1 “Terror”, “Horror” e “Repulsa”: Stephen King e o cálculo da ...
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<strong>“Terror”</strong>, <strong>“Horror”</strong> e <strong>“Repulsa”</strong>: <strong>Stephen</strong> <strong>King</strong> e o <strong>cálculo</strong> <strong>da</strong> recepção.<br />
Júlio FRANÇA *<br />
Resumo: As reflexões críticas sobre a narrativa de horror desenvolvi<strong>da</strong>s por ficcionistas<br />
do gênero – como H. Walpole, E. A. Poe e H. P. Lovecraft – revelam uma filiação a<br />
dois eixos tradicionais dos Estudos Literários. São tributárias, por um lado, do<br />
pensamento aristotélico, no que tange à preocupação com a produção de determinados<br />
efeitos de recepção – fun<strong>da</strong>mentalmente, o medo e suas variações. Por outro lado,<br />
justificam o porquê de se buscar a elaboração do medo com especulações de caráter<br />
estético muito aproxima<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s investigações de Edmund Burke sobre o Sublime e o<br />
Belo.<br />
Neste ensaio, pretendo demonstrar que o ficcionista contemporâneo <strong>Stephen</strong><br />
<strong>King</strong> dá continui<strong>da</strong>de a essa tradição. Para tanto, procuro identificar pressupostos<br />
aristotélicos e burkeanos em suas considerações a respeito <strong>da</strong> narrativa de horror.<br />
Palavras-chave: Literatura de Horror; <strong>Stephen</strong> <strong>King</strong>; Aristóteles; Edmund Burke.<br />
Introdução<br />
Naquele que é um dos primeiros estudos sistemáticos sobre a literatura, a<br />
Poética, de Aristóteles, a criação literária é pensa<strong>da</strong> por uma perspectiva que privilegia<br />
os efeitos de recepção. A própria definição aristotélica de tragédia, que introduz nos<br />
Estudos Literários o conceito de catarse, categoriza o gênero em função <strong>da</strong> produção e<br />
<strong>da</strong> “purificação” de emoções. Do mesmo modo, elementos estruturais do discurso<br />
mimético, como o reconhecimento, a peripécia e a catástrofe, são todos avaliados em<br />
relação às sensações que podem suscitar no receptor – entre elas, vale lembrar, o phóbos<br />
(medo).<br />
A reflexão crítica sobre a narrativa ficcional de horror tem, de modo mais ou<br />
menos consciente, assumido essa orientação aristotélica. Horace Walpole, Edgar Allan<br />
Poe e H. P. Lovecraft estão entre aqueles que concebem a obra literária de horror como<br />
um artefato produtor de uma emoção específica: o medo e suas variações (cf. FRANÇA:<br />
2008). Tal descrição é, contudo, de caráter puramente formal. Aponta os objetivos do<br />
gênero, mas não os justifica, isto é, não legitima, esteticamente, a produção do medo.<br />
H. P. Lovecraft encontrou um caminho para essa legitimação, ao propor que a<br />
mais antiga e intensa emoção experimenta<strong>da</strong> pelo ser humano é o medo, e sua forma<br />
mais antiga e intensa é a do medo do desconhecido (LOVECRAFT: 1973, p. 12) – trata-<br />
* Doutor em Literatura Compara<strong>da</strong> (UFF).<br />
Professor Adjunto de Teoria <strong>da</strong> Literatura (UERJ)<br />
1
se de uma reflexão de caráter burkeano, muito embora não haja nenhuma menção<br />
explícita a Edmund Burke no ensaio Supernatural Horror in Literature. Na concepção<br />
do ficcionista norte-americano, a narrativa de horror sobreviveria e se desenvolveria<br />
justamente por estar associa<strong>da</strong> a mecanismos profundos e fun<strong>da</strong>mentais do ser humano.<br />
Ain<strong>da</strong> que admitisse que os temas corriqueiros do dia-a-dia dominassem a maior parte<br />
<strong>da</strong> experiência humana, Lovecraft acreditava que mesmo nos indivíduos mais racionais<br />
residiria uma herança biológica capaz de ser toca<strong>da</strong> pelas narrativas que inspiram medo.<br />
Também burkeana é a idéia de que o ser humano recor<strong>da</strong>r-se-ia mais facilmente<br />
<strong>da</strong> dor e <strong>da</strong> ameaça <strong>da</strong> morte do que do prazer. Para Lovecraft, as sensações<br />
relaciona<strong>da</strong>s aos aspectos positivos <strong>da</strong>s crenças em elementos sobrenaturais teriam sido,<br />
desde o início <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de, capitalizados e formalizados pelos rituais religiosos<br />
convencionais. Já os aspectos mais sombrios e malignos dos mistérios cósmicos<br />
acabaram sendo encampados pelas narrativas populares e folclóricas.<br />
Principais combustíveis dessas narrativas, a incerteza e o perigo seriam, sob o<br />
ponto de vista lovecraftiano, aliados: o que é desconhecido acaba sendo visto como<br />
uma fonte de possibili<strong>da</strong>des perigosas e malévolas. A combinação entre a curiosi<strong>da</strong>de, a<br />
sensação do perigo, a intuição do mal e a inevitável fascinação do maravilhoso possuiria<br />
uma vitali<strong>da</strong>de inerente à própria raça humana. Por essa razão, a literatura que consegue<br />
despertar aquilo que Lovecraft chamou de “cosmic fear” (ibidem, p. 15) sempre existiu<br />
e sempre existirá.<br />
Neste ensaio, proponho uma leitura de Danse Macabre – livro em que <strong>Stephen</strong><br />
<strong>King</strong> reúne uma série de ensaios a respeito de suas idéias sobre o fenômeno do horror,<br />
na literatura e em outras formas midiáticas, como o cinema, a televisão, o rádio, revistas<br />
em quadrinhos etc. – que ressalte tantos os aspectos aristotélicos e poeanos quanto os<br />
burkeanos e lovecraftianos <strong>da</strong> reflexão do ficcionista norte-americano, demonstrando,<br />
desse modo, sua filiação ao que gostaria de chamar de tradição crítica dos ficcionistas<br />
de horror.<br />
A “Dança <strong>da</strong> Morte”<br />
Duas questões, ambas de caráter um tanto paradoxal, motivam <strong>Stephen</strong> <strong>King</strong> em<br />
Danse Macabre: (i) por que as narrativas que li<strong>da</strong>m com o horror e com o medo atraem<br />
as pessoas? (ii) por que, em um mundo tão repleto de horrores reais, criar horrores<br />
2
ficcionais? Tais interrogações não são puramente literárias e possuem implicações que<br />
podem facilmente nos levar a ultrapassar os objetivos do presente ensaio. Em favor <strong>da</strong><br />
síntese – ain<strong>da</strong> que com algum prejuízo <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de do tema –, creio que se possa<br />
dizer que as respostas do escritor americano às duas perguntas passam pela<br />
compreensão do próprio título do livro: “Danse macabre” é uma referência implícita a<br />
uma alegoria <strong>da</strong> baixa I<strong>da</strong>de Média que simboliza a universali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> morte 1 :<br />
independentemente do estrato social – reis, belos, papas, jovens – a morte une e iguala a<br />
todos. O mistério <strong>da</strong> morte, seu caráter tão inexorável quanto insondável, é a mola<br />
mestra <strong>da</strong> narrativa de horror. Sobre essa região <strong>da</strong> experiência humana, a ciência, o<br />
discurso <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de demonstra<strong>da</strong>, pouco tem a dizer. Nos desvãos entre a fé religiosa e<br />
o conhecimento científico, a narrativa de horror encontra seu hábitat ideal.<br />
A potência <strong>da</strong> narrativa do horror estaria, portanto, diretamente relaciona<strong>da</strong> à<br />
consciência humana <strong>da</strong> morte. O medo atávico em relação a nosso derradeiro destino<br />
seria a garantia <strong>da</strong> atração e <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de do horror. O vislumbre de nossa própria<br />
morte – e <strong>da</strong> conseqüente desestruturação física que a acompanha – está por trás do tipo<br />
de percepção produzido pelo horror: o sentimento de disestablishment (KING: 1983, p.<br />
9), isto é, uma percepção de que as coisas, tais como as conhecemos, estão se<br />
desestruturando.<br />
Do vigor e <strong>da</strong> universali<strong>da</strong>de do medo, o ensaísta deduz a força <strong>da</strong> narrativa de<br />
horror. O que não significa dizer que os elementos capazes de produzir os efeitos do<br />
medo sejam invariáveis no tempo ou no espaço. O contexto histórico e social faz com<br />
que o homem seja mais propenso a determinados temores. “A normali<strong>da</strong>de”, lembra ele,<br />
“é um conceito sociológico” (ibidem, p. 37) e os produtores de cultura de massa<br />
exploram exatamente as fobias coletivas alimenta<strong>da</strong>s pelas condições de vi<strong>da</strong><br />
específicas e pelo conjunto de crenças de uma <strong>da</strong><strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Para <strong>King</strong>, entretanto, o<br />
horror é fun<strong>da</strong>mentalmente uma emoção contra a qual se luta sozinho. Ca<strong>da</strong> indivíduo<br />
possuiria o que ele chama de phobic pressure points (ibidem, p. 4) – uma espécie de<br />
“gatilho”, bastante particular que, se adequa<strong>da</strong>mente “acionado” pela narrativa de<br />
horror, seria capaz de produzir o medo.<br />
1 A representação pictográfica mais comum <strong>da</strong> “Dança <strong>da</strong> Morte” consiste em uma<br />
Morte personifica<strong>da</strong> conduzindo homens e mulheres de diversas classes sociais em<br />
direção às suas sepulturas (cf. Merriam-Webter’s Encycopedia of Literature, p. 297).<br />
3
A justificativa de <strong>King</strong> para a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s narrativas de horror – a<br />
proposição de que produziriam uma afecção de origens ancestrais no homem, o medo –<br />
coaduna-se, pois, com o pensamento lovecraftiano e seu fun<strong>da</strong>mento estético, a teoria<br />
burkeana do sublime. Resta-nos agora demonstrar como o pensamento de <strong>King</strong><br />
conforma-se ao outro eixo <strong>da</strong> tradição crítica do horror, o aristotélico-poeano.<br />
Catarse e Verossimilhança dos “Horrores de Mentira”<br />
A segun<strong>da</strong> questão enfrenta<strong>da</strong> por <strong>King</strong> em Danse Macabre permanece, porém,<br />
sem uma resposta plenamente satisfatória: por que alguém se interessaria pelas<br />
narrativas ficcionais de horror, isto é, por que leitores e espectadores optam por<br />
vivenciar, no plano <strong>da</strong> ficção, situações e emoções que, em suas vi<strong>da</strong>s “reais” elas<br />
evitariam?<br />
<strong>King</strong> faz questão de acentuar o caráter ficcional <strong>da</strong>s narrativas de horror, isto é,<br />
deixa claro que o gênero li<strong>da</strong> com “horrores de mentira”. O ensaísta procura explicar a<br />
lógica <strong>da</strong> narrativa de horror através de um conceito aristotélico – o de catarse. O<br />
processo catártico possibilitaria extravasar, através do medo produzido pela narrativa<br />
ficcional, os pavores associados ao horror real – aquele relacionado às condições de<br />
existência e de sobrevivência do ser humano:<br />
(…) we make up horrors to help us cope with the real ones. With the<br />
endless inventiveness of humankind, we grasp the very elements which<br />
are so divisive and destructive and try to turn them into tools – to<br />
dismantle themselves. The term catharsis is as old as Greek drama (…)<br />
but it still has its limited uses here (ibidem, p. 12) 2 .<br />
A ficção de horror, ao conduzir o leitor em direção a desfechos narrativos que<br />
apresentam algum tipo de suspensão dos horrores representados, amenizaria, ain<strong>da</strong> que<br />
por um curto tempo, nossos medos mais profundos – e reais. Para <strong>King</strong>, grande parte <strong>da</strong><br />
atração exerci<strong>da</strong> por tais narrativas residiria nos sentimentos de reintegração e de re-<br />
harmonização que poderiam brotar, paradoxalmente, de um gênero especializado em<br />
morte, medo e monstruosi<strong>da</strong>des (ibidem, p. 14).<br />
2 “(...) nós inventamos horrores para nos aju<strong>da</strong>r a suportar horrores ver<strong>da</strong>deiros.<br />
Contando com a infinita criativi<strong>da</strong>de do ser humano, nos apoderamos dos elementos<br />
mais polêmicos e destrutivos e tentamos transformá-los em ferramentas – para<br />
desmantelar esses mesmos elementos. O termo catarse é tão antigo quanto o drama na<br />
Grécia (...), mas, mesmo assim, ele ain<strong>da</strong> tem seu uso (...)” (KING: 2007, p. 24).<br />
4
Uma outra categoria aristotélica, a verossimilhança, tem papel importante na<br />
reflexão de <strong>King</strong>. Ao defender que a construção de uma narrativa verossímil é decisiva<br />
para a produção dos efeitos do horror, ele alerta que o ficcionista precisa reconhecer, em<br />
seu público, quais são os parâmetros de aferição <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de e os termos de aceitação<br />
do pacto ficcional. O conjunto de crenças de uma socie<strong>da</strong>de dá forma a esses<br />
parâmetros, que se transformam tanto no tempo quanto no espaço. Porém, é somente<br />
respeitando tais padrões que o escritor de horror obterá sucesso, ou seja, conseguirá<br />
produzir o medo em seu leitor.<br />
O ficcionista de horror teria a árdua tarefa de sobrepujar o “ossified shield of<br />
racionality” (ibidem, p. 89), o inflexível escudo <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de em seu leitor, para<br />
obter, nos termos de S. T. Coleridge, a “suspensão voluntária <strong>da</strong> descrença” (ibidem, p.<br />
99). A descrença, entretanto, não seria algo que se possa afastar com um mínimo de<br />
esforço – assim acredita <strong>King</strong>. Nas narrativas de horror, a verossimilhança seria<br />
produzi<strong>da</strong> menos pela aceitação “voluntária” do pacto funcional, por parte do leitor, e<br />
muito mais por um trabalho do escritor em atingir os “phobic pressure points”. Em<br />
outras palavras, a suspensão <strong>da</strong> descrença na recepção se <strong>da</strong>ria por um modo muito mais<br />
“involuntário”: a narrativa conseguiria fazer com que o leitor simplesmente perdesse o<br />
controle racional sobre sua imaginação.<br />
É nesse sentido que se pode entender por que <strong>King</strong> acredita que as crianças<br />
sejam a audiência perfeita <strong>da</strong>s narrativas de horror. A fragili<strong>da</strong>de física e emocional no<br />
período <strong>da</strong> infância faz com que tudo lhes seja potencialmente assustador: nessa fase do<br />
desenvolvimento, os seres humanos são profun<strong>da</strong>mente dependentes de outras pessoas.<br />
Para o ensaísta, essa sensação de falta de controle sobre suas próprias vi<strong>da</strong>s,<br />
experimenta<strong>da</strong> continuamente pelas crianças, seria similar ao desconforto que um adulto<br />
pode sentir na condição de passageiro de um avião: não se trata tanto de uma<br />
desconfiança quanto à segurança do transporte mas, fun<strong>da</strong>mentalmente, um efeito <strong>da</strong><br />
incômo<strong>da</strong> percepção de que, na circunstância de algum imprevisto, de algum acidente,<br />
não há na<strong>da</strong> que se possa fazer. Conduzir um adulto de volta a este estado de “falta de<br />
controle” seria, portanto, a meta de sucesso do ficcionista de horror (ibidem, p. 102-3).<br />
Os três níveis do medo<br />
<strong>King</strong> compreende ain<strong>da</strong> a narrativa de horror a partir de uma não-explicita<strong>da</strong><br />
5
premissa poeana 3 : a de que a obra literária é uma máquina de produção de efeitos.<br />
“Novels are engines” 4 (ibidem, p. 79), diz ele, e escrever seria, fun<strong>da</strong>mentalmente,<br />
operar a máquina de modo a controlar os efeitos que se deseja produzir no leitor. Assim<br />
como Allan Poe, <strong>King</strong> descarta que a criação literária seja um processo “inspirado” ou<br />
uma conseqüência direta do talento espontâneo. A capaci<strong>da</strong>de criativa não é algo inato,<br />
mas o fruto de uma vontade consciente e de um planejamento calculado.<br />
<strong>King</strong> renega também qualquer tipo de explicação que busque em traumas e<br />
fobias do escritor as motivações profun<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s narrativas de horror. A escrita é, para<br />
ele, uma prática que nasce <strong>da</strong> disciplina e do trabalho constante e que tem como meta<br />
clara e consciente a produção do medo em seu leitor, através <strong>da</strong> descoberta de seus<br />
“phobic pressure points”:<br />
The business of creating horror is much the same as the business of<br />
paralyzing an opponent with the martial arts – it is the business of<br />
finding vulnerable points and then applying pressure then. The most<br />
obvious psychological pressure point is the fact of our own mortality 5<br />
(ibidem, p. 68).<br />
Para <strong>King</strong>, as narrativas de horror funcionam em três níveis de refinamento, em<br />
função do caráter mais implícito ou explícito dos elementos que utilizam para produzir<br />
o medo. Essa distinção corresponde aos três possíveis efeitos a serem buscados pelo<br />
ficcionista de horror em seu leitor: <strong>“Terror”</strong>, <strong>“Horror”</strong> e “Revulsion”.<br />
O Terror é para <strong>King</strong> a mais apura<strong>da</strong> <strong>da</strong>s sensações produzi<strong>da</strong>s pelas narrativas<br />
sobrenaturais. Estaria relacionado com as crenças mais primárias e instintivas do ser<br />
humano – as que se situariam além e aquém <strong>da</strong>s convenções sociais. Trata-se de uma<br />
emoção gera<strong>da</strong> por um processo de imaginação deflagrado pelo medo <strong>da</strong>quilo que é<br />
apenas sugerido pela narrativa, isto é, por aquelas especulações desconfortáveis que o<br />
leitor precisa fazer diante do que a narrativa não diz – ou <strong>da</strong>s coisas que não<br />
aconteceram e poderiam ter acontecido (KING: 1983, p. 21-2).<br />
3 Para as concepções de Edgar Allan POE (1977) relativas às técnicas de produção de<br />
efeitos de recepção na criação literária, consulte-se o seu conhecido ensaio “The<br />
Philosophy of Composition” [1846].<br />
4 “Romances são máquinas (...)” (KING: 2007, p. 73).<br />
5 “A tarefa de se criar horror é bem semelhante à de paralisar um oponente nas artes<br />
marciais – é questão de encontrar pontos vulneráveis e aí aplicar a força. O ponto de<br />
pressão psicológica mais óbvio é a certeza na nossa própria mortali<strong>da</strong>de” (KING: 2007,<br />
p. 64).<br />
6
Por Horror, <strong>King</strong> compreende um tipo de efeito menos refinado do que o<br />
Terror. Não consistiria exclusivamente em um processo mental mas geraria também<br />
uma contraparti<strong>da</strong> sensível. Tratar-se-ia, portanto, de uma percepção mista, provoca<strong>da</strong><br />
pelo entendimento de que algo está “fisicamente errado” (KING: 1983, p. 21-2). A<br />
contemplação de monstruosi<strong>da</strong>des, anormali<strong>da</strong>des ou de eventos sobrenaturais seriam<br />
causas potenciais do horror.<br />
Por fim, o efeito de Repulsa, refere-se às sensações produzi<strong>da</strong>s pela<br />
contemplação de seres ou de cenas perturbadoras, que provocam algum tipo de<br />
repugnância (KING: 1983, p. 23). Trata-se do nível mais explícito e suas causas podem<br />
ser encontra<strong>da</strong>s em coisas que são convencionalmente entendi<strong>da</strong>s como repulsivas –<br />
aquelas que provocam um mal-estar físico e as que provocam algum tipo de indignação<br />
moral, por ferirem os bons costumes, ou mesmo o bom senso.<br />
A poética de <strong>King</strong><br />
Ain<strong>da</strong> que em diversas passagens de Danse Macabre aventure-se por<br />
“interpretações” – alegóricas, sociológicas, psicanalíticas, políticas – <strong>da</strong>s histórias de<br />
horror, <strong>Stephen</strong> <strong>King</strong> reflete sobre a narrativa de horror a partir do que entende ser seu<br />
aspecto essencial: produzir medo. Tanto que elege uma narrativa oral urbana – a que se<br />
refere como “Tales of the Hook” – como o mais básico e eficiente enredo de horror que<br />
conhece: um jovem casal namora dentro de um carro, em algum ponto ermo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de.<br />
Ouvem, pelo rádio, que um maníaco homici<strong>da</strong> fugiu do manicômio. Seu apelido é<br />
“Gancho”, em virtude do afiado instrumento que carrega em uma <strong>da</strong>s mãos – e com o<br />
qual degola suas vítimas. Assusta<strong>da</strong>, a garota tenta convencer o namorado a voltarem<br />
para casa. Ele reluta até que ouvem um barulho do lado de fora do automóvel – como se<br />
houvesse alguém se aproximando na escuridão. Assustado, o jovem acelera e eles<br />
partem em alta veloci<strong>da</strong>de. Quando chegam à casa <strong>da</strong> jovem, descobrem um gancho<br />
preso à maçaneta do carro...<br />
<strong>King</strong> considera que a história representa a essência <strong>da</strong> narrativa de horror: não<br />
faz caracterizações psicológicas, não tematiza questões existenciais, não aspira a<br />
nenhum ideal estético, não tenta sintetizar sua época, o pensamento ou o espírito<br />
humano. Para encontrar tais coisas, ironiza <strong>King</strong>, deveríamos recorrer à alta literatura.<br />
Sua exemplari<strong>da</strong>de vem do fato de ser despi<strong>da</strong> de tudo o que é meramente acessório na<br />
7
narrativa ficcional de horror. A história do Gancho existe por uma única e simples<br />
razão: a de produzir medo.<br />
Nesta leitura que propus de Danse Macabre, procurei identificar uma espécie de<br />
poética de <strong>Stephen</strong> <strong>King</strong>. A tarefa nem sempre foi simples, tendo em vista que seu<br />
método argumentativo se dá muito mais através de comentários sobre as (inúmeras)<br />
obras que compõem seu cânone particular do que por definições. Ain<strong>da</strong> assim, creio que<br />
tanto os fun<strong>da</strong>mentos aristotélicos quanto os burkeanos de sua reflexão tenham sido<br />
revelados, demonstrando, desse modo, a sua filiação ao que talvez possamos chamar de<br />
tradição crítica dos ficcionistas de horror.<br />
Referências Bibliográficas<br />
ARISTÓTELES. Poética. Tradução, comentários e índices analítico e onomástico de<br />
Eudoro de Souza. 4ª ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.<br />
BURKE, Edmund. A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime<br />
and beautiful. New York: Oxford University Press, 1990.<br />
DANCE OF THE DEATH. In: Merriam-Webster’s Encyclopedia of Literature.<br />
Springfield, MA: Merriam-Webter Inc., 1995.<br />
FRANÇA, Julio. O horror na ficção literária; reflexão sobre o "horrível" como uma<br />
categoria estética. In:___. Anais do XI Congresso Internacional <strong>da</strong> Abralic. São Paulo,<br />
2008 [no prelo].<br />
LOVECRAFT, Howard Phillips. Supernatural Horror in Literature. New York: Dover,<br />
1973.<br />
KING, <strong>Stephen</strong>. Dança macabra; o fenômeno do horror no cinema, na literatura e na<br />
televisão dissecado pelo mestre do gênero. Tradução de Louisa Ibañez. Rio de Janeiro:<br />
Objetiva, 2007.<br />
_____. Danse Macabre. New York: Berkley Books, 1983.<br />
POE, Edgar Allan. Poems and Essays. London: Dent, New York: Dutt; 1977.<br />
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