Leia a resenha completa - ensaios sobre literatura do medo
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Ser e Não Ser: a hesitação <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r em<br />
‘‘Flor, Telefone, Moça’’, de Carlos Drummond de Andrade<br />
Luciano Cabral 1<br />
‘‘Flor, Telefone, Moça’’ é um conto fantástico e, ainda assim, não é um conto<br />
fantástico. Então, pergunto: os insistentes telefonemas recebi<strong>do</strong>s pela moça foram<br />
feitos por um cadáver sepulta<strong>do</strong> no cemitério próximo a sua casa ou foram feitos por<br />
um desagradável brincalhão que, assim como a moça, andava pelo cemitério àquela<br />
tarde? Diante de uma narrativa que deturpa as regras naturais da existência humana, o<br />
leitor <strong>do</strong> conto de Carlos Drummond de Andrade hesita entre acreditar na ‘‘voz’’<br />
implacável de um cadáver que quer de volta sua flor ou concluir que tu<strong>do</strong> não passou<br />
de um trote telefônico. A hesitação to<strong>do</strong>roviana entre uma explicação natural ou<br />
<strong>sobre</strong>natural 2 encontra forte eco nesta narrativa.<br />
Em síntese, o conto é a reminiscência de um narra<strong>do</strong>r, de nome Carlos, que<br />
conta ter ouvi<strong>do</strong>, certa vez, de uma amiga, uma história <strong>sobre</strong> cemitérios ou telefones<br />
ou flores (a conjunção alternativa aqui é proposital): uma moça, que morava perto de<br />
um cemitério e costumava gastar suas tardes passean<strong>do</strong> entre seus túmulos (um<br />
hábito, por si só, bastante incomum) apanha uma flor de uma sepultura. Após cheirá-<br />
la, amassa-a displicentemente e a joga fora. Este evento desencadeia uma série de<br />
diárias e pontuais ligações telefônicas para a casa da moça – uma voz 3 exige que ela<br />
devolva a flor que apanhara de sua sepultura.<br />
Se tomássemos fielmente o que diz o narra<strong>do</strong>r, a história narrada não poderia<br />
nem ao menos denominar-se conto. Carlos, já nas primeiras linhas, adverte o leitor<br />
<strong>sobre</strong> a matéria que será tratada: ‘‘Não, não é um conto. Sou apenas um sujeito que<br />
escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passan<strong>do</strong>’’ (ANDRADE, 1960, p.<br />
275). Contos são prosas ficcionais de curta extensão e, sen<strong>do</strong> ficcionais, não<br />
abarcariam a verdade (quan<strong>do</strong> muito, abarcariam uma verossimilhança). Porém, o que<br />
Carlos parece querer negar, não classifican<strong>do</strong> sua história como um conto, é a própria<br />
ideia de ficção, palavra etimologicamente mais próxima <strong>do</strong> ato de fingir, de inventar e<br />
de dissimular. Consequentemente, encarar a narrativa de Carlos como fingimento,<br />
1 Aluno bolsista de Iniciação Científica (UERJ/FAPERJ), membro <strong>do</strong> grupo de pesquisa O Me<strong>do</strong> como<br />
Prazer Estético, sob a orientação <strong>do</strong> Prof. Dr. Julio França (UERJ).<br />
2 Cf. TODOROV, 2008.<br />
3 O narra<strong>do</strong>r limita-se a se referir à pessoa que reivindica sua flor por telefone como ‘‘ A Voz’’.
invenção ou dissimulação afastaria os leitores da confiança na matéria narrada,<br />
rejeitan<strong>do</strong> qualquer relação com a verdade. Tentan<strong>do</strong> evitar esta hostil reação, Carlos<br />
afirma que tu<strong>do</strong> o que é dito depende de quem conta e de como se conta, e <strong>completa</strong><br />
sua expectativa positiva diante de nós leitores ao afirmar que, frequentemente,<br />
estamos to<strong>do</strong>s inclina<strong>do</strong>s a acreditar em algo: ‘‘Tu<strong>do</strong> depende da pessoa que conta,<br />
como <strong>do</strong> jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuí<strong>do</strong>s<br />
de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história<br />
era verdadeira’’ (IBID, p. 275-6).<br />
No entanto, embora o narra<strong>do</strong>r pareça querer que acreditemos no que irá<br />
narrar, é possível vê-lo, na primeira passagem citada, tentar isentar-se de acusações,<br />
caso o leitor decida-se por resolver o impasse com uma explicação natural, ou seja,<br />
entender que o incidente foi provoca<strong>do</strong> por sucessivos trotes telefônicos de um<br />
brincalhão inconsequente. Carlos é apenas a pessoa que contará uma história ouvida<br />
de uma amiga certa vez e, sen<strong>do</strong> assim, não poderá ser acusa<strong>do</strong> de fingi<strong>do</strong>, inventor<br />
ou dissimula<strong>do</strong>. Além <strong>do</strong> mais, ele é naturalmente um sujeito que ora dá atenção ao<br />
que os outros dizem, ora não. Portanto, o que ouve – e o que ouvira da amiga – será<br />
reconta<strong>do</strong> com prováveis falhas de sua memória.<br />
Logo após a citada passagem, Carlos continua: ‘‘Naquele dia escutei,<br />
certamente, porque era a amiga quem falava, e é <strong>do</strong>ce ouvir os amigos *...+’’ (IBID., p.<br />
275). O que Carlos, com isso, parece dizer a nós leitores é que, apesar de ser uma<br />
pessoa que oscila entre ouvir os outros e não ouvir, desta vez, ele optou por dar<br />
atenção à sua amiga. Então, sen<strong>do</strong> este o caso, é necessário debruçarmo-nos <strong>sobre</strong> a<br />
qualidade desta atenção.<br />
To<strong>do</strong>rov afirma que ‘‘o fantástico dura *...+ apenas o tempo de uma hesitação’’<br />
(TODOROV, 2008, p. 47). Isso leva-nos a crer que, ao final da leitura, nós teremos que<br />
optar por uma solução: (1) natural – o estranho –, perfeitamente explicável pelas leis<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> em que vivemos, ainda que o evento tenha si<strong>do</strong> insólito; ou (2) <strong>sobre</strong>natural<br />
– o maravilhoso –, em que teremos que aceitar novas leis naturais, diferentes das que<br />
conhecemos e concebemos, para explicar o evento ocorri<strong>do</strong>. Assim, o fantástico<br />
extinguir-se-ia tão logo a opção fosse feita pelo leitor. To<strong>do</strong>rov ainda diz que não só o<br />
leitor faz esta opção, mas também a personagem.
Todavia, toman<strong>do</strong> como exemplo o romance A Volta <strong>do</strong> Parafuso, de Henry<br />
James, To<strong>do</strong>rov defende-se ao provar que, ainda que o fantástico possa ter vida curta,<br />
certas narrativas mantêm a hesitação até o fim, impedin<strong>do</strong> que o leitor – e a<br />
personagem – tenha subsídios suficientes para optar pelo estranho ou pelo<br />
maravilhoso: ‘‘Seria falso, entretanto, pretender que o fantástico só possa existir em<br />
uma parte da obra. Há textos que mantém a ambiguidade até o fim, o que quer dizer<br />
também: além’’ (IBID., p. 50). E Carlos, o narra<strong>do</strong>r que decidiu dar atenção à história<br />
da amiga, parece contribuir para que a ambiguidade permaneça, como no romance de<br />
Henry James, até o fim da narrativa.<br />
Carlos, já no início da narrativa, confunde o leitor ao confessar que ora escuta o<br />
que os outros dizem, ora não escuta, mas ainda assim ‘‘vai passan<strong>do</strong>’’ (ANDRADE,<br />
1960, p. 275) as histórias que, por vezes, ouve. É, no mínimo, para<strong>do</strong>xal a atitude de<br />
um narra<strong>do</strong>r que quer que acreditemos em sua história quan<strong>do</strong> sua atenção é<br />
vacilante.<br />
Ainda que afirmasse ter escuta<strong>do</strong> a amiga ‘‘porque era a amiga que falava, e é<br />
<strong>do</strong>ce ouvir os amigos’’ (IBIDEM), ao começar de fato a narrar o incidente, Carlos<br />
novamente vacila: ‘‘Falava de cemitérios? De telefones? Não me lembro’’ (IBIDEM). Se<br />
ele afirma realmente ter da<strong>do</strong> atenção à amiga, como não consegue se lembrar <strong>do</strong> que<br />
ouvira? Logo depois, repentinamente, recorda-se de que a história era <strong>sobre</strong> flores –<br />
como se a flor fosse um adereço e não a peça principal –, dan<strong>do</strong> mais ênfase à feição<br />
grave da amiga <strong>do</strong> que ao elemento chave da matéria narrada: ‘‘De qualquer mo<strong>do</strong>, a<br />
amiga – bom, agora me recor<strong>do</strong> que a conversa era <strong>sobre</strong> flores – ficou subitamente<br />
grave, sua voz murchou um pouquinho’’ (IBID.).<br />
Apesar de a narrativa (logo após as falas introdutórias de Carlos aqui citadas)<br />
passar a ter como voz principal a amiga, não devemos esquecer que ela fala através de<br />
Carlos, ou melhor, é ele quem fala por ela, pois é ele quem, de fato, conta a história. E<br />
assim, a atenção vacilante permanece também na fala da amiga, daqui por diante, a<br />
narra<strong>do</strong>ra.<br />
Percebamos que a amiga de Carlos não tem nome, assim como também não se<br />
nomeia, em momento algum <strong>do</strong> conto, a protagonista <strong>do</strong> incidente narra<strong>do</strong> por ele: a<br />
amiga de Carlos é tratada simplesmente como ‘‘amiga’’; da mesma maneira, a<br />
protagonista <strong>do</strong> incidente é tratada simplesmente como ‘‘moça’’: ‘‘– Era uma moça
que morava na rua General Poli<strong>do</strong>ro – começou ela’’ (IBID., p. 276). Se a palavra<br />
‘‘amiga’’ é uma classificação para uma pessoa próxima de nós, alguém com quem<br />
temos contato frequente e com quem compartilhamos assuntos por vezes íntimos,<br />
nada mais justo e mais comum <strong>do</strong> que a chamarmos por seu nome. Assim como a<br />
‘‘amiga’’, a ‘‘moça’’ também não é nomeada, não há uma marca de identidade –<br />
característica intrínseca <strong>do</strong>s nomes – que a defina; parece bastar, a Carlos, referir-se a<br />
elas por seus termos gerais em detrimento <strong>do</strong>s específicos. A opção de Carlos por esta<br />
generalidade provoca um interessante deslocamento da atenção <strong>do</strong> leitor: a ‘‘moça’’,<br />
não ten<strong>do</strong> nome, tem sua importância reduzida, ao passo que o fato de ela morar<br />
perto de um cemitério tem sua ênfase aumentada. Além disso, a narra<strong>do</strong>ra, logo após,<br />
começa a divagar <strong>sobre</strong> funerais, aumentan<strong>do</strong> ainda mais a importância <strong>do</strong> cemitério<br />
na narrativa:<br />
Você sabe que quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar<br />
conhecimento da morte. Toda hora está passan<strong>do</strong> um enterro, e a gente<br />
acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamentos,<br />
ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olha<strong>do</strong>. A moça,<br />
naturalmente, gostava mais de ver passar enterro <strong>do</strong> que de não ver nada.<br />
[...]. (IBID., p. 276)<br />
Generalizações, informações vagas 4 , imprecisões, dúvidas, para<strong>do</strong>xos e falhas<br />
de memória são elementos que contribuem fortemente para a hesitação to<strong>do</strong>roviana.<br />
Portanto, até aqui, é possível fazer algumas perguntas: (1) Se a amiga de Carlos era, de<br />
fato, uma amiga, ou seja, uma pessoa próxima e íntima, por que razão ele não a chama<br />
pelo nome? (2) Se a moça, a protagonista <strong>do</strong> incidente, era uma pessoa conhecida pela<br />
amiga de Carlos, por que ela também não é chamada pelo nome? (3) Como a amiga de<br />
Carlos soube da moça e de seu incidente? (4) Por que Carlos não demonstra<br />
curiosidade em saber a fonte da história? (5) Se especularmos que a amiga soube <strong>do</strong><br />
incidente através de outra ou outras pessoas (num desenrolar infinito de versões<br />
orais), como poderemos, nós leitores, partin<strong>do</strong> disto, confiar na veracidade <strong>do</strong> que é<br />
narra<strong>do</strong>? Carlos vai nos deixar, talvez propositadamente, sem resposta para estas<br />
questões. Porém, para a penúltima pergunta, há um indício de que a narra<strong>do</strong>ra omite<br />
certas informações.<br />
4 A narra<strong>do</strong>ra, ao mesmo tempo em que parece dar informações vagas – por não saber mais <strong>do</strong> que o<br />
que diz –, também parece achar relevante somente revelar o nome da rua e a proximidade com o<br />
cemitério – ainda que soubesse mais <strong>do</strong> que o que diz.
Leva<strong>do</strong> pela curiosidade, Carlos indaga à amiga 5 <strong>sobre</strong> a moça, desejan<strong>do</strong> saber<br />
mais <strong>do</strong> que seu endereço: ‘‘- Ela trabalhava?’’ (IBID., p. 276); ao que a amiga responde<br />
de forma rude: ‘‘– Em casa. Não me interrompa. Você não vai me pedir a certidão de<br />
idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contan<strong>do</strong>, isso não<br />
interessa’’ (IBIDEM). Esta resposta parece satisfazer a curiosidade de Carlos, que,<br />
resigna<strong>do</strong>, não pede mais qualquer outra informação <strong>sobre</strong> a moça. Contu<strong>do</strong>, ela não<br />
satisfaz a curiosidade <strong>do</strong> leitor; pelo contrário, a resposta provoca outra pergunta: (6)<br />
A amiga respondeu à pergunta de Carlos desta forma, rude e agressiva, por achar,<br />
realmente, que estas informações não fossem relevantes para o caso ou por não sabê-<br />
las, ou melhor, por estar inventan<strong>do</strong> toda a história?<br />
To<strong>do</strong>rov, ao citar o inglês Montague Rhodes James, retoma a hesitação entre o<br />
natural e o <strong>sobre</strong>natural como elemento crucial para o efeito fantástico: ‘‘Às vezes é<br />
necessário ter uma porta de saída para uma explicação natural, mas deveria<br />
acrescentar: que esta porta seja bastante estreita para que não se possa usá-la’’<br />
(TODOROV, 2008, p.31). Se as informações vagas, os para<strong>do</strong>xos, as imprecisões e as<br />
dúvidas são alguns <strong>do</strong>s elementos que inutilizam a porta para uma saída natural – e<br />
compõem essencialmente o conto fantástico –, então, agora devemos discuti-los.<br />
O conto de Drummond de Andrade apresenta várias modalizações, que são<br />
empregadas nas falas da narra<strong>do</strong>ra para que a dúvida e a imprecisão (ainda que soem,<br />
num primeiro momento, despretensiosamente verdadeiras) possam perdurar. Ao<br />
longo <strong>do</strong> conto, podemos identificar trechos que corroboram esta afirmativa: (a) ao<br />
tentar explicar o interesse da moça por contemplar funerais, a narra<strong>do</strong>ra não é exata:<br />
‘‘Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o préstito até o lugar <strong>do</strong><br />
sepultamento. Deve ter si<strong>do</strong> assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro’’<br />
(ANDRADE, 1960, p. 276, grifo meu); (b) ao buscar mais razões para este interesse, a<br />
narra<strong>do</strong>ra é incoerente: ‘‘Mas por preguiça, pela curiosidade <strong>do</strong>s enterros, sei lá por<br />
que, deu para andar em São João Batista, contemplan<strong>do</strong> túmulo. Coitada!’’ (IBID., grifo<br />
meu); e ainda, (c) ao imaginar o que a moça pudesse estar fazen<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong><br />
cemitério, a narra<strong>do</strong>ra é contraditória e conclui sua hipótese sem que tenha<br />
evidências:<br />
5 Não devemos esquecer que, embora houvesse duas vozes narrativas – a de Carlos e a de sua amiga –<br />
toda a história é contada por Carlos.
Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma<br />
coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia<br />
cálculos de idade <strong>do</strong>s defuntos, considerava retratos em medalhões – sim,<br />
há de ser isso que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? (IBID., p.<br />
276-7, grifos meus).<br />
Não só a linguagem, mas também a postura da moça diante das sucessivas<br />
ligações que recebe contribui para a hesitação fantástica. Ao atender ao telefonema e<br />
ouvir pela primeira vez a reivindicação de uma flor 6 pela ‘‘voz’’ – ‘‘tão distante’’ (IBID.,<br />
p. 277) que não se podia precisar se pertencia a um homem ou a uma mulher –, a<br />
moça ri, sem dar qualquer crédito ao que ouve, e logo desliga. Ao atender pela<br />
segunda vez ao telefonema, ela ri e zomba <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong> feito, dizen<strong>do</strong> que a flor tão<br />
seguramente reivindicada estaria com ela: ‘‘– Está aqui comigo, vem buscar’’ (IBID.);<br />
não seria capcioso afirmar que, até aqui, inclusive nós leitores acreditamos, como a<br />
moça, que os telefonemas fossem apenas trotes. No entanto, no dia seguinte, à<br />
mesma hora, a mesma ‘‘voz’’ liga novamente, fazen<strong>do</strong> a mesma reivindicação <strong>do</strong> dia<br />
anterior: ‘‘Mas no outro dia houve. À mesma hora o telefone tocou. A moça, inocente,<br />
foi atender’’ (IBID., p. 278). Depois de repetidas e pontuais ligações e reivindicações, a<br />
moça deixa sua postura zombeteira e passa a duvidar da verdade que ela mesma<br />
construíra:<br />
E desligou. Mas voltan<strong>do</strong> ao quarto, já não ia só. Levava consigo a ideia<br />
daquela flor, ou antes, a ideia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma<br />
flor no cemitério e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não<br />
se lembrava de ter visto nenhum conheci<strong>do</strong>, era distraída por natureza. [...]<br />
Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como <strong>do</strong> interurbano. Parecia vir<br />
de mais longe ainda [...]. (IBID.)<br />
Neste ponto em que a moça duvida de sua própria verdade construída – pois<br />
não consegue argumentos para sustentar ser um trote a razão das ligações –, nós<br />
leitores também a acompanhamos inevitavelmente. Ainda que não acreditássemos<br />
que um cadáver pudesse estar ao telefone exigin<strong>do</strong> uma flor, começamos a duvidar da<br />
nossa, até então, porta de saída natural para o incidente. Assim, mais uma pergunta é<br />
deixada sem resposta: (7) Para ter o número <strong>do</strong> telefone da moça, a pessoa que<br />
estivesse fazen<strong>do</strong> as ligações, além de estar no cemitério e vê-la arrancar a flor da<br />
6 A narra<strong>do</strong>ra, com base em seu ‘‘puro palpite’’ (ANDRADE, 1960, p. 277), admite que a flor<br />
constantemente reivindicada pela ‘Voz’ seja uma margarida.
sepultura, deveria ser conhecida, uma pessoa próxima. Portanto, se a moça não se<br />
lembrava de ter ti<strong>do</strong> companhia àquela ocasião, quem poderia ser?<br />
Do mesmo mo<strong>do</strong>, ao se observar as personagens secundárias – a mãe, o pai e o<br />
irmão da moça –, percebe-se que eles, por adquirirem posturas antagônicas,<br />
contribuem drasticamente para a hesitação fantástica. O pai e o irmão promovem<br />
diversas buscas infrutíferas pela vizinhança para tentar encontrar o autor <strong>do</strong>s<br />
irresponsáveis telefonemas por acreditarem em uma explicação natural para o<br />
incidente:<br />
Pai e filho dividiram entre si as tarefas. Passaram a frequentar as casas de<br />
comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se<br />
alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvi<strong>do</strong> <strong>do</strong> espião se<br />
afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. (IBIDEM, p. 279)<br />
Por outro la<strong>do</strong>, a mãe recorre ao <strong>sobre</strong>natural como solução para tentar salvar<br />
a filha, posto que a moça já estava ‘‘perden<strong>do</strong> o apetite e a coragem. Andava pálida,<br />
sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar’’ (IBID., p. 280). Sem comunicar ao mari<strong>do</strong><br />
e ao filho (já que estes admitiram o estranho como saída), a mãe vai até uma<br />
floricultura e compra ‘‘cinco ramalhetes colossais’’ (IBID.), entra no cemitério e<br />
deposita-os <strong>sobre</strong> as cinco sepulturas de onde – ao menos em uma delas, acredita-se –<br />
sua filha possa ter arranca<strong>do</strong> a flor. Ainda que ela, a mãe, estivesse tomada pela<br />
compaixão e pelo desespero, seu ato corrobora sua decisão pelo maravilhoso<br />
to<strong>do</strong>roviano, admitin<strong>do</strong> ser um cadáver, um fantasma o autor <strong>do</strong>s insistentes<br />
telefonemas.<br />
Curiosamente, após diversas tentativas frustradas de encontrar o autor <strong>do</strong>s<br />
telefonemas, o pai da moça também se rende ao <strong>sobre</strong>natural: vai encontrar-se com<br />
um médium para que este faça contato com o fantasma (agora já admitin<strong>do</strong> ser um<br />
fantasma) que diariamente atormenta sua filha. Contu<strong>do</strong>, a narra<strong>do</strong>ra não ajuda, não<br />
resolve o impasse, pois quan<strong>do</strong> nós leitores achamos que vai haver uma solução para o<br />
incidente, ou seja, vai haver uma explicação <strong>sobre</strong>natural para a história, ela invalida<br />
os poderes mediúnicos e mantém, com isso, a hesitação fantástica:<br />
[...] mas os poderes <strong>sobre</strong>naturais se recusaram a cooperar, e a voz<br />
continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a<br />
família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma<br />
explicação desanima<strong>do</strong>ra, que era a falta de qualquer explicação lógica para
aquilo), seria de alguém que houvesse perdi<strong>do</strong> toda noção de piedade; e se<br />
era de morto, como julgar os mortos? (IBIDEM, p. 281).<br />
Carlos, o narra<strong>do</strong>r de ‘‘Flor, Telefone, Moça’’, desde o início de sua narrativa,<br />
tenta fazer com que o leitor acredite no que se está sen<strong>do</strong> dito. Por isso, ele inicia seu<br />
relato afirman<strong>do</strong> que a matéria narrada não é um conto, embora nós leitores a<br />
tratássemos como tal. Ele dá voz à sua amiga sem nome, que conta um incidente <strong>sobre</strong><br />
uma moça também sem nome. Com isso, ele apresenta duas personagens sem<br />
identidade e sem rastros. As modalizações usadas e a construção ambígua da postura<br />
das personagens fazem com que nós leitores, consequentemente, tenhamos também<br />
interpretações ambíguas. É possível, inclusive, pensar esta narrativa como ten<strong>do</strong> uma<br />
forte tradição oral, uma vez que a fonte não é mencionada. Agin<strong>do</strong> desta maneira,<br />
teríamos que contar com perdas e acréscimos a cada recontar da história – teríamos<br />
que encará-la como apenas uma dentre muitas versões. De qualquer mo<strong>do</strong>, este conto<br />
(assim como o romance A Volta <strong>do</strong> Parafuso) não possibilita uma decisão pelo<br />
estranho ou pelo maravilhoso. A história contada, da forma como é contada, deixa a<br />
porta entreaberta, imóvel e emperrada, para que não se consiga ir além da hesitação<br />
fantástica. Por esta razão, o telefone continuará tocan<strong>do</strong> e nós nunca saberemos de<br />
quem realmente é a ‘‘voz’’ <strong>do</strong> outro la<strong>do</strong> da linha.<br />
Referências Bibliográficas:<br />
ANDRADE, Carlos Drummond. Flor, telefone, moça. In: SILVA, Fernan<strong>do</strong> Correia da;<br />
PAES, José Paulo. Maravilhas <strong>do</strong> conto fantástico. Prefácio de José Paulo Paes. São<br />
Paulo: Cultrix, 1960.<br />
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara C.<br />
Castello. São Paulo: Perspectiva, 2008