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O decassílabo camoniano como modelo métrico ... - Home - Unesp

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O <strong>decassílabo</strong> <strong>camoniano</strong> <strong>como</strong> <strong>modelo</strong> <strong>métrico</strong> para uma tradução da Eneida<br />

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

Prof. Dr. Márcio THAMOS<br />

FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões da Antiguidade Clássica / UNESP<br />

marciothamos@uol.com.br<br />

A tradução é idealmente a expressão de uma leitura. E, uma vez que certa equivalência<br />

estilística é o mínimo que se pode exigir de uma tradução, a consciência de fatos expressivos<br />

observados no texto original contribui diretamente para a possibilidade de uma realização<br />

vernácula em que aquela desejável equivalência se verifique num grau cada vez mais próximo<br />

do ideal.<br />

Conforme adverte João Batista Toledo Prado, nas traduções de poemas latinos para o<br />

vernáculo, o leitor deverá estar atento a que<br />

o texto em língua materna dê conta de produzir as equivalências rítmicas e<br />

os isomorfismos de conteúdo e expressão, presentes no poema latino, sem o<br />

que não existe poema em latim, sem o que não existirá tradução de poema<br />

latino para o português. (1997, p. 250)<br />

Ainda que reconheça de bom grado a justeza do preceito, o tradutor trabalha nos<br />

limites de seu talento próprio: entre o vislumbre de possibilidades e a realização de uma<br />

escolha, nem sempre o espírito se contenta. A resignação consciente é uma estratégia que se<br />

aprende a fim de continuar.<br />

Nas reflexões acerca do Homo Ludens, Johan Huizinga faz notar que<br />

Toda civilização só muito lentamente vai abandonando a forma<br />

poética <strong>como</strong> principal método de expressão das coisas importantes para a<br />

vida da comunidade social. A poesia sempre antecede a prosa; para a<br />

expressão de coisas solenes ou sagradas, a poesia é o único veículo<br />

adequado. (1996, p. 142).


Essa observação pode ser confirmada por vários exemplos da história literária. No que<br />

diz respeito às literaturas latina e portuguesa, a Eneida e Os Lusíadas representam<br />

respectivamente <strong>modelo</strong>s acabados do emprego da poesia na expressão dos valores mais<br />

sublimes de uma sociedade. Ressalte-se que Virgílio adotou o hexâmetro datílico <strong>como</strong><br />

padrão <strong>métrico</strong> de sua obra e que Camões fez do <strong>decassílabo</strong> o molde de composição da sua.<br />

Nos dois casos, a escolha do metro parece corroborar estilisticamente a grandeza do tema<br />

cantado.<br />

O verso latino é formado por uma seqüência de sílabas longas, indicadas, nos<br />

exercícios de escansão, pelo macro ( ¯ ) e breves, indicadas pela braquia ( ˘ ). Uma longa<br />

equivale metricamente a duas breves. Agrupadas em unidades rítmicas, as sílabas compõem<br />

os pés <strong>métrico</strong>s. O hexâmetro datílico é um verso composto por seis pés de quatro tempos<br />

cada (uma sílaba breve correspondendo a um tempo e uma longa, a dois). Os quatro primeiros<br />

pés são datílicos ou espondaicos, isto é, unidades compostas pela seqüência de uma sílaba<br />

longa e duas breves ou de duas sílabas longas. O quinto pé, que caracteriza o verso, é<br />

necessariamente um dátilo ( ¯ ˘ ˘ ), e o último, um espondeu ( ¯ ¯ ) ou, uma espécie de pé<br />

quebrado, um troqueu ( ¯ ˘ ) 1 . Completa esse esquema <strong>métrico</strong> a cesura, indicada pela barra<br />

dupla (║), uma espécie de corte semântico que estabelece o equilíbrio rítmico-sintático do<br />

verso, fixada com freqüência após a primeira sílaba do terceiro ou do quarto pé (embora<br />

possam ocorrer cesuras em outros pontos do hexâmetro). A título de exemplo, veja-se a<br />

escansão do verso inicial da Eneida:<br />

Ārmă uĭ|rūmquĕ că|nō,║Trō|iāe quī| prīmŭs ăb| ōrīs<br />

[Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris]<br />

1 A última sílaba do verso teria, na verdade, sua duração neutralizada pela pausa final, daí a possibilidade de ser<br />

longa, no caso do espondeu, ou breve, no caso do troqueu, sem que isso represente variação formal do <strong>modelo</strong><br />

rítmico de vinte e quatro tempos.<br />

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

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O <strong>decassílabo</strong> português é um verso de dez sílabas poéticas que recebe um acento<br />

prosódico regular na sexta. A este costuma-se chamar heróico. Quando ocasionalmente o<br />

acento não ocorre na sexta sílaba, exigem-se acentos na quarta e na oitava. Essa variação<br />

tradicional do <strong>decassílabo</strong> recebe quase sempre a denominação de sáfico. Nota-se assim a<br />

preocupação métrica de garantir o equilíbrio rítmico ideal do verso: o acento regular do<br />

heróico se desdobra, no caso do sáfico, numa distribuição acentual equivalente em torno da<br />

sexta sílaba, ancorando-se na referência eqüidistante das sílabas pares mais próximas. Como<br />

exemplo, observem-se os seguintes versos de uma das estrofes finais d’Os Lusíadas (X, 153),<br />

em que um <strong>decassílabo</strong> sáfico se insinua entre a marcante regularidade dos heróicos:<br />

A disciplina militar prestante<br />

Não se aprende, Senhor, na fantasia,<br />

Sonhando, imaginando ou estudando,<br />

Senão vendo, tratando e pelejando.<br />

É impossível não pensar n’Os Lusíadas, obra que funda magnificamente a tradição<br />

épica do português, <strong>como</strong> referência modelar para uma tradução da Eneida. Por isso, numa<br />

tradução do Canto I da Eneida 2 , os hexâmetros virgilianos foram transpostos em <strong>decassílabo</strong>s<br />

mais ou menos à maneira de Camões, vale dizer, quase sempre em versos com acento<br />

característico na sexta sílaba (heróico), e mais esporadicamente em versos com acentos<br />

característicos na quarta e na oitava (sáfico). Procurou-se ainda atentar para a particularidade<br />

de não serem normalmente acentuadas a sétima e a nona sílabas em cada verso. Esse recurso<br />

parece garantir ao <strong>decassílabo</strong> <strong>camoniano</strong> uma cadência final própria, certa regularidade<br />

rítmica que lembra a invariabilidade do hexâmetro a partir do quinto pé.<br />

A melhor desculpa para não intentar a oitava rima é alegar que não têm rima nem<br />

formam estrofes os versos de Virgílio (ainda que boa, não deixa de ser uma desculpa). Um<br />

2 Cf. Márcio Thamos (2007).<br />

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

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argumento menos contestável – e, realmente, de autoridade! – é lembrar que ninguém menos<br />

do que Bocage escolheu o “<strong>decassílabo</strong> branco” para traduzir tanto os hexâmetros da V<br />

Égloga de Virgílio quanto os das Metamorfoses de Ovídio 3 .<br />

Nas traduções de Bocage, bem <strong>como</strong> na experiência de tradução do Canto I da Eneida,<br />

a disparidade numérica de versos não deve induzir ninguém a uma conclusão precipitada<br />

quanto ao poder de síntese expressiva das línguas (são sempre mais <strong>decassílabo</strong>s do que<br />

hexâmetros): deve-se antes notar que, se o texto em português é mais “comprido”, o texto em<br />

latim também é mais “largo”.<br />

Quanto às notas que acompanham a tradução, sendo inevitavelmente numerosas,<br />

procurou-se garantir que fossem tanto quanto possível sucintas, suprindo não mais do que a<br />

necessidade básica de referência exigida pelo contexto. Elas são os respingos que indicam o<br />

necessário mergulho do tradutor nas águas caudalosas da cultura antiga, mas não devem<br />

espantar da beira o leitor que se assentou a fim de fruir tranqüilamente o frescor da poesia.<br />

Referências bibliográficas<br />

BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras de Bocage. Porto: Lello & Irmão, 1968.<br />

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. In: _____. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,<br />

2003, p. 8-264.<br />

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo <strong>como</strong> elemento da cultura. 4 a ed. Trad. João Paulo<br />

Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.<br />

OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. M. M. B. du Bocage (Introd. João Angelo Oliva Neto). São<br />

Paulo: Hedra, 2007.<br />

PRADO, João Batista Toledo. Canto e encanto, o charme da poesia latina: contribuição para<br />

uma poética da expressividade em língua latina. 272 f. Tese (Doutorado em Letras).<br />

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São<br />

Paulo, 1997.<br />

3 Cf. Bocage (1968) e Ovídio (2007).<br />

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

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THAMOS, Márcio. As armas e o varão: leitura e tradução do canto I da Eneida. 318 f. Tese<br />

(Doutorado em Letras). Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista,<br />

Araraquara, 2007.<br />

Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

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