23.04.2013 Views

revisão da literatura sobre sincretismo religioso afro - Do.ufgd.edu.br

revisão da literatura sobre sincretismo religioso afro - Do.ufgd.edu.br

revisão da literatura sobre sincretismo religioso afro - Do.ufgd.edu.br

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

- -<<strong>br</strong> />

50 REPENSANDO O SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

Ribeiro desenvolve até hoje estudos <strong>so<strong>br</strong>e</strong> o negro, religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras<<strong>br</strong> />

c outros assuntos, especialmente em Pernambuco.<<strong>br</strong> />

Em vários trabalhos René Ribeiro di scute aspectos do <strong>sincretismo</strong>.<<strong>br</strong> />

Num deles ( 1955, pp. 473-491), analisa o <strong>sincretismo</strong> na perspectiva do<<strong>br</strong> />

processo de reinteprctação, documentando a incorporação nos cultos <strong>afro</strong><strong>br</strong>asileiros<<strong>br</strong> />

óe práticas do foiciore deriva<strong>da</strong>s do rcisado, <strong>da</strong>s conga<strong>da</strong>s e dé<<strong>br</strong> />

padrões de conduta sexual africana. Ribeiro, como veremos adiante, faz<<strong>br</strong> />

várias críticas aos trabalhos de Bastide.<<strong>br</strong> />

Tullio Seppilli<<strong>br</strong> />

O antropólogo italiano Tullio Scppilli ( J955a; b; c), na déca<strong>da</strong> de 1950,<<strong>br</strong> />

publicou em Roma dois artigos e um anexo, num total de umas cem páginas,<<strong>br</strong> />

<strong>so<strong>br</strong>e</strong> <strong>sincretismo</strong> <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiro c aculturação. Os artigos foram traduzidos<<strong>br</strong> />

pelo Instituto de Estudos Brasileiros <strong>da</strong> US P, na déca<strong>da</strong> de 1970, mas não<<strong>br</strong> />

estão publicados no Brasil, sendo difícil localizá-los. Trata-se de estudos<<strong>br</strong> />

bem documentados c criteriosos, com referências bibliográficas numerosas.<<strong>br</strong> />

Posicionando-se a favor do materialismo histórico e utilizando a<<strong>br</strong> />

metodol ogia <strong>da</strong> aculturação, Scppilli se interessa por estu<strong>da</strong>r religião c <strong>sincretismo</strong><<strong>br</strong> />

<strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiro. Bastide ( 197 1) o cita me ia dúzia de vezes, concor<strong>da</strong>ndo<<strong>br</strong> />

com suas idéias ou di scor<strong>da</strong>ndo delas. Parece qu e seus trabalhos<<strong>br</strong> />

não tiveram muita divulgação no Brasil, embora sejam citados por alguns<<strong>br</strong> />

autores. O professor João Batista Borges Pereira nos di sse que, na época, o<<strong>br</strong> />

<strong>sincretismo</strong> e a teoria <strong>da</strong> aculturação foram considerados temas ultrapassados,<<strong>br</strong> />

suplantados por outros assuntos c novas teorias, <strong>so<strong>br</strong>e</strong>tudo pelos estudos<<strong>br</strong> />

de cl asses sociais e pelos trabalhos de Lévi- Strauss.<<strong>br</strong> />

Considera (Scppilli, 1955a, p. 15) que o <strong>sincretismo</strong> com a relig ião<<strong>br</strong> />

católica foi maior na liturgia elo que na mitologia. Diz que na liturgia encontramos<<strong>br</strong> />

a presença africana nos cânticos, nos instrumentos, no ritmo, na<<strong>br</strong> />

melodia, nas <strong>da</strong>nças, nas comi<strong>da</strong>s sacras, e que o altar c santos católicos são<<strong>br</strong> />

englobados como influências secundárias pela liturgia <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileira. Afirma<<strong>br</strong> />

(id. ib.) que "dessa maneira o estudo <strong>da</strong> liturgia leva a uma m aior compreensão[<<strong>br</strong> />

... ] do <strong>sincretismo</strong>".<<strong>br</strong> />

Mostra preocupação metodológica em realizar uma interpretação científica<<strong>br</strong> />

do <strong>sincretismo</strong> para compreender as religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras. Afirma<<strong>br</strong> />

ain<strong>da</strong> não ter encontrado sol ução orgânica que permita uma avaliação crítica<<strong>br</strong> />

e a sistemati zação elo fenômeno cm seu conjunto. Refere-se (1955a, p. 14)<<strong>br</strong> />

à necessi<strong>da</strong>de ele estu<strong>da</strong>r o <strong>sincretismo</strong> na perspectiva histórica.


-- .---1 Seppilli aceita preconceitos comuns na época, como a referência à<<strong>br</strong> />

REVISÁ O DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 51<<strong>br</strong> />

superiori<strong>da</strong>de cultural dos iorubás e dos escravos islamizados ou a preocupação<<strong>br</strong> />

com a pureza africana. Prevê o desaparecimento fatal e progressivo<<strong>br</strong> />

dos cultos <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiros (1955a, p. 26tBastide (197 1, p. 334) o critica,<<strong>br</strong> />

a nosso ver injustifica<strong>da</strong>mente, por utilizar livros e artigos qu e diz serem<<strong>br</strong> />

ultrapassados e incorrer no erro de dizer que os mitos estão perdidos. Seu<<strong>br</strong> />

trabalho, entretanto, apresenta preocupações científicas bastante avança<strong>da</strong>s<<strong>br</strong> />

cm relação aos padrões <strong>da</strong> época.<<strong>br</strong> />

Críticas à teoria culturalista<<strong>br</strong> />

Como demonstram diversos autores (Cardoso de Oliveira, 1978, pp.<<strong>br</strong> />

83-84), a reoria culturalista não leva devi<strong>da</strong>mente em conta o caráter de<<strong>br</strong> />

sistema <strong>da</strong> cultura de uma socie<strong>da</strong>de e sua estrutura, <strong>da</strong>í in suficiências e<<strong>br</strong> />

inadequaçõcs desta abor<strong>da</strong>gem, <strong>so<strong>br</strong>e</strong>tudo em regiões subdesenvolvi<strong>da</strong>s<<strong>br</strong> />

onde se considera que existem ver<strong>da</strong>deiras colônias internas. Estu<strong>da</strong>ndo<<strong>br</strong> />

socie<strong>da</strong>des indígenas e suas relações com a socie<strong>da</strong>de nacional, Cardoso de<<strong>br</strong> />

Oliveira ( 1979) propõe que a noção de aculturação seja substituí<strong>da</strong> pela de<<strong>br</strong> />

"fricção interétnica".<<strong>br</strong> />

A teoria funcional ista c os estudos de contatos de culturas com ela<<strong>br</strong> />

vinculados foram criticados por Balandicr ( 1971 , pp. 22-28) e por Leclerc<<strong>br</strong> />

( 1973, pp. 69-80), entre outros. Balandicr, a partir de análises anteri ores de<<strong>br</strong> />

Max Gluckman, critica a concepção de dinâmica <strong>da</strong> cultura de Malinowski,<<strong>br</strong> />

desenvolvendo a noção de "situação de contato".<<strong>br</strong> />

Como mostra Balandier, entre os povos dependentes, as situações que<<strong>br</strong> />

foram denomina<strong>da</strong>s de choques ou contatos de civilizações ocorreram em<<strong>br</strong> />

condições específicas que têm o nome de situação colonial, definindo-se<<strong>br</strong> />

pela "dominação imposta por uma minoria estrangeira 'racialmente' e culturalmente<<strong>br</strong> />

diferente, em nome de uma superiori<strong>da</strong>de racial (ou étnica) e<<strong>br</strong> />


52 REPENSANDO O SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

o erro de se considerar a cultura como um sistema autônomo (i 978, p. 12).<<strong>br</strong> />

rrropõc-sc discutir a integração <strong>da</strong> umban<strong>da</strong> na socie<strong>da</strong>de urbano-industrial<<strong>br</strong> />

c de classes do Brasii c não cxatamcntc como fenômeno de <strong>sincretismo</strong> reli­<<strong>br</strong> />

g ioso, utilizando o conceito de reinterpretação de Hcrskovits para fazer uma J<<strong>br</strong> />

anúli sc <strong>da</strong> enti<strong>da</strong>de Exu no candomblé c na umban<strong>da</strong>.<<strong>br</strong> />

Entre os estudiosos do negro no Brasil, C lóvis Moura ( 1988, pp. 34-<<strong>br</strong> />

36) critica os conceitos de <strong>sincretismo</strong>, assimilação, acomo<strong>da</strong>ção e acul­<<strong>br</strong> />

turação, "tão caros a uma ciência social colonizadora". Considera que ·'certos<<strong>br</strong> />

conceitos ela antropologia revelam ele forma tra nsparente [ ... ] sua função de<<strong>br</strong> />

c iê nc ia auxiliar de uma estrutura ncocolonizadora" ( 1988, p. 38): Mostrã"<<strong>br</strong> />

que muitas análises elo <strong>sincretismo</strong> incluernjulgamenros de vãlor, pois con- 1<<strong>br</strong> />

sideram_ inferior a rel ig ião elos dominados.<<strong>br</strong> />

Para M oura (1988, p. 45), o conceito ele aculturação "tem limitações<<strong>br</strong> />

científicas enormes". Tem como conseqüência a diluição ela "domi nação<<strong>br</strong> />

estrutural - cconômico, social c pol ítico de uma <strong>da</strong>s culturas <strong>so<strong>br</strong>e</strong> a outra.<<strong>br</strong> />

[ ... ]O culturali smo exclui a histori ci<strong>da</strong>de do contato" (1988, pp. 45-46). "A<<strong>br</strong> />

aculturação não mo difica as relações sociais c conseqüentemente as insti­<<strong>br</strong> />

tuições fun<strong>da</strong>mentais de uma estrutura social. Não modifica as relações de<<strong>br</strong> />

produção" ( 1988, p. 47). Parece-lhe que o processo aculturativo desemboca<<strong>br</strong> />

no conceito de " democracia racial", c a aculturação não é um processo de<<strong>br</strong> />

di nâmica social.<<strong>br</strong> />

Analisando estudos <strong>so<strong>br</strong>e</strong> o negro no Brasil, Borges Pereira ( 1981, pp.<<strong>br</strong> />

198-199), embora reconhecendo o padrão científico dos trabalhos desta escola<<strong>br</strong> />

entre nós, destaca com muita proprie<strong>da</strong>de que, enfati zando a cultura c<<strong>br</strong> />

ereligião, a antropolog ia negligenciou os aspcctoS'' normais" ou tri viais <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

--<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

do negro, contribuindo para construir a imagem de ''o negro cspctáculo".<<strong>br</strong> />

Como vimos, a teoria culturalista tem sido cri tica<strong>da</strong> por muitos, mas<<strong>br</strong> />

foi aplica<strong>da</strong> a inúmeras áreas. N o campo d os estudos <strong>so<strong>br</strong>e</strong> o negro c <strong>da</strong>s<<strong>br</strong> />

relig iões <strong>afro</strong>-americanas, Hcrskovits foi seu principal autor. Foi nela que<<strong>br</strong> />

se fizeram primeiro, c com maior ênfase, tentativas de abor<strong>da</strong>gem mais teóri ­<<strong>br</strong> />

cas do fenômeno do <strong>sincretismo</strong>.<<strong>br</strong> />

O conceito de reinterpretação foi uma <strong>da</strong>s princ ipais noções dcscnvoivi<strong>da</strong>s<<strong>br</strong> />

po r Hcrskov its na análise do <strong>sincretismo</strong>. Para Bastidc ( 197 !,<<strong>br</strong> />

p. 53 1 j, embora este conceito permaneça muito próxi mo do que ele própio<<strong>br</strong> />

denomina de aculturação material, foi o mais importante desenvolvido pela<<strong>br</strong> />

antropologia no estudo dos encontros de civilizações. Bastidc ( 1973, p. 147)<<strong>br</strong> />

icm<strong>br</strong>a que Hcrskovits foi criticado <strong>so<strong>br</strong>e</strong>tudo por sociólogos negro s como<<strong>br</strong> />

frankli n Frazier, que o acusa de preconceito <strong>br</strong>anco.<<strong>br</strong> />

,<<strong>br</strong> />

I


62 REPENSANDO 0 SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

(ver Bastide, 1973, pp. VII-XX), preferindo o conceito de interpenetração<<strong>br</strong> />

de civilizações. Lísias destaca a extensão <strong>da</strong> o<strong>br</strong>a, sua quali<strong>da</strong>de, coerência,<<strong>br</strong> />

profundi<strong>da</strong>de teórica c sensibili<strong>da</strong>de sociológica para com os problemas<<strong>br</strong> />

do negro.<<strong>br</strong> />

Lísias não concor<strong>da</strong> com os que levantam contra Bastide uma visão<<strong>br</strong> />

crítica impertinente, apressa<strong>da</strong> e leviana, com intuitos de demolir o trabalho<<strong>br</strong> />

cui<strong>da</strong>dosamente elaborado de um etnógrafo paciente, identifi cado com o<<strong>br</strong> />

sujeito c apaixonado pelo objcto de estudo, que adotou uma perspectiva<<strong>br</strong> />

compreensiva na análise <strong>da</strong> religião. Com essas ressalvas, Lísias, seguindo<<strong>br</strong> />

rumos de <strong>Do</strong>uglas Monteiro (1978), também apresenta críticas teóricometodológicas<<strong>br</strong> />

a Bastide (Negrão, 1979).<<strong>br</strong> />

Reconhecemos a contribuição de Roger Bastide aos estudos do negro<<strong>br</strong> />

c <strong>da</strong>s religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras. Ele escrevia bem e escrevia muito, <strong>da</strong>í deriva<<strong>br</strong> />

cm parte a enorme in fluênc ia que exerce até hoje no estud o <strong>da</strong>s rel igiões<<strong>br</strong> />

<strong>afro</strong>-americanas. Além de informações elabora<strong>da</strong>s, apresenta reflexões teóricas<<strong>br</strong> />

de grande interesse. Algumas vezes impacientam-nos certas falhas, como<<strong>br</strong> />

se qui séssemos que seu trabalho fosse perfeito. Não podemos entretanto<<strong>br</strong> />

concor<strong>da</strong>r com tudo o que escreveu. Parte <strong>da</strong>s críticas que hoje lhe são fei tas<<strong>br</strong> />

dirigem-se também à perspectiva teórico-filosófica <strong>da</strong> sociologia em profundi<strong>da</strong>de,<<strong>br</strong> />

que adotou.<<strong>br</strong> />

ALGUNS DISCÍPULOS DE BASTJDE<<strong>br</strong> />

Na déca<strong>da</strong> ele 1970 o estudo <strong>da</strong>s religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras voltou a<<strong>br</strong> />

receber novo impulso, que parecia declinado nos anos 60, quando quase só<<strong>br</strong> />

ocorreu a tradução de alguns trabalhos de Bastide. Sua o<strong>br</strong>a principal, As<<strong>br</strong> />

Religiões Afro-Brasileiras, de 1961, somente cm 197 1 foi lança<strong>da</strong> no Brasil.<<strong>br</strong> />

Nos anos 60, além de trabalhos de Bastidc c <strong>da</strong>s publicações de Edison<<strong>br</strong> />

Carne iro, destacam-se os estudos de Procópio Camargo ( 1961), <strong>so<strong>br</strong>e</strong><<strong>br</strong> />

espiritismo c um ban<strong>da</strong>, tema ao qual foi dos prime iros a se dedicar com<<strong>br</strong> />

exclusivi<strong>da</strong>de, conforme Carvalho ( 1978, p. 105). Pouco antes do fa lecimento<<strong>br</strong> />

de Bastide, em 1974, concluem-se teses de pesquisadores que foram<<strong>br</strong> />

seus oricntandos.<<strong>br</strong> />

Renato Ortiz ( 1978) estudou o cm<strong>br</strong>anquccimento <strong>da</strong>s tradições <strong>afro</strong><strong>br</strong>asileiras<<strong>br</strong> />

c o cmpretccimento do espiritismo kardecista, relacionados com<<strong>br</strong> />

transformações na socie<strong>da</strong>de, pois "o cosmos rei igi oso umbandista reproduz<<strong>br</strong> />

as contradições <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>br</strong>asileira" ( 1978, p. 112). Para Ortiz, na<<strong>br</strong> />

socie<strong>da</strong>de urbano-industrial, a umban<strong>da</strong> é mais funcional elo que o can-


REPENSANDO O SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

que as diversas categorias de <strong>sincretismo</strong>s devem ser reexamina<strong>da</strong>s como<<strong>br</strong> />

formas de resistência. "A religião e suas comuni<strong>da</strong>des constituem o baluarte<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de psíquica c cultural do negro" ( 1977a, p. 115).<<strong>br</strong> />

Elbcin dos Santos ( 1977) resume colocações anteriores, de modo explícito.<<strong>br</strong> />

Defende uma reformulação conceptual c terminológica de designações<<strong>br</strong> />

que têm como conseqüência negar o carátcr de religião ao s istema místico<<strong>br</strong> />

legado pelos africanos c reelaborado por seus descendentes. Considera que<<strong>br</strong> />

os termos fctichismo, animismo c até s incretismo são conseqüências <strong>da</strong> herança<<strong>br</strong> />

evolucionista, que se continua até hoje. Termos como <strong>br</strong>uxaria, magia<<strong>br</strong> />

c superstições são utili zados para enco<strong>br</strong>ir o papel <strong>da</strong> religião, já que a indc-<<strong>br</strong> />

- _./<<strong>br</strong> />

pendência espiritual foi por longo tempo a única liber<strong>da</strong>de do negro. Neste<<strong>br</strong> />

c cm outros trabalhos, Elbcin dos Santos enfatiza aspectos africanos <strong>da</strong> cul­<<strong>br</strong> />

tu ra negra nas Américas. Como intelectuais c participantes do candomblé,<<strong>br</strong> />

Juana c Dcoscorcdcs contribuem também para construir uma teologia do can­<<strong>br</strong> />

domblé no B rasil, enfatizando a importância <strong>da</strong>s tradições africanas.<<strong>br</strong> />

O MITO DA PUREZA AFRICANA<<strong>br</strong> />

O trabalho inovador d e Lapassadc e Luz ( 1972) é o primeiro, e ntre<<strong>br</strong> />

nós, favorú vcl ú macumba c à quimban<strong>da</strong>, v istos como conrracultura domina<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

que se opõe à cultura <strong>br</strong>anca dominante. Mostra que desde os tempos<<strong>br</strong> />

de Nina Rodrigues, o candomblé, considerado mais puro, foi valorizado<<strong>br</strong> />

pelos pesquisadores, cm detrimento <strong>da</strong> macumba, ti<strong>da</strong> como mistura<strong>da</strong>.<<strong>br</strong> />

Constata que estes cul tos são diferentes desde as origens, embora haja<<strong>br</strong> />

empréstimos de um a outro. Critica a idéia de pureza africana ( 1972, p. XIV),<<strong>br</strong> />

identificando quimban<strong>da</strong> como contracultura negra no Brasil ( 1972, p. XXI I),<<strong>br</strong> />

comparando-a ao tropical is mo c ao Manifesto Antropofág ico de 1928. Toma<<strong>br</strong> />

o partido <strong>da</strong> quimban<strong>da</strong> libertadora contra a umban<strong>da</strong> c utiliza cicmcntos<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> sociologia marxista c <strong>da</strong> psicanálise freudiana, relacionando a macumba<<strong>br</strong> />

a revoltas c fugas de escravos. O texto tem características mais jornalísticas<<strong>br</strong> />

do que de análise sócio-anrropológica. Em alguns momentos assum e ar<<strong>br</strong> />

sensacional ista, d izendo preferir ficar ao lado do d cmônio. T rata-se contudo<<strong>br</strong> />

de trabalho inegavelmente pioneiro.<<strong>br</strong> />

Posteriormente, Luz ( 1983) publica livro cm sentido oposto, d efendendo<<strong>br</strong> />

a ortodoxia do candomblé nagô. Critica seu trabalho anterior, destacando<<strong>br</strong> />

o candomblé <strong>da</strong>s casas mais tradic ionais. Considera que por trás do<<strong>br</strong> />

<strong>sincretismo</strong> o negro manteve sua relig ião c diz que incxistc fusão ou sin-


REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 65<<strong>br</strong> />

cretismo ao nível <strong>da</strong> cosmogonia. Acha que não se deve perceber a cultura<<strong>br</strong> />

negra como mestiça, mas como negra, para não caracterizá-la sob noções<<strong>br</strong> />

de <strong>so<strong>br</strong>e</strong>vivência c <strong>sincretismo</strong> ( 1983, p. 61 ) .<<strong>br</strong> />

Desta forma, em 1983, Luz desdiz quase tudo o que havia dito cm 1972.<<strong>br</strong> />

Esta posição foi constata<strong>da</strong> por Fry ( l984a, pp. 23-24) c critica<strong>da</strong> (Giacomini,<<strong>br</strong> />

1988, pp. 55-71 ), por apresentar abor<strong>da</strong>gens divergentes do mesmo objeto,<<strong>br</strong> />

dez anos depois, valorizando mais o negro africano do que o negro <strong>br</strong>asileiro.<<strong>br</strong> />

Giacomini ( 1988, p. 65) critica Luz por abandonar as análises de classe e de<<strong>br</strong> />

ideologia para se referir "de maneira pouco precisa a relações interétnicas",<<strong>br</strong> />

enfatizando aspectos teológicos c metafísicas. C ritica a supervalorização <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

cultura nagô e mostra que Luz inicialmente proclamava a ruptura com a África<<strong>br</strong> />

c, posteri ormente passa a se preocupar com origens africanas e a defender<<strong>br</strong> />

estudos comparativos entre religiões negro-<strong>br</strong>asileiras e negro-africanas.<<strong>br</strong> />

Atualmente, desenvolveu-se nos estudos <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiros tendência a<<strong>br</strong> />

não mais valorizar a pesquisa em grupos reiigiosos considerados tradicionais<<strong>br</strong> />

ou "puros". C rí ticas a Bastide são identifica<strong>da</strong>s com críticas ao estudo desses<<strong>br</strong> />

grupos. Critica-se a perspectiva, que foi corrente entre os antropólogos, de<<strong>br</strong> />

estu<strong>da</strong>r quase que exclusivamente os grupos tradicionais, com o objctivo<<strong>br</strong> />

de desco<strong>br</strong>ir uma "pureza africana". Desde inícios dos anos 70, começa a<<strong>br</strong> />

crítica ao estudo de grupos tradicionais e a discussão do mito <strong>da</strong> pureza<<strong>br</strong> />

africana, embora a idéia j á seja encontra<strong>da</strong> nos trabalhos de Nina Rodrigues,<<strong>br</strong> />

mostrando que o problema é muito antigo.<<strong>br</strong> />

Outro trabalho que levantou esta questão foi o de Yvonnc Velho<<strong>br</strong> />

(1975), analisando a evolução de um terreiro de umban<strong>da</strong> no Rio de Janeiro.<<strong>br</strong> />

A autora critica a ideologia subjacente na <strong>literatura</strong> <strong>so<strong>br</strong>e</strong> religiões <strong>afro</strong><strong>br</strong>asileiras,<<strong>br</strong> />

sempre vistas como fenômeno de <strong>sincretismo</strong> <strong>religioso</strong> entre<<strong>br</strong> />

"traços" africanos, católicos e outros, mas não estava interessa<strong>da</strong> em refletir<<strong>br</strong> />

<strong>so<strong>br</strong>e</strong> s incretismo. Também critica a expressão estudos <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiros.<<strong>br</strong> />

Em vários trabalhos Peter Fry abor<strong>da</strong> estes problemas. Em relação à<<strong>br</strong> />

umban<strong>da</strong> c ao candomblé, afirma, por exemplo:<<strong>br</strong> />

Tive dificul<strong>da</strong>des estéticas também, pois me foi extremamente probl emático<<strong>br</strong> />

compartilhar o senso estético dos meus amigos umbandistas. O que para eles era<<strong>br</strong> />

lindo para mim era kitsh [ .. . ]Talvez seja por isso que o candomblé é mais estu<strong>da</strong>do<<strong>br</strong> />

c mais apreciado pelos intelectuais cm geral" (Fry: 1982, p. 14 ).<<strong>br</strong> />

Adiante afirma:<<strong>br</strong> />

Agora não é mais perigoso entrar para o candomblé- é chique. O que parece<<strong>br</strong> />

ter acontecido é que alguns dos mais conhecidos c tradicionais terreiros foram absorvidos,<<strong>br</strong> />

não apenas pelos produtores <strong>da</strong> "cultura de massa", mas pelos intelectuais,


\<<strong>br</strong> />

'y<<strong>br</strong> />

66 REPENSANDO O SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

especial mente pelos antropólogos, que foram responsáveis, em grande parte, pela<<strong>br</strong> />

glorificação dos cultos de origem iorubana, cm detrimento dos de procedência ''banto"<<strong>br</strong> />

c <strong>da</strong>queles que adoraram práticas rituai s <strong>da</strong> umban<strong>da</strong> cm expansão. Desde o inicio<<strong>br</strong> />

do estudo científico <strong>so<strong>br</strong>e</strong> os candomblés, os antropólogos com tendência a explicações<<strong>br</strong> />

cm termos de genética cultural classificaram os terreiros de suposta origem<<strong>br</strong> />

ioruba com o sendo d e algum modo mais "puros" que os óc origem banto (ai i ás, a<<strong>br</strong> />

própria categoria banto não tem nenhum sentido neste contexto, pois refere-se a um<<strong>br</strong> />

grupo lingüístico c não cultural). Os que tinham absorvido práticas não-iorubanas<<strong>br</strong> />

-fo;am cl assificados como "impuros ou deturpados" (Fry, 1986, pp. 41-42).<<strong>br</strong> />

Fry discute o assunto cm outros trabalhos ( 1984a; 1984b). Considera<<strong>br</strong> />

que o conceito de pureza aparece em situações de disputa de poder c critica<<strong>br</strong> />

a perspectiva que denomina de filogenética, que privilegia genealogias c<<strong>br</strong> />

procura as origens, cm detrimento <strong>da</strong>s condições históricas.<<strong>br</strong> />

Parece-nos que csra pe rspectiva pode acarretar o peri go de "se j ogar<<strong>br</strong> />

fora a criança com a água <strong>da</strong> bacia". Deve-se ressaltar tanto a "caipiri<strong>da</strong>dc"<<strong>br</strong> />

quanto a '·africani<strong>da</strong>dc" (expressões usa<strong>da</strong>s por Fry) <strong>da</strong>s reli giões <strong>afro</strong><strong>br</strong>asileiras.<<strong>br</strong> />

Estas características não podem ser descarta<strong>da</strong>s sem prejuízo<<strong>br</strong> />

do estudo, mesmo olhando-se mais para o Brasil do que para a África, como<<strong>br</strong> />

prcconiza.muito bem Fry.<<strong>br</strong> />

Estu<strong>da</strong>ndo dimensões ideológicas de práticas umbandistas, Patrícia<<strong>br</strong> />

Birman ( 1980) afirma que se criou entre nós um saber <strong>so<strong>br</strong>e</strong> o africano, que<<strong>br</strong> />

se repete desde Nina Rodri gues, passando por Arthur Ramos, Gilberto<<strong>br</strong> />

Frcyrc, Waldcmar Valente, <strong>Do</strong>nald Picrson, Rogcr Bastidc, Edson Carneiro,<<strong>br</strong> />

Procópio Camargo, Renato Ortiz c outros. Para estes, como para os umbandistas,<<strong>br</strong> />

africano signifi ca pri mitivo c inferior. Há um sistema de representações<<strong>br</strong> />

<strong>so<strong>br</strong>e</strong> o africano, vigente no meio acadêmico c difundido no senso<<strong>br</strong> />

comum (1980, p.7), c os umbandistas se aceitam como religião inferior, o<<strong>br</strong> />

que contribui para a manutenção <strong>da</strong> ordem social, numa visão ideológica<<strong>br</strong> />

que legitima a ordem vigente. Para Birman ( 1980, p. 28), os africanismos<<strong>br</strong> />

1nos terreiros são construção de intelectuais para enco<strong>br</strong>ir a dominação.<<strong>br</strong> />

I A nosso ver, com esta afirmação, Birman exagera c incorre no modismo<<strong>br</strong> />

ele atacar autores clássicos c modernos, independentemente do valor<<strong>br</strong> />

c importância de sua contribuição. Assume posição ideológica que compromete<<strong>br</strong> />

a objctivi<strong>da</strong>dc de sua análise. Não concor<strong>da</strong>mos com a generalização<<strong>br</strong> />

de que os afri canismos no s te rreiros são construções de intelectuais<<strong>br</strong> />

para enco<strong>br</strong>ir a dominação.<<strong>br</strong> />

Este não é absolutamente o ponto de vista de autores como Bastidc,<<strong>br</strong> />

Carneiro, Elbcin dos Santos e outros, que acentuam cxatamcntc uma visão<<strong>br</strong> />

oposta, c não consideram o africano como primitivo ou inferior. Leva<strong>da</strong> às<<strong>br</strong> />

últimas conseqüências, esta visão retiraria aos participantes destas religiões


,;<<strong>br</strong> />

68 REPENSANDO O SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. No caso dos cultos <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asiieiros, é um elemento na busca<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de c na luta pela hegemonia.<<strong>br</strong> />

Segundo Beatriz, os intelectuais desempenham papei significativo na<<strong>br</strong> />

construção dessa hegemonia. Os antropólogos tornam-se aval is tas <strong>da</strong> orto­<<strong>br</strong> />

doxia e personagens na construção <strong>da</strong> hegemonia nagô. A herança africana<<strong>br</strong> />

mais autêntica, representa<strong>da</strong> pelos nagôs "puros" <strong>da</strong> Bahia, é apresenta<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

como ver<strong>da</strong>deira religião, contrastando com a magia/feitiçaria dos bantos.<<strong>br</strong> />

Os antropólogos fortalecem os terreiros mais "puros", às custas dos mais<<strong>br</strong> />

"misturados". A repressão policial passa a incidir então <strong>so<strong>br</strong>e</strong> os que fazem<<strong>br</strong> />

feitiçaria, os "impuros". Constata também (1987, p. 126) que a cruza<strong>da</strong> contra<<strong>br</strong> />

o <strong>sincretismo</strong> anuncia<strong>da</strong> cm Salvador, após a II Conferência Mundial <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

Tradição dos O ri xás c Cultura ( 1983), se inscreve nessa linha de busca de<<strong>br</strong> />

hegemonia e disputa pelo poder.<<strong>br</strong> />

As opiniões de Fry, Birmane Damas foram critica<strong>da</strong>s entre outros por<<strong>br</strong> />

Ari Araújo, Renato Silveira e Muniz Sodré. Renato Silveira (1988, p. 91)<<strong>br</strong> />

afirma que "o <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiro não é um mero objeto (ele ciência), mas um<<strong>br</strong> />

suj eito (histórico), c, enquanto tal, capaz de manipular o pesquisador". Para<<strong>br</strong> />

Sodré (1988, p . 64): "Uma interpretação desse gênero recalca a possibili<strong>da</strong>de<<strong>br</strong> />

de elaboração autônoma de uma estratégia político-cultural por parte<<strong>br</strong> />

do grupo negro". A ri Araújo ( 1986, pp. 69-70) diz:<<strong>br</strong> />

A crítica- por vezes extremamente áci<strong>da</strong>- ao modelo "puro"[ ... ] não justifica<<strong>br</strong> />

sua extensão à componente de resistência presente na cultura negro-<strong>br</strong>asileira.<<strong>br</strong> />

[ ... ]Também não justifica o não - reconhecimento de passos fun<strong>da</strong>mentais <strong>da</strong>dos<<strong>br</strong> />

por esta vertente <strong>da</strong> pesquisa, como, por cxcmpio, o <strong>da</strong> constatação de que os terreiros<<strong>br</strong> />

constitue hisroricamcntc a mais imponante fo rma de organização social paralela<<strong>br</strong> />

à <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de a<strong>br</strong>angente; de que o terrei ro implica[ ... ] um impulso de<<strong>br</strong> />

resistência à ideologia dominante [ ... ]<<strong>br</strong> />

Como criticam Yvonne Velho, Peter Fry, Birman, Dantas e outros, os<<strong>br</strong> />

terreiros considerados mais próximos elas tradições africanas foram ele fato<<strong>br</strong> />

quase que os únicos procurados pelos antropólogos, pelo menos até a déca<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

ele 1970. Mas esses terreiros são reali<strong>da</strong>des empíricas, existem e foram<<strong>br</strong> />

pesquisados. O intelectual atua como reflexo do que encontra, que pode<<strong>br</strong> />

reforçar, mas sua função legitimadora tem limites. O êxito ou fracasso de<<strong>br</strong> />

um terreiro depende principalmente <strong>da</strong> eficácia de sua liderança, como <strong>da</strong><<strong>br</strong> />

autentici<strong>da</strong>de de suas tradições.<<strong>br</strong> />

Entre as déca<strong>da</strong>s de 1930 e 1950, as religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras começavam<<strong>br</strong> />

a se tornar conheci<strong>da</strong>s. Havia, porém, muitos preconceitos, acusações<<strong>br</strong> />

de charlatanismo e perseguições policiais. Os antropólogos procuraram jus-


REVISÃO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 69<<strong>br</strong> />

ta mente os terreiros de maior prestígio no meio, cujos líderes eram mais<<strong>br</strong> />

estimados e contribuíram com seu trabalho para o conhecimento desse<<strong>br</strong> />

campo, combatendo o ctnocentrismo. No Maranhão, na déca<strong>da</strong> ele 1940, os<<strong>br</strong> />

primeiros pesquisadores encontraram na Casa <strong>da</strong>s Minas uma tradição de<<strong>br</strong> />

origem africana mais que centenária. Não foram absolutamente os<<strong>br</strong> />

pesquisadores que criaram esta tradição.<<strong>br</strong> />

Como mostra Beatriz Dantas (1988), no caso de Bilin<strong>da</strong>, foi ela pró- '<<strong>br</strong> />

pria, com sua sabedoria c as alianças que conseguiu formar, que construiu<<strong>br</strong> />

o prestígio de sua casa. O mesmo ocorreu cm outras partes com grande número<<strong>br</strong> />

ele pais c mães-de-santo, como Aninha, Senhora ou Menininha na<<strong>br</strong> />

Bahia, como Anclrcsa no Maranhão, com tantos outros líderes no passado<<strong>br</strong> />

c até hoje. Geralmente eles são procurados por pesquisadores em função do<<strong>br</strong> />

prestígio de que já desfrutam. O intelectual pode contribuir para ampliar<<strong>br</strong> />

esse prestígio, mas não é quem o forja, ao menos entre os líderes mais autênticos.<<strong>br</strong> />

A tradição <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asi leira não é portanto uma invenção de intelectuaisH,<<strong>br</strong> />

como querem alguns. Os intelectuais, de fato, contribuem, entretanto,<<strong>br</strong> />

para o seu reforço.<<strong>br</strong> />

Com Pcrcr Fry, Patrícia Birman c Beatriz Dantas supervalorizam o<<strong>br</strong> />

papel do intelectual nos terreiros. Sua função mediadora é importante e tem<<strong>br</strong> />

sido reconheci<strong>da</strong>. Roberto Motta ( 1986, pp. 80-81) comenta casos de<<strong>br</strong> />

antropólogos que agem como teólogos e como fator de mu<strong>da</strong>nça nos terreiros.<<strong>br</strong> />

Muitas casas incluem intelectuais em sua estrutura como ogans ou<<strong>br</strong> />

cm outros cargos, o que também -é<<strong>br</strong> />

um costume consagrado. Embora não se<<strong>br</strong> />

neg ue esta influência, sua função é limita<strong>da</strong> e condiciona<strong>da</strong> pela atuação<<strong>br</strong> />

dos líderes, que mantêm c renovam as tradições dos terreiros, manipulando-as<<strong>br</strong> />

em função de seus interesses.<<strong>br</strong> />

Beatriz Dantas (1988, p. 147) constara que a ''decanta<strong>da</strong> pureza nagô"<<strong>br</strong> />

tem contornos diferentes na Bahia, cm Sergipe c cm Pernambuco. As semelhanças<<strong>br</strong> />

c diferenças entre as religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras ela Bahia, Pernambuco,<<strong>br</strong> />

Sergipe, Rio Grande do Sul, Pará, Maranhão, etc., não se devem a "representações<<strong>br</strong> />

de africanismos construí<strong>da</strong>s nos meios acadêmicos". Há de fato<<strong>br</strong> />

diferenças incontestáveis entre as práticas religiosas nestas c em outras<<strong>br</strong> />

regiões. Dantas (1988, p. 147) descarta rápido demais a hipótese de que se<<strong>br</strong> />

devam "a diferenças étnicas nos grupos negros originários, cujas tradições<<strong>br</strong> />

8. Segundo I lobsbawm (llobsbawm & Ranger, 1984, p. 9), ''muitas vezes 'tradições' que parecem<<strong>br</strong> />

ou s5o considera<strong>da</strong>s antigas são bastante recentes, quando não são inventa<strong>da</strong>s". llobsbawm ana­<<strong>br</strong> />

lisa a invenção de tradições como processo de ritualização. Estu<strong>da</strong>ndo casos na Inglaterra do<<strong>br</strong> />

século XVIII ao XX, mostra que tradições que são considera<strong>da</strong>s como tendo vários séculos fo ram<<strong>br</strong> />

invenções relativamente recentes fei tas por intelectuais, como o saiote irlandês, estabelecido cm<<strong>br</strong> />

inícios do século XIX.


70 REPENSANDO O SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

culturais eram diversifica<strong>da</strong>s já na própria Áfri ca". Afirma estar comparando<<strong>br</strong> />

terreiros que se autodcfincm como nagô, c o que é considerado sinal<<strong>br</strong> />

de pureza num lugar, noutro é sinal de mistura. Estas diferenças certamente<<strong>br</strong> />

se devem a vários fatores, como a diversi<strong>da</strong>des nos grupos originários, nos<<strong>br</strong> />

processos de a<strong>da</strong>ptação a ca<strong>da</strong> ambiente, ao isolamento geográfico que gerou<<strong>br</strong> />

estruturas di fercncia<strong>da</strong>s c outros.<<strong>br</strong> />

Ãtualmentc a problemática <strong>da</strong> pureza africana assume Olllras dimensões.<<strong>br</strong> />

Furuya ( 1986), estu<strong>da</strong>ndo o tambor de mina do Pará, fala do processo<<strong>br</strong> />

de "nagoização". Outros falam em ""nagocracia" ou ''quctocracia", referindose<<strong>br</strong> />

ao predomínio do padrão de candomblé nagô qucto <strong>so<strong>br</strong>e</strong> as tradições de<<strong>br</strong> />

origens africanas no Brasil.<<strong>br</strong> />

Outro ângulo deste tema, que tem sido analisado em São Paulo c ocorre<<strong>br</strong> />

também cm d iversos lugares, é o processo denominado de "africanização ou<<strong>br</strong> />

rcafricanização" destas religiões. Prandi c Silva (1989, p. 221) c Prandi ( 1989)<<strong>br</strong> />

mostram que hoje, em São Paulo, o candomblé não é mais uma religião de<<strong>br</strong> />

preservação de um patrimônio cultural do negro, uma religião étnica, tendose<<strong>br</strong> />

transformado numa religião universal, aberta a todos, independentemente<<strong>br</strong> />

de cor, origem c classe, competindo no mercado rel igioso com outras religiões.<<strong>br</strong> />

Eles estu<strong>da</strong>m em São Paulo o fenômeno recente <strong>da</strong> transformação de<<strong>br</strong> />

terreiros de um ban<strong>da</strong> em candomblé nagô queto. Segundo Prandi ( 1989, p.<<strong>br</strong> />

142), tal fato se acentuou em fins <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de 1970. Trata-se de "um processo<<strong>br</strong> />

intencional de dessincrctização, afastando-se do calendári o litúrgico<<strong>br</strong> />

católico e eliminando símbolos c práticas do catolicismo umbandizado".<<strong>br</strong> />

Para Prandi ( 1989, pp. 143- 154), rcafricanização não significa ser negro nem<<strong>br</strong> />

desejar sê-lo; significa intelectualização c acesso a uma <strong>literatura</strong> sagra<strong>da</strong><<strong>br</strong> />

que contém poemas oraculares, a reorganização do culto conforme modcios<<strong>br</strong> />

trazidos <strong>da</strong> África contemporânea; é uma <strong>br</strong>icolagcm c não uma volta ao<<strong>br</strong> />

primitivo original. Atinge principalmente pais c mães-de-santo de São Paulo<<strong>br</strong> />

"que vêm passando por um processo de mobili<strong>da</strong>de social ascendente".<<strong>br</strong> />

Repetindo cm escala mais r<strong>edu</strong>zi<strong>da</strong> a saga de pai Adão do Recife c de<<strong>br</strong> />

Martiniano do Bonfim <strong>da</strong> Bahia, g randes líderes <strong>religioso</strong>s do inicio do<<strong>br</strong> />

século que estiveram na África, o processo de rcafricanização implica hoje<<strong>br</strong> />

a i<strong>da</strong> por algumas semanas à África, ou a vin<strong>da</strong> de um pai-de-santo africano<<strong>br</strong> />

ao Brasil, ao qual se prestam o<strong>br</strong>igações. Implica o aprendizado <strong>da</strong> língua<<strong>br</strong> />

iorubana moderna cm cursos de extensão oferecidos por estu<strong>da</strong>ntes africanos<<strong>br</strong> />

cm Universi<strong>da</strong>des como a USP ou a UFBA. Inclui a introdução de inovações<<strong>br</strong> />

aprendi<strong>da</strong>s c m livros <strong>so<strong>br</strong>e</strong> religiões africanas, de autores como Ycrger,<<strong>br</strong> />

Maupoil, Bascon, Abimbola, Gleazon c outros. A africanização ou a<<strong>br</strong> />

rcafricanização, como o processo análogo de nagoização, constituem uma


72 REPENSANDO O SINCRETISMO<<strong>br</strong> />

Apoiado na idéia de Durkheim de que nenhuma instituição social pode<<strong>br</strong> />

repousar <strong>so<strong>br</strong>e</strong> o erro c a mentira, c que por isso não há religiões que sejam<<strong>br</strong> />

sociologicamente falsas, Roberto Motta (1982) in<strong>da</strong>ga se "simples disfarces<<strong>br</strong> />

durariam através de mais de 150 anos de história dos cultos <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiros".<<strong>br</strong> />

Critica a idéia do <strong>sincretismo</strong> como disfarce e considera que "o povo-de-santo<<strong>br</strong> />

do Recife vive o <strong>sincretismo</strong> com to<strong>da</strong>s as suas contradições. [ ... ]O <strong>sincretismo</strong><<strong>br</strong> />

não representa apenas concessão de escravos a senhores ou de senhores a<<strong>br</strong> />

escravos, disfarce ele negros amedrontados. Ao contrário, possui um apccto<<strong>br</strong> />

de legítima apropriação dos bens do opressor pelo oprimido" ( 1982, p. 7).<<strong>br</strong> />

No Rio de Janeiro, na perspectiva <strong>da</strong> psicologia religiosa, Monique<<strong>br</strong> />

Augras realiza pesquisas <strong>so<strong>br</strong>e</strong> religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras. Em seu livro mais<<strong>br</strong> />

conhecido <strong>so<strong>br</strong>e</strong> o tema, encontramos entre outras as seguintes observações<<strong>br</strong> />

<strong>so<strong>br</strong>e</strong> sincreti smo (Augras, 1983, pp. 27-32):<<strong>br</strong> />

Desconfiamos no entanto que o <strong>sincretismo</strong> seja mais aparente que real, e,<<strong>br</strong> />

<strong>so<strong>br</strong>e</strong>tudo, não seja vivido do mesmo modo pelas diversas religiões de origem<<strong>br</strong> />

africana. [ ... ] Acreditamos que seja possível falar de <strong>sincretismo</strong> no caso <strong>da</strong> umban<strong>da</strong>.<<strong>br</strong> />

Nela, as divin<strong>da</strong>des e os ritos não se juswpõem apenas. Fundem-se. [ ... ]a doutrina<<strong>br</strong> />

incorpora os diversos valores <strong>da</strong>s demais religiões.[ ... ] Nas regiões onde a religião<<strong>br</strong> />

nagô tradicional pôde subsistir[ ... ] é mais difícil falar cm <strong>sincretismo</strong>. To<strong>da</strong>s as<<strong>br</strong> />

definições que encontramos <strong>da</strong> palavra "<strong>sincretismo</strong>" dão como essencial a fusão<<strong>br</strong> />

de vúrios elementos. No caso do candomblé de rito nagô, parece tratar-se de<<strong>br</strong> />

justaposição mais do que fusão. [ ... )Nossa opinião é que houve fusão real ao nível<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong>s divin<strong>da</strong>des africanas [ ... ] Nossa avaliação é mais reserva<strong>da</strong> cm relação ao propalado<<strong>br</strong> />

sincre tismo com o catolicismo. [ ... ] Ao nível do candomblé tradicional, não hú<<strong>br</strong> />

fusão, nem síntese entre a ideologia cristã e o sistema nagô.<<strong>br</strong> />

O antropólogo argentino Alcjanclro Frigcrio ( 1983), que realiza<<strong>br</strong> />

pesquisas <strong>so<strong>br</strong>e</strong> religiões de origem africana cm Salvador e em Buenos Aires,<<strong>br</strong> />

impressiona-se com a recente expansão desta religião cm seu país. Afirma<<strong>br</strong> />

que o crescimento do <strong>sincretismo</strong> é um dos temas pouco abor<strong>da</strong>dos na <strong>literatura</strong><<strong>br</strong> />

<strong>so<strong>br</strong>e</strong> as rciigiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras, pois o preconceito africano fez<<strong>br</strong> />

com que cm Salvador somente fossem estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s as casas mais ortodoxasquinze<<strong>br</strong> />

a vinte dos cerca de 3000 terreiros existentes. Como os terreiros estu<strong>da</strong>dos<<strong>br</strong> />

cm geral são de tradição nagô quero, conclui que os estudos não são<<strong>br</strong> />

representativos <strong>da</strong> situação <strong>da</strong> maioria <strong>da</strong>s casas de culto ele Salvador.<<strong>br</strong> />

Frigcrio analisa diversos estudiosos elas religiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asil eiras.<<strong>br</strong> />

Critica Bastidc por ver o candomblé como um enquistamcnto cultural c<<strong>br</strong> />

encontrar contradições entre seus participantes serem ao mesmo tempo bons<<strong>br</strong> />

<strong>br</strong>asi leiros c bons africanos. Não concor<strong>da</strong> que haja contradições entre valores<<strong>br</strong> />

do candomblé e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de <strong>br</strong>asileira. Em Juana Elbcin, critica a pro-


REVISiO DA LITERATURA SOBRE SINCRETISMO ... 73<<strong>br</strong> />

prie<strong>da</strong>dc <strong>da</strong> uti lização de matcriai africano na análise de <strong>da</strong>dos <strong>br</strong>asil eiros<<strong>br</strong> />

e do termo nagô do Brasil, como equivalente ao qu e a etnologia moderna<<strong>br</strong> />

denomina de ioruba <strong>da</strong> Nigéria.<<strong>br</strong> />

Em tese de doutorado <strong>so<strong>br</strong>e</strong> tipos de personali<strong>da</strong>de c representação<<strong>br</strong> />

simbólica no Xangô do Recife, Rita Scgato ( 1984, pp. 284-287) anali sa também<<strong>br</strong> />

o papel do <strong>sincretismo</strong>. Verifica que o povo-de-santo considera incompleta<<strong>br</strong> />

a mitologia dos orixás. Independentemente <strong>da</strong>s razões de suas origens,<<strong>br</strong> />

para ela, o <strong>sincretismo</strong> desempenha a função de complementar aspectos<<strong>br</strong> />

f ragm en tários <strong>da</strong> mitologia. Segundo Rita, para esclarecer a imagem dos<<strong>br</strong> />

orixás ou preencher falhas de informações, os filhos-de-santo utilizam-se<<strong>br</strong> />

do <strong>sincretismo</strong> com os santos católicos correspondentes. Por exemplo, para<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong>r idéia <strong>da</strong> postura de Ogum util iza-se a figura de São Jorge cavaleiro; a<<strong>br</strong> />

superiori<strong>da</strong>de distante e o carátcr m elancólico ele lemanjá são expressos<<strong>br</strong> />

através <strong>da</strong> imagem de N. Sra. <strong>da</strong> Conceição emergindo elo mar. Para Scgato,<<strong>br</strong> />

o <strong>sincretismo</strong>, como os sonhos, contribui para se ter uma visão mais clara<<strong>br</strong> />

dos orixás que são incorporados nos devotos no estado ele transe.<<strong>br</strong> />

Estu<strong>da</strong>ndo a iconografia atual do Exu <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiro em artigo <strong>so<strong>br</strong>e</strong><<strong>br</strong> />

arte africana c sincretis mo no Brasil, Kabengeie Munanga (1989, pp. 99-<<strong>br</strong> />

128) uti liza o conceito ele <strong>sincretismo</strong> afirmando que houve uma ver<strong>da</strong>deira<<strong>br</strong> />

s íntese. "Às funções originais (africanas) acrescentaram-se novas (<strong>afro</strong><strong>br</strong>asileiras),<<strong>br</strong> />

como as de contestação, de revolta c de liberação dos negros<<strong>br</strong> />

de suas condições de escravos" (1 989, p. 126).<<strong>br</strong> />

Para Munanga, se no Brasil a situação de contato tivesse sido de igual<strong>da</strong>de<<strong>br</strong> />

de trocas recíprocas, teria havido um processo de aculturação entre<<strong>br</strong> />

negros escravos e <strong>br</strong>ancos colonizadores. Munanga diz que os pesquisadores<<strong>br</strong> />

<strong>da</strong>s reli giõcss <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asi leiras dividem-se cm dois g rupos: uns crêem que<<strong>br</strong> />

ho uve realmente <strong>sincretismo</strong> entre reli gião cató li ca e religiões africanas c<<strong>br</strong> />

utilizam o conceito, outros negam o <strong>sincretismo</strong> e evitam a utilização do<<strong>br</strong> />

termo. Conside ra que ambos cometem o erro de partir do conceito para a<<strong>br</strong> />

reali<strong>da</strong>de, não analisando adequa<strong>da</strong>mente o conceito nem a reali<strong>da</strong>de.<<strong>br</strong> />

Atualmentc começam a se alterar as relações c o interesse ela Ig reja<<strong>br</strong> />

Católica pcio negro, rel igiões <strong>afro</strong>-<strong>br</strong>asileiras e <strong>sincretismo</strong>. Tal fato pode<<strong>br</strong> />

ser constatado na experiência vivi<strong>da</strong> cm Salvador durante alguns anos pelo<<strong>br</strong> />

sacerdote francês padre François de I' Espinay (1989). Fa lecido cm dezem<strong>br</strong>o<<strong>br</strong> />

de 1985, c não deixando ele ser padre, François assumiu cargos como<<strong>br</strong> />

ministro ele Xangô no te rreiro do Opô Aganju, c deixou alguns artigos<<strong>br</strong> />

(Espinay, 1987a; 1987-b) com reflexões <strong>so<strong>br</strong>e</strong> cristianismo c candomblé.<<strong>br</strong> />

Relações entre o negro e a Igreja são anali sa<strong>da</strong>s na tese de doutoramento de<<strong>br</strong> />

Ana Lúcia Valente ( 1989). Após apresentar uma visão sintética <strong>da</strong> presença

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!