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Resenha “Uma noite do século” 1 (Álvares de Azevedo)<br />
Ana Paula A. Santos 2<br />
Álvares de Azevedo inicia o seu Noite na taverna com o conto “Uma noite do século”, um<br />
prólogo de clima orgiástico, sombrio e terrível, como uma preparação para as próximas narrativas.<br />
De inegável influência byroniana, o conto de abertura de um dos mais conhecidos livros do<br />
ultrarromantismo brasileiro desempenha um papel fundamental para o conjunto de narrativas<br />
fantásticas: aponta ao leitor o tipo de histórias que serão tratadas, histórias com o claro objetivo<br />
de serem tão terríveis e assustadoras para quem as lê quanto para quem as escuta.<br />
Nessas histórias, a influência de Byron aparecerá constantemente, às vezes disfarçada, às<br />
vezes claramente citada. Para os jovens poetas do nosso ultrarromantismo, Lord Byron era um<br />
ideal a ser seguido e imitado, um herói, ou antes, um anti-herói. Sua extensa fama e as polêmicas<br />
que giravam em torno de sua pessoa inspiraram o movimento ultrarromântico de tal modo que<br />
todos os estudantes da época desejavam ser como Byron, e traduziam ou copiavam suas obras,<br />
deixando-se influenciar pelas aventuras de suas histórias, pela audácia e excentricidade retratadas<br />
pelo bardo inglês. Noite na taverna e tantas outras obras do Romantismo brasileiro devem a Byron<br />
uma infinidade de temas sombrios, negativos, sentimentais e polêmicos, como o incesto, o<br />
canibalismo, as orgias de Don Juan, o sarcasmo de Beppo, o sentimentalismo e o macabro dos<br />
seus poemas, entre outros muitos exemplos.<br />
Uma noite. Uma taverna. Cinco rapazes embriagados pelo clima insólito provocado pelo<br />
fumo e pelo vinho – assim se inicia o conto de Álvares de Azevedo. Uma ambientação sombria,<br />
muito aproximada às características do romantismo gótico, vem a seguir:<br />
– Silêncio, moços! acabai com essas cantilenas horríveis! Não vedes que as<br />
mulheres dormem ébrias, macilentas como defuntos?<br />
Quando as nuvens correm negras no céu como um bando de corvos errantes, e<br />
a lua desmaia como a luz de uma lâmpada sobre a alvura de uma beleza que<br />
dorme, que melhor noite que a passada ao reflexo das taças?<br />
– És um louco, Bertram! Não é a lua que lá vai macilenta: e o relâmpago que<br />
passa e ri de escárnio as agonias do povo que morre... aos soluços que seguem as<br />
mortalhas da cólera! (AZEVEDO, 2000, p. 565)<br />
As descrições são carregadas de analogias macabras: mulheres que dormem como<br />
cadáveres, nuvens que passam pelos céus como corvos, lua macilenta, uma noite mal iluminada,<br />
com relâmpagos que prenunciam uma tempestade. Podemos observar elementos do universo<br />
gótico, como a noite sombria, a tempestade, o gosto pela morte, a decadência. Contudo, ainda<br />
que esses elementos figurem por todos os contos da obra, não se pode considerar Noite na<br />
taverna, e nem mesmo “Uma noite do século”, uma obra gótica por excelência, pois lhe faltam<br />
outros elementos essenciais do gênero: o aspecto social, que trata da decadência da nobreza e das<br />
transformações e dramas de linhagem, o medievalismo e a evidência clara e incontestável do<br />
1<br />
AZEVEDO, Álvares de. A noite na taverna. In:___. Obra <strong>completa</strong>. Organização de Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova<br />
Aguilar, 2000. (pp. 565-567)<br />
2<br />
Graduanda do Curso de Letras da UERJ, Bolsista de Iniciação Científica e membro do Grupo de Pesquisa “O Medo<br />
como Prazer Estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).
elemento sobrenatural, como reação à excessiva crença na razão e na ciência consolidada pelo<br />
Iluminismo.<br />
Ainda que haja marcas do gótico em “Uma noite do século” e nos demais contos, elas<br />
aparecem muito mais como ambientação ou temática do que no enredo. Ao invés do subtexto<br />
social, temos a provocação moral; ao invés da decadência da nobreza, temos a dos próprios seres<br />
humanos, independentemente de posição social; não há caráter medieval, mas a estranha<br />
modernidade de cidadãos do mundo. Além disso, os contos não se contrapõem abertamente ao<br />
racionalismo, através da exploração do elemento sobrenatural, mas deixam um leve clima<br />
ambíguo, entre o sonho, a embriaguez e a cruel realidade.<br />
A partir dessas contraposições, podemos começar observando o contexto em que estão<br />
inseridos os personagens: o excesso de vinho e fumo confere uma incerteza à narrativa, pois todos<br />
os personagens estão sob o efeito desses entorpecentes:<br />
– O vinho acabou-se nos copos, Bertram, mas o fumo ondula ainda nos<br />
cachimbos! Após os vapores do vinho os vapores da fumaça! Senhores, em nome<br />
de todas as nossas reminiscências, de todos os nossos sonhos que mentiram, de<br />
todas as nossas esperanças que desbotaram, uma última saúde! A taverneira aí<br />
nos trouxe mais vinho: uma saúde! O fumo é a imagem do idealismo, é o<br />
transunto de tudo quanto há mais vaporoso naquele espiritualismo que nos fala<br />
da imortalidade da alma! E pois, ao fumo das Antilhas, a imortalidade da alma!<br />
(IBID., p. 566)<br />
Começa, então, uma discussão que irá estabelecer uma dualidade entre idealismo e<br />
realidade. Essa discussão se intensificará de forma gradativa, aumentando cada vez mais a tensão<br />
entre os dois pólos e culminando no próximo conto, onde será fundamental para o efeito causado<br />
pela história. Solfieri, protagonista do segundo conto, destaca-se entre os convivas de “Uma noite<br />
do século”, inflamando a discussão: “Um conviva se ergueu entre a vozeria: contrastavam-lhe com<br />
as faces de moço as rugas da fronte e a rouxidão dos lábios convulsos. Por entre os cabelos<br />
prateava-se-lhe o reflexo das luzes do festim.” (IBID., p. 566)<br />
Solfieri é descrito com características byronianas, o jeito taciturno, o cinismo, a arrogância,<br />
o desprezo pelas normas sociais, o passado conturbado refletido na própria fisionomia são todas<br />
características dos heróis ultrarromânticos, como retratados em Don Juan, Childe Harold e em<br />
outras obras de Lord Byron. 3 Esses aspectos físicos voltam a aparecer na maioria dos personagens<br />
de Noite na taverna: a pele pálida e o ar doentio e sofrível dos personagens de Álvares de Azevedo<br />
parecem refletir no físico a perturbação mental que sofrem.<br />
Eu vo-lo direi: se entendeis a imortalidade pela metempsicose, bem! Talvez<br />
eu a creia um pouco; pelo platonismo, não!<br />
– Solfieri! és um insensato! O materialismo é árido como o deserto, é<br />
escuro como um túmulo! A nós, frontes queimadas pelo mormaço do sol da vida,<br />
a nós sobre cuja cabeça a velhice regelou os cabelos, essas crenças frias? A nós os<br />
sonhos do espiritualismo.<br />
– Archibald! Deveras, que é um sonho tudo isso! No outro tempo o sonho<br />
da minha cabeceira era o espírito puro ajoelhado no seu manto argênteo, num<br />
3 É importante ressaltar que os personagens de Álvares de Azevedo não são inspirados somente nos personagens das<br />
obras de Byron, como também na polêmica figura do próprio escritor inglês. As histórias dos personagens de Byron<br />
foram consideradas por muitos como autobiográficas, de modo que não se sabe qual é o limite de sua extensa fama e<br />
de sua verdadeira e conturbada vida.
oceano de aromas e luzes! Ilusões! a realidade é a febre do libertino, a taça na<br />
mão, a lascívia nos lábios, e a mulher seminua, trêmula e palpitante sobre os<br />
joelhos. (IBID., p.566)<br />
Solfieri coloca em cheque o idealismo otimista dos seus colegas. Afinal, qual a importância<br />
de se viver para sempre? De alcançar uma glória inatingível depois da morte? Solfieri vê a<br />
imortalidade por um lado negativo, extremamente pessimista, que o caracterizará como um<br />
personagem cético. É como se ele visse o mundo através do spleen e do tédio byroniano, em que<br />
não vale a pena viver, quanto mais ser imortal. Extremamente desiludido com a vida, Solfieri faz a<br />
defesa do materialismo, defendendo a libertinagem e os prazeres em detrimento do mais<br />
profundo, espiritual ou esperançoso da humanidade.<br />
No trecho a seguir o discurso de Solfieri acaba evoluindo para um ceticismo blasfemo, tema<br />
também recorrente em Lord Byron:<br />
– Blasfêmia! e não crês em mais nada? teu ceticismo derribou todas as<br />
estátuas do teu templo, mesmo a de Deus?<br />
– Deus! Crer em Deus!?... sim! Como o grito íntimo o revela nas horas frias<br />
do medo, nas horas em que se tirita de susto e que a morte parece roçar úmida<br />
por nós! Na jangada do náufrago, no cadafalso, no deserto, sempre banhado do<br />
suor frio do terror e que vem a crença em Deus! Crer nele como a utopia do bem<br />
absoluto, o sol da luz e do amor, muito bem!Mas, se entendeis por ele os ídolos<br />
que os homens ergueram banhados de sangue e o fanatismo beija em sua<br />
inanimação de mármore de há cinco mil anos... não creio nele! (IBID., p. 567)<br />
O personagem questiona a profundidade da fé, pondo em cheque a crença em Deus, o<br />
fanatismo religioso, se perguntando até que ponto a religião justifica os desejos do próprio<br />
homem. Ao final desta longa discussão, temos um brinde entre os convivas, e a conclusão de que<br />
o ateísmo, a ciência, a ilusão, não passam de “escapes” – a única verdade, o que há de mais real<br />
no homem é o prazer.<br />
A verdadeira filosofia é o epicurismo, Hume bem o disse: o fim do homem é<br />
o prazer. Daí vede que é o elemento sensível quem domina. E, pois ergamo-nos,<br />
nós que amanhecemos nas noites desbotadas de estudo insano, e vimos que a<br />
ciência é falsa e esquiva, que ela mente e embriaga como um beijo de mulher.<br />
– Bem! muito bem! é um toast de respeito!<br />
– Quero que todos se levantem, e com a cabeça descoberta digam-no: Ao<br />
Deus Pã da natureza, aquele que a antigüidade chamou Baco o filho das coxas de<br />
um deus e do amor de uma mulher, e que nos chamamos melhor pelo seu nome –<br />
o vinho!... (IBID., p. 567 )<br />
O “toast de respeito” defende o prazer e mantêm ainda a construção da incerteza que será<br />
fundamental no conto que a precede. A filosofia do prazer é a que deve ser seguida, antes de<br />
tudo, pois é o que há de mais verdadeiro no homem. Com essa espécie de moral, deixada ao fim<br />
da discussão, o conto segue par seu final, que servirá como um “gancho”:<br />
– Agora ouvi-me, senhores! Entre uma saúde e uma baforada de fumaça,<br />
quando as cabeças queimam e os cotovelos se estendem na toalha molhada de<br />
vinho, como os braços do carniceiro no cepo gotejante, o que nos cabe é uma
historia sanguinolenta, um daqueles contos fantásticos como Hoffmann os<br />
delirava ao clarão dourado do Johannisberg!<br />
– Uma história medonha, não, Archibald? falou um moço pálido que a esse<br />
reclamo erguera a cabeça amarelenta. Pois bem, dir-vos-ei uma historia. Mas<br />
quanto a essa, podeis tremer a gosto, podeis suar a frio da fronte grossas bagas<br />
de terror. Não é um conto, é uma lembrança do passado.<br />
– Solfieri! Solfieri! aí vens com teus sonhos!<br />
– Conta!<br />
Solfieri falou: os mais fizeram silêncio. (IBID., p.567 )<br />
Solfieri declara que contará uma história fantástica ao estilo de Hoffmann, aterrorizante. E<br />
aquele que sentir a “emoção do medo” não deve se envergonhar. E, assim, o diálogo final de<br />
“Uma noite do século” termina de forma instigante, curiosa, fazendo crescer a suspeita sobre o<br />
que virá, tanto nos personagens quanto em nós, leitores: sobre o que será a próxima história? –<br />
perguntamo-nos.