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Livro Vicente Rever para crer - Travessa da Ermida

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64<br />

DIAGRAMAS E FIGURAS DA<br />

CONTRADIÇÃO<br />

No texto que abre esta edição, José Luís de Matos<br />

transporta-nos telegraficamente <strong>para</strong> um xadrez de<br />

imagens e factos, de hipóteses e definições. A partir de<br />

uma elencagem dos elementos visíveis na iconografia<br />

de São <strong>Vicente</strong>, tal como adopta<strong>da</strong> em Lisboa – a barca,<br />

os corvos, o corpo –, mas também <strong>da</strong>queles elementos<br />

que são apenas sugeridos num plano de recepção crítica<br />

– ficamos a saber que os <strong>Vicente</strong>s somos nós. O raciocínio<br />

leva-nos ao limiar dos Descobrimentos como fenómeno<br />

vicentino, resultado dessa alquimia do conhecimento<br />

que torna o Mar Tenebroso no Mar Luminoso do(s)<br />

Novos(s) Mundo(s). O presente, assim testemunha eloquente<br />

do passado, aparece como palimpsesto simbólico<br />

que diz muito mais do que parece, como na lógica<br />

iluminadora <strong>da</strong> profecia – sinal do futuro. O <strong>Vicente</strong> de<br />

José Luís de Matos enuncia questões radicais do mito<br />

de forma extremamente singela; mas a simplici<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> sua linguagem entra numa sedutora ressonância<br />

com questões de grande amplitude cultural: o texto<br />

conduz-nos pelas vias anacrónicas <strong>da</strong> sabedoria, rumo<br />

aos amanhãs de que urge entoar o canto (o que não<br />

impede que os procuremos até mesmo no silêncio, como<br />

Ulisses, d’après Kafka, fez diante <strong>da</strong>s Sereias). <strong>Vicente</strong>,<br />

muito mais que uma simples sacralização <strong>da</strong> len<strong>da</strong> pagã<br />

de Ulisses (José Sarmento de Matos), surge então claramente<br />

como, e ver<strong>da</strong>deiramente, um marinheiro de<br />

asas doces.<br />

Quanto a Pedro Penilo, tem realizado dos mais desconcertantes<br />

argumentários grafo-visuais acerca <strong>da</strong><br />

condição social <strong>da</strong>s nossas utopias ¹⁴. Com experiências<br />

em diversas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des do grafismo, do desenho ao<br />

pictograma, do blogue ao jornal, do poema ilustrado à<br />

pintura de signos em espaços públicos, o que Penilo<br />

realiza <strong>para</strong> <strong>Vicente</strong> é um diagrama, uma espécie de<br />

árvore de narrativas possíveis (narrativas “sem história<br />

concreta”, narrativas sugeri<strong>da</strong>s). Trata-se de destruir o(s)<br />

símbolo(s). Uma história do símbolo vagamente inspira<strong>da</strong><br />

na afirmação de Benjamin de que ca<strong>da</strong> obra de cultura é<br />

simultaneamente testemunho de barbárie. De como o<br />

símbolo reduz, em vez de ampliar. Eis <strong>Vicente</strong> no seu<br />

melhor, desdizendo-se, limitando-se, e assim se reafirmando,<br />

alargando o alcance do seu voo. Parece que<br />

entro em contradição comigo próprio ao amputar os símbolos,<br />

mostrando-os como instrumento de amputação –<br />

conclui Penilo. Eu que com eles trabalho. Talvez agora os<br />

queira dinamitar; talvez sinta ser necessário, fazer esta<br />

ressalva; talvez, porque se trata particularmente de um<br />

símbolo de culto... Assim é, mais do que parece. No<br />

encadeamento dos seus spreads, o jogo do preto e do<br />

branco corresponde a uma síntese instrumental do<br />

sagrado, num ensaio sobre como a(s) forma(s) simbólica(s)<br />

de <strong>Vicente</strong> podem ser objecto de uma apropriação<br />

estrutura<strong>da</strong>, especificando a sua transparência mesmo<br />

diante dos nossos olhos. É um trabalho genuinamente<br />

ideo-lógico, de resistência laica e de combate micro-<br />

-político num tempo designificado e particularmente<br />

exímio no prazer de esquecer.<br />

O esquecimento é precisamente um conceito-chave<br />

quando pensamos na mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>de literária <strong>da</strong> crónica,<br />

seja na sua versão historiográfica, seja na jornalística.<br />

Ambas nos aju<strong>da</strong>m a esquecer o que não interessa, destacando<br />

no decurso dos acontecimentos as personagens<br />

principais, as emoções em jogo, os sentidos possíveis<br />

a <strong>da</strong>r aos acontecimentos. No jornalismo, a crónica é<br />

um modelo <strong>para</strong> tomar-se o gosto à espuma dos dias<br />

– a crónica dura mais que a notícia e, ao mesmo tempo,<br />

tem a informali<strong>da</strong>de de uma conversa de café. Mais do<br />

que informar, a crónica reflecte sobre o acontecido, tira<br />

conclusões. Ora, em homenagem a essa gente que é<br />

autora de textos que não morrem tão depressa (mas<br />

morrem) – no que divergem dos autores de literatura<br />

–, <strong>Vicente</strong>, que é melómano, há muito que vinha re<strong>para</strong>ndo<br />

na leitura dos jornais que Pedro Malaquias faz<br />

nas manhãs <strong>da</strong> Antena 2. Na crónica de Malaquias há<br />

uma dimensão autoral que a torna poesia do quotidiano.<br />

No éter do oceano mediático, o jornalista, ver<strong>da</strong>deiro<br />

operário <strong>da</strong> notícia, mecânico <strong>da</strong> espuma dos dias,<br />

consegue a proeza de na<strong>da</strong> afirmar e tudo sugerir, com<br />

a candura – vicentina – de um outsider que está <strong>para</strong>doxalmente<br />

por dentro de tudo. Cronicando – thanks<br />

Mia – as notícias <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de conforme passam <strong>para</strong> a<br />

mediação dos jornais, Malaquias entrega-se a uma fro-<br />

ttage do quotidiano. A sua retórica é crítica, sobretudo<br />

porque nos dá música.<br />

<strong>Vicente</strong> seja portanto um universo de tropos e figuras<br />

que se desdobram ao infinito <strong>para</strong> nos animar o estarmos<br />

por aí; e seja em especial a melopeia de um céu e<br />

de um mar, precisamente como as (duas) imagens de<br />

João Cabaço deixam subentendido. No riscar mais ou<br />

menos automático destes desenhos, os objectos turísticos<br />

– a guitarra do fado, a imagem do santo popular...<br />

– estão acompanhados por corvos antropomórficos<br />

empoleirados em máquinas de voo e de marear. Lisboa<br />

tem-se esquecido destes autênticos deuses de bairro.<br />

Saídos de uma taberna sem nome (ou conheci<strong>da</strong> apenas<br />

pelo nome próprio do dono galego), estes são senhores<br />

de um tempo totalmente deles, marinheiros-inventores<br />

de uma identi<strong>da</strong>de irredutível. No seu recatamento<br />

adivinham-se histórias, é certo, e cantigas, e fados,<br />

todos relatando as histórias maravilhosas e terríveis<br />

de vi<strong>da</strong>s anónimas. Vestidos no rigor de pintas, estes<br />

Srs. <strong>Vicente</strong>s fazem-se acompanhar dos sinais do progresso<br />

– uma ventoinha que nos sopra a vela (do País),<br />

uma grafonola acompanha a voz que nos resta. Mas são<br />

antes do mais metáforas visuais de uma resiliência ao<br />

progresso tecno-lógico, numa articulação de elementos<br />

que rabisca um verso surreal na paisagem abstracta do<br />

papel. E exactamente como nos rabiscos sonoros dos<br />

primeiros ‘<strong>Vicente</strong>s’ deste projecto ¹⁵, estes Homens do<br />

Leme representam o rumor <strong>da</strong> consciência a emergir,<br />

entre sonho e vigília.

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