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Ciclo dos Fundadores da ABL - Academia Brasileira de Letras

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<strong>Ciclo</strong> <strong>dos</strong> <strong>Fun<strong>da</strong>dores</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>ABL</strong>


Alegoria <strong>de</strong> Rodolfo Amoedo<br />

sobre José do Patrocínio


O gran<strong>de</strong> José do<br />

Patrocínio<br />

João <strong>de</strong> Scantimburgo<br />

Que tenho eu a falar sobre um negro, durante a vigência <strong>da</strong><br />

escravidão? Po<strong>de</strong>-se falar muito ou não falar na<strong>da</strong>. Po<strong>de</strong>-se<br />

atribuir o po<strong>de</strong>r à palavra, que já <strong>de</strong>rrubou reinos, impérios, já <strong>de</strong>struiu<br />

linhagens dinásticas inteiras e já elevou às alturas <strong>da</strong> glória não<br />

poucos <strong>de</strong> nossos semelhantes. Po<strong>de</strong>m-se invocar as palavras proferi<strong>da</strong>s<br />

por um Deus, na sua peregrinação, o Deus que <strong>de</strong>u testemunho<br />

do sofrimento humano, <strong>da</strong> injustiça que nos rastreia os passos, seja a<br />

do sublime <strong>da</strong> poesia, seja a <strong>da</strong> blasfêmia <strong>dos</strong> réprobos, que os há em<br />

abundância em to<strong>da</strong>s as raças e to<strong>da</strong>s as latitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ste mundo, que<br />

já não sabemos como encontrar <strong>de</strong>finições diante <strong>da</strong> agonia <strong>da</strong> civilização,<br />

a que os saltos prodigiosos <strong>da</strong> ciência não po<strong>de</strong>rão <strong>da</strong>r um linimento<br />

até a cura.<br />

Imagino, neste local, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> on<strong>de</strong> tantas vozes foram ouvi<strong>da</strong>s,<br />

menos, infelizmente, a voz <strong>de</strong> José do Patrocínio na nossa tribuna,<br />

ele que sofreu calado, sufocando nas suas lágrimas, nos confrangimentos<br />

<strong>de</strong> seu coração, a <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> sua raça, que parece ter sido<br />

115<br />

Conferência<br />

proferi<strong>da</strong> na<br />

<strong>ABL</strong>, a 1 o <strong>de</strong><br />

abril <strong>de</strong> 2003,<br />

abrindo o ciclo<br />

<strong>Fun<strong>da</strong>dores</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>ABL</strong>.


João <strong>de</strong> Scantimburgo<br />

fa<strong>da</strong><strong>da</strong> a viver abaixo do nível <strong>da</strong> digni<strong>da</strong><strong>de</strong> humana, ain<strong>da</strong> que seu caráter o tenha<br />

prestigiado. No discurso <strong>de</strong> ingresso nesta Casa, disse Mário <strong>de</strong> Alencar,<br />

seu sucessor na Ca<strong>de</strong>ira 21, que “não seguiria a regra usa<strong>da</strong> na biografia <strong>dos</strong><br />

homens notáveis, <strong>de</strong> procurar nos antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> família e nos atos <strong>da</strong> infância<br />

a razão <strong>dos</strong> sinais e <strong>dos</strong> vestígios do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong>les”.<br />

A biografia <strong>de</strong> José do Patrocínio, se não fosse romancea<strong>da</strong>, com abundância<br />

<strong>de</strong> imaginação, como a <strong>de</strong> um Victor Hugo ou <strong>de</strong> um Sthen<strong>da</strong>l, na<strong>da</strong> teria<br />

que oferecesse ao curioso em sua história familiar e individual. Havia trabalhado<br />

numa quitan<strong>da</strong> do interior e na casa paroquial <strong>de</strong> uma igreja <strong>de</strong> província,<br />

<strong>da</strong> qual o vigário era seu pai. Daí <strong>de</strong>cidiu vir para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> gran<strong>de</strong>, a vitrine carioca<br />

<strong>de</strong> seu tempo, quando o Rio <strong>de</strong> Janeiro projetava inteligências brilhantes<br />

ou <strong>de</strong>sfazia reputações duvi<strong>dos</strong>as.<br />

Segundo Mário <strong>de</strong> Alencar, <strong>de</strong> quem me valho, Patrocínio <strong>de</strong>ixou Campos,<br />

on<strong>de</strong> vivia a vi<strong>da</strong> pachorrenta <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do interior, ain<strong>da</strong> hoje semelhante,<br />

sob muitos aspectos, ao seu tempo, e arranjou um emprego como aprendiz <strong>de</strong><br />

farmácia na Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia, para ganhar a ínfima quantia <strong>de</strong> dois<br />

mil réis, a moe<strong>da</strong> <strong>da</strong> época. Tinha casa e comi<strong>da</strong>, mas esse dinheiro não lhe vinha<br />

<strong>da</strong> instituição, porém <strong>dos</strong> companheiros aos quais substituía em domingos<br />

e dias feria<strong>dos</strong>. Era com o trabalho, enquanto os companheiros folgavam,<br />

que podia ter abrigo certo e a mesa na qual se alimentava. A essa quantia miserável,<br />

acrescentaria <strong>de</strong>zesseis mil réis recebi<strong>dos</strong> <strong>de</strong> seu pai, vigário <strong>de</strong> Campos.<br />

Tinha portanto uma escora na qual se ampararia enquanto durasse a munificência<br />

obriga<strong>da</strong> pela consciência do vigário <strong>de</strong> Campos e a aju<strong>da</strong> <strong>dos</strong> companheiros<br />

<strong>da</strong> farmácia <strong>da</strong> Misericórdia do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Homem sem passado <strong>de</strong> legen<strong>da</strong>, <strong>de</strong>sses fulgurantes nomes que enchem as<br />

páginas <strong>da</strong> história, e ou são heróis, ou santos, ou poetas, ou escritores, ou artistas<br />

em vária arte, que <strong>de</strong>ixam nome à posteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, para serem julga<strong>dos</strong>,<br />

como o Aleijadinho em Minas Gerais, para citar o nome mais dramático e<br />

mais genial <strong>de</strong> quantos perambulam pelas páginas <strong>da</strong> nossa história.<br />

Para estu<strong>da</strong>r, Patrocínio procurou o Externato Aquino, e lá obteve o que<br />

em nossos dias se chama bolsa <strong>de</strong> estudo. Começou a estu<strong>da</strong>r. Aguilhoado pela<br />

116


O gran<strong>de</strong> José do Patrocínio<br />

vocação, queria ser médico. Estava inclinado a ser um <strong>de</strong>sses seres que Deus escolheu<br />

para minorar a <strong>de</strong>sgraça que colhe um ser no curso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Não conseguiu<br />

por uma série <strong>de</strong> fatores que o impediram <strong>de</strong> chegar à Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicina.<br />

Mas, contentou-se com a <strong>de</strong> Farmácia, graças aos colegas que conquistou<br />

com sua inteligência, sua lhaneza, e às lições particulares que ministrava<br />

nas horas vagas. De seus estu<strong>dos</strong> superiores, formou-se, portanto, em Farmácia,<br />

vindo a ser colega do gran<strong>de</strong> poeta parnasiano Alberto <strong>de</strong> Oliveira. Não<br />

exerceu a profissão. Não era a sua vocação. Conformou-se, resignado, com a<br />

impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar a médico, e <strong>de</strong>ixou na gaveta o diploma <strong>de</strong> farmacêutico,<br />

indo para outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, numa <strong>da</strong>s quais seria um <strong>dos</strong> gran<strong>de</strong>s nomes<br />

do Brasil, o jornalismo.<br />

Discreto ou envergonhado, Patrocínio não revelava seu passado, <strong>de</strong> resto<br />

sobre não ter muito o que revelar <strong>de</strong> dias i<strong>dos</strong> <strong>de</strong> sua infância e juventu<strong>de</strong> na<br />

mo<strong>de</strong>sta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Campos, on<strong>de</strong> passou essa quadra <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>. Mas não interessa<br />

nesta evocação <strong>de</strong> um <strong>dos</strong> gran<strong>de</strong>s nomes <strong>de</strong>sta Casa e, mais ain<strong>da</strong>, um<br />

<strong>dos</strong> gran<strong>de</strong>s nomes do Brasil <strong>de</strong> sua época, sobretudo na época agita<strong>da</strong> <strong>da</strong> propagan<strong>da</strong><br />

abolicionista, na qual seu brilho não foi ofuscado pelo <strong>de</strong> Rui Barbosa,<br />

Joaquim Nabuco, pela poesia <strong>de</strong> Castro Alves, e <strong>de</strong> quantos tomaram parte<br />

na vigorosa campanha pela Abolição, que tardou, mais <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong>pois<br />

que a Guerra <strong>de</strong> Secessão americana, com seiscentos mil mortos e feri<strong>dos</strong>, libertou<br />

na gran<strong>de</strong> nação do Norte os seus escravos, que, <strong>de</strong> resto, <strong>de</strong>ixou-os<br />

abandona<strong>dos</strong>, ca<strong>da</strong> qual escolhendo o caminho que <strong>de</strong>sejasse seguir na vi<strong>da</strong>.<br />

O negro José do Patrocínio não precisou escon<strong>de</strong>r na<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus dias <strong>de</strong><br />

Campos e <strong>dos</strong> primeiros tempos no Rio <strong>de</strong> Janeiro, pois que foram tão límpi<strong>dos</strong><br />

quanto sua alma, uma alma clara como um cristal, servido <strong>de</strong> um caráter<br />

cristalino como um brilhante. Sem dúvi<strong>da</strong>, José do Patrocínio teve dias amargos<br />

e dias alegres em sua vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> menino pobre, jovem sem um horizonte a<br />

atraí-lo para ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que enaltecem a pessoa.<br />

Dotado <strong>de</strong> uma inteligência viva, <strong>de</strong>ssas que captam os acontecimentos, distantes<br />

ou próximos, com luci<strong>de</strong>z, José do Patrocínio não se lançou na poesia,<br />

embora tenha poetado, nem na procura <strong>de</strong> um emprego que <strong>de</strong>sse para o seu sus-<br />

117


João <strong>de</strong> Scantimburgo<br />

tento. Iludindo-se a si próprio, preferiu a via do jornalismo, organizando um veículo,<br />

a que <strong>de</strong>u o nome <strong>de</strong> Os Ferrões – um panfleto, com o qual esperava <strong>de</strong>sven<strong>da</strong>r<br />

o que fosse acessível aos leitores <strong>de</strong> jornais, principalmente no estilo com que<br />

procurou se fazer notar numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> on<strong>de</strong> proliferavam os panfletos, os jornais<br />

<strong>de</strong> quatro páginas sobre <strong>de</strong>bates políticos. Lembra Mário <strong>de</strong> Alencar, com razão,<br />

em seu discurso <strong>de</strong> ingresso nesta Casa, que José do Patrocínio procurou imitar<br />

Eça <strong>de</strong> Queirós e Ramalho Ortigão, que lançaram em Portugal As Farpas, imitação,<br />

em terras lusas, como os Ferrões no Brasil, <strong>da</strong>s Les Guêpes, <strong>de</strong> Alphonse Kar,<br />

em Paris. Evi<strong>de</strong>ntemente, haveria enormes diferenças entre uma e outra publicação,<br />

mas, o jovem negro, no seu ímpeto <strong>de</strong> conquistar um lugar <strong>de</strong> relevo no<br />

meio jornalístico do Rio <strong>de</strong> Janeiro, fez <strong>de</strong> seu jornal um baluarte <strong>de</strong> criticas políticas,<br />

sociais e econômicas, em suma, o que interessasse ao público. Patrocínio<br />

foi mesmo aguerrido, tantas vezes feroz nas suas críticas, mas Os Ferrões não alcançaram<br />

o prestígio com o qual ele sonhara – pois fora um sonho o seu ímpeto<br />

<strong>de</strong> jornalista na linha <strong>de</strong> Les Guêpes ou <strong>de</strong> As Farpas – e o jornalzinho, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>z números, sem progresso <strong>de</strong> ven<strong>da</strong> que o sustentasse no Rio <strong>de</strong> Janeiro e um<br />

pouco em São Paulo, acabou suspen<strong>de</strong>ndo a tiragem, morrendo <strong>de</strong> inanição,<br />

com <strong>de</strong>cepção amarga do fun<strong>da</strong>dor sobre a sua ambição<br />

O jornal serviu, porém, para chamar a atenção <strong>dos</strong> diretores <strong>de</strong> jornais com<br />

tiragem assegura<strong>da</strong> e freqüente no Rio <strong>de</strong> Janeiro e assinantes em São Paulo, e<br />

Patrocínio foi contratado pela Gazeta <strong>de</strong> Notícias, um <strong>dos</strong> gran<strong>de</strong>s órgãos <strong>de</strong> imprensa<br />

do Rio <strong>de</strong> Janeiro, no qual pontificava Ferreira <strong>de</strong> Araújo, até hoje um<br />

<strong>dos</strong> maiores jornalistas do Brasil, especialmente nos comentários editoriais sobre<br />

a política e suas excentrici<strong>da</strong><strong>de</strong>s, numa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> fron<strong>de</strong>use e politiza<strong>da</strong> como<br />

sempre foi o Rio <strong>de</strong> Janeiro, ao menos até a mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> capital para Brasília,<br />

quando Juscelino Kubitschek quis manter a palavra <strong>da</strong><strong>da</strong> aos assistentes <strong>de</strong> um<br />

comício <strong>de</strong> sua campanha <strong>de</strong> candi<strong>da</strong>to à Presidência <strong>da</strong> República.<br />

José do Patrocínio foi, em tudo, um justo. Daí, como vem num salmo, ter<br />

florescido como a palmeira, isto é, retamente, entre os seus contemporâneos.<br />

Negro, num país que fizera <strong>da</strong> escravidão a base <strong>da</strong> força econômica <strong>da</strong> qual<br />

necessitava nas lavouras <strong>de</strong> café, no ouro e outros produtos, teria que ser alvo<br />

118


O gran<strong>de</strong> José do Patrocínio<br />

<strong>de</strong> preconceito. Foi, sem dúvi<strong>da</strong>, uma <strong>da</strong>s vítimas <strong>de</strong>sse terrível mal que assola<br />

as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mas soube superar os entraves que se lhe opunham, como <strong>de</strong>monstrou,<br />

com rara tenaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, na sua vi<strong>da</strong> livre. Mostrou-o optando pela farmácia,<br />

por não ter podido cursar a Medicina. Não se <strong>de</strong>ixou abater quando o<br />

seu jornalzinho <strong>de</strong> gossips políticos não passou <strong>de</strong> <strong>de</strong>z números, portanto, <strong>de</strong><br />

uma tremendo malogro, ele que punha na sua publicação a esperança <strong>de</strong> que<br />

viesse a ocupar no Rio <strong>de</strong> Janeiro um lugar <strong>de</strong> honra, portanto, <strong>de</strong>staque <strong>de</strong>ntre<br />

os órgãos <strong>de</strong> imprensa que circulavam na antiga capital do país.<br />

Patrocínio não era, porém, <strong>de</strong> <strong>de</strong>sanimar. Reuniu to<strong>da</strong>s as forças com as<br />

quais contava, inclusive a que o fez impor-se na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, e<br />

continuou a sua jorna<strong>da</strong>. Homem tranqüilo, consciente <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>stino, não<br />

possuía uma psicologia complexa, <strong>de</strong>ssas que levam os mestres, sobretudo o<br />

Dr. Freud, a longas meditações sobre a sua composição e seus reflexos no comportamento<br />

humano. Patrocínio era o perfeito homem <strong>de</strong> caráter e <strong>de</strong> convívio<br />

ameno. Não havia quem se lhe aproximasse ou viesse a conhecê-lo, que <strong>de</strong>le<br />

não se tornasse amigo. A amiza<strong>de</strong> levou-o para o positivismo, que floresceu no<br />

Brasil com ampla atração e conquistou inúmeros a<strong>de</strong>ptos, para influir na proclamação<br />

<strong>da</strong> República e na formação <strong>dos</strong> chefes <strong>de</strong> governo ao menos durante<br />

a primeira República, na qual predominou. Nos antece<strong>de</strong>ntes do golpe <strong>de</strong> 15<br />

<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1889, o positivismo era a filosofia que, inexplicavelmente,<br />

dominou a classe alta <strong>da</strong> política, <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>da</strong> imprensa, enfim, <strong>de</strong> quantos<br />

estu<strong>da</strong>ssem o pensamento que predominava <strong>de</strong> Augusto Comte e seus cau<strong>da</strong>losos<br />

livros (que estão sendo reedita<strong>dos</strong>, sob a direção, até há pouco tempo,<br />

até a sua morte, pelo filosofo e acadêmico francês Henri Gouhier). Mas essa<br />

<strong>de</strong>cisão, toma<strong>da</strong> sem muita convicção, custou-lhe o corte <strong>dos</strong> 16 mil réis do vigário<br />

<strong>de</strong> Campos, evi<strong>de</strong>ntemente antipositivista. Também o nosso compatriota<br />

Paulo Carneiro estava reunindo to<strong>dos</strong> os seus papéis, sobretudo a correspondência,<br />

para publicá-los em livro, ain<strong>da</strong> que o positivismo, como filosofia,<br />

não mais tenha seguidores, nem as novas gerações querem saber <strong>da</strong> lei <strong>dos</strong> três<br />

esta<strong>dos</strong>, <strong>de</strong> resto não querem <strong>de</strong> na<strong>da</strong> saber <strong>de</strong> filosofia, que nas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s está<br />

sendo leciona<strong>da</strong> gratuitamente, para mantê-la no currículo.<br />

119


João <strong>de</strong> Scantimburgo<br />

Mas, Patrocínio <strong>de</strong>sencantou-se com o positivismo e passou-se para o catolicismo,<br />

no qual se integrou. Estudou-o a fundo, tanto quanto o permitisse a época,<br />

e se tornou um súdito sagrado <strong>de</strong> Nosso Senhor Jesus Cristo. Não foi, no entanto,<br />

em religião, um gran<strong>de</strong> espírito, um <strong>de</strong>sses astros que brilham no firmamento<br />

<strong>da</strong> inteligência, e logo esmaecem. Manteve-se na altura a que chegou, e foi<br />

admirado e aplaudido, como escritor, como expositor e como cultor <strong>da</strong> apologética<br />

cristã. Era, como disse eu acima, um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sinceri<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> conduta irrepreensível,<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s com as quais conquistou <strong>de</strong>finitivamente seus contemporâneos<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro e em outras ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s do país. Conquistou São Paulo,<br />

por exemplo, até on<strong>de</strong> chegavam os ecos <strong>de</strong> suas conferências, <strong>de</strong> seus discursos,<br />

<strong>de</strong> sua luta por seus irmãos <strong>de</strong> raça, on<strong>de</strong> era aplaudido e seguido.<br />

Se Patrocínio vivesse hoje seria, certamente, autor <strong>de</strong> novelas <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s<br />

emissoras <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s a esse filão <strong>de</strong> audiência. Era folhetinista, embora não os<br />

assinasse. Mantinha-o por terem to<strong>dos</strong> os jornais o in<strong>de</strong>fectível folhetim,<br />

como o têm hoje algumas televisões, para segurar audiência, que, <strong>de</strong> outra forma,<br />

<strong>de</strong>ban<strong>da</strong>ria para outras emissoras ou <strong>de</strong>sistiria <strong>da</strong> tela fascinante.<br />

Observando-o no seu trabalho, em que era a eficiência, Ferreira <strong>de</strong> Araújo<br />

aproveitou Patrocínio como cronista parlamentar. Foi man<strong>da</strong>do para a Câmara<br />

<strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>, com or<strong>de</strong>m para colher tudo quanto necessitasse a fim <strong>de</strong><br />

atrair leitores. Patrocínio alcançou sucesso, porquanto sabia colher, no seu<br />

exato sentido e na oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> que se lhe apresentava, a intenção <strong>dos</strong> <strong>de</strong>bates,<br />

as intrigas entre os <strong>de</strong>puta<strong>dos</strong>, que as havia, como há ain<strong>da</strong> hoje, a atmosfera<br />

geral <strong>da</strong> Câmara. Foi um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro sucesso. Daí ter Patrocínio se voltado<br />

para o romance, a fim <strong>de</strong> conquistar uma posição que lhe garantisse um lugar<br />

<strong>de</strong> relevo <strong>de</strong>ntre os mestres <strong>da</strong> ficção no Brasil <strong>da</strong> época.<br />

O primeiro romance <strong>de</strong> Patrocínio foi Mota Coqueiro ou a Pena <strong>de</strong> Morte. Oenredo:<br />

a con<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> um suspeito <strong>de</strong> crime. Executado, verificou-se que era<br />

um inocente. Patrocínio <strong>de</strong>veria ter dividido com outros re<strong>da</strong>tores a re<strong>da</strong>ção<br />

do romance. Mas como se saiu admiravelmente bem, seus colegas o <strong>de</strong>ixaram<br />

sozinho para, sozinho, colher os louvores <strong>de</strong> uma vitória na imprensa e na crítica<br />

que se fazia na época.<br />

120


O gran<strong>de</strong> José do Patrocínio<br />

Conquista<strong>da</strong> a simpatia <strong>da</strong> imprensa e <strong>dos</strong> críticos, Patrocínio escreveu Pedro<br />

Espanhol, que alcançou igual sucesso, pois o nome do autor já estava feito na<br />

crítica contemporânea. Depois, o seu maior romance, provavelmente, um <strong>dos</strong><br />

que resistiram ao tempo e po<strong>de</strong> ser lido hoje com proveito. Trata-se <strong>de</strong> Os retirantes,<br />

escrito em 1879, quando <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> seca do Ceará, seca tão violenta que<br />

até mesmo levou o gran<strong>de</strong> poeta português Guerra Junqueiro a <strong>de</strong>dicar-lhe um<br />

poema, “A seca do Ceará”, em que ele fala <strong>da</strong> can<strong>de</strong>nte abóba<strong>da</strong> <strong>de</strong> um forno.<br />

Patrocínio exce<strong>de</strong>u-se nas páginas, mas o número <strong>de</strong>las não impediu o seu<br />

êxito, e a crítica não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> elogiá-lo, embora se referisse à extensão <strong>de</strong> seu<br />

número <strong>de</strong> páginas. Patrocínio aproveitava-se <strong>de</strong>ssa posição, alcança<strong>da</strong> com o<br />

seu talento, para acudir aos interesses <strong>de</strong> seus irmãos <strong>de</strong> raça, à abolição.<br />

Deu-se inteiro à campanha nas suas várias fases. Em 1888, saiu-se vencedor.<br />

A eloqüência do tribuno, que ele veio a ser, do escritor, que ele era, do jornalista,<br />

comentarista <strong>dos</strong> fatos cotidianos, sobretudo <strong>da</strong> política, o seu mister.<br />

Patrocínio elevou-se acima do nível <strong>dos</strong> homens <strong>de</strong> seu tempo, formando na<br />

classe <strong>dos</strong> homens <strong>de</strong> pensamento, do que, em nossos dias <strong>de</strong>nominamos, fazedores<br />

<strong>de</strong> opinião. Era isto o que distinguia Patrocínio <strong>dos</strong> <strong>de</strong>mais companheiros,<br />

com a exceção <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s figuras <strong>de</strong> seu tempo, <strong>de</strong>ntre elas as <strong>de</strong> Rui<br />

e Joaquim Nabuco, este que já <strong>de</strong>spontava e se elevava como um <strong>dos</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

nomes do nosso liberalismo e do pensamento nacional.<br />

Patrocínio era dotado <strong>de</strong> rara eloqüência, e como falava sobre a Abolição<br />

sua eloqüência como que se robustecia, e os auditórios aos quais ele se dirigia<br />

empolgavam-se, voltando-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, contra a escravidão. Foi com esse<br />

nome <strong>de</strong> eloqüente, <strong>de</strong> orador fulgurante, <strong>de</strong> apóstolo <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> causa,<br />

contra a qual se opunham milhares <strong>de</strong> brasileiros, com interesses econômicos<br />

vincula<strong>dos</strong> à escravidão, que entrou para a História. José do Patrocínio <strong>de</strong>monstrou<br />

estar possuído <strong>de</strong> um fogo sagrado, não lhe importando mesmo a<br />

vi<strong>da</strong>, pois que a ameaça po<strong>de</strong>ria sair <strong>de</strong> alguma obscura fazen<strong>da</strong> do Nor<strong>de</strong>ste,<br />

ou do interior <strong>de</strong> mina <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong> Minas Gerais, ou do bolso <strong>de</strong> um pagante <strong>de</strong><br />

matador profissional, numa época <strong>de</strong> justiça próxima apenas <strong>dos</strong> gran<strong>de</strong>s centros,<br />

e eliminá-lo.<br />

121


João <strong>de</strong> Scantimburgo<br />

Mas Patrocínio nem cogitava que po<strong>de</strong>riam lhe tirar a vi<strong>da</strong>. Até mesmo se<br />

<strong>da</strong>va conta que sua vi<strong>da</strong>, abati<strong>da</strong> por um sicário, valeria mais para a causa <strong>da</strong><br />

Abolição do que em luta para alcançar o seu i<strong>de</strong>al, que era a libertação <strong>de</strong> seus<br />

irmãos <strong>de</strong> raça e <strong>de</strong> cor. Num poema famoso e formoso, citado por Mário <strong>de</strong><br />

Alencar no seu discurso <strong>de</strong> posse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, <strong>de</strong>ixou Patrocínio expressa na<br />

causa por que se batia, as lágrimas <strong>de</strong> seu coração <strong>de</strong> combatente pela invectiva<br />

contra a <strong>da</strong> Abolição:<br />

E levantam-se mu<strong>dos</strong>, taciturnos,<br />

Os mártires sombrios <strong>da</strong> avareza.<br />

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .<br />

E vão postar-se em quietação <strong>de</strong> estátuas<br />

Ante o feitor, submissos, alinha<strong>dos</strong>;<br />

Os cães po<strong>de</strong>m, latir ante os seus donos<br />

Mas eles <strong>de</strong>vem estar sempre cala<strong>dos</strong>.<br />

Eis a revista! Um ato <strong>de</strong> miséria,<br />

De escárnio e <strong>de</strong> vileza acerbo misto,<br />

E que termina o escravo murmurando<br />

Junto ao senhor: louvado seja o Cristo.<br />

Louvado seja o Cristo! – mas Seus lábios<br />

Ensinavam doçura e pie<strong>da</strong><strong>de</strong>;<br />

Não man<strong>da</strong>vam que o déspota chumbasse<br />

Uma grilheta aos pés <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Louvado seja o Cristo! – mas nas sombras<br />

Daquela angústia longa e sobre-humana<br />

Irisava-se um arco <strong>de</strong> aliança<br />

Por todo o céu <strong>da</strong> consciência humana.<br />

122


Louvado seja o Cristo! – Ele era doce<br />

Como aos domingos o romper <strong>da</strong> aurora;<br />

Escravo! Não é ele quem sustenta<br />

O homem torpe e vil que vos explora?<br />

Quando se há <strong>de</strong> curar essa medonha<br />

Chega hedion<strong>da</strong> e fatal do cativeiro;<br />

E há <strong>de</strong> o trabalho sacudir os braços<br />

Lançando <strong>dos</strong> grilhões os estilhaços<br />

Longe <strong>dos</strong> céus formosos do Cruzeiro?!<br />

O gran<strong>de</strong> José do Patrocínio<br />

José do Patrocínio, o Zé do Pato, como carinhosamente o chamavam seus<br />

amigos <strong>da</strong>s letras e do jornalismo, foi um rugido que ecoou pelo Brasil inteiro,<br />

abalando a escravidão. Era um letrado, que se fizera por si mesmo, que apren<strong>de</strong>ra<br />

com sacrifício, que se formara farmacêutico com os maiores esforços pessoais<br />

e econômicos, pois que era pobre, e como letrado fez reboar pelo Brasil a<br />

sua voz tonitruante, que, finalmente, ajudou a mover montanhas, as montanhas<br />

<strong>da</strong> opressão, <strong>da</strong> insensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>dos</strong> interessa<strong>dos</strong> no eito <strong>dos</strong> escravos, e<br />

não os queiram alforria<strong>dos</strong>, pois que se veriam <strong>de</strong>sfalca<strong>dos</strong> do valor <strong>de</strong>ssa força<br />

humana, que <strong>de</strong>veria ser livre, como livres vieram a ser os escravos americanos,<br />

pela Guerra Civil, que fez <strong>de</strong> Lincoln o herói nacional, a maior figura <strong>da</strong> história<br />

<strong>dos</strong> Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong>.<br />

A vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> José do Patrocínio não teve lances heróicos. Não se po<strong>de</strong> comparar<br />

com os heróis <strong>da</strong> Guerra do Paraguai, ou com gran<strong>de</strong>s vozes, ricas economicamente<br />

e ricas <strong>de</strong> amor à pátria, como a <strong>de</strong> Rui e <strong>de</strong> Joaquim Nabuco. Não se lhe<br />

po<strong>de</strong> comparar Machado <strong>de</strong> Assis, mestiço, portanto, <strong>de</strong> origem africana, como<br />

o fogoso Patrocínio, mas o nosso gran<strong>de</strong> combatente, o nosso orador <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />

recursos oratórios, o nosso combatente <strong>da</strong> justa causa <strong>da</strong> Abolição foi um <strong>dos</strong><br />

nomes que ficaram na História do Brasil, para edificação <strong>da</strong>s gerações vindouras,<br />

e fez mais do que o Zumbi, por ter se exposto, <strong>de</strong> peito aberto, contra<br />

eventuais assassinos, <strong>de</strong> pena afia<strong>da</strong>, como os mais corajosos combatentes <strong>da</strong><br />

123


João <strong>de</strong> Scantimburgo<br />

imprensa, como os pobres que se erguem acima <strong>dos</strong> ricos, enfrentam o po<strong>de</strong>rio<br />

<strong>da</strong> fortuna, e acabam vencendo quando justa é a causa que abraçaram.<br />

José do Patrocínio viveu pobre, mas com meios suficientes para se manter<br />

<strong>de</strong>centemente. Nos seus últimos dias na Terra, empobreceu mais, e já não tinha<br />

com que se manter, senão com o apoio <strong>de</strong> alguns amigos e com os jornais<br />

para os quais escrevia, a fim <strong>de</strong> obter algum dinheiro, com que se alimentava e<br />

se vestia pobremente, não raro próximo <strong>da</strong> indigência.<br />

Concluindo, tenho a maior satisfação em proclamar aqui José do Patrocínio<br />

um <strong>dos</strong> maiores brasileiros <strong>de</strong> seu tempo, um gran<strong>de</strong> compatriota nosso,<br />

que teve uma vi<strong>da</strong> aventurosa, inteiramente <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> às gran<strong>de</strong>s causas, a<br />

maior <strong>da</strong>s quais a Abolição. Bendito seja o nome <strong>de</strong> José do Patrocínio.<br />

124


Patrocínio: Um<br />

jornalista na Abolição<br />

Murilo Melo Filho<br />

Desejo que minhas primeiras palavras sejam do maior e do<br />

mais sincero agra<strong>de</strong>cimento ao Acadêmico Ivan Junqueira,<br />

pelo honroso convite para fazer hoje, aqui, esta alinhava<strong>da</strong> palestra<br />

sobre José do Patrocínio, na celebração do sesquicentenário do seu<br />

nascimento, que se completará no dia 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong>ste ano, e no<br />

prosseguimento <strong>de</strong> um <strong>Ciclo</strong> <strong>de</strong> Conferências sobre os <strong>Fun<strong>da</strong>dores</strong><br />

<strong>de</strong>sta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Agra<strong>de</strong>ço também as generosas palavras do Acadêmico<br />

Ivan Junqueira, com as quais aqui fui apresentado, e que me<br />

emocionaram profun<strong>da</strong>mente.<br />

<br />

João Carlos Monteiro era o nome <strong>de</strong> um vigário <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Campos <strong>dos</strong> Goitacazes, no Norte Fluminense, <strong>de</strong>bruça<strong>da</strong> à margem<br />

direita do rio Paraíba, famosa pela sua goiaba<strong>da</strong> e pela sua cana-<strong>de</strong>-açúcar.<br />

Conferência<br />

proferi<strong>da</strong> na<br />

<strong>ABL</strong>, a 8 <strong>de</strong> abril<br />

<strong>de</strong> 2003, durante<br />

o ciclo <strong>Fun<strong>da</strong>dores</strong><br />

<strong>da</strong> <strong>ABL</strong>.


Murilo Melo Filho<br />

João Carlos formara-se em Direito pela Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra, era vereador<br />

<strong>de</strong> sua Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Campos e já fora promovido a cônego.<br />

Naquele tempo, a Igreja Católica permitia que seus clérigos fossem maçons<br />

e João Carlos era o Venerável <strong>da</strong> Loja “Firme União”, coabitando as suas funções<br />

<strong>de</strong> pastor <strong>da</strong>s almas com os prazeres <strong>de</strong> duas mesas: a <strong>dos</strong> jogos <strong>de</strong> azar e a<br />

<strong>dos</strong> banquetes gastronômicos.<br />

Elegera-se <strong>de</strong>putado provincial, sendo também um fazen<strong>de</strong>iro e senhor <strong>de</strong> 92<br />

escravos, que ele havia “reescravizado” como “africanos livres”. Ele já tinha 54<br />

anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> quando se enfeitiçou por uma negrinha, <strong>de</strong> 13 anos, chama<strong>da</strong> Justina<br />

Maria, que engravidou e que, no dia 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1853 – há 150 anos, portanto<br />

– <strong>de</strong>u à luz um bebê, com o nome <strong>de</strong> José Carlos do Patrocínio, batizado no<br />

dia 8 <strong>de</strong> novembro, <strong>de</strong>dicado ao Patrocínio <strong>da</strong> Virgem Santíssima, e que era mais<br />

um fluminense, conterrâneo aqui do Acadêmico Marcos Almir Ma<strong>de</strong>ira.<br />

Na “ro<strong>da</strong> <strong>dos</strong> expostos”<br />

Filho <strong>da</strong> escrava Justina Maria e do padre João Carlos Monteiro, Patrocínio<br />

propriamente não nasceu, porque, segundo informa o poeta campista Antônio<br />

Roberto Fernan<strong>de</strong>s, diretor <strong>da</strong> Biblioteca Municipal Nilo Peçanha, simplesmente<br />

foi “exposto” numa janela do Hospital <strong>da</strong> Santa Casa <strong>de</strong> Misericórdia,<br />

na época situa<strong>da</strong> à Praça <strong>da</strong>s Quatro Jorna<strong>da</strong>s, <strong>de</strong> Campos.<br />

Na cala<strong>da</strong> <strong>da</strong> noite, ele foi <strong>de</strong>positado no peitoril <strong>da</strong> janela e empurrado <strong>de</strong><br />

modo a que ela girasse em torno <strong>de</strong> um eixo central, num movimento que chamava<br />

a atenção <strong>da</strong> enfermeira <strong>de</strong> plantão. Foi então recolhido, medicado e<br />

abrigado, até que aparecesse alguém – neste caso a sua própria mãe – para o<br />

adotar. Aquela “ro<strong>da</strong> <strong>dos</strong> expostos” tinha sido um recurso adotado para que<br />

não se tornasse pública a sua origem incestuosa.<br />

Filho <strong>de</strong> uma união tão ilícita, tão incomum e criado numa senzala, Patrocínio<br />

muito cedo se revoltou contra os açoites impostos pelo padrasto aos seus<br />

irmãos negros.<br />

126


Sua mãe, Justina, já não era mais a preferi<strong>da</strong> do Cônego João Carlos. E José<br />

do Patrocínio – o Zeca – sofria com aquela discriminação, que levara sua mãe<br />

a transformar-se numa quitan<strong>de</strong>ira, envolvi<strong>da</strong> com o comércio <strong>de</strong> frutas e <strong>de</strong><br />

legumes.<br />

Aos 15 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, o menino Patrocínio não se conformava com as humilhações<br />

sofri<strong>da</strong>s pela sua mãe, na quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mais uma <strong>da</strong>s muitas amásias<br />

do seu padrasto poligâmico, que sequer o havia reconhecido como filho.<br />

Aquele era um lar sem afeição, simplesmente insuportável, sob o guante <strong>de</strong><br />

um vigário impulsivo e violento.<br />

Certo dia, o menino confessou a Justina Maria:<br />

– Mãe, quero ir embora <strong>da</strong>qui. Não agüento mais vê-la tão submissa, tão insulta<strong>da</strong><br />

e tão ofendi<strong>da</strong> justamente por uma <strong>da</strong>s outras amantes <strong>de</strong> João Carlos<br />

Monteiro.<br />

To<strong>dos</strong> quantos, algum dia, tiveram também <strong>de</strong> romper com suas famílias e<br />

suas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, para irem em busca <strong>de</strong> um lugar ao sol, como <strong>de</strong>ve ter acontecido<br />

com alguns aqui presentes, po<strong>de</strong>m imaginar facilmente o impacto causado na<br />

cabeça <strong>de</strong> Justina Maria, com aquela separação.<br />

Afinal <strong>de</strong> contas, o jovem Patrocínio era uma <strong>da</strong>s poucas enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s que ain<strong>da</strong><br />

lhe prendia à vi<strong>da</strong>. Seria muito duro e difícil para ela privar-se <strong>de</strong>le e ficar<br />

<strong>de</strong>sampara<strong>da</strong> na solidão do seu cativeiro. Ia perdê-lo, mas resignava-se por ver<br />

que aquela <strong>de</strong>cisão do filho era certa e lógica.<br />

Fugindo <strong>de</strong> campos<br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

Patrocínio fugiu <strong>de</strong> Campos e veio para o Rio. Empregou-se na Santa Casa<br />

<strong>de</strong> Misericórdia, aqui bem perto, na Rua Santa Luzia, trabalhando na sua farmácia,<br />

como aprendiz e como servente, a braços com remédios e purgantes e,<br />

na enfermaria, como aju<strong>da</strong>nte, às voltas com cadáveres pobres e indigentes.<br />

Vai trabalhar no jornal ARepública, <strong>de</strong> Salvador <strong>de</strong> Mendonça, o fun<strong>da</strong>dor,<br />

nesta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, <strong>da</strong> minha Ca<strong>de</strong>ira n o 20, que acabara <strong>de</strong> publicar o “Manifesto<br />

Republicano”, <strong>de</strong> Quintino Bocaiúva. E na Gazeta <strong>de</strong> Notícias, on<strong>de</strong> faz sua es-<br />

127


Murilo Melo Filho<br />

tréia como o gran<strong>de</strong> e admirável jornalista que viria a ser pelos anos afora. Publica<br />

também seus primeiros versos, contra a inauguração <strong>de</strong> uma estátua <strong>de</strong><br />

bronze, em homenagem ao Imperador:<br />

Aí vês, oh! nefando aviltamento,<br />

De um <strong>de</strong>spotismo cruento.<br />

Neste solo americano,<br />

Nas abas do régio bronze,<br />

Ou seja, escárnio ao invés,<br />

Os escravos curvos aos seus pés,<br />

Aos pés dum rei, dum tirano.<br />

Patrocínio é aí amparado por João Vilanova e pelo Capitão Emiliano Rosa<br />

<strong>de</strong> Sena, que o convi<strong>da</strong> para morar em sua casa e para ser o instrutor <strong>de</strong> suas filhas,<br />

uma <strong>da</strong>s quais, Maria Henriqueta, viria a ser justamente sua mulher e<br />

companheira pelo resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Na Gazeta <strong>de</strong> Notícias, começa a escrever artigos políticos, já pregando o abolicionismo<br />

e usando o pseudônimo <strong>de</strong> “Proudhomme”, em homenagem a Pierre-Joseph<br />

Proudhom, o pai do anarquismo.<br />

Era a época em que Manuel Antônio <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> começava a publicar os capítulos<br />

do seu Memórias <strong>de</strong> um Sargento <strong>de</strong> Milícias e José <strong>de</strong> Alencar fazia o mesmo<br />

com o seu O Guarani.<br />

O primeiro livro<br />

Nesse meio tempo, um fazen<strong>de</strong>iro rico, Mota Coqueiro, e mais três capatazes<br />

<strong>da</strong> região <strong>de</strong> Campos, eram executa<strong>dos</strong> com a pena <strong>de</strong> morte, sob a acusação<br />

<strong>de</strong> terem assassinado uma família humil<strong>de</strong> do local. Um ano <strong>de</strong>pois, Patrocínio<br />

recebe a carta <strong>de</strong> um padre que, às vésperas <strong>de</strong> morrer, escuta a confissão<br />

<strong>de</strong> um lavrador, assumindo a autoria do crime.<br />

128


Uma on<strong>da</strong> <strong>de</strong> protestos e <strong>de</strong> revolta toma conta do Rio e Patrocínio aproveita<br />

a história para publicar em capítulos o seu primeiro livro: Mota Coqueiro e a<br />

pena <strong>de</strong> morte.<br />

Pela Gazeta <strong>de</strong> Notícias, vai ao Ceará e, em can<strong>de</strong>ntes reportagens, narra o drama<br />

<strong>da</strong> seca que assolou o Nor<strong>de</strong>ste em 1877, com Pedro II <strong>de</strong>clarando que as<br />

jóias <strong>da</strong> Coroa <strong>de</strong>viam ser vendi<strong>da</strong>s, contanto que nenhum cearense morresse<br />

<strong>de</strong> fome – um assunto, aliás, que hoje, mais <strong>de</strong> 100 anos <strong>de</strong>pois – continua<br />

atualíssimo e <strong>de</strong>safiante.<br />

Durante quatro meses, Patrocínio convive com os flagela<strong>dos</strong>, sua miséria,<br />

pobreza, doenças, falta d’água, abandono, prostituição e morte.<br />

Voltando <strong>de</strong> lá, escreve Os retirantes, que, localizado no Nor<strong>de</strong>ste, tem um<br />

padre como seu personagem central: um padre <strong>de</strong>vasso e <strong>de</strong>sonesto, que não<br />

era outro senão o próprio Cônego Monteiro, pai <strong>de</strong> Patrocínio.<br />

Esse Os Retirantes é o nosso primeiro livro sobre o drama <strong>da</strong>s secas, precursor<br />

e pioneiro do romance regionalista do Nor<strong>de</strong>ste, assim sau<strong>da</strong>do pelo crítico e<br />

Acadêmico Araripe Júnior: “O Autor <strong>de</strong> Os retirantes é um escritor apaixonado,<br />

que chora e se sensibiliza quando escreve e que se exalta e se enfurece quando<br />

fala.”<br />

Já fazia <strong>de</strong>z anos que Patrocínio estava longe <strong>de</strong> sua mãe e <strong>de</strong>dica-lhe um<br />

poema:<br />

Como outrora, ligou-se à minha infância,<br />

Liguei também a ti a moci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

Não pela glória, que não tive nunca,<br />

Mas pelo coração, pela sau<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Patrocínio não nutria os mesmos sentimentos pelo padrasto, e escreve a poesia<br />

“O Padre”:<br />

É preciso lançar por terra esse espantalho<br />

Que se diz intérprete divino.<br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

129


Murilo Melo Filho<br />

E, sob a máscara <strong>de</strong> moral austera,<br />

Escon<strong>de</strong> a negra vocação do abutre<br />

E os instintos sangrentos <strong>da</strong> pantera.<br />

<br />

Patrocínio já era aí um corajoso jornalista, um panfletário, engolfado nas<br />

campanhas contra a escravatura e a favor <strong>da</strong> República.<br />

Casa-se com Maria Henriqueta, a Bibi, que tinha sido sua aluna, uma jovem<br />

branca e bonita, <strong>de</strong>z anos mais moça do que ele.<br />

O jornalista Apulcro <strong>de</strong> Castro, <strong>de</strong> péssima reputação, não perdoa Patrocínio.<br />

E escreve em O Corsário:<br />

“Casou-se o preto cínico <strong>da</strong> Gazeta e está muito ancho o manganão. Mas,<br />

com quem ele foi casar-se? Procurou por acaso fazer a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma pretinha,<br />

sua parenta? Escolheu uma <strong>da</strong>ma <strong>de</strong> sua própria raça? Não. Nessa, não<br />

caiu o nosso moleque, um espertalhão, um negrinho que quis por força uma<br />

noiva, <strong>de</strong>ngosa, alva e branca.”<br />

No Ceará, novamente<br />

Ao Ceará, on<strong>de</strong> estivera anos antes, testemunhando a tragédia <strong>da</strong> seca, voltaria<br />

<strong>de</strong>pois, já então alcunhado <strong>de</strong> “Marechal Negro”, para soli<strong>da</strong>rizar-se com<br />

os bravos janga<strong>de</strong>iros cearenses, que, sob a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Chico <strong>da</strong> Matil<strong>de</strong>, haviam<br />

bloqueado o porto <strong>de</strong> Fortaleza ao <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> qualquer navio negreiro.<br />

Vai à Europa, explicando sua ausência <strong>da</strong> campanha abolicionista pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> conseguir informações e documentos para o seu folhetim Pedro<br />

Espanhol, que realmente lançaria pouco <strong>de</strong>pois, e também em busca <strong>de</strong> melhores<br />

condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Patrocínio estava em Paris, sendo homenageado por importantes<br />

intelectuais franceses, quando recebe a notícia <strong>de</strong> que a escravidão<br />

130


Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

fora aboli<strong>da</strong> no Ceará. E ali mesmo faz um apelo para que Victor Hugo apóie<br />

os abolicionistas brasileiros, recebendo <strong>de</strong>le, 48 horas <strong>de</strong>pois e por escrito, a<br />

seguinte mensagem:<br />

“Uma província brasileira acaba <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar extinta a escravatura, <strong>de</strong>sfechando<br />

nela um golpe <strong>de</strong>cisivo. Esta é uma gran<strong>de</strong> notícia. Porque, antes do<br />

fim <strong>de</strong>ste século, a escravatura terá <strong>de</strong>saparecido sobre a face <strong>da</strong> Terra.”<br />

No auge <strong>da</strong> populari<strong>da</strong><strong>de</strong>, Patrocínio resolve visitar Campos. E aí é sau<strong>da</strong>do<br />

por um combativo orador local, muito popular e <strong>de</strong> muito sucesso, chamado<br />

Carlos <strong>de</strong> Lacer<strong>da</strong> – (que pelo nome não se perca) – um homônimo e antecessor<br />

do futuro lutador e lí<strong>de</strong>r Deputado <strong>da</strong> Ban<strong>da</strong> <strong>de</strong> Música u<strong>de</strong>nista, companheiro<br />

aqui, do nosso estimado Acadêmico Oscar Dias Corrêa.<br />

Aí em Campos, Patrocínio experimenta uma <strong>da</strong>s maiores emoções <strong>de</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong>. Tinha 32 anos e estava afastado há 17 anos <strong>dos</strong> seus conterrâneos. Durante<br />

um gran<strong>de</strong> jantar que lhe foi oferecido, o mestre-<strong>de</strong>-cerimônias chamou<br />

para presidir a mesa uma escrava <strong>de</strong> nome Justina Maria, justamente sua mãe,<br />

com a qual ele se reencontra, em meio a muitos beijos e muitas lágrimas.<br />

Justina já estava sofrendo as dores <strong>de</strong> um quisto surgido quando ain<strong>da</strong> era<br />

jovem. Trazi<strong>da</strong> pelo filho para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, interna-se na Santa Casa <strong>de</strong><br />

Misericórdia, em cuja farmácia, Patrocínio, aos 14 anos, tivera, como já vimos,<br />

o seu primeiro emprego.<br />

É então opera<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele quisto, já então transformado num perigoso tumor<br />

cancerígeno, do qual viria a falecer, cinco meses <strong>de</strong>pois. Mas, pouco antes<br />

<strong>de</strong> morrer, Justina Maria ain<strong>da</strong> tem chance <strong>de</strong> embalar nos braços o seu neto:<br />

José do Patrocínio Filho, recém-nascido, e que mais tar<strong>de</strong> seria também um teatrólogo<br />

e um razoável cronista (meio boêmio).<br />

Aquela escrava, humilha<strong>da</strong> e repudia<strong>da</strong> pelo Cônego João Carlos Monteiro,<br />

teve no seu enterro a presença <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s homens, correligionários do seu filho:<br />

Campos Sales, Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Morais, Olavo Bilac, Coelho Neto, Rui Bar-<br />

131


Murilo Melo Filho<br />

bosa, Joaquim Nabuco, Olegário e José Mariano, Aristi<strong>de</strong>s Espínola, Lopes<br />

Trovão, Paula Ney e André Rebouças.<br />

A morte e o enterro <strong>de</strong> Justina abalam Patrocínio, mas não o fazem <strong>de</strong>sistir<br />

<strong>da</strong> luta. Afinal, sua mãe não vira em vi<strong>da</strong> o fim <strong>da</strong> escravatura, mas muitas outras<br />

mães não morreriam sem assistir à sua Abolição.<br />

A abolição, em ascensão<br />

A seguir, Patrocínio elege-se vereador <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro, conquistando<br />

uma nova tribuna para a sua pregação abolicionista, que, por sinal,<br />

naqueles primeiros dias <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1888, atravessa uma fase <strong>de</strong> crescente expansão.<br />

Fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> São Paulo e <strong>de</strong> Minas, até então conheci<strong>dos</strong> por suas arraiga<strong>da</strong>s<br />

convicções escravagistas, começam a alforriar seus negros.<br />

Multiplicam-se os casos <strong>de</strong> escravos fugitivos, logo recolhi<strong>dos</strong> e protegi<strong>dos</strong><br />

em locais seguros.<br />

Já enfermo, Dom Pedro II embarca para a Europa, em busca <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>ixa<br />

no trono sua filha, a Regente Isabel, aconselhando-a no embarque: “Faça a<br />

Abolição, antes que algum aventureiro a faça.”<br />

Na Gazeta <strong>de</strong> Notícias, Patrocínio escreve:<br />

“A escravidão é um roubo. E todo dono <strong>de</strong> escravo é um ladrão. Elaéonosso<br />

opróbrio, que o Brasil simplesmente não merece.<br />

O mais <strong>de</strong>pressa possível, <strong>de</strong>vemos varrê-la do nosso cenário.<br />

Não há liber<strong>da</strong><strong>de</strong> nem in<strong>de</strong>pendência em uma terra com 1 milhão e 500 mil<br />

escravos. De que valerá a pena instalarmos uma República numa pátria <strong>de</strong> tantos<br />

cativos?”<br />

As len<strong>da</strong>s brasileiras sobre negros já eram aí enriqueci<strong>da</strong>s pelo heroísmo <strong>de</strong><br />

Henrique Dias contra os holan<strong>de</strong>ses, em Pernambuco; por Zumbi <strong>dos</strong> Palma-<br />

132


es, em Alagoas; pelo Quilombo Arraial <strong>dos</strong> Crioulos, em Minas; pelo esplendor<br />

<strong>de</strong> Chica <strong>da</strong> Silva, no Arraial do Tijuco; pela resistência <strong>de</strong> Antônio Conselheiro<br />

na epopéia <strong>de</strong> Canu<strong>dos</strong>, na Bahia; e pela tradição <strong>de</strong> “Negrinho do<br />

Pastoreio”, no Rio Gran<strong>de</strong> do Sul.<br />

O abolicionismo passou então por duas fases bem distintas: uma até 1879,<br />

romântica, i<strong>de</strong>alista, teórica, reflexiva; e outra, até 1888, bem mais prática, objetiva,<br />

com os pés no chão.<br />

Fun<strong>da</strong>-se aí a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>Brasileira</strong> contra a Escravidão, com duas alas bastante<br />

<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s: A primeira: aristocrática, forma<strong>da</strong> por Nabuco, no Parlamento,<br />

com apoio <strong>de</strong> Joaquim Serra, André Rebouças, Coelho Neto, Luís Murat,<br />

Raul Pompéia e outros intelectuais cultos e refina<strong>dos</strong>, meio filósofos e teóricos.<br />

A segun<strong>da</strong>: popular, constituí<strong>da</strong> por Patrocínio, na rua e no meio do povo,<br />

com Lopes Trovão, Luís Gama, Paula Ney, Par<strong>da</strong>l Mallet, Ferreira <strong>de</strong> Menezes,<br />

e outros lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong> ação prática e extrema<strong>da</strong>, tribunos populares, que se alimentavam<br />

na reação <strong>dos</strong> comícios.<br />

Uma oratória diferente<br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

Ao revés <strong>de</strong> Nabuco, a oratória <strong>de</strong> Patrocínio na<strong>da</strong> tinha <strong>de</strong> elegante. Pelo<br />

contrário: não seguia os mo<strong>de</strong>los clássicos, não fora educa<strong>da</strong> pela Retórica, era<br />

<strong>de</strong>sengonça<strong>da</strong> e feia, bamboleante, <strong>de</strong> gestos <strong>de</strong>scoor<strong>de</strong>na<strong>dos</strong>. Mas, compensava<br />

esse <strong>de</strong>sacerto com uma emoção que emanava <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong>quele negro baixo,<br />

grosso, rechonchudo, quase calvo – <strong>de</strong> barba espessa e cerra<strong>da</strong>, no figurino<br />

<strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar e <strong>de</strong> Alcindo Guanabara, uma barba pre<strong>de</strong>cessora <strong>da</strong> <strong>de</strong> Fi<strong>de</strong>l<br />

Castro e do nosso Lula – com um turbilhão <strong>de</strong> frases curtas e contun<strong>de</strong>ntes,<br />

que falavam <strong>de</strong> perto aos corações e às mentes <strong>de</strong> um público vibrátil a<br />

ca<strong>da</strong> frase sua.<br />

Dir-se-ia uma centelha que se acendia e que inflamava. As palavras jorravam<br />

como se estivessem num turbilhão, em catadupas, <strong>de</strong> uma cachoeira, com uma esplêndi<strong>da</strong><br />

facul<strong>da</strong><strong>de</strong> criadora, imagens improvisa<strong>da</strong>s e comparações imprevistas.<br />

133


Murilo Melo Filho<br />

O Acadêmico Olavo Bilac confessa que nunca esquecerá aquela cabeça que<br />

assomava à tribuna, transfigura<strong>da</strong> e olímpica, parecendo crescer, inchar, dilatar-se,<br />

num torvelinho <strong>de</strong> rompantes geniais.<br />

Essas imagens brotavam do fundo <strong>de</strong> sua alma, espontâneas e repentinas,<br />

que captavam o auditório, mudo e quedo, submisso e silencioso, perplexo e <strong>de</strong><br />

respiração suspensa, num estado <strong>de</strong> êxtase, como se estivesse bebendo ca<strong>da</strong><br />

uma <strong>de</strong> suas palavras.<br />

Os epítetos e as metáforas brotavam em cintilações <strong>de</strong> fulgores e <strong>de</strong> relâmpagos.<br />

As multidões prostravam-se aos seus pés, dóceis e obedientes, doma<strong>da</strong>s, diante<br />

<strong>da</strong>quele Deus <strong>de</strong> ébano.<br />

Era um tumulto feito homem, como bem <strong>de</strong>finiu o Acadêmico Araripe Júnior,<br />

um orador diferente, um misto <strong>de</strong> Cícero, Mirabeau, Danton, Lincoln e Robespierre,<br />

que parecia estar num palco, como um ator, representando um personagem<br />

importante, que no fundo era ele mesmo. Recor<strong>da</strong> o Acadêmico Coelho Neto:<br />

“Quem uma vez o viu na tribuna, guar<strong>da</strong>, por certo, na lembrança, a imagem<br />

<strong>de</strong> uma estranha figura semibárbara, quase grotesca. Não era um tribuno<br />

<strong>de</strong> escola, disciplinado e or<strong>de</strong>iro.<br />

O seu discurso não tinha melodia: era um silvo ou um rugido. O seu gesto<br />

era <strong>de</strong>sconexo. O seu olhar <strong>de</strong>spendia fagulhas. Avançava, recuava, girava, retraía-se,<br />

ficava na ponta <strong>dos</strong> pés e <strong>de</strong>spejava as suas bombas.”<br />

Há poucos minutos, o Acadêmico Marcos Almir Ma<strong>de</strong>ira contou-me que<br />

Coelho Neto <strong>de</strong>finia Patrocínio como “um <strong>de</strong>smantelo <strong>de</strong> tormenta”.<br />

<br />

A batalha pela Abolição <strong>da</strong> Escravatura já tinha mais <strong>de</strong> meio século e se iniciara<br />

antes mesmo <strong>de</strong> Patrocínio nascer.<br />

134


Retrato <strong>de</strong> José do Patrocínio<br />

Desenho: anônimo, s.d.<br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

Retrato <strong>de</strong> José do Patrocínio na juventu<strong>de</strong>.<br />

Desenho: anônimo, c. 1870.<br />

135


Murilo Melo Filho<br />

Primeiro. Ela começara no dia 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1831, com a chama<strong>da</strong><br />

“Lei Feijó”, assina<strong>da</strong> por Diogo Antônio Feijó, um sacerdote paulista, Ministro<br />

<strong>da</strong> Justiça <strong>da</strong> Regência Trina, que libertava os africanos chega<strong>dos</strong> <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong>la.<br />

Segundo. Prosseguira com a Lei Eusébio <strong>de</strong> Queirós, sanciona<strong>da</strong> em 4 <strong>de</strong><br />

setembro <strong>de</strong> 1850, que tomou o nome em homenagem ao seu Autor, nascido<br />

em Angola, Ministro <strong>da</strong> Justiça no primeiro Gabinete do Marquês <strong>de</strong> Olin<strong>da</strong> e<br />

que acabava com o tráfico <strong>dos</strong> escravos.<br />

Terceiro. Continuara com a Lei do Ventre Livre, <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong><br />

1871, apresenta<strong>da</strong> pelo Viscon<strong>de</strong> do Rio Branco e promulga<strong>da</strong> pela Princesa<br />

Isabel, então na Regência do Império, que libertava os nascituros, filhos nasci<strong>dos</strong><br />

<strong>de</strong> mãe escrava.<br />

Quarto. Seguira adiante com o Projeto Saraiva, apresentado em 13 <strong>de</strong> maio<br />

<strong>de</strong> 1885 e transformado na Lei <strong>dos</strong> Sexagenários, que tornava livres os escravos<br />

com mais <strong>de</strong> 60 anos.<br />

E quinto. Era concluí<strong>da</strong>, a seguir, com a Lei Áurea, que tomou o n o 3.353,<br />

–redigi<strong>da</strong>, apresenta<strong>da</strong>, discuti<strong>da</strong> e aprova<strong>da</strong> na Câmara e no Senado, no espaço<br />

<strong>de</strong> uma semana, apenas – para ser promulga<strong>da</strong> pela Princesa Isabel, no dia<br />

13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1888, que assim cumpria o conselho <strong>de</strong>ixado pelo seu pai e que,<br />

por completo, extinguia finalmente a escravidão no Brasil.<br />

13 <strong>de</strong> maio: dia histórico<br />

Numa crônica, Machado <strong>de</strong> Assis assim <strong>de</strong>screveu aquele 13 <strong>de</strong> maio: “Era<br />

um belo dia <strong>de</strong> sol claro e fulgurante. O povo em <strong>de</strong>lírio acorreu à Rua do Ouvidor<br />

para aclamar os lí<strong>de</strong>res <strong>da</strong> campanha pela Abolição, que apareciam na saca<strong>da</strong><br />

<strong>dos</strong> edifícios e aí recebiam os aplausos populares.”<br />

No interior do Paço Imperial, a cena fora rápi<strong>da</strong>. Em companhia do seu<br />

marido, Gaston d’Orleans, o Con<strong>de</strong> d’Eu, um francês impopular, a Princesa<br />

Isabel entra na sala, senta-se à mesa e, com letra firme – usando uma caneta <strong>de</strong><br />

ouro compra<strong>da</strong> numa subscrição popular – sanciona o projeto que ela própria<br />

remetera ao Parlamento, e que abolia para sempre a escravatura no Brasil.<br />

136


Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

Patrocínio, que entrara na sala carregado nos ombros <strong>de</strong> populares, aproxima-se<br />

<strong>da</strong> Princesa, ajoelha-se, beija-lhe as mãos e proclama:<br />

– Vossa Alteza é a queri<strong>da</strong> mãe branca <strong>dos</strong> escravos e a mãe loira <strong>dos</strong> brasileiros.<br />

Não menos emocionado, o monarquista Joaquim Nabuco chega à janela do<br />

Palácio, esforça-se para discursar, mas, com a voz embarga<strong>da</strong>, consegue apenas<br />

dizer:<br />

– Está aboli<strong>da</strong> a escravidão. Não há mais escravos no Brasil.<br />

Aplausos, flores e palmas festejam suas palavras. O povo <strong>da</strong>nçava nas ruas.<br />

E a Abolição chegava finalmente ao seu feliz <strong>de</strong>senlace, como o mais belo movimento<br />

<strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a História brasileira.<br />

Aquela conquista, que nos Esta<strong>dos</strong> Uni<strong>dos</strong> custara o preço <strong>de</strong> uma sangrenta<br />

guerra <strong>de</strong> cinco anos – a Guerra <strong>da</strong> Secessão – entre o Norte e o Sul, aqui no<br />

Brasil era obti<strong>da</strong> com risos e festas.<br />

As comemorações do triunfo não atraíam Patrocínio, nem o fascinavam.<br />

Não gostava <strong>da</strong>s vitórias, que costumam <strong>de</strong>cepar os adversários. Atingido o<br />

objetivo, preferia recolher-se.<br />

E, na companhia <strong>de</strong> Paula Ney, refugia-se na re<strong>da</strong>ção do seu jornal. Está<br />

cansado e exausto. Precisa <strong>da</strong>r um cochilo, mas é interrompido:<br />

– Está aí fora o Dr. Benjamim Constant, com um grupo <strong>de</strong> cegos do seu<br />

Instituto, para cumprimentá-lo.<br />

Mesmo a contragosto, Patrocínio man<strong>da</strong>-os entrar. E Benjamim Constant<br />

os apresenta:<br />

– Patrocínio, trouxe-lhe aqui os meus cegos. Eles também te querem ver. Muito<br />

<strong>de</strong> propósito, emprego o verbo: os meus cegos te querem ver.<br />

Patrocínio tenta agra<strong>de</strong>cer a homenagem. Gagueja algumas palavras, mas<br />

não as termina. Está comovido e começa a chorar.<br />

Benjamim Constant percebe o <strong>de</strong>sconforto <strong>da</strong> situação e explica:<br />

– Meus queri<strong>dos</strong> filhos cegos. Nem sempre as palavras conseguem exprimir<br />

o que sentimos. Chorando, este gran<strong>de</strong> homem e orador, que é José do Patrocínio,<br />

acaba <strong>de</strong> pronunciar o seu mais belo discurso. Não o vistes nem o ouvis-<br />

137


Murilo Melo Filho<br />

tes falar. Mas o vosso coração <strong>de</strong>ve tê-lo sentido. Basta <strong>de</strong> emoções. Vamos<br />

embora.<br />

E <strong>da</strong>ndo o braço a ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les, lá se foi Benjamim Constant, com os seus<br />

cegos, cortando a multidão.<br />

A libertação, em vez <strong>da</strong> coroa<br />

Dizia-se que, sancionando aquele <strong>de</strong>creto, a Princesa imaginava salvar a<br />

Monarquia, primeiro para seu pai e em segui<strong>da</strong> para ela mesma, embora o Barão<br />

<strong>de</strong> Cotegipe a tivesse advertido, poucos meses antes, <strong>de</strong> que ela po<strong>de</strong>ria ganhar<br />

a batalha <strong>da</strong> Abolição, mas seguramente per<strong>de</strong>ria a guerra <strong>da</strong> Coroa. No<br />

dia 13 <strong>de</strong> maio, quando mostrou o <strong>de</strong>creto <strong>da</strong> libertação ao Con<strong>de</strong> d’Eu, seu<br />

marido, a Regente ouviu <strong>de</strong>le o seguinte conselho:<br />

– Não assine esse papel, Princesa. Este é o fim <strong>da</strong> Monarquia. V. Alteza está<br />

per<strong>de</strong>ndo o trono.<br />

E ela respon<strong>de</strong>u com uma pergunta:<br />

– Que direito tenho eu, livre e batiza<strong>da</strong>, <strong>de</strong> permitir que meus irmãos negros<br />

continuem escraviza<strong>dos</strong>, eles que, para libertá-los, só têm a mim?<br />

Não fora à-toa, nem um mero impulso pessoal, aquele beijo <strong>de</strong> Patrocínio<br />

na mão <strong>da</strong> Princesa Isabel. Por algum tempo, triunfará nele o abolicionista,<br />

mas nele também, durante algum tempo, morrerá o republicano. Sua gratidão<br />

à Princesa era total e apaixona<strong>da</strong>, a ponto <strong>de</strong> incentivar a organização <strong>de</strong> uma<br />

Guar<strong>da</strong> Negra, constituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> ex-escravos, dispostos a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a Princesa Regente,<br />

contra tudo e contra to<strong>dos</strong>.<br />

Segundo Patrocínio, aquela Princesa <strong>de</strong> nome extenso: Isabel, Cristina, Leopoldina,<br />

Augusta, Micaela, Gabriela, Rafaela e Gonzaga <strong>de</strong> Bragança, quando<br />

assinou a Lei Áurea, já estava conforma<strong>da</strong> <strong>de</strong> que trocava o seu Império pela libertação<br />

<strong>dos</strong> escravos.<br />

138


Minhas Senhoras e meus Senhores.<br />

Peço-lhes agora licença para <strong>de</strong>screver aqui – com mais <strong>de</strong>talhes – um episódio<br />

a que o Acadêmico Ivan Junqueira se referiu, <strong>de</strong> passagem, na terça-feira<br />

<strong>da</strong> semana passa<strong>da</strong>.<br />

Eram 20 horas do dia 17 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1889. Estávamos, naquela noite, no<br />

Teatro Lucin<strong>da</strong>, aqui no Rio, quando Patrocínio se vê surpreendidoeéprovocado<br />

por outro gran<strong>de</strong> orador, Silva Jardim – que <strong>de</strong>pois morreria tragicamente<br />

na cratera do Vesúvio – e que, naquele momento, com dureza, o acusava<br />

<strong>de</strong> ser um traidor do movimento republicano, rendido aos encantos <strong>da</strong><br />

Princesa Isabel.<br />

Patrocínio estava no camarote em frente, murcho e cabisbaixo, semi<strong>de</strong>rrotado<br />

por aquela enxurra<strong>da</strong> <strong>de</strong> ataques. À certa altura, ensaiou uma resposta tími<strong>da</strong>,<br />

sem brilho e sem calor.<br />

A surpresa <strong>de</strong> um aparte<br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

Paula Ney, seu fraternal amigo, esgueirou-se <strong>de</strong> sua companhia e foi lá para<br />

o meio do povão, na platéia, <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, escondido, <strong>de</strong>sferiu um aparte:<br />

– Cala a boca, negro sem-vergonha. És o último negro vendido e sujo.<br />

Aquela interrupção feriu Patrocínio intensamente. Sem saber <strong>de</strong> on<strong>de</strong> ela<br />

vinha, cuidou <strong>de</strong> respondê-la.<br />

Já agora era a fera feri<strong>da</strong>, <strong>de</strong> olhos esbugalha<strong>dos</strong>, narinas acesas, o corpo trêmulo<br />

<strong>de</strong> indignação, que se agigantava na resposta, não apenas a Silva Jardim,<br />

mas também ao <strong>de</strong>sconhecido aparteante:<br />

“Negro, sou, sim, com muito orgulho. Deus <strong>de</strong>u-me a cor <strong>de</strong> Otelo, para<br />

que eu sempre honrasse os negros, <strong>dos</strong> quais tenho a honra <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r.<br />

Sim, sou um negro <strong>de</strong> nascimento, filho <strong>de</strong> um padre com uma escrava.<br />

Na<strong>da</strong> mais sou do que uma pessoa <strong>de</strong> três pês: preto, pobre e plebeu.”<br />

E prosseguiu com tanto brilho, que saiu do Teatro carregado em triunfo.<br />

Depois, no camarim, <strong>de</strong> acordo com relato do Acadêmico Osvaldo Orico, Patrocínio<br />

reclamou:<br />

139


Murilo Melo Filho<br />

– Eu só queria saber quem foi o patife que me atirou aquele <strong>de</strong>saforo.<br />

E Paula Ney, presente:<br />

– Fui eu, este seu criado.<br />

– Foste tu, mesmo?<br />

– Fui eu, sim. Querias então que eu assistisse, indiferente e omisso, à tua<br />

<strong>de</strong>rrota? Os amigos são mesmo para essas ocasiões.<br />

Estavas dormindo no teu discurso. Eu vibrei um raio para te acor<strong>da</strong>r. Só<br />

com os raios se <strong>de</strong>spertam os titãs.”<br />

Desterro e ostracismo<br />

Meus amigos.<br />

Acusado <strong>de</strong> monarquista, Patrocínio é esquecido na organização do Ministério<br />

republicano, que conta com seus amigos: Quintino Bocaiúva, Rui Barbosa<br />

e Benjamim Constant.<br />

A República já tinha mais <strong>de</strong> um ano. E não se lembrava do seu nome. Sobretudo<br />

os militares fecham a questão contra ele, por causa <strong>de</strong> sua fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> a<br />

Nabuco e Hilário <strong>de</strong> Gouveia, dois monarquistas radicais.<br />

Patrocínio resolve candi<strong>da</strong>tar-se à Câmara pelo 2 o Distrito do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Recebe 713 votos e é <strong>de</strong>rrotado por Timóteo <strong>da</strong> Costa.<br />

Floriano rebela-se contra Deodoro e termina conquistando o po<strong>de</strong>r, para<br />

iniciar uma implacável perseguição aos adversários.<br />

Patrocínio é <strong>de</strong>sterrado para Cucuí – lá no Alto Rio Negro – on<strong>de</strong> ele e seu<br />

grupo enfrentam doenças, febres, fome e esquecimento.<br />

Anistiado, volta ao Rio, mas não abran<strong>da</strong> o combate a Floriano, acusando-o<br />

<strong>de</strong> trair a República e reaproximando-se <strong>de</strong> velhos companheiros: Rui,<br />

Bilac, Par<strong>da</strong>l Mallet, Pru<strong>de</strong>nte, Campos Sales, Quintino e Seabra.<br />

O seu novo jornal ACi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Rio é fechado pelo governo, que o persegue e o<br />

ameaça <strong>de</strong> prisão.<br />

Com a posse <strong>de</strong> Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Morais, Patrocínio reabre o jornal, fiel aos seus<br />

i<strong>de</strong>ais republicanos, porém sem o mesmo sucesso <strong>de</strong> antes.<br />

140


Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

A fim <strong>de</strong> ocupar seu tempo, lança um projeto para construção <strong>de</strong> um balão<br />

dirigível – como aqui já narrou o Acadêmico Ivan Junqueira – cheio <strong>de</strong><br />

um gás mais leve do que o ar, e que, por isto mesmo, podia elevar-se e manter-se<br />

na atmosfera. Era uma réplica e um invento mais ou menos semelhantes<br />

ao “Pax” <strong>de</strong> Augusto Severo e ao “Demoiselle”, <strong>de</strong> Santos Dumont,<br />

que exigia investimentos pesa<strong>dos</strong> e inacessíveis ao seu bolso <strong>de</strong> jornalista<br />

<strong>de</strong>sempregado.<br />

Aprofun<strong>da</strong> seus estu<strong>dos</strong> sobre aerostática, aeronáutica, mecânica e física.<br />

Aperfeiçoa o seu projeto, consegue uma patente, mas não obtém o dinheiro<br />

necessário para executá-lo.<br />

Mais uma vez, candi<strong>da</strong>ta-se a um cargo político, agora ao Senado, na vaga<br />

<strong>de</strong>ixa<strong>da</strong> por Lopes Trovão.<br />

Tem uma plataforma socialista, <strong>de</strong> apoio às cama<strong>da</strong>s mais pobres. E novamente<br />

é <strong>de</strong>rrotado.<br />

Pela terceira vez, também, afasta-se <strong>de</strong> Rui, por causa <strong>de</strong> Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Morais:<br />

Rui, o Tartufo, contra Pru<strong>de</strong>nte; e Patrocínio, chamado <strong>de</strong> Aretino, a favor <strong>de</strong><br />

Pru<strong>de</strong>nte.<br />

Eram dois gigantes e dois ícones do jornalismo brasileiro, que se bicavam<br />

com muita facili<strong>da</strong><strong>de</strong> e que iriam hostilizar-se e reaproximar-se vezes<br />

sucessivas.<br />

Também com Carlos <strong>de</strong> Laet Patrocínio nunca teve muitas afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Viviam<br />

brigando. Certa tar<strong>de</strong>, quando os fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong>sta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> – entre os<br />

quais ele próprio – ain<strong>da</strong> se reuniam na pequena sala do escritório <strong>de</strong> Rodrigo<br />

Octavio, à Rua <strong>da</strong> Quitan<strong>da</strong> 47, Patrocínio ali chegou e só havia uma ca<strong>de</strong>ira<br />

vaga, justamente bem ao lado <strong>de</strong> Laet.<br />

Patrocínio olhou, dirigiu-se para ela, mas antes quis saber:<br />

– Afinal <strong>de</strong> contas, nós dois, hoje, estamos <strong>de</strong> bem ou estamos <strong>de</strong> mal?<br />

– Estamos <strong>de</strong> bem.<br />

– Então, posso sentar-me. Boa-tar<strong>de</strong>.<br />

141


Murilo Melo Filho<br />

A ca<strong>de</strong>ira 21<br />

José do Patrocínio foi o fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> nossa Ca<strong>de</strong>ira n o 21 – <strong>de</strong>pois chama<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> “a Ca<strong>de</strong>ira <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>” – que teve como patrono Joaquim Serra e, como<br />

sucessores, acadêmicos <strong>de</strong> direita e <strong>de</strong> esquer<strong>da</strong>, em eleições pendulares, que<br />

bem atestam a nossa índole apartidária: Mário <strong>de</strong> Alencar e Olegário Mariano,<br />

<strong>de</strong> direita; Álvaro Moreyra, <strong>de</strong> esquer<strong>da</strong>; Adonias Filho, <strong>de</strong> direita; Dias Gomes,<br />

<strong>de</strong> esquer<strong>da</strong>; Roberto Campos, <strong>de</strong> direita, até o atual ocupante, Paulo Coelho,<br />

enfim, um radical <strong>de</strong> centro.<br />

Patrocínio não foi o que hoje se chamaria propriamente <strong>de</strong> um escritor. Além<br />

<strong>dos</strong> romances Mota Coqueiro e Os retirantes e do folhetim Pedro Espanhol, não teve<br />

pretensão nem tempo <strong>de</strong> produzir uma obra literária realmente importante.<br />

Esses seus três livros estão esgotadíssimos; <strong>de</strong>les existem hoje talvez dois ou<br />

três exemplares e bem que se po<strong>de</strong>ria encontrar um editor interessado em republicá-los.<br />

Seria <strong>de</strong>sejável também que se reunissem os seus artigos publica<strong>dos</strong> nas três<br />

“Gazetas” <strong>da</strong> época: a “<strong>de</strong> Notícias”,a“<strong>da</strong> Tar<strong>de</strong>”ea“do Rio”, e se editassem os seus<br />

discursos pronuncia<strong>dos</strong> na campanha <strong>da</strong> Abolição.<br />

Os seus discursos, pronuncia<strong>dos</strong> por um <strong>dos</strong> maiores “meetingueiros” e<br />

“palanqueiros” <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a oratória brasileira, po<strong>de</strong>riam até servir como subsídios<br />

para ilustrar a nossa varia<strong>da</strong> bibliografia sobre a escravidão, que teve<br />

seus pontos altos em Castro Alves, com “Navio Negreiro” e “Vozes<br />

d’África”; em Bernardo Guimarães, com Escrava Isaura; em Machado, com o<br />

poema “Sabina”; em Artur Azevedo, com Aescrava”; em Aluísio Azevedo,<br />

com O cortiço e O mulato, passando por Júlio Ribeiro, com Acarne; por Coelho<br />

Neto, com Aconquista e O rei negro; por Luís Guimarães Júnior, com “Os escravos”;<br />

Raimundo Correia com “O banzo”; Vicente <strong>de</strong> Carvalho, com<br />

“Fugindo ao cativeiro”; até chegar a Jorge <strong>de</strong> Lima, com “Essa nega Fulô”; a<br />

Cassiano Ricardo, com “Sangue africano”; a Leonardo Mota, com “Violeiros<br />

do Norte”; a Luís <strong>da</strong> Câmara Cascudo, com Len<strong>da</strong>s brasileiras; e a Pedro<br />

Calmon, com História <strong>de</strong> Castro Alves.<br />

142


Minhas Senhoras e meus Senhores.<br />

Revoltado porque Sílvio Romero não cumprira a promessa <strong>de</strong> fazer uma<br />

conferência a favor <strong>da</strong> Abolição, Patrocínio não o <strong>de</strong>sculpa e mantém com ele<br />

uma <strong>da</strong>s mais violentas polêmicas <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a nossa literatura. Escreveu então:<br />

“Trata-se <strong>de</strong> um ‘teuto maníaco’ <strong>de</strong> Sergipe, que se chamava Sílvio Vasconcelos<br />

<strong>da</strong> Silveira Ramos, mas que <strong>de</strong>pois passou a chamar-se Sílvio Romero.<br />

Há vinte dias, encontrei-me com ele e ouvi <strong>dos</strong> seus lábios grossos e arroxea<strong>dos</strong>,<br />

apesar <strong>de</strong> arianos, a confirmação <strong>de</strong> que não fizera a conferência por ain<strong>da</strong><br />

estar doente.<br />

– Você é um miserável, um traste, um vilão muito ordinário, um pe<strong>da</strong>nte<br />

com fumaças <strong>de</strong> filósofo, um “chichisbéu” <strong>da</strong> literatura, um belchior <strong>da</strong> jurisprudência,<br />

um macaco <strong>de</strong> Tobias Barreto e um Satanás do materialismo, que<br />

se ajoelhou diante do catolicismo triunfante no Colégio Pedro II.<br />

Chamou-me ignorante, porque não tenho o hábito <strong>de</strong> an<strong>da</strong>r citando autores<br />

alemães. O que hei <strong>de</strong> discutir com o Sr. Sílvio ex-Vasconcelos <strong>da</strong> Silveira?<br />

Este é o juízo que faço a seu respeito, oh! lazarento. Está respondido.”<br />

52 anos <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong><br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

Patrocínio viveu apenas 52 anos. Atravessou to<strong>da</strong> a segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século<br />

XIX, porque, tendo nascido em 1853 – portanto, há um século e meio –<br />

morreu em 1905, sendo contemporâneo <strong>da</strong> sucessão <strong>dos</strong> vários gabinetes parlamentaristas,<br />

naquela gangorra que movimentou a maior parte do Segundo<br />

Reinado <strong>de</strong> Pedro II: os gabinetes conservadores chefia<strong>dos</strong> pelo Viscon<strong>de</strong> do<br />

Rio Branco, pelo Marquês <strong>de</strong> Olin<strong>da</strong> e pelo Duque <strong>de</strong> Caxias, sucedi<strong>dos</strong> pelos<br />

gabinetes liberais <strong>de</strong> Sinimbu, Saraiva, Lafaiete, Martinho Campos, Paranaguá,<br />

Sousa Dantas e novamente Saraiva, que <strong>de</strong>volveram o po<strong>de</strong>r aos conservadores<br />

Cotegipe e João Alfredo, culminando com o gabinete liberal <strong>de</strong> Ouro<br />

Preto, já nos estertores <strong>da</strong> monarquia parlamentarista e no advento do presi<strong>de</strong>ncialismo<br />

republicano.<br />

143


Murilo Melo Filho<br />

Quando começou o novo século, em 1901, Patrocínio tinha apenas 47<br />

anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas, já estava velho e cansado. Suas colaborações para a Gazeta<br />

do Rio eram ca<strong>da</strong> vez mais raras e esparsas.<br />

Ele já se transformara também num boêmio notívago, amante <strong>da</strong>s madruga<strong>da</strong>s<br />

e aproveitador <strong>de</strong> sua imensa populari<strong>da</strong><strong>de</strong> junto às mulheres, sobretudo as<br />

charmosas francesas <strong>de</strong> então.<br />

Enquanto Santos Dumont tem êxito em Paris com o seu “14-Bis”, o barracão<br />

<strong>de</strong> Patrocínio, no qual estava sendo construído o seu avião, aqui no Rio, é<br />

<strong>de</strong>stroçado por violenta tempesta<strong>de</strong>. O projeto do seu invento era reduzido<br />

pelo temporal a uma sucata <strong>de</strong> ferros retorci<strong>dos</strong>.<br />

Sua situação financeira é ca<strong>da</strong> vez mais grave. E mais difícil. Ven<strong>de</strong> sua casa<br />

na Rua Riachuelo, faz empréstimos, torna-se novamente um escravo, <strong>de</strong>sta<br />

vez, <strong>dos</strong> agiotas.<br />

Vai morar numa humil<strong>de</strong> casinha no Engenho <strong>de</strong> Dentro e volta a escrever,<br />

já então usando novo pseudônimo, que não era mais o Proudhome, o Zeca<br />

Pato, o Notus Ferrão, o Pax Vobis ou o Pombo Correio, mas sim Justino<br />

Monteiro, uma combinação do nome do seu padrasto João Carlos Monteiro<br />

com o <strong>de</strong> sua mãe Justina Maria. E escreveu: “Cheguei a ser um conviva <strong>da</strong> geniali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e um íntimo <strong>da</strong> realeza. Fiz-me à custa <strong>de</strong> muita luta e <strong>de</strong> muita persistência.<br />

Mas, não merecia o fim que estou tendo.”<br />

O jornal O Estado <strong>de</strong> S. Paulo faz uma campanha <strong>de</strong> donativos em seu favor,<br />

que José do Patrocínio Filho repele com uma carta altiva, dizendo que seu pai<br />

não estava precisando <strong>de</strong> esmolas.<br />

Com o assunto nos jornais, o quitan<strong>de</strong>iro suspen<strong>de</strong>u o fornecimento <strong>de</strong> frutas<br />

e o farmacêutico já não mais lhe fiava os remédios.<br />

A saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> mal a pior<br />

Seu estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> vai <strong>de</strong> mal a pior. Uma tuberculose, que há mais <strong>de</strong> um<br />

ano e meio se instalara em seus pulmões, agrava-se por uma vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sregra<strong>da</strong> e<br />

extravagante e o torna fraco, magro e anêmico.<br />

144


Minhas Senhoras e meus Senhores.<br />

Não quiseram os <strong>de</strong>sígnios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que Patrocínio tivesse uma origem feliz.<br />

Ele foi extraído <strong>de</strong> uma barriga humil<strong>de</strong> e escrava, <strong>da</strong>ndo-lhe à pele uma cor escura,<br />

cercando-lhe a infância <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>sgraças, com a privação <strong>da</strong> paterni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

legítima e os sofrimentos do seu povo escravizado.<br />

Quiseram que no seu sangue e nos seus nervos se acumulassem as revoltas<br />

<strong>da</strong> gente martiriza<strong>da</strong>, contra a mal<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>dos</strong> opressores, to<strong>da</strong> a longa e trágica<br />

odisséia do sacrifício africano.<br />

O Acadêmico Olavo Bilac escreveu:<br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

“A raça negra viu aparecer o profeta esperado, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um furacão <strong>de</strong> trovões<br />

e <strong>de</strong> flores, acen<strong>de</strong>ndo cóleras, cicatrizando feri<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çando grilhões, fulminando<br />

orgulhos e ateando a fogueira em que o Brasil haveria <strong>de</strong> purificar-se.<br />

Ao chegar a hora <strong>da</strong> erupção <strong>da</strong>quela cólera vingadora, os brasileiros estremeceram,<br />

abala<strong>dos</strong> e toma<strong>dos</strong> <strong>de</strong> uma comoção entonteci<strong>da</strong>. Nunca houvera,<br />

até então, no Brasil, uma voz que soasse tão alto e que ferisse tão fundo.”<br />

Inconti<strong>da</strong> força <strong>da</strong> emoção<br />

Senhores Acadêmicos.<br />

Informa o Osvaldo Orico que, a Patrocínio, “pouco importavam amiza<strong>de</strong>s,<br />

estimas, conselhos e advertências. Na hora do combate, ele se transformava<br />

numa visão animalesca do combatente. E só retornava a si mesmo, quando trazia,<br />

<strong>da</strong> arena áspera e crua, o troféu <strong>da</strong> vitória preso nos <strong>de</strong>ntes”.<br />

De acordo com Raymundo Magalhães Jr., Patrocínio “era uma inconti<strong>da</strong><br />

força emotiva, singularizando um <strong>de</strong>stino. Cessa<strong>da</strong> a luta, voltava a ser o homem<br />

bom e hospitaleiro, simples e cordial, em cujo espírito brincavam a doçura<br />

<strong>de</strong> uma criança e a indulgência <strong>de</strong> uma etnia afetiva. Seus braços levantavam-se<br />

em protestos e em agra<strong>de</strong>cimentos. Numa <strong>da</strong>s mãos, um raio. Na outra<br />

mão, uma rosa.”<br />

145


Murilo Melo Filho<br />

Dele disse o nosso confra<strong>de</strong> Joaquim Nabuco: “Ele foi a alma <strong>da</strong> Abolição,<br />

uma alma <strong>de</strong>mocrática, alia<strong>da</strong> a uma outra alma dinástica, que foi a Princesa<br />

Isabel.”<br />

Filinto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, o gran<strong>de</strong> amigo lusitano, consagrou Patrocínio em belos<br />

alexandrinos, como esta quintilha:<br />

Ó luz sonora, luz articula<strong>da</strong> e viva,<br />

Que pelos tempos vens clamando e iluminando.<br />

Luz espiritual que <strong>da</strong> alma se <strong>de</strong>riva.<br />

Verbo, libertador <strong>de</strong> uma raça cativa.<br />

Mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> morto, tu continuarás vibrando.<br />

<br />

Senhor Presi<strong>de</strong>nte.<br />

Senhores Acadêmicos. Senhoras Acadêmicas,<br />

Senhores Acadêmicos <strong>de</strong> Campos. Meus Amigos.<br />

Concluindo, <strong>de</strong>vo dizer que corria o dia 30 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1905, um domingo<br />

<strong>de</strong> sol vibrante e <strong>de</strong> verão senegalesco.<br />

Patrocínio, que tinha pouco mais <strong>de</strong> meio século <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>, estava escrevendo<br />

para ANotícia, a mão, em cinco tiras, um artigo sobre a organização <strong>de</strong> uma<br />

Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Protetora <strong>dos</strong> Animais. E dizia: “Tenho pelos animais um respeito<br />

egípcio. Penso que eles têm alma e que sofrem conscientemente as revoltas<br />

contra a injustiça humana, porque...” Aí, interrompeu a escrita e não terminou<br />

a frase. Levantou-se e correu para o banheiro, já engolfado no sangue <strong>da</strong> sua última<br />

hemoptise.<br />

O médico legista atestou-lhe a causa mortis: uma ruptura no aneurisma <strong>da</strong><br />

aorta.<br />

146


Do enterro ao <strong>de</strong>spejo<br />

Patrocínio: Um jornalista na Abolição<br />

Seu enterro foi custeado pelo governo, que pagou funerais solenes, coches<br />

<strong>de</strong> gala, cavalos cobertos <strong>de</strong> luto, marchas fúnebres, embalsamamento do corpo<br />

e crepe nos lampiões.<br />

Oito dias <strong>de</strong>pois – segundo me informou há pouco tempo o Acadêmico<br />

Carlos Heitor Cony– sua família tinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>socupar a casa em que ele morrera,<br />

escorraça<strong>da</strong> por um man<strong>da</strong>to <strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo.<br />

Patrocínio morreu como vivera, batendo-se por uma Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Protetora e<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ndo os fracos, num último apelo em favor <strong>dos</strong> animais.<br />

Ele não se arrependia do bem que fizera e transformou em pie<strong>da</strong><strong>de</strong> o próprio<br />

sofrimento, para se compa<strong>de</strong>cer <strong>da</strong> sorte <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as criaturas que sofrem.<br />

Nasceu pa<strong>de</strong>cendo, mas morreu amando, perdoando e sorrindo.<br />

Assim, morria o campeão <strong>de</strong> duas gran<strong>de</strong>s ban<strong>de</strong>iras: a <strong>da</strong> Abolição ea<strong>da</strong><br />

República. Morria, talvez, um <strong>dos</strong> maiores oradores brasileiros <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os<br />

tempos.<br />

Morria um plantador <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>, um <strong>de</strong>fensor do Direito, um apóstolo<br />

<strong>da</strong> Lei, um advogado <strong>da</strong>s causas populares, um jornalista <strong>de</strong> batalhas memoráveis,<br />

um lí<strong>de</strong>r contra a ditadura <strong>de</strong> Floriano, um inimigo <strong>da</strong>s oligarquias e <strong>dos</strong><br />

senhores <strong>de</strong> engenho, um liberal <strong>dos</strong> direitos sociais, um paladino <strong>dos</strong> negros e<br />

<strong>dos</strong> escravos, o re<strong>de</strong>ntor <strong>de</strong> uma raça, um entusiasta <strong>de</strong> temas heróicos, uma<br />

bravura <strong>de</strong> procedimento, um ribombar <strong>de</strong> protestos, um poço <strong>de</strong> eloqüência e<br />

<strong>de</strong> talento.<br />

Morria o sonhador <strong>de</strong> um Brasil forte, próspero, industrialmente rico e socialmente<br />

justo.<br />

Morria um inesquecível brasileiro, chamado simplesmente: JOSÉ CAR-<br />

LOS DO PATROCÍNIO.<br />

147


Inglês <strong>de</strong> Sousa (1853-1918)<br />

Acervo o Arquivo <strong>da</strong> <strong>ABL</strong>


O ficcionista Inglês<br />

<strong>de</strong> Sousa<br />

Oscar Dias Corrêa<br />

Avi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Herculano Marcos Inglês <strong>de</strong> Sousa é marca<strong>da</strong> por<br />

duas fases distintas: na primeira, o ficcionista, o primeiro<br />

naturalista brasileiro, publicando seus livros no período que começa<br />

em 1876, estu<strong>da</strong>nte <strong>de</strong> Direito em São Paulo, com O cacaulista ese<br />

encerra com os Contos amazônicos, em 1892; e o segundo, o jurista <strong>dos</strong><br />

estu<strong>dos</strong> <strong>de</strong> Direito Comercial, em 1897, com Os Títulos ao Portador,<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Barbosa Lima Sobrinho, a quem citei no meu discurso <strong>de</strong> posse<br />

nesta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, lembrando Renan disse, em prefácio ao discurso <strong>de</strong><br />

Rodrigo Octavio Filho, no centenário <strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa:<br />

Renan falava <strong>da</strong> má vonta<strong>de</strong> com que se consi<strong>de</strong>rava a manifestação<br />

<strong>de</strong> mestria em domínios opostos, e po<strong>de</strong>ríamos esten<strong>de</strong>r o<br />

seu conceito a domínios apenas diferentes. A crítica, ou o aplauso<br />

público, não parece favorecer os regimes poligâmicos, em matéria<br />

<strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual. Prefere, ou parece preferir, a disciplina e<br />

149<br />

Conferência<br />

proferi<strong>da</strong> na<br />

<strong>ABL</strong>, a 29 <strong>de</strong><br />

abril <strong>de</strong> 2003,<br />

durante o ciclo<br />

<strong>Fun<strong>da</strong>dores</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>ABL</strong>.


Oscar Dias Corrêa<br />

a rigi<strong>de</strong>z <strong>da</strong> monogamia, o gênero único, a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> uniforme, que valoriza<br />

e prestigia o conjunto <strong>da</strong> obra realiza<strong>da</strong>.<br />

Aconteceu isso com Inglês <strong>de</strong> Sousa, gran<strong>de</strong> ficcionista, <strong>de</strong> quem se esqueceram<br />

os romances, ignora<strong>dos</strong> hoje do gran<strong>de</strong> público, e o gran<strong>de</strong> jurista, que<br />

acabou por predominar, talvez, digo eu, porque os juristas sejam menos <strong>de</strong>suni<strong>dos</strong><br />

e menos senhores <strong>de</strong> sua glória do que os ficcionistas.<br />

Olívio Montenegro comenta:<br />

Com Inglês <strong>de</strong> Sousa verifica-se um caso que não é comum na história<br />

<strong>dos</strong> literatos brasileiros – foi literato, jurista e homem <strong>de</strong> Estado, ao mesmo<br />

tempo, tendo exercido o governo <strong>da</strong>s províncias do Espírito Santo e<br />

do Sergipe. E ain<strong>da</strong> hoje o seu nome é mais conhecido como jurista do<br />

que como autor <strong>de</strong> ficção. Talvez porque a ficção no Brasil nunca fosse leva<strong>da</strong><br />

tão a sério como as letras jurídicas. Até pelo contrário: no homem<br />

político do Brasil o gosto pela ficção literária sempre foi olhado com as<br />

maiores reservas, quase <strong>de</strong>preciado, como uma falta <strong>de</strong> compostura, uma<br />

espécie <strong>de</strong> boemia do espírito que não se casasse bem com a circunspecção<br />

e a digni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s altas funções administrativas. 1<br />

Prefiro não aquilatar <strong>da</strong> justeza <strong>da</strong> afirmação, mas o certo é que Inglês <strong>de</strong><br />

Sousa não teve o reconhecimento que sua obra merecia.<br />

Nesta oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> e nesta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, não nos ocuparemos, senão <strong>de</strong> passagem,<br />

com o gran<strong>de</strong> jurista, que inovou com seus estu<strong>dos</strong> em Os Títulos ao Portador<br />

no Direito Brasileiro. A obra, que se inicia com alenta<strong>da</strong> Introdução, “síntese<br />

histórica” <strong>da</strong> matéria, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os hebreus até o século XVII, tem configuração<br />

<strong>de</strong> obra mo<strong>de</strong>rna e, mais, pela fluência e exatidão <strong>da</strong> linguagem, exce<strong>de</strong> o comum<br />

<strong>dos</strong> livros jurídicos.<br />

A exposição é viva e atual, e vêem-se alusões a temas mo<strong>de</strong>rnos, ressaltando<br />

aspectos econômicos (Seção 1 a ), como os problemas do crédito e <strong>da</strong> poupan-<br />

1 O romance brasileiro, J. Olympio, 2 a ed., pp. 99-100.<br />

150


O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

ça, expressamente referi<strong>dos</strong> (item 60) e to<strong>dos</strong> os mais que o aprofun<strong>da</strong>mento<br />

do tema exigia, <strong>de</strong>monstrando, <strong>de</strong>mais disso, amplo e apurado conhecimento<br />

<strong>da</strong> bibliografia alienígena então existente.<br />

Do gran<strong>de</strong> jurista, disse Rodrigo Octavio, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> apresentar-lhe o filho:<br />

“Este é um padrão <strong>de</strong> sabedoria e austeri<strong>da</strong><strong>de</strong>.” E o biógrafo assim remata:<br />

Eu bem conheci o Mestre Inglês <strong>de</strong> Sousa. A aparência fria, reserva<strong>da</strong>,<br />

distante e severa, que, alia<strong>da</strong> ao seu gran<strong>de</strong> saber e autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, a to<strong>dos</strong> infundia<br />

respeito, vinha, dir-se-ia, <strong>de</strong> uma possível e remota ascendência britânica,<br />

que o nome <strong>de</strong> família – Inglês – faria presumir. Entretanto, um melhor<br />

conhecimento <strong>de</strong> suas origens revela que a família – Inglês – é portuguesa,<br />

argárvia (sic) <strong>de</strong> quatro costa<strong>dos</strong> e já conheci<strong>da</strong> nas Espanhas muito antes do<br />

<strong>de</strong>scobrimento do Brasil. 2<br />

Do gran<strong>de</strong> advogado disse Xavier Marques, que lhe suce<strong>de</strong>u nesta Casa:<br />

Advogado durante cerca <strong>de</strong> quarenta anos, Inglês <strong>de</strong> Sousa não conheceu<br />

a estreiteza e secura <strong>da</strong> inteligência profissional. [...] A advocacia não<br />

foi para ele o ato quase maquinal que se passa entre a banca e o foro, entre<br />

a clientela e o mundo judiciário; [...] Ela não o privou do convívio nobilitante<br />

<strong>dos</strong> belos i<strong>de</strong>ais; tampouco lhe afrouxou a austeri<strong>da</strong><strong>de</strong> ou diminuiu<br />

a tensão aos escrúpulos com que discernia as causas propostas ao seu patrocínio.<br />

O causídico admirado pelo talento e a proficiência, ain<strong>da</strong> mais<br />

porventura se impunha pela ética irrepreensível. Da advocacia, tão largamente<br />

exerci<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o consultório em Santos até o Rio, on<strong>de</strong> se estabeleceu<br />

com a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> República, havia ele <strong>de</strong> tirar elementos para uma<br />

alta reputação, que veio a culminar, por saber, morali<strong>da</strong><strong>de</strong> e consciência,<br />

na fama do jurisconsulto. 3<br />

2 o<br />

Rodrigo Octavio Filho, Inglês <strong>de</strong> Sousa – 1 centenário <strong>de</strong> seu nascimento. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editora<br />

Companhia <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Artes Gráficas, p. 11.<br />

3<br />

Discursos Acadêmicos, v. 5, pp. 98-99.<br />

151


A publicação <strong>de</strong> Os Títulos ao Portador assegura-lhe projeção nacionaleotorna<br />

jurisconsulto <strong>de</strong> fama e prestígio, sendo indicado para Diretor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Ciências Jurídicas e Sociais e Presi<strong>de</strong>nte do Instituto <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m <strong>dos</strong><br />

Advoga<strong>dos</strong> Brasileiros, quali<strong>da</strong><strong>de</strong> na qual presidiu o Primeiro Congresso Jurídico<br />

Nacional.<br />

Convi<strong>da</strong>do, mais <strong>de</strong> uma vez, para o Supremo Tribunal, não aceitou a indicação,<br />

“por motivos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pessoal”. E “convi<strong>da</strong>do pelo Ministro Rivadávia<br />

Correia para organizar o novo Código Comercial, apresenta-o, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

11 meses, com notáveis emen<strong>da</strong>s aditivas, que o transformam em Código uno<br />

<strong>de</strong> Direito Privado, <strong>de</strong> que era convicto partidário. Realiza Inglês <strong>de</strong> Sousa a<br />

primeira codificação integral <strong>de</strong> todo o direito privado”. 4<br />

Isto, po<strong>de</strong>mos dizer agora, com o novo Código Civil, em vigor a partir <strong>de</strong><br />

1/1/2003, que, em parte, a realiza, efetivamente.<br />

Representou o Brasil no Congresso Pan-Americano, em maio <strong>de</strong> 1916, com<br />

Pandiá Calógeras, e <strong>de</strong>pois presidiu o Conselho Diretor <strong>da</strong> Caixa Econômica.<br />

Depois <strong>de</strong> exercer o jornalismo em São Paulo, sobretudo em Santos, on<strong>de</strong> morava<br />

o pai, Dr. Marcos, Juiz <strong>de</strong> Direito <strong>da</strong> Comarca, o Conselheiro Saraiva nomeou-o,<br />

aos 27 anos, Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Sergipe. Rodrigo Octavio Filho narra episódio<br />

<strong>da</strong>s eleições quando um chefe político do interior, Coronel Fraga, lhe diz:<br />

“– Vim buscar a força.<br />

– Que força? – perguntou Inglês <strong>de</strong> Sousa.<br />

– A força militar; é preciso mostrar aos eleitores que estamos <strong>de</strong> cima. Agora<br />

o prestígio é nosso. É ou não é?<br />

Inglês <strong>de</strong> Sousa, muito mais moço do que o Coronel Fraga, achando graça<br />

no pedido, manifestou-lhe o seu respeito, e disse, incisivo:<br />

– Não dou força nenhuma. As instruções do Presi<strong>de</strong>nte do Conselho<br />

são claras. Na<strong>da</strong> <strong>de</strong> força, na<strong>da</strong> <strong>de</strong> violência. As eleições <strong>de</strong>vem ser as mais<br />

honestas...<br />

4 Ob. cit., p. 28.<br />

Oscar Dias Corrêa<br />

152


O coronel ficou bestificado. Podia esperar tudo, menos aquela resposta.<br />

Mas não <strong>de</strong>sistiu e disse:<br />

– Está bem, Presi<strong>de</strong>nte. Se o senhor não me po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r força, eu quero, ao<br />

menos, um clarim.<br />

Diante do espanto do Presi<strong>de</strong>nte, o Coronel Fraga acrescentou:<br />

– Eu não quero um homem que toque clarim, não senhor. Eu quero somente<br />

o clarim, o instrumento...<br />

Inglês <strong>de</strong> Sousa or<strong>de</strong>nou fosse entregue um clarim ao <strong>de</strong>sapontado coronel,<br />

que mandou ensinar os principais toque militares ao pajem que o acompanhava.<br />

E quando este se manifestou perito em clarina<strong>da</strong>s, o coronel retornou viagem<br />

para a sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong>zinha natal, on<strong>de</strong> precisava impor, <strong>de</strong>finitivamente, o seu<br />

prestígio político. Calculou as coisas para chegar às portas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> antes do<br />

dia amanhecer. E mandou que o improvisado corneteiro soprasse a plenos pulmões<br />

o clarim <strong>da</strong> vitória... A população acordou espanta<strong>da</strong> com aquela intervenção<br />

militar. O coronel escon<strong>de</strong>u o clarim numa moita, entrou em sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e foi dizendo a to<strong>dos</strong>, amigos e inimigos políticos:<br />

– A força aí está cercando a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Vocês não ouviram os toques <strong>de</strong> clarim?<br />

Pois é: o prestígio agora é nosso. E havemos <strong>de</strong> realizar a mais honesta <strong>da</strong>s eleições...<br />

Parece, conclui Rodrigo Octavio Filho, que a terra do Coronel Fraga foi a<br />

única, <strong>de</strong> Sergipe, que não <strong>de</strong>u, naquela eleição, um único voto a candi<strong>da</strong>to<br />

oposicionista...” 5<br />

Tendo-se <strong>de</strong>mitido <strong>da</strong> Presidência <strong>de</strong> Sergipe, foi nomeado Presi<strong>de</strong>nte do<br />

Espírito Santo; e, eleito novamente <strong>de</strong>putado provincial por São Paulo, profere<br />

seu parecer, “obra monumental”, sobre o Código Comercial; volta a Santos<br />

“e entrega-se <strong>de</strong> corpo e alma à advocacia”. Em 1891, publica, em Santos, O<br />

missionário, na tipografia do Diário <strong>de</strong> Santos, “<strong>de</strong> que era proprietário”. 6<br />

5 Ob. cit., pp. 25-26.<br />

6 Ob. cit., p. 26.<br />

O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

153


Oscar Dias Corrêa<br />

A passeio no Rio <strong>de</strong> Janeiro, é convi<strong>da</strong>do pelo Marechal Deodoro para governador<br />

do Amazonas. E Silva Jardim e Aníbal Falcão o indicam para governador<br />

<strong>de</strong> Pernambuco, recusando Inglês <strong>de</strong> Sousa ambas as indicações.<br />

Volta para São Paulo; morrendo-lhe uma filha <strong>de</strong> seis anos, tem a saú<strong>de</strong><br />

abala<strong>da</strong> e, a conselho médico, mu<strong>da</strong>-se para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, em julho <strong>de</strong><br />

1892. Aqui exerce ativamente a cátedra e a advocacia, e, em 1893, publica os<br />

Contos amazônicos.<br />

Mas, nesta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, <strong>de</strong>dicar-nos-emos ao ficcionista, <strong>dos</strong> mais po<strong>de</strong>rosos<br />

<strong>de</strong> nossa literatura, ain<strong>da</strong> que, pela ausência <strong>de</strong> seus livros nas estantes <strong>da</strong>s livrarias<br />

e bibliotecas, tudo aju<strong>da</strong>do pela gran<strong>de</strong>, irremediável e trágica <strong>de</strong>smemória<br />

nacional, seja um <strong>de</strong>sconhecido, nem mesmo ilustre... se lhe não guar<strong>da</strong>m<br />

o nome e as obras.<br />

Nascido em 28 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1853, faz 150 anos, em Óbi<strong>dos</strong>, Pará, era<br />

filho do Desembargador Marcos Rodrigues <strong>de</strong> Sousa (que, quando juiz no<br />

Amazonas, hospedou Agassiz, em viagem ao Brasil, na sua passagem por Parintins;<br />

terminou a carreira como <strong>de</strong>sembargador <strong>da</strong> Relação <strong>de</strong> São Paulo) e<br />

<strong>de</strong> D. Henriqueta Inglês <strong>de</strong> Sousa, <strong>de</strong> nobre ascendência algarvia, como assinala<br />

Rodrigo Octavio Filho.<br />

A ascendência paterna, não menos ilustre, inclui, no século XVIII, Pedro e Maria<br />

Dolzani, do norte <strong>da</strong> Itália, que se <strong>de</strong>dicaram, em Óbi<strong>dos</strong>, à criação <strong>de</strong> gado.<br />

Sua filha, Carlota Dolzani, casou com Silvestre José Rodrigues Sousa, <strong>de</strong> sangue<br />

português, envolvido com sua fazen<strong>da</strong> e a política local (e que aparece como Capitão<br />

Silvestre no conto “O Donativo do Capitão Silvestre”, <strong>dos</strong> Contos amazônicos),<br />

que são os pais <strong>de</strong> Marcos, e avós <strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa, o que explica que seus livros<br />

tenham sido publica<strong>dos</strong> com o pseudônimo <strong>de</strong> “Luiz Dolzani”, estu<strong>da</strong>nte ain<strong>da</strong><br />

na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo, quando surgiu O cacaulista, em 1876.<br />

De Óbi<strong>dos</strong>, on<strong>de</strong> passou os primeiros anos <strong>da</strong> infância, Inglês <strong>de</strong> Sousa foi<br />

para o Maranhão, matriculando-se no Instituto <strong>de</strong> Humani<strong>da</strong><strong>de</strong>s, diz Rodrigo<br />

Octavio Filho (a quem estamos seguindo na lembrança <strong>de</strong> seus <strong>da</strong><strong>dos</strong> biográficos),<br />

on<strong>de</strong> sentiu o primeiro contato com a literatura, quando um colega lhe<br />

leu algumas passagens do Dom Quixote. “Foi realmente esse o seu primeiro con-<br />

154


tato com a literatura <strong>de</strong> ficção. Ficou fascinado.” A propósito, convém lembrar,<br />

Taunaycuidou ver no O missionário <strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa, senão reminiscência,<br />

alguma afini<strong>da</strong><strong>de</strong> com a maior <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as novelas. “O Dom Quixote foi para<br />

Inglês <strong>de</strong> Sousa o livro revelação.” 7 E a nós nos parece que o estilo <strong>de</strong> O coronel<br />

Sangrado lembra o “ingenioso hi<strong>da</strong>lgo <strong>de</strong> la Mancha”.<br />

Em 1867 veio para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, e matriculou-se no Colégio Perseverança,<br />

começando aí sua inclinação pelas letras. Adoecendo, convalesce na casa<br />

do Conselheiro José Vicente Jorge, Diretor Geral <strong>da</strong> Secretaria do Império.<br />

“Leu então e <strong>de</strong> um trago, sofregamente, muito <strong>de</strong> Shakespeare, Hugo e Herculano.<br />

[...] Em 1870 viajou para Recife, on<strong>de</strong> completou os preparatórios e<br />

matriculou-se na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito.” Aí viveu “intensíssima vi<strong>da</strong> intelectual,<br />

vastas leituras, freqüência aos teatros, longas conversas e intermináveis<br />

discussões sobre religião, filosofia, exegese, história, sociologia e literatura. O<br />

romantismo <strong>dos</strong> seus 18 anos não teria forças para resistir ao choque <strong>da</strong>s novas<br />

idéias”. Já no segundo ano <strong>de</strong> Direito, “combatendo as pieguices <strong>de</strong> Amoreninha,<br />

<strong>de</strong> Macedo, e o indianismo <strong>de</strong> Alencar”, escreveu o primeiro romance, O<br />

cacaulista, nos mol<strong>de</strong>s do alsaciano Erckmann-Chartrian (1872). Seguiramse-lhe<br />

a História <strong>de</strong> um pescador e O coronel Sangrado, escritos em São Paulo, em cuja<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> cursou o quinto ano <strong>de</strong> Direito e se formou em 1876.<br />

No ano seguinte casou-se com D. Carlota Emília Peixoto, sobrinha-bisneta<br />

<strong>de</strong> José Bonifácio, <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> companheira <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong>.<br />

Diplomado em Direito, em 1876, nesse mesmo ano publica História <strong>de</strong> um<br />

pescador e O coronel Sangrado; em 1891, O missionário (escrito em 1888); e, em<br />

1892, Contos amazônicos.<br />

Esses livros firmaram-lhe a reputação literária, à época, e com eles conquistou<br />

lugar nos meios intelectuais do Rio <strong>de</strong> Janeiro. Aqui chegando, em 15 <strong>de</strong><br />

novembro <strong>de</strong> 1896 comparece à primeira sessão <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>,<br />

na re<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> Revista <strong>Brasileira</strong>, e em 1897 participa <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> <strong>ABL</strong>,<br />

“<strong>de</strong> cujos Estatutos foi o principal Re<strong>da</strong>tor”. 8<br />

7 Rodrigo Octavio Filho, ob. cit., p. 20.<br />

8 Josué Montello, O presi<strong>de</strong>nte Machado <strong>de</strong> Assis, p. 34.<br />

O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

155


O mais interessante e estranho é que, a partir <strong>da</strong>í, sua obra é to<strong>da</strong> jurídica:<br />

em 1898, Títulos ao Portador; em 1903, Projeto <strong>de</strong> Código Comercial e Projeto <strong>de</strong> Direito<br />

Privado; talvez porque, abrindo banca <strong>de</strong> advogado, lecionando Direito Comercial<br />

e Marítimo, e presidindo o Instituto <strong>dos</strong> Advoga<strong>dos</strong> Brasileiros, a vi<strong>da</strong><br />

lhe impunha <strong>de</strong>dicação a esses temas, aos quais se entregou, até vir a falecer, em<br />

6 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1918.<br />

Não foi, pois, sem razão que Inglês <strong>de</strong> Sousa entrou para a <strong>ABL</strong>: era ele, à<br />

época, reconheci<strong>da</strong> expressão <strong>da</strong> ficção brasileira, e sua obra, ain<strong>da</strong> hoje, embora<br />

esqueci<strong>da</strong>, o recomen<strong>da</strong> como uma <strong>da</strong>s figuras mais admiráveis do romance brasileiro.<br />

E que se elegeu Tesoureiro <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, ao lado do Presi<strong>de</strong>nte Machado<br />

<strong>de</strong> Assis. A impressão causa<strong>da</strong> pela riqueza <strong>dos</strong> seus romances amazônicos se espelha<br />

na afirmação <strong>de</strong> Josué Montello, <strong>de</strong> que <strong>de</strong> “suas obras O coronel Sangrado,<br />

embora correspon<strong>de</strong>ndo a uma narração completa, entrosa-se com O cacaulista,<br />

<strong>de</strong> que constitui <strong>de</strong>sdobramento. História <strong>de</strong> um pescador, conforme indicação <strong>de</strong><br />

seu prefácio, articular-se-ia a outros romances <strong>da</strong> série Cenas <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> do Amazonas,<br />

sem prejuízo <strong>de</strong> sua ação distinta”. 9 O curioso, continua Josué, é que,<br />

“apesar <strong>de</strong> terem como cenário a Amazônia, esses romances fixam mais o homem<br />

que a selva, como se esta, com a sua opulência, não interessasse ao romancista,<br />

que <strong>de</strong>sejava apenas surpreen<strong>de</strong>r e apreen<strong>de</strong>r o elemento humano, nas suas<br />

lutas e nas suas fraquezas, nos seus caracteres e nas suas <strong>de</strong>terminações”. 10<br />

Aí está, a meu ver, a gran<strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>, sobretudo <strong>de</strong> O coronel Sangrado, que,<br />

com Montello e Lúcia Miguel-Pereira, consi<strong>de</strong>ro a obra fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> ficção<br />

<strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa: a intensa vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s figuras do romance prepon<strong>de</strong>ra sobre<br />

a força <strong>da</strong> natureza.<br />

Mas a preparação <strong>de</strong>le está em O cacaulista, escrito em Recife (é <strong>da</strong>tado <strong>de</strong><br />

Recife, 24/06/1875) e publicado em Santos, em 1876. Volume <strong>de</strong> estréia,<br />

experimenta a pena na fixação <strong>da</strong> trama do romance, no <strong>de</strong>senho <strong>da</strong> paisagem e<br />

no <strong>de</strong>buxo <strong>da</strong>s personagens. O próprio autor, Luiz Dolzani, pseudônimo que<br />

adota, em 23/12/76 apresentando a obra, diz que “o romance que se vai ler<br />

9 Ob. cit., p. 74.<br />

10 I<strong>de</strong>m, p. 74.<br />

Oscar Dias Corrêa<br />

156


O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

foi escrito em 1875, na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife, quando o autor cursava o quarto ano<br />

<strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito”. E completa: “Fazendo parte <strong>da</strong> coleção – Cenas <strong>da</strong><br />

Vi<strong>da</strong> do Amazonas – não é completo, como verá o leitor, e os episódios que<br />

nele se narram hão <strong>de</strong> ter o seu complemento no Coronel Sangrado, romance<br />

que brevemente sairá à luz.”<br />

O Amazonas é o cenário, sobretudo as plantações <strong>de</strong> cacau, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolve<br />

a história e on<strong>de</strong> se movem as figuras que criou. Já se pressente a força <strong>da</strong><br />

introspecção do romancista e o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>scritivo e narrativo.<br />

Dedica-o ao pai, Marcos Antônio <strong>de</strong> Sousa, “Cavaleiro <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cristo,<br />

Juiz <strong>de</strong> Direito <strong>da</strong> Comarca <strong>de</strong> Santos (Ao primeiro amigo a primeira<br />

obra)”. Conta a história <strong>da</strong>s lutas <strong>dos</strong> cacaulistas, em especial <strong>da</strong> Fazen<strong>da</strong> S.<br />

Miguel, proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> D. Ana, viúva do português João Faria e, sobretudo,<br />

mãe <strong>de</strong> Miguel <strong>de</strong> Faria, filho do casal, centro do romance.<br />

Em torno <strong>de</strong>le se tece o enredo, que serve ao autor para os cenários <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

amazônica, as terras do cacau, e envolve a disputa <strong>da</strong> fazen<strong>da</strong> <strong>de</strong> João Faria,<br />

on<strong>de</strong> mora a viúva Ana, mãe <strong>de</strong> Miguel, e sobre as quais avança o Tenente Ribeiro,<br />

padrinho <strong>de</strong> Ritinha, amiga <strong>de</strong> infância <strong>de</strong> Miguel.<br />

A duplici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> situação <strong>de</strong>ste, ten<strong>de</strong>ndo para Ritinha e <strong>de</strong>testando o Tenente;<br />

a esperteza <strong>de</strong>ste, valendo-se <strong>de</strong>ssa duplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, enriquecem a história e permitem<br />

a Inglês <strong>de</strong> Sousa pintar a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> região, ao mesmo tempo em que lhe possibilita<br />

como que a introdução à cena política <strong>de</strong> O coronel Sangrado. Esse cenário lhe serve<br />

ao largo uso <strong>de</strong> suas virtu<strong>de</strong>s literárias e à urdidura <strong>da</strong> trama romanesca.<br />

Segue-se-lhe O coronel Sangrado. É lê-lo, ain<strong>da</strong> hoje, e gozar-lhe a malícia do<br />

jogo político, que <strong>de</strong>screve com ironia e sarcasmo, movendo as personagens<br />

com argúcia e finura, com tal realismo que se po<strong>de</strong> sentir a presença palpitante<br />

<strong>de</strong>las nas cenas do livro.<br />

Romance <strong>de</strong> costumes políticos, na<strong>da</strong> fica a <strong>de</strong>ver aos que vieram <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong>le; pelo contrário, nos personagens mistura a esperteza e o sarcasmo, conjuga<br />

a ignorância e a arrogância, a graça e a matreirice, a timi<strong>de</strong>z e a pureza, e<br />

consegue, no meio <strong>da</strong> disputa política, insinuar a paixão amorosa agressiva e<br />

dominadora. Espanta, a quem viveu a comédia política, a história <strong>da</strong> luta entre<br />

157


Oscar Dias Corrêa<br />

conservadores e liberais por volta <strong>de</strong> 1870, como Inglês <strong>de</strong> Sousa pô<strong>de</strong> retratá-la<br />

no Amazonas, com as mesmas tintas com que se pintariam no Su<strong>de</strong>ste. E,<br />

mais ain<strong>da</strong>, a riqueza <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> subjetiva <strong>dos</strong> personagens, figuras brasileiras <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong>s as regiões: o Coronel Sangrado, chefe ignorante e arrogante, julgando-se<br />

superior a to<strong>dos</strong>, “dono do pe<strong>da</strong>ço” (como se diz hoje), Napoleão, que pretendia<br />

não ter Waterloo; o Capitão Matias, o boticário Anselmo, o escrivão<br />

Ferreira e to<strong>da</strong> uma paisagem humana conheci<strong>da</strong> e atuante.<br />

A filha do Coronel Sangrado, a “feiarrona” Mariquinhas, alvoroça<strong>da</strong> com o<br />

retorno <strong>de</strong> Miguel <strong>de</strong> Faria, escorraçado pelo chefe liberal, Tenente Ribeiro; o<br />

reencontro <strong>de</strong> Miguel com Rita, filha ou afilha<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ribeiro, a “cunhantã” <strong>da</strong><br />

meninice <strong>de</strong> Miguel, e já então mulher do Alferes Pedro Moreira Bentes; e<br />

sobretudo o Capitão Antônio Batista, suplente <strong>de</strong> juiz municipal, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

influência no partido conservador <strong>da</strong> locali<strong>da</strong><strong>de</strong>, to<strong>dos</strong> concorrem para a inestimável<br />

importância do <strong>de</strong>senrolar <strong>da</strong> história.<br />

A partir <strong>de</strong>sses personagens <strong>de</strong>senvolve-se o romance, que inclui to<strong>da</strong>s as artimanhas,<br />

malícias, petas, traições que a luta política local po<strong>de</strong> oferecer: on<strong>de</strong><br />

os ódios são mais enraiza<strong>dos</strong>, e o vizinho é amigo ou inimigo do vizinho, e<br />

tudo faz por ele ou contra ele.<br />

Inglês <strong>de</strong> Sousa tece o romance com estilo vivo, fluente, veste-o <strong>de</strong> verve e<br />

ironia, aflorando os sentimentos mais nobres e as atitu<strong>de</strong>s mais chãs, ingredientes<br />

<strong>da</strong> autêntica farsa eleitoral <strong>da</strong>quela época.<br />

Dele diz Bella Jozef, na excelente “Apresentação” que escreveu para o volume<br />

72 <strong>da</strong> coleção Novos Clássicos:<br />

Seu estilo é, na maioria <strong>da</strong>s vezes, escorreito e sóbrio, compraz-se na escolha<br />

do termo justo e do vocábulo preciso, o que lhe dá encanto e espontanei<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

[...] É uma linguagem coloquial, procurando cingir-se ao vocabulário<br />

vivo <strong>da</strong> região. Freqüentemente recorre ao estilo indireto livre no diálogo e<br />

monólogo mental como meio favorito <strong>de</strong> fazer ouvir, falar e pensar seus<br />

personagens. 11<br />

11 Agir, 1963, p. 12.<br />

158


E assinala que Aurélio Buarque <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong>, lembrando Eça <strong>de</strong> Queirós,<br />

afirmou ter Inglês <strong>de</strong> Sousa “o mesmo ritmo sereno e ondulante, o mesmo espraiamento<br />

<strong>da</strong>s palavras com breve estação nos inci<strong>de</strong>ntes para terminar com<br />

dois adjetivos <strong>de</strong> sentido e efeito sônico bem contrastante, a aliança do trivial e<br />

do raro, o jogo <strong>dos</strong> elementos díspares”.<br />

Josué Montello, no estudo que <strong>de</strong>dica a “A ficção naturalista”, em Ahistória<br />

<strong>da</strong> literatura no Brasil, coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong> por Afrânio Coutinho, discor<strong>da</strong> em parte,<br />

quando assinala:<br />

Aluísio Azevedo, Inglês <strong>de</strong> Sousa, Júlio Ribeiro e Adolfo Caminha, as<br />

quatro figuras representativas do Naturalismo brasileiro, inclinaram-se pela<br />

cópia <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, com um ou outro traço <strong>de</strong> tinta violenta e crua. Aos quatro<br />

faltou a ironia corrosiva com que Eça, na pintura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> portuguesa,<br />

aten<strong>de</strong>u a seus propósitos <strong>de</strong> <strong>de</strong>molição. Em compensação, souberam<br />

dispor <strong>da</strong> observação meticulosa, por vezes apaixona<strong>da</strong>, que, se não serviu a<br />

atrair a atenção para a reforma do mundo burguês, pelo menos fixou in<strong>de</strong>levelmente<br />

alguns instantes brasileiros, com aquela fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> níti<strong>da</strong> que faz<br />

do romance o espelho do tempo e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. 12<br />

Se a apreciação, a nosso ver, colhe quanto a O missionário,emO coronel Sangrado<br />

há passagens do melhor <strong>de</strong> Eça, no tom e no estilo.<br />

No Inquérito promovido por João do Rio no Momento Literário, “Inglês <strong>de</strong><br />

Sousa afirmou que os autores que mais contribuíram para a sua formação literária<br />

foram Erckmann-Chartrian, Balzac, Dickens, Flaubert e Dau<strong>de</strong>t”. E João<br />

do Rio acrescenta: “Nessa relação não figuram, assim, Émile Zola, que parece<br />

ter-lhe inspirado o argumento <strong>de</strong> O missionário, e Eça <strong>de</strong> Queirós, que o impressionou<br />

com o ritmo <strong>de</strong> seu estilo”. E Josué pergunta: “Por que Erckmann-<br />

Chartrian?” Ele mesmo respon<strong>de</strong>:<br />

12 Ob. cit., p. 68.<br />

O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

159


Oscar Dias Corrêa<br />

Hábeis fixadores <strong>de</strong> tipos e costumes alsacianos, Erckmann-Chartrian<br />

<strong>de</strong>ixaram obra copiosa no conto, no romance e no teatro. Antes que Zola<br />

empolgasse o público parisiense, eram eles que dominavam esse público,<br />

com o Realismo comedido <strong>de</strong> suas narrativas singelas. Seu mérito <strong>de</strong>rivava<br />

<strong>da</strong> fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> com que transplantavam <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> real para o papel literário as<br />

paisagens e as figuras <strong>da</strong> Alsácia. 13<br />

Mas, o romance tido como marco na obra <strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa é O missionário,<br />

que lhe assegura o lugar na coorte <strong>dos</strong> nossos primeiros naturalistas, como lhe<br />

chama Peregrino Júnior, “literatura <strong>de</strong> índole regionalista na Amazônia”: “Na<br />

primeira fase, <strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa e José Veríssimo – a <strong>dos</strong> homens <strong>da</strong> terra –<br />

mais fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> ao real, mais autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>, um comovido amor à gente e aos<br />

seus costumes.” 14<br />

Explica-se: como não haveriam Inglês <strong>de</strong> Sousa e José Veríssimo, por coincidência,<br />

ambos <strong>de</strong> Óbi<strong>dos</strong>, <strong>de</strong> espelhar o sentimento nativo? O Missionário parece<br />

a Peregrino Júnior “romance <strong>de</strong>nso e forte, mas prolixo, monótono, enfadonho,<br />

sem gran<strong>de</strong> vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Contudo, um documento exato e minucioso <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> amazônica”. Consi<strong>de</strong>ra que “sem dúvi<strong>da</strong>, mais palpitantes e concisos, são<br />

os seus Contos <strong>da</strong> Amazônia”. 15<br />

Parece que o crítico não teve à mão O cacaulista, nem O coronel Sangrado, mas<br />

há muito <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> no seu comentário quanto a O missionário, quando lhe exproba<br />

o excesso naturalista <strong>de</strong> pormenores, ain<strong>da</strong> que se exce<strong>da</strong> quando o consi<strong>de</strong>ra<br />

cansativo e tedioso.<br />

O próprio Inglês <strong>de</strong> Sousa, tempos <strong>de</strong>pois, em resposta a inquérito <strong>de</strong> João<br />

do Rio, no Momento Literário, escreveria, textualmente:<br />

Das poucas obras que hei publicado, prefiro O missionário, ain<strong>da</strong> que a sua<br />

fatura não correspon<strong>da</strong> ao meu modo atual <strong>de</strong> ver e sentir a natureza. O O<br />

13 Ob. cit., p. 73.<br />

14 In: Coutinho, Afrânio, A literatura no Brasil, t. III, p. 227.<br />

15 Ibi<strong>de</strong>m, p. 228.<br />

160


missionário é espesso e palavroso; tem, pelo menos, cem páginas a mais. To<strong>da</strong>via,<br />

ain<strong>da</strong> hoje escreveria alguns capítulos como o <strong>da</strong> viagem do Padre, o<br />

dia do Chico Fidêncio, o enterro do Totônio Bernardino.<br />

O que acontece é que, à época, Inglês <strong>de</strong> Sousa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter elaborado,<br />

com êxito, o romance vivo, ligeiro, mor<strong>da</strong>z, que é O coronel Sangrado, julgou <strong>de</strong>ver<br />

comprovar sua aptidão para a expressão mais <strong>de</strong>nsa, carrega<strong>da</strong>, ao gosto<br />

naturalista do momento, o que fez em O missionário.<br />

Josué Montello diz que o “livro é gran<strong>de</strong> e <strong>de</strong>rramado”, vendo na preocupação<br />

naturalista a influência <strong>de</strong> Zola e do anticlericalismo <strong>de</strong> Eça em O crime<br />

do Padre Amaro.<br />

Bella Jozef, ao contrário, afirma que “não há sentimento anticlericalista n’O<br />

Missionário, apesar <strong>da</strong> idéia fixa no romance naturalista. Neste sentido afasta-se<br />

totalmente <strong>de</strong> Zola e outros romancistas <strong>da</strong> época. Ao contrário <strong>de</strong>les, o clérigo<br />

é ser humano e não obrigatoriamente repulsivo”. Suas intenções, envenena<strong>da</strong>s<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a origem por um sentimento anticristão, a saber, o orgulho e a presunção<br />

(conforme assinalou Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holan<strong>da</strong>, baseado, aliás, no<br />

próprio texto do livro) teriam <strong>de</strong> ruir em face <strong>dos</strong> imperativos <strong>da</strong> herança e do<br />

meio. “Sua que<strong>da</strong> não <strong>de</strong>corre tanto <strong>da</strong> impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cumprir aqueles <strong>de</strong>veres<br />

sagra<strong>dos</strong> em condições adversas do meio social, como <strong>da</strong>s bases fragílimas<br />

em que eles realmente assentavam, o que evi<strong>de</strong>ncia, a nosso ver, a religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa. Um ímpio não teria problemas <strong>de</strong> fé, como o autor. O<br />

que faz o Padre Antônio <strong>de</strong> Morais pecar é sua pouca fé, o falso conceito <strong>de</strong><br />

santi<strong>da</strong><strong>de</strong> e misticismo, produto a ambição e <strong>da</strong> vai<strong>da</strong><strong>de</strong>.” 16<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong> dizer-se que haverá n’O Missionário a inspiração <strong>de</strong> Cervantes<br />

para as figuras do Padre Antônio <strong>de</strong> Morais e <strong>de</strong> Macário, o sacristão,<br />

que lembram o Quixote e Sancho. Padre Antônio, cavaleiro <strong>da</strong> fé, que a preten<strong>de</strong><br />

ver implanta<strong>da</strong> na terra <strong>dos</strong> Mundurucus, à margem do Canumã, e i<strong>de</strong>aliza<br />

a conversão <strong>dos</strong> silvícolas, “conquistando fama imorredoura, que levaria<br />

16 Bella Jozef, ob. cit., p. 17.<br />

O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

161


Oscar Dias Corrêa<br />

seu nome à remota posteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, com os <strong>de</strong> Francisco Xavier e José <strong>de</strong> Anchieta”.<br />

17 Macário, assombrado e enfatuado pela proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> do Padre, fica bem<br />

no papel <strong>de</strong> fiel escu<strong>de</strong>iro, como aliás lembra José Veríssimo: “... um Sancho<br />

Pança bem local, bem original, uma boa criação do Sr. Inglês <strong>de</strong> Sousa.”<br />

De passagem se diga que a crítica <strong>de</strong> Veríssimo é <strong>da</strong>s mais exatas, porque alia<br />

ao conhecimento crítico a visão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> local, também ele, como Inglês <strong>de</strong> Sousa,<br />

nascido em Óbi<strong>dos</strong>. Analisa o romance <strong>de</strong>ti<strong>da</strong>mente, recor<strong>da</strong>-lhe os cenários e as<br />

personagens, para dizer: “O livro è um <strong>dos</strong> melhores, ao meu parecer, <strong>da</strong> nossa<br />

ficção em prosa,” embora lhe assinale um <strong>de</strong>feito: “A <strong>de</strong>sproporção entre o assunto<br />

e o <strong>de</strong>senvolvimento que lhe <strong>de</strong>u o autor. O drama parece-me pequeno<br />

para tão gran<strong>de</strong> cenário, o painel <strong>de</strong>masiado vasto para a pintura.”<br />

A análise <strong>de</strong> Veríssimo parece-nos consistente, quando conclui:<br />

Não creio que o naturalismo tenha produzido no Brasil obra superior a<br />

esta; mas nela mesma, estou em que o reconhecerá o próprio autor, <strong>de</strong>ixou<br />

os vícios inerentes aos preconceitos <strong>da</strong>s escolas. Na explicação, por exemplo,<br />

<strong>dos</strong> motivos do Padre Antônio <strong>de</strong> Moraes, há talvez <strong>de</strong>masia<strong>da</strong> minúcia,<br />

rebusca<strong>da</strong> análise, sobeja interpretação. Recorre também o romancista a<br />

noções científicas para robustecer a sua análise psicológica <strong>da</strong> alma e <strong>dos</strong><br />

móveis <strong>da</strong> ação do seu protagonista, o que se me afigura um erro. 18<br />

Olívio Montenegro (ob. cit., loc. cit.) começa o estudo <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong><br />

Sousa dizendo que “há livros que são como certa espécie <strong>de</strong> gente: tem um<br />

<strong>de</strong>stino caipora. Livros cheios <strong>da</strong>s melhores virtu<strong>de</strong>s, do ponto <strong>de</strong> vista intelectual<br />

e artístico, e não se sabe porque não se apercebem <strong>de</strong>les. Não apanham<br />

a menor populari<strong>da</strong><strong>de</strong>”, para concluir que O Missionário é “o romance mais organicamente<br />

vivo e completo <strong>de</strong> quantos po<strong>de</strong>mos filiar à escola naturalista do<br />

Brasil”, embora mal tratado pela crítica, o que comprova no exame percuciente<br />

que faz, concluindo:<br />

17 O missionário. Ed. Topbooks, 1998, p 133.<br />

18 Estu<strong>dos</strong> <strong>de</strong> literatura brasileira, vol. III. Garnier Editor, p. 31.<br />

162


O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

No livro <strong>de</strong> Inglês <strong>de</strong> Sousa o homem não sofre no meio <strong>da</strong> paisagem<br />

que o cerca: nem a paisagem parece diminuí<strong>da</strong> ao contato do homem. Ele<br />

colocou a paisagem no seu justo plano, no plano que lhe cabe em todo o<br />

romance que é o fundo <strong>de</strong> quadro. O plano alto e que domina o resto <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> do homem é o <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do padre Antônio Ribeiro <strong>de</strong> Morais, o missionário.<br />

Mas na<strong>da</strong> como ler a obra. Ou melhor, as obras, porque não há como não<br />

ler O cacaulista, História <strong>de</strong> um pescador, O coronel Sangrado, O missionário eosContos<br />

amazônicos.<br />

Os Contos amazônicos, <strong>de</strong> 1893, reeditam o estilo mais livre <strong>de</strong> O cacaulista e O<br />

coronel Sangrado, sem a <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> linguagem <strong>de</strong> O missionário, nas longas digressões<br />

que o Padre Antônio, <strong>de</strong> Silves, estabelece consigo mesmo, até a região<br />

perdi<strong>da</strong> <strong>dos</strong> Mundurucus.<br />

Dedicado a Sílvio Romero, misturam fatos e abusões <strong>da</strong> região, não faltando<br />

os lances patrióticos <strong>de</strong> “Voluntário”, na guerra contra o Paraguai, e <strong>de</strong><br />

“Rebel<strong>de</strong>”, nas lutas <strong>da</strong> cabanagem, reaparecendo em “Feiticeira”, em personagens<br />

<strong>de</strong> O cacaulista e O coronel Sangrado, como Miguel <strong>de</strong> Faria, Padre João e o<br />

boticário Anselmo; ou no “Acauan”, na intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> narrativa, que sublima<br />

o drama <strong>da</strong> antiga Vila <strong>de</strong> S. João Batista <strong>de</strong> Faro.<br />

O estilo toma, às vezes, o tom irreverentemente <strong>de</strong>licioso <strong>de</strong> O coronel Sangrado,<br />

quando anatematiza, no conto “Amor <strong>de</strong> Maria” a “maldita política” que,<br />

diz ele, dividiu a população, azedou os ânimos, avivou a intriga, e tornou insuportável<br />

a vi<strong>da</strong> nos lugarejos à beira do rio”, para afirmar:<br />

Depois que o povo começou a tomar a sério esse negócio <strong>de</strong> parti<strong>dos</strong>,<br />

que os doutores do Pará e do Rio <strong>de</strong> Janeiro inventaram como meio <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

numa al<strong>de</strong>ola <strong>de</strong> trinta casas as famílias o<strong>de</strong>iam-se e <strong>de</strong>scompõem-se; os homens<br />

mais sérios tornam-se patifes refina<strong>dos</strong> e tudo vai que é <strong>de</strong> tirar a coragem<br />

e <strong>da</strong>r vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> abalar <strong>de</strong>stes ótimos climas, <strong>de</strong>stas grandiosas regiões<br />

paraenses, ao pé <strong>da</strong>s quais os outros países são como miniaturas mesqui-<br />

163


Oscar Dias Corrêa<br />

nhas. Sem conhecerem a força <strong>dos</strong> vocábulos, o fazen<strong>de</strong>iro Morais é liberal<br />

e o capitão Jacinto é conservador. 19<br />

Ou refere: “Alma generosa do povo brasileiro, quão mal aprecia<strong>da</strong> és pelos<br />

eternos faladores <strong>da</strong> Câmara <strong>dos</strong> Deputa<strong>dos</strong>!” 20 E não poupa os ingleses:<br />

Saindo do seu mutismo tradicional, o escrivão Ferreira contava numa<br />

ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> senhores que os ingleses não querem saber <strong>de</strong> santos, que adoram<br />

uma cabeça <strong>de</strong> cavalo, e se divertem socando as ventas aos amigos, para lhes<br />

aliviar com essa amistosa operação o cérebro sujeito a congestões violentas,<br />

pelo vapor <strong>da</strong> cerveja que sobe do estômago. 21<br />

Mas, não falta a Mariquinhas,<br />

a mais gentil rapariga <strong>de</strong> Vila Bela! Era uma donzela <strong>de</strong> <strong>de</strong>zoito anos, alta<br />

e robusta, <strong>de</strong> tez morena, <strong>de</strong> olhos negros, meu Deus! <strong>de</strong> cabelos azula<strong>dos</strong><br />

como asas <strong>de</strong> anum! Era impossível ver aquele narizinho, bem feito, aquela<br />

mimosa boca, úmi<strong>da</strong> e rubra, parecendo feita <strong>de</strong> polpa <strong>de</strong> melancia, as mãozinhas<br />

<strong>de</strong> princesa, os pés <strong>da</strong> Borralheira, impossível ver aquelas perfeições<br />

to<strong>da</strong>s sem ficar <strong>de</strong> queixo no chão, encantado e seduzido!... 22<br />

E vai num crescendo que só a leitura <strong>de</strong> “Amor <strong>de</strong> Maria” propicia.<br />

Mas, não <strong>de</strong>vo exce<strong>de</strong>r-me mais. Quaisquer tenham sido as influências que<br />

recebeu, sua obra merece, ain<strong>da</strong> hoje, ser li<strong>da</strong>, porque poucas existem, em nossa<br />

literatura, com as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que apresenta, e tão bem espelhando a terra e a<br />

gente.<br />

É interessante dizer que, por mais longínquas possam ser as origens e fontes<br />

<strong>dos</strong> seus romances, topamos, no Su<strong>de</strong>ste, com algumas <strong>da</strong>s personagens que<br />

brotaram no cenário amazônico e que ressurgem com a niti<strong>de</strong>z <strong>da</strong>s que Inglês<br />

<strong>de</strong> Sousa nos legou.<br />

19 Contos amazônicos, Laemmert & C. Editores,1893, pp. 59-60.<br />

20 Ibi<strong>de</strong>m, p., 103.<br />

21 Ibi<strong>de</strong>m, p. 104.<br />

22 Ibi<strong>de</strong>m, pp.57-58.<br />

164


Àquelas influências confessa<strong>da</strong>s acrescentaria Cervantes, como lembrou Taunay,<br />

nas figuras do Padre Antônio <strong>de</strong> Morais e do sacristão Macário, Quixote e<br />

Sancho, bem como no estilo fluente, mor<strong>da</strong>z, satírico <strong>de</strong> O coronel Sangrado.<br />

Mas, preza<strong>dos</strong> Confra<strong>de</strong>s, são críticos literários muitos <strong>dos</strong> que aqui estão,<br />

consagra<strong>dos</strong> pela obra; eu, leitor <strong>de</strong> muitas leituras e algum proveito, lhes direi<br />

apenas que é hora <strong>de</strong> reeditar Inglês <strong>de</strong> Sousa, para que se lhe faça justiça, <strong>da</strong>ndo-lhe<br />

lugar na galeria <strong>dos</strong> gran<strong>de</strong>s autores brasileiros.<br />

Repetirei o que disse Rodrigo Octavio Filho, ao final <strong>de</strong> sua conferência, há<br />

cinqüenta anos:<br />

A maior homenagem que se po<strong>de</strong>ria prestar à sua memória seria o reeditar-lhe<br />

a obra. Esperemos que isso aconteça, para que o seu espírito <strong>de</strong><br />

homem <strong>de</strong> letras e jurista recupere o lugar que lhe compete em nossa vi<strong>da</strong><br />

cultural. 23<br />

Este o nosso objetivo ao resumir, nestas notas, nossa apreciação, renovando<br />

as homenagens que to<strong>dos</strong> os brasileiros <strong>de</strong>vemos a Inglês <strong>de</strong> Sousa, pela obra<br />

literária e jurídica que nos <strong>de</strong>ixou, e que a posteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, estou certo, não se esquivará<br />

<strong>de</strong> preservar e honrar, como esta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, hoje,<br />

com ufania, faz.<br />

23 Ibi<strong>de</strong>m, p. 40.<br />

O ficcionista Inglês <strong>de</strong> Sousa<br />

165


Valentim Magalhães (1853-1909)<br />

Acervo do Arquivo <strong>da</strong> <strong>ABL</strong>


O fun<strong>da</strong>dor<br />

Valentim Magalhães<br />

Alberto Venancio Filho<br />

A<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> prossegue na série <strong>de</strong> conferências<br />

<strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s ao centenário <strong>de</strong> falecimento <strong>dos</strong> fun<strong>da</strong>dores, ampliando<br />

a iniciativa <strong>da</strong> gestão do sau<strong>dos</strong>o Presi<strong>de</strong>nte Austregésilo <strong>de</strong><br />

Athay<strong>de</strong> <strong>de</strong> homenagear o centenário <strong>de</strong> nascimento <strong>dos</strong> acadêmicos.<br />

Se examinarmos a relação <strong>dos</strong> quarenta fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong> nossa Instituição,<br />

veremos que eram na época figuras expressivas do meio intelectual,<br />

mas o <strong>de</strong>correr do tempo acarretou o esquecimento <strong>de</strong> alguns<br />

<strong>de</strong>les, cuja obra não teve permanência para chegar aos nossos dias. No<br />

ano passado ocorreu o centenário <strong>de</strong> morte <strong>de</strong> Urbano Duarte, fun<strong>da</strong>dor<br />

<strong>da</strong> Ca<strong>de</strong>ira n o 12, que passou no esquecimento, e o mesmo aconteceria<br />

com Valentim Magalhães, não fosse a feliz iniciativa do Presi<strong>de</strong>nte<br />

Alberto <strong>da</strong> Costa e Silva e do Secretário-Geral Ivan Junqueira.<br />

Desses fun<strong>da</strong>dores, duas exceções se apresentaram então, a confirmar<br />

a escolha, Carlos Magalhães <strong>de</strong> Azeredo, com apenas vinte e<br />

167<br />

Conferência<br />

pronuncia<strong>da</strong> na<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><br />

<strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><br />

<strong>Letras</strong>, a 15 <strong>de</strong><br />

abril <strong>de</strong> 2003,<br />

durante o ciclo<br />

<strong>Fun<strong>da</strong>dores</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>ABL</strong>.


Alberto Venancio Filho<br />

sete anos, que mal iniciava uma <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> carreira literária, e Graça Aranha, que<br />

até então não escrevera nenhum livro, apenas o prefácio para a obra <strong>de</strong> Fausto<br />

Car<strong>dos</strong>o Concepção monística do Universo, porém vivia no ambiente <strong>da</strong> Revista <strong>Brasileira</strong><br />

e cinco anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>spontaria com a publicação <strong>de</strong> Canaã.<br />

O acadêmico<br />

Antônio Valentim <strong>da</strong> Costa Magalhães foi o fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Ca<strong>de</strong>ira n o 7e<br />

escolheu como patrono Castro Alves. A escolha <strong>dos</strong> patronos se <strong>de</strong>u em<br />

fase posterior, muitas <strong>de</strong>las por critério <strong>de</strong> mérito, como Machado <strong>de</strong> Assis<br />

a José <strong>de</strong> Alencar, e outros por caráter pessoal que atendia também o critério<br />

do mérito, como o <strong>de</strong> Junqueira Freire por Franklin Dória. Outras foram<br />

<strong>de</strong> caráter regionalista, como a <strong>de</strong> Maciel Monteiro por Joaquim Nabuco,<br />

e Luís Murat escolheu por pura amiza<strong>de</strong> A<strong>de</strong>lino Fontoura. É curioso<br />

que Rui Barbosa, ao invés <strong>de</strong> escolher um jurista afinado com suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

principais, tenha se voltado para um jornalista – Evaristo <strong>da</strong> Veiga –<br />

e há o caso <strong>de</strong> Raul Pompéia, escolhido por dois fun<strong>da</strong>dores: Domício <strong>da</strong><br />

Gama e Rodrigo Octavio, cabendo àquele a preferência e Rodrigo Octavio<br />

optando por Tavares Bastos.<br />

Valentim Magalhães escolhe um poeta, um <strong>dos</strong> maiores, Castro Alves, <strong>da</strong>ndo<br />

a enten<strong>de</strong>r que na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> intelectual gostaria <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado como<br />

poeta.<br />

Na fase prévia <strong>de</strong> organização <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Lúcio <strong>de</strong><br />

Mendonça, Valentim Magalhães não consta entre os <strong>de</strong>z acadêmicos que<br />

seriam nomea<strong>dos</strong> pelo Governo, nem nos vinte a serem eleitos, e nem nos<br />

<strong>de</strong>z restantes que seriam correspon<strong>de</strong>ntes. Afasta<strong>da</strong> a criação <strong>da</strong> Casa<br />

como órgão do governo, reúnem-se na sala <strong>da</strong> Revista <strong>Brasileira</strong> para a fun<strong>da</strong>ção,<br />

em 15 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1896, quinze pessoas, entre as quais Valentim<br />

Magalhães. É <strong>de</strong> supor que sua presença tenha sido por influência<br />

<strong>de</strong> Lúcio <strong>de</strong> Mendonça, <strong>de</strong> quem era particular amigo e com quem manteve<br />

extensa correspondência.<br />

168


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Na segun<strong>da</strong> reunião <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro a que comparecem apenas onze<br />

pessoas, está presente novamente Valentim Magalhães. E na terceira reunião<br />

em 28, Rui Barbosa, Filinto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> e Valentim Magalhães justificam a<br />

ausência em carta, quando é aprovado o projeto <strong>de</strong> estatuto.<br />

Na sessão <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1897, <strong>da</strong> eleição <strong>da</strong> diretoria, não esteve presente<br />

Valentim Magalhães, nem na sessão <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> janeiro, mas na sessão <strong>de</strong><br />

28 <strong>de</strong> janeiro, em que se completa a eleição <strong>dos</strong> quarenta acadêmicos, comparece<br />

Valentim Magalhães.<br />

Curiosamente nem Lúcio <strong>de</strong> Mendonça nem Valentim Magalhães assistem<br />

à sessão inaugural <strong>de</strong> 20 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1897 e justificaram a ausência por carta,<br />

alegando enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ocorreu algum inci<strong>de</strong>nte que magoou o fun<strong>da</strong>dor, sendo<br />

acompanhado por Valentim Magalhães?<br />

Valentim Magalhães passa a freqüentar a Casa a partir <strong>da</strong> sessão <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong><br />

maio <strong>de</strong> 1898 e as sessões <strong>de</strong> 6 e 16 <strong>de</strong> junho, e nessa sessão é nomeado, junto<br />

com Graça Aranha e Lúcio <strong>de</strong> Mendonça para compor comissão que iria estu<strong>da</strong>r<br />

as propostas <strong>de</strong> sócios correspon<strong>de</strong>ntes. Comparece a várias sessões <strong>de</strong><br />

1898, 1 <strong>de</strong> julho, <strong>de</strong> 8 <strong>de</strong> agosto, 1 <strong>de</strong> outubro, 3 <strong>de</strong> outubro, eleição do Barão<br />

do Rio Branco, 30 <strong>de</strong> outubro, e 2 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro. Há um período <strong>de</strong> ausência,<br />

incluindo a posse <strong>de</strong> Domício <strong>da</strong> Gama em 1 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1900, que se interrompe<br />

com a presença na sessão <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1902, última a que comparece.<br />

E na sessão <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1903 a ata <strong>de</strong>clara laconicamente: “O Presi<strong>de</strong>nte<br />

Machado <strong>de</strong> Assis abriu a sessão e comunicou à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> o falecimento<br />

<strong>de</strong> Valentim Magalhães.”<br />

Dos membros fun<strong>da</strong>dores po<strong>de</strong>-se concluir que foram pessoas <strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s à<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> literária, e muitos <strong>de</strong>les jovens, como Valentim Magalhães que em<br />

1897 teria trinta e sete anos, mas já apresentava uma produção literária significativa,<br />

o mesmo ocorrendo com a gran<strong>de</strong> maioria <strong>dos</strong> fun<strong>da</strong>dores, embora no<br />

futuro muitos, como Valentim Magalhães, tivessem ficado na obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Valentim Magalhães foi sucedido por Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha, que no discurso<br />

<strong>de</strong> posse traçou-lhe o perfil completo e exaustivo, que guar<strong>da</strong>ria parelha na sucessão<br />

<strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira, em idênticos estu<strong>dos</strong>, com os discursos <strong>de</strong> Afrânio Peixoto<br />

169


Alberto Venancio Filho<br />

sobre o autor <strong>de</strong> Os sertões,eo<strong>de</strong>Afonso Pena Júnior sobre o autor <strong>de</strong> Aesfinge,<br />

ambos sem qualquer referência ao fun<strong>da</strong>dor.<br />

Coube ao meu mestre e nosso sau<strong>dos</strong>o confra<strong>de</strong> Hermes Lima, suce<strong>de</strong>ndo a<br />

Afonso Pena Júnior, traçar na síntese primorosa do seu estilo o retrato <strong>de</strong> nosso<br />

homenageado <strong>de</strong> hoje:<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães, morto na casa <strong>dos</strong> quarenta anos, foi<br />

tão vário e dispersivo que sua existência lembra uma torrente sem caminho.<br />

Prógono <strong>da</strong> “Idéia Nova” que na época vagamente sintetizava o movimento<br />

renovador <strong>da</strong> cultura, <strong>da</strong>s letras e <strong>da</strong>s artes, dotado <strong>de</strong> talento e ar<strong>de</strong>ndo<br />

na ânsia <strong>de</strong> viver, gozou <strong>de</strong> notorie<strong>da</strong><strong>de</strong> e prestígio, produziu muito, porém<br />

improvisou <strong>de</strong>mais. Ao sabor <strong>de</strong> solicitações contraditórias, cedo por elas é<br />

<strong>de</strong>vorado como se não lhe tivesse sobrado tempo para colocar na faixa <strong>de</strong><br />

seu <strong>de</strong>stino a quota pessoal <strong>de</strong> realismo e disciplina que seu nome e sua vocação<br />

<strong>de</strong> escritor estavam a exigir.<br />

O sucessor Pontes <strong>de</strong> Miran<strong>da</strong> limitou-se à reduzi<strong>da</strong> síntese biográfica, e a<br />

nossa colega Dinah Silveira <strong>de</strong> Queiroz vinculou a figura do patrono Castro<br />

Alves ao fun<strong>da</strong>dor:<br />

É ele, é Castro Alves, aquele jovem tão belo com sua larga testa, seus<br />

olhos fun<strong>dos</strong>, seus cabelos fortes como se tivessem movimento, vivos na<br />

dispara<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus poemas, <strong>de</strong> sua “Vozes d’África”, que estaria agora influindo<br />

com sua profun<strong>da</strong> vocação to<strong>dos</strong> os que se abrigaram à ca<strong>de</strong>ira<br />

número sete <strong>de</strong>sta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> como patrono. E por um <strong>de</strong>sses prodígios <strong>da</strong><br />

bênção <strong>de</strong> padrinho imprimiria a nós, seus pupilos, uma direção. Eis aqui<br />

Valentim Magalhães, um <strong>dos</strong> fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> que, em 1879, recita:<br />

“Ó luz, Ó liber<strong>da</strong><strong>de</strong>! Não estás longe, não! Vens perto <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Pois que o trabalhador começa a meditar!” O espírito revolucionário que<br />

po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>fluir também do sentido <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Castro Alves, acrescenta<br />

Valentim certa maneira satírica para estu<strong>da</strong>r os escritores que lhe foram<br />

170


contemporâneos e... “Entre nós, quando um poeta e um prosador, ao cabo<br />

<strong>de</strong> haver-se arruinado a editar-se a si próprio, e <strong>de</strong> haver obrigado bom<br />

número <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dãos incautos a ficar com as suas obras... <strong>de</strong> graça e <strong>de</strong> estar<br />

farto <strong>de</strong> se ouvir chamar célebre pelas gazetas – julga-se em caminho <strong>da</strong><br />

notorie<strong>da</strong><strong>de</strong>, para fora do reposteiro negro <strong>da</strong> obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong>, passa um dia,<br />

inespera<strong>da</strong>mente, pelo amargo <strong>de</strong>sengano, pela <strong>de</strong>cepção <strong>de</strong> ouvir perguntar-lhe<br />

um <strong>dos</strong> seus colegas <strong>de</strong> repartição ou um <strong>dos</strong> seus habituais companheiros<br />

do café, do bon<strong>de</strong> ou <strong>da</strong> charutaria: – Como? Pois também você<br />

é literato? Não sabia. Aquele ‘também’ é característico e, como sintoma,<br />

vale bem um império.<br />

E o nosso confra<strong>de</strong> e amigo Sergio Corrêa <strong>da</strong> Costa, atual ocupante <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira,<br />

vinculou-o aos objetivos <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>:<br />

O fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> ca<strong>de</strong>ira – Valentim Magalhães – revelou sempre intensa<br />

preocupação com o Brasil e sua cultura, seja na li<strong>de</strong>rança intelectual que<br />

exerceu, seja na continua<strong>da</strong> prática do jornalismo, em que fixou temas e aspectos<br />

<strong>da</strong> nossa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> social e política, até então escassamente aprecia<strong>dos</strong>.<br />

Seu empenho junto aos <strong>de</strong>mais fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong>sta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, no sentido<br />

<strong>de</strong> <strong>da</strong>r à Instituição um cunho nacional, eminentemente representativo <strong>da</strong>s<br />

tendências e características <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as regiões do País, confirma esse traço<br />

marcante que procuro assinalar.<br />

O início<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Valentim Magalhães era filho legítimo <strong>de</strong> Antônio Valentim <strong>da</strong> Costa<br />

Magalhães e <strong>de</strong> D. Maria Custódia Alves Meira, aquele <strong>de</strong> nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

portuguesa e esta carioca e filha <strong>de</strong> negociantes abasta<strong>dos</strong> do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Nasceu nesta capital, a 16 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1859, na antiga Rua Con<strong>de</strong> d’Eu,<br />

hoje Frei Caneca, 58, num domingo, e alguns meses <strong>de</strong>pois era batizado na<br />

Igreja <strong>de</strong> Santo Antônio <strong>dos</strong> Pobres, e recebeu o nome <strong>de</strong> Antônio.<br />

171


Alberto Venancio Filho<br />

Tinha um ano <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> apenas quando se viu órfão <strong>de</strong> mãe, mas não lhe faltaram<br />

os cui<strong>da</strong><strong>dos</strong> do pai, por ele criado e educado; e com seus tios Dr. João<br />

Alves Meira e D. Maria Quitéria Alves Meira apren<strong>de</strong>u as primeiras letras.<br />

Depois <strong>de</strong> cursar por algum tempo as aulas do Colégio Fábio Reis, fez os<br />

seus estu<strong>dos</strong> preparatórios no antigo internato <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Paula, sito<br />

no Largo do Rocio (atual Praça Tira<strong>de</strong>ntes), no mesmo edifício on<strong>de</strong> funcionou<br />

mais tar<strong>de</strong> o Clube Naval.<br />

No livro Alma há uma página evocativa <strong>da</strong> figura bon<strong>dos</strong>a do Cônego Belmonte,<br />

velho diretor do Colégio, recor<strong>da</strong>ndo com sau<strong>da</strong><strong>de</strong>s aqueles primeiros<br />

tempos. Os jornais tinham noticiado o falecimento do mestre, e isto <strong>de</strong>spertou<br />

na alma do antigo discípulo uma recor<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> infância.<br />

Valentim Magalhães manifestou <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo pendor para as letras e já aos<br />

treze anos colaborava em alguns jornais <strong>de</strong> província.<br />

Em 1876, com <strong>de</strong>zessete anos, seguiu para São Paulo e no ano seguinte<br />

matricula-se na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito. Rui Barbosa, chegando a São Paulo<br />

para concluir o curso <strong>de</strong> Direito, escreveu a um parente na Bahia: “Estou engolfado<br />

na vi<strong>da</strong> acadêmica.” A vi<strong>da</strong> acadêmica não era a freqüência às aulas e<br />

o estudo <strong>dos</strong> manuais, mas sobretudo a participação nos clubes literários,<br />

nos jornais estu<strong>da</strong>ntis, nos grêmios abolicionistas e republicanos, nas lojas<br />

maçônicas. Foi essa vi<strong>da</strong> acadêmica que Valentim Magalhães encontrou ao<br />

fixar-se em São Paulo.<br />

Logo no primeiro ano foi eleito re<strong>da</strong>tor do Labarum, com Eduardo Prado,<br />

e colaborou na República, órgão do Club Republicano Acadêmico, a que se<br />

havia filiado. Nessa última folha, dirigido então por Lúcio <strong>de</strong> Mendonça e<br />

Manhães <strong>de</strong> Campos, publicou Valentim os seus primeiros folhetins chistosos<br />

e críticos.<br />

Nesse mesmo ano, além <strong>de</strong> um poemeto elegíaco sobre o general Osório,<br />

publicou ele, em colaboração com Silva Jardim, um livro em prosa e verso, Idéias<br />

<strong>de</strong> moço, rematando com um conto fantástico “O grito na treva”, escrito a<br />

duas penas, no gosto byroniano, à maneira <strong>da</strong> Noite na taverna <strong>de</strong> Álvares <strong>de</strong><br />

Azevedo.<br />

172


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Os poetas mais festeja<strong>dos</strong> na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> naquele tempo eram Teófilo Dias,<br />

Afonso Celso, Assis Brasil e Valentim Magalhães; mas em 1879 a nomea<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>ste último superara o estreito círculo acadêmico com a publicação <strong>dos</strong> Cantos<br />

e lutas, livro <strong>de</strong> poesias que a imprensa acolheu com aplausos. E <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então,<br />

integrando o jornalismo, começou a escrever nos jornais <strong>de</strong> maior importância<br />

e maior circulação <strong>de</strong> São Paulo e <strong>da</strong> capital: a Província <strong>de</strong> S. Paulo,oCorreio Paulistano,<br />

a Gazeta <strong>de</strong> Notícias, a Gazeta <strong>da</strong> Tar<strong>de</strong>, o Globo.<br />

Em 1880 colabora com a Evolução, folha republicana e fe<strong>de</strong>ralista, dirigi<strong>da</strong><br />

por Júlio <strong>de</strong> Castilhos e Assis Brasil, com cooperação <strong>de</strong> Pereira <strong>da</strong> Costa,<br />

Alci<strong>de</strong>s Lima, Antônio Mercado, Teófilo Dias, Homero Batista, Pedro Lessa<br />

e outros estu<strong>da</strong>ntes. Tendo ido a São Paulo em março apenas para se matricular<br />

no quarto ano, permaneceu to<strong>da</strong> a época letiva fora <strong>da</strong>quela ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Publicou<br />

então vários contos e poesias e escreveu folhetins na Gazeta <strong>de</strong> Notícias, e esta<br />

lhe editou o poemeto “Colombo e Nenê” para distribuição como prêmio aos<br />

assinantes; freqüentou as ro<strong>da</strong>s literárias <strong>da</strong> capital, on<strong>de</strong> o espírito e o talento<br />

lhe fizeram adquirir inúmeros amigos e admiradores; e, gozando <strong>da</strong>s larguezas<br />

proporciona<strong>da</strong>s pela recente lei do “ensino livre”, só voltou a São Paulo em<br />

novembro, para prestar os exames, nos quais foi plenamente aprovado, apesar<br />

<strong>de</strong> não haver assistido às respectivas aulas.<br />

Em 1881, Valentim Magalhães fundou em São Paulo a Comédia, <strong>de</strong> que foi<br />

re<strong>da</strong>tor, primeiro com Silva Jardim, e <strong>de</strong>pois com Eduardo Prado. A Comédia<br />

era <strong>de</strong> publicação diária e durou pouco menos <strong>de</strong> três meses, <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong> março a<br />

23 <strong>de</strong> maio.<br />

A turma que se formou em 1881 contou figuras expressivas: Francisco <strong>de</strong><br />

Paula Paiva Baracho, juiz em São Paulo; Aristi<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Araújo Maia, <strong>de</strong>putado<br />

à Constituinte Republicana; Job Marcon<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Rezen<strong>de</strong>, advogado, Manoel<br />

José Villaça e Arlindo Ernesto Ferreira Guerra, magistra<strong>dos</strong> <strong>de</strong> alto conceito;<br />

Estevam Leão Bourroul, justamente cognominado o Veuillot Brasileiro;Júlio<br />

Prates <strong>de</strong> Castilhos, o político rio-gran<strong>de</strong>nse; Raphael Corrêa <strong>da</strong> Silva<br />

Sobrinho e João Braz <strong>de</strong> Oliveira Arru<strong>da</strong>, lentes <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong>; João Passos,<br />

que, por muitos anos, exerceu com brilho as funções <strong>de</strong> procurador-geral do<br />

173


Alberto Venancio Filho<br />

Estado <strong>de</strong> São Paulo; João Antônio <strong>de</strong> Oliveira César; Isaías Martins <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong><br />

e Leopoldo Teixeira Leite, advoga<strong>dos</strong> afama<strong>dos</strong>; Manoel Ignácio Carvalho<br />

<strong>de</strong> Mendonça, eminente civilista, a quem se <strong>de</strong>vem a Doutrina e Prática <strong>da</strong>s<br />

Obrigações, Rio e Águas Correntes e Contratos no Direito Civil Brasileiro; Theófilo Dias<br />

<strong>de</strong> Mesquita e Eduardo Paulo <strong>da</strong> Silva Prado. Diz Eucli<strong>de</strong>s:<br />

Destacara-se (Valentim) notavelmente, granjeando invejável nomea<strong>da</strong><br />

entre conterrâneos que se chamavam Júlio <strong>de</strong> Castilhos, Silva Jardim, Barros<br />

Cassal, Teófilo Dias, Eduardo Prado, Raul Pompéia, Lúcio <strong>de</strong> Mendonça,<br />

Assis Brasil, Afonso Celso, Fontoura Xavier, Augusto <strong>de</strong> Lima,<br />

Alci<strong>de</strong>s Lima, Alberto Sales, Pedro Lessa, Luís Murat, Júlio <strong>de</strong> Mesquita,<br />

Raimundo Correia.<br />

Ora, Valentim foi a figura representativa no meio <strong>de</strong> tão díspares tendências,<br />

por isto mesmo que lhe faltou sempre uma diretriz à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> dispersiva.<br />

Spencer Vampré, falando <strong>de</strong>ssa fase, diria: “Valentim Magalhães, espírito<br />

vibrante e combatido <strong>de</strong> poeta, <strong>de</strong> jornalista, e <strong>de</strong> crítico”, e <strong>de</strong>le transcreve:<br />

A nau <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

Veleja a nau <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong>... De repente :<br />

– “Mais um!” bra<strong>da</strong> Saturno, e às on<strong>da</strong>s lança<br />

O cadáver <strong>de</strong> um ano... Docemente<br />

Desliga o barco, ao sopro <strong>da</strong> Esperança.<br />

Canta, na tol<strong>da</strong>, a Juventu<strong>de</strong> ar<strong>de</strong>nte;<br />

Chora a Velhice, e invali<strong>da</strong> <strong>de</strong>scansa;<br />

E a Morte, – nuvem negra –, indiferente,<br />

Por sobre as águas pérfi<strong>da</strong>s avança.<br />

– “Mais um!” repete o nauta apavorado;<br />

Como um fúnebre pêndulo, oscilando<br />

174


Na dúvi<strong>da</strong>, que o punge e que o tortura;<br />

– E enquanto ao sol <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, rutilando,<br />

Lhe aquece e beija o crânio atordoado<br />

Vai-se-lhe abrindo aos pés a sepultura.<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Sá Viana, nos Esboços críticos <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> São Paulo em 1879, relatou<br />

com ironia a situação do corpo discente, falando <strong>dos</strong> “estu<strong>da</strong>ntes que são to<strong>dos</strong><br />

que vão diariamente ao convento ou mesmo que lá não vão, mas pagam a<br />

matrícula à Fazen<strong>da</strong> Nacional. Classe que representa poucos, pois a ari<strong>de</strong>z e<br />

força <strong>dos</strong> estu<strong>dos</strong> fazem recuar grupos numerosos que se limitam a adquirir<br />

conhecimento geral. Nesse grupo está Valentim Magalhães”.<br />

Consi<strong>de</strong>ra Sá Viana que, <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os ramos <strong>da</strong> literatura na Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

São Paulo, era a poesia que merecia o <strong>de</strong>vido cultivo e aponta dois estu<strong>da</strong>ntes<br />

que pensavam na mesma coisa, a poesia, Raimundo Correia e Valentim Magalhães.<br />

E <strong>de</strong>ste último comenta: “É moço inteligente, podia ser bom estu<strong>da</strong>nte<br />

<strong>de</strong> direito se se <strong>de</strong>dicasse com mais serie<strong>da</strong><strong>de</strong> ao estudo, mas não, é poeta.” Diz<br />

Eucli<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Cunha:<br />

Os primeiros quinze anos <strong>de</strong> Valentim Magalhães coinci<strong>de</strong>m com uma<br />

fase <strong>de</strong> profun<strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças <strong>da</strong> nossa existência política. De 1860, ao levantar-se<br />

o preamar <strong>de</strong>mocrático, simbolizado em Teófilo Otoni e rugindo<br />

na “Mentira <strong>de</strong> Bronze” <strong>de</strong> Pedro Luiz, a 1870 e 1875, quando a monarquia<br />

per<strong>de</strong>u, uma após a outra, as muletas <strong>da</strong> aristocracia territorial e <strong>da</strong><br />

Igreja – foi tão intensiva a <strong>de</strong>composição do antigo regime que o simples<br />

enfeixar as frases acerbas <strong>dos</strong> maiores chefes <strong>de</strong> seus parti<strong>dos</strong> é uma missão<br />

<strong>de</strong> Tácito, e não se compreen<strong>de</strong> que se per<strong>de</strong>sse tanto tempo para realizar-se<br />

o passeio marcial <strong>de</strong> 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1889.<br />

Assim, a juventu<strong>de</strong> do escritor aparelhava-se para a vi<strong>da</strong>, quando em<br />

torno à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> se alterava, apercebendo-se <strong>de</strong> novos elementos para<br />

existir; e isto precisamente no cenário mais revolto <strong>de</strong> uma tal metamorfose.<br />

175


Alberto Venancio Filho<br />

A geração <strong>de</strong> que Valentim Magalhães foi a figura mais representativa,<br />

<strong>de</strong>via ser o que foi: fecun<strong>da</strong>, inquieta, brilhantemente anárquica, tonteando<br />

no <strong>de</strong>sequilíbrio <strong>de</strong> um progresso mental precipitado a <strong>de</strong>stoar <strong>de</strong> um estado<br />

emocional que não po<strong>de</strong>ria mu<strong>da</strong>r com a mesma rapi<strong>de</strong>z; e a sua vi<strong>da</strong>, a<br />

sua carreira literária vertiginosa, to<strong>da</strong> disposta a nobilíssimas tentativas reduzi<strong>da</strong>s<br />

a belíssimos preâmbulos, a nossa própria vi<strong>da</strong> literária, impaciente<br />

e doi<strong>de</strong>jante, brilhando fugazmente à superfície <strong>da</strong>s coisas, inapta às análises<br />

fecun<strong>da</strong>s pelo muito ofuscar-se com as lantejoulas <strong>da</strong>s generalizações<br />

precipita<strong>da</strong>s.<br />

Formado, volta ao Rio. Em carta a Lúcio <strong>de</strong> Mendonça diria: “No dia 15<br />

<strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1882 <strong>de</strong>vo partir com a família – mulher e filho – para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Piraí que V. conhece bem; aí vou trabalhar com o meu gran<strong>de</strong>, com meu maior<br />

amigo, o tio José Alves Meira, que V. também conhece e estima, certamente.”<br />

A esta<strong>da</strong> foi curta e retornou em pouco tempo para se <strong>de</strong>sdobrar em vários<br />

empregos. Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1883 mu<strong>da</strong>va <strong>de</strong> planos: “Tomei uma <strong>de</strong>cisão<br />

heróica. E aqui me tens. Mu<strong>de</strong>i-me do teu berço para o meu berço. Não é<br />

que eu lá não arranjasse a vi<strong>da</strong> às 500 maravilhas (mil seria exagero) o foro<br />

ain<strong>da</strong> ren<strong>de</strong> bastante, além disso eu trabalhava como o Meira, meu protetor e<br />

meu amigo.”<br />

E queixando-se <strong>da</strong> profissão: “Aquilo <strong>de</strong> só ver o nariz <strong>dos</strong> escrivães, as orelhas<br />

<strong>dos</strong> juízes, as unhas <strong>dos</strong> colegas, a cau<strong>da</strong> <strong>dos</strong> políticos – aquilo matava-me<br />

lentamente. Não trepi<strong>de</strong>i, abracei o Meira, disse um a<strong>de</strong>us ao teu berço e cá estou.<br />

Fiz bem? Fiz mal? Não o sei.”<br />

E falando <strong>da</strong>s novas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s: “É preciso que saibas que ganhando <strong>de</strong>z réis<br />

<strong>de</strong> mel coado, sou entretanto um <strong>dos</strong> homens apensiona<strong>dos</strong> <strong>de</strong>sta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> heróica.<br />

Tenho a Gazeta, tenho a Semana, tenho a Escola Normal (on<strong>de</strong> finjo ensinar<br />

pe<strong>da</strong>gogia); tenho os exames <strong>de</strong> português na instrução pública, tenho uma<br />

advocacia manhosa, tenho inúmeros cacetes, tenho o diabo.”<br />

Em confidência a Lúcio: “Se eu tivesse ficado em tua terra, ganharia a mesma<br />

importância, mas não pu<strong>de</strong> suportar aquilo. Voei <strong>de</strong> lá para aqui e, embora<br />

176


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

não folga<strong>da</strong>mente, vou indo. Trabalho muito, é ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas ao menos ando<br />

com o espírito arejado, leve, satisfeito.”<br />

Fundou em 1885 ASemana e este periódico, estritamente literário, fez o milagre<br />

<strong>de</strong> durar numa primeira fase três anos. Mas para isto, à parte um concurso<br />

notável, em que se extremavam Urbano Duarte, Raul Pompéia, Alfredo<br />

Sousa e Luís Rosa, <strong>de</strong>spen<strong>de</strong>u o melhor <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e quanto lhe adviera<br />

<strong>da</strong> herança paterna. Mas não vacilou ante a ruína. “Iludia-se quem lhe medisse<br />

a fortaleza pela volubili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Era um caráter varonil blin<strong>da</strong>do <strong>de</strong> uma joviali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

heróica. Tinha esse recato do sofrimento que é a única expressão simpática<br />

do orgulho. Os seus melhores amigos jamais lhe divisaram <strong>de</strong>sânimos.”<br />

Tive ocasião <strong>de</strong> compulsar a coleção quase completa que a Biblioteca <strong>da</strong><br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> possui <strong>de</strong> ASemana e verificar a alta quali<strong>da</strong><strong>de</strong> do periódico, com excelente<br />

apresentação gráfica, publicação certa, seções varia<strong>da</strong>s, sem falar no excelente<br />

corpo <strong>de</strong> colaboradores.<br />

Ao lançar o primeiro número <strong>da</strong> ASemana em 3 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1885, diria<br />

Valentim Magalhães:<br />

Dissemos nos prospectos com que anunciamos a criação <strong>de</strong>sta folha: “A<br />

Semana constitui uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> para o público. E acreditamos não havermos<br />

enganado o público.” As razões que tínhamos e temos para pensar que ASemana<br />

é uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> são as seguintes, aponta<strong>da</strong>s nos prospectos: Não é<br />

propriamente uma revista, como as que até hoje tem havido. Publicação<br />

hebdomadária, terá, no entanto, o caráter <strong>de</strong> um jornal diário.<br />

O seu fim único será este: – fazer a história completa e fiel <strong>da</strong> semana, <strong>de</strong>corri<strong>da</strong>,<br />

<strong>da</strong>ndo a nota do dia. Para isso terá seções em que se ocupará com<br />

tudo quanto tenha sido feito na semana em ciências, artes, letras, comércio,<br />

indústria, costumes, religião, etc., oferecendo aos leitores uma curta notícia,<br />

satisfatória e imparcial, <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os fatos que em to<strong>dos</strong> esses ramos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

se tiverem realizado nos sete dias <strong>de</strong>corri<strong>dos</strong>.<br />

No intuito <strong>de</strong> auxiliar os jovens escritores <strong>de</strong> talento, aceitará ASemana<br />

qualquer trabalho literário em harmonia com a sua índole e o seu programa,<br />

177


Alberto Venancio Filho<br />

publicando-o e pagando-o ao seu autor, <strong>de</strong> conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a tabela <strong>da</strong><br />

folha. A primeira <strong>da</strong>s condições para a aceitação <strong>de</strong>sses trabalhos será a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> seus autores.<br />

Sobre o an<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> ASemana escrevia Valentim a Lúcio <strong>de</strong> Mendonça<br />

em junho <strong>de</strong> 1885: “Estamos precisadíssimos <strong>de</strong> dinheiro. A coisa vai bem,<br />

mas <strong>de</strong> fora <strong>da</strong>s províncias, on<strong>de</strong> contamos gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> assinantes, superior<br />

aos <strong>da</strong> Corte, pouco dinheiro tem vindo. E isto é o diabo atualmente em<br />

que nos metemos em gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>spesas: tipografia, casa na Rua do Ouvidor,<br />

etc. Tem paciência meu velho, e arranja-me esse par <strong>de</strong> botas ... pecuniárias.”<br />

Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1897 comentava o fracasso em carta ao mesmo <strong>de</strong>stinatário:<br />

“Obrigado pelos teus pêsames pela <strong>de</strong>gringola<strong>de</strong> <strong>da</strong> ASemana. Apesar <strong>dos</strong><br />

pesares, ain<strong>da</strong> me julguei feliz ven<strong>de</strong>ndo tudo por uma tuta e meia, assumindo<br />

a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s dívi<strong>da</strong>s passivas, que são muitas, e per<strong>de</strong>ndo todo o dinheiro<br />

que ali enterrei, porque mesmo assim, não me estourou a folha nas<br />

mãos, passei-a adiante, <strong>de</strong>sobriguei-me com os assinantes e não fiz inteiro fiasco.<br />

Ao contrário, parece-me que consegui sair-me bem <strong>de</strong> tão terrível aperto.<br />

Agra<strong>de</strong>ço-te cordialmente, meu bom e bravo Lúcio, o muito que pela minha<br />

pobre Semana fizeste. Rei morto, rei posto. Vou meter-me noutra!”<br />

Des<strong>de</strong> o primeiro número havia uma seção História <strong>dos</strong> sete dias, comentando<br />

os fatos <strong>da</strong> semana, inicialmente sempre assina<strong>da</strong> por Valentim Magalhães<br />

e em números subseqüentes com outras assinaturas, que parecem ser pseudônimos<br />

do diretor, como Valmor N.N., José Reis Filho.<br />

A revista teve vários en<strong>de</strong>reços: a Travessa do Ouvidor, 36, sobrado; Rua<br />

do Ourives, 51; e afinal Rua <strong>da</strong> Quitan<strong>da</strong>, 34, bem próximo do escritório <strong>de</strong><br />

Rodrigo Octavio nos altos <strong>da</strong> Farmácia Araújo Pena, on<strong>de</strong> se realizaram as<br />

primeiras sessões <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>.<br />

Valentim Magalhães era o re<strong>da</strong>tor chefe e seus re<strong>da</strong>tores, to<strong>dos</strong> futuros<br />

acadêmicos: Filinto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, Aluísio Azevedo, Luís Murat e Urbano Du-<br />

178


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

arte. A colaboração era a mais varia<strong>da</strong>. Machado <strong>de</strong> Assis foi um colaborador<br />

eventual e Capistrano <strong>de</strong> Abreu escreveu sobre temas históricos.<br />

ASemana realizou um concurso sobre o maior poeta brasileiro, sendo vencedor<br />

Gonçalves Dias e em segundo lugar Castro Alves, e manteve por certo período<br />

a seção Galeria <strong>de</strong> Elogios Mútuos, em que um escritor escrevia a biografia<br />

do outro.<br />

A Semana reaparece em julho <strong>de</strong> 1895, sob a direção <strong>de</strong> Valentim Magalhães<br />

e Max Fleiuss (1868-1943). O prospecto <strong>de</strong> lançamento, assinado pelo<br />

primeiro, dizia, entre outras coisas:<br />

O que foi este periódico, que, sob minha direção, existiu nesta capital <strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 1885 a novembro <strong>de</strong> 1887, sabe-o todo o Brasil, cujo movimento<br />

literário representou durante aquele período [...] A sua influência sobre o<br />

movimento literário e artístico do Brasil foi tão patente [...] que acredito<br />

que a notícia do ressurgimento d’ASemana será recebi<strong>da</strong> com vivo júbilo e<br />

geral aprovação.<br />

Afirmava então ser oportuno o aparecimento:<br />

Há quatro anos que o espírito público vive absorvido, ocupado, oprimido<br />

pela Política, com opor uma obsessão pesa<strong>da</strong> e funesta.<br />

As letras retraíram-se quase completamente e o nível intelectual tem <strong>de</strong>scido<br />

<strong>de</strong> modo inquietante, perceptível aos olhos menos sagazes [...]<br />

As incertezas e atribulações do atual momento político vão produzindo<br />

sobre a alma nacional uma <strong>de</strong>pressão tão fun<strong>da</strong> e penosa, que é tempo <strong>de</strong><br />

abrir-lhe um respiradouro, <strong>de</strong> rasgar-lhe uma janela, aon<strong>de</strong> ela venha haurir<br />

um ar puro, álacre, oxigenado vigorosamente pelas serenas produções <strong>da</strong> literatura<br />

contemporânea.<br />

ASemana terá agora os mesmos colaboradores <strong>de</strong> então, além <strong>dos</strong> escritores<br />

novos que a queiram honrar com as suas produções. Não terá prevenções,<br />

nem coteries, nem preconceitos literários. Procurará ser mo<strong>de</strong>rna, sem<br />

179


Alberto Venancio Filho<br />

acompanhar contudo as extravagâncias e <strong>de</strong>spropósitos nasci<strong>dos</strong> na se<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ser novo, <strong>de</strong> ser original por qualquer modo.<br />

A Semana apareceu em 1885 pela mesma razão por que vai reaparecer<br />

em 1893: porque o estado cultural <strong>dos</strong> espíritos <strong>de</strong>terminava esse fato naquele<br />

momento histórico.<br />

Ao reiniciar a nova fase <strong>de</strong> ASemana em 1895, já contando com um eficiente<br />

administrador, Valentim Magalhães atribuía o insucesso <strong>da</strong> fase anterior à falta<br />

<strong>de</strong> capital para os melhoramentos: “Não chegavam as assinaturas e os anúncios<br />

para fazer face às <strong>de</strong>spesas excessivas. Tive <strong>de</strong> sacrificar o meu bolsinho.<br />

Esgotado ele e sem elementos novos para a luta, <strong>de</strong>sanimei e passei a folha adiante.<br />

Poucas semanas <strong>de</strong>pois finava a probrezinha.” Mas afirmava ser ASemana<br />

“a única <strong>de</strong> minhas obras <strong>de</strong> que imo<strong>de</strong>stamente me orgulho”.<br />

Nessa nova fase, o periódico vai durar até junho <strong>de</strong> 1897. Entre as suas promoções<br />

<strong>de</strong> 1895 figurou o concurso entre os leitores para saber quis “os seis<br />

melhores romances escritos em língua portuguesa”, com o seguinte resultado:<br />

1 o lugar – Os Maias<br />

2 o lugar – O primo Basílio<br />

3 o lugar – Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas<br />

4 o lugar – Arelíquia<br />

5 o lugar – Amão e a luva<br />

6 o lugar – O Ateneu<br />

Vendo na Semana uma capela <strong>de</strong> elogio mútuo, tacitamente antipática aos<br />

valores emergentes <strong>da</strong>s novas gerações, Luís Murat e Artur Azevedo fun<strong>da</strong>ram<br />

a Vi<strong>da</strong> Mo<strong>de</strong>rna, episódio relatado por Coelho Neto, anos mais tar<strong>de</strong>, nas páginas<br />

<strong>de</strong> Aconquista.<br />

Valentim Magalhães tinha uma produção febril. Em 1886 escreveu Vinte<br />

contos; em 1887, Horas alegres; publicou, refundi<strong>da</strong>s em 1888, as Notas à margem;<br />

em 1889, Escritores e Escritos... “Ve<strong>de</strong>: não há a solução mais breve no duo<strong>de</strong>cê-<br />

180


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

nio que percorremos. Não se pula uma <strong>da</strong>ta sem pular-se um livro. O escritor<br />

violou doze vezes segui<strong>da</strong>s o nonum primatur in anno...”<br />

Diz Eucli<strong>de</strong>s, comentando o período:<br />

De 1889 a 1895 houve aparente <strong>de</strong>scanso. A República, feita numa madruga<strong>da</strong>,<br />

criara a ilusão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s coisas feitas <strong>da</strong> noite para o dia. Valentim,<br />

como to<strong>dos</strong>, vacilou na vertigem geral. Ordinariamente se acredita que o empolgasse<br />

o anseio <strong>da</strong> fortuna fácil, naquela quadra que a ironia popular ferreteou<br />

com o nome <strong>de</strong> ‘encilhamento’. Com efeito, salvante alguns artigos esporádicos,<br />

o incansável homem <strong>de</strong> letras parecia mu<strong>da</strong>do num infatigável homem<br />

<strong>de</strong> negócios. E fundou – como to<strong>da</strong> a gente – uma companhia.<br />

Mas consi<strong>de</strong>rai como o sonhador <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhou as voltas retorci<strong>da</strong>s <strong>dos</strong> cifrões<br />

e alinhou parcelas como se alinhasse versos; aquela ‘Educadora’, que se<br />

transformou <strong>de</strong>pois numa vulgar companhia <strong>de</strong> seguros, era uma fantasia<br />

comercial. Não segurava vi<strong>da</strong>s, segurava inteligências; e o segurado, ao invés<br />

<strong>de</strong> um ajuste sinistro com a morte, a troco <strong>de</strong> alguns contos <strong>de</strong> réis, garantia<br />

a educação <strong>dos</strong> filhos.<br />

O <strong>de</strong>vaneio mercantil não vingou.<br />

Na expressão <strong>de</strong> Caio Prado Júnior sobre o Encilhamento:<br />

A quase totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s novas empresas era fantástica e não tinha existência<br />

senão no papel. Organizavam-se apenas com o fito <strong>de</strong> emitir ações e <strong>de</strong>spejá-las<br />

no mercado <strong>de</strong> títulos, on<strong>de</strong> passavam <strong>de</strong> mão em mão em valorizações<br />

sucessivas. Chegaram a faltar nomes apropria<strong>dos</strong> para <strong>de</strong>signar novas<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, e inventavam-se as mais extravagantes <strong>de</strong>nominações.<br />

A transformação terá sido tão brusca e completa que revemos as próprias<br />

classes e os mesmos indivíduos mais representativos <strong>da</strong> monarquia, <strong>da</strong>ntes ocupa<strong>dos</strong><br />

com a polícia e funções similares, e no máximo com uma longínqua e sobranceira<br />

direção <strong>de</strong> suas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s rurais, mu<strong>da</strong><strong>dos</strong> subitamente em ativos<br />

especuladores e negocistas. Ninguém escapará aos novos imperativos <strong>da</strong> época.<br />

181


Alberto Venancio Filho<br />

Assim ocorreu com Valentim Magalhães, que <strong>de</strong>dicado à literatura e ao jornalismo,<br />

se abalançou a criar uma companhia <strong>de</strong> seguros, “A Educadora”, com<br />

fins <strong>de</strong> garantir a educação <strong>dos</strong> jovens. Não é preciso dizer que esse empreendimento<br />

teve completo fracasso. Também o futuro Acadêmico Emílio <strong>de</strong> Menezes<br />

empenhou-se nessa aventura, <strong>da</strong> qual redundou apenas um sólido prejuízo.<br />

Cabe relatar episódio curioso ocorrido com nosso confra<strong>de</strong> e <strong>de</strong>cano, o Acadêmico<br />

Josué Montello. Certa vez Afonso Pena Júnior, diretor <strong>de</strong> bancos e <strong>de</strong> companhias<br />

<strong>de</strong> seguros, pediu-lhe que falasse a um grupo <strong>de</strong> empresários no Dia Internacional<br />

do Seguro. Josué Montello fez então uma explanação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e obra <strong>de</strong><br />

Valentim Magalhães, com gran<strong>de</strong> espanto <strong>dos</strong> presentes, para afinal <strong>de</strong>clarar que<br />

escolhera essa figura, pois fora fun<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> uma companhia <strong>de</strong> seguros.<br />

Passado este interregno Valentim reavivou-se, e no qüinqüênio <strong>de</strong><br />

1895-1900 continuou a marcar os anos pelos livros e opúsculos: em 1895, Filosofia<br />

<strong>de</strong> algibeira; Bric-à-Brac, em 96; em 97, o seu primeiro romance, Flor <strong>de</strong> sangue;<br />

Alma e Rimário, em 98-99 – <strong>de</strong>ixando prontos quatro outros: Fora <strong>da</strong> Pátria,<br />

Na brecha, Novos contos e Outono, que lhe <strong>de</strong>marcariam, na mesma progressão, os<br />

quatro últimos anos <strong>de</strong> existência...<br />

Valentim Magalhães foi jornalista, escritor, poeta, contista, teatrólogo, romancista<br />

e <strong>de</strong>ixou uma vasta produção literária, nesta conferência só sendo<br />

possível analisar as principais.<br />

O poeta<br />

Na juventu<strong>de</strong> e especialmente na poesia foi o mentor <strong>da</strong> Idéia Nova, movimento<br />

que não teve gran<strong>de</strong> repercussão, mas que representava uma idéia <strong>de</strong> renovação<br />

do ambiente intelectual.<br />

No ensaio ANova Geração, refere-se Machado <strong>de</strong> Assis a dois poetas, Fontoura<br />

Xavier (<strong>de</strong> que cita poesias avulsas e um opúsculo, “O Régio Saltimbanco”)<br />

e Valentim Magalhães, que já a essa altura havia publicado os livros Idéias<br />

<strong>de</strong> moço (1878), em colaboração com Silva Jardim, a quem pertence a parte em<br />

prosa, e Cantos e lutas (1879), nos quais seguira a corrente socialista. Registrou<br />

Machado <strong>de</strong> Assis:<br />

182


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

O primeiro livro <strong>de</strong> Valentim Magalhães sabemos já que na opinião <strong>de</strong>le,<br />

a Idéia Nova é o céu <strong>de</strong>serto, a oficina e a escola cantando alegres, o mal sepultado,<br />

Deus na consciência, o bem no coração, e próximas a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e a<br />

justiça. Não é só na primeira página que o poeta nos diz isto; repete-o no<br />

“Prenúncio <strong>da</strong> aurora”, “No futuro”, “Mais um sol<strong>da</strong>do”, é sempre a mesma<br />

idéia, diferentemente redigi<strong>da</strong>, com igual vocabulário. Po<strong>de</strong>-se imaginar<br />

o tom e as promessas <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s essas composições. Numa <strong>de</strong>las o poeta afiança<br />

alívio às almas que pa<strong>de</strong>cem, pão aos operários, liber<strong>da</strong><strong>de</strong> aos escravos,<br />

porque o reinado <strong>da</strong> justiça está próximo.<br />

Noutra parte, anunciando que pegou <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> e vem juntar-se aos combatentes,<br />

diz que as legiões do passado estão sendo dizima<strong>da</strong>s, e que o dogma,<br />

o privilégio, o <strong>de</strong>spotismo, a dor vacilam à voz <strong>da</strong> justiça. Nessa contradição,<br />

que o poeta busca dissimular e explicar, há um vestígio <strong>da</strong> incerteza<br />

que, a espaços, encontramos na geração nova, – alguma coisa que parece remota<br />

<strong>da</strong> consciência e niti<strong>de</strong>z <strong>de</strong> um sentimento exclusivo. É a feição <strong>de</strong>sta<br />

quadra transitória.<br />

Quer o Sr. Valentim Magalhães que lhe diga? Essa idéia, a que emprestou<br />

alguns belos versos, não tem por si nem a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> nem a verossimilhança;<br />

é um lugar-comum, que já a escola hugoísta nos metrificava há muitos<br />

anos. Hoje está bastante <strong>de</strong>sacredita<strong>da</strong>.<br />

Tem o Sr. Valentim Magalhães o verso fácil e flexível; o estilo mostra<br />

por vezes certo vigor, mas carece ain<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma correção, que o poeta acabará<br />

por lhe <strong>da</strong>r. Creio que ce<strong>de</strong>, em excesso, a admirações exclusivas. As idéias<br />

<strong>de</strong>le são geralmente <strong>de</strong> empréstimo; e o poeta não as realça por um modo<br />

<strong>de</strong> ver próprio e novo. Crítica severa, mas necessária, porque o Sr. Valentim<br />

Magalhães é <strong>dos</strong> que têm direito e obrigação <strong>de</strong> a exigir.<br />

Silva Jardim, com quem escreveu Idéias <strong>de</strong> moço (1868) afirma: “Valentim<br />

Magalhães é um petroleiro, vive embriagado pelas idéias mo<strong>de</strong>rnas, roncando<br />

contra o obscurantismo, a inquisição, os reis, e os padres, seduzido pela casta<br />

idéia, a liber<strong>da</strong><strong>de</strong>.”<br />

183


Alberto Venancio Filho<br />

Como poeta, segundo Raimundo Corrêa, “Valentim Magalhães, em segui<strong>da</strong><br />

ao lirismo <strong>dos</strong> ver<strong>de</strong>s anos e <strong>da</strong> primeira adolescência, fez-se a<strong>de</strong>pto fervoroso<br />

<strong>da</strong> escola social. Esta escola poética que, com vários corifeus ilustres no<br />

Brasil e em Portugal, tentou substituir ao subjetivismo exagerado <strong>dos</strong> românticos<br />

o seu objetivismo abstrato e por <strong>de</strong>mais palavroso, esteve muito em voga<br />

entre nós, até à época do centenário <strong>de</strong> Camões, acontecimento que veio <strong>da</strong>r à<br />

literatura nacional uma nova e mais segura orientação.<br />

Por esse tempo foi que Valentim publicou os seus Cantos e lutas, obra a<strong>da</strong>pta<strong>da</strong><br />

aos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong>quela escola. Três são as poesias que a crítica <strong>de</strong>stacou aí<br />

com mais vivos elogios: “Os dois edifícios”, “O herói mo<strong>de</strong>rno” e “Prenúncio<br />

<strong>de</strong> aurora”.<br />

A primeira <strong>de</strong>las acabou por figurar em várias antologias escolares, parecendo<br />

que a este fim mesmo é que estava <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>; a segun<strong>da</strong> foi excluí<strong>da</strong>,<br />

pelo autor, do seu Rimário; e a última é ain<strong>da</strong> hoje um <strong>dos</strong> melhores spécimens<br />

<strong>da</strong> escola.”<br />

Sílvio Romero, na História <strong>da</strong> Literatura <strong>Brasileira</strong>, adotando espírito classificatório,<br />

trata <strong>dos</strong> vários perío<strong>dos</strong> <strong>da</strong> poesia, e aponta na reação ao Romantismo<br />

(1872 ou 1873 em diante) uma poesia realista, uma vez social, revolucionária<br />

outras, e incluía junto com Valentim Magalhães, Carvalho Júnior, Fontoura<br />

Xavier, Lúcio <strong>de</strong> Mendonça, Augusto <strong>de</strong> Lima, aos quais se pren<strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e<br />

Albuquerque.<br />

Descrevendo a Idéia Nova, Eucli<strong>de</strong>s esclarece:<br />

Não maravilha que a nova geração, do avançar aforrado, não soubesse,<br />

afinal para on<strong>de</strong> seguir.<br />

Apenas um exíguo grupo se <strong>de</strong>stacou: arregimentou-se em torno <strong>de</strong> um<br />

filósofo; e afastou-se. Ninguém mais o viu – e mal se sabe que ele ain<strong>da</strong><br />

existe, reduzido a dois homens admiráveis, que falam às vezes, mas que se<br />

não ouvem, <strong>de</strong> tão longe lhes vem a voz, tão longe eles ficaram no território<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> uma utopia, no dualismo <strong>da</strong> positivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e do sonho...<br />

184


O resto ficou numa fronteira in<strong>de</strong>cisa a tatear <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma miragem<br />

que, à falta <strong>de</strong> melhor nome, se chamou durante muito tempo a Idéia Nova.<br />

Que era a Idéia Nova? Eu po<strong>de</strong>ria respon<strong>de</strong>r-vos que era uma coisa muito<br />

velha, uma curiosa infantili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> cabelos brancos, ou uma novi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

cem anos – mas prefiro a palavra <strong>de</strong> um poeta do tempo.<br />

Escutemo-lo:<br />

Está <strong>de</strong>serto o céu. No gran<strong>de</strong> isolamento,<br />

Palpita ensangüentado o sol – um coração...<br />

Mas os <strong>de</strong>uses <strong>de</strong> Homero, o Jeová sangrento,<br />

Alá e Jesus Cristo, os <strong>de</strong>uses on<strong>de</strong> estão?<br />

Morreram. Era tempo. Agora encara a terra:<br />

Ressoa alegre a forja e sai <strong>da</strong> Escola um hino.<br />

O gênio enterra o mal em uma negra cova.<br />

Deus habita a consciência. O coração <strong>de</strong>scerra<br />

Aos ósculos do Bem o cálix purpurino.<br />

Vem perto a Liber<strong>da</strong><strong>de</strong>. É isto a Idéia Nova.<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Os versos são <strong>de</strong> 1879 e o poeta, à volta <strong>dos</strong> vinte anos, chamava-se<br />

Antônio Valentim <strong>da</strong> Costa Magalhães.<br />

Valentim, na nota final <strong>de</strong> Rimário, último livro <strong>de</strong> poesia (1900), escreveu,<br />

referindo-se à esposa: “Nos Cantos e lutas,emAlma e neste livro encontram-se,<br />

palpitantes, os vestígios e os influxos <strong>de</strong> minha ventura doméstica, hoje extinta.<br />

Não é à memória d’Ela própria, viva, presente, inapagável, como existe e<br />

existirá, sempre, no meu espírito e no meu coração. Este livro abre por um a<strong>de</strong>us,<br />

em 1878, o <strong>de</strong> um curto afastamento, e termina com um a<strong>de</strong>us, em 1899, o<br />

<strong>da</strong> Morte, o do afastamento infindável. Estas <strong>da</strong>tas marcam a alvora<strong>da</strong>eanoite<br />

<strong>de</strong> um dia <strong>de</strong> primavera luminoso e flóreo, e, por isso mesmo, <strong>de</strong>masiado rápido,<br />

– a minha moci<strong>da</strong><strong>de</strong>!”<br />

185


Alberto Venancio Filho<br />

O que finaliza aí, porém, não é somente a moci<strong>da</strong><strong>de</strong> do poeta, é a sua própria<br />

vi<strong>da</strong>, pois ele não tardou muito em seguir ao túmulo a esposa idolatra<strong>da</strong>.<br />

Rimário (1878-1899), publicado em 1900, último livro <strong>de</strong> poesia, é a síntese<br />

<strong>da</strong> produção poética <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> vinte anos, escoima<strong>da</strong> <strong>dos</strong> versos que excluiu.<br />

Nas notas fala do sucesso do primeiro livro, Cantos e lutas, <strong>da</strong> absorção pela<br />

prosa:<br />

Fui sendo esquecido como poeta, passei <strong>de</strong> mo<strong>da</strong>. [...] A princípio fui gênio,<br />

mas tar<strong>de</strong> coisa nenhuma, hoje César, João Fernan<strong>de</strong>s amanhã.<br />

Passaram muitos anos e passaram alguns lustros. Bons ou maus, os meus<br />

livros <strong>de</strong> prosa foram suce<strong>de</strong>ndo-se, empilhando-se. Ultimamente lembrou-me<br />

juntar-lhes, para que não houvesse essa falha na minha obra total,<br />

o livro, ain<strong>da</strong> por fazer, <strong>dos</strong> meus versos feitos.<br />

Não alimento ilusões sobre a sorte <strong>de</strong>ste livro. Nele vai a minha moci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

a melhor porção <strong>da</strong> minha existência, o mais forte do meu cérebro, o<br />

mais puro do meu coração. É a minha vi<strong>da</strong> que passa cantando, cantando<br />

suas aspirações e seus sonhos, seus <strong>de</strong>senganos e suas paixões, seus gozos e<br />

seus martírios.<br />

É <strong>de</strong>sse livro o poema a Machado <strong>de</strong> Assis:<br />

Honremos altamente esse que ensina<br />

Asubjugar os metros revoltosos;<br />

Esse que torna os ares sonoros<br />

Com a doce voz <strong>da</strong> lira peregrina;<br />

Esse que <strong>da</strong> poesia os puros gozos<br />

Liberalmente aos corações propina;<br />

E tem <strong>da</strong> forma a religião divina<br />

Apostolado aos crentes sequiosos;<br />

Esse que arranca aos rígi<strong>dos</strong> vocábulos<br />

Amúsica rebel<strong>de</strong> e fugidia;<br />

186


Que <strong>da</strong> língua os diamantes corta e lavra<br />

E tange à rima os áureos tintinabulos.<br />

Honra ao mestre <strong>da</strong> Prosa e <strong>da</strong> Poesia,<br />

Ao vencedor <strong>da</strong> Idéia e <strong>da</strong> Palavra!<br />

O contista<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Em 1882 publicou os Quadros e contos, segundo Eucli<strong>de</strong>s “livro prometedor,<br />

on<strong>de</strong> refulgem páginas <strong>de</strong>scritivas <strong>de</strong> excepcional colorido, aviva<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>quela galanteria do escrever, que raro o abandona – e que se acaso o<br />

abandona é para tornar maior. Realmente, joeirando-se to<strong>dos</strong> os seus versos<br />

escritos em 1883, talvez nos restassem apenas três sonetos; mas estas 42 linhas<br />

perduram nas nossas letras como a expressão mais eloqüente <strong>de</strong> uma sau<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

ao mesmo passo excruciante e encantadora na sua tocante singeleza.<br />

Falecera-lhe o pai extremosíssimo, e Valentim, que até então escrevera para<br />

to<strong>da</strong> a parte, num insofregado anelo <strong>da</strong> consi<strong>de</strong>ração coletiva, – surpreendido<br />

pela <strong>de</strong>sdita, confiou, chorando, a alma <strong>da</strong> sua esposa, aquele poema <strong>de</strong><br />

duas páginas, ‘O nosso morto’.”<br />

Quadros e contos é, na opinião <strong>de</strong> Wilson Martins, uma reunião <strong>de</strong> contos<br />

propriamente ditos (nenhum <strong>de</strong>les “naturalista”, no sentido exato <strong>da</strong> palavra,<br />

mas to<strong>dos</strong> <strong>de</strong> intenção “realista” evi<strong>de</strong>nte) e <strong>de</strong> páginas que po<strong>de</strong>ríamos<br />

<strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> crônicas, na acepção mais vaga do vocábulo. Dentre estas últimas,<br />

a mais impressionante é a <strong>de</strong>smistificação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> acadêmica e, em particular,<br />

<strong>da</strong> legendária <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>de</strong> São Paulo, a propósito <strong>da</strong> cerimônia <strong>de</strong> colação<br />

<strong>de</strong> grau:<br />

A colação <strong>de</strong> grau não se realiza em um só dia para to<strong>dos</strong> os bacharelan<strong>dos</strong>;<br />

mas dia a dia, e a quatro, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haverem prestado no <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro ato<br />

as <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iras parvulezas jurídicas.<br />

Para essas festas acadêmicas não interrompe os seus <strong>de</strong>liciosos hábitos <strong>de</strong><br />

invetera<strong>da</strong> porcaria.<br />

187


Alberto Venancio Filho<br />

O velho convento conserva as suas vidraças bor<strong>da</strong><strong>da</strong>s a pedra, trabalho <strong>da</strong> revolução<br />

<strong>de</strong> 71, a negra e abun<strong>da</strong>nte varíola que lhe sarapinta as pare<strong>de</strong>s, trabalho<br />

do tempo, as suas feal<strong>da</strong><strong>de</strong>s clássicas, as suas enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sujas e legendárias<br />

[...] Continua, – isto agora quanto ao interior – a esten<strong>de</strong>r sob as arcarias <strong>de</strong>gringolantes<br />

e gafa<strong>da</strong>s o mesmo estilo <strong>de</strong> corredores: preciosos <strong>de</strong>pósitos <strong>dos</strong><br />

escarros <strong>de</strong> 20 gerações <strong>de</strong> bacharéis, que aí se acumulam – os escarros e não os<br />

bacharéis – em gloriosas máculas escuras [...] A sala <strong>de</strong>signa<strong>da</strong> para o ato não se<br />

enfeita, não se apelintra, não se lava; não é varri<strong>da</strong> ao menos [...].<br />

Escapou-me observar que não há em todo o edifício <strong>da</strong> aca<strong>de</strong>mia uma<br />

sala especial, que digo eu?... um banco, um reles banco <strong>de</strong> pinho, para receber<br />

as famílias que concorrem ao ato, enquanto o esperam. As senhoras, em<br />

gran<strong>de</strong> tenue, conservam-se <strong>de</strong> pé, gentilmente alinha<strong>da</strong>s à pare<strong>de</strong>, sendo força<strong>da</strong>s<br />

a ter suspensas pelas pontas <strong>dos</strong> <strong>de</strong><strong>dos</strong> as pomposas traînes <strong>dos</strong> vesti<strong>dos</strong><br />

ricos, a fim <strong>de</strong> não inutilizá-los, pousando-os no chão [...].<br />

Enquanto com todo o vagar, a portas fecha<strong>da</strong>s, se lavra a ata e se preparam<br />

as coisas para a cerimônia, to<strong>da</strong> essa pobre gente amarrota-se, abafa, <strong>de</strong>sespera<br />

e sua; os homens sinistramente vermelhos, abotoa<strong>dos</strong> na suas redingotes,<br />

enforca<strong>dos</strong> nos seus colarinhos novos e nas suas gravatas brancas,<br />

<strong>de</strong>ssorando mau humor e péssima poma<strong>da</strong> húngara.<br />

E assim prossegue a página terrível, com que nos curar para sempre <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />

as i<strong>de</strong>alizações póstumas que se vieram acumulando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período romântico<br />

sob as “arca<strong>da</strong>s” do Largo <strong>de</strong> São Francisco; período estu<strong>da</strong>do com<br />

idênticas conclusões em meu livro Das Arca<strong>da</strong>s ao bacharelismo. “Os contos do<br />

volume são convencionais e in<strong>de</strong>cisos entre o sentimentalismo romântico e<br />

algumas ‘notações’ que se querem realistas, mas pertencentes, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

àquele ‘realismo’ do monstruoso e do grotesco em que o romantismo também<br />

se comprazia.”<br />

Notas à margem – diz Eucli<strong>de</strong>s – recor<strong>da</strong>m uma escaramuça agitadíssima, estonteadora,<br />

sem rumos, à caça do imprevisto, on<strong>de</strong> não há triunfos nem reve-<br />

188


ses, e os recontros e os adversários se travam e se distinguem fugitivos, a relanços<br />

e aos resvalos, um reconhecimento armado que não para… Porém, o que<br />

ali falta no compasso <strong>da</strong>s idéias, sobra na proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> do dizer e num <strong>de</strong>svelado<br />

apuro <strong>de</strong> linguagem, que influíram consi<strong>de</strong>ravelmente em nosso meio. Muita<br />

gente, entre nós, começou a escrever melhor, sob as reprimen<strong>da</strong>s gráceis <strong>da</strong>quele<br />

infatigável caçador <strong>de</strong> solecismos e persistente fiscal <strong>de</strong> pronomes insubordina<strong>dos</strong>.<br />

Ao mesmo passo na imprensa diária acentuou-se melhor esta forma<br />

literária facílima, que é o artigo do jornal, on<strong>de</strong> a medi<strong>da</strong> e a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s idéias têm <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r, não já aos dúbios contornos, capazes <strong>de</strong> ajustá-las ao<br />

maior número possível <strong>de</strong> critérios, nos limites <strong>de</strong> uma atenção <strong>de</strong> quartos <strong>de</strong><br />

hora, senão também à flui<strong>de</strong>z <strong>de</strong> expressão, que lhes permita insinuarem-se nas<br />

nossas preocupações, encantando-nos um momento um momento – e passando<br />

sem <strong>de</strong>ixarem traços.<br />

Vou agitar alguns conceitos falíveis. Revendo estes volumes, o que para<br />

logo se põe <strong>de</strong> manifesto é uma falta <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> pasmosa.<br />

O escritor mu<strong>da</strong> no volver <strong>da</strong>s páginas.<br />

Novamente Eucli<strong>de</strong>s:<br />

Nos Cantos e lutas, escuta-se, ao toar solene <strong>dos</strong> alexandrinos, o lirismo<br />

humanista que Pedro Luís divulgara <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 62.<br />

De feito, a inspiração não lha diluem lágrimas: é robusta, impessoal, refulgente<br />

– e a sua<br />

[...] gran<strong>de</strong> musa austera e sacrossanta,<br />

que para o céu azul os olhos a levanta<br />

banha<strong>dos</strong> no fulgor virgíneo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

era sem dúvi<strong>da</strong> sincera.<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Mas esta linguagem, cantando herculeamente as o<strong>de</strong>s imortais, nunca<br />

mais se repetiu. Ao contrário, a poesia filosófica (e falo assim por obe<strong>de</strong>cer<br />

à mo<strong>da</strong>, porque uma tal poesia se me afigura tão absur<strong>da</strong> quanto uma geo-<br />

189


Alberto Venancio Filho<br />

metria lírica ou a astronomia romancea<strong>da</strong> <strong>de</strong> Flammarion), a poesia ‘social’,<br />

em que tanto importa o subordinar-se a expressão à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, teve <strong>de</strong>pois em<br />

Valentim um irrequieto adversário.<br />

No livro Notas à margem, Valentim Magalhães incluiu uma crônica, lamentando<br />

que ao enterro do gran<strong>de</strong> jurista Teixeira <strong>de</strong> Freitas só tenham comparecido<br />

quatro pessoas. Machado <strong>de</strong> Assis glosou o comentário, dizendo também<br />

a escassez <strong>de</strong> amigos e colegas no enterro <strong>de</strong> José <strong>de</strong> Alencar, que “também era<br />

jurisconsulto, romancista, orador e político. Não era só isto: era o chefe <strong>da</strong><br />

nossa literatura”. E atribuía a ausência com ironia à falta <strong>de</strong> calças pretas.<br />

De Alma, livro <strong>de</strong> contos, diz Raimundo Corrêa:<br />

Mas para os que, como eu, preferem a to<strong>dos</strong> os trabalhos <strong>de</strong> Valentim<br />

Magalhães os que ele escreveu no estilo familiar, as suas melhores páginas<br />

estão talvez nesse encantador livrinho – Alma. “O primeiro <strong>de</strong>nte”, “O primeiro<br />

nome” e “Noites eternas” são com efeito três peregrinos poemas em<br />

prosa; e, quando os leio, suponho que o autor seria inimitável, inexcedível<br />

nesse gênero íntimo. Pondo <strong>de</strong> lado to<strong>dos</strong> os discursos e conferências que<br />

fez, didáticas e literárias, muitos artigos <strong>de</strong> polêmica e inúmeros escritos<br />

dispersos por vários jornais, para consi<strong>de</strong>rar exclusivamente o que ele chegou<br />

a reunir em volume, não se po<strong>de</strong> negar que, com respeito ao prosador,<br />

este seu legado, só por si, constitui uma obra vasta e multifária, pela infini<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> assuntos que abrange.<br />

O ensaísta<br />

José Veríssimo, escrevendo no início <strong>da</strong> República, diz que as letras não<br />

exerciam qualquer influência nos movimentos <strong>de</strong> idéias: “Em nosso país os<br />

movimentos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m espiritual, longe <strong>de</strong> atuarem sobre os fenômenos sociais,<br />

<strong>de</strong>stes recebem impulsão e vi<strong>da</strong>.” Havia, registra ele, “uma sensível atmosfera<br />

nacionalista <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> proclamação <strong>da</strong> República, mas o movimento literário<br />

era pobre”. E acrescentava Valentim Magalhães:<br />

190


Literatura sem livros, literatura <strong>de</strong> folhetos, posso também chamar àquela<br />

que ora temos. Escassíssima, a nossa produção literária quase que se resume<br />

hoje exclusivamente no conto, na fantasia ligeira e <strong>de</strong>svaliosa, na poesia, ou<br />

melhor, em alguns versos publica<strong>dos</strong> nas folhas diárias ou em efêmeras revistas.<br />

O romance, a crítica, a filosofia, a história, os estu<strong>dos</strong> literários, o drama,<br />

este principalmente, morrem ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente à mingua <strong>de</strong> produção. A mesma<br />

literatura política [...] não dá senão raros e mesquinhos frutos.<br />

Segundo Wilson Martins:<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Constituído, como os Estu<strong>dos</strong> brasileiros <strong>de</strong> José Veríssimo, <strong>de</strong> artigos escritos<br />

para diversos perío<strong>dos</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1881, o livro Escritores e escritos <strong>de</strong> Valentim<br />

Magalhães oferece curioso documento sobre a nossa vi<strong>da</strong> intelectual<br />

nesse período. Mencionemos, antes <strong>de</strong> mais na<strong>da</strong>, que começa com um elogio<br />

<strong>da</strong> Forma – “Ninguém que almeje passar por poeta tem mais o direito<br />

<strong>de</strong> ignorar os preceitos gerais <strong>da</strong> arte do verso.”<br />

A<strong>de</strong>pto do culto <strong>da</strong> forma, dizia Valentim Magalhães:<br />

“Essa religião não tem entre nós mais que meia dúzia <strong>de</strong> sacerdotes. E<br />

esses mesmos celebram as cerimônias do seu culto, praticam os divinos<br />

mistérios <strong>de</strong> sua seita no meio <strong>de</strong> uma multidão <strong>de</strong> ignorantes, que lhes<br />

não enten<strong>de</strong> o Latim, e que só aplau<strong>de</strong> os versejadores pesadões, aqueles<br />

que apenas conhecem <strong>da</strong> Poesia este princípio: escrever em linhas curtas.<br />

Felizmente ain<strong>da</strong> temos alguns <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> raça divina <strong>dos</strong> helenos,<br />

ain<strong>da</strong> temos alguns poetas... que se dão à árdua e <strong>de</strong>liciosa tarefa <strong>de</strong> procurar<br />

a forma perfeita. Pesam as palavras em balanças microscópicas, me<strong>de</strong>m-nas,<br />

estu<strong>da</strong>m-nas, combinam-nas, como um alquimista fantástico fazendo<br />

ouro; estu<strong>da</strong>m Lecomte (sic), Gautier e Banville, como se foram<br />

trata<strong>dos</strong> <strong>de</strong> botânica e <strong>de</strong> mineralogia, e fazem o que tanto aconselhava<br />

o poeta <strong>da</strong> Comédia <strong>da</strong> Morte e tanto recomen<strong>da</strong> o Artur <strong>de</strong> Oliveira –<br />

lêem os dicionários.<br />

191


Alberto Venancio Filho<br />

Nos Escritores e escritos, afirma Eucli<strong>de</strong>s, “<strong>de</strong>sponta-lhe o antagonismo em dizeres<br />

concisos, golpeantes”: “Em literatura a forma é quase tudo. Especialmente<br />

em poesia. É preciso ter como Teodoro <strong>de</strong> Banville o sentimento <strong>da</strong>s<br />

palavras... A Forma! Eis o gran<strong>de</strong>, o milagroso talismã! Quem o possui atravessa<br />

a vi<strong>da</strong> sem conhecer impossíveis caprichos do seu gênio.”<br />

A “Forma” lá está com F maiúsculo. É o fetichismo do vocábulo. Com<br />

efeito, poucas vezes na língua portuguesa a palavra foi tão voluntariosa no<br />

violentar idéias, transfigurado-as ou emparelhando-as nas mais bizarras<br />

antíteses.<br />

O romancista<br />

Em 1897 Valentim <strong>de</strong> Magalhães publicou seu único romance: Flor <strong>de</strong> sangue.<br />

Diz no prefácio:<br />

Nesses quatro lustros <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mental, tenho feito um pouco <strong>de</strong> tudo<br />

– versos, folhetins, contos, panfletos, crítica, biografia, artigos <strong>de</strong> todo gênero,<br />

teatro, que sei eu? e tenho construído com parte <strong>de</strong>sses materiais para<br />

mais <strong>de</strong> uma dúzia <strong>de</strong> livros.<br />

A crítica tem me reconhecido, com munificência que me há penhorado,<br />

um espírito vivaz, variável, curioso; uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> in<strong>de</strong>fesa; um certo amor<br />

à língua vernácula, e <strong>da</strong>í pronunciado carinho no escrevê-la e um estilo correto<br />

e agradável; porém não tem ocultado o seu pesar por me não ver abalançar-me<br />

a isso que chamam os críticos “obra <strong>de</strong> fôlego”, ou “trabalho sério”<br />

– um poema, um romance, um livro <strong>de</strong> crítica profun<strong>da</strong>. Ora, eu <strong>de</strong>vo<br />

confessar que essa censura me calou sempre no espírito por havê-la formulado<br />

muitas vezes a mim próprio. Mas as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s inadiáveis <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

material, tão pesa<strong>da</strong>s para um pai <strong>de</strong> família pobre neste terra em que <strong>da</strong>s letras<br />

ain<strong>da</strong> não se po<strong>de</strong> viver exclusivamente, impediram-me sempre <strong>de</strong> levar<br />

por diante esse projeto, cem vezes formulado e não poucas começado a exe-<br />

192


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

cutar. O tempo que me <strong>de</strong>ixavam livre as ocupações <strong>de</strong> que provinha o pão<br />

quotidiano e o meu estado <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, precário sempre, chegavam apenas<br />

para escrever o conto, a notícia crítica, a crônica faceta, o artiguinho diário a<br />

que me comprometera em um ou vários jornais; não havia possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

realizar o meu sonho, satisfazendo a exigência <strong>dos</strong> críticos – escrever uma<br />

obra <strong>de</strong> fôlego.<br />

Sem parágrafo escrevi-o sempre <strong>de</strong> uma assenta<strong>da</strong>, capítulo por capítulo,<br />

e, acabado, relia-o, corrigia-o, man<strong>da</strong>va copiá-lo por um secretário, conferia<br />

a cópia e remetia-a aos tipógrafos.<br />

Se conto este pormenores é para explicar as muitas imperfeições <strong>de</strong> forma<br />

que sou o primeiro a reconhecer, tais como a vulgari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> algumas<br />

frases, a fraqueza <strong>de</strong> certas expressões, o banal <strong>de</strong> vários títulos <strong>de</strong> capítulos<br />

(e <strong>de</strong>i-lhes títulos por uma conveniência pessoal: para orientar-me em ca<strong>da</strong><br />

capítulo do estado, do ponto em que ficara o enredo, a composição), um ou<br />

outro galicismo, como “golpe <strong>de</strong> vista”, e outros <strong>de</strong>feitos mais.<br />

O capítulo que primeiro escrevi, com a intenção <strong>de</strong> fazê-lo o primeiro livro,<br />

foi o quinto <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> parte – um <strong>dos</strong> últimos: eu havia principiado<br />

pelo fim!<br />

Não resolvi fazer um romance naturalista, nem <strong>de</strong> aventuras, nem <strong>de</strong> psicologia,<br />

nem simbolista, nem i<strong>de</strong>alista; resolvi simplesmente fazer um romance.<br />

E ele foi-me saindo <strong>dos</strong> bicos <strong>da</strong> pena com um certo feitio, uma certa fisionomia,<br />

um certo caráter, que não tentarei <strong>de</strong>finir e ain<strong>da</strong> menos explicar.<br />

Se to<strong>da</strong>via me interpelasse alguém sobre tal ponto, diria que para o seu<br />

autor é o meu romance filiado à escola <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a única, que como os<br />

Goucourt, acredito real e fecun<strong>da</strong> em Arte. To<strong>dos</strong> os tipos que nele fiz mover-se,<br />

e não sei se viver, encontrei-os na vi<strong>da</strong> social, não só fluminense, não<br />

só brasileira, mas <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os países.<br />

O romance Flor <strong>de</strong> sangue <strong>de</strong>screve a vi<strong>da</strong> amorosa <strong>de</strong> uma senhora <strong>da</strong> alta<br />

burguesia, Corina, e está dividido em duas partes, ca<strong>da</strong> uma terminando com<br />

um suicídio, o primeiro, do amante, que era filho adotivo do marido, e o se-<br />

193


Alberto Venancio Filho<br />

gundo, do marido ao saber muito mais tar<strong>de</strong> <strong>da</strong> relação <strong>da</strong> esposa com o filho<br />

adotivo. O suicídio está presente também no “Soneto <strong>de</strong> um suici<strong>da</strong>”:<br />

(ALucindo Filho)<br />

Mata-me a dura lei <strong>da</strong> vária Natureza<br />

Que nos faz <strong>de</strong>sejar o que nos é proibido;<br />

O fruto do pecado e o mais apetecido,<br />

E o crime é um belo ornato as graças <strong>da</strong> Beleza.<br />

O dístico – Mão toque e do mal a certeza<br />

São dois imãs fatais, a que an<strong>da</strong> o amor vencido;<br />

Os direitos cruéis do amante e do marido<br />

Aumentam <strong>da</strong> paixão a tempesta<strong>de</strong> acesa.<br />

Morro porque te quero e não po<strong>de</strong>s ser minha,<br />

Separa-nos um muro estúpido e fatal,<br />

Quando, no entanto, o amor, a rir, nos avizinha.<br />

Suplício sobre-humano e <strong>de</strong>lícia infernal,<br />

Que to<strong>dos</strong> po<strong>de</strong>m ver mas ninguém adivinha:<br />

– Morro porque és o bem e <strong>de</strong>sejar-te é o mal.<br />

É interessante salientar que o personagem principal do livro, Fernando Gomes,<br />

é um beneficiário do Encilhamento, o autor certamente transmitindo a<br />

experiência pessoal para <strong>de</strong>screver os episódios, e é curioso apontar o teor <strong>da</strong><br />

errata: em lugar <strong>de</strong> “bosque nemoroso”, “bosque umbroso”; ao invés <strong>de</strong> “estourar<br />

os miolos”, “cortar o pescoço”.<br />

José Veríssimo, em Estu<strong>dos</strong> <strong>de</strong> literatura brasileira coloca o livro no Naturalismo<br />

pelo tema e à literatura apressa<strong>da</strong> <strong>de</strong> folhetim pela execução, aponta “in<strong>de</strong>cências<br />

e imorali<strong>da</strong><strong>de</strong>s” e “quase nenhuma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> literária”.<br />

194


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Com outro julgamento, Eucli<strong>de</strong>s contesta: “Na<strong>da</strong> direi do livro malogrado,<br />

on<strong>de</strong>, entretanto, um velho tema se remoça com uma cativante originali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sfecho. Consi<strong>de</strong>ro apenas que a crítica <strong>de</strong>saçaima<strong>da</strong>, que o estraçalhou até<br />

à errata final, não disse mais do que o próprio romancista, no prefácio.”<br />

Raimundo Corrêa viu injustiça, por vezes, na severi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>dos</strong> críticos, a qual<br />

se acrescentava à “diatribe malévola <strong>dos</strong> <strong>de</strong>safetos”.<br />

Escreve Machado <strong>de</strong> Assis:<br />

Flor <strong>de</strong> sangue po<strong>de</strong> dizer-se que é o sucesso do dia. Ninguém ignora que<br />

Valentim Magalhães é <strong>dos</strong> mais ativos espíritos <strong>da</strong> sua geração. Tem sido<br />

jornalista, cronista, contista, crítico, poeta, e, quando preciso, orador. Há<br />

vinte anos que escreve, dispersando-se por vários gêneros, com igual ardor e<br />

curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Quem sabe? Naturalmente nem tudo o que escreveu terá o<br />

mesmo valor.<br />

Tudo é que as obras sejam feitas com o fôlego próprio e <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, e<br />

com materiais que resistam. Que Valentim Magalhães po<strong>de</strong> compor<br />

obras <strong>de</strong> maior fôlego, é certo. Na Flor <strong>de</strong> sangue o que o prejudicou foi<br />

querer fazer longo e <strong>de</strong>pressa. A ação, aliás vulgar, não <strong>da</strong>va para tanto;<br />

mal chegaria à meta<strong>de</strong>. Há muita coisa parasita, muita repeti<strong>da</strong>, e muita<br />

que não valia a pena trazer <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ao livro. Quanto à pressa, a que o autor<br />

nobremente atribui os <strong>de</strong>feitos <strong>de</strong> estilo e <strong>de</strong> linguagem, é causa ain<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> outras imperfeições.<br />

Não insisto; aí fica o bastante para mostrar o apreço em que tenho o talento<br />

<strong>de</strong> Valentim Magalhães, dizendo-lhe alguma coisa do que me parece<br />

bom e menos bom na Flor <strong>de</strong> sangue. Que há no livro certo movimento, é fora<br />

<strong>de</strong> dúvi<strong>da</strong>; e esta quali<strong>da</strong><strong>de</strong> em romancista vale muito. Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente os<br />

<strong>de</strong>feitos principais <strong>de</strong>ste romance são <strong>dos</strong> que a vonta<strong>de</strong> do autor po<strong>de</strong> corrigir<br />

nas outras obras que nos <strong>de</strong>r, e que lhe peço sejam feitas sem nenhuma<br />

idéia <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> fôlego.<br />

195


Alberto Venancio Filho<br />

Na classificação do romance e do conto, Sílvio Romero, na História <strong>da</strong> literatura<br />

brasileira, indica o meio naturalista <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> (1860/1884), inicialmente<br />

com Manuel <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, Carneiro Vilela e Celso Magalhães, ao qual se pren<strong>de</strong>m<br />

com Valentim Magalhães, Afonso Celso, Xavier Marques e Domício <strong>da</strong><br />

Gama. Finalmente, ao tratar <strong>da</strong> crítica comenta:<br />

Em nosso quadro esquemático, foram somente contempla<strong>dos</strong> os críticos<br />

por temperamento os que fizeram <strong>da</strong> difícil arte <strong>de</strong> Sainte-Beuve a sua profissão<br />

espiritual, e postos fora os pretensos críticos <strong>de</strong> arribação, sujeitos<br />

adventícios, que por capricho <strong>de</strong> momento, confundindo crítica com <strong>de</strong>sforra<br />

ou <strong>de</strong>sabafo ocasional, foram leva<strong>dos</strong> alguma vez a exercer a discussão<br />

polemista, sempre com <strong>de</strong>saso.<br />

É o caso <strong>de</strong> Alencar nas Cartas sobre a Confe<strong>de</strong>ração <strong>dos</strong> Tamoios, Franklin Távora<br />

nas Cartas <strong>de</strong> Simprônio a Cincinato, Joaquim Nabuco no que escreveu<br />

contra Alencar, e Valentim Magalhães no que publicou contra os Últimos arpejos,<br />

livro <strong>de</strong> poesias <strong>de</strong> Sílvio Romero.<br />

O polemista<br />

Na arena jornalística, Valentim Magalhães digladiou com intrépi<strong>dos</strong> polemistas,<br />

como Ferreira <strong>de</strong> Araújo, Carlos <strong>de</strong> Laet e Sílvio Romero, adversários<br />

dignos <strong>de</strong>le. Mas <strong>de</strong> permeio se metiam, às vezes, indivíduos que só <strong>de</strong>sejavam<br />

ganhar fama à sua custa, e outros que aproveitavam covar<strong>de</strong>mente o ensejo<br />

para o ferirem pelas costas. E, quantas vezes, por quem nem sequer o conhecia<br />

<strong>de</strong> perto foi ele gratuitamente agredido! Entretanto, Valentim não esmoreceu<br />

jamais.<br />

Diria a Lúcio <strong>de</strong> Mendonça: “Tenho pintado o bo<strong>de</strong> como tens visto. Ultimamente<br />

com o Sílvio (Romero) era preciso sová-lo. Sovei-o e me parece que<br />

em regra.” Tratava-se do livro Notas à margem <strong>dos</strong> “Últimos arpejos” – crítica ao livro<br />

<strong>de</strong> versos <strong>de</strong> Sílvio. Eis a resposta <strong>de</strong> Sílvio Romero:<br />

196


Valentim Magalhães! – Famoso homem <strong>de</strong> letras em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>... Foi durante<br />

mais <strong>de</strong> vinte anos o porta-ban<strong>de</strong>ira <strong>da</strong> oposição tenaz, implacável, irredutível,<br />

contra tudo que se pensou e se fez na Escola do Recife nas últimas<br />

déca<strong>da</strong>s do século passado. Guerra foi essa cuja constância, nunca <strong>de</strong>smenti<strong>da</strong>,<br />

só podia rivalizar com a sua própria sem razão, sempre prova<strong>da</strong>. –<br />

Os serviços presta<strong>dos</strong> às letras e ao pensamento nacional por uma legião inteira<br />

<strong>de</strong> combatentes <strong>da</strong> idéia, entre outros, os Tobias Barretos, os Viveiros<br />

<strong>de</strong> Castro, um Martins Júnior, um Sousa Pinto ... não têm chegado para <strong>de</strong>sarmar<br />

a odiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> sistemática a uns, as censuras infun<strong>da</strong><strong>da</strong>s a outros, os<br />

esquecimentos calcula<strong>dos</strong> a estes, as meias simpatias àqueles, e até os festejos<br />

suspeitos <strong>de</strong> certos renega<strong>dos</strong> que por qualquer motivo caíram nas graças<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>dos</strong> críticos, que se arrogam nesta boa terra a função <strong>de</strong> distribuir<br />

os títulos e louvores espirituais.<br />

Adolfo Caminha, no romance Tentação, fez o louvor <strong>da</strong> província, o casal<br />

<strong>de</strong> provincianos que se <strong>de</strong>sloca para o Rio e aqui só encontra a falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a<br />

hipocrisia. Nessa obra, Adolfo Caminha quis vingar-se <strong>de</strong> Valentim Magalhães,<br />

ao “fazer-lhe a caricatura, freqüentemente insultuosa e <strong>de</strong>safiadora,<br />

no tipo <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>vino Manhães, diretor <strong>da</strong> Revista Literária e autor <strong>de</strong> muitíssimos<br />

livros, <strong>de</strong> muitíssimas obras, entre as quais o poema herói-cômico<br />

“Juca Pirão”, paródia ao Y-Juca-Pirama, <strong>de</strong> Gonçalves Dias. A intenção <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sforra fez reviver o polemista que parecia espreitar em Caminha os movimentos<br />

do romancista, com o intuito <strong>de</strong> atenuar-lhe a força e <strong>de</strong>sviar-lhe a<br />

vocação”.<br />

O teatrólogo<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Valentim Magalhães também se <strong>de</strong>dicou ao teatro: Doutores e Inácia do Couto,<br />

paródia à tragédia <strong>de</strong> D. Inês <strong>de</strong> Castro, incluí<strong>da</strong>s no livro Teatro (1888); Oimpério<br />

<strong>da</strong> lei e O país do café, incluí<strong>da</strong>s no livro Horas alegres, e em colaboração com<br />

Filinto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> O Grão Galeoto e No seio <strong>da</strong> Morte, ambas tradução <strong>de</strong> D. José<br />

Echegaray, também em colaboração com Filinto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, e Amulher-homem,<br />

197


Alberto Venancio Filho<br />

entre outras. As peças eram mais para serem li<strong>da</strong>s do que representa<strong>da</strong>s, e não<br />

tiveram gran<strong>de</strong> repercussão. Este comentário é confirmado pela análise <strong>de</strong> Ronald<br />

<strong>de</strong> Carvalho:<br />

A literatura dramática brasileira, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Martins Pena, Macedo Alencar,<br />

França Júnior e Agrário <strong>de</strong> Menezes, se não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir pelo volume<br />

<strong>da</strong> produção, minguou pelo caráter cênico <strong>da</strong>s obras apareci<strong>da</strong>s. O ato ligeiro,<br />

a burleta, a comédia trivial, a revista popular e anedótica <strong>de</strong> Artur Azevedo,<br />

Valentim Magalhães, Moreira Sampaio e muitíssimos outros, to<strong>dos</strong> empenha<strong>dos</strong>,<br />

aliás, em “educar” o gosto do nosso público, “envenenado pelo dramalhão<br />

romântico” não conseguiram qualquer processo sensível para o nosso<br />

teatro <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte. Ficamos, ao contrário, com um teatro fútil e parasitário,<br />

imitado ou simplesmente traduzido do francês, menos nacional que nunca,<br />

apesar <strong>dos</strong> propósitos e <strong>da</strong>s intenções regeneradoras <strong>de</strong> que estava inçado.<br />

Afinal, cabe o comentário <strong>de</strong> Raimundo Corrêa sobre o diletante:<br />

Há bastantes anos que ele abrilhanta assiduamente as colunas do nosso jornalismo;<br />

a sua pena <strong>de</strong>stra e nervosa não só pelo folhetim chistoso tem volateado,<br />

mas também pela poesia, pela sátira, pelo teatro e pela crítica, <strong>de</strong>slizando<br />

sem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s nos assuntos mais graves, como nos mais leves assuntos, e<br />

quase que não há esfera <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> literária para a qual se não ache volta<strong>da</strong> alguma<br />

<strong>da</strong>s múltiplas faces do seu belo talento, nem <strong>de</strong>partamento nenhuma <strong>da</strong>s<br />

letras on<strong>de</strong> a sua passagem não tenha ficado mais ou menos assinala<strong>da</strong> por algum<br />

bom serviço.<br />

Essa complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> cerebral, rara e invejável aliás, é, no entanto, por uns<br />

visos <strong>de</strong> puro diletantismo, o que mais do que tudo o tem prejudicado, <strong>de</strong>primindo<br />

aos olhos <strong>da</strong> crítica mal preveni<strong>da</strong> o seu real e contestável merecimento.<br />

Que é que o faz não persistir por muito tempo e mais atira<strong>da</strong>mente num só<br />

terreno? Será aquele suposto diletantismo, ou bem uma outra causa que me-<br />

198


lhor se po<strong>de</strong> investigar no próprio temperamento do escritor. Dir-se-á que, em<br />

tratando um assunto qualquer, logo o <strong>de</strong>svia <strong>de</strong>le a sugestão <strong>de</strong> um novo e diferente<br />

assunto em que também não persiste mais do que no primeiro. O exercício<br />

ansioso e febril <strong>de</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> assim distribuí<strong>da</strong> em tão várias direções<br />

simultaneamente lhe não permite, ao incansável trabalhador, levantar edifício<br />

bem sólido em terreno nenhum.<br />

Quantos há, porém, <strong>de</strong> merecimento inegável embora, que cultivando um<br />

só gênero exclusivamente, não têm conseguido neles êxito igual ao <strong>de</strong> Valentim<br />

Magalhães no cultivo simultâneo <strong>de</strong> muito?<br />

Acrescenta Eucli<strong>de</strong>s:<br />

Resumo o meu juízo: to<strong>da</strong> a obra literária <strong>de</strong> Valentim Magalhães po<strong>de</strong><br />

ter o título único <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus livros – Bric-à-brac. E a este propósito ouçamo-lo<br />

na esplêndi<strong>da</strong> volubili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seu estilo disserto, referindo-se àquele<br />

livro sem cui<strong>da</strong>r que fazia to<strong>da</strong> a sua psicologia literária:<br />

[...] Pois esta obra é isto mesmo; é um amontoado <strong>de</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s literárias,<br />

e objetos <strong>de</strong> arte escrita... Junto a um conto comovido e sincero, um<br />

trecho <strong>da</strong> sátira mor<strong>da</strong>z e irreverente; em segui<strong>da</strong> a um grito <strong>de</strong> entusiasmo,<br />

uma caricatura a traço largo; <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um surto amplo <strong>de</strong> fantasia caprichosa,<br />

um quadro exato e minucioso <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social – Bric-à-brac. De manhã<br />

à noite, em um só dia, o homem percorre to<strong>da</strong> a gama sentimental – enternece-se<br />

e lacrimeja; encoleriza-se e ruge; alegra-se e ri; enfara-se e boceja;<br />

enamora-se e canta; indigna-se e satiriza...<br />

A figura humana<br />

A esse respeito diz Eucli<strong>de</strong>s:<br />

O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Expressiva é aquela admiração <strong>de</strong>lirante. Valentim Magalhães era excepcionalmente<br />

afetivo. Tudo lhe <strong>de</strong>nuncia um nobre espírito impropriado a<br />

agir sem os estímulos <strong>de</strong> uma ar<strong>de</strong>nte simpatia, vinculando-o às outras almas.<br />

199


Alberto Venancio Filho<br />

Esta literatura associa<strong>da</strong> que, em geral, a exemplo <strong>dos</strong> Goncourts, exige a<br />

base <strong>da</strong> consangüini<strong>da</strong><strong>de</strong>, ele a praticou como nenhum outro, reunindo um irmão<br />

legítimo, Henrique Magalhães (com quem escreveu uma paródia à Morte<br />

<strong>de</strong> D. João), a Silva Jardim, a Filinto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> e Alfredo Souza, nos laços <strong>da</strong><br />

mesma fraterni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não se conhece um livro sem uma <strong>de</strong>dicatória. São raríssimos<br />

os seus escritos dispersos, cujos títulos não tenham logo abaixo um parêntesis<br />

guar<strong>da</strong>ndo o nome <strong>de</strong> um amigo. A admiração, que é o sintoma mais<br />

lisonjeiro <strong>de</strong> um caráter, rompia-lhe sempre num enorme exagero. Admirou<br />

<strong>da</strong>quele jeito Guerra Junqueira; admirou Camilo Castelo Branco, “polígrafo<br />

in<strong>de</strong>feso, formidável, único”; admirou Ramalho Ortigão, “um mestre, senhor<br />

<strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s do mundo mo<strong>de</strong>rno...”; admirou Machado <strong>de</strong> Assis,<br />

esse que arranca aos rígi<strong>dos</strong> vocábulos<br />

a música rebel<strong>de</strong> e fugidia...<br />

admirou os seus próprios companheiros. Sendo preeminente na “nova geração”,<br />

não <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhou fazer-se o garboso mestre sala, para apresentá-la ao país.<br />

E o país conheceu-a, em gran<strong>de</strong> parte, através <strong>da</strong> sua palavra carinhosa. Não<br />

preciso exemplificar. No círculo <strong>da</strong>quela afabili<strong>da</strong><strong>de</strong> irradiante e avassaladora<br />

caíram os que chegavam pouco <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Coelho Neto, Me<strong>de</strong>iros e Albuquerque<br />

e Olavo Bilac até aos mais obscuros escrevedores <strong>da</strong> província. A alguns<br />

cantou em verso, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Carvalho Júnior, <strong>de</strong>saparecido tão moço e a quem<br />

conhecemos apenas como um meinsinger loiro, alegre e extravagante, até alguém<br />

que não preciso nomear, tão conhecido nosso é o<br />

... que esculpido<br />

Tem, sonhos, dores, alegrias<br />

E é príncipe do Reino Unido<br />

Das Harmonias.”<br />

200


O fun<strong>da</strong>dor Valentim Magalhães<br />

Da capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer amigos, mesmo à distância, aponte-se o <strong>de</strong>poimento<br />

<strong>de</strong> Xavier Marques no discurso <strong>de</strong> posse nesta Casa:<br />

Um <strong>dos</strong> fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong>sta Casa, Valentim Magalhães, cuja memória nesta<br />

ocasião me é grato evocar, fez que eu, certa vez, cativo <strong>de</strong> sua insistência, lhe prometesse<br />

candi<strong>da</strong>tar-me à primeira vaga que se abrisse na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. De ânimo<br />

leve, um tanto fascinado, prometi. Mas apenas acabara <strong>de</strong> fazê-lo, tamanhos se<br />

me afiguraram os óbices por vencer na íngreme subi<strong>da</strong> a que me convi<strong>da</strong>va o<br />

amigo, que achei conveniente ir-me logo afeiçoando à idéia <strong>de</strong> uma evasiva, com<br />

qualquer pretexto, no momento oportuno, isto é, no momento crítico.<br />

Valentim Magalhães possuía, aprimorado, no melhor sentido <strong>da</strong> expressão,<br />

o espírito <strong>de</strong> camara<strong>da</strong>gem. Nunca lhe pu<strong>de</strong> ouvir as razões que o induziram<br />

a consi<strong>de</strong>rar plausível a minha entra<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aquela época, para a<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>. Pessoalmente nunca nos conhecemos. E somente em honra do<br />

seu caráter afetivo assinalo a simpatia com que sempre me distinguiu o autor<br />

que, <strong>de</strong>zenove anos antes, estreara nas letras sob os auspícios <strong>de</strong> sua brilhante<br />

nomea<strong>da</strong>.<br />

O tempo, para quem eu, com tão pouca fé pessoal e <strong>de</strong>svalido <strong>de</strong> “estro” havia<br />

apelado, <strong>de</strong>u a mais <strong>de</strong>sconcertante resposta aos meus <strong>de</strong>sígnios. Em março<br />

<strong>de</strong> 1903 dizia-me em carta o sau<strong>dos</strong>o acadêmico: “Escreva-me, <strong>da</strong>ndo-me notícias<br />

suas, e <strong>de</strong>ci<strong>da</strong>-se a apresentar-se à primeira vaga <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong>.”<br />

Em menos <strong>de</strong> dois meses, em 17 <strong>de</strong> maio, verificava-se a vaga. Era a <strong>de</strong> Valentim<br />

Magalhães...<br />

Assim é que fui candi<strong>da</strong>to, sem ilusões, quando razão não tinha para esperar<br />

senão um junto revés: candi<strong>da</strong>to por um <strong>de</strong>sses motivos irraciocina<strong>dos</strong> do sentimento,<br />

que às vezes nos levam a arcar com aparências au<strong>da</strong>zes e emprestam<br />

colorido extravagante, pretensioso, no caso, às ações mais inocentes.<br />

Esta reminiscência é uma homenagem do coração <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> àquele que, embora<br />

trocando pela justiça a liberali<strong>da</strong><strong>de</strong>, primeiro cogitou <strong>de</strong> franquear-me este<br />

egrégio cenáculo. Por exígua que seja, eu não a podia negar-lhe.<br />

201


Alberto Venancio Filho<br />

E para EuclI<strong>de</strong>s:<br />

A linha acentua<strong>da</strong> do caráter <strong>de</strong> Valentim ia <strong>de</strong> uma alevanta<strong>da</strong> altivez a<br />

uma robusta alacri<strong>da</strong><strong>de</strong> que o forrava aos rancores – embora não lhe faça a<br />

grave injustiça <strong>de</strong> acreditar que ele fosse incapaz do ódio, que é muitas vezes<br />

a forma heróica <strong>da</strong> bon<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Mas este nunca lhe repontou nas polêmicas acirra<strong>da</strong>s que travou e no<br />

mais aceso <strong>da</strong>s quais lhe refulgia a graça amortecendo ou falseando os mais<br />

violentos golpes.<br />

Foi, porém, o mais breve <strong>dos</strong> triunfos. Não que ao escritor diminuísse o<br />

engenho, senão porque o surpreen<strong>de</strong>u um período anômalo <strong>da</strong> existência<br />

política.<br />

Dele citemos, afinal um auto-retrato aos vinte e seis anos:<br />

Mas o que queres tu, meu Lúcio? Eu sou um nervoso, vivo pelos nervos;<br />

preciso <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> vibração, <strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> aspectos, <strong>de</strong> área larga e<br />

principalmente <strong>de</strong> carne fresca, <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> vaca. Sofria <strong>de</strong> uma dispepsia<br />

atroz, que a absoluta ausência <strong>de</strong> meio literário e <strong>de</strong> distrações agravavam<br />

medonhamente.<br />

Conclusão<br />

No dia 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1903, à tar<strong>de</strong>, Raimundo Corrêa foi a Santa Teresa<br />

em visita a Filinto <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>, e a esposa <strong>de</strong>ste velho camara<strong>da</strong> recebeu-o, triste<br />

e apreensivo, com a notícia <strong>de</strong> que Valentim Magalhães estava gravemente<br />

enfermo. Momentos <strong>de</strong>pois chegou Filinto e partiram juntos, inquietos, para a<br />

casa do comum amigo, que morava no Rio Comprido. Aí viram-no prostrado<br />

no seu leito, vindo a falecer no dia 17 <strong>de</strong> maio.<br />

202


203


Silva Ramos (1853-1930)<br />

Acervo do Arquivo <strong>da</strong> <strong>ABL</strong>


Silva Ramos:<br />

mestre <strong>da</strong> língua<br />

Na passagem do sesquicentenário <strong>de</strong><br />

seu nascimento (6.3.1853 – 15.12.1930)<br />

Evanildo Bechara<br />

Oúltimo 6 <strong>de</strong> março assinalou a passagem do sesquicentenário<br />

<strong>de</strong> nascimento <strong>de</strong> um <strong>dos</strong> fun<strong>da</strong>dores <strong>de</strong>sta Casa, José<br />

Júlio <strong>da</strong> Silva Ramos, vindo ao mundo, como quase tudo parece indicar,<br />

na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> do Recife, em 1853.<br />

Digo ‘como quase tudo parece indicar’ sua naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> recifense,<br />

porque assim sempre a proclamou Silva Ramos, diante <strong>da</strong> curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> netos, intriga<strong>dos</strong> que estavam do carregado sotaque lusitano que o<br />

avô conservou pela vi<strong>da</strong> fora. Para corroborar essa pequena ponta <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sconfiança existem alguns <strong>da</strong><strong>dos</strong> relevantes que um futuro biógrafo<br />

seu terá <strong>de</strong> examinar com mais profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre os quais trago à<br />

luz dois. Do arquivo <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Coimbra chegou-me a certidão<br />

<strong>de</strong> batismo do nosso homenageado, 1 on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>clara que o ato religioso<br />

ocorreu aos 19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1853, na Igreja <strong>da</strong> Conceição<br />

Nova <strong>de</strong> Lisboa e que o pequerrucho José Júlio, filho <strong>de</strong> João <strong>da</strong> Silva<br />

Ramos e <strong>de</strong> Emília Augusta Apolinário Ramos nascera em Lisboa.<br />

1<br />

Devo a pesquisa à minha colega Maria Apareci<strong>da</strong> Ribeiro, professora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Coimbra e diretora do Instituto <strong>de</strong> Estu<strong>dos</strong> Brasileiros.<br />

205<br />

Conferência<br />

proferi<strong>da</strong> na<br />

<strong>ABL</strong>, a 6 <strong>de</strong><br />

maio <strong>de</strong> 2003,<br />

durante o ciclo<br />

<strong>Fun<strong>da</strong>dores</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>ABL</strong>.


Evanildo Bechara<br />

O outro <strong>da</strong>do, não intrigante como o anterior mas também não <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhável,<br />

consiste na omissão do nome do nosso acadêmico no Dicionário Bibliográfico<br />

Brasileiro <strong>de</strong> Sacramento Blake, que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> arrolar, em dois momentos,<br />

o pai pernambucano. É bem ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que contamos com possível incompletu<strong>de</strong>,<br />

lembra<strong>da</strong> pelo próprio operoso bibliófilo; mas estranha que<br />

faltasse informação <strong>de</strong> um já professor do Colégio Pedro II (1898), <strong>de</strong> cujo<br />

pai se ocupara Sacramento Blake com boa largueza <strong>de</strong> informações.<br />

Mas não fostes convi<strong>da</strong><strong>dos</strong> a esta sessão para uma escavação <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m biográfica<br />

do nosso ilustre homenageado, e sim para revivermos juntos os<br />

consagra<strong>dos</strong> méritos que o guin<strong>da</strong>ram ao quadro <strong>dos</strong> trinta primeiros que<br />

pensaram e arquitetaram a construção <strong>de</strong>ste cenáculo acadêmico, ca<strong>da</strong> vez<br />

mais respeitado e amado do povo brasileiro, como síntese harmoniosa <strong>de</strong><br />

sua pujança cultural e literária.<br />

Acostumado e afeito às tertúlias literárias <strong>de</strong> sua longa permanência em<br />

Coimbra e em Lisboa, e causeur cintilante que era, as reuniões <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,<br />

ao lado <strong>de</strong> poetas, romancistas, críticos e jornalistas, traziam-lhe à lembrança<br />

e à sau<strong>da</strong><strong>de</strong> os doces momentos <strong>de</strong> convivência com João <strong>de</strong> Deus, Guerra<br />

Junqueira, Cesário Ver<strong>de</strong> e muitos outros. De tal modo lhe eram gra<strong>da</strong>s as<br />

sessões acadêmicas, que se inscreve entre os mais assíduos. Para ter<strong>de</strong>s uma<br />

idéia <strong>de</strong>ssa assidui<strong>da</strong><strong>de</strong>, basta-vos dizer que <strong>da</strong>s 89 realiza<strong>da</strong>s entre 1896 e<br />

1908, sob a presidência <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, assistiu a 69, juntamente com<br />

João Ribeiro, só atrás <strong>de</strong> José Veríssimo, com 79, e do presi<strong>de</strong>nte, com presença<br />

quase integral. 2<br />

Sua doação à Casa e o talento que seus confra<strong>de</strong>s lhe conferiam <strong>de</strong>vem,<br />

certamente, ter pesado para que fosse, na sessão <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1897,<br />

eleito para ocupar o cargo <strong>de</strong> 2 o Secretário com vista a integrar a primeira diretoria<br />

completa, juntamente com o 1 o Secretário, Rodrigo Octavio.<br />

2 Estatística levanta<strong>da</strong> na tese <strong>de</strong> Cláudio Cezar Henriques Atas <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> –<br />

Presidência Machado <strong>de</strong> Assis. Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2001. (Coleção<br />

Austregésilo <strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>, vol. 2.)<br />

206


Silva Ramos: mestre <strong>da</strong> língua<br />

Nas homenagens que justamente lhe foram tributa<strong>da</strong>s in memoriam, noseu<br />

falecimento, ocorrido em 1930 e no transcurso do 1 o centenário <strong>de</strong> nascimento,<br />

em 1953, os pontos <strong>de</strong> exaltação incidiram na sua produção <strong>de</strong> poeta, jornalista<br />

e tradutor, embora não lhe fossem esqueci<strong>dos</strong> os méritos <strong>de</strong> excelente<br />

filólogo e exímio professor <strong>de</strong> Língua Portuguesa.<br />

Sobre Silva Ramos recaíam os votos <strong>da</strong> crítica <strong>de</strong> então elogiando o <strong>de</strong>licado<br />

poeta romântico com ressalto <strong>de</strong> sua veia lírica, <strong>de</strong>nuncia<strong>da</strong> na epígrafe <strong>de</strong><br />

Alfredo <strong>de</strong> Musset “L’amour est tout... Aimer est le grand point...” com que<br />

abria seu único livro <strong>de</strong> versos, A<strong>de</strong>jos, publicado em Coimbra, em 1871, registrando-lhe<br />

os arroubos juvenis <strong>dos</strong> <strong>de</strong>zesseis aos <strong>de</strong>zoito anos. Ressaltava-se-lhe<br />

também o cronista encoberto no pseudônimo Julio Valmor <strong>de</strong> ASemana<br />

e outros órgãos <strong>da</strong> imprensa fluminense e, com não menos ênfase, o professor<br />

<strong>de</strong> nomea<strong>da</strong>, estimulador <strong>de</strong> estilistas e incentivador <strong>de</strong> futuros cultores<br />

do idioma.<br />

Os dotes <strong>de</strong> sua poesia, é bem ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, foram exagera<strong>da</strong>mente exalta<strong>dos</strong><br />

pelo paulista que lhe suce<strong>de</strong>u nesta Casa, o inspirado autor <strong>de</strong> Vi<strong>da</strong> e Morte do<br />

Ban<strong>de</strong>irante, Alcântara Machado. Outro ocupante <strong>da</strong> mesma ca<strong>de</strong>ira n.º 37, sessenta<br />

e sete anos <strong>de</strong>pois, com o peso <strong>de</strong> sua autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> excelente poeta, melhor<br />

os ajuizou. Eis as palavras do nosso confra<strong>de</strong> Ivan Junqueira no seu discurso<br />

<strong>de</strong> posse, acerca <strong>de</strong> A<strong>de</strong>jos:<br />

[...] esses versos <strong>de</strong> Silva Ramos, além <strong>de</strong> irremediavelmente <strong>da</strong>ta<strong>dos</strong>, refletem<br />

antes, ou tão-somente, os arroubos <strong>de</strong> um espírito ain<strong>da</strong> em ebulição<br />

e as fun<strong>da</strong>s influências que recebeu em Coimbra, as quais seriam <strong>de</strong>cisivas<br />

para a sua sóli<strong>da</strong> formação <strong>de</strong> gramático e filólogo. 3<br />

To<strong>dos</strong> os discípulos que tiveram a honra <strong>de</strong> lhe assistir às aulas são unânimes<br />

em aludir ao amor ao idioma que inoculava em seus ouvintes, à interpreta-<br />

3<br />

Discurso <strong>de</strong> Posse <strong>de</strong> Ivan Junqueira e Discurso <strong>de</strong> Recepção <strong>de</strong> Eduardo Portella. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, 2000, p. 11.<br />

207


Evanildo Bechara<br />

ção reveladora <strong>da</strong>s excelências lingüísticas escondi<strong>da</strong>s nos textos literários e a<br />

vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> com que, no sotaque lusitano, emprestava à leitura <strong>de</strong> trechos literários<br />

recolhi<strong>dos</strong> na mais clássica e <strong>de</strong> bom gosto seleta escolar, a Antologia Nacional<br />

<strong>de</strong> Fausto Barreto e Carlos <strong>de</strong> Laet.<br />

Silva Ramos perscrutava os meios estéticos <strong>de</strong> expressão utiliza<strong>dos</strong> nos textos<br />

literários, reconhecendo-lhes e <strong>de</strong>cifrando-lhes ‘a indocili<strong>da</strong><strong>de</strong> com que<br />

eles recebiam a rigi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> normas inflexíveis’, para trazermos aqui uma frase<br />

feliz do sau<strong>dos</strong>o Barbosa Lima Sobrinho, em sau<strong>da</strong>ção à passagem do centenário<br />

do ilustre filólogo. 4<br />

Neste sentido são extremamente reveladores os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> seus numerosos<br />

alunos, entre os quais lembrarei apenas dois, o <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira e o<br />

<strong>de</strong> Sousa <strong>da</strong> Silveira, ambos filólogos que, já adultos, recor<strong>da</strong>vam as aulas do<br />

nosso homenageado a crianças do 1 o ano <strong>da</strong> turma <strong>de</strong> 1897 do Ginásio Nacional,<br />

<strong>de</strong>nominação, àquela fase republicana, do Colégio Pedro II.<br />

Ain<strong>da</strong> hoje recordo – diz-nos Ban<strong>de</strong>ira – a maravilhosa lição que foi a<br />

leitura que fez <strong>da</strong> “Última corri<strong>da</strong> real <strong>de</strong> touros em Salvaterra”: não só tenho<br />

bem presente na memória o quadro objetivo <strong>da</strong> sala <strong>de</strong> aula, a atitu<strong>de</strong><br />

<strong>dos</strong> colegas, a figura subitamente remoça<strong>da</strong> do mestre, a voz com to<strong>da</strong>s as<br />

suas inflexões mais peculiares, como também to<strong>da</strong>s as imagens interiores<br />

evoca<strong>da</strong>s pelo surto eloqüente <strong>da</strong> leitura: o garbo e esplendor <strong>da</strong> ilustre Casa<br />

<strong>de</strong> Marialva ficou para sempre <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim como um painel brilhante.<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> em um ponto <strong>da</strong> minha consciência quedou armado um redon<strong>de</strong>l<br />

<strong>de</strong>finitivo para essa última corri<strong>da</strong> <strong>de</strong> touros em Salvaterra, a qual nunca<br />

<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser uma <strong>da</strong>s festas preferi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> minha imaginação. A tal ponto,<br />

que longe <strong>de</strong> ser a última, passou a ser a eterna corri<strong>da</strong> <strong>de</strong> touros, eterna e<br />

única, pois foi a primeira que vi – porque positivamente a vi! – e me fez<br />

achar insípi<strong>da</strong>s, mesquinhas, labregamente plebéias as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras toura<strong>da</strong>s<br />

4 Discurso do Presi<strong>de</strong>nte, Sr. Barbosa Lima Sobrinho. Sessão <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1953. In: Revista <strong>da</strong><br />

<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>, ano 52, vol. 85. Anais <strong>de</strong> 1953. Rio <strong>de</strong> Janeiro: <strong>ABL</strong>, 1953, pp. 237-240.<br />

208


a que assisti <strong>de</strong>pois com os olhos do corpo e não com os <strong>da</strong> imaginação excita<strong>da</strong><br />

pelo gosto literário do mestre. 5<br />

O testemunho <strong>de</strong> Sousa <strong>da</strong> Silveira revela-nos o filólogo que aceita aquela<br />

indocili<strong>da</strong><strong>de</strong> à rigi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> regras inflexíveis a que atrás referi. Falando a Homero<br />

Senna acerca do mestre, lembra Sousa fatos <strong>de</strong> língua que já <strong>de</strong>nunciam a argúcia<br />

do futuro comentador <strong>de</strong> textos:<br />

Nesse primeiro ano do Ginásio encontro, entre os professores, Silva Ramos,<br />

<strong>de</strong> saliente e forte personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, embora disfarça<strong>da</strong> pela sua modéstia<br />

e encantadora simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Posso dizer que foi ele quem primeiro me chamou<br />

a atenção para as belezas do idioma que falamos e para os recursos do<br />

estilo. Lembra-me, por exemplo, que em classe fazia ressaltar as onomatopéias<br />

que se encontram na célebre página <strong>de</strong> Camilo referente ao suplício <strong>da</strong><br />

Marquesa <strong>de</strong> Távora. Na “Última corri<strong>da</strong> <strong>de</strong> touros em Salvaterra”, <strong>de</strong> Rebelo<br />

<strong>da</strong> Silva, entre muitas outras coisas, o velho mestre salientava a impressão<br />

<strong>de</strong> ansie<strong>da</strong><strong>de</strong> que, em certa altura, se traduz pela sucessão <strong>de</strong> perío<strong>dos</strong><br />

curtos. Também não me esquecerei jamais <strong>de</strong> que nos versos <strong>de</strong> Gonçalves<br />

<strong>de</strong> Magalhães, relativos à <strong>de</strong>scrição do Amazonas, indicou-nos o efeito <strong>dos</strong><br />

dois proparoxítonos usa<strong>dos</strong> pelo poeta para sugerirem a idéia <strong>de</strong> largura e<br />

vastidão do rio:<br />

Baliza natural, ao norte avulta<br />

O <strong>da</strong>s águas gigante cau<strong>da</strong>loso<br />

Que pela terra alarga-se vastíssimo.<br />

Silva Ramos: mestre <strong>da</strong> língua<br />

Ora... outro professor, a respeito <strong>de</strong> tais versos, nos teria dito que os nossos<br />

românticos não se preocupavam muito com a correção <strong>da</strong> língua e colocavam<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>mente os pronomes. Censuraria, com certeza, Maga-<br />

5 Manuel Ban<strong>de</strong>ira, Poesia e Prosa. Vol. II, Prosa, pp. 1167-1168. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora José Aguilar,<br />

1958.<br />

209


Evanildo Bechara<br />

lhães por ter colocado o pronome átono <strong>de</strong>pois do verbo na oração subordina<strong>da</strong><br />

relativa e ain<strong>da</strong> por cima <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um adjunto adverbial. E não seria<br />

<strong>de</strong> admirar que, se fosse versejador, sugerisse aos alunos uma emen<strong>da</strong>, substituindo<br />

um verso, como o <strong>de</strong> Magalhães, belo e sugestivo, por outro corretíssimo,<br />

do ponto <strong>de</strong> vista gramatical, mas sem nenhum po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> expressão.<br />

Foi com Silva Ramos que adquiri o gosto do gênero <strong>de</strong> comentários que tenho<br />

feito à obra <strong>de</strong> alguns autores nossos e portugueses, <strong>de</strong> que po<strong>de</strong> servir<br />

<strong>de</strong> exemplo a edição crítica que organizei <strong>da</strong>s poesias <strong>de</strong> Casimiro <strong>de</strong><br />

Abreu... Esses comentários têm suas raízes nas lições do querido professor,<br />

o qual lançou em meu espírito sementes que frutificaram... Sabia fazer com<br />

que os alunos tomassem gosto pelo estudo <strong>da</strong> língua. E o mais importante...<br />

é que lecionou à nossa turma apenas durante o ano <strong>de</strong> 1897. Mesmo assim,<br />

pô<strong>de</strong> influir fortemente em meu espírito. 6<br />

Na oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ste sesquicentenário <strong>de</strong>sejo mostrar-vos, em mo<strong>de</strong>sto<br />

bosquejo, um Silva Ramos eminentemente filólogo, no mais amplo sentido <strong>de</strong><br />

que se reveste o termo, com um embasamento teórico que raramente se encontra<br />

nos seus contemporâneos, numa época <strong>de</strong> formação superior autodi<strong>da</strong>ta<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um momento histórico altamente renovador nos méto<strong>dos</strong> <strong>de</strong> estudo<br />

6 Apud Maximiano <strong>de</strong> Carvalho e Silva, Sousa <strong>da</strong> Silveira. O Homem e a Obra. Sua Contribuição à Crítica<br />

Textual no Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Presença / Pró-Memória / Instituto Nacional do Livro, 1984, pp.<br />

11-12. Também a este mesmo propósito se manifesta M. Ban<strong>de</strong>ira em carta a Alphonsus <strong>de</strong><br />

Guimaraens Filho, <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1942: “Não tenho no entanto a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estar fazendo<br />

sonetos tão bonitos como esses que você me mandou. Imperfeições e <strong>de</strong>ficiências? Sinceramente não<br />

encontro nenhumas. O primeiro verso do primeiro soneto tem onze sílabas; e o quarto verso do<br />

primeiro e do segundo soneto só tem nove. Mas <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> minha antologia romântica e <strong>da</strong> edição <strong>de</strong><br />

Casimiro, do Sousa <strong>da</strong> Silveira, um gran<strong>de</strong> poeta e gran<strong>de</strong> versejador como você não tem que <strong>da</strong>r<br />

satisfações a ninguém: nós é que temos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir, como eu e o Silveira fizemos, os motivos<br />

secretos intuitivos que levam os poetas <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> a pôr versos <strong>de</strong> 11 e 9 sílabas no meio <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cassílabos. No caso <strong>dos</strong> seus sonetos estão transparentes os tais motivos, e quando você morrer (o<br />

que espera seja <strong>da</strong>qui a uns sessenta e tantos anos) e se fizer uma edição crítica <strong>de</strong> suas obras poéticas<br />

há <strong>de</strong> aparecer um Sousa <strong>da</strong> Silveira para o interpretar e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>da</strong>s possíveis cavalgaduras do fim<br />

do século XX ... (Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> e Manuel Ban<strong>de</strong>ira. Itinerários. Cartas a Alphonsus <strong>de</strong> Guimaraens Filho.<br />

São Paulo: Livraria Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, 1974, pp. 84-85.)<br />

210


Silva Ramos: mestre <strong>da</strong> língua<br />

científico <strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong>s línguas, especialmente mo<strong>de</strong>rnas, cujo marco <strong>de</strong>flagrador,<br />

nas pega<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Diez, se acha assinalado, em Portugal, a<br />

partir <strong>de</strong> 1869, com a produção pioneira <strong>de</strong> Francisco Adolfo Coelho e, no<br />

Brasil, em 1878, com a Gramática Histórica, <strong>de</strong> Pacheco <strong>da</strong> Silva Júnior e, em<br />

1881, com a Gramática Portuguesa, <strong>de</strong> Júlio Ribeiro.<br />

Silva Ramos, sem nos <strong>de</strong>ixar uma obra orgânica sobre nossa língua, estava a<br />

par <strong>dos</strong> princípios metodológicos mais correntes no seu tempo, princípios metodológicos<br />

a que chamava “estu<strong>dos</strong> positivos <strong>dos</strong> fatos <strong>da</strong> linguagem [...] que<br />

constituem a ciência <strong>da</strong>s línguas”. 7 Sabia a posição mais correta e operacional<br />

em que <strong>de</strong>viam ficar tais princípios na tarefa <strong>de</strong> ensinar a língua a jovens estu<strong>da</strong>ntes<br />

ginasianos: por trás do mestre, orientando e disciplinando seu discurso<br />

lingüístico e metalingüístico, e não fazendo <strong>de</strong>sses princípios e <strong>da</strong>s questões<br />

complexas que envolvem o assunto <strong>da</strong> aula.<br />

Graças ao empenho e iniciativa editorial <strong>de</strong> Lau<strong>de</strong>lino Freire, po<strong>de</strong>mos<br />

contar hoje com uma coletânea <strong>de</strong> prosa, poesia e algumas lições <strong>de</strong> Língua<br />

Portuguesa, vin<strong>da</strong> à luz em 1922, intitula<strong>da</strong> Pela Vi<strong>da</strong> Fora. Caberá à <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>,<br />

no prosseguimento <strong>da</strong> homenagem <strong>de</strong> hoje, reeditar em breve essa coletânea,<br />

acresci<strong>da</strong> <strong>de</strong> outras lições esparsas em jornais e revistas, além <strong>de</strong> um opúsculo<br />

que pouco parece na sua bibliografia, AReforma Ortográfica e a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Letras</strong> (1926).<br />

Expôs seu i<strong>de</strong>ário didático-pe<strong>da</strong>gógico em mais <strong>de</strong> uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>; lembrarei<br />

uma <strong>de</strong> suas lições no artigo que escreveu para o número inicial <strong>da</strong> Revista<br />

<strong>de</strong> Cultura, do Padre Tomás Fontes, em 1927, com o título <strong>de</strong> “Em ar <strong>de</strong> conversa”:<br />

To<strong>da</strong> nação tem o seu código <strong>de</strong> bem falar e escrever em que se instruem<br />

os naturais até aos quinze ou aos <strong>de</strong>zesseis anos, e ca<strong>da</strong> qual procura exprimir-se<br />

<strong>de</strong> acordo com ele, abandonando os problemas <strong>da</strong> língua aos filólogos<br />

e aos gramáticos a quem compete <strong>de</strong>strinçá-los.<br />

7 Silva Ramos, Pela Vi<strong>da</strong> Fora. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Edição <strong>da</strong> Revista <strong>de</strong> Língua Portuguesa, 1922, pp. 75.<br />

211


Entre nós, que suce<strong>de</strong>? Os estu<strong>da</strong>ntes <strong>de</strong> português e muitos <strong>dos</strong> que escrevem<br />

para o público <strong>de</strong>scuram inteiramente <strong>da</strong> gramática elementar para<br />

se interessarem pelas questões transcen<strong>de</strong>ntais: a função do reflexivo se, se<br />

ele po<strong>de</strong> ou não figurar como sujeito, o emprego do infinitivo pessoal e do<br />

impessoal, qual o sujeito do verbo haver impessoal e outras que tais cousas<br />

abstrusas que na<strong>da</strong> adiantam na prática.<br />

O apuro científico <strong>de</strong> Silva Ramos está presente em muitas <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>clarações<br />

sobre fatos <strong>da</strong> língua; um mergulho nelas, por superficial que seja, nos revela<br />

o princípio ou os princípios em que se assentam. Quando se alu<strong>de</strong> ao mestre,<br />

logo aco<strong>de</strong>m à lembrança palavras suas que se tornaram clássicas e assumiram<br />

até certo ar anedótico, como aquela afirmação: “Eu não sei como se colocam<br />

os pronomes, pela razão muito natural que não sou eu quem os coloca,<br />

eles é que se colocam por si mesmos, e on<strong>de</strong> caem, aí ficam.” 8<br />

Por trás <strong>de</strong>ste comentário aparentemente inocente, há um punhado <strong>de</strong> princípios<br />

metodológicos que cabe trazer à luz para análise. O primeiro <strong>de</strong>les é,<br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong> àquela quadra <strong>dos</strong> estu<strong>dos</strong> <strong>de</strong> linguagem, a introdução <strong>dos</strong> fatores <strong>de</strong><br />

fonética sintática e <strong>de</strong> entoação frasal como motivadores <strong>de</strong> fatos <strong>de</strong> distribuição<br />

<strong>de</strong> termos oracionais, especialmente do jogo <strong>de</strong> vocábulos tônicos e átonos<br />

no boleio <strong>da</strong> frase. Não se tratava mais <strong>da</strong> famosa explicação por atração <strong>de</strong>ssa<br />

ou <strong>da</strong>quela palavra, mas sim pelos fenômenos <strong>de</strong> entoação, tema então recente<br />

entre estu<strong>dos</strong> <strong>de</strong> fonética pratica<strong>dos</strong> especialmente pelos lingüistas alemães,<br />

revela<strong>dos</strong> <strong>de</strong> maneira inovadora por M. Said Ali, em artigo na Revista <strong>Brasileira</strong>,<br />

a 1 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1895, <strong>de</strong> cuja lição só Silva Ramos soube extrair orientação<br />

para seu magistério, pois não a vemos exara<strong>da</strong> nas melhores e mais correntes<br />

gramáticas <strong>da</strong> época, que ain<strong>da</strong> insistiam na improdutiva e falsa teoria <strong>da</strong> atração<br />

vocabular.<br />

Ain<strong>da</strong> nas pega<strong>da</strong>s <strong>de</strong> Said Ali e como corolário <strong>da</strong> nova teoria <strong>da</strong> entoação<br />

frasal, pô<strong>de</strong> Silva Ramos compreen<strong>de</strong>r que, estando a distribuição <strong>dos</strong> prono-<br />

8 Id., ibid., p. 119.<br />

Evanildo Bechara<br />

212


mes oblíquos sujeita ao ritmo frasal e que esse ritmo era diferente entre brasileiros<br />

e portugueses, natural seria que a colocação não coincidisse nos dois espaços<br />

geográficos – o americano e o europeu. E mais: que o brasileiro teria direito<br />

a esse uso, recriminado pelos portugueses. Eis lição <strong>de</strong> Silva Ramos, em<br />

1914, comentando os Novíssimos Estu<strong>dos</strong> <strong>da</strong> Língua Portuguesa, <strong>de</strong> Mário Barreto:<br />

Acreditamos, entretanto, que, quando o professor Mário Barreto se dispuser<br />

a tratar o assunto com a amplitu<strong>de</strong> que ele comporta, a conclusão a<br />

que terá <strong>de</strong> chegar, necessariamente, em face <strong>dos</strong> princípios <strong>da</strong> ciência que<br />

tanto acata e venera, é que a situação do pronome átono na proposição, tanto<br />

no Brasil como em Portugal, é <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> exclusivamente pelo ritmo,<br />

diferente numa e noutra região, consoante a tonici<strong>da</strong><strong>de</strong> e o valor <strong>dos</strong> fonemas<br />

que não condizem aquém e além-mar.<br />

O fenômeno é puramente <strong>de</strong> som, <strong>da</strong>quela fonética <strong>de</strong> que fala Brugmann,<br />

que consi<strong>de</strong>ra a frase como “uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> fonética completa em si<br />

mesma. 9<br />

Em 1907, na prova escrita do concurso a que se submeteu para preenchimento<br />

<strong>de</strong> cátedra do Colégio <strong>de</strong> Pedro II, não fora diferente a sua lição:<br />

Seja como for, o regulador único <strong>da</strong> distribuição <strong>dos</strong> pronomes átonos<br />

na locução brasileira é igualmente o ritmo, governado por princípios <strong>de</strong> que<br />

os naturais do Brasil não têm a mínima consciência, como os que nasceram<br />

em Portugal não a têm <strong>dos</strong> que regulam a cadência <strong>da</strong> locução portuguesa.<br />

Ora, tentar reduzir o ritmo, o número, a cadência <strong>da</strong> linguagem brasileira ao<br />

ritmo, ao número, à cadência <strong>da</strong> linguagem portuguesa é irracionável empreendimento.<br />

[...]<br />

Ora, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo exclusivamente a situação <strong>dos</strong> pronomes átonos brasileiros<br />

<strong>da</strong> fonética peculiar ao Brasil, como se pô<strong>de</strong> originar essa preocupa-<br />

9 Id., ibid., p. 82.<br />

Silva Ramos: mestre <strong>da</strong> língua<br />

213


Evanildo Bechara<br />

ção <strong>dos</strong> gramáticos e mestres do vernáculo, entre nós, <strong>de</strong> estabelecerem regras<br />

para a colocação <strong>da</strong>queles elementos, <strong>de</strong> acordo com os hábitos do falar<br />

português, a ponto <strong>de</strong> ter o assunto servido <strong>de</strong> tema para uma tese <strong>de</strong><br />

concurso no Colégio <strong>de</strong> Pedro II?<br />

Essa singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> veio a gerar-se <strong>da</strong> maneira seguinte: José Feliciano <strong>de</strong><br />

Castilho, português, a cujo ouvido mal toava a construção brasileira, lembrou-se<br />

<strong>de</strong> censurar a José <strong>de</strong> Alencar pela forma por que ele usava colocar<br />

os pronomes. Ora, se o ilustre escritor e crítico se tivesse limitado a afirmar<br />

que a fraseologia do autor <strong>de</strong> Iracema se afastava, nesse particular, <strong>dos</strong> bons<br />

mo<strong>dos</strong> <strong>da</strong> língua vernácula, na<strong>da</strong> haveria que lhe opor: ele, porém, não se ficou<br />

por aí: preten<strong>de</strong>u sustentar, <strong>de</strong> clássicos em punho, que sempre eles<br />

obe<strong>de</strong>ceram a uma norma, na maneira como colocavam os pronomes; e entrou<br />

a <strong>de</strong>duzir regras. Foi o que o per<strong>de</strong>u. Alencar <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u-se galhar<strong>da</strong>mente.<br />

Choveram <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os la<strong>dos</strong> contestações. A autori<strong>da</strong><strong>de</strong> contrapunha-se<br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, a citação retorquia-se com citação. Castilho quase per<strong>de</strong><br />

a cabeça [...] Os nossos gramáticos correram aço<strong>da</strong><strong>dos</strong> a sancionar a doutrina<br />

<strong>de</strong> Castilho, estabelecendo regras que to<strong>da</strong>s pa<strong>de</strong>ciam <strong>de</strong> fraqueza orgânica,<br />

visto como repousavam to<strong>da</strong>s em consi<strong>de</strong>rações reporta<strong>da</strong>s à sintaxe e<br />

à morfologia, que na<strong>da</strong> têm que ver com a espécie: atração para o sujeito,<br />

afini<strong>da</strong><strong>de</strong> para as subordinativas, solicitação por parte <strong>da</strong>s negativas, e quejan<strong>da</strong>s<br />

relações, que <strong>de</strong>viam embaraçar muito seriamente [...] os que têm por<br />

ofício manipular os acepipes literários. 10<br />

A visão científica com que Silva Ramos investigava a linguagem e os fatos<br />

<strong>da</strong> língua portuguesa habilitara-o a tratar com a superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> que não se encontrava<br />

nos gramáticos <strong>da</strong> sua época, ain<strong>da</strong> os mais bem informa<strong>dos</strong>, a existência<br />

<strong>da</strong>s varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma mesma língua histórica, diversifica<strong>da</strong>s em diferenças<br />

cronológicas, regionais, sociais e estilísticas, em to<strong>da</strong>s as dimensões <strong>de</strong><br />

concretização <strong>dos</strong> seus atos <strong>de</strong> língua. Está claro que se encontram em estu-<br />

10 Id., ibid., pp. 222-224.<br />

214


Silva Ramos: mestre <strong>da</strong> língua<br />

diosos <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as épocas percucientes intuições <strong>de</strong>ssas varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, mas não<br />

fazem <strong>de</strong>las emprego operacional e funcional. Consi<strong>de</strong>rar uma língua não<br />

como um bloco homogêneo e unitário, mas como um diassistema, vale dizer,<br />

um complexo conjunto <strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s, é conceito bem mo<strong>de</strong>rno na ciência<br />

<strong>da</strong>s línguas. Silva Ramos, estilista e funcionalista avant la lettre, tirava partido<br />

<strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong> nos artigos sobre que doutrinava os adultos e nas lições em<br />

que instruía os alunos.<br />

Como as gran<strong>de</strong>s figuras, estava a par <strong>da</strong>s doutrinas em que se havia educado,<br />

mas não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> procurar aperfeiçoar conceitos e méto<strong>dos</strong>. Assim é que<br />

a lingüística antes do seu tempo se caracterizara pelas raízes do método evolucionista<br />

e naturalista, segundo cujos preceitos as línguas eram emparelha<strong>da</strong>s<br />

aos organismos vivos, sob a égi<strong>de</strong> <strong>da</strong>s ciências naturais, que nasciam, cresciam,<br />

se <strong>de</strong>senvolviam e morriam in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>dos</strong> homens.<br />

Recebeu também Silva Ramos as luzes do método histórico-comparativo<br />

alemão e a ele acrescentou o i<strong>de</strong>ário sociocultural <strong>da</strong> escola do americano<br />

Whitney. E mais avante acrescentou, já no final <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> ocupação magisterial,<br />

os ensinamentos incipientes do psicologismo francês <strong>de</strong> Ferdinando<br />

Brunot, em La Pensée et la Langue, saído em 1922.<br />

Registrem-se diferenças <strong>de</strong> visão <strong>da</strong> linguagem e <strong>da</strong>s línguas nos dois excertos<br />

seguintes; o primeiro, <strong>da</strong>tado <strong>de</strong> 1918, tipicamente fiel a um i<strong>de</strong>ário naturalista<br />

em que a linguagem é uma proprietária biológica do homem. Neste sentido,<br />

vê como um processo fatalista <strong>de</strong> evolução as diferenças que se vão criando<br />

entre o português do Brasil e o português <strong>de</strong> Portugal, que haverão <strong>de</strong> favorecer<br />

o surgimento <strong>de</strong> um dialeto brasileiro in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte:<br />

O que particularmente nos po<strong>de</strong>ria interessar a nós brasileiros, como se<br />

<strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>da</strong>s consultas en<strong>de</strong>reça<strong>da</strong>s freqüentemente aos professores <strong>de</strong><br />

português, era saber se está próxima ou remota a emancipação do dialeto<br />

brasileiro, a ponto <strong>de</strong> se tornar língua in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte.<br />

A dialetação, como bem sabeis, é um fenômeno natural que a ninguém é<br />

<strong>da</strong>do acelerar ou retar<strong>da</strong>r, por maior autori<strong>da</strong><strong>de</strong> que se arrogue; ao tempo, e<br />

215


Evanildo Bechara<br />

só ao tempo, é que compete produzi-lo. As línguas românicas foram dialetos<br />

do latim, um <strong>dos</strong> dialetos por sua vez do ramo itálico, dialeto ele próprio<br />

<strong>da</strong> língua <strong>dos</strong> árias; não po<strong>de</strong> haver, portanto, dúvi<strong>da</strong> mínima, para<br />

quem apren<strong>de</strong>u na aula <strong>de</strong> lógica a induzir, que o idioma brasileiro, <strong>de</strong> dialeto<br />

português que ain<strong>da</strong> é, chegará a ser um dia a língua própria do Brasil.<br />

Que po<strong>de</strong>rão, entretanto, fazer os mestres neste momento histórico <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> do português na nossa terra?<br />

Ir legitimando pouco a pouco, com a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s nossas gramáticas,<br />

as diferenciações que se vão operando entre nós, <strong>da</strong>s quais a mais sensível é a<br />

<strong>da</strong>s formas casuais <strong>dos</strong> pronomes pessoais regi<strong>dos</strong> por verbos <strong>de</strong> significação<br />

transitiva e que nem sempre coinci<strong>de</strong>m lá e cá; além <strong>da</strong> fatali<strong>da</strong><strong>de</strong> fonética<br />

que origina necessariamente a <strong>de</strong>slocação <strong>dos</strong> pronomes átonos na frase,<br />

o que tanto horripila o ouvido afeiçoado à modulação <strong>de</strong> além-mar.<br />

Consentiremos que os nossos alunos nos venham dizer que assistiram<br />

festas, respon<strong>de</strong>ram cartas, obe<strong>de</strong>ceram or<strong>de</strong>ns, perdoaram colegas e que, em compensação,<br />

assegurem aos mestres que lhes estimam, que se lhes não visitam com<br />

freqüência, é que receiam incomo<strong>da</strong>r-lhes e que se lhes não sau<strong>da</strong>ram na rua,<br />

foi que lhes não viram?<br />

Por mim, falece-me autori<strong>da</strong><strong>de</strong> para sancionar tais regências, nem acredito<br />

que qualquer <strong>dos</strong> meus colegas se abalance a tanto. E, contudo, o que nenhum<br />

<strong>de</strong> nós teria coragem <strong>de</strong> fazer, hão <strong>de</strong> consegui-lo os anos que se vão<br />

dobando lentamente. 11<br />

Em outro tom é o seguinte comentário, <strong>de</strong> 1919:<br />

A língua não é um ser in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregar <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os<br />

outros aspectos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> social a que está intimamente liga<strong>da</strong>, para se<br />

consi<strong>de</strong>rar em abstrato; é uma resultante necessária <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> coletiva nas suas<br />

infinitas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Se conseguirmos, portanto, assimilar as virtu<strong>de</strong>s <strong>da</strong>s<br />

11 Id., ibid., pp. 178-179.<br />

216


atenienses, ático será o nosso dizer; se persistirmos em importar, à mistura<br />

com os hábitos <strong>de</strong> elegância, os vícios, elegantes ou não, <strong>dos</strong> bárbaros e civiliza<strong>dos</strong>,<br />

proliferarão os barbarismos [= estrangeirismos], e se levarmos a<br />

<strong>de</strong>sídia ao extremo <strong>de</strong> nos abandonarmos, como os habitantes <strong>de</strong> Soles, segrega<strong>dos</strong><br />

<strong>da</strong> Grécia culta num recanto <strong>da</strong> Cilícia, não há fugir aos solecismos<br />

e acabaremos to<strong>dos</strong> por falar como a mucama que tanto me irritou. É<br />

fatal. 12<br />

<br />

Por fim, cabe-nos falar <strong>da</strong> maior batalha que Silva Ramos travou nesta<br />

Casa: a batalha <strong>da</strong> ortografia, a cuja vitória final chegou muitos anos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

morto, pelo peso científico <strong>dos</strong> princípios <strong>de</strong>fendi<strong>dos</strong> nos recua<strong>dos</strong> anos <strong>de</strong><br />

1915.<br />

To<strong>da</strong>s as discussões havi<strong>da</strong>s nesta <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> sobre sistematização ortográfica,<br />

inicia<strong>da</strong>s com a proposta <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros e Albuquerque aprova<strong>da</strong> na<br />

sessão <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1907, se caracterizaram por um empirismo e, como<br />

conseqüência, por soluções que transgrediam muito do progresso já conseguido<br />

lá fora sobre os fun<strong>da</strong>mentos científicos em que se <strong>de</strong>veria assentar um<br />

tão razoável quanto possível sistema <strong>de</strong> representação na escrita do plano fônico<br />

<strong>da</strong> língua.<br />

As primeiras luzes no domínio do português vieram com o aparecimento,<br />

em 1904, <strong>da</strong> Ortografia Nacional, elabora<strong>da</strong> pelo competente foneticista e ortógrafo<br />

lusitano Gonçalves Viana. Aperfeiçoa<strong>da</strong>s as suas recomen<strong>da</strong>ções com a<br />

eliminação <strong>de</strong> alguns exotismos, as propostas <strong>de</strong> Viana serviram <strong>de</strong> base para a<br />

reforma oficial <strong>da</strong> ortografia portuguesa <strong>de</strong> 1911. No Brasil, esta reforma simplificadora<br />

recebeu o beneplácito <strong>de</strong> Silva Ramos no seio <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, e no<br />

magistério pela acolhi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Mário Barreto, Sousa <strong>da</strong> Silveira, Antenor Nas-<br />

12 Id., ibid., pp. 119-120.<br />

Silva Ramos: mestre <strong>da</strong> língua<br />

217


Evanildo Bechara<br />

centes, Clóvis Monteiro e Jaques Raimundo, para ficarmos apenas com os<br />

mais representativos professores do Rio <strong>de</strong> Janeiro.<br />

Aceitando os argumentos técnicos do nosso homenageado, acolhe esta Casa<br />

sua proposta <strong>de</strong> adoção <strong>da</strong> reforma portuguesa na sessão <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> novembro<br />

<strong>de</strong> 1915. Essas núpcias entre as duas <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>s duraram pouco, pois, em<br />

1919, resolveram nossos confra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> então abandonar o acordo, pondo por<br />

terra tudo o que se havia <strong>de</strong>liberado sobre a magna questão ortográfica. O retrocesso<br />

muito magoou a Silva Ramos, que resolveu não mais tratar do assunto<br />

com seus pares.<br />

O argumento que nesta Casa se levantou contra a proposta incidia numa<br />

falsa razão ain<strong>da</strong> hoje trazi<strong>da</strong> à baila em <strong>de</strong>bates <strong>de</strong>ssa natureza: a lusitani<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong> pronúncia respeita<strong>da</strong> pelo acordo e tão natural ao autor <strong>de</strong> Pela Vi<strong>da</strong> Fora.<br />

Havendo diferenças visíveis na pronúncia <strong>de</strong> brasileiros e portugueses, era impossível<br />

um sistema gráfico único para as duas nações, justificavam.<br />

Ora, falso o argumento, porque o sistema ortográfico não é essencialmente<br />

fonético mas fonológico, isto é, só leva em conta as uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s fônicas que têm<br />

valor lingüístico distintivo. Vale isto dizer que um vocábulo como menino, diretor<br />

ou também po<strong>de</strong> ser proferido diferentemente nas diversas regiões do Brasil e<br />

<strong>de</strong> Portugal, mas só será representado na escrita, cá e lá, <strong>de</strong> uma única maneira.<br />

E aí resi<strong>de</strong> efetivamente a só responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um sistema ortográfico. O<br />

fato ocorre com to<strong>da</strong> língua espalha<strong>da</strong> no vasto território nacional ou entre<br />

nações diferentes – como o espanhol, o francês, o inglês, o russo ou o árabe,<br />

por exemplo –, mas para esses idiomas existe apenas um modo <strong>de</strong> se grafar a<br />

gran<strong>de</strong> maioria <strong>de</strong> seus vocábulos.<br />

Entre brasileiros e portugueses ain<strong>da</strong> não se chegou a uma razoável uni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

porque se tem insistido em que o sistema ortográfico – argumento nem sempre<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro – com a utilização excessiva <strong>de</strong> notações gráficas (como acentos,<br />

consoantes mu<strong>da</strong>s e até o hífen) leva o falante a pronunciar “corretamente”<br />

as palavras <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> fonética existente em todo o espaço <strong>da</strong><br />

lusofonia. Aqui está o calcanhar <strong>de</strong> Aquiles que tem impedido a tão sonha<strong>da</strong><br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> gráfica no seio <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> e <strong>da</strong> <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>da</strong>s<br />

218


Silva Ramos: mestre <strong>da</strong> língua<br />

Ciências <strong>de</strong> Lisboa: quer-se uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e se ameaça ela com os fatores <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A proposta <strong>de</strong> 1915 <strong>de</strong> Silva Ramos e <strong>dos</strong> confra<strong>de</strong>s que a subscreveram,<br />

adotando o sistema oficial português, assinalaria o primeiro passo no sentido<br />

<strong>da</strong> pretendi<strong>da</strong> unificação. Posta em prática por largo tempo, viriam fatalmente<br />

as emen<strong>da</strong>s para se alcançar a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> a que tanto aspiramos como um <strong>dos</strong> fatores<br />

<strong>de</strong> difusão <strong>da</strong> língua portuguesa no mundo.<br />

Os argumentos <strong>de</strong> Silva Ramos contra propostas menos científicas acabaram<br />

vitoriosos com a aprovação do Formulário Ortográfico <strong>de</strong> 1943, revisto em<br />

pequenas alterações <strong>de</strong> 1971, que consubstanciava a velha lição <strong>de</strong> Gonçalves<br />

Viana.<br />

De todo este percurso intelectual e acadêmico <strong>de</strong> Silva Ramos como filólogo<br />

abalizado e como mestre <strong>da</strong> língua exemplar resta-nos, nesta passagem do<br />

sesquicentenário <strong>de</strong> nascimento, assumir o compromisso <strong>de</strong> levar avante sua<br />

obra e suas lições.<br />

219

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