> no ano de 1.995 e é forma<strong>da</strong> por outros nove cantos que, apesar de se<br />

relacionarem, <strong>as</strong>sumem, quando sozinhos, sua própria autonomia. É o que se verifica a seguir:<br />

II<br />

E só me veja<br />

No não merecimento d<strong>as</strong> conquist<strong>as</strong>.<br />

De pé. N<strong>as</strong> plataform<strong>as</strong>, n<strong>as</strong> escad<strong>as</strong><br />

Ou através de um<strong>as</strong> janel<strong>as</strong> baç<strong>as</strong>:<br />

Uma mulher no trem: perfil desabitado de caríci<strong>as</strong>.<br />

E só me veja no não merecimento e interdita:<br />

Papéis, valises, tomos, sobretudos<br />

Eu-alguém travesti<strong>da</strong> de luto. (E umolhar<br />

de púrpura e desgosto, vendo através de mim<br />

navios e dorsos.)<br />

Dorsos de luz de águ<strong>as</strong> mais profund<strong>as</strong>. Peixes.<br />

M<strong>as</strong> sobre mim, intens<strong>as</strong>, ilharg<strong>as</strong> juvenis<br />

Machucad<strong>as</strong> de gozo.<br />

E que jamais perceba o rocio <strong>da</strong> chama:<br />

Este molhado fulgor sobre o meu rosto.<br />

(HILST, 2.004, p. 18)<br />

Hil<strong>da</strong> Hilst, no conjunto de poem<strong>as</strong> do qual este faz parte, usa o amor como tema<br />

central. No entanto, nesse canto (canto II) o vocábulo “amor” não aparece, nem por isso deixa<br />

de subentender-se ao leitor que o percebe no todo do poema. Para corroborar esta afirmação<br />

segue-se a apresentação do 1º verso do canto I:<br />

Que este amor não me cegue nem me siga.<br />

No 1º verso do canto II (no qual se resume a 1ª estrofe), o verbo “ver”, conjugado na 3ª<br />

pessoa do singular, sugere a presença de um sujeito que está oculto. Sabe-se, como já foi visto,<br />

que esse sujeito é o amor, que para o eu lírico é incógnito, “sem nome”. Esse 1º verso é ligado<br />

semanticamente ao 2º por meio do enjambement; entretanto, se analisado sozinho, pode-se<br />

entender a palavra “só” não apen<strong>as</strong> como o ato de ver somente, m<strong>as</strong> também como solidão, a<br />

solidão de um eu feminino que se af<strong>as</strong>ta do amor, que está reclusa em si mesma, “interdita”.<br />

Percebe-se que apesar do uso <strong>da</strong> forma dos cantares bíblicos feito pela poeta, essa obra não é a<br />

celebração sensualíssima d<strong>as</strong> núpci<strong>as</strong>, m<strong>as</strong> sim, o registro de uma guerra vital ain<strong>da</strong> amorosa,<br />

m<strong>as</strong> precocemente perdi<strong>da</strong>.<br />

A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 39-45, jan./jun. 2008 41


Revista Eletrônica de Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong>, Letr<strong>as</strong> e Artes<br />

Existe no canto analisado uma alternância entre o tom pesaroso e o francamente<br />

belicoso. No 2º verso esse tormento aparece como a lucidez do eu lírico que descobre, com<br />

pesar, a ausência de merecimento no amor, sendo que este eu aceita o af<strong>as</strong>tamento, o<br />

distanciamento do amor como em uma guerra na qual o perdedor aceita a derrota de cabeça<br />

ergui<strong>da</strong>. Reforça essa idéia <strong>as</strong> <strong>imagens</strong> do 3º verso, pois como se pode ver na obra de Gilbert<br />

Durand, um dos teóricos mais importantes no estudo do imaginário, As Estrutur<strong>as</strong><br />

Antropológic<strong>as</strong> do Imaginário (1.997, p. 126), plataform<strong>as</strong>, escad<strong>as</strong>, <strong>as</strong>sim como estar de pé,<br />

são símbolos de <strong>as</strong>censão, elevação moral.<br />

Há, nos versos 3, 4, 5 e 7, palavr<strong>as</strong> que sugerem uma viagem, o que reforça o<br />

af<strong>as</strong>tamento mencionado. Entretanto, essa viagem não se dá no plano <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, não tem<br />

como destino um lugar comum, e sim o mais íntimo <strong>da</strong> alma, onde o amor por uma <strong>as</strong>piração<br />

metafísica seja sublimado, elevando-se em relação ao amor carnal.<br />

A mulher no trem, com seu perfil desabitado de caríci<strong>as</strong>, tende a sugerir solidão,<br />

nostalgia. Contudo, ter o perfil desabitado de caríci<strong>as</strong> pressupõe a idéia de que em outro<br />

momento já esteve habitado, ou seja, houve um amor carnal, erótico, cuj<strong>as</strong> lembranç<strong>as</strong> e a falta<br />

trazem desgosto, por isso o luto, (conforme 3ª estrofe), uma vez que se tem consciência do<br />

af<strong>as</strong>tamento desse amor.<br />

Ain<strong>da</strong> na 3ª estrofe, a digressão feita entre parênteses sugere a imagem <strong>da</strong> <strong>água</strong>,<br />

enquanto matéria, profun<strong>da</strong>, densa, capaz de sustentar navios e dorsos. Enquanto símbolo se<br />

relaciona com a profundi<strong>da</strong>de do devaneio de um “eu criador”, que vê através de si emoções<br />

contraditóri<strong>as</strong>, representad<strong>as</strong> pelo navio (viagem, af<strong>as</strong>tamento, desgosto) e pelo dorso<br />

(especificado na estrofe e no parágrafo seguinte).<br />

Na quarta estrofe acentua-se claramente a imagem d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> profund<strong>as</strong>, que podem ser<br />

vist<strong>as</strong> também como escur<strong>as</strong>, pesad<strong>as</strong>. Águ<strong>as</strong>, <strong>as</strong>sim, freqüentemente são relacionad<strong>as</strong> com a<br />

morte, o luto. Porém, na estrofe em questão, os “dorsos de luz” dest<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> apontam para a<br />

existência de uma força, que impulsiona o eu lírico à vi<strong>da</strong>. A profundi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>água</strong> simboliza o<br />

subconsciente do ser que na profundi<strong>da</strong>de de sua alma encontra resistência para superar a<br />

situação adversa provoca<strong>da</strong> pela ausência do amor. O peixe, também presente nesta estrofe, é<br />

recorrente por simbolizar o movimento, por não se deixar paralisar por qualquer obstáculo, por<br />

seguir em frente, confirmando a força psíquica desse eu que não se deixa abater, ou não quer se<br />

deixar abater. Para Chevalier e Gheerbrant, (1.990, p. 22), “O peixe é um animal psíquico”.<br />

A esse eu profundo, sombrio, se sobrepõem às <strong>imagens</strong> d<strong>as</strong> “ilharg<strong>as</strong> juvenis” (verso<br />

12), que imediatamente são relacionad<strong>as</strong> à imagem <strong>da</strong> <strong>água</strong>. Supõe-se que est<strong>as</strong> águ<strong>as</strong> são<br />

superficiais, clar<strong>as</strong>, “alegres”. Segundo Bachelard, (1.997, p. 49) “O devaneio começa por vezes<br />

diante <strong>da</strong> <strong>água</strong> límpi<strong>da</strong>, todo em reflexos imensos (...). Ele acaba no âmago de uma <strong>água</strong> triste e<br />

sombria”. Reforçando o que já foi dito, ess<strong>as</strong> ilharg<strong>as</strong> juvenis “machucad<strong>as</strong> de gozo” remetem a<br />

algo bom que ficou desse amor, embora tenha se transformado em ressentimento, dor.<br />

A última estrofe sugere uma orientação de leitura que reforça a idéia inicial: o eu lírico<br />

se dirige ao amor explicando o modo com o qual este deveria vê-la e mostra seu desejo de não<br />

deixar perceber em si o rocio <strong>da</strong> chama, o molhado fulgor sobre o seu rosto.<br />

A frescura do orvalho (rocio) adjetivado com o vocábulo antitético “chama” mostram <strong>as</strong><br />

marc<strong>as</strong> que ficaram <strong>da</strong> paixão, do erotismo em um eu lírico que aceita o af<strong>as</strong>tamento do amor,<br />

m<strong>as</strong>, tem em si os duplos <strong>da</strong> imaginação que soube condensar em uma só existência o amor<br />

ardente, fogo; e o amor sublime, puro, rocio.<br />

A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 39-45, jan./jun. 2008 42


Revista Eletrônica de Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong>, Letr<strong>as</strong> e Artes<br />

Como já foi mencionado anteriormente, a <strong>água</strong> é um elemento que representa não só a<br />

virtude, a purificação, a beleza que reflete, o erotismo, como também simboliza destruição e<br />

morte. A próxima obra escolhi<strong>da</strong> para análise se a<strong>da</strong>pta perfeitamente a essa afirmação.Trata-se<br />

do canto I <strong>da</strong> seção Tempo-Morte encontra<strong>da</strong> no livro Da Morte. Odes Mínim<strong>as</strong><br />

I<br />

Corroendo<br />

As grandes escad<strong>as</strong><br />

Da minha alma.<br />

Água. Como te cham<strong>as</strong>?<br />

Tempo.<br />

Vívi<strong>da</strong> antes<br />

Revesti<strong>da</strong> de laca<br />

Minha alma tosca<br />

Se desfazendo.<br />

Como te cham<strong>as</strong>?<br />

Tempo.<br />

Águ<strong>as</strong> corroendo<br />

Car<strong>as</strong>, coração<br />

Tod<strong>as</strong> <strong>as</strong> cord<strong>as</strong> do sentimento.<br />

Como te cham<strong>as</strong>?<br />

Tempo.<br />

Irreconhecível<br />

Me procuro lenta<br />

Nos teus escuros.<br />

Como te cham<strong>as</strong>, breu?<br />

Tempo.<br />

(HILST, 2.003, P. 71)<br />

A obra, na qual se insere o poema em questão, foi publica<strong>da</strong> pela primeira vez em 1.980.<br />

Nela chama atenção a forma poética <strong>da</strong> “ode”, toma<strong>da</strong> como objeto de celebração e como um<br />

modo de falar solene, que Hilst usa para tratar o tema “morte”.<br />

As odes do livro Da Morte. Odes Mínim<strong>as</strong> são compost<strong>as</strong> b<strong>as</strong>icamente <strong>da</strong> construção de<br />

uma interlocução <strong>da</strong> morte, ou seja, é diante <strong>da</strong> morte que o eu lírico tece su<strong>as</strong> considerações e<br />

devaneios reflexivos. Isso explica o vocabulário que celebra a morte e a descreve como<br />

ocorrência de certa duração e demora no âmago de uma existência.<br />

O poema escolhido para análise mostra a observação minuciosa do lento consumir <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> pelo tempo, tema central desse poema, que é, metaforicamente, representado pela imagem<br />

<strong>da</strong> <strong>água</strong>.<br />

Na 1ª estrofe a “<strong>água</strong>-tempo” é o sujeito que corrói <strong>as</strong> grandes escad<strong>as</strong> <strong>da</strong> alma. O verbo<br />

corroer no gerúndio sugere a idéia de continui<strong>da</strong>de, pois, a <strong>água</strong> só corrói se continuamente<br />

p<strong>as</strong>sar pelo mesmo caminho ou gotejar sempre no mesmo lugar. Portanto, a <strong>água</strong> aqui<br />

representa o insistente p<strong>as</strong>sar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Para Chevalier e Gheerbrant (1.990, p. 21) “a ribeira, o<br />

rio, o mar representa o curso <strong>da</strong> existência humana”. Essa continui<strong>da</strong>de se relaciona também à<br />

A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 39-45, jan./jun. 2008 43


Revista Eletrônica de Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong>, Letr<strong>as</strong> e Artes<br />

semântica do tempo que sempre p<strong>as</strong>sa insistentemente e qu<strong>as</strong>e imperceptivelmente, como a<br />

<strong>água</strong> flui<strong>da</strong>. O corroer d<strong>as</strong> “escad<strong>as</strong> <strong>da</strong> alma” mostra que o eu lírico ressalta os <strong>as</strong>pectos<br />

maléficos do tempo que destrói <strong>as</strong> conquist<strong>as</strong> <strong>da</strong> alma, representad<strong>as</strong> pela imagem <strong>as</strong>cendente<br />

d<strong>as</strong> escad<strong>as</strong>.<br />

Na 2ª estrofe pode-se fazer uma ligação semântica com a anterior, <strong>as</strong>sim a <strong>água</strong> continua<br />

a ser o sujeito ao qual são atribuíd<strong>as</strong> <strong>as</strong> característic<strong>as</strong> de ser vívi<strong>da</strong> antes, revesti<strong>da</strong> de laca. A cor<br />

laca é recorrente por ser forte, vitalícia, quente. M<strong>as</strong> o eu lírico reforça que sua alma, agora<br />

tosca, continua sendo desfeita por esta <strong>água</strong>, pela “<strong>água</strong>- tempo”.<br />

É na 3ª estrofe que o eu lírico percebe que a “<strong>água</strong>-tempo” não corrói apen<strong>as</strong> <strong>as</strong><br />

conquist<strong>as</strong> <strong>da</strong> alma, m<strong>as</strong> também a matéria fisiológica do corpo – car<strong>as</strong>, coração – bem como <strong>as</strong><br />

cord<strong>as</strong> dos sentimentos que se desfazem, que são corroíd<strong>as</strong> pelo p<strong>as</strong>sar do tempo.<br />

Chega o momento que o ser se torna “irreconhecível” (3ª estrofe) e a “<strong>água</strong>-tempo” se<br />

torna escura por carregar tant<strong>as</strong> substânci<strong>as</strong> efêmer<strong>as</strong> <strong>da</strong> alma, do corpo, dos sentimentos.<br />

Bachelard (1.997, p. 58) afirma que <strong>as</strong> “águ<strong>as</strong> preencheram uma função psicológica essencial:<br />

absorver <strong>as</strong> sombr<strong>as</strong>, oferecer um túmulo cotidiano a tudo o que, diariamente, morre em nós”.<br />

A <strong>água</strong>, tempo neste poema, de vívi<strong>da</strong>, vesti<strong>da</strong> de laca, p<strong>as</strong>sa a ser escura, como o breu.<br />

Para Bachelard (1.997, p. 49) “(...) to<strong>da</strong> <strong>água</strong> primitivamente clara (...) é uma <strong>água</strong> que deve<br />

escurecer, (...). To<strong>da</strong> <strong>água</strong> viva é uma <strong>água</strong> que está a ponto de morrer”. Assim como a<br />

existência humana, que se esvai aos poucos, que é efêmera.<br />

O eu lírico não se reconhece nessa escuridão, nesse “breu” e se procura, pois se sente<br />

perdido em meio a esse tempo, a essa <strong>água</strong> escura que nunca pára.<br />

A relação desta poesia com a morte está na constatação <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> morte ain<strong>da</strong> em<br />

vi<strong>da</strong>, muito antes de sua hora definitiva, porque o eu lírico percebe que morre um pouco a ca<strong>da</strong><br />

instante que p<strong>as</strong>sa. A morte p<strong>as</strong>sa a ser então uma companheira <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e não um instante<br />

estagnado que irá chegar.<br />

Com a análise dest<strong>as</strong> poesi<strong>as</strong> conclui-se que Hil<strong>da</strong> Hilst usa <strong>as</strong> <strong>imagens</strong> <strong>da</strong> <strong>água</strong> de forma<br />

peculiar, com uma organização própria na relação com outros elementos, ou seja, reconstrói a<br />

imagem simbólica <strong>da</strong> <strong>água</strong> interrelacionando-a a outr<strong>as</strong> <strong>imagens</strong>, organizando, <strong>as</strong>sim, um todo<br />

simbólico que sustenta seus devaneios e su<strong>as</strong> reflexões psíquic<strong>as</strong>.<br />

Torna-se necessário, portanto, o envolvimento com outr<strong>as</strong> áre<strong>as</strong> do conhecimento para<br />

se entender, de forma mais precisa, algum<strong>as</strong> d<strong>as</strong> perspectiv<strong>as</strong> considerad<strong>as</strong> por essa autora que<br />

é, sem dúvi<strong>da</strong>, um importante nome para a literatura contemporânea do Br<strong>as</strong>il.<br />

REFERÊNCIAS:<br />

BACHELARD, G<strong>as</strong>ton. A <strong>água</strong> e os sonhos: ensaio sobre a imaginação <strong>da</strong> matéria. Trad. Antônio de Pádua Danesi.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />

BACHELARD, G<strong>as</strong>ton. A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001.<br />

CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. São Paulo: Ática, 1985.<br />

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera <strong>da</strong> Costa Silva. Rio de Janeiro: José<br />

Olympio, 1990.<br />

DIEGUES, Antônio Carlos (Org.). A imagem d<strong>as</strong> águ<strong>as</strong>. São Paulo: Hucitec, 2000.<br />

A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 39-45, jan./jun. 2008 44


Revista Eletrônica de Ciênci<strong>as</strong> Human<strong>as</strong>, Letr<strong>as</strong> e Artes<br />

DUARTE, Edson Costa. Hil<strong>da</strong> Hilst: a poética <strong>da</strong> agonia e do gozo. Disponível em:<br />

. Acesso em: 15 dez. 2007.<br />

DURAND, Gilbert. As estrutur<strong>as</strong> antropológic<strong>as</strong> do imaginário. Trad. Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1997.<br />

DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca d<strong>as</strong> ciênci<strong>as</strong> e <strong>da</strong> filosofia <strong>da</strong> imagem. Trad. Renée Eve Levié. Rio<br />

de Janeiro: Difel, 2004.<br />

ELIADE, Mircea. Imagens e símbolos. Trad. Maria Adozina Oliveira Soares. Lisboa: Arcádia, 1979.<br />

GRANDO, Cristiane. Hil<strong>da</strong> Hilst: a morte e seu duplo. Disponível em:<br />

. Acesso em: 16 dez. 2007.<br />

HILST, Hil<strong>da</strong>. Cantares. São Paulo: Globo, 2004.<br />

HILST, Hil<strong>da</strong>. Da morte: odes mínim<strong>as</strong>. São Paulo: Globo, 2003.<br />

MARTINS, Cândido J. Campos do imaginário de Gilbert Durand. Disponível em:<br />

. Acesso em: 24 jan. 2008.<br />

NEVES, Josélia. Reflexões sobre a ciência do imaginário e <strong>as</strong> contribuições de Durand: um olhar iniciante.<br />

Disponível em: . Acesso em: 24 jan. 2008.<br />

PITTA, Danielle Perin Rocha. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Atlântica, 2005.<br />

QUEIROS, Vera. Hil<strong>da</strong> Hilst e a arquitetura dos escombros. Disponível em:<br />

. Acesso em: 16 mar. 2007.<br />

TADIÉ, Jean-Yves. A crítica literaria no século XX. Trad. Wilma Freit<strong>as</strong> Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro:<br />

Bertrand, 1992.<br />

TURCHI, Maria Zaira. Literatura e antropologia do imaginário. Br<strong>as</strong>ília: Ed. UnB, 2003.<br />

A MARgem - Estudos, Uberlândia - MG, ano 1, n. 1, p. 39-45, jan./jun. 2008 45

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!