Leia o ensaio completo - ensaios sobre literatura do medo
Leia o ensaio completo - ensaios sobre literatura do medo
Leia o ensaio completo - ensaios sobre literatura do medo
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Me<strong>do</strong> e impureza e m Noite na taverna<br />
Ana Paula A. Santos *<br />
RESUMO:<br />
A obra Noite na Taverna, <strong>do</strong> escritor ultrarromântico brasileiro Álvares de Azeve<strong>do</strong>, possui<br />
elementos que permitem sua classificação como <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, pois apresenta episódios singulares<br />
em que o <strong>sobre</strong>natural, a crueldade, a infâmia e a perversidade despertam nos leitores a emoção <strong>do</strong> me<strong>do</strong>,<br />
<strong>do</strong> horror e da repulsa. Neste trabalho, busca-se entender, nos últimos <strong>do</strong>is contos da obra “Johann” e<br />
“Último beijo de amor”, os acontecimentos terríveis presentes na narrativa – atos imorais e quebra de<br />
tabus capazes de chocar o leitor – e como a impureza e os peca<strong>do</strong>s gera<strong>do</strong>s por eles são responsáveis por<br />
degenerar física e psicologicamente os personagens principais, cujas histórias estão ligadas. Esses<br />
elementos, adiciona<strong>do</strong>s ao ambiente macabro, de aspecto gótico, e às influências <strong>do</strong> byronismo, são<br />
usa<strong>do</strong>s pelo autor para a construção <strong>do</strong> me<strong>do</strong> estético na narrativa.<br />
PALA VRAS-CHAVE: Noite na taverna, Álvares de Azeve<strong>do</strong>, <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong><br />
Introdução<br />
A noção de <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong> busca abranger obras que produzam prazer<br />
estético ao leitor através das emoções <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, <strong>do</strong> terror, <strong>do</strong> horror e da repulsa (cf.<br />
FRANÇA, 2011). A leitura é, pois, um importante meio artístico para a produção desse<br />
tipo de prazer, pois é possível, sim, sentir me<strong>do</strong> ao ler uma obra literária, bem como<br />
sentir prazer com esse tipo singular de me<strong>do</strong>.<br />
A <strong>literatura</strong> brasileira não possui exatamente um cânone desse subgênero,<br />
contu<strong>do</strong>, podemos reconhecer, entre as obras de alguns autores canônicos, aquelas que<br />
podem ser exemplos de <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong>. Dentre eles, Álvares de Azeve<strong>do</strong>, autor<br />
ultrarromântico, cujo gosto pelo macabro, pelo gótico, pelo par amor e morte, tornou-o<br />
reconheci<strong>do</strong>, até os dias de hoje, pelo epíteto de “Byron brasileiro”.<br />
Sua obra Noite na taverna pode, certamente, ser considerada uma obra<br />
integrante da <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong> brasileira. É dividida em sete narrativas – “Uma noite<br />
<strong>do</strong> século”, “Solfieri”, “Bertram”, “Gennaro”, “Claudius Herman”, “Johann” e “Último<br />
beijo de amor” – com tramas polêmicas e sombrias, envolven<strong>do</strong> tabus sociais, como a<br />
necrofilia, o incesto, o suicídio, entre outros. Parece claro que o autor pretendia chocar o<br />
leitor, ten<strong>do</strong> em vista que tais temáticas não eram e ainda não são encaradas sem alguma<br />
estranheza, revolta ou repugnância pelo público. A presença desses temas é o principal<br />
artifício para a construção <strong>do</strong> me<strong>do</strong> em Noite na taverna, pois mostra a preocupação <strong>do</strong><br />
autor em causar a emoção <strong>do</strong> me<strong>do</strong> em seu leitor – o que configuraria a obra como<br />
genuína representante da <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong>.<br />
Partin<strong>do</strong>-se desses pressupostos, este trabalho concentra-se na análise <strong>do</strong>s<br />
últimos contos de Noite na taverna, “Johann” e “Último beijo de amor”, utilizan<strong>do</strong>, para<br />
esse intento, as noções de repulsa e impureza defendidas pelo filósofo Noël Carroll na<br />
obra A filosofia <strong>do</strong> horror ou Para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> coração. Entende-se, no presente trabalho,<br />
que a ideia de impureza é, pois, o elemento central <strong>do</strong>s últimos <strong>do</strong>is contos da obra, se<br />
quisermos compreender as duas narrativas como exemplos de <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong>.<br />
Impureza e repulsa<br />
“Johann” e “Último beijo de amor” possuem suas histórias interligadas: os fatos<br />
narra<strong>do</strong>s na primeira desencadeiam os acontecimentos da última, e, em ambas, o leitor<br />
experimenta não apenas a sensação <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, mas também a repulsa. Carroll chama<br />
atenção, nas narrativas de horror, para a convergência entre essas duas sensações, que<br />
* Graduanda <strong>do</strong> Curso de Letras da UERJ e bolsista de iniciação científica membro <strong>do</strong> Grupo de Pesquisa<br />
“O Me<strong>do</strong> como Prazer Estético”, sob a orientação <strong>do</strong> Prof. Dr. Julio França (UERJ).
ele defende serem intimamente ligadas: “Não é simplesmente uma questão de me<strong>do</strong>, ou<br />
seja, de ficar aterroriza<strong>do</strong> por algo que ameaça ser perigoso. Pelo contrário, a ameaça<br />
mistura-se à repugnância à náusea e à repulsa” (CARROLL, 1999, p. 39).<br />
Nos <strong>do</strong>is últimos contos de Noite na taverna, a repulsa é uma constante. Essa<br />
reação emocional <strong>do</strong> leitor é fundamental para o horror artístico, pois permite que tal<br />
emoção seja provocada por descrições e imagens, sem que, necessariamente, a<br />
experiência repulsiva transcenda o nível ficcional. Nos contos em questão, a repulsa é<br />
construída principalmente através de um elemento que transpassa as duas narrativas: a<br />
sensação da impureza. Carroll, através das ideias defendidas por Mary Douglas em seu<br />
livro Purity and danger, define a impureza como: “a transgressão ou a violação de<br />
esquemas de categorização cultural” (Mary Douglas apud CARROLL, 1999, p. 50), ou<br />
seja, podemos considerar impuro tu<strong>do</strong> aquilo que foge às normas, regras, leis e<br />
categorias pré-estabelecidas em nosso cotidiano sociocultural. Assim, é comum, na<br />
<strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong>, a imundície, a incompletude, a falta de uma unidade ou forma. A<br />
exemplo, podemos constatar que os monstros que mais comumente nos horrorizam<br />
valem-se desses aspectos, como zumbis, vampiros, fantasmas, etc.<br />
Em Noite na taverna, não temos a presença desses tipos de seres extraordinários,<br />
mas são os próprios protagonistas das histórias macabras que assumem o papel de<br />
“monstros”, pois suas atitudes são tão horríveis e repulsivas, que podem ser<br />
consideradas monstruosas. A impureza, então, está ligada a questões morais, com<br />
comportamentos que transgridem os bons costumes de nossa sociedade.<br />
Além disso, não é sem motivo que os lugares onde se passam os acontecimentos<br />
das histórias são esquinas escuras, campos desertos, cemitérios; além de lembrarem<br />
espaços típicos <strong>do</strong>s romances góticos, são liga<strong>do</strong>s à impureza, ao que é macula<strong>do</strong>,<br />
ameaça<strong>do</strong>r, e fogem da normalidade.<br />
Johann<br />
O conto “Johann” é narra<strong>do</strong> pelo protagonista homônimo. Nos mesmos moldes<br />
das narrativas anteriores da obra, trata-se de uma história macabra, em que tabus,<br />
mistérios e mortes instigarão o prazer proporciona<strong>do</strong> pela leitura. Ambientada na<br />
França, a narrativa de Johann começa com uma contenda entre ele e um jovem chama<strong>do</strong><br />
Arthur, por causa de um desentendimento em um jogo. O próprio Johann reconhece que<br />
o “fogo <strong>do</strong> jogo” o deixa enraiveci<strong>do</strong>, e ao insultarem-se, os rivais levam a briga a<br />
proporções fatais. Johann está ligeiramente alcooliza<strong>do</strong>, e continua nesse esta<strong>do</strong> por<br />
toda a sua narrativa, o que apenas agravará os acontecimentos a seguir.<br />
Nas palavras <strong>do</strong> próprio Arthur, a situação é a seguinte: “Não há meio de paz<br />
entre nós: um bofetão e uma luva atirada às faces de um homem são nó<strong>do</strong>as que só o<br />
sangue lava. É pois um duelo de morte.” (AZEVEDO, 2000, p. 602). É curioso perceber<br />
que, desde então, a ideia de uma nó<strong>do</strong>a, de uma mácula, logo, de algo impuro, é<br />
lançada. Essa ideia tornará a ser utilizada pelo autor, e é importante que fiquemos<br />
atentos a ela.<br />
Antes que o duelo aconteça, porém, o protagonista dá sua palavra a Arthur,<br />
prometen<strong>do</strong> que, caso este último saísse perde<strong>do</strong>r <strong>do</strong> duelo, Johann entregaria uma carta<br />
a certa pessoa em seu nome. Johann compromete-se em honrar a promessa e os rivais<br />
seguem à procura <strong>do</strong> lugar para o duelo que, embora escolhi<strong>do</strong> ao acaso pelos duelistas,<br />
reúne inúmeras condições favoráveis para um acontecimento macabro: é meia noite,<br />
num lugar distante, fora da cidade e deserto.<br />
Com um único tiro, Johann sagra-se vence<strong>do</strong>r. Contu<strong>do</strong>, ao invés de cumprir a<br />
tarefa para qual fora incumbi<strong>do</strong>, comete o que ele próprio admite ser uma infâmia: vai
ao encontro, no lugar <strong>do</strong> outro, seguin<strong>do</strong> as pistas deixadas pela carta. Às escuras,<br />
passa-se por Arthur e desvirgina a amante deste.<br />
Ao contar essa parte de sua aventura, temos uma pausa em que nos é descrita<br />
uma intrigante reação <strong>do</strong> protagonista: “Johann encheu o copo: bebeu-o, mas<br />
estremeceu.” (AZEVEDO, 2000, p. 604). Essa reação nos chama atenção, e é vital que<br />
nos fizemos nela; mas ela é deixada em suspense, instigan<strong>do</strong> nossa curiosidade.<br />
Em seguida, Johann continua sua história: assim que aban<strong>do</strong>na a amante de<br />
Arthur, encontra um desconheci<strong>do</strong> que estivera à espreita, e com o qual trava uma<br />
sangrenta batalha. O protagonista, novamente, sai vence<strong>do</strong>r. Porém, ao descobrir a<br />
identidade <strong>do</strong> homem que acabara de matar, ocorre uma terrível revelação:<br />
Arrastei o cadáver pelos ombros... levei-o pela laje da calçada até ao lampião da rua,<br />
levantei-lhe os cabelos ensanguenta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> rosto... (um espasmo de me<strong>do</strong> contraiu<br />
horrivelmente a face <strong>do</strong> narra<strong>do</strong>r – tomou o copo, foi beber: os dentes lhe batiam como de<br />
frio: o copo estalou-lhe nos lábios).<br />
Aquele homem – sabeis-lo! era <strong>do</strong> sangue <strong>do</strong> meu sangue – era filho das entranhas da<br />
minha mãe como eu – era meu irmão ! (Ibid.)<br />
O personagem descobre-se assassino <strong>do</strong> próprio irmão, que viera defender a<br />
honra da <strong>do</strong>nzela que ele acabara de deflorar. Logo, Johann compreende, para a sua<br />
infelicidade, que a amante de Arthur era senão sua própria irmã. Mais uma vez temos<br />
ideia da gravidade de seus crimes através das descrições de suas reações, repletas de<br />
espasmos e tremedeiras:<br />
Na verdade que sou um maldito! (...) Vedes: sinto frio, muito frio: tremo de calafrios e o<br />
suor me cobre nas faces! Quero o fogo <strong>do</strong>s espíritos! a ardência <strong>do</strong> cérebro ao vapor que<br />
tonteia... quero esquecer!<br />
– Que tens, Johann? Tiritas como um velho centenário!<br />
– Que tenho? O que tenho? Não o vedes pois? Era minha irmã!... (AZEVEDO, 2000, p.<br />
605)<br />
Concluímos, então, que a aventura narrada por Johann é um caso de incesto.<br />
Sabemos que ter relações sexuais com parentes consanguíneos é considera<strong>do</strong> um grave<br />
tabu social, e apenas a ideia dessa transgressão já é capaz de nos suscitar repugnância,<br />
pois o crime cometi<strong>do</strong> infringe nossos costumes sociais; é algo inadmissível à medida<br />
que confronta conceitos rigidamente estabeleci<strong>do</strong>s para uma boa convivência.<br />
Johann torna-se impuro ao transgredir as leis da exogamia. Torna-se alguém<br />
repulsivo, alguém que cometeu um ato infame. O próprio personagem reconhece a<br />
impureza advinda de seu ato, e o horror que sente ao lembrar-se de algo tão moralmente<br />
repulsivo é capaz de provocar nele reações físicas fortes: suor, náuseas, calafrios,<br />
tremores e espasmos, como vimos nos excertos.<br />
De certa forma, as reações de Johann “instruem” os leitores <strong>sobre</strong> como devem<br />
reagir ao crime <strong>do</strong> incesto, ou seja, de uma forma paralela às reações <strong>do</strong> protagonista.<br />
Carroll, em seu estu<strong>do</strong> <strong>sobre</strong> o horror, compreende que nas obras <strong>do</strong> gênero, muitas<br />
vezes as respostas emocionais <strong>do</strong>s leitores seguem as respostas <strong>do</strong>s personagens. Nas<br />
palavras <strong>do</strong> próprio: “as respostas <strong>do</strong>s personagens muitas vezes parecem sugerir as<br />
respostas emocionais <strong>do</strong> público” (CARROLL, 1999, p. 32). Como o público não<br />
cometeu o mesmo crime de Johann, é compreensível que não tenham exatamente as<br />
mesmas reações <strong>do</strong> personagem, mas sim respostas emocionais aproximadas.<br />
Paralelamente, o que se sente é a repulsa, o nojo, a indignação em relação ao ato de<br />
transgressão moral.<br />
Apesar disso, é interessante notar o caráter insólito da história de Johann:<br />
embora o protagonista certamente fosse cometer uma vileza (ao se passar por Arthur no
encontro com sua amante), ele, em nenhum momento, imaginara desgraçar a vida de<br />
seus irmãos. O acontecimento é obra de um “estranho acaso”, que reforça a intenção <strong>do</strong><br />
autor em suas pretensões de impressionar e horrorizar seu público. Porém, ainda que<br />
não consideremos Johann como diretamente culpa<strong>do</strong> pelo crime, o caráter transgressivo<br />
e impuro <strong>do</strong> incesto não permite que seja facilmente expia<strong>do</strong>.<br />
Porém, ao cometer incesto, Johann não maculou apenas a sua vida, mas também<br />
a da sua própria irmã, como será visto na última narrativa de Noite na taverna.<br />
Último beijo de amor<br />
Assim como Johann, Giorgia também se torna impura, por ter cometi<strong>do</strong> um ato<br />
incestuoso, ainda que inconscientemente. A personagem é a protagonista de “Último<br />
beijo de amor”, onde reaparece quan<strong>do</strong>, findada a orgia, os convivas <strong>do</strong>rmem<br />
profundamente, espalha<strong>do</strong>s pelo chão da taverna. Sua aparição repentina, na calada da<br />
noite e em meio à chuva, é impressionante e assusta<strong>do</strong>ra, e merece destaque:<br />
Uma luz raiou súbito pelas fisgas da porta. A porta abriu-se. Entrou uma mulher vestida de<br />
negro. Era pálida, e a luz de uma lanterna, que trazia erguida na mão, se derramava<br />
macilenta nas faces dela e dava-lhe um brilho singular aos olhos. Talvez que um dia fosse<br />
uma beleza típica, uma dessas imagens que fazem descorar de volúpia nos sonhos de<br />
mancebo. Mas agora com sua tez lívida, seus olhos acesos, seus lábios roxos, suas mãos de<br />
mármore, e a roupagem escura e gotejante da chuva, disséreis antes – o anjo perdi<strong>do</strong> da<br />
loucura! (AZEVEDO, 2000, p. 605)<br />
O horror que sentimos em relação à personagem deve-se ao fato de que o autor<br />
envolve-a não só num clima terrorífico, como também faz dela, como podemos ver<br />
através da descrição de sua chegada, uma figura que perturba certa tranquilidade que<br />
havia se instaura<strong>do</strong> na narrativa, causan<strong>do</strong>-nos me<strong>do</strong>. A forma impactante como Giorgia<br />
chega à taverna é, pois, um bom exemplo de ameaça experimentada pelo público na<br />
<strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong>.<br />
A impureza de Giorgia se mostra principalmente em seu aspecto físico, que se<br />
transforma drasticamente. Antes, Giorgia era uma <strong>do</strong>nzela, virginal e acetinada; agora,<br />
sua aparição mostra que se tornou sombria, sinistra, com um ar mórbi<strong>do</strong> e<br />
enlouqueci<strong>do</strong>. É certo dizer que Giorgia degenera-se. A própria personagem, consciente<br />
de sua impureza, sabe que essa transfiguração física é consequência <strong>do</strong> crime<br />
repugnante ao qual fora vítima; ela chega a comparar sua beleza com uma flor revolvida<br />
no lo<strong>do</strong>, algo belo, mas que foi macula<strong>do</strong> – “outrora era Giorgia, a virgem: mas hoje é<br />
Giorgia, a prostituta!” (AZEVEDO, 2000, p. 606). Essas comparações são usadas na<br />
narrativa para associar a figura de Giorgia a algo impuro, chaman<strong>do</strong> mais uma vez a<br />
atenção <strong>do</strong>s leitores para sua corrupção física e moral.<br />
De início, desconhecen<strong>do</strong> os propósitos da personagem, sua aparição e seus<br />
objetivos são um mistério para os leitores. Ela aproxima-se de Arnold, mas não ousa<br />
tocá-lo, em seguida – e para espanto <strong>do</strong> leitor – encontra Johann, torna-se ainda mais<br />
sombria, puxa um punhal e o mata. O trecho a seguir mostra que, apesar de sua<br />
determinação, Giorgia sabe que o ato que comete é, senão, mais um peca<strong>do</strong> – o <strong>do</strong><br />
fratricídio:<br />
O lume baço da lanterna dan<strong>do</strong> nas roupas espalhava sombras <strong>sobre</strong> Johann. A fronte da<br />
mulher pendeu – e sua mão pousou na garganta dele. – Um soluço rouco e sufoca<strong>do</strong> ofegou<br />
daí. A desconhecida levantou-se. Tremia, e ao segurar na lanterna ressoou-lhe na mão um<br />
ferro... Era um punhal... Atirou-o ao chão. Viu que tinha as mãos vermelhas – enxugou-as<br />
nos longos cabelos de Johann...” (Ibid.)
É comum na <strong>literatura</strong> gótica, personagens com passa<strong>do</strong>s cheios de mistérios e<br />
crimes repugnantes. Assim acontece com Giorgia, cujo passa<strong>do</strong> incestuoso, envolvi<strong>do</strong><br />
com as macabras aventuras de Arthur (que descobrimos ser Arnold) e Johann, é o que<br />
motiva sua vingança em “Último beijo de amor”. Ao assassinar Johann, seu próprio<br />
irmão, a protagonista iguala-se a ele em seus crimes – torna-se incestuosa e fratricida.<br />
Por conta da gravidade e <strong>do</strong> horror de seus delitos repulsivos, Johann e Giorgia<br />
são seres moralmente inconcebíveis em nossa sociedade. Giorgia reconhece que a<br />
impureza procedente de seus crimes só possui uma única solução, a morte: “Minha sina<br />
é negra: nas minhas lembranças há uma nó<strong>do</strong>a torpe... Hoje! é o leito venal...<br />
Amanhã!... só espero no leito <strong>do</strong> túmulo!” (AZEVEDO, 2000, p. 607). Sua longa e<br />
desvairada despedida de Arnold/Arthur comprova que a personagem está conformada e,<br />
inclusive, espera pelo fim da própria vida, pois sabe que somente deixan<strong>do</strong> esse mun<strong>do</strong><br />
para trás é que deixará igualmente de ser algo monstruoso.<br />
Podemos perceber que a atitude de Giorgia é, pois, uma atitude que busca não só<br />
a vingança, como também a purificação. O que acontece, curiosamente, é que sua<br />
purificação se dá através de <strong>do</strong>is atos moralmente horríveis – fratricídio segui<strong>do</strong> de<br />
suicídio – para retratar um crime maior, o próprio incesto da qual foi vítima no passa<strong>do</strong>.<br />
Com a morte da amada, Arthur segue-a e comete também suicídio, num desfecho<br />
trágico e pavoroso, impactante para quem o lê.<br />
Conclusão<br />
Álvares de Azeve<strong>do</strong>, após retratar inúmeros atos imorais e repugnantes em sua<br />
narrativa, parece incutir, ao final das macabras aventuras de Johann, Giorgia e Arthur,<br />
certa moral, encarnada principalmente na atitude de Giorgia. Não se pode esquecer que<br />
os elementos que nos horrorizam nessas narrativas são elementos entendi<strong>do</strong>s a partir<br />
<strong>do</strong>s termos morais da nossa sociedade. Logo, para que a narrativa produza o efeito ao<br />
qual foi destinada, devemos encará-los sob um olhar moralizante, de acor<strong>do</strong> com<br />
costumes socioculturais aos quais estamos acostuma<strong>do</strong>s. Podemos entender melhor a<br />
importância dessa moralidade no excerto em que Carroll defende a questão, para ele, “o<br />
que é ti<strong>do</strong> como antinatural aqui é antinatural e repulsivo de um ponto de vista moral”<br />
(CARROLL, 1999, p. 60). Logo, a noção de impureza, que é o principal elemento<br />
aborda<strong>do</strong> nas duas narrativas, deve ser entendida moralmente, ou não teria o efeito<br />
pretendi<strong>do</strong>.<br />
Carroll continua dizen<strong>do</strong> que “na linguagem <strong>do</strong> dia-a-dia, os monstros são<br />
muitas vezes entendi<strong>do</strong>s nos termos da moralidade” (CARROLL, 1999, p. 62), o que<br />
nos permite compreender melhor a presença da moral em Noite na taverna e,<br />
principalmente, entender nossas reações em relação a seus personagens. Os monstros –<br />
nossos próprios protagonistas – são ameaças à moral ao transgredirem-na, ao agirem de<br />
má fé, ao cometerem crimes que ultrapassam os limites <strong>do</strong>s bons costumes em nossa<br />
vivência em grupo. Tornam-se, como vimos, impuros, pois ultrapassam os limites da<br />
normalidade, quebran<strong>do</strong> regras e categorias. Assim, acabam por divulgar justamente as<br />
regras que não se pode quebrar, reafirman<strong>do</strong> o que é sadio, bom e seguro em nossos<br />
costumes sociais.<br />
Dentre to<strong>do</strong>s os outros infames protagonistas <strong>do</strong>s contos de Noite na taverna,<br />
podemos concluir que os monstros de “Johann” e “Último beijo de amor” – ou seja,<br />
Johann e Giorgia – são os que mais sofrem o peso da justiça. Nos demais contos, as<br />
infâmias, embora acabem por revelar limites moralmente não aceitos em nossa vida<br />
social, não são devidamente punidas. Porém, em “Último beijo de amor”, talvez por ser<br />
o conto que fecha a obra, a justiça trata de punir to<strong>do</strong>s os envolvi<strong>do</strong>s nas vilezas,
trazen<strong>do</strong> a morte de to<strong>do</strong>s igualmente culpa<strong>do</strong>s, quase como um triunfo da moral <strong>sobre</strong><br />
os crimes e os tabus que em toda a obra suscitaram o me<strong>do</strong> e o pavor <strong>do</strong> leitor.<br />
Nestes termos, Noite na taverna é, pois, um magnífico exemplar, muito<br />
possivelmente o primeiro, da <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong> brasileira. Álvares de Azeve<strong>do</strong><br />
construiu, em sua obra, personagens cuja falta de moralidade e cujos atos assombram,<br />
até os dias atuais, seus leitores. Através de uma miscelânea de elementos que podemos<br />
considerar como típicos da <strong>literatura</strong> <strong>do</strong> me<strong>do</strong> e de temas que ainda são considera<strong>do</strong>s<br />
tabus sociais, o efeito da narrativa é impactante para o leitor, pois Noite na taverna<br />
abusa da repulsa, da impureza, <strong>do</strong> macabro e <strong>do</strong> terror, em busca de horrorizar seu<br />
leitor.<br />
Referências bibliográficas<br />
AZEVEDO, Álvares de. A noite na taverna. In:___. Obra completa. Rio de Janeiro:<br />
Nova Aguilar, 2000.<br />
CARROLL, Noël. A filosofia <strong>do</strong> horror ou para<strong>do</strong>xos <strong>do</strong> coração. São Paulo: Papirus,<br />
1999.<br />
FRANÇA, Júlio. As relações entre “Monstruosidade” e “Me<strong>do</strong> Estético”: anotações<br />
para uma ontologia <strong>do</strong>s monstros na narrativa ficcional brasileira. Anais <strong>do</strong> XII<br />
Congresso Internacional da ABRALIC. Curitiba: ABRALIC, 2011.