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rESPoNSABiLidAdE iNtErNACioNAL Por VioLAÇÕES dE dirEitoS ...

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ESPoNSABiLidA<strong>dE</strong> <strong>iNtErNACioNAL</strong> <strong>Por</strong> <strong>VioLAÇÕES</strong> <strong>dE</strong> <strong>dirEitoS</strong> HUMANoS: A CoN<strong>dE</strong>NAÇÃo...<br />

ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO/2011 - ISSN 1676-3661<br />

EditoriAL:<br />

<strong>rESPoNSABiLidA<strong>dE</strong></strong> <strong>iNtErNACioNAL</strong> <strong>Por</strong> <strong>VioLAÇÕES</strong><br />

<strong>dE</strong> <strong>dirEitoS</strong> HUMANoS: A CoN<strong>dE</strong>NAÇÃo do BrASiL<br />

No CASo dA GUErriLHA do ArAGUAiA<br />

Há exatamente um ano atrás, o IBCCRIM reivindicava<br />

o direito à verdade em seu editorial no Boletim<br />

n. 207, manifestando apoio ao esclarecimento<br />

das graves violações de direitos humanos ocorridas<br />

durante o período ditatorial. Ao longo do ano de<br />

2010, foi criada a Comissão Nacional da Verdade,<br />

apesar de muita resistência – embora seu projeto<br />

ainda esteja em análise na Câmara –, e o STF julgou<br />

improcedente a ADPF 153, que pedia a revisão da<br />

Lei de Anistia. Contudo, a despeito desse processo<br />

em âmbito interno tender ao desinteresse<br />

e à falta de vontade política,<br />

a partir de agora o Estado brasileiro<br />

deverá dar a devida atenção ao seu<br />

passado face à condenação pela Corte<br />

Interamericana de Direitos Humanos<br />

(CIntDH) no caso Julia Lund e outros<br />

(Guerrilha do Araguaia), cuja sentença<br />

responsabilizou o Brasil por violação<br />

a artigos da Convenção Americana de<br />

Direitos Humanos.<br />

Em 14 de dezembro de 2010, o<br />

Brasil foi condenado pela CIntDH por<br />

violação ao direito ao reconhecimento<br />

da personalidade jurídica, à vida, à<br />

integridade, à liberdade, às garantias<br />

e proteção judiciais, à liberdade de<br />

pensamento e expressão, em razão da<br />

detenção arbitrária, tortura e desaparecimento<br />

de 70 membros do Partido<br />

Comunista do Brasil e de camponeses da região do<br />

Araguaia no período de 1972 a 1975. Em decorrência<br />

dessa responsabilização, a Corte condenou o Estado<br />

brasileiro a reparar as vítimas diretas e a sociedade em<br />

geral por meio da investigação penal e da aplicação<br />

das sanções aos indivíduos responsáveis pelos crimes,<br />

da localização do paradeiro dos restos mortais dos<br />

desaparecidos e da revelação de toda a verdade relativa<br />

ao caso, do oferecimento de assistência médica<br />

e psicológica aos familiares, da realização de um ato<br />

público de reconhecimento de sua responsabilidade<br />

internacional, da capacitação de sua Força Armada<br />

acerca dos direitos humanos e da tipificação do desaparecimento<br />

forçado de pessoas como crime em<br />

sua legislação penal.<br />

Desse modo, a natureza objetiva das obrigações de<br />

proteção de direitos humanos consagra a dignidade<br />

humana como principal preocupação da comunidade<br />

internacional, de maneira que a responsabilidade<br />

internacional do Estado por violação de direitos<br />

Em.14.de.dezembro.<br />

de.2010,.o.Brasil.<br />

foi.condenado.<br />

pela.CIntDH.por.<br />

violação.ao.direito.ao.<br />

reconhecimento.da.<br />

personalidade.jurídica,.<br />

à.vida,.à.integridade,.<br />

à.liberdade,.às.<br />

garantias.e.proteção.<br />

judiciais,.à.liberdade.<br />

de.pensamento.e.<br />

expressão<br />

humanos tem sido reconhecida como princípio geral<br />

do Direito Internacional, ou seja, a violação de normas<br />

internacionais por um Estado gera responsabilidade<br />

internacional e o consequente dever de reparação. No<br />

presente caso, o tribunal internacional considerou que<br />

o Brasil e suas instituições nacionais mostraram-se<br />

falhos ou omissos para solucionar os casos de desaparecimento,<br />

e, portanto, a ele atribuiu responsabilidade<br />

internacional.<br />

Importa assinalar, ainda, a obrigação de reparação<br />

consagrada no art. 63.1 da Convenção<br />

Americana de Direitos Humanos, de<br />

modo que, se o Estado-parte violador<br />

não assegurar uma reparação adequada<br />

aos danos causados, estará incorrendo<br />

em responsabilidade internacional.<br />

Nesse sentido, se o Brasil não cumprir<br />

as determinações da CIntDH, da qual<br />

soberanamente aceitou a jurisdição,<br />

poderá ser condenado novamente<br />

por ilícito internacional. Na mesma<br />

medida, é preciso compreender que<br />

essa reparação é regida pelo Direito<br />

Internacional, e não pelo direito interno,<br />

afastando, assim, as diversas manifestações<br />

de que o Brasil não estaria<br />

obrigado a cumprir as determinações<br />

da CIntDH.<br />

A Corte também condenou o<br />

Brasil a adotar todas as medidas para<br />

que a Lei de Anistia não continue representando um<br />

óbice para a persecução penal dos crimes contra a<br />

humanidade, a exemplo do que vem acontecendo em<br />

países vizinhos, como a Argentina, o Chile, o Peru o<br />

Uruguai. Dessa maneira, salienta que o Estado tem<br />

o dever de investigar e, se for o caso, julgar e punir<br />

os criminosos pelos crimes de desaparecimento, pois<br />

essa obrigação decorre de diversos instrumentos<br />

internacionais de proteção de direitos humanos,<br />

que se constituem em normas de ius cogens para os<br />

Estados. Ou seja, a CIntDH reitera sua orientação<br />

no sentido de que as leis de anistia não podem ser<br />

um óbice para a investigação e o processamento das<br />

graves violações de direitos humanos, de que elas<br />

não podem ser invocadas para o não julgamento de<br />

crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis.<br />

Considerou, dessa maneira, que a forma como a Lei<br />

de Anistia brasileira foi interpretada obstou os deveres<br />

internacionais assumidos pelo Estado, portanto, suas<br />

disposições que impedem a investigação e a sanção<br />

• EditoriAL:<br />

<strong>rESPoNSABiLidA<strong>dE</strong></strong> <strong>iNtErNACioNAL</strong><br />

<strong>Por</strong> <strong>VioLAÇÕES</strong> <strong>dE</strong> <strong>dirEitoS</strong><br />

HUMANoS: A CoN<strong>dE</strong>NAÇÃo do<br />

BrASiL No CASo dA GUErriLHA<br />

do ArAGUAiA ..........................................................1<br />

• o PriNCÍPio do LiMitE <strong>dE</strong> ÚLtiMo<br />

GrAU HiStÓriCo EM MAtÉriA PENAL<br />

. Igor.Pereira ....................................................................2<br />

• FiXAÇÃo do VALor MÍNiMo do<br />

dANo No CPP: dA iNtErPrEtAÇÃo<br />

tELEoLÓGiCA À iNtErPrEtAÇÃo<br />

“CoNSEQUENCiALiStA”?<br />

. Raquel.Lima.Scalcon. ............................................4<br />

• ALGUMAS CoNSEQUÊNCiAS dA<br />

iMAtUridA<strong>dE</strong> iNForMÁtiCA do<br />

BrASiLEiro MÉdio FrENtE ÀS<br />

tiPiFiCAÇÕES do PL 89/03<br />

. Spencer.Toth.Sydow.................................................6<br />

• APoNtAMENtoS SoBrE o <strong>dE</strong>VEr<br />

<strong>dE</strong> tUtELA do MEio AMBiENtE NA<br />

CriMiNALidA<strong>dE</strong> <strong>dE</strong> EMPrESA<br />

. Renata.Jardim.da.Cunha.Rieger.....................8<br />

• CriME orGANiZAdo, EStAdo<br />

<strong>dE</strong>SorGANiZAdo<br />

. Guilherme.Rodrigues.Abrão..............................9<br />

• rEFLEXÕES SoBrE o USo dAS<br />

CoNVErSAS tELEFÔNiCAS No<br />

ProCESSo PENAL<br />

. Fábio.Tofic.Simantob...........................................10<br />

• dirEito PENAL E doPiNG<br />

. Luís.Greco.e.Alaor.Leite ....................................11<br />

• ACordo <strong>dE</strong> CooPErAÇÃo BrASiL<br />

/ EUA: iNCoNStitUCioNALidA<strong>dE</strong>S E<br />

PErSPECtiVAS NA CoLEtA <strong>dE</strong><br />

ProVA tEStEMUNHAL EM<br />

tErritÓrio NortE-AMEriCANo.<br />

. Rodrigo.Moraes.de.Oliveira ............................12<br />

• iNVEStiGAÇÃo CriMiNAL <strong>dE</strong>FENSiVA:<br />

UMA LUZ No<br />

FiM do tÚNEL CoM SUA PrEViSÃo No<br />

NoVo CÓdiGo <strong>dE</strong> ProCESSo PENAL<br />

(ProJEto <strong>dE</strong> LEi 156/09)<br />

. Luiz.Rascovski..........................................................14<br />

• EUtANÁSiA E ortotANÁSiA<br />

– PErSPECtiVAS AtUAiS No<br />

or<strong>dE</strong>NAMENto JUrÍdiCo NACioNAL<br />

. Bruno.Salles.Pereira.Ribeiro...........................15<br />

• <strong>dE</strong>SAPArECiMENto ForÇAdo <strong>dE</strong><br />

PESSoAS, VErdA<strong>dE</strong> E MEMÓriA<br />

. Camila.Akemi.Perruso........................................17<br />

• UM NoVo PArAdiGMA PArA A<br />

EXECUÇÃo PENAL doS CriMiNoSoS<br />

SEXUAiS: A HorMoNotErAPiA<br />

. Claudia.Barrilari......................................................18<br />

CA<strong>dE</strong>rNo <strong>dE</strong> JUriSPrUdÊNCiA<br />

o dirEito <strong>Por</strong> QUEM o FAZ<br />

• dirEito PENAL. <strong>dE</strong>SACAto.<br />

AtiPiCidA<strong>dE</strong> dA CoNdUtA.<br />

<strong>dE</strong>CiSÃo ABSoLUtÓriA. .........................1433<br />

EMENtAS<br />

•. Supremo.Tribunal.Federal. ........................1434<br />

•. Superior.Tribunal.de.Justiça.....................1434<br />

•. Tribunais.Regionais.Federais...................1435<br />

•. Tribunais.de.Justiça ........................................1437


o PriNCÍPio do LiMitE <strong>dE</strong> ÚLtiMo GrAU HiStÓriCo EM MAtÉriA PENAL <strong>rESPoNSABiLidA<strong>dE</strong></strong> <strong>iNtErNACioNAL</strong>...<br />

das graves violações de direitos humanos não<br />

têm efeito jurídico. Nessa perspectiva, obriga<br />

que o Poder Judiciário brasileiro exerça um<br />

controle de convencionalidade ex officio entre<br />

as normas internas e as internacionais a partir<br />

da interpretação da CIntDH.<br />

A sentença proferida pela Corte confirma<br />

a jurisprudência desenvolvida por ela desde<br />

sua primeira condenação em casos de desaparecimento<br />

forçado de pessoas, em 1989,<br />

quando julgou o caso Velasquez Rodrigues vs.<br />

Honduras. Desde então, ela vem consolidando<br />

uma compreensão de que o desaparecimento<br />

forçado é uma grave violação de direitos humanos<br />

de caráter permanente e continuado,<br />

com natureza de crime contra a humanidade,<br />

cujas vítimas são as pessoas desaparecidas,<br />

suas famílias e amigos e a sociedade em geral.<br />

É possível afirmar que o desaparecimento<br />

forçado de pessoas é uma das mais atrozes<br />

o PriNCÍPio do LiMitE <strong>dE</strong> ÚLtiMo GrAU HiStÓriCo EM MAtÉriA PENAL<br />

igor Pereira<br />

O Direito não pode ser dissociado da sua<br />

história. Suas normas contêm uma parte<br />

considerável das conservações e das resistências<br />

históricas, que conferem logicidade e<br />

razoabilidade ao mundo. Ele se desenvolve<br />

temporalmente. As intelecções adequadas dos<br />

processos históricos captam as manifestações<br />

da natureza humana, as práticas institucionais<br />

e os valores sociais que são posteriormente<br />

consagrados na lei. O bom jurista empreende<br />

um esforço hercúleo para que esses aspectos da<br />

vida, plasmados na norma e reflexos das opções<br />

políticas da ordem constitucional vigente,<br />

sejam respeitados como norte interpretativo<br />

nas decisões judiciais. A norma jurídica, independente<br />

do marco histórico de sua vigência, é<br />

iluminada pelos vetores políticos e valorativos<br />

do poder constituinte.<br />

Nessa perspectiva, proponho um novo<br />

princípio do direito penal, cuja função primordial<br />

será delimitar os espaços de expansão<br />

do direito de punir do Estado Democrático<br />

de Direito por meio do resgate das jurisprudências<br />

criminais dos regimes totalitários e<br />

antidemocráticos, como obstáculo final às<br />

expansões contingentes dos julgamentos democráticos.<br />

Denomino essa visão fontana do<br />

Direito Penal de princípio do limite de último<br />

grau histórico em matéria penal.<br />

Esse princípio é extraído do art. 1°, caput,<br />

da Carta Magna de 1988, que constitui a<br />

República Federativa do Brasil em Estado<br />

Democrático de Direito. A opção política<br />

pela democracia impede que a jurisprudência<br />

criminal seja, em último grau, mais rígida do<br />

que aquela produzida no regime totalitário ou<br />

ditatorial da história de um determinado país,<br />

pois é da essência da democracia a elevação<br />

2<br />

violações de direitos humanos, na medida<br />

em que, além de somar diversas afrontas a<br />

patamares mínimos de garantias às vítimas<br />

diretas, com sua detenção arbitrária, sequestro<br />

e morte, deixa seus familiares sem saber onde<br />

estão os restos mortais dos desaparecidos,<br />

impedindo que exerçam seu direito ao luto.<br />

Essa situação de suspenso que é estabelecida<br />

na vida dos familiares é cruel e faz marcas<br />

irreparáveis. Ademais, quando as instituições<br />

públicas não permitem o acesso de toda a<br />

sociedade à verdade dos fatos, o Estado perde<br />

a chance de se afirmar e consolidar como uma<br />

democracia que respeita os valores estipulados<br />

pelos direitos humanos.<br />

O Brasil, um País que se pretende democrático,<br />

portanto, transparente e garantidor de direitos,<br />

que desponta no cenário internacional<br />

como grande potência em desenvolvimento,<br />

não pode lidar com seus acontecimentos<br />

do princípio da liberdade como norte do<br />

sistema político, estabelecendo limites mais<br />

rígidos aos planos de ação de segurança pelo<br />

respeito aos direitos fundamentais. O mesmo<br />

raciocínio principiológico po-<br />

derá ser utilizado em matéria<br />

processual penal. O desrespeito<br />

à essência democrática pode<br />

ser aferido objetivamente pela<br />

comparação intertemporal das<br />

jurisprudências criminais.<br />

O sistema penal contemporâneo<br />

precisa ter como contraponto<br />

de atuação os regimes<br />

ditatoriais, para que tenha na<br />

jurisprudência deles uma clara<br />

vedação histórica de expansão.<br />

É claro que um sistema penal<br />

democrático deve ter limites<br />

mais austeros do que aqueles<br />

estabelecidos em sistemas totalitários,<br />

porém estes servem<br />

como um contraponto em último<br />

grau histórico quando as<br />

limitações correntes da dogmática<br />

penal estejam obscurecidas<br />

pelos desejos imediatistas das<br />

políticas criminais cambiantes.<br />

A paixão é um contraponto<br />

silencioso à razão. Quando<br />

a expansão for inarredável e<br />

errante, tem-se como limite<br />

de último grau a jurisprudência<br />

criminal antidemocrática, uma vez que a<br />

democracia perderá toda a sua essência se for<br />

menos libertária do que os punhos de aço<br />

das ditaduras. Tal postulado vem ser ainda<br />

um meio de controle da substancialidade da<br />

Esse.princípio.é.<br />

extraído.do.art..1°,.<br />

caput,.da.Carta.<br />

Magna.de.1988,.<br />

que.constitui.a.<br />

República.Federativa.<br />

do.Brasil.em.Estado.<br />

Democrático.de.<br />

Direito..A.opção.<br />

política.pela.<br />

democracia.impede.<br />

que.a.jurisprudência.<br />

criminal.seja,.em.<br />

último.grau,.mais.<br />

rígida.do.que.aquela.<br />

produzida.no.regime.<br />

totalitário.ou.ditatorial.<br />

da.história.de.um.<br />

determinado.país...<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

relativos aos direitos humanos de maneira<br />

covarde como vem fazendo. É notório que o<br />

desaparecimento das 70 pessoas aconteceu, e<br />

que os restos mortais não foram entregues aos<br />

seus familiares, bem como os fatos envoltos a<br />

essa situação não foram revelados, e que, ao<br />

longo dos últimos 30 anos, o Brasil também<br />

não empreendeu esforços suficientes para<br />

resolver e reparar esses casos – por isso sua<br />

postura face a isso deveria ser de responsabilidade,<br />

como se espera de um Estado maduro, e<br />

não de alegações defensivas como fez durante<br />

o processo perante a CIntDH. Resta agora<br />

aguardar e cobrar para que o Estado brasileiro<br />

cumpra sua responsabilidade internacional de<br />

dar cumprimento à sentença da Corte, e que<br />

suas autoridades políticas compreendam que<br />

somente assim o País se qualificará e se afirmará<br />

para ser a potência da qual seus cidadãos<br />

terão orgulho.<br />

democracia, no intento de impedir a existência<br />

apenas formal dos direitos fundamentais que<br />

anuncia. Na trilha de Sérgio Buarque de<br />

Holanda (1995, p. 186): “Não faltam exemplos<br />

de ditadores que realizam atos de<br />

autoridade perfeitamente arbitrários<br />

e julgam, sem embargo,<br />

fazer obra democrática”.<br />

São requisitos para a aplicação<br />

do princípio do limite<br />

de último grau histórico em<br />

matéria penal: a) a existência<br />

de um regime totalitário ou<br />

antidemocrático na história do<br />

país; b) a aplicação conjunta<br />

ou subsidiária à jurisprudência<br />

criminal democrática; c) a<br />

relação de semelhança entre o<br />

caso concreto e o fato julgado à<br />

época do regime totalitário ou<br />

antidemocrático; d) a observância<br />

dos tipos penais criados<br />

posteriormente ao fato julgado,<br />

se alterarem substancialmente<br />

o espectro criminal do ordenamento<br />

jurídico e estiverem em<br />

consonância com os princípios<br />

do direito penal.<br />

No caso brasileiro, o longo<br />

regime militar produziu vasta<br />

jurisprudência criminal a ser<br />

desvendada. O estudo da produção<br />

jurídica desse período<br />

antidemocrático é essencial para conhecer as<br />

limitações de último grau em matéria penal<br />

impostas aos atores criminalistas pelo processo<br />

de redemocratização do País. Não há dúvidas<br />

da natureza ditatorial desse regime, embora o


teor autoritário desse período tenha sido correntemente<br />

negado por seus artífices, que afirmavam<br />

serem as restrições apenas temporárias, decorrentes<br />

do exercício do poder constituinte, potencializado<br />

pela “revolução” de 1964 (Fausto, 2010, p. 257).<br />

A história comprovou a falsidade do caráter provisório<br />

das medidas, principalmente depois de<br />

ser baixado o Ato Institucional n. 5, que fechou<br />

o Congresso e não tinha prazo de vigência. As<br />

justificações para a sua implementação eram genéricas,<br />

demasiadamente genéricas. Em primeiro<br />

lugar, extirpar a corrupção foi tão somente uma<br />

escusa, pois ela é uma questão endêmica, que só<br />

pode ser minimizada por meio de um processo<br />

contínuo de aperfeiçoamento das instituições, ao<br />

fortalecer os mecanismos de pesos e contrapesos<br />

dos poderes; para tanto é necessária a pluralidade<br />

de forças políticas, esvanecida na concentração de<br />

poder da ditadura. Em segundo lugar, a alegação<br />

da ameaça do comunismo, apesar de ter surtido<br />

efeito em um período bipolar, levou ao perigoso<br />

paradoxo da negação da democracia para a sua<br />

“afirmação” – tática recorrente em diversos movimentos<br />

políticos do século XX – e desconsiderou<br />

o fato de serem extremamente remotas as possibilidades<br />

de vitória das forças vermelhas no Brasil.<br />

Ademais, o enfraquecimento gradual do Poder<br />

Legislativo foi um dos principais sinais do declínio<br />

da democracia, por afastar os atos do Poder Executivo<br />

do controle dos representantes do povo. A<br />

primeira medida nesse sentido foi realizada logo<br />

no AI-1. Ocorreu ainda a extinção de partidos<br />

políticos pelo AI-2. A UNE foi incendiada. Os<br />

estudantes e professores foram fortemente cerceados.<br />

A Universidade de Brasília foi invadida<br />

um dia após o golpe (Fausto, 2010, p. 258). O<br />

governo Médici distinguiu a sociedade dos grupos<br />

políticos de oposição acirrada, sendo um exemplo<br />

claro da aplicação do direito penal do inimigo no<br />

Brasil. Enfim, a ditadura militar brasileira teve uma<br />

natureza camaleônica, colorindo e recolorindo os<br />

discursos em preto e branco, ocultando a sua face<br />

autoritária. Esconder o autoritarismo era uma<br />

preocupação constante e simétrica à concentração<br />

de poder e às restrições aos direitos fundamentais,<br />

tendo como seus marcos a tortura e a violência<br />

contra os manifestantes da oposição.<br />

Constatada a existência de um regime ditatorial<br />

na história do Brasil, abre-se o campo de<br />

pesquisa para a investigação da jurisprudência<br />

criminal produzida, a fim de ajustar o sistema<br />

penal democrático às exigências do art. 1°, caput,<br />

da CF/88. Exempli gratia, não é prudente uma<br />

definição muito ampla da fase executória, a ponto<br />

de abranger atos entendidos como meramente preparatórios<br />

impuníveis à época da ditadura militar,<br />

pois a dogmática penal produzida em âmbito democrático<br />

não pode ser mais expansionista do que<br />

aquela tecida em regimes mais severos. O princípio<br />

do limite de último grau histórico em material<br />

penal possui a vantagem de estabelecer vedações<br />

objetivas à expansão do direito de punir estatal.<br />

Assim, passo a analisar um julgado da Corte<br />

Suprema Brasileira à época do regime militar<br />

para lá encontrar limitações em último grau ao<br />

entendimento do que seja punível no iter criminis<br />

de um delito. O Supremo Tribunal Federal tratou<br />

do tema, em julgamento de 16 de fevereiro de<br />

1979, no RC 1342/SP, e entendeu que a simples<br />

participação em reuniões e palestras sobre o Partido<br />

Comunista Brasileiro caracterizava apenas<br />

atos preparatórios para a execução do crime de<br />

tentativa de reorganização de partido político<br />

extinto, conforme previsto no art. 43 do Dec.-lei<br />

898/69 (1) . Tal entendimento pode ser transposto<br />

para os casos de crime de quadrilha ou bando, previsto<br />

no art. 288 do Código Penal, para vedar em<br />

último grau histórico a configuração dessa figura<br />

típica quando houver a reunião estável de mais de<br />

três pessoas para o fim de cometer crimes sem a<br />

existência evidente de perigo à paz pública com a<br />

formação da célula criminosa. Essa limitação de<br />

último grau histórico em matéria penal impõe aos<br />

atores criminais democráticos que, ao apreciar o<br />

crime de quadrilha ou bando, não o entenda configurado<br />

com a adesão da quarta pessoa ao grupo<br />

criminoso, exigindo um maior desenvolvimento<br />

das atividades para além da simples participação<br />

em reuniões com fins criminosos.<br />

Há outra limitação de último grau em matéria<br />

penal no HC 58611/RJ, julgado em 31 de março<br />

de 1981. Essa decisão estabeleceu que a falsificação<br />

de documento público e o seu posterior uso pelo<br />

próprio autor da falsificação configuram um só<br />

crime, qual seja, o de falsificação de documento<br />

público, conforme previsto no art. 297 do Código<br />

Penal. Desse modo, quedam-se afastadas quaisquer<br />

interpretações das normas penais que queiram,<br />

em pleno Estado Democrático de Direito,<br />

determinar a configuração de dois crimes nesses<br />

casos, infligindo também ao autor o crime de uso<br />

de documento falso (art. 304 do CP).<br />

Ao fim, faz-se mister lembrar que o princípio<br />

ora proposto é crucial para a concretização do<br />

direito à memória, pois o levantamento dos arquivos<br />

criminais do regime militar revelará parte da<br />

dinâmica do sistema penal autoritário, exibindo o<br />

direito para permitir o aparecimento do que há de<br />

subterrâneo; lançando obrigações ao sistema penal<br />

contemporâneo, como górgonas estrategicamente<br />

postas para paralisar os monstros futuros.<br />

RefeRências BiBliogRáficas<br />

Boris, fausto. História concisa do Brasil. 2. ed. São Paulo:<br />

Editora da Universidade de São Paulo, 2010. 324 p.<br />

holanDa, sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São<br />

Paulo: Companhia das Letras, 1995. 220 p.<br />

NOTAS<br />

(1) Norma revogada pela Lei 6620/1978.<br />

igor Pereira<br />

Mestrando em Direito Penal pela Universidade do Estado<br />

do Rio de Janeiro (UERJ). Especialista em Direito Público<br />

e Privado pela UNESA. Graduado em Direito pela Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).<br />

Advogado.<br />

(FUNDADO EM 14.10.92)<br />

DirEtOriA DA gEstãO 2011/2012<br />

Diretoria executiva<br />

PresiDente: Marta Saad<br />

1º vice-PresiDente: Carlos Vico Mañas<br />

2º vice-PresiDente: Ivan Martins Motta<br />

1ª secretária: Mariângela Gama de Magalhães<br />

Gomes<br />

2ª secretária: Helena Regina Lobo da Costa<br />

1º tesoureiro: Cristiano Avila Maronna<br />

2º tesoureiro: Paulo Sérgio de Oliveira<br />

assessor Da PresiDÊncia: Rafael S. Lira<br />

conselho consultivo<br />

Alberto Silva Franco<br />

Marco Antonio Rodrigues Nahum<br />

Maria Thereza Rocha de Assis Moura<br />

Sérgio Mazina Martins<br />

Sérgio Salomão Shecaira<br />

coorDenaDores-chefes<br />

Dos DePartamentos:<br />

BiBlioteca: Ivan Luís Marques da Silva<br />

Boletim: Fernanda Regina Vilares<br />

coorDenaDorias regionais e estaDuais:<br />

Luciano Anderson de Souza<br />

cursos: Fábio Tofic Simantob<br />

estuDos e Projetos legislativos: Gustavo<br />

Octaviano Diniz Junqueira<br />

iniciação científica: Fernanda Carolina de Araújo<br />

internet: João Paulo Martinelli<br />

mesas De estuDos e DeBates: Eleonora Nacif<br />

monografias: Ana Elisa Liberatore S. Bechara<br />

núcleo De jurisPruDÊncia: Guilherme Madeira<br />

Dezem<br />

núcleo De Pesquisas: Fernanda Emy Matsuda<br />

Pós-graDuação: Davi de Paiva Costa Tangerino<br />

relações internacionais: Marina Pinhão Coelho<br />

Araújo<br />

rePresentante Do iBccrim junto ao olaPoc:<br />

Renata Flores Tybiriçá<br />

revista Brasileira De ciÊncias criminais:<br />

Helena Regina Lobo da Costa<br />

PresiDentes Das comissões esPeciais:<br />

Amicus curiAe: Heloisa Estellita<br />

cóDigo Penal: Renato de Mello Jorge Silveira<br />

Defesa Dos Direitos e garantias funDamentais:<br />

Ana Lúcia Menezes Vieira<br />

Direito Penal econômico: Heloisa Estellita<br />

história: Rafael Mafei Rabello Queiroz<br />

infância e juventuDe: Luis Fernando C. de<br />

Barros Vidal<br />

justiça e segurança: Renato Campos Pinto de<br />

Vitto<br />

novo cóDigo De Processo Penal: Maurício<br />

Zanoide de Moraes<br />

Política nacional De Drogas: Maurides de<br />

Melo Ribeiro<br />

sistema Prisional: Alessandra Teixeira<br />

15º concurso iBccrim De monografias De<br />

ciÊncias criminais: Diogo Rudge Malan<br />

17º seminário internacional: Carlos Alberto<br />

Pires Mendes<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 3


FiXAÇÃo do VALor MÍNiMo do dANo No CPP: dA iNtErPrEtAÇÃo tELEoLÓGiCA À iNtErPrEtAÇÃo...<br />

FiXAÇÃo do VALor MÍNiMo do dANo No CPP: dA iNtErPrEtAÇÃo<br />

tELEoLÓGiCA À iNtErPrEtAÇÃo “CoNSEQUENCiALiStA”?<br />

raquel Lima Scalcon<br />

O inciso IV do art. 387 do CPP, introduzido<br />

pela Lei 11.719/08, inovou ao disciplinar a fixação<br />

do valor mínimo do dano na sentença penal.<br />

Decorridos mais de dois anos da sua vigência,<br />

inúmeras controvérsias acerca da sua interpretação<br />

e da sua aplicação ainda não foram solvidas.<br />

Exemplificativo, nesse sentido, é o resultado de<br />

pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de<br />

Justiça, com magistrados de todos os Estados<br />

da Federação, sobre os motivos de eventual<br />

não fixação do dano mínimo em julgamentos<br />

proferidos entre agosto de 2008 e agosto de<br />

2009: (a) 19% entenderam que sua incidência<br />

significaria uma retroatividade de norma penal<br />

in malam partem; (b) 18% afirmaram inexistir<br />

prova do dano; (c) 13% sustentaram a ausência<br />

de pedido; (d) 7% alegaram que o réu era<br />

“pobre”; e (e) 49% informaram possuir motivos<br />

outros para não o fixar. (1)<br />

Pois bem, diante de tal quadro, algumas<br />

ponderações acerca dessa inovação legislativa são<br />

fundamentais. Antes, contudo, uma advertência<br />

é necessária. Quando se pretende analisar, com a<br />

profundidade merecida, o problema da fixação<br />

do valor mínimo do dano, não se pode negligenciar<br />

as normas constitucionais que incidem na<br />

espécie, ainda que o próprio Código de Processo<br />

Penal já tenha disciplinado a questão a partir de<br />

uma regra, isto é, de uma norma que descreve<br />

uma conduta a ser adotada pelo aplicador.<br />

A razão é simples: conquanto as regras exijam<br />

do intérprete, como dever fundamental,<br />

o respeito estrito ao seu comando, elas também<br />

requerem, como dever secundário, a compatibilidade<br />

da sua aplicação, no caso concreto,<br />

com os princípios e as regras sobrejacentes. (2) <strong>Por</strong><br />

conseguinte, um exame acerca da determinação<br />

do inciso IV do art. 387 do CPP demanda,<br />

necessariamente, um questionamento acerca<br />

de quais princípios e de quais regras constitucionais<br />

ali estão implicados e um esforço de<br />

compatibilização daquele com estes. É esta a<br />

finalidade deste breve escrito.<br />

Diferentes nódulos problemáticos acerca<br />

do conteúdo normativo do texto legal ora sob<br />

exame poderiam ser aqui explorados. Contudo,<br />

será trabalhado aquele que, em nossa opinião,<br />

reveste-se de maior relevo: a definição do quando<br />

da incidência da norma relativamente aos<br />

fatos penais. Trata-se, assim, de uma discussão<br />

de direito intertemporal.<br />

Se considerarmos a assertiva antes exposta,<br />

a partir da qual se sustentou que a aplicação<br />

e a interpretação da regra do inciso IV do art.<br />

387 do Código de Processo Penal devem ser<br />

compatibilizadas com os princípios sobrejacentes,<br />

então a resposta ao problema suscitado<br />

pressupõe o exame da fixação do valor do dano<br />

à luz da regra constitucional da irretroatividade<br />

(art. 5º, XL, da CF88). Inicialmente, importa<br />

4<br />

observar que se trata de uma regra (não de um<br />

princípio), pois ela exige o respeito estrito ao<br />

seu comando, sendo inconstitucional uma<br />

norma que a contrarie, bem como nula uma<br />

decisão que a viole.<br />

Dito isso, resta perguntar qual seria, afinal,<br />

o conteúdo normativo do art.<br />

5º, XL, mais conforme à Constituição?<br />

Entende-se aqui que a<br />

expressão “lei penal” que integra<br />

tal texto não pode ser interpretada<br />

de forma reducionista, sob<br />

pena de chegar-se à conclusão de<br />

que “lei penal” é aquela que está<br />

no Código Penal ou, de forma<br />

negativa, não são aquelas do<br />

Código de Processo Penal. Tal<br />

leitura topológica, tão simplória,<br />

não se sustenta.<br />

Defende-se, assim, que a<br />

expressão “lei penal” se refere<br />

a toda norma integrante do<br />

Sistema Jurídico-Penal (independentemente<br />

do seu locus<br />

– seja o CP, seja o CPP, sejam<br />

leis esparsas) cujo conteúdo<br />

normativo atue sobre direitos<br />

fundamentais do acusado, especialmente<br />

os de liberdade<br />

(em sentido amplo) e os de<br />

propriedade. A razão de ser ou a<br />

finalidade da regra constitucional<br />

do art. 5º, XL, é exatamente<br />

a proteção do réu contra uma<br />

aplicação retroativa de normas<br />

que restrinjam tais direitos. Já<br />

se a nova normativa, ao invés<br />

de reduzir, ampliar o âmbito ou o conteúdo<br />

dos direitos fundamentais do acusado, deverá<br />

retroagir em seu benefício. Essa é a interpretação<br />

que nos parece conferir maior eficácia ao<br />

dispositivo em questão, o que é nosso dever<br />

buscar enquanto intérpretes da Constituição.<br />

Partindo-se, pois, dessa interpretação acerca<br />

da proibição da retroatividade da “lei penal”<br />

in malam partem, deve-se concluir que a regra<br />

da fixação do dano integra o conteúdo de<br />

sentido da expressão “lei penal”. Isso porque<br />

a aplicação do inciso IV do art. 387 do CPP,<br />

inegavelmente, produz restrição de liberdade<br />

e de propriedade em relação ao réu, haja vista<br />

permitir, já na sentença penal, a sua condenação<br />

ao pagamento de uma indenização mínima<br />

pelo dano oriundo do delito, a qual, após<br />

o trânsito em julgado, pode ser imediatamente<br />

executada pela vítima. <strong>Por</strong> tal razão, essa disposição<br />

normativa não pode incidir sobre fatos<br />

penais cuja ocorrência tenha sido anterior ao<br />

seu ingresso no ordenamento jurídico através<br />

da Lei 11.719/08.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

Interpretações.<br />

das.normas.do.<br />

Sistema.Jurídico-<br />

Penal.cada.vez.<br />

menos.teleológicas,.<br />

porém.mais.e.mais.<br />

“consequencialistas”..<br />

Dito.de.outro.modo,.<br />

passou-se.da.procura.<br />

e.da.promoção.<br />

da.finalidade.da.<br />

norma.(interpretação.<br />

teleológica).à.busca.<br />

e.à.promoção.da.<br />

finalidade.(com.<br />

seu.respectivo.<br />

efeito.prático).que<br />

se quer atribuir.à.<br />

norma.(interpretação.<br />

“consequencialista”)..<br />

Ainda que consideremos a argumentação<br />

aqui exposta suficiente para afastar qualquer<br />

possibilidade de aplicação retroativa do art.<br />

387, IV, do CPP, verifica-se, em diversos<br />

Tribunais do País, decisões sustentando o<br />

oposto. (3) Nelas há, por vezes, fixação do valor<br />

mínimo do dano desde logo,<br />

mesmo em recurso exclusivo da<br />

defesa, sem que nada – absolutamente<br />

nada – acerca do ponto<br />

tenha sido objeto de debate durante<br />

o processo. Assim, não só<br />

há uma aplicação retroativa da<br />

regra, contrariando a determinação<br />

do art. 5º, XL, da Constituição,<br />

como também há uma<br />

profunda violação ao direito<br />

fundamental ao contraditório<br />

(art. 5º, LV, da Constituição).<br />

Isso, conquanto nos cause<br />

tristeza, não nos gera estranheza.<br />

Ora, já advertia Canotilho<br />

acerca do Direito Penal: ele<br />

parece transportar “a cruz da<br />

ruptura antropológica” (4) que o<br />

dilacera. É dizer: ele tende a<br />

recepcionar e a traduzir as questões<br />

mais profundas da nossa<br />

humanidade como, de um lado,<br />

a demanda por segurança e, de<br />

outro, o desejo de punição.<br />

De qualquer sorte, impressiona<br />

que uma norma cuja finalidade<br />

é a reparação da vítima seja<br />

desviada a ponto de ser utilizada<br />

como irrefreável instrumento de<br />

punição do réu. Outra razão não<br />

explica que uma regra como essa, que é restritiva<br />

de direitos fundamentais do acusado, seja tranquilamente<br />

aplicada a fatos passados. Outra razão não<br />

explica, também, que seja tão ignorado o direito<br />

ao exercício do contraditório pelo réu quando da<br />

fixação do dano mínimo pelo Judiciário.<br />

E o que vemos, afinal? Interpretações das<br />

normas do Sistema Jurídico-Penal cada vez<br />

menos teleológicas, porém mais e mais “consequencialistas”.<br />

Dito de outro modo, passou-se<br />

da procura e da promoção da finalidade da<br />

norma (interpretação teleológica) à busca e à<br />

promoção da finalidade (com seu respectivo<br />

efeito prático) que se quer atribuir à norma<br />

(interpretação “consequencialista”). Trocou-se<br />

“o fim da norma” pelo “fim que se quer dar à<br />

norma”, o “efeito da norma” pelo “efeito que<br />

se deseja extrair da norma”.<br />

O grande problema é que tudo isso acaba por<br />

violar inúmeros direitos fundamentais. Direitos,<br />

esses, cuja conquista – nunca se esqueça - demandou<br />

séculos de lutas e cuja mantença exigirá<br />

a sua contínua reafirmação. Deve-se lembrar,


com Hesse, (5) que o texto constitucional, por si<br />

só, não possui força normativa, estando sempre<br />

a depender da vontade de Constituição de seus<br />

intérpretes e de seus aplicadores.<br />

Assim, o que está em questão quando<br />

da fixação da indenização mínima no processo<br />

penal são direitos fundamentais que,<br />

como tais, pertencem à própria história<br />

da evolução humanizatória da civilização<br />

ocidental. Pois bem, em Miranda v. Arizona<br />

(384 U.S 436 –1966), já se afirmava ser<br />

possível mensurar o quão civilizada é uma<br />

nação pelos métodos que ela utiliza para<br />

aplicar o Direito Penal. (6) Considerando o<br />

exposto, pergunto: seremos cúmplices desse<br />

retrocesso civilizacional?<br />

NOTAS<br />

(1) Disponível em: www.conjur.com.br/dl/pesquisa-fgv-<br />

mj-medidas-constrit.pdf. Acesso em: 20.07.2010.<br />

(2) ávila, humberto. Teoria dos princípios. 9. ed. São Paulo:<br />

Malheiros, 2009, p. 78.<br />

(3) Ver, exemplificativamente, os seguintes acórdãos: TRF<br />

da 3ª Região – ACR 2005.61.02.008675-0 e ACR<br />

2004.03.99.004012-7.<br />

(4) canotilho, josé joaquim gomes. Justiça constitucional<br />

e justiça penal. Revista Brasileira de Ciências<br />

Criminais. São Paulo, n. 58, p. 329-45, jan./fev. 2006<br />

(p. 329).<br />

(5) hesse, Konrad. A força normativa da Constituição.<br />

Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. <strong>Por</strong>to Alegre: SAFe,<br />

1992, p. 24.<br />

(6) No original: “The quality of a nation’s civilization can be<br />

largely measured by the methods it uses in the enforcement<br />

of the criminal law” (Miranda v. Arizona, 384 U.S.<br />

436 – 1966).<br />

raquel Lima scalcon<br />

Mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS.<br />

Graduada em Direito pela UFRGS<br />

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BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 5


ALGUMAS CoNSEQUÊNCiAS dA iMAtUridA<strong>dE</strong> iNForMÁtiCA do BrASiLEiro MÉdio FrENtE ÀS tiPiFiCAÇÕES...<br />

ALGUMAS CoNSEQUÊNCiAS dA iMAtUridA<strong>dE</strong> iNForMÁtiCA do<br />

BrASiLEiro MÉdio FrENtE ÀS tiPiFiCAÇÕES do PL 89/03<br />

Spencer toth Sydow<br />

É irrefutável dizer que a tecnologia trouxe<br />

novos paradigmas e gerou novos valores à<br />

nossa sociedade. Os bens jurídicos não foram<br />

criados de modo fixo e, portanto, podem sofrer<br />

mutações, ser extintos ou podem surgir novos<br />

valores. É o caso da informática, a qual nos<br />

trouxe novos conceitos de identidade, de fama,<br />

de velocidade, de capacidade de pesquisa, de<br />

intimidade, e, assim, o raciocínio segue de<br />

modo muito rico.<br />

O valor que damos hoje a um pen drive com<br />

modelos de peças jurídicas ou a um e-mail seria<br />

inimaginável uma década atrás. Idem no que<br />

se refere à nossa premência ao acesso constante<br />

à rede mundial de computadores e à importância<br />

dada à intimidade em redes sociais.<br />

Ocorre que legislações são frutos de necessidades<br />

jurídico-sociais combinadas de modo<br />

indissociável com a maturidade da população<br />

e das forças públicas para o cumprimento de<br />

tais preceitos.<br />

A análise de um projeto de lei não pode<br />

ser feita somente com base no clamor de<br />

segmentos e focada na tipicidade. Não basta<br />

que os pensadores limitem seus estudos no<br />

quão correto está o texto legislativo e o quanto<br />

necessário é que surja legislação penal antes<br />

de um marco civil. O direito penal não é, por<br />

si, profilático.<br />

É fundamental que se façam elucubrações<br />

no que se refere à culpabilidade dos autores<br />

desses eventuais delitos a ingressarem no ordenamento.<br />

É, também, imprescindível que se<br />

façam projeções de situações reais hipotéticas<br />

para verificar se a aplicabilidade da lei penal é<br />

lógica, possível e útil para a sociedade ou se simplesmente<br />

gerará maiores injustiças e diferenças.<br />

Uma espécie de prognose póstuma legislativa,<br />

que, combinada com a perspectiva<br />

criminológica, mostra-se bastante útil, posto<br />

que a legislação será aplicada em locais nos<br />

quais os agrupamentos de pessoas comportamse<br />

diferentemente. E a realidade de nosso País<br />

clama tais avaliações, sob risco de fazer valer a<br />

lei penal apenas para os mais ignorantes.<br />

Em especial, no que se refere à culpabilidade,<br />

o Projeto de Lei n. 89/03 merece considerações,<br />

porquanto parece-nos haver alguns<br />

aspectos que ensejam reflexão.<br />

Os bancos acadêmicos brasileiros (os<br />

finalistas em essência) compreenderam a<br />

culpabilidade como a capacidade jurídica<br />

de alguém ser responsável por um delito. E,<br />

dentre os vieses de compreensão da culpabilidade,<br />

classificou-se (a) a imputabilidade; (b)<br />

a potencial consciência da ilicitude; e (c) a<br />

exigibilidade de conduta diversa.<br />

Nesta toada, para que alguém possa ser<br />

considerado penalmente responsável, há que<br />

6<br />

se verificar se tem mais de 18 anos, se compreendia<br />

o grau de reprovabilidade da conduta<br />

perpetrada e se poderia ter agido de outro<br />

modo naquela ocasião.<br />

<strong>Por</strong>ém, tais análises ensejam salgadas críticas<br />

jornalísticas (quanto à maioridade penal,<br />

especialmente) e demandam<br />

grau de subjetivismo relevante.<br />

Já Roxin entende culpabilidade<br />

como sendo a “atuação<br />

injusta frente à acessibilidade<br />

normativa”, em que um sujeito,<br />

segundo seu estado mental<br />

e anímico, tem possibilidade<br />

psíquica (livre ou determinada)<br />

de comportar-se conforme a<br />

norma, tem a capacidade de<br />

controle, de juízo e de valoração,<br />

mas age em desacordo (1)<br />

com a norma.<br />

Preferimos essa segunda definição<br />

funcionalista e, a partir<br />

de agora, propomos alguns<br />

raciocínios.<br />

Inicialmente, a informática<br />

é uma linguagem. Tudo o que<br />

se enxerga na computação<br />

pode ser definido por zeros e uns e, sendo<br />

assim, pode-se dizer que é o modo como se<br />

agrupam tais sinais que representam as letras,<br />

números etc. É exatamente igual a qualquer<br />

língua em que as letras do alfabeto se organizam<br />

e formam substantivos, advérbios,<br />

pronomes etc.<br />

Pois bem, para facilitar a popularização e<br />

o gosto pela informática, certo dia surgiram<br />

sistemas operacionais capazes de transformar<br />

a linguagem informática (zeros e uns) em linguagem<br />

acessível, plataforma gráfica e comandos<br />

a partir de cliques. Isso deu muito certo,<br />

seduziu o mercado e, conforme os sistemas<br />

foram se desenvolvendo, mais se mascarou a<br />

monótona programação na colorida navegação.<br />

Com isso, houve ganhos de acessibilidade<br />

e perdas de compreensão das minúcias da<br />

realidade informática.<br />

Os principais entendedores de programação<br />

atacam com violência o nível de<br />

automatização que hoje é dado aos sistemas<br />

operacionais e promovem movimentos prócódigos<br />

abertos (copyleft, por exemplo).<br />

Aponta-se uma perda da capacidade de<br />

visualização das ações informáticas, da dificuldade<br />

em determinação dos comandos<br />

desejados e até mesmo restrições de autonomia<br />

do usuário. O usuário, assim, fica relegado a<br />

simplesmente usar. (2)<br />

Cito ser a informática uma linguagem,<br />

especialmente para que se compreenda que, na<br />

A.análise.de.um.<br />

projeto.de.lei.não.<br />

pode.ser.feita.<br />

somente.com.base.no.<br />

clamor.de.segmentos.<br />

e.focada.na.tipicidade..<br />

Não.basta.que.os.<br />

pensadores.limitem.<br />

seus.estudos.no.quão.<br />

correto.está.o.texto.<br />

legislativo.e.o.quanto.<br />

necessário.é.que.surja.<br />

legislação.penal.antes.<br />

de.um.marco.civil.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

prática, pouco adianta regrar penalmente um<br />

segmento de sociedade se a população sequer<br />

compreende como este funciona e mal entende<br />

a potencialidade lesiva de suas atitudes.<br />

Analogamente, a Lei 5.700/71 aponta a<br />

existência de um delito em vigor no ordena-<br />

mento jurídico brasileiro que<br />

determina pena para aqueles<br />

cidadãos que cantarem o hino<br />

nacional em tom diverso do<br />

si bemol. Ora, a população<br />

sequer sabe cantar o hino,<br />

quanto menos compreende ser<br />

o si bemol um tom musical.<br />

Destarte, a existência de<br />

tal lei resta inócua, posto que<br />

o Estado não consegue fazê-la<br />

valer. E ainda que conseguisse,<br />

remanesceriam perguntas: conseguiríamos<br />

ensinar a todos o<br />

tom? Poderíamos exigir de todos<br />

que atingissem o mesmo tom?<br />

Temo pela incapacidade do<br />

Estado fazer bem valer uma<br />

lei penal informática até que<br />

cada usuário compreenda qual<br />

o seu papel dentro da comunidade<br />

cibernética. Temo também porque nem<br />

mesmo os provedores compreendem objetivamente<br />

seus papéis na virtualidade.<br />

Se levarmos em conta certos pensadores<br />

funcionalistas que seguem a lógica de Jakobs,<br />

o correto seria primeiro definir os papéis de<br />

cada classe informática, para só após assumir<br />

regras para a punição de descumprimento de<br />

tais papéis.<br />

Nesta toada de raciocínio, fica irreal trazer<br />

ao ordenamento jurídico brasileiro a proposta<br />

do PL 89/03 na construção de um novo art.<br />

163-A, alargando a conduta do núcleo do<br />

tipo para incluir como criminosa a conduta<br />

de difundir código malicioso, equivalendo tal<br />

atitude ao delito de dano informático.<br />

Hoje, a maior parte dos usuários de certa<br />

idade (por exemplo, acima de 50 anos) usa<br />

o computador para mandar e-mail, escrever<br />

textos e nada mais.<br />

Coloquemos a seguinte situação: uma senhora<br />

de 50 anos, negligente quanto à higidez<br />

de seu computador – porque sequer sabe a<br />

função de um antivírus, sequer compreende<br />

a língua inglesa e ignora a importância de<br />

atualizar o banco de dados de malwares – está<br />

contaminada por um código malicioso que<br />

tem como característica acrescentar um anexo<br />

em cada e-mail que a usuária envia. Esta<br />

senhora aperta a tecla que liga o computador,<br />

escreve uma mensagem para suas amigas e a<br />

envia. O vírus sofre uma mutação ao ser en-


viado e corrompe diversos arquivos do disco<br />

rígido das destinatárias.<br />

Terá ela incidido no futuro tipo de dano<br />

informático?<br />

Será que podemos dizer que havia consciência<br />

potencial da atitude? E da ilicitude? Será<br />

que essa senhora conhece e compreende seu<br />

papel social na rede mundial de computadores?<br />

Será que se pode dizer que essa senhora<br />

poderia agir com conduta diversa?<br />

As respostas acima tendem a ser um não.<br />

Mas será que, em pleno ano de 2011, podemos<br />

acreditar que alguém não conhece a existência<br />

de vírus de computador? Será que alguém não<br />

entende que a sociedade virtual é uma sociedade<br />

de risco? Se o desconhecimento da lei é<br />

inescusável, não o seria o desconhecimento<br />

dos riscos da rede igualmente indesculpável?<br />

Digo isso porque a entrada em vigor da lei<br />

penal informática fará com que o judiciário<br />

entenda com grande frequência pela existência<br />

de dolo eventual (ou culpa consciente) nas<br />

ações tipificadas no PL 89/03.<br />

Uma pessoa que recebe a notícia de que<br />

está contaminada por um vírus e mesmo assim<br />

demora uma semana para buscar a solução do<br />

problema (por falta de tempo, exemplificativamente)<br />

e, por isso, acaba contaminando<br />

centenas de máquinas, cometerá delito? Se a<br />

resposta for sim, não se está gerando obrigações<br />

civis com o direito penal? (3) Não é mais<br />

lógico ter-se primeiro um estabelecimento<br />

das responsabilidades de cada personagem<br />

para depois se estabelecer as violações de tais<br />

responsabilidades?<br />

E se uma pessoa descuidada protege seus<br />

arquivos e/ou o acesso ao seu roteador wi fi<br />

com senhas simples e óbvias, de fácil descobrimento,<br />

estaria um terceiro que obtém o<br />

acesso cometendo os delitos propostos para<br />

figurarem nos arts. 285-A (4) e 285-B (5) ? Nesse<br />

caso, como ficaria a autocolocação da vítima<br />

em risco nesse contexto? Deixar a porta do<br />

carro aberta e com a chave no contato, analogamente,<br />

não guarda nenhuma relevância<br />

para um eventual risco? O texto legal parece<br />

esquecer essas nuances.<br />

Idem no que se refere à proposta do novo<br />

art. 154-A, (6) no que se refere ao banco de<br />

dados com finalidade específica: o tipo de<br />

divulgação de informação sensível fica restrito<br />

e limitado a um prévio registro motivado?<br />

Nos demais casos, a conduta passa a ser um<br />

irrelevante penal?<br />

Finalmente, a proposta de um inciso VII (7)<br />

nos delitos de estelionato parece ter esquecido<br />

o fato de que o bem jurídico tutelado no Título<br />

II da Parte Especial do Código Penal é o<br />

patrimônio, presumindo lesividade.<br />

Não creio ser lógico punir-se a violação<br />

do direito à vida sem antes estabelecer constitucionalmente<br />

que este direito existe e, em<br />

contrapartida, o dever de preservá-la.<br />

A população nacional é formada, infelizmente,<br />

por analfabetos funcionais no que se<br />

refere à leitura. <strong>Por</strong> analogia, também somos<br />

analfabetos funcionais informáticos no que se<br />

refere à computação.<br />

De regra, a maior parte dos usuários deixa<br />

de atualizar o antivírus (mesmo porque há um<br />

custo razoável nisso), acessa sites sem conhecer<br />

suas procedências, deixa de ler contratos online<br />

e não instala programas que geram maior segurança,<br />

exceto aqueles que já vêm de fábrica.<br />

O projeto de lei termina por tipificar condutas<br />

sem levar em conta o conhecimento real<br />

dos usuários, mas sim presumindo-os. Os mais<br />

ignorantes na informática tenderão a sofrer<br />

consequências de tal lei e a ideia de ultima<br />

ratio como princípio será posta de lado. Mas<br />

presunção de culpa é teratológico...<br />

Somos favoráveis a termos uma lei que tipifique<br />

os delitos informáticos. Mas somos mais<br />

favoráveis a uma gigantesca conscientização<br />

dos riscos. A educação precede a prevenção.<br />

Sociedades muito bem educadas podem até<br />

dispensar certos tipos penais. Se os provedores<br />

tiverem um papel bem delimitado, se<br />

os indícios informáticos forem devidamente<br />

regrados para serem guardados, se o usuário<br />

for corretamente conscientizado, então é a vez<br />

do direito penal punir. Mas punir os desvios,<br />

e não o caminho.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Bitencourt, cezar roberto. Tratado de direito penal<br />

– Parte geral 1. 10. ed. São Paulo: Editora Saraiva,<br />

2006.<br />

II CONgRESSO INtERNACIONAl <strong>dE</strong> CIÊNCIAS CRImINAIS<br />

Criminologia e sistemas Jurídico-Penais Contemporâneos<br />

Homenagem ao Prof. Dr. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho - <strong>Por</strong>to Alegre - rs<br />

Data: 6 a 8 de abril de 2011<br />

Local: PUC-RS<br />

realização: Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da PUC-RS<br />

inscrições e informações: www.pucrs.br/eventos/cienciascriminais<br />

Programação completa no <strong>Por</strong>tal iBCCriM<br />

greco, luíz. Uma teoria da imputação objetiva. Rio de<br />

Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005.<br />

jaKoBs, günther. A imputação objetiva no direito penal.<br />

2. ed. rev. São Paulo: Editora RT, 2007.<br />

Lemos, ronaldo et al. Proposta de alteração do PLC<br />

84/99 / PLC 89/03 (Crimes Digitais) e estudo sobre<br />

história legislativa e marco regulatório da internet no<br />

Brasil. Disponível em: http://virtualbib.fgv.br/dspace/<br />

bitstream/handle/10438/2685/Proposta_e_Estudo_CTS-FGV_Cibercrimes_final.pdf?sequence=1.<br />

Acesso em 30.11.2010, às 15h44min.<br />

nucci, guilherme de souza. Manual de direito penal. 5.<br />

ed. São Paulo: Editora RT, 2010.<br />

roxin, claus. Derecho penal - Parte general. 2. ed.<br />

Munique: Ed. Thomson Civitas, 2007. tomo I.<br />

NOTAS<br />

(1) roxin, claus. Derecho penal, Parte general, tomo I,<br />

Ed. Thomson Civitas, 2.ª edição traduzida, Munique,<br />

2007, p. 807-809.<br />

(2) Assim como a maior parte das pessoas dirige sem<br />

conhecer os meandros de funcionamento do motor<br />

do veículo, boa parte de nós navegamos na rede<br />

sem sequer entender a forma como a troca de dados<br />

ocorre, o que está sendo compartilhado e assim por<br />

diante.<br />

(3) Nesse sentido, passar-se-ia a impor ao usuário a obrigação<br />

de buscar educação informática e despender<br />

recursos para a compra de softwares de proteção,<br />

dentre outras.<br />

(4) “Art. 285-A. Acessar, mediante violação de segurança,<br />

rede de computadores, dispositivo de<br />

comunicação ou sistema informatizado, protegidos<br />

por expressa restrição de acesso”.<br />

(5) “Art. 285-B. Obter ou transferir, sem autorização ou<br />

em desconformidade com autorização do legítimo<br />

titular da rede de computadores, dispositivo de comunicação<br />

ou sistema informatizado, protegidos por<br />

expressa restrição de acesso, dado ou informação<br />

neles disponível”.<br />

(6) “Art. 154-A. Divulgar, utilizar, comercializar ou<br />

disponibilizar dados e informações pessoais<br />

contidas em sistema informatizado com finalidade<br />

distinta da que motivou seu registro, salvo nos<br />

casos previstos em lei ou mediante expressa<br />

anuência da pessoa a que se referem, ou de seu<br />

representante legal”.<br />

(7) “Art. 171. (...) § 2º Nas mesmas penas incorre<br />

quem: (...) VII – difunde, por qualquer meio, código<br />

malicioso com intuito de facilitar ou permitir acesso<br />

indevido à rede de computadores, dispositivo de<br />

comunicação ou sistema informatizado.”<br />

spencer toth sydow<br />

Mestre em Direito Penal e Criminologia pela USP.<br />

Professor de Ciências Criminais e Direito Processual.<br />

Advogado e parecerista.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 7


APoNtAMENtoS SoBrE o <strong>dE</strong>VEr <strong>dE</strong> tUtELA do MEio AMBiENtE NA CriMiNALidA<strong>dE</strong> <strong>dE</strong> EMPrESA<br />

APoNtAMENtoS SoBrE o <strong>dE</strong>VEr <strong>dE</strong> tUtELA do MEio AMBiENtE NA<br />

CriMiNALidA<strong>dE</strong> <strong>dE</strong> EMPrESA<br />

renata Jardim da Cunha rieger<br />

Atualmente, não se concebe o homem<br />

como simples sujeito de direitos: ele é, simultaneamente,<br />

sujeito de deveres. Assim como<br />

tem o direito fundamental à proteção do meio<br />

ambiente, tem o dever fundamental de tutelálo.<br />

(1) Esse dever está consagrado no art. 225 da<br />

Constituição Federal e é destinado ao Poder<br />

Público e à coletividade, mas não se manifesta<br />

de forma idêntica para todos. Pelo contrário:<br />

apresenta conteúdo variável, conformando-se às<br />

características do destinatário e ao caso concreto.<br />

O dever fundamental de tutela ambiental<br />

apresenta diversos estratos, e o mais densificado<br />

deles corresponde ao “dever de garantia”. (2) Isso<br />

porque o “dever de garantia”, para além de se<br />

vincular ao direito penal, é atinente aos crimes<br />

omissivos, nos quais há uma ampliada restrição<br />

da liberdade da pessoa. (3) Mais: presente esse<br />

dever, tem-se uma omissão equiparável a uma<br />

ação positiva. Assim, à ampliada restrição de<br />

liberdade do cidadão, soma-se a gravidade da<br />

sanção que pode ser imposta.<br />

Não é exagero dizer que essa categoria jurídica<br />

(“dever de garantia”) é um dos conceitos mais<br />

tormentosos ao jurista. No histórico do instituto,<br />

doutrina e jurisprudência sempre discutiram<br />

– e ainda discutem – uma série de tópicos sem<br />

precisar suficientemente o fundamento e os<br />

limites do dever do garantidor. Fala-se muito da<br />

problemática da lei, do contrato, da ingerência,<br />

do monopólio, dos deveres de solidariedade<br />

e da relação de proximidade, mas, em regra,<br />

não se busca o porquê, o “sentido social” dessa<br />

responsabilização. No direito penal ambiental<br />

no âmbito da criminalidade de empresa, essa<br />

categoria jurídica torna-se ainda mais problemática.<br />

Isso porque a “posição de garantia”<br />

vem ganhando significativa exasperação (como<br />

decorrência direta da intensificação dos deveres<br />

do homem para com a natureza) e tem recebido,<br />

por vezes, contornos bastante artificiais.<br />

Faz-se necessária, então, uma cuidadosa releitura<br />

do instituto. Se é verdade que, nessa “nova<br />

criminalidade”, há quase uma segmentação dos<br />

conceitos de “ação” e de “responsabilidade”, (4)<br />

também é verdade que não é a ocupação de<br />

uma determinada posição na estrutura societária,<br />

ou a simples previsão de determinadas<br />

funções em um contrato social ou estatuto, que<br />

formará o “dever de garantia”. Também não é<br />

a lei – isoladamente – que gerará a posição de<br />

garantidor. Esses critérios - meramente formais<br />

- são insuficientes, fazendo-se necessária a busca<br />

de critérios materiais.<br />

Parece que os diferentes níveis do dever<br />

de tutela ambiental devem ser buscados na<br />

“desigualdade fática”, no “modo como o homem<br />

está no mundo”. O mundo é uma totalidade<br />

de relações de referências; e o homem está<br />

8<br />

nele sempre referido às suas próprias possibilidades.<br />

(5) Quando do tratamento da posição<br />

de garantia, importam os instrumentos – em<br />

sentido amplo – com que o homem se relaciona:<br />

o sujeito que exerce uma determinada<br />

função, que tem acesso a determinadas informações<br />

e que tem o “poder de decisão” passa<br />

a ter o “domínio do resultado”. (6) As demais<br />

pessoas da sociedade não têm esse domínio<br />

e podem, legitimamente, esperar que aquele<br />

que o detém e que goza do “poder de disposição”<br />

sobre a fonte de perigo evite o perigo e<br />

o dano dela derivados. (7)<br />

É importante observar que o “domínio do<br />

resultado” não está, necessariamente, associado<br />

aos mais altos cargos, à alta cúpula da empresa.<br />

A complexidade das estruturas empresariais<br />

demonstra haver, cada vez mais, divisões em<br />

departamentos, sendo cada setor responsável<br />

por assuntos específicos (com competências<br />

diferentes, portanto). Assim sendo, em médias<br />

e grandes empresas, é possível (e até provável)<br />

que o “domínio do resultado” esteja em uma<br />

unidade de comando específica, gerenciada por<br />

ocupantes de cargos de nível intermediário, de<br />

médio escalão.<br />

Se essa pessoa (do médio ou do alto escalão<br />

de uma empresa), além de ter o “domínio do<br />

resultado”, ainda for responsável, culposa ou<br />

dolosamente, por um perigo penalmente relevante,<br />

surge-lhe o dever de cuidado – cuidado<br />

consigo, com o outro e com a natureza – na<br />

forma mais densa, que legitima a responsabilidade<br />

por omissão e, também, a equiparação de<br />

uma omissão a uma ação. Em outras palavras: a<br />

conjugação dos dois critérios (“responsabilidade<br />

pelo perigo penalmente relevante” e “domínio do<br />

resultado”) “forma” a posição de garantia em<br />

delitos ambientais cometidos no âmbito da<br />

criminalidade de empresa.<br />

<strong>Por</strong> derradeiro, deve-se lembrar que, em<br />

matéria ambiental (âmbito no qual são necessários<br />

conhecimentos altamente especializados),<br />

é comum a delegação de funções, o que<br />

influencia na posição de garantia. É preciso ter<br />

claro, contudo, que não é qualquer delegação<br />

que implica a transferência de deveres. Mais: os<br />

deveres do delegante não são completamente<br />

extintos, apenas recebem outra conformação,<br />

transformando-se em deveres de vigilância e<br />

de controle. É interessante observar que esses<br />

novos deveres (de supervisão e de controle)<br />

convivem com a “confiança” que o delegante<br />

deposita no delegado: e é admitido – e até<br />

esperado – que aquele “confie” no regular exercício<br />

das atribuições deste. Assim, os deveres de<br />

supervisão e de controle não são ilimitados. Pelo<br />

contrário, o seu limite parece estar no princípio<br />

da confiança.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

NOTAS<br />

(1) Não há necessária correspondência entre os deveres<br />

fundamentais e os direitos fundamentais. josé<br />

gomes canotilho observa que aqueles se recortam,<br />

na ordem jurídica, como categoria autônoma.<br />

Alguns deveres, contudo, são conexos a direitos<br />

fundamentais, e é o que acontece com o dever de<br />

defesa do meio ambiente, previsto no art. 66/1 da<br />

Constituição portuguesa, relacionado ao direito<br />

ao ambiente (canotilho, josé joaquim gomes.<br />

Direito constitucional e teoria da constituição. 7. ed.<br />

Coimbra: Almedina, 2003, p. 532 e s). No mesmo<br />

sentido, tratando do direito brasileiro e encontrando<br />

fundamento para o dever conexo no art. 225 da<br />

Constituição: fensterseifer, tiago. Direitos<br />

fundamentais e proteção do ambiente: a dimensão<br />

ecológica da dignidade humana no marco jurídico<br />

constitucional do estado socioambiental de direito.<br />

<strong>Por</strong>to Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 202;<br />

meDeiros, fernanda luiza fontoura de. Meio<br />

ambiente: direito e dever fundamental. <strong>Por</strong>to Alegre:<br />

Livraria do Advogado, 2004, p. 129.<br />

(2) Para aprofundamento do tema: rieger, renata<br />

jardim da cunha. A posição de garantia no direito<br />

penal ambiental: o dever de tutela do meio ambiente<br />

na criminalidade de empresa. Dissertação (Mestrado<br />

em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio Grande do Sul, <strong>Por</strong>to<br />

Alegre, 2010, passim.<br />

(3) Essa “ampliada restrição” da liberdade é consequência<br />

da norma violada. Em um crime comissivo,<br />

viola-se uma norma proibitiva; em um delito omissivo,<br />

viola-se uma norma mandamental. A norma proibitiva,<br />

como se sabe, visa a impedir uma determinada ação<br />

positiva; a norma mandamental, por sua vez, ordena<br />

uma específica conduta e proíbe todas as outras que<br />

dela se diferenciem. Assim sendo, no delito omissivo,<br />

estão proibidos todos os comportamentos que se<br />

diferenciam daquele previsto na norma mandamental.<br />

O comportamento determinado, previsto, é o único<br />

admitido pelo ordenamento jurídico e o único a afastar<br />

a configuração da infração penal, daí a ampliada restrição<br />

da liberdade do sujeito (D’avila, fabio roberto.<br />

Ofensividade e crimes omissivos próprios: contributo<br />

à compreensão do crime como ofensa a bens jurídicos.<br />

Coimbra: Coimbra, 2005 [Stvdia Ivridica; 85],<br />

p. 250 e s.). Em sentido semelhante: Zaffaroni,<br />

eugênio raúl. Panorama atual da problemática da<br />

omissão. Tradução de josé carlos fragoso. Revista<br />

de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, n. 33,<br />

p. 30-40, 1982 (p. 38); Zaffaroni, eugênio raúl;<br />

Pierangeli, josé henrique. Manual de direito penal<br />

brasileiro. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,<br />

2007. v. 1, p. 463.<br />

(4) Em estruturas organizadas, baseadas na divisão de<br />

trabalho e na hierarquia, o conceito de “ação” – em<br />

geral, tão valorizado quando do estudo da criminalidade<br />

tradicional – parece esvaecer e perder a razão de<br />

ser. Nesse contexto, é ilustrativa a colocação de Bernd<br />

schünemann: se se quiser comparar um organismo<br />

natural que serve de base ao conceito de ação, os<br />

órgãos de execução seriam as extremidades, enquanto<br />

a direção da empresa seria o sistema nervoso. Ou<br />

seja: a “verdadeira influência do acontecimento”<br />

está na instância de direção, a qual dirige os órgãos<br />

de execução (exatamente como o sistema nervoso<br />

faz com as extremidades do corpo) (schÜnemann,<br />

Bernd. Los fundamentos de la responsabilidad penal<br />

de los órganos de dirección de las empresas. Buenos<br />

Aires: Rubinzal, 2009. t. 2, p. 163-193 [Colección<br />

Autores de derecho penal] [p. 165 e s.]).<br />

(5) vattimo, gianni. Introdução a Heidegger. 10. ed.<br />

Lisboa: Instituto Piaget, 1996, p. 28.


CriME orGANiZAdo, EStAdo <strong>dE</strong>SorGANiZAdo<br />

(6) O “domínio do resultado” pode ser “material”<br />

ou “pessoal”, vinculando-se ao procedimento<br />

perigoso ou aos atos dos subordinados. Nesse<br />

sentido: schÜnemann, 2007, p. 537 e ss.; al-<br />

Bergaria, Pedro soares. A posição de garante<br />

dos dirigentes de empresa. Revista <strong>Por</strong>tuguesa<br />

de Ciência Criminal, Lisboa, ano 9, p. 605-626,<br />

out./dez. 2009 (p. 624); rieger, renata jardim<br />

da cunha. A posição de garantia no direito penal<br />

ambiental: o dever de tutela do meio ambiente na<br />

criminalidade de empresa. Dissertação (Mestrado<br />

Os últimos acontecimentos marcantes<br />

de novembro de 2010, no Rio de Janeiro,<br />

reacendem a importante questão da presença,<br />

ou ausência, para melhor dizer, do Estado em<br />

determinadas localidades, fato que não é exclusivo<br />

da capital fluminense. Cenas de bandos<br />

criminosos migrando de um morro para outro,<br />

tiroteios, maciça presença de forças policiais e<br />

militares nas ruas tomam conta da rotina carioca<br />

e permitem a seguinte indagação: será que<br />

isso transcenderá o Rio de Janeiro e acontecerá<br />

em outras cidades? Mais: como chegamos a esse<br />

ponto de (in)civilidade? Parece fundamental<br />

reconhecer que a inoperância e a incapacidade<br />

do Estado permitiram que se chegasse a tudo<br />

isso. Muito se ouve falar, e se discute, cada vez<br />

mais, formas de repressão ao crime organizado.<br />

Mas será que o crime organizado realmente<br />

existe? Ou, ao que tudo indica, é a própria<br />

desorganização estatal que permite falar nessas<br />

supostas organizações criminosas?<br />

Este colapso na segurança pública que<br />

hoje estamos atônitos assistindo não surgiu<br />

da noite para o dia, mas sim de longos anos<br />

de parcos e tímidos investimentos na área<br />

da segurança pública como um todo, o que<br />

não é exclusividade do Rio de Janeiro, e sim<br />

ocorre em todo o Território Nacional. O Estado<br />

pouco faz e pouco investe, de fato, em<br />

políticas de segurança pública e em políticas<br />

públicas de segurança que venham a ser bem<br />

sucedidas. Basta atentar-se ao caos do sistema<br />

penitenciário para verificar a inoperância estatal<br />

na repressão à criminalidade. O auge da<br />

desorganização estatal é revelado diariamente<br />

quando se verifica que os criminosos “presos”<br />

continuam a controlar a atividade criminosa,<br />

bem como têm acesso a todo e qualquer tipo<br />

de aparelho tecnológico que permite a comunicação<br />

extra-muro dos presídios.<br />

É preciso rever pontos cruciais na segurança<br />

pública. O Estado deve aprofundar os<br />

investimentos nessa área: melhores salários,<br />

condições, formação e capacitação pessoal<br />

das forças policiais e aparelhamento das instituições,<br />

inclusive dos setores de inteligência<br />

para a repressão à corrupção. Todavia, isso<br />

não basta. Tem-se que investir para melhorar<br />

o sistema carcerário e, fundamentalmente,<br />

em Ciências Criminais) – Faculdade de Direito,<br />

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do<br />

Sul, <strong>Por</strong>to Alegre, 2010, p. 120 e ss.<br />

(7) Existe, portanto, uma “expectativa comunitária de<br />

proteção” (elemento pré-normativo). Essa expectativa<br />

não confere fundamento ao “dever de garantia”,<br />

mas é um reforço, um elemento agregador. Para<br />

aprofundamento: rieger, renata jardim da cunha.<br />

A posição de garantia no direito penal ambiental: o<br />

dever de tutela do meio ambiente na criminalidade<br />

de empresa. Dissertação (Mestrado em Ciências<br />

CriME orGANiZAdo, EStAdo <strong>dE</strong>SorGANiZAdo<br />

Guilherme rodrigues Abrão<br />

realizar políticas de inclusão social para que<br />

o crime não seja um meio de sobrevivência,<br />

especialmente, numa sociedade consumista,<br />

na qual, para Bauman, “o arquétipo dessa<br />

corrida particular em que cada membro de uma<br />

sociedade de consumo está correndo (tudo numa<br />

sociedade de consumo é uma questão de escolha,<br />

exceto a compulsão da escolha – a compulsão<br />

que evolui até se tornar um vício e assim não é<br />

mais percebida como compulsão) é a atividade<br />

de comprar”. (1)<br />

Não há direito penal que, de forma isolada,<br />

como se fosse a panacéia de todos os males,<br />

resolva o problema da criminalidade. É vital,<br />

em um Estado Democrático e Constitucional<br />

de Direito, se reconhecer que é deveras importante<br />

a realização de políticas públicas de<br />

segurança no sentido de que, com melhores<br />

condições sociais e educacionais, as quais<br />

visem sempre a inclusão social, será possível<br />

também minimizar e melhor reprimir toda e<br />

qualquer forma de criminalidade. É preciso ir<br />

além do singelo pensamento de que leis penais<br />

mais graves e severas, acompanhadas de medidas<br />

processuais mais repressoras e restritivas<br />

de direitos, garantirão sucesso nessa árdua<br />

missão. O Estado precisa estar presente em<br />

todas as localidades, pobres ou ricas, de forma<br />

contínua, e não só temporariamente com forças<br />

policiais ou com as denominadas “novas”<br />

unidades de polícia pacificadora. Como bem<br />

conclui Lemgruber, ao pontuar a importância<br />

de políticas sociais e públicas, “só um maciço<br />

esforço de resgatar a dívida social o mais rapidamente<br />

possível, junto com uma profunda revisão<br />

do nosso falido modelo de segurança e justiça, é<br />

que nos permitirá vislumbrar no horizonte um<br />

país menos injusto e violento. O resto são mitos,<br />

ou demagogia de quem busca na manipulação<br />

do medo uma fonte de lucro e poder”. (2)<br />

É mais que urgente a aproximação do<br />

Estado, não só com suas forças policiais, para<br />

com as comunidades, em especial as carentes,<br />

seja no Rio de Janeiro, seja em outra cidade<br />

desse País. Nesse momento, é importante que<br />

sejam desenvolvidas políticas públicas de segurança<br />

que se foquem, exemplificativamente, na<br />

educação, na saúde, na geração de emprego,<br />

no lazer, no saneamento básico, para que não<br />

Criminais) – Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade<br />

Católica do Rio Grande do Sul, <strong>Por</strong>to Alegre,<br />

2010, p.100 e ss.<br />

fiquemos a mercê de medidas paliativas e<br />

restritas seguidamente adotadas pelo Estado.<br />

Assim, um Estado organizado desorganiza a<br />

criminalidade.<br />

<strong>Por</strong>tanto, o Estado necessita se reorganizar<br />

para reprimir a criminalidade, esquecendo-se<br />

de divergências político-partidárias, e, por<br />

seu turno, a sociedade precisa estar atenta e<br />

cobrar a efetiva presença e os investimentos<br />

do Estado para que cenas de guerrilha urbana<br />

não virem parte da rotina brasileira. Políticas<br />

de segurança pública e políticas públicas de<br />

segurança, conjugadas, para que as cenas de<br />

“Tropa de Elite” fiquem apenas no cinema e<br />

não façam parte do nosso cotidiano.<br />

NOTAS<br />

renata Jardim da Cunha rieger<br />

Advogada.<br />

Especialista em Direito Penal e em Direito<br />

Processual Penal pela Faculdade IDC.<br />

Mestre em Ciências Criminais pela PUC.<br />

(1) Conclui o autor: “Estamos na corrida enquanto<br />

andamos pelas lojas, e não só as lojas ou supermercados<br />

ou lojas de departamentos ou aos ‘templos do<br />

consumo’ (...). Se ‘comprar’ significa esquadrinhar<br />

as possibilidades, examinar, tocar, sentir, manusear<br />

os bens à mostra, comparando seus custos com o<br />

conteúdo da carteira ou com o crédito restante nos<br />

cartões de crédito, pondo alguns itens no carrinho<br />

e outros de volta às prateleiras – então vamos às<br />

compras tanto nas lojas quanto fora delas; vamos<br />

às compras na rua e em casa, no trabalho e no<br />

lazer, acordados e em sonhos” (Bauman, Zygmunt.<br />

Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, p. 87).<br />

(2) A autora ainda menciona: “Estudos do Banco Mundial<br />

sobre pobreza urbana na América Latina indicam<br />

que a criminalidade violenta na região só poderá ser<br />

prevenida de forma eficaz por meio, principalmente,<br />

de investimentos sociais consideráveis para reduzir<br />

o número de pobres nas grandes cidades; estimular<br />

a geração de empregos e propiciar crédito fácil para<br />

o desenvolvimento de pequenos negócios; estimular<br />

programas educacionais e de lazer que mantenham<br />

os jovens longe do crime, além de estratégias que<br />

reforcem o envolvimento da comunidade no controle<br />

do crime e da violência” (lemgruBer, julita. Controle<br />

da criminalidade: mitos e fatos. Rio de Janeiro:<br />

Instituto Liberal do RJ, 2001).<br />

guilherme rodrigues Abrão<br />

Advogado criminalista (RS).<br />

Mestre em Ciências Criminais (PUC/RS).<br />

Especialista em Ciências Criminais (Rede LFG) e<br />

em Direito Penal Empresarial (PUC/RS).<br />

Professor de Direito Penal e Processo Penal.<br />

Membro fundador do Instituto Brasileiro de<br />

Direito Processual Penal (IBRAPP).<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 9


EFLEXÕES SoBrE o USo dAS CoNVErSAS tELEFÔNiCAS No ProCESSo PENAL<br />

rEFLEXÕES SoBrE o USo dAS CoNVErSAS tELEFÔNiCAS No ProCESSo PENAL<br />

Fábio tofic Simantob<br />

A medida cautelar de interceptação telefônica<br />

é um meio processual de vigilância do comportamento<br />

humano futuro. Trata-se de medida<br />

processual com vistas a fazer prova na investigação<br />

ou na instrução criminal por meio de vigilância<br />

do comportamento humano ainda por acontecer.<br />

A rigor, pois, como a ocorrência de um crime<br />

é pressuposto para a justiça autorizar a quebra<br />

de sigilo telefônico, o monitoramento telefônico<br />

não é juridicamente vocacionado para descobrir<br />

crimes, mas sim para prevenir a repetição deles,<br />

ou até permitir o flagrante da repetição, ou, ainda,<br />

desvendar crimes já noticiados (com provas<br />

circunstanciais ou com informações que levem<br />

à prova do crime).<br />

Valiosa a diferenciação, neste ponto, entre interceptação<br />

telefônica e a busca e apreensão, esta<br />

última vocacionada a encontrar provas (diretas<br />

ou indiretas) pretéritas de fatos supostamente<br />

ocorridos.<br />

O uso da interceptação é valioso porque permite<br />

chegar às provas do crime, como o cativeiro<br />

no crime de sequestro, ou o cadáver no crime de<br />

homicídio, ou então perceber comportamentos<br />

suspeitos que possam subsidiar com indícios o<br />

envolvimento do interlocutor no crime.<br />

A exceção, ou seja, os casos nos quais a<br />

interceptação pode expor o crime em si na sua<br />

atualidade, dá-se nos crimes praticados pelo<br />

telefone durante a interceptação e nos crimes<br />

permanentes, casos em que pode haver coincidência<br />

temporal entre o fato delituoso e a<br />

própria medida de monitoramento telefônico,<br />

mas, em regra, a interceptação busca apurar<br />

circunstâncias futuras de crime já ocorrido.<br />

Daí já se percebe a natural limitação deste<br />

meio judicial de busca probatória. Seu elo com o<br />

passado é precário. O passado pode, no máximo,<br />

encontrar eco na fala de algum interlocutor, mas<br />

neste caso a fonte da prova deixa de ser a medida<br />

de interceptação e passa a ser a própria pessoa,<br />

cujas percepções ou impressões devem ser obtidas<br />

por meio de depoimento.<br />

Neste caso, pois, a gravação de conversa<br />

telefônica não seria senão meio precário de<br />

colheita extrajudicial de prova testemunhal, não<br />

podendo substituir a instrução e o contraditório<br />

judicial. Com mais razão ainda não terá valor a<br />

conversa cujo conteúdo seja apenas uma confissão<br />

da prática de um crime.<br />

Vale lembrar que o meio idôneo para obter<br />

as impressões, percepções ou informações de<br />

pessoas é o depoimento perante autoridade<br />

competente e, neste aspecto, a Lei n. 9.296/96<br />

nada modificou a disciplina da prova do CPP,<br />

que por isto deve manter-se intacta.<br />

A utilização da interceptação como prova<br />

de algum fato praticado após a quebra do sigilo<br />

telefônico é meramente acidental e se verifica<br />

apenas de forma repetida (crime continuado)<br />

ou fortuita (crime conexo).<br />

Há algumas modalidades de crime cuja in-<br />

10<br />

vestigação por meio de interceptação telefônica<br />

apresenta maior interesse processual. Assim, por<br />

exemplo, nos crimes que deixam vestígios, a<br />

conversa telefônica, ainda que posterior à prática<br />

do crime, pode ser muito útil para auxiliar<br />

na descoberta do corpo de delito (o documento<br />

ou o cadáver).<br />

Nos crimes permanentes, como o sequestro<br />

ou o cárcere privado, mas não só, também os<br />

crimes de quadrilha ou bando ou associação<br />

delitiva de qualquer espécie (plurissubjetivos),<br />

a interceptação de conversas telefônicas pode<br />

oferecer subsídios importantes que, no caso<br />

dos primeiros, pode levar até a descoberta do<br />

próprio objeto material do crime e fazer cessar<br />

a atividade criminosa, e, no caso dos segundos,<br />

pode, aí sim, em razão da própria forma<br />

como as pessoas se comunicam e as questões<br />

que tratam pelo telefone, mostrar, ictu oculi, a<br />

ocorrência do crime.<br />

É crucial a diferença entre conversas telefônicas<br />

que auxiliam a investigação a chegar ao local<br />

onde a prova pode ser encontrada daquelas que<br />

consubstanciam a própria conduta incriminada<br />

e, ainda, daquelas outras que são condutas posteriores<br />

ao crime, com base nas quais se infere<br />

(por presunção, logo, como prova indiciária) a<br />

autoria ou a participação delitivas.<br />

Especial atenção merecem as conversas que<br />

consubstanciam a própria conduta criminosa e<br />

aquelas que revelam comportamento indicativo<br />

da autoria ou da participação de crime pretérito.<br />

Na primeira categoria – conversas criminosas<br />

– são possíveis duas subclassificações:<br />

os crimes cujo tipo objetivo é o próprio verbo<br />

(ameaça, injúria, corrupção) e os crimes cujo<br />

tipo objetivo é a própria natureza das relações<br />

interpessoais (como ocorre em alguns crimes<br />

plurissubjetivos, tal qual a quadrilha). Nos<br />

primeiros, a gravação da conversa é a prova do<br />

crime; o verbo típico praticado através da fala<br />

(ofender, oferecer, ameaçar) é a própria conduta<br />

que se visa incriminar. Nos segundos, a situação<br />

é um pouco mais nebulosa.<br />

Vejamos, por exemplo, o caso do crime de<br />

associação delitiva. As conversas telefônicas<br />

entre os suspeitos podem ser usadas como<br />

elemento probante da relação existente entre<br />

eles, comportamentos, portanto, passíveis de<br />

incriminação. Façamos a seguinte pergunta:<br />

como alguém concorre para o crime de associação<br />

para o tráfico? É uma pergunta um tanto<br />

quanto difícil de ser respondida de forma equânime,<br />

como regra geral para qualquer situação.<br />

Neste caso, a dúvida que surge é se as conversas<br />

interceptadas são meios de provar que alguém<br />

está associado ou são as próprias condutas com<br />

as quais cada indivíduo concorre para o crime?<br />

Estas diferenciações são essenciais, sobretudo,<br />

para efeito de exigência de forma da<br />

denúncia, porque, embora a denúncia não seja<br />

obrigada a especificar as provas de autoria, não<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

pode deixar de descrever a conduta criminosa<br />

em todas as circunstâncias. Saber se determinado<br />

elemento fático que consta dos autos é meio de<br />

provar a autoria ou se é a própria conduta punível<br />

é algo essencial como modo de garantir o<br />

contraditório e a ampla defesa.<br />

Em alguns crimes plurissubjetivos (como a<br />

quadrilha ou a associação), cuja prática só se<br />

verifica a partir de um conglomerado de condutas<br />

coletivas, no qual, a rigor, é muito difícil<br />

definir uma conduta única capaz de configurar o<br />

crime, entendemos que as conversas telefônicas<br />

invocadas pela acusação para demonstrar a tipicidade<br />

necessitam estar integralmente descritas na<br />

denúncia, porque consubstanciam, nestes casos,<br />

a própria conduta com a qual o acusado concorre<br />

para a prática do crime. Idem para quando a<br />

acusação é de participação criminosa, hipótese<br />

em que se deve inferir, desde logo, a prática de<br />

atos auxiliares que não consubstanciam o verbo<br />

núcleo do tipo.<br />

Nestes casos, é cediço que as conversas telefônicas<br />

sejam usadas para demonstrar como o<br />

comportamento x ou y do partícipe contribuiu<br />

para a prática delitiva (exceção feita a situações,<br />

como no crime de favorecimento pessoal, em que<br />

o auxílio é a própria elementar do tipo, e no qual,<br />

dependendo do caso, a conversa pode ser a própria<br />

prova do crime e de sua autoria). Em outras palavras,<br />

é impossível praticar o crime pelo telefone na<br />

condição de autor, a não ser nas hipóteses já mencionadas,<br />

mas é possível ajudar o autor do crime<br />

pelo telefone (chamando a vítima para o local do<br />

crime, por exemplo, ou informando o autor do<br />

crime sobre o paradeiro da vítima), de modo que<br />

a fala nestes casos de participação pode constituir<br />

a própria conduta incriminada, distinção esta<br />

bastante preciosa na medida em que, identificada<br />

a conduta que se visa incriminar, infere-se a obrigação<br />

de estar ela ou não devidamente descrita na<br />

denúncia, sob pena de inépcia da vestibular ou de<br />

nulidade da sentença por falta de correlação com<br />

as balizas acusatórias.<br />

Em provisória conclusão, podemos afirmar<br />

que, afora os casos em que as conversas são o<br />

próprio objeto material do crime, os telefonemas<br />

ou são indícios de autoria, ou prova da<br />

participação de crime, cuja ocorrência material<br />

precisa ser comprovada por meio de outras<br />

provas (o cadáver, o cativeiro, o documento,<br />

a conta no exterior...). Isto porque, sendo a<br />

medida de interceptação telefônica destinada a<br />

apurar circunstâncias futuras, sua prova acerca<br />

de fatos pretéritos não é senão subsidiária,<br />

dependendo sempre da apuração concreta dos<br />

elementos probatórios diretos ou indiretos, os<br />

quais, por natureza, pertencem ao tempo do<br />

crime (documento, testemunha...).<br />

Fábio tofic simantob<br />

Advogado criminalista.<br />

Diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.


dirEito PENAL E doPiNG<br />

dirEito PENAL E doPiNG<br />

Luís Greco e Alaor Leite<br />

Os casos de doping no Brasil são cada vez<br />

mais candentes. No ano de 2009, registrou-se<br />

número recorde de ocorrências. (1) No plano<br />

internacional, o Brasil assumiu compromisso<br />

de tomar as medidas apropriadas para a prevenção<br />

e o combate ao doping. (2) Entre as medidas<br />

apropriadas encontra-se, naturalmente,<br />

o direito e, possivelmente, o direito penal.<br />

Tendo em vista que os dois maiores eventos<br />

esportivos internacionais da atualidade, a saber,<br />

a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos<br />

Olímpicos, serão em breve realizados em solo<br />

brasileiro, é de prever-se que a possibilidade<br />

de fazer uso do direito penal para combater<br />

o doping em breve seja posta na ordem do<br />

dia da política. Além disso, a criminalização<br />

do doping já é realidade legislativa em uma<br />

série de países que costumam influenciar o<br />

legislador brasileiro, como Espanha, <strong>Por</strong>tugal<br />

e Itália, (3) e o clamor por uma padronização<br />

mundial no tratamento do doping parece ser<br />

cada vez maior. Tudo a indicar que a discussão<br />

teórica sobre a suposta criminalização do<br />

doping é um empreendimento necessário.<br />

A lex lata ainda pouco se ocupa do problema<br />

do doping. (4) Há, até o momento, apenas<br />

um tratamento jurídico de ordem disciplinar.<br />

Fundamentais nessa regulamentação são a<br />

Resolução nº 2 do Ministério do Esporte e<br />

do Conselho Nacional do Esporte, publicada<br />

em Diário Oficial em 12 de maio de 2004, e o<br />

Código Brasileiro de Justiça Desportiva (art.<br />

100-A e ss., CBJD), recentemente alterado<br />

pela Resolução nº 29 do Conselho Nacional<br />

do Esporte e em vigor desde 31 de dezembro<br />

de 2009. Desde especialmente a Resolução<br />

nº 2, o Conselho Nacional do Esporte vem<br />

publicando anualmente a lista de substâncias<br />

e métodos proibidos, sempre com referência<br />

às listas publicadas pela World Anti-Doping<br />

Agency (WADA). Além disso, criou-se junto<br />

ao Ministério do Esporte uma agência nacional<br />

antidoping, com o nome provisório<br />

de Autoridade Brasileira de Controle de<br />

Dopagem (ABCD).<br />

De lege lata e do ponto de vista do Direito<br />

Penal, naturalmente poder-se-ia pensar na<br />

incidência do tipo de lesões corporais (art.<br />

129, CP). Esse dispositivo, contudo, não<br />

abrange a conduta do atleta que se dopa a<br />

si mesmo, porque aqui há mera autolesão.<br />

Participar nessas autolesões, fornecendo a<br />

substância ao atleta, seria uma participação<br />

numa autocolocação em perigo, excludente<br />

de imputação objetiva. (5) E se o doping for<br />

ministrado por outrem, haverá, na maioria<br />

dos casos, um consentimento do atleta nas<br />

lesões, que excluirá (no mínimo) a antijuridicidade.<br />

Tampouco a Lei de Drogas (Lei 11.343/06)<br />

abrange os casos de doping. Afinal, a coin-<br />

cidência entre as substâncias constantes das<br />

duas listas é o acaso, a exceção.<br />

O estelionato (art. 171, CP) seria, em regra,<br />

igualmente de difícil configuração. Em especial,<br />

parece difícil afirmar a conduta típica, - o<br />

artifício, o ardil ou outro meio<br />

fraudulento - porque em muitos<br />

casos sequer haverá qualquer<br />

comunicação entre aquele que<br />

faz uso do doping e a pessoa<br />

enganada. Em segundo lugar,<br />

também o resultado - o prejuízo<br />

alheio, o dano patrimonial - dificilmente<br />

estará presente com a<br />

necessária concreção.<br />

Bastante recentemente entrou<br />

em vigor a nova redação<br />

do Estatuto do Torcedor, dada<br />

pela Lei 12.299/10. Dentre os<br />

novos tipos penais há um delito<br />

de fraude contra a competição<br />

esportiva: “Art. 41-E. Fraudar,<br />

por qualquer meio, ou contribuir<br />

para que se fraude, de qualquer<br />

forma, o resultado de competição<br />

esportiva”. O principal obstáculo<br />

a que esse dispositivo<br />

possa ser entendido como uma<br />

resposta ao problema do doping<br />

é a exigência de uma fraude do<br />

resultado de competição esportiva.<br />

Ou seja, parece necessária<br />

a quase impossível prova de que<br />

o resultado real da disputa seria diferente se<br />

não tivesse sido usada a substância.<br />

A lex lata não possui, assim, uma resposta<br />

específica para o problema do doping, com<br />

o que surge a pergunta quanto a se é ou<br />

não aconselhável introduzir um novo tipo<br />

penal no ordenamento. (6) Preliminarmente,<br />

contudo, deverá esclarecer-se o que se<br />

entende por doping. Em todos os âmbitos,<br />

desde a filosofia do esporte, passando pela<br />

medicina, até chegar ao direito, há grande e,<br />

em parte, inconclusiva discussão em torno de<br />

um conceito de doping. Como no direito penal<br />

vige o mandato de determinação da lei, um<br />

dos corolários do princípio da legalidade, o<br />

problema apenas se agrava. (7) Outra questão<br />

conceitual é distinguir entre o heterodoping<br />

e o autodoping, na medida em que cada um<br />

deles apresenta problemas jurídicos diversos.<br />

Um novo tipo penal, como qualquer<br />

tipo, teria sua legitimidade condicionada<br />

especialmente a três grupos de requisitos: o<br />

primeiro deles diz respeito ao bem jurídico<br />

protegido (tipos legítimos não podem proibir<br />

por proibir, mas têm de tutelar algum bem<br />

jurídico, algo valioso, que mereça ser protegido<br />

pelo Estado por meio do direito penal);<br />

em segundo lugar, o Estado não pode intervir<br />

Bastante.<br />

recentemente.entrou.<br />

em.vigor.a.nova.<br />

redação.do.Estatuto<br />

do Torcedor,.dada.<br />

pela.Lei.12.299/10..<br />

Dentre.os.novos.tipos.<br />

penais.há.um.delito.<br />

de.fraude contra a<br />

competição esportiva:.<br />

“Art. 41-E. Fraudar,<br />

por qualquer meio,<br />

ou contribuir para<br />

que se fraude,<br />

de qualquer<br />

forma, o resultado<br />

de competição<br />

esportiva”.<br />

na esfera de privacidade ou de autonomia dos<br />

cidadãos; e, por fim, a tipificação tem de ser<br />

praticável, em sentido amplo.<br />

Ter-se-á, assim, de discutir que bem jurídico<br />

se pretende tutelar com a proibição do doping.<br />

Tutelar a saúde do atleta que se<br />

dopa seria uma manifestação<br />

de paternalismo duro (“hard<br />

paternalism”), incompatível<br />

com o reconhecimento da<br />

autonomia dos indivíduos de<br />

escolherem a que perigos querem<br />

expor-se, escolha que se<br />

expressa já na participação em<br />

esportes profissionais de alto<br />

rendimento, e não apenas na<br />

utilização de substância dopante.<br />

O bem saúde pública, velho<br />

conhecido do direito penal<br />

de tóxicos, tampouco parece<br />

um caminho viável, porque<br />

ou ele apresenta implicações<br />

organicistas politicamente<br />

duvidosas, ou não significa<br />

mais do que a soma da saúde<br />

de vários indivíduos. Os ideais<br />

de fair play ou de lealdade na<br />

competição desportiva têm indiscutível<br />

valor moral, mas não<br />

são algo que possa interessar<br />

ao Estado a ponto de justificar<br />

uma intervenção coercitiva.<br />

Parece-nos, isso sim, que o doping<br />

afeta interesses de ordem mais material,<br />

a saber, a livre concorrência num mercado em<br />

que estão em jogo interesses financeiros. O<br />

doping seria, pois, um delito econômico. Essa<br />

concepção do doping como um delito violador<br />

do bem jurídico concorrência, que vem<br />

ganhando espaço na doutrina internacional, (8)<br />

parte da ideia de que esporte profissional é um<br />

negócio de enorme relevância econômica, e<br />

de que o doping afeta de modo negativo o<br />

desenrolar da concorrência nesse mercado. É<br />

claro que uma série de problemas fica ainda<br />

por resolver. O principal deles parece-nos ser<br />

a distinção entre o doping e outras infrações<br />

desportivas que também geram vantagens<br />

concorrenciais, mas que parecem de todo impassíveis<br />

de incriminação – pense-se em faltas<br />

como a “mão de Deus”, ocorrida na Copa do<br />

Mundo de Futebol em 1986. Assim, correrse-ia<br />

o risco de confundir injusto esportivo e<br />

injusto penal, e seria possível que se chegasse<br />

a uma criminalização difusa de meras faltas<br />

desportivas.<br />

Se se quiser tutelar esse bem por meio de<br />

um tipo penal, deve-se ter o cuidado adicional<br />

de não adentrar na esfera de privacidade<br />

ou de autonomia dos cidadãos. (9) <strong>Por</strong> isso, não<br />

se deve tipificar a posse de substância dopante.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 11


ACordo <strong>dE</strong> CooPErAÇÃo BrASiL / EUA: iNCoNStitUCioNALidA<strong>dE</strong>S... dirEito PENAL E doPiNG<br />

A ação típica deveria ser algo como participar<br />

de competição esportiva profissional.<br />

<strong>Por</strong> fim, é de atentar-se para uma série de<br />

considerações de natureza pragmática, que dizem<br />

respeito à implementação do dispositivo<br />

e que inserem a criminalização do doping em<br />

um dilema. O uso dos resultados de exames<br />

antidoping como prova poderá esbarrar no<br />

princípio do nemo tenetur se ipsum accusare.<br />

Existe ainda o problema do ne bis in idem<br />

material no caso de se perseguir criminalmente<br />

um atleta já punido severamente<br />

após o término do procedimento disciplinar<br />

interno. (10) Há a séria possibilidade de que<br />

a criminalização permaneça de todo ineficiente,<br />

não passando, nas palavras com que<br />

avalia Roxin o correspondente dispositivo<br />

alemão, de “letra morta”. (11) Caso se queria<br />

ultrapassar estes obstáculos, talvez se tenha de<br />

montar um verdadeiro aparato bélico, como<br />

a previsão de delação premiada ou de um<br />

regime especial para organizações criminosas<br />

Em 1997 o Brasil assinou com os EUA<br />

acordo de assistência judiciária em matéria<br />

penal, promulgado entre nós por meio do<br />

Decreto nº 3.810, de 02 de maio de 2001.<br />

Trata-se de acordo do tipo MLAT (Mutual<br />

Legal Assistance Treaty), cujo modelo é sugerido<br />

pelo escritório em drogas e crime da ONU<br />

(United Nations Office on Drugs and Crime<br />

- UNODC) (1) , e que o Brasil vem celebrando<br />

(via acordos bilaterais) com diversos países<br />

nas últimas duas décadas. No Acordo Brasil<br />

e EUA, a tomada de depoimento ou declarações<br />

de pessoas aparece como a primeira<br />

forma de cooperação possível, no seu art. I,<br />

nº 2, alínea “a”.<br />

Na sua consecução (que ocorre por meio<br />

de autoridades centrais: MJ no Brasil e<br />

Procuradoria-Geral – Attorney General – nos<br />

EUA), entretanto, têm surgido dois problemas<br />

essenciais: (i.) no acesso pela defesa à<br />

produção de provas com base no Acordo; e,<br />

(ii.) na forma de cumprimento da cooperação<br />

pelos EUA, no que toca à coleta de depoimentos<br />

de testemunhas.<br />

Quanto ao primeiro ponto, os EUA, por<br />

interpretação da sua autoridade central (supostamente<br />

derivada do sistema da Common<br />

Law, onde às partes incumbe recolher a sua<br />

prova oral, diretamente: por interrogatories<br />

– respostas escritas às perguntas; ou, por<br />

depositions – oitiva privada da testemunha<br />

com a presença da parte contrária; apenas<br />

admitindo-se a intervenção judicial para a<br />

12<br />

no esporte, (12) o que é de todo inaceitável.<br />

NOTAS<br />

(1) Segundo o jornal Gazeta do Povo (Curitiba, 29 de<br />

dezembro de 2009).<br />

(2) O Brasil ratificou sem ressalvas a Convenção<br />

da UNESCO contra o Doping no Esporte, em<br />

26.10.2007. A aprovação ocorreu através do Decreto<br />

Legislativo n. 306, e essa obrigação é expressamente<br />

assumida no art. 1º do Decreto 6.653/08, relativo à<br />

internalização da Convenção da UNESCO.<br />

(3) A Alemanha ainda não criminaliza autonomamente o<br />

doping. Em detalhes roxin, Doping e direito penal,<br />

e leite, O doping como suposto problema jurídicopenal:<br />

um estudo introdutório, in roxin/l. greco,<br />

Doping e direito penal, tradução e introdução de<br />

alaor leite, São Paulo: Atlas, 2011, no prelo.<br />

(4) Detalhes em leite, O doping..., 3. Ver também<br />

schmitt De Bem, A intervenção penal no doping<br />

desportivo, in Curso de direito desportivo sistêmico,<br />

v. II, coord. rubens approbato machado (et al.). São<br />

Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 423-439.<br />

(5) Cf. l. greco, Um panorama da teoria da imputação<br />

objetiva, 2. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007,<br />

p. 62 e ss.<br />

produção de prova em caso de desentendimento<br />

entre os envolvidos) (2) , vêm sustentando<br />

que só é possível a cooperação por meio<br />

do Acordo se a prova visada for do interesse<br />

da acusação ou do juiz (!?) (3) .<br />

Ou seja, se a defesa requerer a<br />

oitiva de pessoa(s) nos EUA<br />

nos termos do Acordo em<br />

foco (cujo texto, em parte<br />

alguma, veda que o faça (4) ),<br />

no interesse, por óbvio, do<br />

acusado, só logrará êxito em<br />

realizar a medida se, concomitantemente,<br />

o magistrado,<br />

ou o agente ministerial,<br />

registrar que também tem<br />

interesse na prova.<br />

Faz-se, então, por uma indevida<br />

interpretatio restritiva<br />

contra reo garantidora do seu<br />

uso unilateral pelo acusador,<br />

ou pelo juiz, o Acordo não<br />

apenas pouco cooperativo<br />

mas, sobretudo, tornam-se<br />

materialmente inconstitucionais no Brasil<br />

todas as provas acusatórias por ele obtidas.<br />

Tais provas, sempre que não se permita à<br />

defesa a busca de contraprovas pela exata<br />

mesma via, terão sido obtidas em detrimento<br />

da garantia pétrea à ampla defesa e ao<br />

contraditório (consagrando o inverso, uma<br />

inexistente ampla acusação!?) e, assim, por<br />

violação de direito fundamental, devem ser<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

(6) Sobre esse problema, extensamente, roxin, Doping<br />

e direito penal, e greco, Sobre a legitimidade da<br />

punição do autodoping nos esportes profissionais,<br />

ambos no livro citado acima, nota 3.<br />

(7) leite, O doping…, 5.3.<br />

(8) Nesse sentido, roxin, Doping..., V, e greco, Sobre<br />

a legitimidade..., B III.<br />

(9) Ver greco, Sobre a legitimidade…, C.<br />

(10) Em detalhes, por exemplo, sobre os problemas do<br />

nemo tenetur se ipsum accusare e do ne bis in idem,<br />

roxin, Doping…, III, e leite, O doping…, 5.5.<br />

(11) roxin, Doping…, III.<br />

(12) Como faz a legislação portuguesa (leite, O doping…,<br />

3).<br />

Luís greco<br />

Dr. em direito pela Universidade Ludwig Maximilians,<br />

de Munique, Alemanha. Mestre pela mesma instituição.<br />

Wissenschaftlicher Assistent junto à cátedra do<br />

prof. dr. dr. h. c. mult. Bernd Schünemann.<br />

Alaor Leite<br />

Mestrando em Direito na Universidade Ludwig<br />

Maximilians, de Munique, Alemanha, sob orientação<br />

do prof. dr. dr. h. c. mult. Claus Roxin<br />

ACordo <strong>dE</strong> CooPErAÇÃo BrASiL / EUA:<br />

iNCoNStitUCioNALidA<strong>dE</strong>S E PErSPECtiVAS NA CoLEtA <strong>dE</strong> ProVA<br />

tEStEMUNHAL EM tErritÓrio NortE-AMEriCANo.<br />

rodrigo Moraes de oliveira<br />

O.MJ.brasileiro,.<br />

por.seu.turno,.<br />

vem.sustentando.<br />

a.validade.da.<br />

prova.resultante:.<br />

“admissível.em.<br />

território.nacional,.<br />

observando-se.os.<br />

termos.do.artigo.13.<br />

da.Lei.de.Introdução.<br />

ao.Código.Civil.<br />

brasileiro”.<br />

reputadas ilícitas, bem como todas as demais<br />

evidências delas derivadas.<br />

Para solucionar o impasse, o caminho<br />

evidentemente mais simples é o da admissão<br />

do uso defensivo do Acordo<br />

para coleta de prova oral (ou de<br />

qualquer outra espécie prevista).<br />

Se se quiser, porém, manter a<br />

complicação, parecem restar<br />

duas alternativas: (a.) dever<br />

do juiz (razoável a prova (5) ) de<br />

requerer a sua coleta nos EUA,<br />

afirmando também o seu interesse<br />

na medida (6) ; e, não sendo<br />

assim, (b.) admissão da coleta da<br />

prova testemunhal necessária à<br />

defesa pela via da carta rogatória<br />

acompanhada da exclusão dos<br />

autos de todas as provas obtidas<br />

pela acusação com base no<br />

mesmo Acordo (imposição do<br />

princípio da igualdade de armas):<br />

se o instrumento não vale<br />

para ambas as partes, não pode<br />

valer para nenhuma delas. Enfim, admitir-se<br />

a via expressa do Acordo para socorro das<br />

pretensões acusatórias impondo-se à defesa a<br />

via – crucis – da rogatória não é, à evidência,<br />

solução razoável.<br />

Acrescente-se, contudo, diante da última<br />

opção, que o MJ brasileiro entende que já<br />

não subsiste o modelo da carta rogatória<br />

com os EUA a partir do momento em que


foi ratificado o Acordo de Cooperação Brasil<br />

e EUA (7) , embora a doutrina acredite que ele<br />

ainda permanece como alternativa à satisfação<br />

da necessidade defensiva de coleta de<br />

prova testemunhal (8) .<br />

Quanto ao outro problema anunciado,<br />

que diz com a forma de cumprimento da cooperação<br />

pelos EUA, nova inconstitucionalidade<br />

é percebida quando o auxílio tem por<br />

objeto a ouvida de pessoa como testemunha<br />

em processo penal. É que a execução deste<br />

ato (inequivocamente) processual é cometida<br />

– mais uma vez por decisão da autoridade<br />

central norte-americana – ao Federal Bureau<br />

of Investigation – FBI, ou seja, a um órgão de<br />

Polícia Judiciária (!?) (9) .<br />

O MJ brasileiro, por seu turno, vem<br />

sustentando a validade da prova resultante:<br />

“admissível em território nacional, observando-se<br />

os termos do artigo 13 da Lei de Introdução<br />

ao Código Civil brasileiro. Ademais,<br />

conforme o Artigo V, Parágrafo 3º, do citado<br />

Acordo, as solicitações serão executadas de<br />

acordo com as leis do Estado Requerido, a<br />

menos que os termos do Acordo disponham<br />

de outra forma.” (10) .<br />

Cremos, entretanto, quanto à oitiva de<br />

testemunha conduzida pela Polícia Federal<br />

norte-americana para fins de utilização em<br />

processo judicial brasileiro, que é inviável admiti-la<br />

como prova válida. Primeiro porque,<br />

ao contrário do alegado pelo MJ brasileiro,<br />

não se conhece norma processual que permita<br />

naquele país a oitiva policial de alguém como<br />

testemunha para uso em processo penal já em<br />

tramitação (11) , o que afasta a aplicabilidade<br />

da Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro,<br />

bem como do art. V, § 3º do Acordo.<br />

Segundo porque se é possível – e sabe-se que<br />

é – a oitiva judicial de testemunha nos EUA,<br />

não há motivo para que não se execute desta<br />

forma um pedido oriundo de autoridade<br />

judiciária brasileira. Aliás, a ONU preconiza<br />

que o Estado requerido atenda ao pedido “na<br />

forma procurada pelo Estado requerente” (12) ,<br />

com vistas, é muito claro, à sua validade.<br />

Terceiro, e por fim, a oitiva judicial de testemunha<br />

nos EUA, quando pedida a partir<br />

de ação penal em trâmite no Brasil, também<br />

deve ocorrer neste formato por uma questão<br />

de reciprocidade: fosse a diligência requerida<br />

pelos EUA para cumprimento em solo brasileiro,<br />

seria realizada, com certeza, por meio<br />

de audiência, perante Juiz de Direito.<br />

Aliás, parece que ao MJ brasileiro basta<br />

instar os EUA a fazerem as oitivas de testemunhas<br />

pedidas pelo Brasil – a partir de ações<br />

penais em andamento – pela via judiciária,<br />

meio que parece estar inclusive antecipado no<br />

Acordo quando garante a presença – cf. o já<br />

citado art. VIII – de pessoas indicadas na solicitação<br />

para o fim de formularem eventuais<br />

perguntas ao depoente, garantindo-se a prévia<br />

antecipação dos informes relativos às data<br />

e local da tomada do aludido depoimento ou<br />

produção de prova, tudo a pressupor um ato<br />

nos moldes de uma audiência, a ser presidida,<br />

pois, não por um policial, ou promotor, mas<br />

sim por um juiz de direito.<br />

Se é correto dizer que a importância de<br />

se consolidar instrumentos de cooperação<br />

penal nos moldes dos MLATs é, hoje, ponto<br />

pacífico, não será menos certo dizer que essa<br />

cooperação somente será útil enquanto for<br />

válida, ou seja, na estrita medida em que for<br />

capaz de gerar provas e outras providências<br />

lícitas porque em conformidade com os direitos<br />

fundamentais consagrados nos países<br />

signatários. Façamos do esforço no sentido<br />

dessa conformação (verdadeiro processo), a<br />

bem da democracia, um permanente compromisso<br />

de todos nós.<br />

NOTAS<br />

(1) O primeiro modelo foi aprovado pela Assembléia<br />

Geral da ONU por meio da Res. 45/117, de 14 de<br />

dez. de 1990. Após, com atualizações propostas por<br />

grupo de experts em 1997, chegou-se ao modelo<br />

atual, cf. a Res. 53/112, de 9 de dez. de 1998.<br />

(cf. UNITED NATIONS. Office on Drugs and Crime.<br />

Revised Manuals on the Model Treaty on Extradition<br />

and on the Model Treaty on Mutual Assistance in<br />

COlÓQUIO INtERNACIONAl SOBRE SEgURANçA pÚBlICA E EdUCAçãO:<br />

NA lUtA CONtRA O CRImE, EdUCAR é O CAmINhO!<br />

Data: 22 e 23 de fevereiro de 2011<br />

Local: Hotel Ouro Minas, em Belo Horizonte, Minas Gerais<br />

informações: www.educaragora.com.br, ou pelos telefones: (31) 3379-5026, (31) 3379-5023<br />

inscrições: on-line, limitadas a 100 convidados, com direito a certificação<br />

realização: Academia de Polícia Civil de Minas Gerais- ACADEPOL<br />

Apoio: Polícia Civil de Minas Gerais, Secretarias Estaduais de Planejamento e Gestão, Ciência e Tecnologia<br />

de Minas Gerais, Universidade do Estado de Minas Gerais, Prefeitura de Belo Horizonte – PRODABEL e iBCCriM<br />

Mais informações no <strong>Por</strong>tal iBCCriM<br />

Criminal Matters, p. 66. Disponível em: .<br />

Acessado em 3 de dez. 2010).<br />

(2) Cf. BRASIL. MJ. Manual de Cooperação Jurídica<br />

Internacional e Recuperação de Ativos – Matéria<br />

Penal. Brasília, 2008, p. 130.<br />

(3) “(...) o governo norte-americano não concorda em<br />

utilizar bens e esforços públicos para custear a oitiva<br />

de testemunhas arroladas pela defesa, a não ser que<br />

exista, concomitantemente, interesse específico por<br />

parte do juiz ou da acusação nesta diligência” (cf.<br />

BRASIL. MJ. Op. Cit., p. 130).<br />

(4) Embora não se desconheça opinião doutrinária no<br />

sentido de que, por força da previsão do § 5º, do<br />

art. I do Acordo, o qual vincula o compromisso<br />

“tão somente a assistência judiciária mútua entre<br />

as Partes” (Estados nacionais), estaria positivada a<br />

exclusão do seu uso defensivo, vedação que reputa<br />

inconstitucional (cf. aras, Vladimir. O Sistema de<br />

Cooperação Penal Brasil/Estados Unidos. In Cooperação<br />

Jurídica Internacional em Matéria Penal. Orgs.<br />

José Paulo Baltazar e Luciano Flores de Lima. <strong>Por</strong>to<br />

Alegre: Verbo jurídico, 2010, p. 360). Em nossa<br />

opinião, como dito, não se vê no dispositivo, ou em<br />

qualquer outro ponto do MLAT entre Brasil e EUA, o<br />

afastamento do seu uso pela defesa.<br />

(5) Basta a razoabilidade da prova requerida, o que não<br />

demanda a exata compreensão pelo juiz da estratégia<br />

defensiva, uma vez que não lhe é dado fazer juízo de<br />

admissibilidade sobre a defesa que se propõe desenvolver<br />

em prol do réu. A advertência, pois, também se<br />

liga ao § 1º, do art. 400 do CPP, que igualmente está<br />

a demandar interpretação conforme a Constituição.<br />

(6) Cf. indicação do próprio MJ brasileiro (vide nota 4),<br />

que também é sustentada pela doutrina (cf. ARAS,<br />

Vladimir. Op. Cit., p. 360).<br />

(7) Cf. BRASIL. MJ. Idem, p. 129.<br />

(8) Ainda cf. aras. Op. Cit., p. 350, 353 e 357.<br />

(9) Cf. BRASIL. MJ. Idem, p. 130.<br />

(10) Cf. BRASIL. MJ. Idem, pp. 130-131.<br />

(11) Até porque “No sistema da common law, entretanto,<br />

uma declaração somente se torna evidência uma vez<br />

que o autor da declaração entregue o conteúdo desta<br />

declaração como testemunho diante de uma Corte.<br />

Isso pode ocorrer meses, se não anos, após a feitura<br />

da declaração original” (cf. UNITED NATIONS. Op.<br />

Cit., p. 70). Ou seja, lá, como aqui, é fundamental<br />

a judicialização dos depoimentos tomados na fase<br />

pré-processual (pré-trial).<br />

(12) Cf. UNITED NATIONS. Idem, p. 70.<br />

rodrigo Moraes de Oliveira<br />

Presidente do Instituto Transdisciplinar<br />

de Estudos Criminais - ITEC, Professor da PUC/RS<br />

e Advogado Criminal.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 13


iNVEStiGAÇÃo CriMiNAL <strong>dE</strong>FENSiVA: UMA LUZ No FiM do tÚNEL CoM SUA PrEViSÃo No NoVo CÓdiGo...<br />

iNVEStiGAÇÃo CriMiNAL <strong>dE</strong>FENSiVA: UMA LUZ No<br />

FiM do tÚNEL CoM SUA PrEViSÃo No<br />

NoVo CÓdiGo <strong>dE</strong> ProCESSo PENAL (ProJEto <strong>dE</strong> LEi 156/09)<br />

Luiz rascovski<br />

Nas aulas de pós-graduação na USP, que<br />

tive o prazer de frequentar no ano de 2009,<br />

o ilustre Professor Gustavo Badaró costumava<br />

dizer que, na demanda civil, as partes<br />

começam o processo com o placar de zero<br />

a zero, com indefinição acerca do resultado<br />

da prestação jurisdicional, enquanto que, no<br />

processo penal, tal situação é diversa, porque o<br />

processo já se instaura, ab initio, com o placar<br />

de um a zero em favor da acusação.<br />

Referida constatação analógica, a meu<br />

ver, se dá por dois motivos: o primeiro deles,<br />

porque há nítido desrespeito ao princípio<br />

constitucional da presunção de inocência (1)<br />

(e, consequentemente, da correta aplicação<br />

do ônus da prova no processo penal), que<br />

na prática é, no mais das vezes, inaplicável; o<br />

segundo, porque não há uma efetiva possibilidade<br />

de participação da defesa na investigação,<br />

fortalecendo a tese acusatória, qualquer<br />

que seja esta. Este é o tema que pretendemos<br />

tratar: investigação criminal defensiva. Talvez<br />

não com a profundidade almejada, face ao<br />

reduzido espaço, mas de grande relevância para<br />

refletir a necessidade de urgente mudança, o<br />

que se avizinha esperançosamente com a inserção<br />

do tema no Projeto do Código de Processo<br />

Penal em tramitação (PL 156/09 do Senado).<br />

Está na hora de repensar o modelo investigativo<br />

brasileiro de modo a fazer valer a<br />

verdadeira paridade de armas entre acusação<br />

e acusado, respeitando a isonomia pretendida<br />

na persecução criminal e garantindo o amplo<br />

direito de defesa. A defesa praticamente não<br />

tem voz na investigação, (2) submetendo-se,<br />

muitas vezes, aos caminhos tortuosos por onde<br />

os ventos da investigação soprarem.<br />

<strong>Por</strong> mais utópico que se possa ser, impossível<br />

acreditar que o Ministério Público – com<br />

todo respeito e apreço que a instituição merece<br />

– seja imparcial no sentido de conduzir uma<br />

investigação de modo a perseguir tão somente<br />

a reconstrução verdadeira dos fatos e não o<br />

sucesso da tese acusatória. Está enraizado na<br />

essência da função ministerial, que fiscaliza a<br />

investigação criminal a cargo da Polícia Judiciária<br />

(embora desejo não falte à instituição<br />

de conduzir a investigação), tentar prevalecer<br />

o sentido de justiça, traduzido, algumas vezes<br />

de forma equivocada, pela saída única da<br />

condenação. De outro lado, também não se<br />

pode crer piamente que a investigação seja<br />

imparcial porque se encontra nas mãos da<br />

Polícia Judiciária, já que não haveria suposto<br />

interesse desta instituição na tese acusatória,<br />

estando hipoteticamente desvinculadas das<br />

pretensões de ambas as partes. Na realidade,<br />

o inquérito policial possui nítido perfil<br />

14<br />

acusatório, preocupado mais em formar o<br />

acervo probatório da acusação, dando a falsa<br />

impressão de que a eficácia da investigação está<br />

atrelada à comprovação do crime.<br />

Para André Augusto Men-<br />

des Machado: “O inquérito<br />

policial, por prestigiar o viés<br />

acusatório da investigação, não<br />

atende, a contento, a necessidade<br />

da defesa de obter informes favoráveis<br />

ao imputado, sendo mister<br />

o desenvolvimento de investigação<br />

particular. Para tanto, deve-se<br />

instituir procedimento detalhado,<br />

que estipule os principais aspectos<br />

formais e substanciais da atividade<br />

investigatória do defensor, em<br />

conformidade com as diretrizes e<br />

os pressupostos de eficiência e do<br />

garantismo. Manter o imputado<br />

refém de uma investigação pública,<br />

na qual ele pouco pode intervir,<br />

desrespeita os fundamentos<br />

de um processo penal acusatório<br />

e não se coaduna com um Estado<br />

Democrático de Direito”. (3)<br />

Neste cenário, a necessidade<br />

de uma investigação criminal defensiva<br />

vem ganhando importância, (4) como observa<br />

Antonio Scarance Fernandes: “A prática<br />

evidenciou que o Ministério Público, quando<br />

encarregado de dirigir ou supervisionar a investigação,<br />

foca sua atenção na obtenção de elementos<br />

que possam sustentar a sua futura acusação, o<br />

que acaba prejudicando a pessoa suspeita, tendo<br />

em vista o risco de desaparecerem informes<br />

importantes para a sua defesa e demonstração<br />

de sua inocência. Decorre, daí, a preocupação<br />

em abrir para o investigado a possibilidade de<br />

investigação privada, como já sucede nos Estados<br />

Unidos. Trata-se de assunto que, com o avanço do<br />

Ministério Público para a investigação também<br />

entre nós, provavelmente, passará a ser objeto de<br />

maior atenção”. (5)<br />

Entende-se por investigação defensiva “o<br />

complexo de atividades de natureza investigatória<br />

desenvolvido, em qualquer fase da persecução<br />

criminal, inclusive na antejudicial, pelo<br />

defensor, com ou sem assistência de consulente<br />

técnico e/ou investigador privado autorizado,<br />

tendente à coleta de elementos objetivos, subjetivos<br />

e documentais de convicção, no escopo de<br />

construção de acervo probatório lícito que, no<br />

gozo da parcialidade constitucional deferida,<br />

empregará para pleno exercício da ampla defesa<br />

do imputado em contraponto à investigação ou<br />

acusações oficiais”. (6)<br />

Francisco da Costa Oliveira (7) cita al-<br />

Está.na.hora.de.<br />

repensar.o.modelo.<br />

investigativo.<br />

brasileiro.de.modo.<br />

a.fazer.valer.a.<br />

verdadeira.paridade.<br />

de.armas.entre.<br />

acusação.e.acusado,.<br />

respeitando.a.<br />

isonomia.pretendida.<br />

na.persecução.<br />

criminal.e.garantindo.<br />

o.amplo.direito.de.<br />

defesa.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

guns objetivos da investigação defensiva: (I)<br />

comprovação do álibi ou de outras razões<br />

demonstrativas da inocência do imputado;<br />

(II) desresponsabilização do imputado em<br />

virtude de ação de terceiros;<br />

(III) exploração de fatos que<br />

revelam a ocorrência de causas<br />

excludentes de ilicitude ou de<br />

culpabilidade; (IV) eliminação<br />

de possíveis erros de raciocínio<br />

a que possam induzir determinados<br />

fatos; (V) revelação<br />

da vulnerabilidade técnica<br />

ou material de determinadas<br />

diligências realizadas na investigação<br />

pública; exame do local<br />

e a reconstituição do crime para<br />

demonstrar a impropriedade<br />

das teses acusatórias; (VII)<br />

identificação e localização de<br />

possíveis peritos e testemunhas.<br />

Nos Estados Unidos, a ideia<br />

de investigação pela defesa é<br />

mais antiga e decorre da adoção<br />

de sistema acusatório no qual<br />

incumbe às partes coletarem<br />

as suas provas e trazê-las ao<br />

processo. Na Itália, a possibilidade desse tipo<br />

de investigação veio com o atual Código de<br />

Processo Penal de 1988, principalmente em<br />

virtude de sua adequação a um perfil acusatório.<br />

(8)<br />

Não se confunde a investigação criminal<br />

defensiva com a já existente previsão de<br />

requerimento de diligências à Autoridade<br />

Policial nos autos do inquérito policial (art.<br />

14, CPP), a qual poderá realizá-las, ou não,<br />

segundo seu juízo discricionário. Ademais,<br />

no inquérito policial, pouco espaço há para<br />

a participação do defensor do indiciado, uma<br />

vez que a direção das investigações cabe à<br />

Autoridade Policial, sob a fiscalização do Ministério<br />

Público e da Autoridade Judiciária.<br />

<strong>Por</strong> seu turno, na investigação defensiva, o<br />

defensor dita os rumos do trabalho investigatório,<br />

com total autonomia em relação aos<br />

entes públicos, de forma a reunir elementos<br />

materiais lícitos em favor do imputado, respeitadas<br />

as regras constitucionais e legais de<br />

obtenção de prova.<br />

Atualmente não há, no direito processual<br />

penal brasileiro, regra a respeito da<br />

investigação pela defesa. Nada impede a sua<br />

realização, mas, além de o investigado não<br />

poder contar com a colaboração da polícia,<br />

eventuais elementos obtidos pela defesa<br />

são vistos com muita desconfiança pelos<br />

promotores e juízes e, em regra, são pouco


EUtANÁSiA E ortotANÁSiA – PErSPECtiVAS AtUAiS...<br />

considerados (9) (surge aqui o problema de<br />

valoração dos elementos colhidos pela defesa).<br />

Essa situação pode estar prestes a se<br />

alterar com a inserção de regra (ainda um<br />

tanto incipiente) autorizadora da investigação<br />

criminal pela defesa, prevista no art.<br />

13 do PL 156/09, com a seguinte redação:<br />

“É facultado ao investigado, por meio de seu<br />

advogado, de defensor público ou de outros<br />

mandatários com poderes expressos, tomar a<br />

iniciativa de identificar fontes de prova em favor<br />

de sua defesa, podendo inclusive entrevistar<br />

pessoas. Parágrafo único. As entrevistas realizadas<br />

na forma do caput deste artigo deverão ser<br />

precedidas de esclarecimentos sobre seus objetivos<br />

e do consentimento das pessoas ouvidas”.<br />

Parte da doutrina sustenta que esse tipo de<br />

investigação seria privilégio de afortunados,<br />

porquanto impraticável em nossa sociedade<br />

em razão da precária situação econômica da<br />

maioria dos acusados. (10) Todavia, em que<br />

pese a veracidade da informação, tal situação<br />

não pode ser óbice à implementação e<br />

à possibilidade de utilização da investigação<br />

criminal defensiva, que deve ser realizada<br />

pelo próprio Estado, por meio de Defensor<br />

Público, (11) caso seja necessária para a defesa<br />

do imputado conforme estratégia a ser adotada,<br />

(12) devendo ser aparelhada para tanto.<br />

Assim, como ocorre na fase processual, cabe<br />

ao Estado, por meio da Defensoria Pública,<br />

suprir a defesa econômica do imputado<br />

na fase investigativa. Somente dessa forma<br />

haverá verdadeira paridade de armas entre<br />

acusação e defesa.<br />

NOTAS<br />

(1) Imprescindível a consulta à obra Presunção de<br />

inocência no processo penal brasileiro, de maurício<br />

Zanoide de moraes, Rio de Janeiro: Lumen Juris,<br />

2010.<br />

(2) Para claus roxin, a instrução preliminar deve<br />

estruturar-se de forma a possibilitar não somente<br />

a comprovação de culpabilidade do imputado, mas<br />

também a exoneração do inocente (roxin, claus.<br />

Pasado, presente y futuro del derecho procesal<br />

penal. Santa Fe: Rubinzal Culzoni, 2007, p. 152).<br />

(3) machaDo, andré augusto mendes. Investigação<br />

criminal defensiva. São Paulo: RT, 2010, p. 184.<br />

(4) Neste diapasão, aponta josé Barcelos de souza: “o<br />

que muito pesa, porém, em favor de uma regulamentação<br />

já, entre nós, de direitos investigatórios da<br />

defesa, é o fato de que aqui o Ministério Público tem<br />

investigado, mas, para acusar, sem qualquer comprometimento,<br />

por força de lei, com os interesses da<br />

defesa, e por isso mesmo completamente à revelia<br />

dela, à qual não é garantida sequer a faculdade de<br />

requerer diligências, diferentemente do que ocorre<br />

no inquérito policial” (souZa, josé Barcelos de.<br />

Poderes da defesa na investigação e investigação<br />

pela defesa. Notas referentes à palestra proferida na<br />

IV Jornadas Brasileiras de Direito Processual Penal,<br />

Guarujá, SP, 09.11.2004. Disponível em . Acesso em 29.11.2010).<br />

(5) fernanDes, antonio scarance. Rumos da inves-<br />

EUtANÁSiA E ortotANÁSiA – PErSPECtiVAS<br />

AtUAiS No or<strong>dE</strong>NAMENto JUrÍdiCo NACioNAL<br />

Bruno Salles Pereira ribeiro<br />

Fala-se em eutanásia pura quando se<br />

deixa de proceder às medidas terapêuticas<br />

que evitem prolongar a vida do sujeito,<br />

passando-se a ministrar meios lenitivos<br />

que aliviem ou diminuam a sua dor, mas<br />

que não iniciem ou acelerem, entretanto,<br />

processo do qual advenha a sua morte. A<br />

eutanásia indireta guarda muita semelhança<br />

com a pura, diferenciando-se, contudo,<br />

pelo fato de que as medidas lenitivas, além<br />

de mitigar o penar do sujeito, ainda contribuem<br />

para a diminuição do tempo de vida<br />

do sujeito. (1)<br />

A eutanásia passiva, também conhecida<br />

como ortotanásia, (2) compreende a interrupção<br />

das medidas terapêuticas curativas<br />

destinadas à manutenção da vida do sujeito<br />

(ou mesmo o não início dessas medidas),<br />

de modo que da enfermidade ou condição<br />

fisiológica em que se encontra o paciente advenha<br />

a sua morte. (3) <strong>Por</strong> sua vez, a eutanásia<br />

ativa é a conduta comissiva que coloca fim<br />

à vida de uma pessoa, por sua vontade real<br />

ou presumida, nos casos de estágio terminal<br />

de vida ou de existência exclusivamente<br />

biológica.<br />

No Brasil, não há qualquer lei que trate<br />

especificamente do tema da eutanásia e da<br />

ortotanásia, sendo ambas as condutas disciplinadas<br />

pelo campo de atuação delimitado<br />

negativamente pelo Código<br />

Penal, bem como por normas<br />

infralegais expedidas pelo<br />

Conselho Federal de Medicina.<br />

(4)<br />

De acordo com o art. 121<br />

do Código Penal brasileiro,<br />

aquele que executar uma eutanásia<br />

ativa direta estará sujeito<br />

às penas do delito de homicídio<br />

doloso, não havendo as<br />

figuras específicas do “homicídio<br />

piedoso” ou do “homicídio<br />

por petição” no ordenamento<br />

jurídico nacional. Contudo,<br />

o § 1º do art. 121 prevê causa<br />

de diminuição de pena de 1/6<br />

(um sexto) a 1/3 (um terço) se<br />

o “o agente comete o crime impelido<br />

por motivo de relevante<br />

valor social ou moral” (5) , o que<br />

pode ser aplicado aos casos de<br />

eutanásia ativa.<br />

Já o art. 122 do Código Penal prevê a<br />

De.acordo.com.o.art..<br />

121.do.Código.Penal.<br />

brasileiro,.aquele.<br />

que.executar.uma.<br />

eutanásia.ativa.direta.<br />

estará.sujeito.às.penas.<br />

do.delito.de.homicídio.<br />

doloso,.não.havendo.<br />

as.figuras.específicas.<br />

do.“homicídio piedoso”.<br />

ou.do.“homicídio<br />

por petição”.no.<br />

ordenamento.jurídico.<br />

nacional.<br />

tigação no direito brasileiro. Boletim do Instituto<br />

Manoel Pedro Pimentel, nº 21, p. 13.<br />

(6) Definição trazida por andré Boiani e azevedo e Édson<br />

luís Baldan in aZeveDo, andré Boiani e; BalDan,<br />

Édson luís. A preservação do devido processo legal<br />

pela investigação defensiva (ou do direito de defenderse<br />

provando). Boletim do iBccrim, nº 137, p. 07.<br />

(7) oliveira, francisco da costa. A defesa e a investigação<br />

do crime. Coimbra: Almedina, 2004, p. 58.<br />

(8) Reflexão de antonio scarance fernandes, analisando<br />

o tema no direito comparado, no prefácio do livro<br />

Investigação criminal defensiva, da autoria de andré<br />

augusto mendes machado (RT, 2010).<br />

(9) Posição de antonio scarance fernandes em Teoria<br />

geral do procedimento e o procedimento no processo<br />

penal. São Paulo: RT, 2005, p. 99.<br />

(10) loPes jr., aury. Sistemas de investigação preliminar<br />

no processo penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen<br />

Juris, 2005.<br />

(11) Verificar os regramentos legais que amparam essa<br />

possibilidade: art. 5º, LXXIV, e art. 134 da CF/88;<br />

art. 8º, 2, e, da Convenção Americana sobre Direitos<br />

Humanos; LC 80/94, com nova redação dada pela<br />

LC 132/09; LC 988/06 do Estado de São Paulo.<br />

(12) Posição de andré augusto mendes machado in<br />

Investigação criminal defensiva. São Paulo: RT, 2010,<br />

p. 181.<br />

Luiz rascovski<br />

Defensor Público do Estado de São Paulo.<br />

Membro do ASF (Antonio Scarance Fernandes) -<br />

Instituto de Estudos Avançados de Processo Penal.<br />

Mestrando em Direito Processual Penal pela FADUSP.<br />

Formado em Direito pela FMU; Formado em<br />

Administração de Empresas pela FAAP.<br />

Coautor da obra “Crimes Contra a Administração<br />

Pública” (Quartier Latin).<br />

incriminação da conduta de auxílio ao suicídio,<br />

o que veda, em nosso ordenamento<br />

jurídico, qualquer hipótese de suicídio<br />

assistido. A questão torna-se<br />

tormentosa no caso da eutanásia<br />

ativa indireta e no caso<br />

da ortotanásia.<br />

Sem adentrar com profundidade<br />

na discussão, impemde-se<br />

pontuar que entendemos,<br />

com parte da doutrina,<br />

que a eutanásia indireta não<br />

poderia ser apenada em razão<br />

da conhecida teoria da imputação<br />

objetiva. Explique-se.<br />

A conduta de se ministrar<br />

meios lenitivos que, embora<br />

acelerem o inevitável processo<br />

da morte, aliviam ou<br />

atenuam o sofrimento do<br />

paciente em estágio terminal<br />

representa o incremento de<br />

um risco admitido pelo ordenamento<br />

jurídico nacional.<br />

Logo, não há sequer que se<br />

falar na tipicidade da conduta. O mesmo<br />

raciocínio irá se aplicar à ortotanásia<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 15


EUtANÁSiA E ortotANÁSiA – PErSPECtiVAS AtUAiS No or<strong>dE</strong>NAMENto JUrÍdiCo NACioNAL<br />

Malgrado o posicionamento acima fixado,<br />

segundo a legislação nacional, ambas<br />

as condutas poderiam ser apenadas como<br />

homicídio por omissão no caso de haver<br />

garantes (médicos ou familiares) que se<br />

omitirem em manter os meios artificiais que<br />

sustentam a vida do paciente. Não havendo<br />

garantes, a conduta poderia ser qualificada<br />

como omissão de socorro (art. 135 do Código<br />

Penal), cuja pena prevista (6) deverá ser<br />

triplicada em razão do óbito do enfermo.<br />

Mas a questão não se resolve dessa forma<br />

simplesmente. Nem a posição que se fixou<br />

acerca da atipicidade das condutas, assim<br />

como a posição de que as condutas poderiam<br />

ser tipificadas como homicídio ou omissão<br />

de socorro, são satisfatórias e precisas para<br />

resolver o problema real que se deve enfrentar:<br />

o da possibilidade de se admitir o<br />

encerramento voluntário da vida humana.<br />

A Constituição Federal garante o direito<br />

à liberdade dos cidadãos ao prever, em seu<br />

art. 5º, inciso II, que “ninguém será obrigado<br />

a fazer ou deixar de fazer alguma coisa<br />

senão em virtude de lei”. Assim, a princípio,<br />

ninguém poderá ser obrigado a se submeter<br />

a tratamento médico ao qual não consinta.<br />

Contudo, o art. 146, § 3º, inciso I, do<br />

Código Penal descaracteriza o crime de constrangimento<br />

ilegal no caso da “intervenção<br />

médica ou cirúrgica, sem o consentimento<br />

do paciente ou de seu representante legal,<br />

se justificada por iminente perigo de vida”.<br />

Disso surgem as questões: existiria um<br />

dever legal de manter-se vivo? A liberdade<br />

de autodeterminação da pessoa esbarraria e<br />

encontraria seu limite na indisponibilidade<br />

do direito à vida?<br />

O choque entre liberdade individual e<br />

indisponibilidade do direito à vida também<br />

é refletido no Código de Ética Médica do<br />

Brasil. Em seu art. 31, veda-se ao médico<br />

“desrespeitar o direito do paciente ou de seu<br />

representante legal de decidir livremente sobre<br />

a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas,<br />

salvo em caso de iminente risco de morte”.<br />

Tudo leva a crer, portanto, que o ordenamento<br />

jurídico nacional impõe um limite à<br />

liberdade individual da pessoa, limite esse<br />

que será marcado pelo indisponível direito<br />

à vida humana. Mas o regramento nacional<br />

deixa ainda mais complexa a questão.<br />

Esse mesmo Código de Ética Médica vai<br />

versar, no art. 41, que é vedado ao médico<br />

“abreviar a vida do paciente, ainda que a<br />

pedido deste ou de seu representante legal”,<br />

completando, entretanto, em seu parágrafo<br />

único, que, “nos casos de doença incurável e<br />

terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados<br />

paliativos disponíveis sem empreender<br />

ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou<br />

obstinadas, levando sempre em consideração<br />

a vontade expressa do paciente ou, na sua<br />

impossibilidade, a de seu representante legal”<br />

(destacamos).<br />

16<br />

Ora, o texto da norma infralegal reportase<br />

à hipótese genuína de ortotanásia. Assim,<br />

ao vedar a obstinação terapêutica, o Código<br />

de Ética Médica assenta como dever do médico<br />

deixar que se desenvolva a ortotanásia<br />

quando consentida pelo paciente ou por seu<br />

representante legal. E não é só.<br />

A Resolução n. 1.805/06 (7) do Conselho<br />

Federal de Medicina já previa, em seu art.<br />

1º, que “é permitido ao médico limitar ou<br />

suspender procedimentos e tratamentos que<br />

prolonguem a vida do doente em fase terminal,<br />

de enfermidade grave e incurável, respeitada<br />

a vontade da pessoa ou de seu representante<br />

legal”. Impende informar que mencionada<br />

resolução teve seus efeitos suspensos por<br />

força de medida liminar proferida, em<br />

março de 2008, pela Justiça Federal de 1º<br />

Grau em ação civil pública proposta pelo<br />

Ministério Público Federal. (8) Mencionada<br />

liminar, entretanto, recentemente foi revogada,<br />

considerando a Justiça Federal não<br />

haver qualquer inconstitucionalidade na<br />

mencionada resolução.<br />

Com a decisão judicial, (9) diversos meios<br />

de comunicação nacional veicularam a<br />

notícia de que a ortotanásia estaria liberada<br />

no País. Seria isso verdade? Não nos<br />

parece. E isso em razão da inaptidão dos<br />

instrumentos normativos (Código de Ética<br />

Médica e Resolução do Conselho Federal de<br />

Medicina), os quais não possuem qualquer<br />

eficácia normativa.<br />

Obviamente, um tema dessa relevância,<br />

que trata da vida humana e da possibilidade<br />

de exclusão da punição de uma conduta que<br />

leva, ao final, à morte de um ser humano,<br />

deve ser tratado privativamente por Lei<br />

Federal.<br />

Bem por isso, tramita, no Congresso Nacional,<br />

o Projeto de Lei n. 6.715, de 2009,<br />

que altera o Código Penal para inserir o art.<br />

136-A, com a seguinte redação:<br />

“Art. 136-A. Não constitui crime, no<br />

âmbito dos cuidados paliativos aplicados a<br />

paciente terminal, deixar de fazer uso de meios<br />

desproporcionais e extraordinários, em situação<br />

de morte iminente e inevitável, desde que haja<br />

consentimento do paciente ou, em sua impossibilidade,<br />

do cônjuge, companheiro, ascendente,<br />

descendente ou irmão.<br />

§ 1º A situação de morte iminente e inevitável<br />

deve ser previamente atestada por 2<br />

(dois) médicos.<br />

§ 2º A exclusão de ilicitude prevista neste<br />

artigo não se aplica em caso de omissão de uso<br />

dos meios terapêuticos ordinários e proporcionais<br />

devidos a paciente terminal.”<br />

O projeto, recentemente aprovado na<br />

Comissão de Seguridade Social e Família<br />

e recém-enviado à Comissão de Constituição,<br />

Justiça e Cidadania, embora não<br />

imune a ressalvas, representa grande avanço<br />

no tratamento jurídico do tema e trará, se<br />

não o inatingível consenso, ao menos uma<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

dose indispensável de segurança jurídica e<br />

iluminação a um tema de suma relevância,<br />

que, infelizmente, continua sendo tratado<br />

por meio do desgastante e incerto exercício<br />

de interpretação dos princípios gerais de<br />

direito penal.<br />

Finalmente, deve-se consignar que<br />

nem nas normas do Conselho Federal de<br />

Medicina, tampouco no indigitado projeto<br />

de lei, são resolvidos problemas essenciais<br />

ao tema, como quem e em que ordem de<br />

preferência poderá prestar o consentimento<br />

indispensável a não punição da ortotanásia.<br />

Quais seriam os requisitos para a validade<br />

desse consentimento? Deveria ser ele expresso<br />

ou tácito, escrito ou verbal, comum ou<br />

esclarecido?<br />

Assim, é possível perceber que o Brasil<br />

ainda deve caminhar um longo caminho até<br />

que a questão da ortotanásia esteja pacificada<br />

no ordenamento jurídico nacional – se é<br />

que um dia estará. É indispensável que se<br />

reflita sobre o assunto com a seriedade e<br />

a dedicação que o tema exige, sem jamais<br />

perder de vista que o que se está a tratar<br />

é da vida humana, o bem mais valioso do<br />

ordenamento jurídico.<br />

NOTAS<br />

(1) roxin, claus. A apreciação jurídico-penal da eutanásia,<br />

In Revista Brasileira de Ciências Criminais,<br />

São Paulo, v. 08, fasc. 32, out./dez. 2003, p. 194-<br />

201.<br />

(2) Ainda encontra-se na literatura a denominação<br />

“paraeutanásia”. Nesse sentido, mantovani, ferrano.<br />

Aspectos jurídicos da eutanásia. Fascículos<br />

de Ciências Penais, ano 4, v. 4, n. 4, 1991, p. 33.<br />

(3) O que se deve destacar, contudo, é que não será<br />

a omissão que matará o sujeito, mas sim sua<br />

condição pré-existente, ou seja, a doença, a enfermidade,<br />

alguma insuficiência fisiológica ou qualquer<br />

outro tipo de condição que esteja sendo contornada<br />

artificialmente por tratamento médico, sem o qual a<br />

morte seria certa. A afirmação pode soar óbvia, uma<br />

vez que é da própria natureza da omissão que outro<br />

evento cause os efeitos naturalísticos – no caso a<br />

morte – existindo, contudo, um dever imposto por lei<br />

de que esse evento seja evitado pelo sujeito garante.<br />

Em síntese, na construção da conduta omissiva<br />

fazem-se necessárias a existência ou a eminência<br />

de uma relação causal (da qual emergirão os efeitos)<br />

e a obrigação legal de uma conduta que impeça a<br />

ocorrência dessa relação.<br />

(4) Especificamente a Resolução CFM n. 1.805/06 e<br />

a Resolução CFM n. 1.931/09 (Código de Ética<br />

Médica).<br />

(5) Ressalte-se, entretanto, que a Exposição de Motivos<br />

do Código Penal, ao versar sobre o presente dispositivo,<br />

exemplifica a hipótese de ortonásia e se refere<br />

a essa modalidade como homicídio piedoso.<br />

(6) Detenção de 1 a 6 meses, ou multa.<br />

(7) O qual é anterior ao novo Código de Ética Médica<br />

que entrou em vigor em 13.04.2010.<br />

(8) Ação Civil Pública n. 14718-75.2007.4.01.3400, da<br />

14ª Vara Federal do Distrito Federal.<br />

(9) Datada de 1º de dezembro de 2010.<br />

Bruno salles Pereira ribeiro<br />

Advogado criminalista.<br />

Mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito<br />

da Universidade de São Paulo.


<strong>dE</strong>SAPArECiMENto ForÇAdo <strong>dE</strong> PESSoAS, VErdA<strong>dE</strong> E MEMÓriA<br />

<strong>dE</strong>SAPArECiMENto ForÇAdo <strong>dE</strong> PESSoAS, VErdA<strong>dE</strong> E MEMÓriA<br />

Camila Akemi Perruso<br />

O Estado brasileiro foi condenado pela<br />

Corte Interamericana de Direitos Humanos<br />

(CIntDH), em sentença proferida em 14 de<br />

dezembro de 2010, no caso da Guerrilha<br />

do Araguaia, pelo desaparecimento forçado<br />

de 70 pessoas. Considerou esse tribunal<br />

internacional que o Brasil descumpriu sua<br />

responsabilidade internacional por graves<br />

violações de direitos humanos empreendidas<br />

durante o regime ditatorial e pela consequente<br />

falta de processamento e apuração<br />

dos fatos até os dias atuais.<br />

O desaparecimento forçado de pessoas<br />

constitui-se em uma das mais graves violações<br />

de direitos humanos e caracterizou-se<br />

como tal a partir de sua prática sistemática<br />

durante as ditaduras da América Latina. Ele<br />

é definido pelo sequestro, detenção ilegal<br />

e arbitrária, realizado por agentes estatais<br />

ou com sua aquiescência, e a consequente<br />

privação de informações acerca do paradeiro<br />

da vítima, geralmente culminando na morte<br />

e ocultação de seus restos mortais, violando<br />

o direito à liberdade e à segurança pessoal,<br />

o direito de não ser preso arbitrariamente, o<br />

direito a um julgamento justo, o direito de<br />

ser reconhecido como pessoa perante a lei, o<br />

direito a condições mínimas de tratamento<br />

na prisão e de não ser submetido à tortura e<br />

a outros tratamentos cruéis e degradantes e o<br />

direito à vida. (1) Ademais, viola a integridade<br />

da família do desaparecido, seu direito ao<br />

luto, na medida em que a obriga a ficar em<br />

um estado de espera interminável, sendo<br />

que geralmente a verdade relativa aos fatos<br />

acontecidos não aparece na cena pública.<br />

O direito à verdade está intrinsecamente<br />

relacionado ao desaparecimento forçado<br />

de pessoas, e, ao longo dos anos, passou a<br />

se considerar a necessidade de que ele seja<br />

garantido em todas as situações de graves<br />

violações de direitos humanos. Isso porque,<br />

quando se trata de crimes de direitos humanos,<br />

a verdade deve ser entendida de modo<br />

diferente dos crimes comuns, pois nesses o<br />

objetivo é verificar a culpa ou a inocência<br />

de algum indivíduo pela prática de um<br />

ato, configurando uma justiça retributiva a<br />

um ato proibido e sancionado por uma lei<br />

penal. Já os objetivos de se encontrar a verdade<br />

quando se trata dos crimes de direitos<br />

humanos dizem respeito à restauração e à<br />

manutenção da paz e ao processo de reconciliação<br />

nacional. (2)<br />

Dessa maneira, há mais interesse por trás<br />

de seu desvelamento que a mera declaração<br />

da culpa ou inocência do agente violador de<br />

direitos humanos. Isso porque tal declaração<br />

está muito mais relacionada<br />

à justiça restaurativa que à<br />

retributiva. Não se trata, desse<br />

modo, de revelar a verdade<br />

para punir o culpado apenas,<br />

mas de conhecer os fatos, as<br />

circunstâncias das violações<br />

de direitos, para que o tecido<br />

social possa se reconciliar. O<br />

direito à verdade divide os<br />

princípios e valores de um<br />

direito internacional penal,<br />

pois favorece a restauração e<br />

manutenção da paz, facilita<br />

o processo de reconciliação,<br />

contribui para a erradicação da<br />

impunidade, reconstrói a identidade<br />

nacional (3) e possibilita<br />

a construção de uma verdade<br />

histórica ou oficial a partir<br />

de um debate público, e não<br />

imposta por algum “vencedor”.<br />

Outra questão que prejudica diretamente<br />

na promoção do direito à verdade<br />

diz respeito à aplicação da anistia quando<br />

ela exclui a possibilidade de julgar os perpetradores<br />

de graves violações de direitos<br />

humanos. Ela é proibida pelo Direito<br />

Internacional justamente porque impossibilita<br />

a verdade e a responsabilização dos<br />

culpados pelas violações. Casos em que a<br />

anistia é legítima, como um recurso para<br />

a responsabilização e reconciliação, como<br />

instrumento de uma justiça restaurativa<br />

– a exemplo da África do Sul – a verdade<br />

assume um valor jurídico e não meramente<br />

moral ou individual. (4)<br />

Nessa perspectiva, a sentença da CIntDH,<br />

que condena o Brasil pelo desaparecimento<br />

forçado de pessoas no caso da Guerrilha do<br />

Araguaia, que obriga o Estado a adotar medidas<br />

reparatórias às vítimas, especialmente<br />

no sentido de esclarecimento da verdade,<br />

contribui não só para o desenvolvimento<br />

e a qualificação dos instrumentos jurídicos<br />

e políticos do País relativos ao respeito aos<br />

direitos humanos, mas, sobretudo, organiza<br />

uma apuração dos fatos, dando publicidade<br />

e esclarecendo o ocorrido por meio do processo<br />

e julgamento.<br />

Assim, para além do âmbito privado –<br />

aqui constituído pelos grupos de familiares<br />

O.direito.à.verdade.<br />

está.intrinsecamente.<br />

relacionado.ao.<br />

desaparecimento.<br />

forçado.de.pessoas,.<br />

e,.ao.longo.dos.<br />

anos,.passou.a.<br />

se.considerar.a.<br />

necessidade.de.que.<br />

ele.seja.garantido.<br />

em.todas.as.<br />

situações.de.graves.<br />

violações.de.direitos.<br />

humanos..<br />

que portam a preservação e a constituição<br />

de suas memórias em cena pública – é necessário<br />

tratar do possível impacto dessas<br />

memórias em toda a sociedade.<br />

É relevante para todos saber<br />

dos fatos relacionados a graves<br />

violações de direitos humanos,<br />

das estratégias empreendidas<br />

no cometimento de tais violações,<br />

de seus fundamentos<br />

e características, com vistas<br />

a uma não repetição. Saber<br />

pelo que passaram as vítimas<br />

do passado é atividade importante,<br />

não só devido à<br />

solidariedade humana, mas,<br />

sobretudo, porque é maneira<br />

de se reconhecer em situação<br />

pela qual não se quer passar<br />

no presente, considerando<br />

o marco valorativo de uma<br />

existência humana alinhado<br />

aos princípios de direitos humanos.<br />

Desse modo, lembrar<br />

do passado não se configura<br />

tão somente rememorar as atrocidades para<br />

que estas não caiam no esquecimento e para<br />

que os sujeitos se mantenham em seus papéis<br />

de vítimas ou algozes, mas para transcender e<br />

fazer com que algo semelhante não aconteça,<br />

para que algo assim não se repita. (5)<br />

NOTAS<br />

(1) De acordo com a Convenção Interamericana sobre<br />

Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada em<br />

âmbito da OEA em 1994, em seu art. 2º, “entendese<br />

por desaparecimento forçado a privação de<br />

liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja<br />

de que forma for, praticada por agentes do Estado<br />

ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem<br />

com autorização, apoio ou consentimento do Estado,<br />

seguida de falta de informação ou da recusa<br />

a reconhecer a privação de liberdade ou a informar<br />

sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim<br />

o exercício dos recursos legais e das garantias<br />

processuais pertinentes”.<br />

(2) naqvi, Yasmin. The right to the truth in international<br />

law: fact or fiction?, in International Review of the<br />

Red Cross, vol. 88, n. 862, jun. 2006, p. 246.<br />

(3) Idem, p. 247.<br />

(4) Idem, p. 267.<br />

(5) gagneBin, jeanne marie. Lembrar escrever<br />

esquecer. São Paulo: 34, 2006, p. 100.<br />

Camila Akemi Perruso<br />

Mestre em Direito Internacional pela USP.<br />

Pesquisadora do Instituto Norberto Bobbio – Cultura,<br />

democracia e direitos humanos.<br />

Você, que não concordou com o ponto de vista exposto no Boletim, por que não escreve, fundamentando sua divergência?<br />

Para propiciar espaço aos outros colaboradores, sintetize sua participação em 6.700 toques, em trabalho inédito.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 17


UM NoVo PArAdiGMA PArA A EXECUÇÃo PENAL doS CriMiNoSoS SEXUAiS: A HorMoNotErAPiA<br />

UM NoVo PArAdiGMA PArA A EXECUÇÃo PENAL doS<br />

CriMiNoSoS SEXUAiS: A HorMoNotErAPiA<br />

Claudia Barrilari<br />

As grandes discussões do direito penal<br />

atual, em sua maior parte, giram em torno<br />

do, assim chamado, “direito penal da globalização”.<br />

(1)<br />

Contudo, determinadas condutas são<br />

reprovadas desde os tempos antigos e, apesar<br />

de sofrerem certa mudança em função da<br />

própria evolução social, continuam inalteradas<br />

em seus núcleos estruturais. Um bom<br />

exemplo são os crimes sexuais.<br />

Nélson Hungria (2) tece referências aos<br />

crimes de violação sexual desde a antiguidade,<br />

permitindo-nos observar que a pena<br />

cominada aos crimes de violação sexual,<br />

guardadas as peculiaridades próprias de cada<br />

época e de cada legislação, fica restrita às<br />

seguintes sanções: multa, reparação do dano<br />

pelo casamento e pena de morte.<br />

Não houve, nas últimas décadas, com<br />

exceção da substituição da pena de morte<br />

pela pena privativa de liberdade, (3) outra<br />

alteração importante no que se refere às<br />

sanções cominadas aos crimes de violação<br />

sexual, os quais, na legislação nacional, são<br />

tipificados como estupro.<br />

No Código Penal de 1940, ao crime de<br />

estupro era cominada pena de 3 a 8 anos,<br />

mas esta pena foi alterada em 1990, com<br />

o advento da famigerada “Lei dos Crimes<br />

Hediondos”, passando a ser de 6 a 10 anos.<br />

Referida lei, em seu art. 9º, criou uma causa<br />

de aumento de pena para o crime de estupro<br />

quando praticado contra vítima em qualquer<br />

das hipóteses do art. 224 do Código.<br />

Em 2009, o Título VI do Código Penal<br />

sofreu várias alterações, dentre as quais se<br />

destaca a junção do estupro com o atentado<br />

violento ao pudor, configurando, no art.<br />

213, o crime de estupro, mantida a pena<br />

de reclusão de 6 a 10 anos. Como qualificadora,<br />

o fato de a vítima ser menor de 18<br />

e maior de 14 anos, com pena de reclusão<br />

de 8 a 12 anos. Em tipo autônomo, no art.<br />

217-A, previu-se o estupro de vulnerável,<br />

apenando, com reclusão de 8 a 15 anos, a<br />

prática de conjunção carnal ou a de outro<br />

ato libidinoso com menor de 14 anos.<br />

As mudanças perpetradas não representam<br />

um novo rumo ao combate ou à prevenção<br />

dos crimes sexuais. Trata-se, apenas, da<br />

conhecida (e inócua) técnica do legislador<br />

brasileiro de simplesmente aumentar as<br />

penas como resposta política à insegurança<br />

gerada pela disseminação do uso da internet<br />

e das novas formas de comunicação como<br />

meio facilitador dos crimes sexuais, principalmente<br />

com vítimas menores.<br />

No direito estrangeiro, no entanto,<br />

algumas legislações têm procurado uma<br />

18<br />

resposta que seja mais eficiente do que o<br />

simples agravamento das penas de privação<br />

de liberdade para combater o aumento dos<br />

crimes sexuais praticados.<br />

Essas tentativas, em grande medida,<br />

têm como ponto de partida<br />

o aspecto criminológico e a<br />

individualização da conduta<br />

como modos de interferir na<br />

repetição do crime pelo autor<br />

já condenado e também como<br />

medidas de prevenção de novos<br />

delitos.<br />

O direito penitenciário<br />

francês, há mais de uma década,<br />

vem estudando outros<br />

métodos de execução de pena,<br />

conforme noticia Pierre Darbeda.<br />

(4) Segundo este autor, a<br />

execução da pena para condenados<br />

por diversos crimes<br />

sexuais (5) sofreu significativa<br />

alteração, no ano de 1994,<br />

para que a privação da liberdade<br />

e o período posterior à<br />

liberação do condenado ensejassem<br />

um acompanhamento<br />

médico-psiquiátrico e psicológico<br />

que permitisse traçar um<br />

perfil individualizado de cada<br />

condenado e, principalmente,<br />

que possibilitasse a utilização<br />

de um tratamento cujo objetivo<br />

fosse afastar o agente da reincidência<br />

quando em liberdade.<br />

Esse acompanhamento multidisciplinar<br />

entre juiz da execução, médico e psicólogo<br />

pode persistir após o cumprimento da pena<br />

privativa de liberdade com caráter autônomo,<br />

e é importante ressaltar que, dentre os<br />

métodos que podem ser utilizados, destacam-se<br />

os medicamentos hormonais androgênicos,<br />

com claro objetivo de diminuir ou<br />

suprimir a libido sexual do condenado<br />

Em 20 de maio de 2010, na 64ª reunião<br />

do Conselho de Cooperação Penal do Comitê<br />

Europeu para os Problemas Criminais,<br />

realizado em Estrasburgo, França, (6) um dos<br />

pontos abordados referia-se aos criminosos<br />

perigosos, dentre os quais se discutiu a questão<br />

da castração química dos delinquentes<br />

sexuais.<br />

Na Polônia, (7) recente alteração legislativa<br />

(2010) introduziu disposições que envolvem<br />

tratamento médico obrigatório para os<br />

condenados por violação de um menor ou<br />

de um membro da família. O tratamento<br />

médico obrigatório consiste em submeter<br />

o condenado a uma terapia farmacológica e<br />

.Um.dos.principais.<br />

obstáculos.para.<br />

a.adoção.da.<br />

medida.está.no.<br />

reconhecimento.<br />

do.princípio.da.<br />

dignidade.da.pessoa.<br />

humana.como.um.<br />

dos.fundamentos.do.<br />

Brasil..Para.Flávia<br />

Piovesan,.“pode-se<br />

afirmar que a Carta<br />

de 1988 elege o<br />

valor da dignidade<br />

humana como um<br />

valor essencial que<br />

lhe dá unidade de<br />

sentido”.<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011<br />

psicoterápica que visa diminuir os impulsos<br />

sexuais.<br />

Em nosso País, tais medidas deram<br />

origem a um projeto de lei, em tramitação<br />

desde 2007 no Senado Federal, (8) que trata<br />

da castração química.<br />

O Projeto 552/07, de autoria<br />

do senador Gerson<br />

Camata, comina a pena de<br />

castração química para os<br />

autores dos crimes tipificados<br />

nos arts. 213, 214, 218<br />

e 224 do Código Penal, na<br />

redação original anterior à lei<br />

11.015/09, que forem considerados<br />

pedófilos. O projeto,<br />

nas emendas que sofreu na<br />

Comissão de Constituição<br />

e Justiça, foi aprimorado e<br />

ainda está em tramitação,<br />

aguardando a realização de<br />

audiência pública requerida<br />

para o debate da matéria. (9)<br />

Ainda que extremamente<br />

polêmico, o tema está na<br />

ordem do dia em legislações<br />

estrangeiras, de modo que o<br />

projeto de lei em tramitação<br />

no Senado Federal pode ser<br />

o precursor de inovações no<br />

campo da execução penal<br />

para condenados por crimes<br />

sexuais graves.<br />

Um dos principais obstáculos para a<br />

adoção da medida está no reconhecimento<br />

do princípio da dignidade da pessoa humana<br />

como um dos fundamentos do Brasil.<br />

Para Flávia Piovesan, “pode-se afirmar que<br />

a Carta de 1988 elege o valor da dignidade<br />

humana como um valor essencial que lhe dá<br />

unidade de sentido”. (10)<br />

Saber se a adoção da medida está em<br />

sintonia com a dignidade da pessoa humana<br />

é o desafio que se impõe. O que não podemos<br />

nos furtar, para além de uma criteriosa<br />

análise da compatibilidade da medida com<br />

os princípios elencados na Constituição<br />

Federal, é de encarar com seriedade as várias<br />

faces dos crimes sexuais, principalmente<br />

quando menores de idade estão envolvidos,<br />

como questão da mais alta relevância, a exigir<br />

uma resposta eficaz do Estado no combate e<br />

na prevenção desse tipo de delito.<br />

NOTAS<br />

(1) Sobre o tema, v., por todos, silva sáncheZ, jesúsmaría.<br />

A expansão do direito penal. São Paulo: RT,<br />

2002.<br />

(2) Segundo o ensinamento de nélson hungria: “Desde


os mais antigos tempos e entre quase todos os povos, a<br />

conjunção carnal violenta foi penalmente reprimida com grave<br />

malefício. Entre os hebreus, se a vítima era moça desposada<br />

(prometida em casamento), o inculpado pagava com a própria<br />

vida (...). Se, entretanto, a moça não era desposada, a pena<br />

consistia no pagamento de 50 siclos de prata ao pai da vítima,<br />

além de obrigatória reparação do mal pelo casamento. Entre<br />

os egípcios, infligia-se ao violentador a pena de mutilação.<br />

Na antiga Grécia, a princípio, a pena era de simples multa;<br />

mas, posteriormente, para conjurar os abusos, foi cominada<br />

a pena de morte, que veio a tornar-se invariável, abolindo-se<br />

a alternativa (anteriormente consentida) entre ela e o casamento<br />

sem dote. Entre os romanos, tendo-se mais em vista<br />

o emprêgo da fôrça do que a finalidade do agente, a posse<br />

sexual violenta (equiparada ao rapto violento) constituía modalidade<br />

de crimen vis, (...) e a pena era de morte. Na Idade<br />

Média, também era a pena de morte a que se aplicava aos<br />

réus de stuprum violentum (...) Refletia êsse rigor o Livro V<br />

das Ordenações Filipinas, nossa primitiva legislação penal:<br />

pena de morte contra ‘todo homem, de qualquer estado e<br />

condição que seja, que forçosamente dormir com qualquer<br />

mulher’, e não a excluía o próprio casamento do réu com a<br />

vítima” (hungria, nélson. Comentários ao Código Penal.<br />

Revista Forense. Rio de Janeiro, 1954, v. VIII, p. 104-105.<br />

(3) O Código Penal do Império de 1830 já estabelecia pena de<br />

prisão de 3 a 12 anos, além do dote à ofendida. O Código Penal<br />

de 1890 foi mais benigno, com a previsão de prisão celular de<br />

1 a 6 anos, além do dote e da extinção da punibilidade pelo<br />

matrimônio subsequente ao delito (idem, p. 105).<br />

(4) DarBeDa, Pierre. L’expertise de prélibération de l’article 722<br />

du code de procédure pénale et lês processus d’evaluation et<br />

de soins dês auteurs d’infractions à caractere sexuel. Revue<br />

de science criminelle et de droit penal compare (4), oct.-déc.<br />

1996, p. 920. Sobre essa lei de 1994 e, também, demais<br />

considerações acerca de um outro projeto de lei apresentado<br />

em 1997, ver Bouloc, Bernard. Pénologie: exécution des<br />

sanctions adultes et mineurs. Paris: Dalloz, 1998.<br />

(5) Afirma o autor que a lei se aplica para condenados por morte<br />

de menor de 15 anos, havendo violação sexual, tortura ou<br />

outros atos de barbárie acompanhados de violação simples<br />

ou agravada, agressão sexual simples ou agravada e atentado<br />

sexual sem violência.<br />

(6) http://www.coe.int/t/f/affaires_juridiques/coop%E9ration_juridique/emprisonnement_et_alternatives/comit%E9s/Documents_2010/PC-CP(2010)12%20_Rapport%2064e%20<br />

reunion__simple.pdf.<br />

(7) Segundo dados do site Criminonet (http://criminonet.wordpress.com/2010/06/14/semaine-du-7-au-13-juin-2010/),<br />

a<br />

emenda, votada pelo Parlamento polonês em setembro de<br />

2009, autoriza o tribunal a aplicar medida obrigatória que<br />

imponha uma terapia farmacológica e psicoterápica que vise<br />

diminuir os impulsos sexuais.<br />

(8) http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_<br />

cod_mate=82490.<br />

(9) Em 07/07/2009, o senador Marcelo Crivella apresentou rela-<br />

tório para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania<br />

do Senado Federal com voto pela aprovação do Projeto com<br />

duas Emendas (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/56869.<br />

pdf). Em 13/04/2010 o mesmo senador apresentou relatório<br />

na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa<br />

(http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf). Nesses<br />

dois relatórios, o Senador Marcelo Crivella de modo claro<br />

e didático faz considerações relevantes sobre a matéria<br />

em si e a constitucionalidade da mesma em face de nosso<br />

ordenamento jurídico. Em 09/06/2010 a Comissão de Direitos<br />

Humanos e Legislação Participativa aprovou requerimento<br />

do Senador José Nery (http://www.senado.gov.br/atividade/<br />

materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82490) para a realização<br />

de Audiência Pública para instruir a matéria, com o convite<br />

para participar da referida audiência entidades da sociedade<br />

política e civil como os membros do Programa Nacional de<br />

Enfrentamento da Violencia Sexual contra Crianças e Adolescentes<br />

da Secretaria de Direitos Humanos da Presidencia da<br />

República; do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do<br />

Adolescente; do Ministério da Justiça; do Ministério da Saúde;<br />

do Conselho Federal de Psicologia (CFP); do Conselho Federal<br />

da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) entre outros. Em<br />

07.07.2009, o senador marcelo crivella apresentou relatório<br />

para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do<br />

Senado Federal com voto pela aprovação do Projeto com<br />

duas Emendas (http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/56869.<br />

pdf). Em 13.04.2010, o mesmo senador apresentou relatório<br />

na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa<br />

(http://legis.senado.gov.br/mate-pdf/75771.pdf). Nesses<br />

dois relatórios, o senador marcelo crivella, de modo claro<br />

e didático, fez considerações relevantes sobre a matéria em<br />

si e a constitucionalidade da mesma em face de nosso ordenamento<br />

jurídico. Em 09.06.2010, a Comissão de Direitos<br />

Humanos e Legislação Participativa aprovou requerimento<br />

do senador josé nery (http://www.senado.gov.br/atividade/<br />

materia/detalhes.asp?p_cod_mate=82490) para a realização<br />

de audiência pública para instruir a matéria, com o convite<br />

para participar da referida audiência entidades da sociedade<br />

política e civil, como os membros do Programa Nacional<br />

de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e<br />

Adolescentes da Subsecretaria de Promoção dos Direitos da<br />

Criança e Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos da<br />

Presidência da República, do Conselho Nacional dos Direitos<br />

da Criança e do Adolescente, do Ministério da Justiça, do<br />

Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Psicologia<br />

(CFP), do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do<br />

Brasil (OAB), entre outros.<br />

(10) Cf. Piovesan, flavia. Direitos humanos e o direito constitucional<br />

internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996, p. 59.<br />

CIÊNCIAS CRImINAIS Em FOCO<br />

seminário regional do instituto Brasileiro de Ciências Criminais (iBCCriM) em sergipe<br />

Data: 05 e 06 de maio de 2011<br />

Local: Teatro Tobias Barreto – Aracaju/SE<br />

informações: (79) 3211-3273<br />

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Claudia Barrilari<br />

Advogada em São Paulo.<br />

Mestre em direito penal pela PUC/SP.<br />

Entidades<br />

que assinam<br />

o Boletim:<br />

AMAZONAs<br />

• Associação dos<br />

Magistrados do<br />

Amazonas - Amazon<br />

DistritO FEDErAL<br />

• Defensores Públicos<br />

do Distrito Federal -<br />

ADEPDF<br />

MAtO grOssO DO sUL<br />

• Associação dos<br />

Defensores Públicos<br />

de Mato Grosso do Sul<br />

• Associação dos<br />

Delegados de Polícia de<br />

Mato Grosso do Sul -<br />

Adepol/MS<br />

PArANÁ<br />

• Associação dos<br />

Delegados de Polícia<br />

do Estado do Paraná<br />

riO DE JANEirO<br />

• Defensoria Pública Geral<br />

do Estado - DPGE<br />

sãO PAULO<br />

• Escola da Defensoria<br />

Pública do Estado<br />

de São Paulo<br />

• Ordem dos Advogados<br />

do Brasil - OAB/SP<br />

• Associação dos<br />

Delegados de<br />

Policia de São Paulo -<br />

ADPESP<br />

BOlEtIm IBCCRIm - ANO 18 - Nº 219 - FEVEREIRO - 2011 19 19


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