entrevista 4 ô Catarina! | número 70 | 2009 Cavaleiro andante da palavra Poeta e tiPógrafo carioca reViVe em santa <strong>catarina</strong> a arte gutemBerguiana marco Vasques A figura <strong>de</strong> Dom Quixote quase sempre é associada ao pejorativo, ao burlesco. O fidalgo Quijana, leitor <strong>de</strong> livros <strong>de</strong> cavalaria, resolve sair do papel <strong>de</strong> leitor para se tornar personagem e criar a sua própria aventura. Moinhos <strong>de</strong> vento ou barris <strong>de</strong> carvalho tomam feições <strong>de</strong> gigantes ou presos acorrentados passam a seres inocentes que precisam da justiça da cavalaria andante. Até Sancho Pança, o escu<strong>de</strong>iro, em princípio incrédulo na aventura, entra no sonho e se imagina governador <strong>de</strong> uma ilha. Tudo em Dom Quixote <strong>de</strong> La Mancha é contagiante. Ele precisa <strong>de</strong> um sonho para não morrer. Somos todos quixotes. A gran<strong>de</strong> metáfora <strong>de</strong> Miguel <strong>de</strong> Cervantes, que escreveu o romance na prisão, além da liberda<strong>de</strong> e do sonho, é, sem dúvida, a força da palavra falada e escrita. Força essa que encontramos na pessoa do tipógrafo, editor e poeta Cleber Teixeira. A vida <strong>de</strong>dicada à leitura, à escritura e à publicação <strong>de</strong> livros. O cavaleiro que faz da palavra sua aventura, a começar por dois <strong>de</strong> seus livros: “13 poemas do poeta, cavaleiro sem cavalo e tipógrafo Cleber Teixeira” e “Armadura, espada, cavalo e fé”. A poética <strong>de</strong> Cleber Teixeira cita as cantigas medievais e nos reporta aos provençais que tinham a poesia como ofício diário e irrestrito. E Cleber é assim: vive para a palavra e da palavra. Sua editora, Noa Noa, uma das mais importantes do Brasil, publicou traduções <strong>de</strong> John Donne, John Keats, Gerard Manley Hopkins, Mallarmé, Cummings e T.S.Eliot (e Augusto e Haroldo <strong>de</strong> Campos publicaram algumas <strong>de</strong> suas traduções pela Noa Noa), em um catálogo <strong>de</strong> 72 títulos e tiragens limitadas, com média <strong>de</strong> duzentos exemplares compostos na gráfica manual guttemberguiana. Cleber não é um Quixote naquele sentido burlesco, mas no sentido mais nobre que se possa metaforizar. Entregar a vida aos livros, à leitura, a difundir a leitura, à feitura artesanal <strong>de</strong> livros num mundo em que tudo é rápido e mercantilizado; on<strong>de</strong> sinônimo <strong>de</strong> sucesso é ter dinheiro, carro do ano e algum po<strong>de</strong>r só po<strong>de</strong> mesmo ser um ato <strong>de</strong> amor. A generosida<strong>de</strong> e o prazer em receber com o tradicional cafezinho os amigos, escritores, estudantes — no bairro Agronômica, Ilha <strong>de</strong> Santa Catarina, on<strong>de</strong> o carioca vive há 30 anos — são outros dos atributos do cavaleiro/ poeta da tipografia. t entrevista concedida a marco vasques Ô <strong>catarina</strong>! | o seu amor pelos livros está expresso no trabalho a frente da editora noa noa, na generosida<strong>de</strong> com que recebe os escritores e amigos em sua casa para falar <strong>de</strong> literatura, na tenacida<strong>de</strong> em manter a editora sempre respirando e, é claro, na sua literatura. cleber teixeira | Eu venho procurando uma explicação para esta minha paixão pelos livros. Porque na minha casa não tínhamos tanto livros assim. Tudo bem que meu pai era um jornalista, mas não era um leitor compulsivo. Minha sorte foi ter recebido <strong>de</strong> presente <strong>de</strong> Natal a coleção completa do Monteiro Lobato. Foi um belíssimo presente. Talvez eu precise fazer uma revisão com relação ao prazer da leitura e a possível influência que meu pai teve nisso tudo. Meu pai teve uma vida quase secreta: ele tinha uma outra família e nós não sabíamos. Enfim, ele se mandou e nos <strong>de</strong>ixou na extrema miséria, miséria mesmo. Um dia tenho que mexer neste baú secreto. O que importa é que ele teve o cuidado <strong>de</strong> me dar o Monteiro Lobato e, certamente, a partir dali minha paixão pelos livros começou. Tanto faz estar em Desterro ou no Rio <strong>de</strong> Janeiro, se você tem acesso a bibliotecas você está sintonizado com o mundo. ÔC! | Mesmo com esses conflitos, pa- rece-me que seu pai teve papel funda- mental na sua formação como leitor. cleber | Exatamente. Na verda<strong>de</strong>, acontece aí uma coisa muito curiosa que se explica só pelo inexplicável da situação. Conheci pouco meu pai, convivi pouco com ele. Até para fazer um retrato real e honesto <strong>de</strong>le eu teria que refletir mais e rever meus sentimentos. Como disse, ele me <strong>de</strong>u <strong>de</strong> presente em um Natal a obra completa do Monteiro Lobato e o “Tesouro da Juventu<strong>de</strong>”. Tinha oito anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e me tomei <strong>de</strong> paixão por aquilo. Evi<strong>de</strong>ntemente que para me dar os livros <strong>de</strong> presente eu já havia manifestado o gosto pela leitura. Então ele estimulou dando aquilo que foi um presente pelo qual hoje, 61 anos <strong>de</strong>pois, tenho um apego enorme. E isso agra<strong>de</strong>ço sempre. Não <strong>de</strong>veria agra<strong>de</strong>cer com tamanha ênfase, porque é obrigação <strong>de</strong> todo pai educar a<strong>de</strong>quadamente seus filhos, mas vá lá, como não convivi com um pai cumpridor das obrigações, vou homenagear, tentar resgatá-lo lembrando as coisas boas que ele fez. O meu pai tinha uma crônica num jornal popular <strong>de</strong> esquerda. Era a crônica típica do cronista mesmo. Eu tinha isso num ca<strong>de</strong>rno e boa parte sumiu completamente. Meu pai, na verda<strong>de</strong>, era uma pessoa com talento <strong>de</strong> escritor. Ele cobria um espetáculo <strong>de</strong> ópera em um dia e no outro ia a um jogo no Maracanã. Ele era muito versátil. Eu ia algumas vezes ao estádio com ele. Esse crédito eu dou a ele, o <strong>de</strong> ter aberto para mim um caminho ao qual eu já era propenso: a literatura. Ôc! | Quais autores foram <strong>de</strong>cisivos para a sua formação? cleber | Tomás Antônio Gonzaga me marcou muito. Ban<strong>de</strong>ira, Murilo Men<strong>de</strong>s, João Cabral <strong>de</strong> Melo Neto. Um dos poetas que eu mais admiro é Affonso Ávila. Muitos outros, mas estes influíram na minha formação. Ôc! | como surgiu a editora noa noa? cleber | O nome vem do livro “Noa Noa”, do Paul Gauguin, e quer dizer Ter- ra Perfumada. Era o nome da ilha em que Gauguin viveu. [Risos] Cá estou eu numa ilha. Eu tive sorte, pois <strong>de</strong>s<strong>de</strong> garoto quis ser escritor. Queria fazer livros e ler livros; na época, isso para mim era aparentemente muito simples. Sabemos que não é simples. Mas tudo aconteceu <strong>de</strong> forma muito saborosa. Eu tinha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> editar alguma coisa, mas não tinha dinheiro. Em outros tempos o processo <strong>de</strong> edição <strong>de</strong> um livro era muito mais complexo. Manter uma oficina tipográfica com linotipo era caro. A única maneira <strong>de</strong> um autor médio publicar era pagando. Ban<strong>de</strong>ira pagou a edição do seu primeiro livro, o “Cinza das horas”. Se minha memória não estiver me traindo, acredito que o Drummond também. Era muito complicado editar. Até que em 1965 eu casei e estava tentando achar uma maneira <strong>de</strong> prosseguir meu sonho <strong>de</strong> editar. Aí o meu ex-sogro um dia chegou para mim e disse “olha, tem uma viúva <strong>de</strong> um amigo meu que fazia um trabalho gráfico, ela quer ven- “a leitura passou a ser o possível momento <strong>de</strong> paz, pois o universo do livro é fascinante, tudo se po<strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r com a leitura.” entrevista 5 ô Catarina! | número 70 | 2009