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Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e Letras <strong>de</strong> Araraquara<br />

<strong>Anais</strong> <strong>da</strong><br />

X X I I I S E M A N A D E E S T U D O S C L Á S S I C O S<br />

V Encontro <strong>de</strong> Iniciação Científica em <strong>Estudos</strong> Clássicos<br />

Cultura Clássica: inter-relações e permanência<br />

Bruno V. G. Vieira<br />

Giovanna Longo<br />

(Orgs.)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC Araraquara p. 1-344 2008<br />

ISSN 1984-2449


<strong>Anais</strong> <strong>da</strong> <strong>XXIII</strong> <strong>Semana</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Clássicos<br />

V Encontro <strong>de</strong> Iniciação Científica em <strong>Estudos</strong> Clássicos<br />

Cultura Clássica: inter-relações e permanência<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e Letras - Câmpus <strong>de</strong> Araraquara<br />

UNESP – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista<br />

Departamento <strong>de</strong> Lingüística<br />

Rodovia Araraquara-Jaú, km 1<br />

14800-901 – Araraquara - SP<br />

lng@fclar.unesp.br<br />

Comissão Editorial<br />

Brunno V. G. Vieira<br />

Márcio Thamos<br />

Giovanna Longo<br />

Editores responsáveis<br />

Brunno V. G. Vieira<br />

Giovanna Longo<br />

Capa<br />

Giovanna Longo<br />

Revisão<br />

Patricia Ormastroni Iagallo<br />

Paulo Eduardo <strong>de</strong> Barros Veiga<br />

Priscila Maria Mendonça Machado<br />

Assessoria Técnica<br />

James R. R. <strong>da</strong> Motta<br />

Diagramação<br />

Giovanna Longo<br />

Comissão Organizadora do Evento<br />

Brunno V. G. Vieira<br />

Márcio Thamos<br />

Anise D’ Orange Ferreira<br />

Cláudia Manoel Rached Féral<br />

Edvan<strong>da</strong> Bonavina <strong>da</strong> Rosa<br />

Fernando Brandão dos Santos<br />

Flávia Regina Marquetti<br />

Giovanna Longo<br />

José Dejalma Dezotti<br />

Maria Celeste Consolin Dezotti<br />

ISSN 1984-2449<br />

<strong>Semana</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Clássicos (23. : 2008 : Araraquara, SP)<br />

Cultura Clássica: inter-relações e permanência: anais / <strong>XXIII</strong> <strong>Semana</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Clássicos ; V Encontro <strong>de</strong> Iniciação Científica em <strong>Estudos</strong><br />

Clássicos, Araraquara, 18-21 ago. 2008 (Brasil). – Documento eletrônico. -<br />

Araraquara : FCL - UNESP, 2008. – Modo <strong>de</strong> acesso:<br />

http://www.fclar.unesp.br/ec/anais2008.php<br />

ISSN 1984-2449<br />

1. Literatura Clássica -- Congressos. I. <strong>Semana</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Clássicos<br />

(23. : 2008 : Araraquara, SP). II. Encontro <strong>de</strong> Iniciação Científica em <strong>Estudos</strong><br />

Clássicos (5. : 2008 : Araraquara, SP).<br />

Ficha catalográfica elabora<strong>da</strong> pela Biblioteca <strong>da</strong> FCLAr – UNESP.


S U M Á R I O<br />

1. O lugar do rhetor em A Formação do Orador,<br />

II, 1-3 <strong>de</strong> Quintiliano<br />

Ta<strong>de</strong>u ANDRADE<br />

(p. 13-20)<br />

3. Tradição épica e elegíaca:<br />

a poesia <strong>de</strong> Calino e Tirteu<br />

Rafael <strong>de</strong> C. M. BRUNHARA<br />

(p. 27-35)<br />

5. A amicitia na obra Politiques <strong>de</strong> l’amitié<br />

<strong>de</strong> Jacques Derri<strong>da</strong><br />

Natália Ferreira <strong>de</strong> CAMPOS<br />

(p. 42-48)<br />

7. Carlos Alberto Nunes,<br />

tradutor dos clássicos<br />

Luana <strong>de</strong> CONTO<br />

(p. 60-67)<br />

9. Orfismo e Cristianismo<br />

Aluysio FAVARO & Cláudia P. BINATO<br />

(p. 74-83)<br />

Apresentação<br />

Brunno V. G. VIEIRA<br />

(p. 07-12)<br />

2. Os bíoi na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

reflexão sobre a caracterização e evolução <strong>de</strong> um gênero<br />

Vinícius Ferreira BARTH<br />

(p. 21-26)<br />

4. A Perspectiva <strong>de</strong> Luciano <strong>de</strong> Samósata<br />

e a Perspectiva Nietzschiana acerca <strong>da</strong> Filosofia<br />

Priscila BUSE<br />

(p. 36-41)<br />

6. Jules Laforgue:<br />

um Diálogo com o Clássico<br />

Aline Taís CARA<br />

(p. 49-59)<br />

8. Ecos Ovidianos na<br />

Poesia <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros<br />

Thiago José <strong>da</strong> CRUZ & Rosana Cristina Zanelatto SANTOS<br />

(p. 68-73)<br />

10. Lingüística, Poética e Cultura:<br />

estudos do enunciado latino (IV Bucólica <strong>de</strong> Virgílio)<br />

Thalita Morato FERREIRA & Márcio THAMOS<br />

(p. 84-89)


11. O Sentido <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s no Sermão XII <strong>de</strong> São Cesário<br />

Jandyra Gonçalves FIGUEIREDO<br />

(p. 90-94)<br />

13. A figura <strong>da</strong> mulher nos romances do<br />

Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca<br />

Heloiza B. GRANJEIRO & Carlos E. M. <strong>de</strong> MORAES<br />

(p. 103-109)<br />

15. Estratégia e estudo <strong>de</strong> gênero no final do século I a.C.:<br />

Cleópatra e suas relações político-amorosas com<br />

os militares romanos Júlio César e Marco Antônio<br />

Natália Frazão JOSÉ<br />

(p. 119-127)<br />

17. O latim vulgar na Vulgata <strong>de</strong> Jerônimo<br />

Marina Chiara LEGROSKI<br />

(p. 139-149)<br />

19. A Construção do Erótico nos<br />

Romances do Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca<br />

André Costa LOPES<br />

(p. 158-164)<br />

12. Amiano Marcelino e sua obra Res Gestae:<br />

tratamento documental e os livros XXV, XXVI e XXVII<br />

Bruna Campos GONÇALVES<br />

(p. 95-102)<br />

14. Prosa narrativa antiga:<br />

martírios, atos apócrifos, vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> santos<br />

Pedro IPIRANGA JR.<br />

(p. 110-118)<br />

16. O estatuto do bom ci<strong>da</strong>dão:<br />

o aprimoramento <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s através <strong>da</strong> educação<br />

Aparecido Gomes LEAL<br />

(p. 128-138)<br />

18. Da Fala à Língua:<br />

Proposta <strong>de</strong> encaminhamento para o estudo do enunciado latino<br />

Giovanna LONGO<br />

(p. 150-157)<br />

20. O caráter dêitico <strong>da</strong>s<br />

androktasiai em Ilía<strong>da</strong>, XI<br />

Caroline Evangelista LOPES<br />

(p. 165-175)<br />

21. Metamorfoseando O Asno <strong>de</strong> Ouro:<br />

a presença <strong>de</strong> Apuleio em Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas<br />

Priscila Maria Mendonça MACHADO<br />

(p. 176-182)<br />

22. Na barriga do lobo<br />

Flávia MARQUETTI<br />

(p. 183-193)


23. A recuperação <strong>da</strong> cultura clássica em<br />

O Anel <strong>de</strong> Polícrates, <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis<br />

Cláudia <strong>de</strong> Fátima MONTESINI<br />

(p. 194-203)<br />

24. θεωρία e as duas vi<strong>da</strong>s felizes na É tica a Nicômaco<br />

Guilherme W. MORAES<br />

(p. 204-213)<br />

25. Análise Crítica-Literária e Tradução <strong>da</strong><br />

Carta Circular <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Esmirna Sobre o Martírio <strong>de</strong> São Policarpo:<br />

a mais antiga narrativa do gênero<br />

Elias Santos do PARAIZO JR.<br />

(p. 214-227)<br />

27. Protágoras, Górgias, os Dissoi Logoi e<br />

a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ensino <strong>de</strong> aretē<br />

Joseane PREZOTTO<br />

(p. 241-250)<br />

29. A permanência <strong>da</strong> Gramática Latina<br />

na Gramática Científica Brasileira<br />

Maria Berna<strong>de</strong>te ROCHA & Maria Lúcia CARDOSO<br />

(p. 260-266)<br />

26. Consi<strong>de</strong>rações gerais sobre os comentários agostinianos<br />

e jeronimianos à Bíblia e a questão dos controles<br />

sobre a leitura na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> tardia<br />

Luciano César Garcia PINTO<br />

(p. 228-240)<br />

28. De Hesíodo a Esopo: a permanência do mito<br />

Eliane QUINELATO<br />

(p. 251-259)<br />

31. Arqueologia Bíblica e construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s:<br />

notas acerca <strong>da</strong> pesquisa arqueológica nas chama<strong>da</strong>s terras <strong>da</strong> Bíblia<br />

Gabriela Barbosa RODRIGUES<br />

(p. 274-282)<br />

33. Defesa <strong>de</strong> Helena, <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Fedra<br />

Fernando Crespim Zorrer <strong>da</strong> SILVA<br />

(p. 291-298)<br />

30. A Obstinação <strong>de</strong> Aquiles<br />

Rita ROCHA<br />

(p. 267-273)<br />

32. Scriptores Artis Metricae:<br />

Prosódia e Plano <strong>de</strong> Expressão<br />

Daiane Graziele SCHIAVINATO<br />

(p. 282-290)<br />

34. Lingüística, Poética e Cultura:<br />

<strong>Estudos</strong> do Enunciado Latino (Virgílio, VI Bucólica)<br />

Helena Maria Boschi <strong>da</strong> SILVA & Márcio THAMOS<br />

(p. 299-304)


35. Plutarco e Heródoto:<br />

a permanência dos discursos<br />

Maria Apareci<strong>da</strong> <strong>de</strong> Oliveira SILVA<br />

(p. 305-314)<br />

37. A Poética e a Métrica Clássicas:<br />

um estudo do hexâmetro latino por Mário Vitorino<br />

Vivian Carneiro Leão SIMÕES<br />

(p. 321-329)<br />

36. O Problema <strong>da</strong> Sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

em Corinto no Primeiro Século<br />

Talita Inácio dos Santos SILVA<br />

(p. 315-320)<br />

38. O <strong>de</strong>cassílabo camoniano como mo<strong>de</strong>lo métrico<br />

para uma tradução <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong><br />

Márcio THAMOS<br />

(p. 330-334)<br />

39. Diferentes posturas em relação ao estrangeiro<br />

no Império Romano tardio: uma análise <strong>de</strong> Amiano Marcelino<br />

e <strong>da</strong> historiografia do período (século IV e V d.C.)<br />

Ana Carolina VIOTTI<br />

(p. 335-342)<br />

Índice <strong>de</strong> autores<br />

(p. 343-344)<br />

Abreviaturas<br />

(p. 345)


A P R E S E N T A Ç Ã O<br />

Estes <strong>Anais</strong> contêm os trabalhos completos enviados à comissão organizadora<br />

pelos participantes <strong>da</strong> <strong>XXIII</strong> <strong>Semana</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Clássicos/V Encontro <strong>de</strong> Iniciação<br />

Científica em <strong>Estudos</strong> Clássicos, evento realizado em Araraquara/SP em agosto <strong>de</strong> 2008.<br />

Essa reunião acadêmica teve por tema “Cultura Clássica: inter-relações e permanência” e<br />

propôs assim a divulgação do legado <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica que é objeto <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong><br />

pesquisadores <strong>da</strong>s principais instituições <strong>de</strong> ensino do Brasil.<br />

Como se po<strong>de</strong> verificar nos textos aqui reunidos a <strong>XXIII</strong> <strong>Semana</strong> <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong><br />

Clássicos conseguiu oferecer um abrangente – porque congregou professores, pesquisadores e<br />

pós-graduandos <strong>da</strong>s mais diversas áreas e regiões do país – e auspicioso – porque tiveram<br />

numerosa participação no evento alunos <strong>de</strong> Iniciação Científica – panorama dos estudos <strong>da</strong><br />

Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica em solo brasileiro. Para se ter uma idéia <strong>da</strong>s proporções do evento, que<br />

mais uma vez adquire status nacional, convém lembrar que ele contou com a presença <strong>de</strong><br />

professores e alunos não só <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong><strong>de</strong>s paulistas UNESP, <strong>da</strong> UNICAMP e <strong>da</strong> USP,<br />

mas também <strong>de</strong> renoma<strong>da</strong>s instituições <strong>de</strong> outros estados brasileiros, tais como <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora (UFJF) e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

(UFMG), <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Mato Grosso do Sul (UFMS), do Rio <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ)<br />

e do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS), <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná (UFPR), <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Londrina (UEL) e <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Maringá (UEM).<br />

Esta edição do evento foi particularmente importante aos pesquisadores <strong>da</strong> área <strong>de</strong><br />

<strong>Estudos</strong> Clássicos <strong>da</strong> UNESP, pois, além do já tradicional apoio do Departamento <strong>de</strong><br />

Linguística e <strong>da</strong> Secretaria Regional <strong>da</strong> SBEC, ela marcou o início <strong>da</strong> participação do Grupo<br />

<strong>de</strong> Pesquisa “Linceu – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica” (CNPq), criado neste ano <strong>de</strong> 2008. O<br />

Grupo Linceu, cujo nome evoca a visão penetrante <strong>de</strong> um dos Argonautas, procura ampliar os<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 7-12, 2008


estudos sobre a Língua e a Cultura Clássicas para além dos limites tradicionais, respeitando a<br />

diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> temporal e cultural que nos separa do Mundo Antigo sem, contudo, <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong><br />

utilizar os instrumentais teóricos mo<strong>de</strong>rnos na sua investigação e compreensão. O Grupo <strong>de</strong><br />

pesquisa congrega projetos <strong>de</strong> pesquisadores <strong>da</strong> UNESP e <strong>de</strong> outras instituições que visam à<br />

divulgação do legado lingüístico e cultural <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, com o olhar sempre atento para as<br />

permanências e inter-relações entre a Cultura Clássica e a Mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Constam <strong>de</strong>stes<br />

<strong>Anais</strong> os primeiros resultados <strong>da</strong>s pesquisas produzi<strong>da</strong>s pelo Grupo.<br />

Motivados pelo tema <strong>da</strong> permanência, prefaciamos este volume dos trabalhos<br />

apresentados com uma crônica do evento à semelhança dos Annales romanos, a fim <strong>de</strong><br />

preservar a memória <strong>da</strong>queles dias.<br />

Entre 18 e 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008, as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s acadêmicas abrangendo as mais<br />

diversas áreas <strong>de</strong> pesquisa (literatura, arqueologia, educação, história, religião, mitologia e<br />

artes), distribuíram-se <strong>da</strong> seguinte forma: 2 conferências, 4 mini-cursos, 79 comunicações<br />

inscritas, 3 leituras dramatiza<strong>da</strong>s do grupo Giz-en-scène (UNESP). Foram aproxima<strong>da</strong>mente<br />

300 inscrições entre alunos <strong>de</strong> graduação, <strong>de</strong> pós-graduação, professores, pesquisadores e<br />

membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Tal número garantiu uma excelente freqüência <strong>de</strong> participantes em<br />

to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s programa<strong>da</strong>s.<br />

Compuseram a sessão <strong>de</strong> abertura (18/09), o diretor <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e<br />

Letras Prof. Dr. Cláudio Benedito Gomi<strong>de</strong> <strong>de</strong> Souza, o chefe do Departamento <strong>de</strong> Lingüística<br />

Prof. Dr. Márcio Thamos e o secretário <strong>da</strong> Secretaria Regional SE-2 <strong>da</strong> SBEC Prof. Dr.<br />

Brunno V. G. Vieira. Após a cerimônia <strong>de</strong> abertura que contou com a apresentação musical<br />

do Coral Rairaram <strong>da</strong> FCL-UNESP/Car, teve lugar a conferência <strong>de</strong> abertura intitula<strong>da</strong>, O<br />

percurso do teatro clássico: <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> a nossos dias, ministra<strong>da</strong> pela Profa. Dr. Zélia<br />

<strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> Cardoso (FFLCH-USP).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 7-12, 2008<br />

8


Já neste primeiro dia ocorreram dois minicursos, que preencheram o horário <strong>da</strong>s<br />

19h às 20h30 nas noites <strong>de</strong> 19 e 20:<br />

• MC 2- Morfossintaxe elementar do grego antigo e suas fontes. Ministrante:<br />

Wilson Alves Ribeiro Jr. (PG- FFLCH-USP). Freqüência: 24 ouvintes.<br />

• MC 3- Aspectos <strong>da</strong> poética aristofânica. Ministrantes: Profª. Cláudia Manoel<br />

Rached Féral (FCLAr – UNESP), Profª. Jane Kelly <strong>de</strong> Oliveira (PG-FCLAr-<br />

UNESP/UEM), Greice Ferreira Drumond Kibuuka (PPGLC-UFRJ). Freqüência: 131<br />

ouvintes.<br />

Encerrou as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do dia 18 a apresentação do o Grupo Giz-en-Scène <strong>de</strong><br />

leituras dramatiza<strong>da</strong>s que explorou a permanência <strong>da</strong>s formas literárias <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> até os<br />

nossos dias através <strong>da</strong> apresentação do Recital latino: epigramas <strong>de</strong> Marcial e sua<br />

permanência.<br />

Abriram os trabalhos na manhã do dia 19 dois minicursos que prosseguiram suas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s nos dias 20 e 21:<br />

• MC 4- História Antiga e usos do passado. Ministrantes:Adilton Luís Martins (PG-<br />

IFCH-UNICAMP), Nathália Monseff Junqueira (PG-IFCH-UNICAMP), Marina<br />

Regis Cavicchioli (PG-IFCH-UNICAMP). Freqüência: 42 ouvintes.<br />

• MC 5- Os doze trabalhos <strong>de</strong> Héracles e sua importância na Paidéia. Ministrante:<br />

Profª. Dra. Edvan<strong>da</strong> Bonavina <strong>da</strong> Rosa (FCLAr - UNESP). Freqüência: 117<br />

ouvintes.<br />

Após os minicursos, na manhã do dia 19, a sessão <strong>de</strong> palestras foi presidi<strong>da</strong> pelo<br />

Prof. Dr. Márcio Thamos (FCLAR-UNESP). Essa sessão contou com apresentação do texto<br />

Personagens femininas no Satíricon, do Prof. Dr. Cláudio Aquati (IBILCE-UNESP), e com<br />

o texto Vrbs antiqua fuit: o sincretismo Hera-Juno-Tânit no preâmbulo narrativo <strong>da</strong><br />

Enei<strong>da</strong> Prof. Dr. Márcio Thamos (FCLAR-UNESP).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 7-12, 2008<br />

9


No início <strong>da</strong> tar<strong>de</strong> do dia 19, foi realiza<strong>da</strong> com gran<strong>de</strong> sucesso uma teleconferência<br />

internacional transmiti<strong>da</strong> ao vivo a partir <strong>de</strong> Roma que ficou a cargo do Prof. Dr. João Batista<br />

Toledo Prado (FCLAr-UNESP/Pós-Doc. Università di Roma II - Tor Vergata). Sua<br />

conferência Inter-relações e permanência <strong>da</strong> Poética Clássica po<strong>de</strong> ser assisti<strong>da</strong> em tempo<br />

real para os participantes do evento que pu<strong>de</strong>ram, inclusive, interagir ao final com perguntas e<br />

a<strong>de</strong>ndos.<br />

Seguiram-se a essa bem sucedi<strong>da</strong> conferência internacional as sessões <strong>de</strong><br />

comunicação num total <strong>de</strong> 5 sessões <strong>de</strong> Comunicação Livre e 5 sessões <strong>de</strong> Comunicação<br />

Coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong> (cf. p.22 a 60 do Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> resumos). Esse variado leque <strong>de</strong> trabalhos propiciou<br />

além <strong>da</strong> divulgação <strong>da</strong>s pesquisas gran<strong>de</strong> troca <strong>de</strong> idéias entre os participantes.<br />

No dia 19 às 21h, o Grupo Giz-en-Scène <strong>de</strong> leituras dramatiza<strong>da</strong>s apresentou a<br />

leitura <strong>da</strong> peça Anfitrião, <strong>de</strong> Plauto, uma <strong>da</strong>s mais imita<strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica. A<br />

própria adoção dos nomes próprios do general Anfitrião e do seu escravo Sósia no nosso<br />

idioma – aquele significando “o que hospe<strong>da</strong> ou recebe” e este “o que tem idêntica aparência”<br />

– serve para mensurar a forte permanência do legado clássico transmitido pelo texto plautino.<br />

Entre o término dos minicursos às 20h30 e o início do recital às 21h <strong>de</strong>u-se uma<br />

movimenta<strong>da</strong> sessão <strong>de</strong> lançamentos <strong>de</strong> livros dos participantes do evento. Foram lançados as<br />

seguintes publicações:<br />

Pedro Paulo A. Funari, Renata S. Garraffoni, Bethany Letalien, New<br />

Perspectives on the Ancient World. Mo<strong>de</strong>rn perceptions, ancient<br />

representations. Oxford, Archaeopress/FAPESP, 2008, 250pp.<br />

Pedro Paulo A Funari, Dionisio Pérez, Glaydson José <strong>da</strong> Silva, Arqueología e<br />

Historia <strong>de</strong>l Mundo Antiguo: contribuciones brasileñas y españolas.<br />

Oxford, Archaeopress/FAPESP, 2008, 108 pp.<br />

FUNARI, Pedro Paulo A., SILVA, Glaydson José <strong>da</strong>, MARTINS, Adilton.<br />

História Antiga: contribuições brasileiras. São Paulo: FAPESP/Annablume,<br />

2008.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 7-12, 2008<br />

10


SILVA, Glaydson José <strong>da</strong>. História Antiga e usos do passado - um estudo <strong>de</strong><br />

apropriações <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> sob o Regime <strong>de</strong> Vichy (1940-1944). São Paulo:<br />

FAPESP/Annablume, 2007.<br />

PETRÔNIO. Satíricon. Trad. e posfácio <strong>de</strong> C. Aquati. São Paulo: Cosac Naif,<br />

2008.<br />

Na manhã do dia 20, a sessão <strong>de</strong> palestras foi presidi<strong>da</strong> pela Profa. Dra. Maria<br />

Celeste Consolin Dezotti (FCLAR-UNESP). Essa sessão contou com apresentação oral do<br />

texto As referências mitológicas como transgressão ao cânone literário em Memórias<br />

póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis ministra<strong>da</strong> pela Profa. Dra. Maria Celeste<br />

Tommasello Ramos (IBILCE-UNESP), e a fala Amores bárbaros: o mito <strong>de</strong> Jasão e<br />

Medéia em Apolônio <strong>de</strong> Ro<strong>de</strong>s <strong>da</strong> Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti.<br />

O período vespertino <strong>de</strong>u lugar às apresentações orais <strong>de</strong> trabalho num total <strong>de</strong> 7<br />

sessões <strong>de</strong> Comunicação Livre e 3 sessões <strong>de</strong> Comunicação Coor<strong>de</strong>na<strong>da</strong>. Neste dia, o gran<strong>de</strong><br />

número <strong>de</strong> comunicações livres <strong>de</strong>monstra que o evento, além <strong>de</strong> <strong>da</strong>r espaço a grupos <strong>de</strong><br />

pesquisa e a projetos coletivos, também acolhe alunos e professores que aproveitam o<br />

privilegiado espaço <strong>de</strong> discussão <strong>da</strong>s sessões para divulgar e <strong>de</strong>bater projetos individuais <strong>de</strong><br />

pesquisa.<br />

No dia 20 às 21h, o Grupo Giz-en-Scène <strong>de</strong> leituras dramatiza<strong>da</strong>s apresentou a<br />

leitura <strong>da</strong> peça Um <strong>de</strong>us dormiu lá em casa <strong>de</strong> Guilherme <strong>de</strong> Figueiredo, que se trata <strong>de</strong> uma<br />

<strong>da</strong>s várias imitações ou a<strong>da</strong>ptações do Anfitrião plautino na nossa literatura – em que se<br />

<strong>de</strong>staque o auto camoniano Os Anfiriões (séc. XVI) e Anfitrião ou Júpiter e Alcmena (séc.<br />

XVIII) <strong>de</strong> Antônio José <strong>da</strong> Silva. Foi a primeira vez que o grupo apresentou o texto <strong>de</strong><br />

Figueiredo, especialmente preparado para o evento, pela pesquisadora – especialista em teatro<br />

antigo – Profa. Dra. Maria Celeste Consolin Dezotti.<br />

Entre o término dos mini-cursos às 20h30 e o início do recital às 21h, no dia 18,<br />

<strong>de</strong>u-se também uma sessão <strong>de</strong> autógrafos <strong>da</strong> recentíssima tradução <strong>de</strong> Fernando Brandão dos<br />

Santos ao Filoctetes, <strong>de</strong> Sófocles:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 7-12, 2008<br />

11


SÓFOCLES. Filoctetes. Trad., introd. e notas <strong>de</strong> Fernando Brandão dos<br />

Santos. São Paulo: Odysseus, 2008.<br />

Na manhã do dia 21, a conferência <strong>de</strong> encerramento foi apresenta<strong>da</strong> pelo Prof. Dr.<br />

Alceu Dias Lima (FCLAR-UNESP). A conferência foi proferi<strong>da</strong> pelo Prof. Dr. Izidoro<br />

Blikstein (FFLCH-USP) que encantou a todos os presentes com uma multi-midiática<br />

apresentação <strong>de</strong> Platão e a Semiótica: intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> do Crátilo.<br />

Foi assim que as coisas aconteceram.<br />

Resta-nos, então, agra<strong>de</strong>cer aos que contribuíram para a realização do evento, em<br />

particular, aos servidores <strong>da</strong> FCLAR-UNESP, mas também ao Departamento <strong>de</strong> Lingüística, à<br />

FAPESP e à PROEX- UNESP e à FUNDUNESP que forneceram auxílio financeiro.<br />

Agra<strong>de</strong>cemos também a todos os conferencistas, ministrantes <strong>de</strong> mini-cursos e participantes<br />

que fizeram este evento acontecer. Estes <strong>Anais</strong>, sem dúvi<strong>da</strong>, são um modo <strong>de</strong> perpetuar os<br />

momentos preciosos <strong>de</strong> interação e intercâmbio <strong>de</strong> conhecimento que vivemos entre os dias<br />

18 e 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2008.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 7-12, 2008<br />

Brunno V. G. Vieira<br />

Presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Comissão Organizadora<br />

Secretário <strong>da</strong> SE-2 - SBEC<br />

12


O lugar do rhetor em A Formação do Orador, II, 1-3 <strong>de</strong> Quintiliano<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

Ta<strong>de</strong>u Bruno <strong>da</strong> Costa ANDRADE<br />

G– FFLCH – USP<br />

ta<strong>de</strong>u.andra<strong>de</strong>@usp.br<br />

A Formação do Orador <strong>de</strong> Quintiliano, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu princípio, propõe-se a algo distinto<br />

dos tratados <strong>de</strong> retórica existentes na época em que foi composto. Essa distinção consiste no<br />

fato <strong>de</strong> que o autor não se contenta em fazer um tratado que <strong>de</strong>screva as particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

técnicas <strong>da</strong>s etapas <strong>da</strong> composição <strong>de</strong> um discurso (como Retórica a Herênio, por exemplo),<br />

mas preocupa-se em apontar o que é necessário para a completa formação do orador <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

sua infância. O próprio Quintiliano nos diz:<br />

Uma vez que eu consi<strong>de</strong>ro que na<strong>da</strong> do que é fun<strong>da</strong>mental para que o orador possa se<br />

formar é alheio à oratória, e que não é possível vir ao cume <strong>de</strong> alguma coisa senão a partir<br />

dos estágios iniciais prece<strong>de</strong>ntes, não me recusarei a <strong>de</strong>scer àquelas coisas menores que,<br />

no entanto, se são negligencia<strong>da</strong>s, as coisas maiores tornam-se impossíveis. Por outro<br />

lado, como se me fosse trazido um orador para ser educado, começarei a estabelecer seus<br />

estudos a partir <strong>da</strong> infância. 1<br />

Dessa maneira, os dois primeiros livros <strong>da</strong> obra são <strong>de</strong>dicados a outros assuntos que<br />

não a teoria retórica 2 . O autor <strong>de</strong>dica-se a falar nesses livros a respeito <strong>da</strong> educação do orador<br />

que prece<strong>de</strong> o conhecimento <strong>da</strong> oratória. Essa educação abrangeria principalmente três etapas:<br />

a educação domiciliar, que acontece nos anos que seguem o nascimento e envolve<br />

principalmente apren<strong>de</strong>r a ler e a escrever; o ensino <strong>de</strong> gramática (aprendizado do bom uso <strong>da</strong><br />

língua e explicação dos textos dos poetas), que começa aos sete anos e o ensino <strong>de</strong> retórica,<br />

cujo momento <strong>de</strong> início (não plenamente <strong>de</strong>finido na época <strong>de</strong> composição d’A Formação do<br />

Orador) será discutido pelo próprio Quintiliano. O livro I <strong>da</strong> obra ocupa-se <strong>da</strong>s duas primeiras<br />

etapas e os <strong>de</strong>z primeiros capítulos do livro II ocupam-se <strong>da</strong> terceira.<br />

É interessante notar que mesmo essa terceira parte, que diz mais respeito à retórica<br />

propriamente dita, é ain<strong>da</strong> uma especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Quintiliano. Po<strong>de</strong>mos encontrar no<br />

De Oratore <strong>de</strong> Cícero, por exemplo, indicações <strong>de</strong> que tipo <strong>de</strong> aprendizado seria a<strong>de</strong>quado<br />

para a existência do bom orador, <strong>de</strong>ssa maneira, Crasso, personagem do diálogo, fala-nos <strong>de</strong><br />

exercícios que seriam úteis para aprimorar a eloqüência e do que <strong>de</strong>veria ser conhecido pelo<br />

1 QUINTILIANO. A Formação do Orador. I, Pr. 5.<br />

2<br />

Referimo-nos à preceituação a respeito dos “ofícios do orador” (invenção, disposição, elocução, memória e<br />

pronunciação).


orador 3 . No entanto, a preocupação com a <strong>de</strong>finição do tipo <strong>de</strong> matéria a ser ensina<strong>da</strong> pelo<br />

professor, do método <strong>de</strong> ensino e correção a ser feito por ele, <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s específicas<br />

morais e “profissionais” que ele <strong>de</strong>va possuir não está presente nas obras <strong>de</strong> Cícero, mas é<br />

assunto consi<strong>de</strong>rado importante por Quintiliano. Ele não foi o primeiro a fazê-lo (há relatos <strong>de</strong><br />

um tratado <strong>de</strong> Plínio, o Velho, chamado Studiosus que trataria <strong>da</strong> educação do orador a partir<br />

<strong>da</strong> infância) (KENNEDY, 1972, p. 486), mas essa <strong>de</strong>cisão não era acolhi<strong>da</strong> pela maior parte<br />

dos tratadistas. Martin Clarke (1953) consi<strong>de</strong>ra que essa particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve-se à<br />

proeminência que as escolas atingiram no período imperial. Ele indica, por exemplo, que o<br />

imperador Vespasiano foi o primeiro a estabelecer, a expensas do Estado, uma ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />

ensino <strong>de</strong> retórica cujo primeiro responsável foi Quintiliano (CLARKE, 953, p. 120).<br />

Outra particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Quintiliano é a relação que ele estabelece com o ensino <strong>de</strong><br />

seu tempo. Vale confrontar sua atitu<strong>de</strong>, por exemplo, com a <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> pelo personagem<br />

Messala em Diálogo a respeito dos Oradores <strong>de</strong> Tácito (que parece ser partilha<strong>da</strong> pelo autor).<br />

Ao <strong>de</strong>screver as causas <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência <strong>da</strong> eloqüência, a personagem aponta como uma <strong>de</strong>las a<br />

má educação que recebiam os jovens <strong>da</strong> época, representa<strong>da</strong> sobretudo pelas escolas <strong>de</strong><br />

retórica. Em oposição a esse mo<strong>de</strong>lo, ele valorizará o antigo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> educação <strong>da</strong><br />

República, feito por meio <strong>da</strong> ligação pessoal do jovem com um ci<strong>da</strong>dão mais experiente, o<br />

qual apresentaria gradualmente o funcionamento do Fórum, bem como ensinaria oratória 4 . Já<br />

Quintiliano nunca negará totalmente o sistema <strong>de</strong> ensino contemporâneo, mas o utilizará<br />

como base para sugerir mu<strong>da</strong>nças.<br />

Entre as prescrições realiza<strong>da</strong>s pelo autor para indicar a melhor forma <strong>de</strong> ensino, as<br />

indicações feitas sobre o professor e suas atitu<strong>de</strong>s são freqüentes e ocupam uma posição<br />

central. Este é consi<strong>de</strong>rado como o principal responsável pela <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> formação <strong>da</strong>s crianças e<br />

jovens, sendo nisso somente ultrapassado pela responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos pais, que serão os<br />

responsáveis pela escolha do preceptor. O que preten<strong>de</strong>mos fazer adiante é enten<strong>de</strong>r qual a<br />

figura do rhetor (professor <strong>de</strong> retórica) traça<strong>da</strong> Quintiliano no começo do livro II <strong>da</strong> obra:<br />

como o localiza em oposição a seu antecessor, o grammaticus (professor <strong>de</strong> gramática), e<br />

quais quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s o autor julga que ele <strong>de</strong>va possuir.<br />

O primeiro capítulo do segundo livro d’A Formação do Orador partirá <strong>de</strong> uma<br />

problemática contemporânea a Quintiliano: o fato <strong>de</strong> que os jovens estariam sendo entregues<br />

aos cui<strong>da</strong>dos do professor <strong>de</strong> retórica muito tar<strong>de</strong>. A razão aponta<strong>da</strong> pelo autor para o fato é a<br />

3 CÍCERO. Do Orador. I, 149-207.<br />

4 TÁCITO. Diálogo a Respeito dos Oradores. XXVIII – XXXV.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

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confusão que existiria entre os papéis <strong>de</strong>vidos ao grammaticus e ao rhetor: o último estaria<br />

negligenciando alguns <strong>de</strong>veres, os quais estariam sendo apropriados pelo primeiro. Esses<br />

<strong>de</strong>veres seriam as primeiras coisas ensina<strong>da</strong>s pelo rhetor, mas que, ao serem <strong>de</strong>spreza<strong>da</strong>s por<br />

este como ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s abaixo <strong>de</strong> sua digni<strong>da</strong><strong>de</strong>, seriam toma<strong>da</strong>s como últimos estágios do<br />

ensino <strong>de</strong> gramática, retendo os meninos por mais tempo do que o necessário junto ao<br />

professor <strong>de</strong>ssa disciplina.<br />

Pelo que diz Quintiliano, po<strong>de</strong>mos perceber o que estaria sendo negligenciado. Os<br />

professores <strong>de</strong> retórica estavam preocupados somente com o ensino <strong>da</strong> <strong>de</strong>clamação (espécie<br />

<strong>de</strong> simulação <strong>de</strong> discurso real), enquanto o resto era consi<strong>de</strong>rado inferior e indigno <strong>da</strong><br />

profissão. O que é o “restante”? Pelo que é indicado no texto, po<strong>de</strong>mos julgar que são os<br />

progymnasmata. Progymnasmata eram exercícios preparatórios <strong>de</strong> retórica que antecediam a<br />

simulação total <strong>de</strong> discurso que era a <strong>de</strong>clamação. Um exemplo é a narração, que, como<br />

prevê o nome, consistia na composição <strong>de</strong> narrativas míticas ou reais.<br />

Quintiliano, no entanto, consi<strong>de</strong>ra que os progymnasmata têm uma relação estreita<br />

com a retórica, argumentando que eles têm utili<strong>da</strong><strong>de</strong> na composição dos discursos. Contudo,<br />

somente alguns exercícios <strong>da</strong> lista dos progymnasmata (que começou a se estabelecer <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

período helenístico) são colocados por Quintiliano sob a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do professor <strong>de</strong><br />

retórica: a narração, a confirmação e a refutação <strong>da</strong> narração, o louvor e o vitupério <strong>de</strong><br />

homens famosos; os lugares comuns, as teses, o louvor e o vitupério <strong>da</strong>s leis. Alguns dos<br />

exercícios restantes são, entretanto, consi<strong>de</strong>rados por Quintiliano como últimas ocupações dos<br />

gramáticos: a paráfrase, a sentença, a cria, a etologia.<br />

Por que o autor não exige que todos os progymnasmata sejam ensinados pelo rhetor?<br />

Uma razão po<strong>de</strong> ser encontra<strong>da</strong> na própria justificativa que ele utiliza para consi<strong>de</strong>rar alguns<br />

<strong>de</strong>les território <strong>da</strong> retórica: alguns exercícios possuiriam gran<strong>de</strong> proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com partes<br />

freqüentes dos discursos reais (a narração dos fatos é uma parte constante <strong>da</strong> oratória<br />

judiciária, louvar e vituperar são ações freqüentemente presentes em todos os gêneros <strong>de</strong><br />

discurso) e, portanto, seriam responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do professor <strong>de</strong> retórica. Já os exercícios que<br />

ele relaciona à tarefa do grammaticus são bastante ligados à enarratio poetarum<br />

(interpretação dos poetas): os exercícios <strong>de</strong> paráfrase utilizam como base os textos poéticos,<br />

bem como Quintiliano recomen<strong>da</strong> que os outros três exercícios sejam extraídos <strong>da</strong>s leituras<br />

<strong>da</strong>s aulas <strong>de</strong> gramática.<br />

Por outro lado, esses exercícios também são apresentados como rudimentos <strong>de</strong> oratória<br />

(dicendi primordia) a serem introduzidos àquele que ain<strong>da</strong> não está pronto para ser ensinado<br />

pelo professor <strong>de</strong> retórica. Suetônio em seu A Respeito dos Gramáticos (IV), embora<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

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<strong>de</strong>monstre certa contrarie<strong>da</strong><strong>de</strong> à separação <strong>da</strong>s profissões <strong>de</strong> grammaticus e rhetor (o que é<br />

contrário à posição <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por Quintiliano), apresenta as mesmas razões para o uso dos<br />

progymnasmata nas aulas dos professores <strong>de</strong> gramática: preparação para as aulas <strong>de</strong> retórica<br />

propriamente ditas (a lista que apresenta também possui dois exercícios em comum com<br />

Quintiliano – paráfrase e etologia).<br />

Quintiliano também afirma que os três últimos exercícios a serem ministrados pelos<br />

gramáticos têm um método semelhante (similis ratio), sendo as sentenças a composição <strong>de</strong><br />

máximas, as etologias <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> caracteres e a cria a revelação do caráter <strong>de</strong> alguma<br />

personagem por meio <strong>de</strong> um dito ou ato. Dessa maneira, po<strong>de</strong>ríamos julgar que existe alguma<br />

característica intrínseca para ca<strong>da</strong> grupo <strong>de</strong> exercícios que permite unir alguns sob a gramática<br />

e outros sob a retórica. Além do fato, que já apontamos, dos primeiros terem semelhanças<br />

com a matéria trata<strong>da</strong> pelo gramático e dos últimos correspon<strong>de</strong>rem a partes dos discursos<br />

retóricos, po<strong>de</strong>mos pensar nas capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s exercita<strong>da</strong>s por ca<strong>da</strong> um dos grupos. Rita<br />

Copeland (1991, p. 12) diz que em Roma havia separação dos terrenos próprios <strong>da</strong> gramática<br />

e <strong>da</strong> retórica feita a partir <strong>de</strong> uma divisão hierárquica <strong>da</strong>s disciplinas que colocava a última<br />

como a mais eleva<strong>da</strong> <strong>da</strong>s artes. Segundo a autora, à gramática competia somente uma<br />

compreensão teórica <strong>da</strong>s estruturas dos textos, enquanto à retórica estava <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a<br />

elaboração do texto como um todo, pensado como um ato:<br />

Tais restrições no escopo do estudo gramatical em Roma po<strong>de</strong>riam parecer sugerir que<br />

a retórica <strong>de</strong>finia-se contra a gramática por reservar para ela mesma o privilégio<br />

heurístico, isto é, o particular privilégio retórico <strong>da</strong> invenção, a <strong>de</strong>scoberta que alguém<br />

realiza <strong>de</strong> seu próprio argumento <strong>de</strong> modo a tornar sua causa plausível (Id. ibid., p.13) 5<br />

Em outra passagem:<br />

[P]o<strong>de</strong>ríamos dizer que, ao menos na teoria retórica romana, a retórica relaciona-se<br />

com o discurso, isto é, com um completo domínio do uso <strong>da</strong> linguagem ou um sistema<br />

completo <strong>de</strong> comunicação; a gramática, por outro lado, está relaciona<strong>da</strong> à forma<br />

lingüística, com a linguagem enquanto instrumento do discurso (id. ibid., p.14).<br />

Se tomarmos essa noção como base, veremos que também ela aju<strong>da</strong> a enten<strong>de</strong>r a<br />

separação dos dois grupos <strong>de</strong> exercícios. Aqueles que Quintiliano permite que sejam<br />

ensinados pelo gramático, apesar <strong>de</strong> serem composições, restringem-se a “reaproveitamentos”<br />

e “reelaborações” <strong>de</strong> uma matéria que é forneci<strong>da</strong> pela leitura dos textos dos poetas. Além <strong>da</strong><br />

paráfrase, um caso evi<strong>de</strong>nte, as sentenças, as etologias e as crias baseiam-se em ditos, feitos e<br />

5 Tradução nossa.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

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apresentações <strong>de</strong> caráter já presentes nos textos dos autores. Já os exercícios associados ao<br />

rhetor correspon<strong>de</strong>m, <strong>de</strong> certa maneira, a uma ação <strong>de</strong> composição mais ampla. Próximos às<br />

partes dos discursos propriamente ditas, eles exigem o ato <strong>da</strong> invenção por parte do discípulo:<br />

já não se trata, por exemplo, <strong>de</strong> simplesmente <strong>de</strong>screver um caráter <strong>de</strong> um personagem <strong>de</strong> um<br />

poema (etologia), mas já <strong>de</strong> realizar uma busca por argumentos que sirvam <strong>de</strong> amplificação e<br />

redução <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s e vícios para compor um louvor ou um vitupério.<br />

Baseado nessa primeira discussão, o autor resolve um segundo problema: a <strong>de</strong>cisão<br />

sobre o momento certo <strong>de</strong> colocar o menino sob a responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do professor <strong>de</strong> retórica.<br />

Quintiliano consi<strong>de</strong>ra a questão fácil <strong>de</strong> resolver: o menino <strong>de</strong>veria começar a ir à escola <strong>de</strong><br />

retórica no momento que tivesse avançado suficientemente nos estudos junto ao gramático.<br />

No entanto, para esse critério ser aplicado, seria necessário que o primeiro problema fosse<br />

solucionado, pois essa <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do que os professores <strong>de</strong> gramática e retórica proporse-iam<br />

a ensinar. Solucionado o problema, o momento <strong>de</strong> transição tornar-se-ia aquele em que<br />

aluno estaria prestes a apren<strong>de</strong>r os primeiros progymnasmata ensinados pelo rhetor: as<br />

narrações, o louvor e o vitupério.<br />

Quintiliano ain<strong>da</strong> consi<strong>de</strong>ra que, se alguém julga que fazer a transição <strong>de</strong>ssa maneira é<br />

ter muita pressa, por outro lado não é necessário afastar o discípulo imediatamente do<br />

grammaticus, <strong>de</strong> modo que esse po<strong>de</strong> <strong>da</strong>r ain<strong>da</strong> algumas lições enquanto o jovem já apren<strong>de</strong><br />

retórica com o professor <strong>de</strong>vido.<br />

Defini<strong>da</strong>s essas soluções, Quintiliano passa a <strong>de</strong>screver qual <strong>de</strong>vam ser os critérios dos<br />

pais para a escolha do professor <strong>de</strong> retórica. O autor julga que o que <strong>de</strong>ve ser observado em<br />

primeiro lugar é o caráter <strong>de</strong>sse professor. Isso ocorreria <strong>de</strong>vido ao momento <strong>de</strong>licado <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

em que esses discípulos encontrar-se-iam no período que apren<strong>de</strong>m retórica. Eles<br />

ingressariam na escola <strong>da</strong> rhetor ain<strong>da</strong> quase meninos e ao <strong>de</strong>ixá-lo seriam já jovens. Dessa<br />

maneira, os discípulos passariam todo um período importante <strong>de</strong> sua formação junto ao<br />

rhetor, período esse consi<strong>de</strong>rado especialmente vulnerável à corrupção 6 . Assim, o professor<br />

<strong>de</strong>veria ser virtuoso, <strong>de</strong> modo que ele protegesse o caráter dos seus alunos <strong>de</strong> más influências<br />

e contivesse os impulsos que eles po<strong>de</strong>riam ter. O autor ain<strong>da</strong> afirma que se os pais<br />

6 Essa parece uma visão comum no período. O tratado contemporâneo A respeito <strong>da</strong> educação <strong>da</strong>s crianças,<br />

atribuído a Plutarco, quando se refere à educação dos jovens, também consi<strong>de</strong>ra que essa i<strong>da</strong><strong>de</strong> é especialmente<br />

<strong>de</strong>lica<strong>da</strong> em relação aos vícios:<br />

Porque quem não está consciente que os erros <strong>da</strong>s crianças são triviais e completamente corrigíveis (<strong>de</strong>scuido,<br />

talvez, com seus servidores ou mentir e recusar-se a prestar atenção em seus professores)? Mas as iniqüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do<br />

começo <strong>da</strong> juventu<strong>de</strong> são muitas vezes monstruosas e maldosas (gula ilimita<strong>da</strong>, roubo do dinheiro dos pais, jogo,<br />

orgias, disputas <strong>de</strong> bebi<strong>da</strong>, amores com garotas e corrupção <strong>de</strong> mulheres casa<strong>da</strong>s). ([PLUTARCO], A respeito <strong>da</strong><br />

educação <strong>da</strong>s crianças; XVI. Tradução nossa a partir do texto em inglês <strong>de</strong> Frank Cole Babbit)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

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negligenciassem esse critério ao escolherem o rhetor, to<strong>da</strong>s as outras prescrições e<br />

recomen<strong>da</strong>ções que ele faz em benefício dos discípulos seriam inúteis.<br />

Quintiliano começa apontando duas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que os professores <strong>de</strong>veriam possuir:<br />

por um lado, ter boa conduta, por outro, saber conter e orientar o caráter dos discípulos. Ele<br />

exige que eles sejam como um pai para aqueles que ensinam, consi<strong>de</strong>rando que substituem o<br />

lugar <strong>da</strong>queles que levaram o menino para sua escola. Po<strong>de</strong>ríamos consi<strong>de</strong>rar que a idéia do<br />

pai agrupa as duas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s: tanto a <strong>de</strong> ser um exemplo para o filho 7 , quanto a <strong>de</strong><br />

preocupar-se em corrigir e orientá-lo.<br />

Outras características importantes estão relaciona<strong>da</strong>s à manutenção do meio termo na<br />

relação com os alunos: eles não <strong>de</strong>veriam possuir uma severi<strong>da</strong><strong>de</strong> ameaçadora, mas não<br />

<strong>de</strong>veriam ser negligentes; não <strong>de</strong>veriam irar-se facilmente com as faltas dos alunos, mas não<br />

<strong>de</strong>veriam encobri-las; não <strong>de</strong>veriam, no elogio e na correção dos exercícios, ser muito<br />

generosos ou muito rígidos. Todos esses excessos são apresentados como más influências<br />

sobre o comportamento dos discípulos: generosi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>mais po<strong>de</strong>ria gerar presunção e<br />

preguiça; severi<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>sgosto pela oratória.<br />

Outras virtu<strong>de</strong>s seriam: saber discursar a respeito do que é honesto e virtuoso, <strong>de</strong><br />

modo a evitar o castigo pelo aconselhamento prévio e ser simples e persistente no ensino, não<br />

<strong>de</strong>ixando dúvi<strong>da</strong>s. Além disso, <strong>de</strong>veriam discursar por conta própria, <strong>de</strong> modo a servir <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>lo para seus discípulos, que, se os respeitassem e amassem, imitá-los-iam mais<br />

voluntariamente.<br />

Quanto à manutenção <strong>da</strong> disciplina, Quintiliano consi<strong>de</strong>ra que um <strong>de</strong>ver é não <strong>de</strong>ixar<br />

adolescentes misturados com os mais jovens, <strong>de</strong> modo a evitar qualquer possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>bili<strong>da</strong><strong>de</strong> dos meninos ser afeta<strong>da</strong> pela imo<strong>de</strong>ração dos jovens. Por outro lado, o autor chama<br />

atenção principalmente para os elogios e aplausos excessivos que muitos alunos <strong>da</strong>riam aos<br />

discursos dos outros, que, sem critério e gratuitos, po<strong>de</strong>riam retirar a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> do professor<br />

quando este fizesse alguma crítica, uma vez que aqueles que discursaram haveriam se tornado<br />

presunçosos pela aclamação que receberam e não aceitariam correções. Por essa razão, esses<br />

impulsos <strong>de</strong>veriam ser contidos, <strong>de</strong> maneira que o julgamento a ser mais respeitado fosse o do<br />

professor.<br />

7 Plínio, o Jovem, na Epístola III, 3 (on<strong>de</strong> indica um professor <strong>de</strong> retórica para o filho <strong>de</strong> uma conheci<strong>da</strong>),<br />

embora não chegue associar diretamente a figura do preceptor à do pai, diz: “ Ele [i.e. o professor] o advertirá<br />

mais do que tu e eu sobre que imagens <strong>de</strong>ve honrar e os gran<strong>de</strong>s nomes que <strong>de</strong>verá carregar. (Tradução <strong>de</strong> Marly<br />

<strong>de</strong> Bari Matos)”. Ao indicar que o professor ensinaria a respeitar as imagines (figuras <strong>de</strong> cera dos antepassados<br />

<strong>da</strong> família) e o nome <strong>da</strong> família, o autor mostra, por um lado, que os pais e antepassados eram consi<strong>de</strong>rados<br />

mo<strong>de</strong>los para seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes e, por outro, a associação existente entre o papel do professor e o exemplo que<br />

os últimos representavam.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

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Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver as quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s morais que o rhetor <strong>de</strong>veria possuir, Quintiliano diz<br />

que esse professor também <strong>de</strong>veria ter uma gran<strong>de</strong> eloqüência. A exigência dá-se pela<br />

recorrência <strong>de</strong> outro problema: alguns pais escolhiam um professor <strong>de</strong> menor capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

oratória por julgar que ele seria acompanhado mais facilmente por seus filhos. Quintiliano<br />

rejeita a prática primeiramente porque consi<strong>de</strong>ra que os vícios adquiridos no ensino<br />

conduzido por um professor com baixa habili<strong>da</strong><strong>de</strong> oratória seriam dificilmente apagados em<br />

um momento posterior. Em segundo lugar, ele consi<strong>de</strong>ra o pressuposto falso, uma vez que,<br />

por um lado, ele não consi<strong>de</strong>ra digno do nome <strong>de</strong> professor aquele que julgasse abaixo <strong>de</strong> seu<br />

<strong>de</strong>ver ensinar os preceitos mais elementares, por outro, que aqueles professores <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

habili<strong>da</strong><strong>de</strong>, se quisessem ensinar essas coisas, seriam completamente capazes. Isso ocorreria<br />

porque, segundo o autor, aqueles que possuem uma gran<strong>de</strong> eloqüência também seriam<br />

habilidosos nos níveis mais elementares, bem como seria próprio à boa oratória a clareza e a<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer-se compreendido pelos meninos. Já a afetação e a obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong> seriam<br />

características do mau orador que, não possuindo habili<strong>da</strong><strong>de</strong>, precisa fingir ter uma utilizandose<br />

<strong>de</strong>las.<br />

Para encerrar o retrato que faz do professor virtuoso, Quintiliano lança mão <strong>de</strong> uma<br />

comparação para sintetizar as virtu<strong>de</strong>s que ele consi<strong>de</strong>ra essenciais: o rhetor i<strong>de</strong>al <strong>de</strong>veria ser<br />

como Fênix, preceptor <strong>de</strong> Aquiles, que, na Ilía<strong>da</strong>, afirma ter sido encarregado por Peleu para<br />

ensinar o herói a discursar e a agir 8 : o mais perfeito no caráter e na eloqüência.<br />

Observando esse retrato do rhetor traçado por Quintiliano, po<strong>de</strong>mos notar que as<br />

características que o autor espera que o professor <strong>de</strong> retórica possua são muito semelhantes às<br />

que ele consi<strong>de</strong>ra que o próprio orador <strong>de</strong>ve ter ao fim <strong>de</strong> sua educação: “Formamos, contudo,<br />

aquele orador perfeito, que não po<strong>de</strong> ser senão um bom homem. Por isso exigimos que não<br />

somente seja exímia nele a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> discursar, mas to<strong>da</strong>s as virtu<strong>de</strong>s do espírito” 9 . Dessa<br />

maneira, po<strong>de</strong>mos julgar que, segundo o pensamento <strong>de</strong> Quintiliano, o orador perfeito não<br />

po<strong>de</strong> ser formado senão por aquele que possui as mesmas virtu<strong>de</strong>s morais e <strong>de</strong> eloqüência que<br />

aquele terá quando estiver plenamente educado, ou seja, ele só po<strong>de</strong> atingir a excelência se<br />

seu preceptor e mo<strong>de</strong>lo for por si mesmo um orador excelente em todos os aspectos.<br />

8 No canto IX <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, Fênix diz a Aquiles:<br />

Por isso ele [i.e Peleu] me mandou, para que eu te ensinasse tudo,<br />

Como ser orador <strong>de</strong> discursos e fazedor <strong>de</strong> façanhas<br />

(HOMERO. Ilía<strong>da</strong>; IX, 442-443. Tradução <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Lourenço)<br />

9 QUINITLIANO. A Formação do Orador. I, Pr. 9<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

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Referências Bibliográficas<br />

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CLARKE, M. L. Rhetoric at Rome: A Historical Survey. London and New York:<br />

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COPELAND, R. Rhetoric and Hermeneutics, Translation in the Middle Ages: Aca<strong>de</strong>mic<br />

traditions and vernacular texts. Cambridge: Cambridge Universitty Press, 1991.<br />

HOMERO. Ilía<strong>da</strong>. Tradução e introdução <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Lourenço. Lisboa: Cotovia, 2007.<br />

KENNEDY, G. Art Rhetoric in the Roman World. New Jersey: Princeton University Press<br />

– Princeton, 1972.<br />

MATOS, M. B. O Estudo <strong>da</strong> Pueritia nos séculos I e II d.C. Dissertação apresenta<strong>da</strong> à<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,<br />

para a obtenção do título <strong>de</strong> Doutor em Letras Clássicas, 2005.<br />

PLUTARCH. Moralia. With an english translation by Frank Cole Babbit. Volume I. Harvard:<br />

Harvard University Press, 1986.<br />

QUINTILIAN, Institutio Oratoria. Books I-III. With an english translation by H. E. Butler.<br />

Harvard: Harvard University Press, 1996.<br />

SUETONIUS. De Vita Caesarum. De Viris Illustribus. With an english translation by J. C.<br />

Rolfe. Volume II. Harvard: Harvard University Press, 1992.<br />

TACITUS. Agricola. Germania. Dialogus <strong>de</strong> Oratoribus Books I-III. With an english<br />

translation by W.. Peterson. Harvard: Harvard University Press, 1992.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 13-20, 2008<br />

20


Os bíoi na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>: reflexão sobre a caracterização e evolução <strong>de</strong> um gênero.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 21-26, 2008<br />

Vinicius Ferreira BARTH<br />

G – UFPR<br />

viniciusbarth@gmail.com<br />

Como caracterizar o gênero biográfico na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>? Como se <strong>de</strong>u o seu processo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e relação com a prosa ficcional e o gênero romanesco? O que seria o tipo<br />

<strong>de</strong> biografia à qual temos acesso hoje, a chama<strong>da</strong> biografia do quarto século que sofre<br />

influências e se relaciona com outras áreas <strong>de</strong> conhecimento, como a retórica e a filosofia?<br />

Buscando eluci<strong>da</strong>r algumas <strong>de</strong>ssas questões <strong>de</strong> algum modo, busco nesse trabalho<br />

averiguar a própria concepção <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> biografia 1 na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> e seu <strong>de</strong>senvolvimento a<br />

partir do séc. IV a.C., baseando-me principalmente em Momigliano (1991) e recorrendo à<br />

Ciropedia <strong>de</strong> Xenofonte (1949) para material <strong>de</strong> referência biográfica.<br />

Inicialmente, parto <strong>da</strong> consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que possivelmente tenha existido um gênero<br />

que pu<strong>de</strong>sse ser consi<strong>de</strong>rado como uma biografia pura, ou essencialmente fora <strong>da</strong> influência<br />

<strong>de</strong> outros campos <strong>de</strong> conhecimento e que tenha ocorrido até uma certa altura do séc. V a.C. A<br />

partir <strong>da</strong>í, temos o tipo <strong>de</strong> texto que é a biografia a partir do séc. IV a.C., em que já<br />

encontramos o relato biográfico mais próximo <strong>de</strong> um conceito <strong>de</strong> narrativa ficcional, que<br />

segue uma construção em estrutura biográfica contendo elementos do estilo romanesco. Com<br />

efeito, obtemos um ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para a investigação <strong>de</strong> intenções e revelação <strong>de</strong> valores<br />

estéticos e sociais que possam ser consi<strong>de</strong>rados relevantes para o autor <strong>da</strong> obra em questão.<br />

Assim, <strong>de</strong>ixa o texto biográfico <strong>de</strong> ser exclusivamente apenas um relato <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> um<br />

indivíduo, e passa a incorporar i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> pública, bem como narração <strong>de</strong> feitos<br />

famosos, <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> vícios e virtu<strong>de</strong>s e lições <strong>de</strong> formação e <strong>de</strong> caráter. Temos então<br />

um estreitamento que se dá entre o relato biográfico e a retórica. Tal estreitamento passa a<br />

ocorrer também com relação à filosofia.<br />

Utilizo aqui a Ciropedia <strong>de</strong> Xenofonte como material escolhido para ilustração <strong>da</strong>s<br />

idéias <strong>de</strong> retórica presentes no texto, bem como exemplo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> moral e caráter que<br />

sirvam como exemplos a serem seguidos, e por fim a presença do romanesco, <strong>da</strong> narrativa<br />

ficcional, em trechos <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental importância para o <strong>de</strong>senvolvimento e <strong>de</strong>sfecho <strong>da</strong><br />

narrativa. Trata-se <strong>de</strong> uma obra em plena ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estilo, algo i<strong>de</strong>alista e romanesca,<br />

1<br />

Cf. MOMIGLIANO, 1991, <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> biografia: “Eu <strong>de</strong>signo pelo termo ‘biografia’ o relato <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> um<br />

homem, <strong>de</strong> seu nascimento à sua morte”.


histórica e ficcional. Esta biografia romanesca é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> em Momigliano, como já fora<br />

anteriormente mencionado, característica <strong>de</strong> relatos biográficos do quarto século a.C. (1991,<br />

p. 67), sendo Xenofonte consi<strong>de</strong>rado em nosso tempo como o fun<strong>da</strong>dor <strong>de</strong>ste estilo, tendo em<br />

vista que a Ciropedia, escrita em torno <strong>de</strong> 360 a.C., é recua<strong>da</strong> em cerca <strong>de</strong> trezentos anos com<br />

relação aos primeiros exemplos <strong>de</strong> fato consi<strong>de</strong>rados como prosa ficcional, propriamente dita,<br />

até mesmo por ter sido influência clara <strong>de</strong> outros romancistas posteriores (p. e. Chariton of<br />

Aphrodisias) (MORGAN & STONEMAN, 1994, p. 15). Curiosamente, torna-se <strong>de</strong> menor<br />

relevância nos voltarmos propriamente à figura <strong>de</strong> Ciro ou à Pérsia, já que a obra adquire uma<br />

significância particular para os Gregos que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> muito, tinham especial interesse em<br />

costumes e personagens Persas, ou até mesmo viveram sob domínio do po<strong>de</strong>r Persa, como<br />

Heródoto <strong>de</strong> Halicarnasso e Hecateu <strong>de</strong> Mileto (id. ibid. 17). A preocupação maior <strong>de</strong><br />

Xenofonte é a <strong>de</strong> construir figuras exemplares que nos ensinarão alguma lição (id. ibid., p.<br />

20). Há então, ao que po<strong>de</strong>mos inferir principalmente por meio <strong>da</strong> trajetória <strong>de</strong> Panteia ou <strong>da</strong><br />

narração <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> Ciro, um caráter diferenciado <strong>da</strong> simplesmente chama<strong>da</strong> narrativa<br />

biográfica, já que tais trechos carregam elementos claros <strong>de</strong> narrativa romanesca e ficcional.<br />

Xenofonte constrói um protagonista <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> alcançar obstina<strong>da</strong>mente ao objetivo traçado,<br />

o que se reflete em seu próprio estilo <strong>de</strong> escrita como um autor que também preten<strong>de</strong> alcançar<br />

seus próprios <strong>de</strong>sígnios, e os alcança. Tudo na Ciropedia faz parte <strong>de</strong> uma construção em<br />

harmonia que culminará no fim <strong>de</strong>sejado (id. ibid., p. 21).<br />

Xenofonte usa, portanto, narrativas <strong>de</strong> seus anos passados como fonte <strong>de</strong><br />

argumentação e experiência para instruir e manipular os jovens, o que nos leva ao conceito <strong>de</strong><br />

ficção autoritária (id. ibid., p. 22). O relato <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Ciro serve como pano <strong>de</strong> fundo para a<br />

real intenção do autor, que em contextos políticos e, principalmente, sociais, constrói uma<br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong> heróica e incorruptível, capaz <strong>de</strong> controlar homens e conquistar impérios, para<br />

sublinhar e salientar os seus ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong> educação e construção <strong>de</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Haverá aí apenas espaço para as conquistas <strong>de</strong> Ciro, Xenofonte e seus leitores, caso estes os<br />

admirem e os acompanhem, aceitando suas doutrinas e i<strong>de</strong>ais. Vejamos um exemplo <strong>de</strong><br />

extrema postura <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança toma<strong>da</strong> por Ciro em um dos episódios relativos a Panteia:<br />

ARASPAS: (...) Sempre vos digo, Ciro, que eu e todos que a viram (a Panteia), pensamos<br />

que não haveria em to<strong>da</strong> a Ásia beleza igual. Deveis ir vê-la.<br />

CIRO: O que me dizeis <strong>da</strong> sua rara formosura, apaga em mim o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> a ver.<br />

ARASPAS: Por quê?<br />

CIRO: Porque, se eu, não tendo vagar para isso, me resolvesse ir vê-la, movido somente<br />

pelo que me contais <strong>de</strong> sua beleza, receio que esta me provocasse a ir outra vez visitá-la, e<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 21-26, 2008<br />

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que <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>sprezando os negócios <strong>de</strong> minha obrigação, me entretivesse constantemente<br />

na contemplação <strong>de</strong> sua formosura. (XENOFONTE, 1949, p. 172)<br />

Em termos <strong>de</strong> ficção, po<strong>de</strong>rá ain<strong>da</strong> a Ciropedia ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> um retrocesso, indo à<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> poética muito mais do que para a história. Com os dois finais <strong>da</strong>dos para a obra,<br />

sendo um com a morte <strong>de</strong> Ciro e outro com as consi<strong>de</strong>rações acerca <strong>da</strong>s falhas e iniqüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

do povo persa contemporâneo, torna-se tanto mais complicado classificar um texto um tanto<br />

incoerente. Seja um relato biográfico, um romance escrito antes dos romances, ou prosa<br />

ficcional contendo características biográficas e romanescas, a Ciropedia certamente não é<br />

apenas um texto carregado com os i<strong>de</strong>ais políticos e discursos ficcionais <strong>de</strong> Xenofonte, como<br />

geralmente é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>. Relaciona-se <strong>de</strong> perto, certamente, com outros romances <strong>da</strong><br />

Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo seu forte caráter erótico representado pela figura um pouco perturbadora <strong>de</strong><br />

Panteia, a qual é capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>svirtuar a trajetória <strong>de</strong> Ciro <strong>de</strong> algum modo, como foi visto no<br />

trecho citado acima, e, conseqüentemente, os caminhos proporcionados pela narrativa. Tudo<br />

meticulosamente calculado pelo heróico historiador e pragmático Xenofonte (BLOOM,<br />

2005).<br />

Stoneman, comentando o romance alexandrino, se refere à Ciropedia como um<br />

romance (com problemas taxonômicos) 2 .<br />

Focalizando a questão do gênero romanesco posterior e sua construção característica<br />

<strong>de</strong> enredo, Bakhtin <strong>de</strong>screve a ação do romance grego como todo o acontecimento na vi<strong>da</strong> do<br />

herói que fica entre dois pontos: o primeiro encontro do herói com a heroína e a repentina<br />

explosão <strong>de</strong> paixão entre eles; e a união feliz dos dois em matrimônio 3 . Esses pontos, que são<br />

os pólos <strong>da</strong> ação do enredo, são consi<strong>de</strong>rados por Bakhtin como extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> um hiato<br />

temporal na vi<strong>da</strong> dos heróis. Ou seja, a experiência <strong>de</strong>sse período não acrescenta na<strong>da</strong><br />

substancial às vi<strong>da</strong>s dos heróis; não <strong>de</strong>ixa vestígios no caráter ou em suas vi<strong>da</strong>s (BAKHTIN,<br />

1993ª, p. 216). Portanto, não obe<strong>de</strong>ce ao tempo biográfico ou à duração real dos acréscimos<br />

<strong>de</strong> uma biografia real.<br />

Talvez a partir <strong>de</strong>ssas constatações pudéssemos afirmar, por fim, que há muito mais<br />

elementos <strong>da</strong> esfera do romanesco presente nos relatos biográficos do que elementos<br />

biográficos presentes na esfera do romanesco, já que tivemos gran<strong>de</strong> exemplificação <strong>da</strong>s<br />

muitas vozes e intenções permeando a Ciropedia, sendo ao mesmo tempo biografia, ficção,<br />

romance, e texto <strong>de</strong> cunho político-social.<br />

2 Cf. MORGAN & STONEMAN, 1994, p. 117.<br />

3 BAKHTIN, 1993a, p. 215.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 21-26, 2008<br />

23


Quanto à questão dos temas abor<strong>da</strong>dos pelos textos biográficos <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, quais<br />

eram realmente as suas intenções? Por que eram escritos, e com qual finali<strong>da</strong><strong>de</strong>? Sabemos <strong>da</strong><br />

gran<strong>de</strong> preocupação <strong>de</strong> conceitos <strong>de</strong> educação e <strong>de</strong> valores que os gregos ten<strong>de</strong>m a transmitir<br />

por meio <strong>de</strong> seus textos. No quarto século, a biografia ocupa um espaço ambíguo entre<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e imaginário. Ou, tratando em outros termos, o antagonismo entre ver<strong>da</strong><strong>de</strong> superior<br />

e ver<strong>da</strong><strong>de</strong> inferior; dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> existente, por exemplo, no estudo dos Evangelhos nas vi<strong>da</strong>s<br />

dos santos (MOMIGLIANO, 1991, p. 72).<br />

Tornam-se características do quarto século as marcas <strong>de</strong> personagens fortes e<br />

voluntários, o que acaba por oferecer aos biógrafos uma maior possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sujeitos (id.<br />

ibid.). Em nosso exemplo anterior, a Ciropedia, vimos a educação <strong>de</strong> Ciro como escopo para<br />

mo<strong>de</strong>lo exemplar <strong>de</strong> educação, controle político e virtu<strong>de</strong>s humanas. O protagonista segue, ao<br />

controle do autor, uma vi<strong>da</strong> inteira em caráter incorruptível, exemplo máximo <strong>de</strong> virtu<strong>de</strong>s,<br />

conquistas, coragem e serie<strong>da</strong><strong>de</strong>. São extremamente relevantes as palavras do próprio<br />

Xenofonte no prólogo <strong>da</strong> Ciropedia:<br />

Os animais caminham por on<strong>de</strong> os conduzem, pastam nos campos a que os levam, não<br />

entram naqueles <strong>de</strong> on<strong>de</strong> os <strong>de</strong>sviam, e consentem que tirem <strong>de</strong>les todo o proveito. (...) a<br />

ninguém são mais inclinados, do que aos que os governam e que <strong>de</strong>les se aproveitam. (...)<br />

Portanto, <strong>de</strong>duzimos <strong>de</strong>stas reflexões que mais facili<strong>da</strong><strong>de</strong> tem o homem em governar os<br />

animais do que os próprios homens.<br />

Mas <strong>de</strong>pois que nos recor<strong>da</strong>mos que existiu um persa chamado Ciro, que soube conservar<br />

sujeitos ao seu domínio muitos homens, muitas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, muitas nações, fomos obrigados<br />

a mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong> sentimentos, e a pensar que não é impossível nem difícil governar os homens,<br />

uma vez que para isso haja suficiente capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>. (MOMIGLIANO, 1991, p. 72).<br />

Xenofonte <strong>de</strong>monstra, neste trecho inicial do relato, profun<strong>da</strong> admiração por seu<br />

próprio protagonista, <strong>da</strong>ndo a enten<strong>de</strong>r que o leitor que quiser atingir um patamar próximo ou<br />

equivalente ao <strong>de</strong> Ciro <strong>de</strong>verá seguir as instruções <strong>de</strong> sua educação e fazer jus ao caráter<br />

virtuoso proposto pela narrativa.<br />

Cabe também como caráter retórico na exposição narrativa o trecho que expõe a<br />

genealogia <strong>de</strong> Ciro. Vejamos:<br />

Ciro era filho <strong>de</strong> Cambises, rei <strong>da</strong> Pérsia. Este Cambises era <strong>da</strong> geração dos Persei<strong>da</strong>s,<br />

que se gloriam <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Perseu. (...) Ciro, cujo nome ain<strong>da</strong> hoje é celebrado pelos<br />

bárbaros, era <strong>de</strong> estatura elegantíssima, <strong>de</strong> um coração cheio <strong>de</strong> benevolência, e muito<br />

amante <strong>da</strong> sabedoria e <strong>da</strong> honra. Para ganhar aplausos, sofria aos maiores trabalhos, e<br />

arrostava-se com os mais evi<strong>de</strong>ntes perigos. Tais foram suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s morais e físicas<br />

que a história nos transmitiu (MOMIGLIANO, 1991, p. 72).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 21-26, 2008<br />

24


É claro que o elogio incontido e recorrente do autor com relação ao biografado faz<br />

parte <strong>de</strong> um jogo retórico <strong>de</strong> convencimento do leitor, para que o mesmo se encontre<br />

envolvido pela aura <strong>de</strong> benevolência emiti<strong>da</strong> ao longo <strong>da</strong>s páginas, e que estas acabem se<br />

tornando a gran<strong>de</strong> fonte <strong>de</strong> bons ensinamentos e costumes (se o leitor, <strong>de</strong> fato, opta por<br />

acompanhar e aceitar os ensinamentos propostos pelo autor).<br />

O caráter educacional <strong>da</strong> obra <strong>de</strong>ixa, neste tipo <strong>de</strong> trecho, a <strong>de</strong>sejar com relação ao que<br />

pudéssemos consi<strong>de</strong>rar como fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica dos fatos. Temos a presença marcante, mais<br />

uma vez, do discurso romanesco, dramatizando fatos, produzindo elogios e elevando a figura<br />

do herói (no caso Ciro, o divinizado) às alturas.<br />

Prova disso é o capítulo que narra a morte <strong>de</strong> Ciro. Sua <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong> lúci<strong>da</strong> é<br />

dramatiza<strong>da</strong> na presença <strong>de</strong> seus filhos, amigos e admiradores. O imperador Persa fora<br />

advertido em sonho, por seres <strong>de</strong> uma esfera superior, que sua hora <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira estaria<br />

chegando. Xenofonte concebeu o discurso final <strong>de</strong> Ciro <strong>de</strong> maneira que o lí<strong>de</strong>r tivesse plena<br />

consciência <strong>de</strong> sua importância e <strong>de</strong> seu respeito obtido perante os seus. Prova disso é o<br />

trecho final do discurso:<br />

“Se algum <strong>de</strong> vós <strong>de</strong>seja pegar em minha mão e contemplar em meus olhos um resto <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>, aproxime-se. Quando eu cobrir meu rosto, peço-vos, meus filhos, que meu corpo<br />

não seja visto por ninguém, nem mesmo por vós. Convi<strong>da</strong>i os persas e nossos aliados a<br />

que se reúnam à ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> minha sepultura para me <strong>da</strong>rem os parabéns <strong>de</strong> ficar <strong>da</strong>í em<br />

diante ao abrigo <strong>de</strong> todos os acontecimentos <strong>de</strong>sagradáveis, quer eu esteja no seio <strong>da</strong><br />

divin<strong>da</strong><strong>de</strong>, quer tenha sido aniquilado. Todos, que aí forem, recebam <strong>de</strong> vossas mãos o<br />

que se costuma distribuir no funeral <strong>de</strong> um homem feliz. Finalmente, nunca vos esqueçais<br />

que é fazendo bem a vossos amigos que vos poreis em estado <strong>de</strong> reprimir vossos<br />

inimigos. A<strong>de</strong>us, caros filhos. A<strong>de</strong>us, amigos, presentes e ausentes”.<br />

Acabando <strong>de</strong> falar, esten<strong>de</strong>u sua mão para todos que o ro<strong>de</strong>avam; <strong>de</strong>pois cobriu o rosto e<br />

expirou (MOMIGLIANO, 1991, VIII, p. 335).<br />

Xenofonte trata, principalmente neste trecho, <strong>de</strong> sintetizar em um último ato heróico<br />

to<strong>da</strong> uma vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> altos valores. O biografado torna-se, por fim, mais do que simplesmente<br />

uma personagem biografa<strong>da</strong> ou histórica. Torna-se uma eleva<strong>da</strong> personagem romanesca<br />

diviniza<strong>da</strong>. Alguém que facilmente possa inspirar sentidos <strong>de</strong> responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Com as<br />

<strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s abstrações <strong>de</strong> uma comparação anacrônica, um ícone pop elevado pela mídia<br />

dominante.<br />

Enfim, foi <strong>de</strong>senvolvido um breve perfil dos traços extrabiográficos dos relatos do séc.<br />

IV a.C., em que tivemos o autor Xenofonte como fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> prosa ficcional na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

usando a Ciropedia como instrumento <strong>de</strong> exposição e ilustração <strong>da</strong>s hipóteses levanta<strong>da</strong>s. A<br />

biografia do quinto século, possivelmente mais “pura” que a do quarto, não chegou até os<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 21-26, 2008<br />

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tempos atuais, mas ain<strong>da</strong> é possível afirmar que se tratava realmente <strong>de</strong> relatos biográficos<br />

livres <strong>de</strong> influência <strong>de</strong> outros tipos textuais 4 como os que vemos a partir <strong>de</strong> Xenofonte no<br />

quarto século: retórica, filosofia, história e romance. Mais do que isso, vemos ali os<br />

primórdios <strong>da</strong> idéia <strong>de</strong> ficção autoritária por meio <strong>da</strong> manipulação pela retórica.<br />

Concluo, então, afirmando que os textos biográficos do quarto século foram, por certo,<br />

influenciados fortemente pelo estilo <strong>de</strong> engajamento proposto pela Ciropedia, a mais<br />

politiza<strong>da</strong> <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as ficções <strong>da</strong> Grécia antiga. Isso nos leva a crer que Xenofonte, além <strong>de</strong><br />

proporcionar inovação em questões <strong>de</strong> estilo e discurso, trouxe à tona nas biografias a<br />

imagem, mas não a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira história (MORGAN & STONEMAN, 1994, p.<br />

27).<br />

Referências Bibliográficas<br />

BAKHTIN, Mikhail. Questões <strong>de</strong> literatura e <strong>de</strong> estética (a teoria do romance). São Paulo:<br />

UNESP, 1993.<br />

BLOOM, Harold. On<strong>de</strong> encontrar a sabedoria? Rio <strong>de</strong> Janeiro: Objetiva, 2005.<br />

MOMIGLIANO, Arnaldo. La Naissance <strong>de</strong> la Biographie en Grèce Ancienne. Traduit <strong>de</strong><br />

l’Anglais par Estelle Oudot. Strausbourg: Circé, 1991.<br />

___________. Os limites <strong>da</strong> helenização. A interação cultural <strong>da</strong>s civilizações grega,<br />

romana, céltica, ju<strong>da</strong>ica e persa. Trad. Claudia Martinelli Gama. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge<br />

Zahar Editor, 1991.<br />

MORESCHINI, Claudio & NORELLI, Enrico. História <strong>da</strong> Literatura Cristã Antiga Grega<br />

e Latina II - do Concílio <strong>de</strong> Nicéia ao Início <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média (Tomo I) Trad.<br />

Marcos Bagno. São Paulo: Ed. Loyola, 2000.<br />

MORESCHINI, Claudio & NORELLI, Enrico. História <strong>da</strong> Literatura Cristã Antiga Grega<br />

e Latina I - <strong>de</strong> Paulo à Era Constantiniana. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Ed.<br />

Loyola, 1996.<br />

MORGAN, J. R. & STONEMAN, R. Greek Fiction: The Greek Novel In Context, London,<br />

1994.<br />

POLÍBIOS. História. Seleção, trad., introd. e notas <strong>de</strong> Mário <strong>da</strong> Gama Kury. Brasília: UnB,<br />

1985.<br />

XENOFONTE. Ciropedia. Trad. <strong>de</strong> João Félix Pereira. São Paulo: 1949.<br />

4 Cf. MOMIGLIANO, 1991.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 21-26, 2008<br />

26


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

Tradição épica e elegíaca: a poesia <strong>de</strong> Calino e Tirteu<br />

Rafael <strong>de</strong> C.M. BRUNHARA<br />

G – FFLCH – USP<br />

brunhara@usp.br<br />

Partindo do pressuposto <strong>de</strong> que há um vínculo inequívoco entre a poesia elegíaca do<br />

período arcaico (século VII-VI a.C) e o contexto social que a <strong>de</strong>termina, este texto propõe-se<br />

a uma breve análise <strong>de</strong> passagens <strong>de</strong> Calino e Tirteu, e mais especificamente do fragmento 1<br />

w <strong>de</strong> Calino. Pois a função cívica <strong>de</strong>ssa poesia faz-se mais clara justamente a partir do estudo<br />

<strong>da</strong> elegia marcial, na medi<strong>da</strong> em que esta engendra uma a<strong>de</strong>quação dos temas <strong>da</strong> poesia<br />

hexamétrica para uma audiência contemporânea, ao conclamar seus interlocutores à função <strong>de</strong><br />

ci<strong>da</strong>dãos. 1 Assim, preten<strong>de</strong>-se observar como o recurso à tradição épica se encontra<br />

diretamente entretecido à ocasião sócio-política, e como esta ressignifica aquela.<br />

Calino 1 w e a elegia marcial: simpósio e tradição épica<br />

Os primeiros versos que nos chegaram marcam um início abrupto, <strong>de</strong>notado pela<br />

sequência <strong>de</strong> fortes censuras lança<strong>da</strong>s pelo poeta aos seus interlocutores:<br />

Me/xrij te/o kata/keisqe; ko/t’ a)/lkimon e)/cete qumo/n,<br />

w) = ne/oi; ou)d’ ai)<strong>de</strong>sq’ a)mfiperikti/onaj<br />

w) =<strong>de</strong> li/hn meqie/ntej?; e)n ei)rh/nhi <strong>de</strong>\ dokei=te<br />

h( =sqai, a)ta/r po/lemoj gai=an a)/pasan e)/xei.<br />

Até quando jazeis inertes? Quando tereis valente ânimo,<br />

jovens? Não ten<strong>de</strong>s pudor diante dos vizinhos à volta,<br />

assim relaxados em excesso? Em paz pareceis<br />

estar, mas a guerra toma to<strong>da</strong> a terra.<br />

Adkins (1977, p.63-64), observando que este po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> fato o início do poema em<br />

razão <strong>da</strong> falta <strong>de</strong> partículas conectivas, sublinha a eficácia retórica <strong>da</strong> abor<strong>da</strong>gem inicial do<br />

poeta.<br />

1 Cf. IRWIN, 2005, p. 2-5.


A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> se tratar realmente do início do poema, ao se referir à eficiência retórica<br />

<strong>de</strong> tal início, fica implícita na análise <strong>da</strong> Adkins a importância <strong>da</strong> audiência do poema, e<br />

assim, por extensão, <strong>da</strong> ocasião <strong>de</strong> performance, condição precípua para a contextualização<br />

genérica <strong>da</strong> elegia grega arcaica, fia<strong>da</strong> mais no receptor do que na exposição biográfica ou<br />

sentimental do autor. Cabe, então, uma breve consi<strong>de</strong>ração acerca <strong>da</strong> ocasião <strong>de</strong> performance<br />

<strong>da</strong> elegia marcial e em que medi<strong>da</strong> o fragmento 1 <strong>de</strong> Calino po<strong>de</strong> se inserir neste contexto.<br />

West (1977, p.11-12) consi<strong>de</strong>ra que o momento prece<strong>de</strong>nte a uma batalha é o mais<br />

a<strong>de</strong>quado para a produção <strong>da</strong> elegia marcial, apoiando-se nos <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> Filócoro (FGr<br />

Hist. 328 f. 216) que relatam a prática <strong>de</strong> se recitar elegias marciais <strong>de</strong> Tirteu no<br />

acampamento do rei, enquanto o exército espartano estava em campanha.<br />

Bowie (1986.p.15), criticando a literali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> análise <strong>de</strong> West, consi<strong>de</strong>ra que o<br />

simpósio era o único contexto inequívoco <strong>de</strong> produção <strong>da</strong> elegia. Para o autor, o testemunho<br />

<strong>de</strong> Filócoro revela que a récita <strong>da</strong>s poesias <strong>de</strong> Tirteu <strong>da</strong>va-se em contexto análogo ao<br />

simpósio, e o seleto grupo <strong>de</strong> sol<strong>da</strong>dos que integrava a reunião no acampamento real era em<br />

muito similar aos aristocratas que tomavam parte <strong>de</strong> um simpósio.<br />

Quanto a Calino, o próprio West já aduz a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do simpósio como cenário<br />

<strong>de</strong>sta elegia, conforme sugere Reitzenstein (1893), que se refere à situação similar em<br />

Téognis, 825-30. Bowie (1990, p.222) ain<strong>da</strong> aponta que há no poema uma proposital escolha<br />

<strong>de</strong> palavras que remete diretamente ao ambiente simposial: kata/keisqe (v.1: “jazeis inertes”)<br />

e meqie/ntej (v.3: “relaxados”) 2 são exemplos.<br />

Consi<strong>de</strong>rando que o poema <strong>de</strong>senrola-se no simpósio e constitui-se como uma prática<br />

comum <strong>de</strong>ste, insere-se uma questão importante para o estudo <strong>da</strong> elegia exortativa marcial:<br />

em que medi<strong>da</strong> este texto repleto <strong>de</strong> referências à poesia épica relaciona-se com o universo<br />

que permeia o simpósio aristocrático do período arcaico?<br />

Ao que se pesem as discussões em voga acerca <strong>da</strong> <strong>da</strong>tação <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro 3 , ou mesmo <strong>da</strong><br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s epopéias já se encontrarem conforma<strong>da</strong>s a um texto fixo, é inegável a<br />

existência <strong>de</strong> vínculos formais e temáticos, que autorizam a aproximação <strong>de</strong> ambos os<br />

gêneros.<br />

2 Nesse sentido, a curiosa metáfora do verso 11, to/ prw=ton meignume/nou pole/mou (“tão logo mescla-se o<br />

combate”) po<strong>de</strong>ria ser também uma escolha proposital, comparando, como quer Adkins (1977, p.65) uma<br />

prática do simpósio (a mistura <strong>de</strong> vinho e água) ao entrechoque <strong>de</strong> tropas inimigas no início <strong>da</strong> luta.<br />

3 Cf. Bowie (1986) e Irwin (2005).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

28


Quanto à forma, observa-se a utilização <strong>de</strong> expressões confins à épica, como o uso <strong>de</strong><br />

termos que remetem a expressões formulares 4 e <strong>de</strong> um metro que favorece esse procedimento.<br />

O vínculo temático se dá pela exortação ou parênese militar, que também exerce na poesia<br />

épica (sobretudo na Ilía<strong>da</strong>) um papel fun<strong>da</strong>mental e expressa valores similares àqueles<br />

contidos na elegia marcial 5 .<br />

Durante o século XX, as correntes críticas mais influentes 6 enten<strong>de</strong>ram a poesia <strong>de</strong><br />

Calino e Tirteu <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um ciclo evolutivo. A partir <strong>de</strong>sses poetas seria possível observar<br />

uma nova reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>corrente do surgimento <strong>da</strong> polis: valores políticos como a <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong><br />

pátria e a preocupação com uma ampla coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> encontrariam guari<strong>da</strong> nessa poesia, e a<br />

distinguiriam frontalmente <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro, no qual o conceito <strong>de</strong> patriotismo seria raro e a guerra<br />

diria respeito apenas à proteção <strong>de</strong> um restrito âmbito familiar.<br />

Irwin (2005, p.26) sugere que as aparentes diferenças entre essas noções conforme<br />

apresenta<strong>da</strong>s na épica e na elegia não representam propriamente o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um<br />

conceito, mas recebem igual <strong>de</strong>staque, <strong>de</strong> acordo com o contexto narrativo.<br />

Assim, po<strong>de</strong>mos ver o sentimento <strong>de</strong> luta pela pátria nas palavras <strong>de</strong> Heitor a<br />

Poli<strong>da</strong>mas, em Il. 12.243 ss:<br />

Há um portento que é o melhor: combater pela pátria.<br />

Por que razão tu receias a batalha e a refrega? 7<br />

Também na elegia <strong>de</strong> Calino, em análise, a guerra não só é justifica<strong>da</strong> por meio <strong>de</strong><br />

uma motivação “patriótica” (ma/xesqai gh=j peri/, vv. 6) como se coloca no mesmo plano a<br />

<strong>de</strong>fesa <strong>da</strong> família 8 :<br />

timh=e/n te ga\r e)sti kai\ a)glao\n a)ndri\ ma/xesqai<br />

gh=j pe/ri kai\ pai/dwn kouridi/hj t ) a)lo/xou<br />

dusmene/sin [...]<br />

4<br />

No fragmento 1 <strong>de</strong> Calino, por exemplo: kouridi/hj t’ a)loxou (vv.7), a)/lkimon h) =tor (vv.10).<br />

5 Como exemplo, c.f. o discurso <strong>de</strong> Príamo em Il. 22. 71-6 em comparação a Tirteu 10. 21-30.<br />

6 Cf. Snell (1982).<br />

7 To<strong>da</strong>s as traduções <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> cita<strong>da</strong>s nesse artigo são <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Lourenço (2007).<br />

8 Desse modo também postula Greenhalgh (1972).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

29


Pois é honroso e esplêndido ao varão, lutar<br />

pela terra, pelos filhos e mulher <strong>de</strong>sposa<strong>da</strong><br />

contra os inimigos [...]<br />

O fragmento 10 W (vv.01-06) <strong>de</strong> Tirteu ain<strong>da</strong> expressa em termos claros que a família<br />

ocupa posição central na motivação do guerreiro que a<strong>de</strong>ntra à guerra, tal qual em <strong>Home</strong>ro:<br />

teqna/menai ga\r kalo\n e)ni\ proma/xoisi peso/nta<br />

a)/ndr 0 a)gaqo\n peri\ h( =i patri/di marna/menon:<br />

th\n d )au)tou= prolipo/nta po/lin kai\ pi/onaj a)grou\j<br />

ptwxeu/ein pa/ntwn e)/st ) a)nihro/taton,<br />

plazo/menon su\n mhtri\ fi/lhi kai\ patri\ ge//ronti 5<br />

paisi/ te su\n mikroi=j kouridi/hi t ) a)lo/xwi.<br />

Pois é belo que um valente varão morra tombado<br />

nas primeiras linhas, lutando pela pátria;<br />

Mas abandonando sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e os férteis campos<br />

para mendigar, <strong>de</strong>ntre to<strong>da</strong>s é a coisa mais vergonhosa;<br />

vagando com a cara mãe, o velho pai, 5<br />

com os filhos pequenos e a mulher <strong>de</strong>sposa<strong>da</strong>.<br />

Nesses termos, ao compreen<strong>de</strong>r que a elegia marcial possui mais similari<strong>da</strong><strong>de</strong>s do que<br />

distinções em relação à épica e que estas distinções se dão mais em razão <strong>de</strong> características<br />

próprias <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> gênero do que <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> conceitos que se operou no<br />

período arcaico 9 , é que cabe analisar o recurso <strong>da</strong> elegia exortativa a termos <strong>da</strong> poesia épica<br />

na ocasião <strong>de</strong> performance inequívoca do simpósio aristocrático, e mais especificamente<br />

como isto se dá no poema em foco, o fragmento 1 <strong>de</strong> Calino.<br />

9 Cf. IRWIN, op. cit., p.29.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

A afirmação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> heróica<br />

30


Irwin (2005, p.36) estabelece que a relação entre a poesia homérica e a elegia<br />

exortativa <strong>de</strong>sempenha um papel importante no universo do simpósio aristocrático, na medi<strong>da</strong><br />

em que <strong>de</strong>fine essa aristocracia como uma elite heróica que se <strong>de</strong>staca do restante <strong>da</strong> polis.<br />

Nesse sentido, é preciso consi<strong>de</strong>rar a estratificação social como um dos elementos<br />

característicos <strong>da</strong> exortação <strong>da</strong> poesia épica.<br />

No conjunto <strong>de</strong> discursos exortativos que faz parte <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, raramente se vê um herói<br />

conclamando o lao/j10 , mas somente outros heróis, que se igualam a ele como sendo<br />

a)/ristoi, os melhores <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, condição que se confirma e justifica por suas<br />

excepcionais habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s marciais.<br />

Um exemplo claro, e que po<strong>de</strong> ter relações diretas com o fragmento <strong>de</strong> Calino 11 , é o<br />

discurso <strong>de</strong> Sárpedon no 12º canto <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> (310-328). Dois movimentos se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>m <strong>da</strong><br />

exortação do herói a Glauco, que se encontram <strong>de</strong> certo modo representados no fragmento 1<br />

<strong>de</strong> Calino:<br />

a- ) a opulência material que estes dois guerreiros recebem <strong>de</strong> seu povo os obriga a<br />

participarem <strong>da</strong> luta nas primeiras linhas, mas por outro lado, representa também a sua<br />

própria posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque como os melhores <strong>de</strong>ntre os seus. Por serem os guerreiros<br />

mais habilidosos, recebem também honrarias que os distinguem dos <strong>de</strong>mais:<br />

“Glauco, por que razão nós dois somos os mais honrados(tetime/sesqa) 310<br />

Com lugar <strong>de</strong> honra, carnes e taças repletas até cima<br />

Na Lícia e todos nos miram como se fôssemos <strong>de</strong>uses?<br />

Somos proprietários <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> terreno nas margens do Xanto,<br />

Belo terreno <strong>de</strong> pomares e <strong>de</strong> searas <strong>da</strong>doras <strong>de</strong> trigo 315<br />

Por isso é nossa obrigação colocarmo-nos entre os dianteiros<br />

Dos Lícios para enfrentarmos a batalha flamejante (...)”<br />

A glória arroga<strong>da</strong> por Sarpédon é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> em termos essencialmente materiais: Sua<br />

timh/ é representa<strong>da</strong> por lugares <strong>de</strong> honra, taças e carnes que recebe, que trazem consigo o<br />

10 Cf. Il. 12.269-71, on<strong>de</strong> Ájax exorta três segmentos distintos do exército:<br />

“Amigos, entre os Argivos quem for melhor, mediano<br />

ou pior (visto que não po<strong>de</strong>m ser todos os homens<br />

iguais na guerra), agora há trabalho para todos!”<br />

11 Cf. Krischer, T. (1979) apud Irwin (2005, p.46-48)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

31


signo <strong>da</strong> opulência e <strong>de</strong> certa maneira remetem ao ambiente do banquete, uma <strong>da</strong>s formas<br />

mais freqüentes <strong>de</strong> se retratar o elevado status <strong>de</strong> um herói homérico.<br />

Calino parece representar esta glória material no sexto verso do fragmento 1 (citação<br />

acima). Ao enunciar que lutar pela pátria é honroso (timh=e/n) e esplêndido (a)glao/n), o poeta<br />

<strong>de</strong>fine a batalha com dois adjetivos que em <strong>Home</strong>ro são empregados freqüentemente para<br />

<strong>de</strong>signar bens materiais <strong>de</strong>sejáveis. 12 Assim, Calino cria um efeito expressivo que vincula o<br />

combate diretamente a esses elementos, como se sintetizasse aquilo que já está expresso no<br />

discurso <strong>de</strong> Sarpédon: somente os bens materiais e o status advindo <strong>de</strong>le que justificam a<br />

inserção na guerra.<br />

Segundo Irwin (2005, p. 48-50) a ocasião <strong>de</strong> performance é ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>terminante para<br />

a produção <strong>de</strong> significado <strong>de</strong>ssa poesia. Enquanto na Ilía<strong>da</strong> Sarpédon enuncia explicitamente<br />

os privilégios que ele e Glauco recebem por sua condição <strong>de</strong> a)/ristoi, na elegia marcial estes<br />

se mantém implícitos, posto que o próprio contexto, o simpósio aristocrático, revela os<br />

privilégios <strong>de</strong>ssa audiência.<br />

No poema <strong>de</strong> Calino, esse movimento se faz perceptível nos primeiros versos (vv.01-<br />

04, acima). A referência implícita ao aristocrático ambiente simposial é a <strong>de</strong>ixa para que o<br />

poeta dirija-se a seus interlocutores sob o prisma <strong>de</strong> uma atraente visão <strong>de</strong> mundo épica,<br />

comparando os neoi que tomam parte do simpósio aos heróis homéricos que recebem prêmios<br />

estritamente materiais por sua participação na guerra.<br />

Isso leva a consi<strong>de</strong>rar, a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir as características <strong>de</strong>sse herói épico, outro<br />

movimento do discurso <strong>de</strong> Sarpédon:<br />

b-)<br />

Meu amigo, se tendo fugido <strong>de</strong>sta guerra pudéssemos<br />

viver para sempre isentos <strong>de</strong> velhice e imortais,<br />

nem eu próprio combateria entre os dianteiros<br />

nem te man<strong>da</strong>ria a ti para a refrega glorificadora <strong>de</strong> homens. 325<br />

Mas agora, <strong>da</strong>do que presi<strong>de</strong>m os incontáveis <strong>de</strong>stinos<br />

<strong>da</strong> morte (kh=rej) <strong>de</strong> que nenhum homem po<strong>de</strong> fugir ou escapar,<br />

avancemos, quer outorguemos a glória a outro, ou ele a nós<br />

12 Cf.. ADKINS, s/d, p. 70-71.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

32


Sarpédon alu<strong>de</strong> a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se subtrair ao combate (vv. 322- 325), assim como<br />

Calino:<br />

polla/ki dhi+oth=ta fugw\n kai\ dou=pon a)ko/ntwn<br />

e)/rxetai e)n d’ oi)/kwi moi=ra ki/xen qana/tou.<br />

Muitas vezes aquele que escapa do combate e estrondo <strong>da</strong>s flechas<br />

retorna, e em casa a Moira <strong>da</strong> morte o encontra.<br />

É a inevitabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>de</strong>stino que força os heróis ao prélio: Se na exortação <strong>de</strong><br />

Sarpédon a morte surge personifica<strong>da</strong> na forma <strong>de</strong> kh=rej (“<strong>de</strong>stinos <strong>da</strong> morte” vv. 326-327),<br />

Calino refere-se à “Moira <strong>da</strong> morte” (moi=ra qana/tou) 13 .<br />

Nesse sentido, o guerreiro é valorizado sob dois aspectos: morto em combate, ele<br />

adquire renome: para Sarpédon, a morte nas mãos do inimigo “outorga a glória” (vv.328).<br />

Para os elegíacos marciais, o herói morto instaura-se na memória <strong>de</strong> uma comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> 14 :<br />

law=i ga\r su/mpanti po/qoj kratero/fronoj a)ndro\j<br />

qnh/skontoj, zw/wn d’ a)/cioj h(miqe/wn:<br />

w(/sper ga/r min pu/rgon e)n ofqalmoi=sin o(rw=sin: 20<br />

e)/r<strong>de</strong>i ga\r pollw\n a)/cia mou=noj e)w/n.<br />

Pois to<strong>da</strong> a tropa tem sau<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um forte varão<br />

que morre, e vivente, é digno <strong>de</strong> semi-<strong>de</strong>uses.<br />

Pois o vêem como uma torre diante <strong>de</strong> seus olhos, 20<br />

Pois faz, sendo só, obras dignas <strong>de</strong> muitos.<br />

Este herói que o poeta marcial exalta, tal qual na exortação dirigi<strong>da</strong> a Glauco (vv.312),<br />

é visto como se fosse um <strong>de</strong>us (vv.20) por causa <strong>de</strong> sua força excepcional e valor militar 15 ;<br />

13 Tanto na poesia épica quanto na elegia marcial a inevitabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do <strong>de</strong>stino é um dos principais argumentos<br />

para que o guerreiro se lance à luta. c.f o discurso <strong>de</strong> Heitor a Andrômaca em Il. 6. 487-9, e na elegia marcial:<br />

Tirteu, 11 W. 5- 6 (“ as negras Queres <strong>da</strong> morte”)<br />

14 c.f. a argumentação <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por Tirteu em 12 w. 23-34.<br />

15<br />

Embora a elegia marcial também alu<strong>da</strong> a uma ascendência aristocrática: em 1w. 13, Calino refere-se à<br />

“estirpe <strong>de</strong> imortais ancestres” (progo/nwn h) =i ge/noj a)qana/twn) o que segundo Adkins (1977, p. 66) po<strong>de</strong><br />

ser uma referência à tradição antiga <strong>da</strong>s famílias gregas nobres em traçar sua linhagem até um antepassado<br />

divino. Nesse aspecto, c.f. Tirteu 11. 1-2:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

33


para Sarpédon, o ato <strong>de</strong> combater na linha <strong>de</strong> frente é o que <strong>de</strong>monstra sua excelente força<br />

(vv.321-322):<br />

“Ignominiosos não são nossos reis que governam<br />

a Lícia, eles que comem as gor<strong>da</strong>s ovelhas 320<br />

e bebem o vinho selecto, doce como o mel; pois sua força também<br />

é excelente, visto que combatem entre os dianteiros dos Lícios”<br />

No fragmento <strong>de</strong> Calino, por sua vez, este herói é louvado também por seus atos, que<br />

se equiparam aos <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> guerreiro épico: sozinho ele é capaz <strong>de</strong> feitos dignos <strong>de</strong><br />

muitos (vv.21).<br />

Assim, a construção metódica, <strong>de</strong> um caráter heróico que se refere à poesia épica,<br />

po<strong>de</strong> sinalizar uma relação inextricável entre a elegia exortatória e a ocasião política em que<br />

ela foi produzi<strong>da</strong>.<br />

Ao passo que o herói <strong>da</strong> epopéia, melhor <strong>de</strong>ntre os seus quer por sua ascendência<br />

nobre, quer por seu valor marcial, assinala uma posição específica em um grupo social, o<br />

poeta elegíaco, ao atribuir papel similar a seus interlocutores – o grupo <strong>de</strong> aristocratas no<br />

simpósio – <strong>de</strong>fine a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa aristocracia e a justifica diante <strong>de</strong> um grupo amplo e<br />

emergente no período arcaico: a polis.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ADKINS, A.W.H. Callinus 1 and Tyrtaeus 10 as poetry. Classical Philology. New York,<br />

v.81, s/d, p.59-97.<br />

BOWIE, E, L. Early Greek elegy, symposium and public festival. JHS 106, 1985, p. 13-<br />

35.<br />

GREENHALGH, P. Patriotism in the <strong>Home</strong>ric world. Historia 21, 1972, p.528-537.<br />

IRWIN, E. Solon and Early Greek Poetry, The Politics of Exhortation. Cambridge:<br />

Cambridge University Press. 2005.<br />

a)ll ), (Hraklh=oj ga\r a)nikh/tou ge/noj e)ste/,<br />

qarsei=t: (...)<br />

Mas, porque <strong>de</strong> Heracles invencível sois <strong>da</strong> raça,<br />

Ousai! (...)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

34


HOMERO. Ilía<strong>da</strong>. Tradução do grego e introdução <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Lourenço. Lisboa: Cotovia.<br />

2007.<br />

LIDDELL-SCOTT, H.G. A Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1996.<br />

SNELL, B. A <strong>de</strong>scoberta do espírito. Tradução <strong>de</strong> Artur Mourão. Lisboa: Edições 70. 1992.<br />

WEST, M.L. Iambi et elegi graeci ante Alexandrum cantati. Oxford: Oxford University<br />

Press, 1974. vol. 2<br />

____________. Studies in Greek Elegy and Iambus. Berlin, New York: Walter <strong>de</strong> Gruyter,<br />

1974.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008<br />

35


A Perspectiva <strong>de</strong> Luciano <strong>de</strong> Samósata e a Perspectiva Nietzschiana acerca <strong>da</strong> Filosofia<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 36-41, 2008<br />

Priscila BUSE<br />

G – UFPR<br />

priscilabuzze@yahoo.com.br<br />

Este artigo consiste em uma análise que compara o pensamento <strong>de</strong> Luciano, expresso<br />

por meio <strong>da</strong> personagem Licino, no livro Hermótimo, com o <strong>de</strong> Nietzsche, no que condiz às<br />

críticas <strong>de</strong>ste em relação às crenças dogmáticas. Assim, não se preten<strong>de</strong> fazer uma<br />

interpretação propriamente literária, mas provar uma possível semelhança entre esses<br />

pensamentos.<br />

Embora muitos possam enten<strong>de</strong>r esta abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> forma anacrônica, analisar-se-ão<br />

as duas formas <strong>de</strong> pensamento, as quais não estão inseri<strong>da</strong>s em um tempo histórico, isto é, não<br />

se preten<strong>de</strong> situar o leitor <strong>de</strong>ste artigo nas circunstâncias históricas que envolvem os dois<br />

autores em questão. Desse modo, limita-se ao enredo e, em especial, a trechos do livro<br />

Hermótimo e <strong>da</strong> obra Além do Bem e do Mal 1 , <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Nietzsche, a fim <strong>de</strong> compará-los.<br />

A obra Hermótimo tem como personagens Licino, um questionador <strong>da</strong>s crenças<br />

filosóficas, e Hermótimo, seguidor <strong>da</strong> corrente estóica. O livro consiste em uma crítica aos<br />

diálogos comuns no âmbito <strong>da</strong> filosofia, sendo isso evi<strong>de</strong>nte em relação à própria forma<br />

estrutural <strong>da</strong> obra – em forma <strong>de</strong> diálogo retórico entre dois personagens – a qual imita<br />

algumas obras filosóficas, como por exemplo, as platônicas.<br />

A pretensão <strong>de</strong> Luciano, por meio <strong>da</strong> personagem Licino, é <strong>de</strong>monstrar a falta <strong>de</strong><br />

atenção <strong>da</strong>s pessoas que acreditam em coisas não evi<strong>de</strong>ntes, tal como o caminho <strong>da</strong> Virtu<strong>de</strong>,<br />

i<strong>de</strong>alizado por Hermótimo. No diálogo, Licino convence Hermótimo <strong>de</strong> que não há<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> filosófica, porquanto to<strong>da</strong>s as correntes filosóficas não passam <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>fesas mal fun<strong>da</strong>menta<strong>da</strong>s, o que po<strong>de</strong> ser observado quando a personagem Licino explica<br />

que, em meio a tantas correntes i<strong>de</strong>ológicas, não é possível saber qual <strong>de</strong>las é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira, já<br />

que, para tanto, seriam exigidos mais <strong>de</strong> cem anos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> ao estudo, assim, quando<br />

um filósofo <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> corrente critica a outro filósofo, essa crítica não passa <strong>de</strong><br />

uma recriminação infun<strong>da</strong><strong>da</strong>, pois aqueles que versam, por exemplo, sobre o estoicismo, não<br />

se <strong>de</strong>dicam ao platonismo, e por isso, não o conhecendo, não po<strong>de</strong>m o criticar a fim <strong>de</strong> fixar<br />

sua filosofia como a única Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

1 Cf. Referências Bibliográficas.


Licino fala que as crenças filosóficas não passam <strong>de</strong> aceitações <strong>da</strong>quilo que é<br />

quimérico, por tomarem como pressuposto a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma Virtu<strong>de</strong> universal, Ver<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

universal, Felici<strong>da</strong><strong>de</strong> plena, coisas que jamais foram evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong>s na mesma vi<strong>da</strong>, isto é, ele<br />

retrata que crer em tais coisas, jamais atingi<strong>da</strong>s por ninguém, é <strong>de</strong>svincular-se <strong>da</strong> própria vi<strong>da</strong><br />

em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> uma fantasia. A intenção <strong>de</strong> Luciano, a partir <strong>da</strong> fala <strong>da</strong> personagem Licino,<br />

não é a <strong>de</strong> <strong>de</strong>smerecer a filosofia, pelo contrário, ele <strong>de</strong>ixa evi<strong>de</strong>nte em Hermótimo que a<br />

filosofia i<strong>de</strong>al é aquela que versa sobre a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> e não, tal como os poetas, sobre o<br />

imaginário ou ficcional.<br />

É evi<strong>de</strong>nte, na obra Hermótimo, que Luciano enten<strong>de</strong> a filosofia como a prática <strong>da</strong><br />

teoria, ou seja, aquele que a teoriza <strong>de</strong>ve praticá-la; a filosofia é uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Para<br />

ilustrar o fato acima, po<strong>de</strong>-se referir, como exemplo, ao mestre <strong>de</strong> Hermótimo, o qual prega o<br />

Estoicismo – doutrina que enten<strong>de</strong> a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> plena do homem como o <strong>de</strong>sprendimento <strong>de</strong><br />

todo e qualquer prazer corporal, tanto em relação a paixões quanto em relação a riquezas – e,<br />

apesar disso, suas atitu<strong>de</strong>s não condizem com a teoria que segue. Licino, ao falar sobre a<br />

conduta do mestre estóico, relata que este, certa vez, cobrou <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus discípulos pelos<br />

seus ensinamentos, sendo que este tipo <strong>de</strong> ação, ou seja, a busca por riquezas, contradiz a<br />

teoria estóica. Além disso, é relatado também por Licino, outro episódio prático <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do<br />

mestre <strong>de</strong> Hermótimo que entra em contradição com os princípios do Estoicismo: o mestre<br />

esbaldou-se <strong>de</strong> bebi<strong>da</strong> em uma festa, na qual travou um <strong>de</strong>bate acerca <strong>de</strong> sua doutrina com um<br />

a<strong>de</strong>pto <strong>de</strong> outra escola filosófica. Como resultado, o mestre <strong>de</strong> Hermótimo venceu, restando<br />

ao outro não só a <strong>de</strong>rrota, mas uma gran<strong>de</strong> feri<strong>da</strong> na cabeça, ocasiona<strong>da</strong> pela falta <strong>de</strong><br />

argumentos do teorizador estóico. A partir disso, é possível perceber a explícita intenção <strong>de</strong><br />

Luciano em criticar a tradicional filosofia que não se enten<strong>de</strong> como uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, mas<br />

somente como uma teoria impraticável.<br />

Tendo em vista o que fora exposto, até então, a<strong>de</strong>ntra-se com a explicação <strong>de</strong> alguns<br />

aspectos do pensamento nietzschiano, fazendo a sua comparação com a crítica apresenta<strong>da</strong><br />

por Luciano <strong>de</strong> Samósata na obra Hermótimo.<br />

Nietzsche, em sua obra Além do Bem e do Mal, reflete sobre a função <strong>da</strong> filosofia e <strong>da</strong><br />

sua relação para com a vi<strong>da</strong>, sendo que essa reflexão é associável a <strong>de</strong> Luciano. O filósofo<br />

enten<strong>de</strong> que to<strong>da</strong> a crença engendra<strong>da</strong>, até então, não passou <strong>da</strong> aceitação do Na<strong>da</strong>, ou seja, as<br />

“Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s” filosóficas ou religiosas na<strong>da</strong> mais são do que um engano <strong>de</strong>fendido e fixado<br />

como a única possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> certeza.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 36-41, 2008<br />

37


Nietzsche, tal como Luciano, enten<strong>de</strong> que os pressupostos <strong>da</strong>s típicas doutrinas<br />

filosóficas ou religiosas são fantasias, pois não dispõem <strong>da</strong> evidência terrena, isto é, são<br />

suporta<strong>da</strong>s por coisas que estão além <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e como, para ambos, não há Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> fora <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, essas doutrinas têm como base a insoli<strong>de</strong>z supra-sensível.<br />

Tanto para Nietzsche como para Luciano, não há uma Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> absoluta, à medi<strong>da</strong> que<br />

a vi<strong>da</strong> não possui uma fixi<strong>de</strong>z, e sim, consiste na relação entre várias perspectivas, as quais,<br />

tal como as múltiplas correntes filosóficas, estão em constante atrito, pois to<strong>da</strong>s querem<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r aquilo que supõem certo. Nesse sentido, é extremamente difícil a a<strong>de</strong>são a alguma<br />

<strong>de</strong>las, já que antes <strong>de</strong> criticá-las, faz-se necessário um julgamento liberto <strong>de</strong> pressupostos ou<br />

conjecturas que po<strong>de</strong>riam vir a influenciar na afirmação ou negação <strong>de</strong>stas perspectivas.<br />

Para finalizar, apresenta-se outro aspecto <strong>de</strong> Nietzsche, que po<strong>de</strong> ser comparado a<br />

visão <strong>de</strong> Luciano. Nietzsche pensa que a filosofia é a Vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ser uma forma <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>, ou seja, o impulso <strong>da</strong> filosofia não é necessariamente o amor ao Saber universal e<br />

ilusório, inventado por todos aqueles que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um mundo fixo e feliz,<br />

no que condiz ao conhecimento pleno <strong>da</strong>s coisas. A filosofia i<strong>de</strong>al para Nietzsche, tal como<br />

para Luciano, é aquela que se atém ao aquém <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e que, <strong>de</strong>ssa forma, adiciona à teoria a<br />

prática.<br />

Assim, fazendo uso <strong>de</strong> trechos <strong>da</strong>s duas obras aqui cita<strong>da</strong>s, explicita-se a comparação,<br />

objetivo do artigo. Primeiramente, cita-se um trecho retirado <strong>da</strong> obra Hermótimo:<br />

LICINO: Y qué tipo <strong>de</strong> cosas, por los dioses, <strong>de</strong>cía, son las que hay allí, o en qué consiste<br />

la felici<strong>da</strong>d? Tal vez en algún tipo <strong>de</strong> riqueza, fama y placeres insuperables? [...]<br />

HERMÓTIMO: Sabiduría y valor y la propia bon<strong>da</strong>d y la justicia y el conocimiento<br />

cierto y cabal <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s las cosas tal y como ca<strong>da</strong> una <strong>de</strong> ellas es. Riquezas, honores y<br />

placeres y <strong>de</strong>más cosas corporales se sueltam abajo, pues se hace sin ellas la ascensión.<br />

[...] De igual modo estos hombres <strong>de</strong>spojados por la filosofia, cual si <strong>de</strong> un cierto fuego<br />

se tratara, <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s las cosas que parecen constituir objeto <strong>de</strong> admiración para el resto<br />

<strong>de</strong> los hombres que no tienen un punto <strong>de</strong> vista correcto, son felices en la cima, y no se<br />

acuer<strong>da</strong>n para na<strong>da</strong> <strong>de</strong> riqueza, fama o placeres y hasta se ríen <strong>de</strong> los que creen que todo<br />

eso existe (SAMÓSATA, 1992, p.30-31)<br />

No excerto acima, Hermótimo caracteriza o tipo <strong>de</strong> pessoa que pauta a vi<strong>da</strong> em<br />

“Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s” 2 não evi<strong>de</strong>ntes, pois enten<strong>de</strong> que a filosofia é movimenta<strong>da</strong> por um mundo feliz<br />

<strong>de</strong> plena sabedoria, no qual não se encontram as injustiças e as vai<strong>da</strong><strong>de</strong>s do mundo terreno.<br />

Hermótimo i<strong>de</strong>aliza um universo virtuoso que parece sobressair-se ao cotidiano vital. Assim,<br />

2 Hermótimo <strong>de</strong>signa ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro aquilo que aos olhos <strong>de</strong> Luciano é quimérico e fantasioso.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 36-41, 2008<br />

38


a figura <strong>de</strong>sta personagem contrapõe a <strong>de</strong> Licino, pois, para este, agir tal como Hermótimo é<br />

ser indiferente para com o que é a vi<strong>da</strong> mesma. Isto é evi<strong>de</strong>nte quando Licino in<strong>da</strong>ga acerca<br />

<strong>da</strong> Felici<strong>da</strong><strong>de</strong> e expõe que a vi<strong>da</strong> na<strong>da</strong> mais é do que a riqueza, a fama e os prazeres. Dessa<br />

forma, o trecho po<strong>de</strong> ser comparado ao aforismo 9, no qual Nietzsche faz uma crítica aos<br />

estóicos:<br />

9. Vocês querem viver ‘conforme a natureza’? Ó nobres estóicos, que palavras<br />

enganadoras! Imaginem um ser tal como a natureza, <strong>de</strong>smedi<strong>da</strong>mente pródigo, indiferente<br />

além dos limites, sem intenção ou consi<strong>de</strong>ração, sem misericórdia ou justiça, fecundo,<br />

estéril e incerto ao mesmo tempo, imaginem a própria indiferença como po<strong>de</strong>r – como<br />

po<strong>de</strong>riam viver conforme essa indiferença? Viver – isto não é precisamente querer ser<br />

diverso <strong>de</strong>ssa natureza? Viver não é avaliar, preferir, ser injusto, ser limitado, querer ser<br />

diferente? E supondo que seu imperativo ‘viver conforme a natureza’ signifique no fundo<br />

‘viver conforme a vi<strong>da</strong>’ – como po<strong>de</strong>riam não fazê-lo? (2007, p. 14)<br />

Esse aforismo retrata a inconformi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Nietzsche para com os estóicos, os quais<br />

negam a vi<strong>da</strong> em sua concretu<strong>de</strong> porque, paradoxalmente, <strong>de</strong>sejam não <strong>de</strong>sejar os prazeres e<br />

riquezas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Tanto para Luciano, por meio <strong>da</strong> fala <strong>de</strong> Licino, quanto para Nietzsche, a<br />

vi<strong>da</strong> na<strong>da</strong> mais é do que aquilo que nos aparenta ser, isto é, o bem e o mal, o justo e o injusto,<br />

a riqueza e a miséria, a tristeza e a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, sendo que o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> abster-se <strong>de</strong>ssas coisas<br />

procurando por uma fixação e universali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> consiste na indiferença para com esta, a<br />

partir <strong>da</strong> construção <strong>de</strong> um mundo inexistente. Os estóicos preten<strong>de</strong>m, como explícito no<br />

aforismo 9, viver conforme a natureza, ou seja, acham que a vi<strong>da</strong> plenamente feliz vem por<br />

meio dos estudos filosóficos e <strong>da</strong> abstinência <strong>de</strong> prazeres terrenos. No entanto, é evi<strong>de</strong>nte que<br />

Luciano e Nietzsche enten<strong>de</strong>m o caminho <strong>da</strong> Virtu<strong>de</strong> como um Na<strong>da</strong> inalcançável.<br />

Outro trecho, em que po<strong>de</strong>mos perceber uma possível semelhança entre os dois<br />

autores em questão, é o que citarei a seguir, retirado <strong>de</strong> Hermótimo:<br />

LICINO: Pues te disgustarás mucho menos, Hermótimo, si te paras a pensar que no<br />

eres el único que que<strong>da</strong>s al margen <strong>de</strong> las buenas esperanzas, sino que todos los que<br />

se <strong>de</strong>dican a la filosofia luchan, por así <strong>de</strong>cir, por la sombra <strong>de</strong> un burro. Pues, quién<br />

sería capaz <strong>de</strong> avanzar por todos aquellos caminos que yo mencionaba? Que es imposible<br />

lo afirmas tú incluso. Ahora me parece que actúas como si alguien llorara y culpara al<br />

Azar por no po<strong>de</strong>r subir al cielo o por no po<strong>de</strong>r cruzar buceando, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> zambullirse<br />

en el mar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Sicília a Chipre o porque no se levanta con alas que le lleven en el<br />

mismo día <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Grecia hasta la India (SAMÓSATA, 1992, p.78).<br />

Licino fala nesta passagem que todos aqueles que se <strong>de</strong>dicam à filosofia não passam<br />

<strong>da</strong> sombra <strong>de</strong> um asno, pois estes acreditam em coisas que não po<strong>de</strong>m ser apreendi<strong>da</strong>s na<br />

prática, somente po<strong>de</strong>ndo ser i<strong>de</strong>aliza<strong>da</strong>s. Hermótimo, por exemplo, age tal como um tolo<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 36-41, 2008<br />

39


quando crê ser possível atingir o caminho <strong>da</strong> Virtu<strong>de</strong>, o qual só é acessível por meio <strong>de</strong> seu<br />

imaginário. Hermótimo “luta pela sombra <strong>de</strong> um asno” por ter sua visão tapa<strong>da</strong> pela viseira<br />

dogmática, isto é, ele não consegue mais enxergar as coisas reais que acontecem à sua volta<br />

porque tem os olhos ofuscados pelo brilho <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, cuja acepção possibilitaria,<br />

no pensamento <strong>de</strong> Hermótimo, a construção <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> perfeita no sentido <strong>de</strong><br />

universalmente justa, bondosa e <strong>de</strong>sprendi<strong>da</strong> dos <strong>de</strong>sejos humanos, os quais para os estóicos,<br />

rebaixam a sabedoria dos homens a um grau ínfimo. Para ambos os autores aqui escrutados,<br />

esses i<strong>de</strong>ais comuns aos filósofos na<strong>da</strong> são, já que jamais foram comprovados, isto é, não<br />

consistem em uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> existência.<br />

É possível comparar a famosa frase <strong>de</strong> Luciano – “os filósofos lutam pela sombra <strong>de</strong><br />

um asno” – com o aforismo 8 <strong>de</strong> Nietzsche: “ 8. Em to<strong>da</strong> a filosofia há um ponto no qual a<br />

‘convicção’ do filósofo entra em cena: ou, para falar na linguagem <strong>de</strong> um antigo mistério:<br />

“adventavit asinus/pulcher et fortissimus [chegou o asno/ belo e muito forte]” (2007, p. 14).<br />

Nesse aforismo, Nietzsche explica que se chega a um ponto em que o filósofo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> convicção a fim <strong>de</strong> impor uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, tal como os estóicos tomam<br />

como pressuposto para a vi<strong>da</strong>: “viver conforme a natureza”. Neste momento, o filósofo não<br />

passa <strong>de</strong> um tolo advogado do Na<strong>da</strong>, pois estes homens que versam sobre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, certamente, versam sobre a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> engano, assim, agem <strong>de</strong> forma análoga a<br />

um asno porque não escrutam com cui<strong>da</strong>do acerca <strong>da</strong>quilo que “colocarão em cena”.<br />

Além disso, fica explícito na obra Hermótimo que alguns filósofos, como a própria<br />

personagem Hermótimo, consi<strong>de</strong>ram, <strong>de</strong> forma ingênua, estas coisas não evi<strong>de</strong>ntes, enquanto<br />

outros, como o mestre <strong>de</strong>ste, fazem do amor à sabedoria um meio para a conquista <strong>de</strong> fins que<br />

não a prática <strong>da</strong> filosofia. Hermótimo, antes <strong>de</strong> <strong>de</strong>siludir-se com o diálogo travado com<br />

Licino, não questionava a doutrina que estu<strong>da</strong>va, ele a aceitava inocentemente. No entanto,<br />

seu mestre ministrava a i<strong>de</strong>ologia estóica menos como uma forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> do que como uma<br />

profissão. Esta idéia também é evi<strong>de</strong>nte no pensamento nietzschiano, presente nos trechos a<br />

seguir:<br />

Falando seriamente, há boas razões para esperar que to<strong>da</strong> a dogmatização em filosofia,<br />

não importando o ar solene e <strong>de</strong>finitivo que tenha apresentado, não tenha sido mais que<br />

uma nobre infantili<strong>da</strong><strong>de</strong> e coisa <strong>de</strong> iniciantes (SAMÓSATA, 1992, p. 7).<br />

5. O que leva a consi<strong>de</strong>rar os filósofos com um olhar meio <strong>de</strong>sconfiado é que eles não se<br />

mostram suficientemente íntegros, enquanto fazem um gran<strong>de</strong> e virtuoso barulho tão logo<br />

é abor<strong>da</strong>do, mesmo que <strong>de</strong> leve, o problema <strong>da</strong> veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> (id. ibid., p.11)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 36-41, 2008<br />

40


Enfim, a partir <strong>da</strong>s possíveis comparações feitas até aqui, percebe-se a intrínseca<br />

relação entre Luciano e Nietzsche no que condiz a crítica inerente à filosofia, sendo que, com<br />

este artigo, surge a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma nova interpretação para a obra Hermótimo, na qual<br />

se estabelecesse um diálogo entre o antigo e o contemporâneo. Reitera-se que o artigo<br />

<strong>de</strong>senvolvido não teve como objetivo abor<strong>da</strong>r os contextos históricos concernentes a ca<strong>da</strong> um<br />

dos autores aqui estu<strong>da</strong>dos, pois aqui se enten<strong>de</strong> que a crítica <strong>de</strong> ambos acerca <strong>da</strong> aceitação<br />

dos pressupostos que sustentam correntes filosóficas possui argumentos semelhantes. A<br />

intenção não foi a <strong>de</strong> estabelecer um recorte fun<strong>da</strong>mentalmente literário na análise <strong>da</strong> obra<br />

Hermótimo, visto que a comparação foi feita em relação a um ponto, em especial, do<br />

pensamento <strong>de</strong> Nietzsche, como este enten<strong>de</strong> a função do filósofo e a Filosofia.<br />

Referências Bibliográficas<br />

NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia <strong>de</strong> Bolso, 2007.<br />

SAMÓSATA, L. Hermótimo. In:_______ Obras. Madri: Gredos, 1992. p. 24-89.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 36-41, 2008<br />

41


Introdução<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 42-48, 2008<br />

A amicitia na obra Politiques <strong>de</strong> l’amitié <strong>de</strong> Jacques Derri<strong>da</strong><br />

Natália Ferreira <strong>de</strong> CAMPOS<br />

Bacharel em História – IFCH – UNICAMP<br />

nataliafcampos@gmail.com<br />

Esse artigo surgiu <strong>de</strong> um trabalho mais amplo, como parte <strong>da</strong> minha monografia, “O<br />

conceito ciceroniano <strong>da</strong> amicitia e sua interpretação por Ronald Syme e Jacques Derri<strong>da</strong>”.<br />

Seu objetivo é o <strong>de</strong> analisar o uso que Jacques Derri<strong>da</strong> faz <strong>da</strong> amicitia no seu livro Politiques<br />

<strong>de</strong> l’amitié A análise então i<strong>de</strong>ntifica através <strong>de</strong> quais formas a retórica <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong> antiga foi<br />

reapropria<strong>da</strong>/ reinterpreta<strong>da</strong> e como tal reapropriação promove uma aproximação ou um<br />

afastamento entre essas duas épocas. Por fim, a pesquisa analisa como as diferentes<br />

perspectivas com que a amiza<strong>de</strong> clássica, em especial a romana, foi trata<strong>da</strong> e influenciou na<br />

construção <strong>de</strong> diferentes idéias e percepções <strong>de</strong>ssa socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Jacques Derri<strong>da</strong> e as Políticas <strong>da</strong> Amiza<strong>de</strong><br />

Jacques Derri<strong>da</strong>, francês, nascido na Algéria, é mais conhecido como o “criador” do<br />

<strong>de</strong>sconstrucionismo. Um dos seus trabalhos mais importantes é Gramatologia, no qual ele<br />

introduz alguns dos conceitos centrais <strong>da</strong> sua filosofia. Nele, Derri<strong>da</strong> discute a relação entre<br />

discurso/ fala e escrita, fazendo uma <strong>de</strong>sconstrução <strong>da</strong> oposição binária com que geralmente<br />

são trata<strong>da</strong>s. Ele trabalha com o pensamento <strong>de</strong> vários autores, principalmente Husserl e<br />

Hei<strong>de</strong>gger e sua filosofia influenciou, sobretudo, a crítica literária e a lingüística.<br />

O livro Politiques <strong>de</strong> l’amitié foi lançado em 1994 e é o resultado <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong><br />

palestras apresenta<strong>da</strong>s por Derri<strong>da</strong> durante os anos <strong>de</strong> 1988/ 89 que levavam este mesmo<br />

título. Versões um pouco diferentes e abrevia<strong>da</strong>s do texto já haviam sido publica<strong>da</strong>s em outras<br />

línguas (inglês, italiano) antes do francês.<br />

Como diz no próprio título, Derri<strong>da</strong> está interessado em discutir quais seriam essas<br />

políticas <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong>. Para isso, ele usa como fio condutor <strong>da</strong> obra uma citação atribuí<strong>da</strong> a<br />

Aristóteles que seria, “O mes amis, il n’y a nul amy” (O philoi, ou<strong>de</strong>is philos) 1 . Essa citação<br />

<strong>da</strong>ria o tom <strong>de</strong> todos os gran<strong>de</strong>s discursos sobre amiza<strong>de</strong> no Oci<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> Platão a Blanchot. O<br />

1 “Ó meus amigos, não existem amigos”.


autor discute – e questiona – a relação entre esses discursos <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong> e <strong>da</strong> família,<br />

argumentando que ambos sempre estiveram um ao lado do outro. Ele discute, então, a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma política que vá além <strong>da</strong> fraterni<strong>da</strong><strong>de</strong> (familiari<strong>da</strong><strong>de</strong>), e se tal política<br />

ain<strong>da</strong> “mereceria esse nome”. Para ele, política e família também são conceitos que<br />

normalmente não se separam, principalmente na <strong>de</strong>mocracia. O autor também interroga se<br />

essa familiarização tanto <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong> quanto <strong>da</strong> política não teria o objetivo <strong>de</strong> neutralizá-las.<br />

O texto forma-se então a partir <strong>da</strong> <strong>de</strong>sconstrução que Derri<strong>da</strong> passa a fazer dos<br />

diversos discursos existentes sobre a amiza<strong>de</strong>, ao mesmo tempo em que introduz suas próprias<br />

reflexões sobre o assunto. Derri<strong>da</strong> está interessado em enten<strong>de</strong>r a amiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo<br />

ontológico, mas ao mesmo tempo propor uma nova forma <strong>de</strong> relação <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse âmbito –<br />

justamente uma amiza<strong>de</strong> que “vá além <strong>da</strong> fraterni<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />

A philia e a amicitia<br />

Para introduzir sua análise, Derri<strong>da</strong> primeiro apresenta textos consi<strong>de</strong>rados canônicos<br />

sobre o assunto tratado, isto é, a amiza<strong>de</strong>. Eles consistem nos trabalhos <strong>de</strong> Aristóteles,<br />

principalmente as Éticas a Eu<strong>de</strong>mo e a Nicômaco, e <strong>de</strong> Cícero, o “Lélio, Sobre a Amiza<strong>de</strong>”. 2<br />

Segundo o autor, esse cânone teria fun<strong>da</strong>do todos os outros discursos sobre a amiza<strong>de</strong>,<br />

mesmo que em um primeiro momento estes pareçam inovadores. Então afirma:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 42-48, 2008<br />

Autre modèle <strong>de</strong> l’amitié, disions-nous. Mais sont-ils plus d’un? Et s’agitil<br />

d’une alternative? Y a-t-il vraiment <strong>de</strong>ux strucutures différentes, voire<br />

antagonists ou incompatibles? Elles s’impliquent peut-être l’une l’autre,<br />

ruse supplémentaire, au moment où elles paraissent s’exclure<br />

(DERRIDA, 1994. p. 308). 3<br />

Portanto, o modo como Derri<strong>da</strong> enten<strong>de</strong>/ lê esses textos antigos é extremamente<br />

importante, pois vai influenciá-lo na análise dos autores mo<strong>de</strong>rnos, como Montaigne,<br />

Nietzsche ou Schmitt 4 .<br />

2 Também são menciona<strong>da</strong>s algumas obras <strong>de</strong> Platão, como o Lisis e o Banquete, porém <strong>de</strong> forma periférica.<br />

3 Outro mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>, diríamos. Mas são eles mais <strong>de</strong> um? E tratam-se <strong>de</strong> uma alternativa? Existem<br />

mesmo duas estruturas diferentes, que sejam antagônicas ou incompatíveis? Talvez uma implique na outra, um<br />

ardil suplementar, no momento on<strong>de</strong> elas pareçam se excluir.<br />

4<br />

Talvez fosse melhor dizer que sua leitura dos autores mo<strong>de</strong>rnos é que o influenciará na análise <strong>de</strong>sses textos<br />

antigos.<br />

43


Sua base principal é Aristóteles, não só pelo fato do livro ser construído a partir <strong>de</strong><br />

uma frase atribuí<strong>da</strong> ao mesmo, mas também por consi<strong>de</strong>rá-lo como o primeiro discurso <strong>da</strong><br />

amiza<strong>de</strong> nos termos que viria a ser entendi<strong>da</strong> – isto é, o <strong>da</strong> familiari<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 42-48, 2008<br />

[...] Nous avons cru <strong>de</strong>voir commencer, précisement, par interroger le<br />

plus canonique du canonique, en ce lieu où se concentre pour nous, en<br />

Occi<strong>de</strong>nt, la puissance <strong>de</strong> signification maximale du povouir dominant, en<br />

sa plus sûre autorité [...] (Id. Ibid., p. 256) 5<br />

Isso coloca um primeiro problema que é o <strong>de</strong> homogeneizar os discursos <strong>da</strong><br />

Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, em especial os gregos e os romanos, como se fossem a mesma coisa. Isso fica<br />

claro quando se percebe que nenhum autor romano foi analisado <strong>de</strong> forma específica como<br />

acontece com Aristóteles. Inclusive o próprio Cícero, cujo epigrama 6 abre o livro, que não é<br />

avaliado com maior profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aliás, Cícero é tratado quase como um apêndice <strong>de</strong><br />

Aristóteles, pois no corpo do texto ele aparece geralmente para justificar e comprovar as<br />

afirmações <strong>de</strong>ste. O autor <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> lado as especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s não só <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> texto, mas também<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Além disso, não é feita uma problematização entre os dois textos: suas semelhanças<br />

são consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s como algo previamente estabelecido. Isto é complicado, pois o De Amicitia<br />

não é uma obra <strong>de</strong> filosofia, mas sim um opus oratorium (obra oratória), é apodítica (tem<br />

valor prescritivo). Essa diferença é muito importante se for consi<strong>de</strong>rado que Cícero não está<br />

preocupado em perguntar “o que é a amiza<strong>de</strong>”, mas sim, “como se vive a amiza<strong>de</strong>”. Um outro<br />

ponto a ser levantado é Cícero questionar logo no início <strong>de</strong> seu texto os gregos e o modo<br />

como entendiam a amiza<strong>de</strong>. Aliás, ele também <strong>de</strong>ixa claro que é justamente o oposto o que<br />

preten<strong>de</strong> fazer no seu Laelius <strong>de</strong> Amicitia consi<strong>de</strong>rando a amiza<strong>de</strong> na “prática”.<br />

Outro ponto a observar-se é a idéia <strong>de</strong> societas (socie<strong>da</strong><strong>de</strong>) que não é traduzível ao<br />

grego. Essa palavra <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> socius (aliado) e significa uma junção <strong>de</strong> pessoas/ aliados. No<br />

grego, pelo contrário, politikos é que <strong>de</strong>riva <strong>da</strong> palavra polis. A diferença é significativa, pois<br />

no primeiro caso é o conjunto <strong>de</strong> indivíduos que fun<strong>da</strong>menta a vi<strong>da</strong> em comum, enquanto que<br />

no segundo é a polis que dá base para a construção dos seus membros.<br />

5 [...] Nós acreditamos <strong>de</strong>ver começar, precisamente, interrogando o mais canônico do canônico, nesse lugar<br />

on<strong>de</strong> se concentra para nós, no Oci<strong>de</strong>nte, a potência <strong>de</strong> significação máxima do po<strong>de</strong>r dominante, em sua mais<br />

segura autori<strong>da</strong><strong>de</strong> [...].<br />

6 O epigrama é “Quocirca et absentes adsunt (...) et, quod difficilius dictu est, mortui vivunt”. Laelius De<br />

Amicitia (VII, 23). Por isso os amigos, mesmo ausentes estão próximos (...) e o mais difícil <strong>de</strong> ser dito, apesar <strong>de</strong><br />

mortos, vivem.<br />

44


Em sua análise, <strong>de</strong> Aristóteles e <strong>da</strong> philia, Derri<strong>da</strong> se concentra nas questões liga<strong>da</strong>s à<br />

relação com o outro e suas repercussões políticas. Ele cita então a <strong>de</strong>finição <strong>da</strong><strong>da</strong> por<br />

Aristóteles à amiza<strong>de</strong>, como “uma alma em dois corpos”. Segue então por discutir como se dá<br />

na amiza<strong>de</strong> a relação entre o eu e o outro, e para isso usa uma passagem do De Amicitia <strong>de</strong><br />

Cícero que diz, “Aquele que tem sob os olhos um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro amigo tem diante <strong>de</strong> si sua<br />

própria imagem i<strong>de</strong>al” (VI, 23), Derri<strong>da</strong> pergunta:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 42-48, 2008<br />

[...] l’ami, est-ce le même ou l’autre? Cicéron prefere le même [...] Or<br />

selon Cicéron, on projette ou reconnâit <strong>da</strong>ns l’ami vrai son exemplar, son<br />

doublé idéal, son autre soi-même, le même que soi en mieux. Parce qu’on<br />

le regar<strong>de</strong> nous regar<strong>de</strong>r, se regar<strong>de</strong>r ainsi, parce qu’on le voit gar<strong>de</strong>r<br />

notre image <strong>da</strong>ns les yeux, en verité <strong>da</strong>ns le nôtres, la survie alors est<br />

espérée, d’avance illuminée, sinon assurée, pour ce Narcisse qui rêve<br />

d’immortalité. Au <strong>de</strong>là <strong>de</strong> la mort, l’avenir absolu reçoit ainsi sa lumière<br />

extatique, il apparaît seulement <strong>de</strong>puis ce narcissisme et selon cette<br />

logique du même (Id. Ibid., p. 20). 7<br />

No entanto, o autor não coloca a problemática <strong>da</strong> construção <strong>da</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> nesse<br />

período abor<strong>da</strong>do. Aliás, ele evita essa questão quando discute a “lógica do mesmo” no texto<br />

<strong>de</strong> Cícero, <strong>da</strong>ndo a enten<strong>de</strong>r que esse “eu mesmo” (soi-même) citado é semelhante a um tipo<br />

<strong>de</strong> sujeito interiorizado, a um narcisismo. Isso é questionável, pois se po<strong>de</strong> afirmar que tanto<br />

na Grécia clássica quanto na Roma republicana, a consciência <strong>de</strong> si só se realiza no outro,<br />

pois é observando e conhecendo o outro (no caso o amigo) e suas ações, que se conhecerá a si<br />

mesmo. Somente na relação com o outro (livre) é que se torna possível para o sujeito<br />

diferenciar-se e reconhecer-se, pois a lembrança e a reputação são <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>ssa<br />

intersubjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Na amiza<strong>de</strong>, o indivíduo se faz outro, sai <strong>de</strong> si, se objetiva; é preciso tomar<br />

consciência do pensamento e <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do outro, para ter consciência do próprio<br />

pensamento e <strong>da</strong> própria ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, condições <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. A consciência <strong>de</strong> si é precedi<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> consciência do outro, a percepção do amigo é a forma privilegia<strong>da</strong> <strong>da</strong> consciência <strong>de</strong> si. No<br />

entanto, Derri<strong>da</strong> não leva em consi<strong>de</strong>ração a idéia <strong>de</strong> um sujeito que seja externo e que<br />

apresente diferenças significantes em relação ao sujeito mo<strong>de</strong>rno.<br />

7 [...] o amigo, é o mesmo ou é o outro? Cícero prefere o mesmo [...] Ora, segundo Cícero, nós projetamos ou<br />

reconhecemos no ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro amigo nosso exemplar, nosso duplo i<strong>de</strong>al, nosso outro “nós mesmos”, o mesmo que<br />

nós. Pois nós o olhamos a olhar-nos e <strong>de</strong>sse modo olhar a si mesmo, pois nós o vemos guar<strong>da</strong>r nossa imagem<br />

nos seus olhos, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> nos nossos. A sobrevi<strong>da</strong> então é espera<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já ilumina<strong>da</strong>, senão assegura<strong>da</strong>, por<br />

esse Narciso que sonha com a imortali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do outro lado <strong>da</strong> morte, o porvir absoluto recebe assim sua luz<br />

estática. Ela somente aparece <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse narcisismo e segundo essa lógica do mesmo.<br />

45


A leitura proposta por Derri<strong>da</strong>, que se foca nas continui<strong>da</strong><strong>de</strong>s dos discursos filosóficos<br />

relativos à amiza<strong>de</strong>, leva-o a ignorar, por vezes, rupturas importantes. Como afirma Ortega:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 42-48, 2008<br />

[...] A mais importante seria a substituição <strong>da</strong> antiga philia pelo agape e<br />

pelo amor ao próximo no cristianismo, que transformaria um vínculo<br />

afetivo, interpessoal, em uma relação abstrata e <strong>de</strong>spersonaliza<strong>da</strong> [...]<br />

(2001. p. 58)<br />

Primeiro, há uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> vocabulário. Por que a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> mudá-lo? A<br />

palavra amicitia/ philia era associa<strong>da</strong> a i<strong>de</strong>ais pagãos e os escritores cristãos procuravam<br />

outros termos que expressassem essa diferença. Isso é relevante, pois enquanto a amicitia<br />

refere-se a uma relação entre duas pessoas, o agape é um amor <strong>de</strong>vido a to<strong>da</strong>s as pessoas. É<br />

algo fun<strong>da</strong>mental, já que no contexto cristão, todos <strong>de</strong>vem ser amados como filhos <strong>de</strong> Deus ao<br />

contrário <strong>da</strong> amicitia que é um amor somente em relação ao amigo.<br />

A Importância do Cânone<br />

Por fim, uma última questão a ser abor<strong>da</strong><strong>da</strong> é a referente ao cânone e seu papel na<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em que ele se <strong>de</strong>senvolveu. Em um <strong>de</strong>bate 8 realizado com Derri<strong>da</strong>, sobre o livro<br />

Politiques <strong>de</strong> l’amitié, ele diz:<br />

So, you have to <strong>de</strong>al here with what I would call a phallocentric or<br />

phallogocentric concept of friendship. Which doesn't of course mean to<br />

me that the hegemony of this concept was so powerful that what it<br />

exclu<strong>de</strong>d was effectively totally exclu<strong>de</strong>d. It doesn't mean that a woman<br />

couldn't have the experience of friendship with a man or with another<br />

woman. It means simply that within this culture, this society, by which<br />

this prevalent canon was consi<strong>de</strong>red legitimate, accredited, then there<br />

was no voice, no discourse, no possibility of acknowledging these<br />

exclu<strong>de</strong>d possibilities. (1997, grifos meus) 9<br />

8 Politics and Friendship. A discussion with Jacques Derri<strong>da</strong> (Centre for Mo<strong>de</strong>rn French Thought, University of<br />

Sussex, 1 December 1997), em http://www.suxxes.ac.uk/Units/frenchthought/<strong>de</strong>rri<strong>da</strong>.htm.<br />

9 Portanto, você tem <strong>de</strong> li<strong>da</strong>r aqui com o que eu chamaria <strong>de</strong> um conceito falocêntrico <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong>. O que, é<br />

claro, não significa para mim que a hegemonia <strong>de</strong>sse conceito era tão po<strong>de</strong>rosa que o que ele excluía era<br />

efetivamente excluído por completo. Não significa que uma mulher não pu<strong>de</strong>sse experimentar a amiza<strong>de</strong> com<br />

um homem ou com outra mulher. Significa simplesmente que, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa cultura, <strong>de</strong>ssa socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, em que<br />

esse cânone prevalente era consi<strong>de</strong>rado legítimo, válido, não havia nenhuma voz, nenhum discurso,<br />

nenhuma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> reconhecimento <strong>de</strong>ssas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s excluí<strong>da</strong>s.<br />

46


Afirmar que não havia nenhuma voz, discurso ou possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que outros tipos <strong>de</strong><br />

amiza<strong>de</strong> – que contradissessem o cânone – fossem reconhecidos é questionável. Aliás, quando<br />

o autor garante tal fato dizendo que, “na cultura ou socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em que esse cânone prevalente<br />

era consi<strong>de</strong>rado legítimo”, ele não cita/ <strong>de</strong>senvolve para quem isso seria <strong>de</strong> fato. To<strong>da</strong> a<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>? No entanto, fazer isso é ignorar uma série <strong>de</strong> outras fontes arqueológicas e<br />

paleográficas que contestam esta afirmação e entrar na lógica <strong>de</strong>sses discursos consi<strong>de</strong>rados<br />

canônicos. Além disso, esses mesmos documentos atestam na sua argumentação a existência<br />

<strong>de</strong> várias outras concepções <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>. 10 Até mesmo a própria necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se enfatizar o<br />

que esses autores enten<strong>de</strong>m pela “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira amiza<strong>de</strong>” po<strong>de</strong> mostrar que tal conceito não era<br />

tão totalizante assim.<br />

Apesar <strong>de</strong> fazer a <strong>de</strong>sconstrução do discurso <strong>da</strong> amiza<strong>de</strong>, no que se refere aos autores<br />

antigos, Derri<strong>da</strong> dá uma interpretação gran<strong>de</strong>mente basea<strong>da</strong> em leituras posteriores dos<br />

mesmos, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s importantes <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les. Enfim, fica evi<strong>de</strong>nte<br />

a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do uso <strong>de</strong> fontes diversifica<strong>da</strong>s (arqueológicas, paleográficas) que possibilitem<br />

a inclusão na história <strong>da</strong>s mulheres, escravos, ci<strong>da</strong>dãos pobres ou mesmo <strong>da</strong>queles que<br />

diferissem <strong>da</strong> posição que se tornou cânone. Aliás, tornado cânone na maioria <strong>da</strong>s vezes por<br />

leituras posteriores <strong>de</strong>sses textos antigos. É somente historicizando esses conceitos – no caso<br />

a amiza<strong>de</strong> – que parecem universais e a-históricos, que se cria finalmente a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

se questionar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> contemporânea que busca na construção (<strong>de</strong> um) passado sua<br />

legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> e sua inevitabili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Referências Bibliográficas<br />

CÍCERO, Marco Túlio. Sobre a amiza<strong>de</strong>. Tradução: João Teodoro d’Olim Marote. Nova<br />

Alexandria, 2006.<br />

DERRIDA, Jacques. The Politics of Friendship. The Journal of Philosophy. Eighty-Fifth<br />

Annual Meeting American Philosophical Association, Eastern Division. Vol. 85, n o 11<br />

(Nov. 1988), pp. 632-644.<br />

10 Cícero no Laelius <strong>de</strong> Amicitia discute várias concepções diferentes do que seria a amiza<strong>de</strong>, manti<strong>da</strong>s por<br />

diversas escolas. Mesmo <strong>de</strong>saprovando-as isso mostra que o chamado “cânone” talvez não fosse tão prevalecente<br />

assim.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 42-48, 2008<br />

47


_________. Politiques <strong>de</strong> l’amitié – suivi <strong>de</strong> L’oreille <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger. Éditions Galillé. Paris<br />

1994.<br />

_________. Politics and Friendship. A discussion with Jacques Derri<strong>da</strong> (Centre for Mo<strong>de</strong>rn<br />

French Thought, University of Sussex, 1 December 1997), em<br />

http://www.suxxes.ac.uk/Units/frenchthought/<strong>de</strong>rri<strong>da</strong>.htm<br />

KONSTAN, David. A amiza<strong>de</strong> no mundo clássico. Editora Odysseus. São Paulo, 2005.<br />

ORTEGA, Francisco. Para uma Política <strong>da</strong> Amiza<strong>de</strong>: Arendt, Derri<strong>da</strong>, Foucault. Relume<br />

Dumará. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 2001. p.58<br />

ORTEGA, Francisco. Genealogias <strong>da</strong> Amiza<strong>de</strong>. Iluminuras. São Paulo, 2002.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 42-48, 2008<br />

48


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008<br />

Jules Laforgue: um Diálogo com o Clássico<br />

Aline Taís CARA<br />

PG – FCLAr – UNESP<br />

aline_cara@hotmail.com<br />

Jules Laforgue (1860-1887) foi o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntista/simbolista; suas características<br />

perpassam esses dois importantes movimentos literários.<br />

O Deca<strong>de</strong>ntismo é um pouco anterior ao Simbolismo, porém com teor mais<br />

pessimista, negativista. Os simbolistas foram inicialmente chamados <strong>de</strong> <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes pela<br />

proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> existente entre os dois movimentos, e há, nesse sentido, autores que consi<strong>de</strong>ram<br />

o Deca<strong>de</strong>ntismo e o Simbolismo dois nomes para uma mesma tendência. E não é difícil<br />

enten<strong>de</strong>r o motivo pelo qual esses dois movimentos po<strong>de</strong>m ser confundidos. Como diz Peyre<br />

(1983), nos últimos <strong>de</strong>cênios do século XIX, a literatura simbolista prezou todo o cansaço <strong>de</strong><br />

viver, o langor, o isolamento <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> tecnológica consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> materialista. Isso faz com<br />

que muitos observadores e historiadores <strong>de</strong>nominem os escritos que contêm tais<br />

características como “<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntistas”, ou seja, elaborados pelos “<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes”, termo existente<br />

para <strong>de</strong>nominar os escritores a<strong>de</strong>ptos do pessimismo e <strong>da</strong> <strong>de</strong>cadência iminente. Os naturalistas<br />

tentavam convencer o mundo literário <strong>de</strong> que na<strong>da</strong> mais restava à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> roí<strong>da</strong> pela<br />

<strong>de</strong>cadência, pelo esgotamento; as únicas alternativas eram <strong>de</strong>smoronar ou rejuvenescer<br />

através <strong>da</strong> religião, do ocultismo ou <strong>da</strong> barbárie. Essa <strong>de</strong>cadência, ou melhor, a noção <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte tem origens muito antigas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a que<strong>da</strong>, a <strong>de</strong>cadência do Império Romano.<br />

O homem <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte é aquele que surge, segundo Gomes (1994), <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma grave<br />

crise social do fim do século XIX. A Revolução Industrial que acontecia nessa época<br />

propiciava situações como o inchamento <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a obsessão com a mo<strong>da</strong>, a dúvi<strong>da</strong><br />

quanto aos métodos científicos, o sentimento <strong>de</strong> que a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> estava se tornando ca<strong>da</strong> vez<br />

mais materialista. Isso aguçava a crise latente e provocava a impressão e o sentimento <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>cadência, <strong>de</strong> negativismo. O pessimismo <strong>da</strong> época cultiva o “<strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte”, aquele que volta<br />

as costas à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao mundo grosseiro e hostil, aquele que se isola em sua torre <strong>de</strong> marfim<br />

e que busca sensações mais refina<strong>da</strong>s.<br />

Em 1885, havia <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes e simbolistas, muitos <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes e<br />

poucos simbolistas. A palavra <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte fora pronuncia<strong>da</strong> a palavra<br />

simbolista ain<strong>da</strong> não; falávamos em símbolo, não criáramos a palavra<br />

genérica simbolismo e os <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntes e os simbolistas eram então coisas<br />

completamente diferentes. A palavra <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte fora cria<strong>da</strong> por jornalistas,<br />

alguns a haviam, diziam eles, ajuntado como os goeux <strong>da</strong> Holan<strong>da</strong> haviam


abor<strong>da</strong>do o epíteto injurioso; nem tão injurioso nem tão inexato<br />

(MORETTO, 1989, p. 163).<br />

Como diz Moretto (1989), há, nesse momento, uma contradição: a geração <strong>de</strong> 1880<br />

sente um frio <strong>de</strong> <strong>de</strong>cadência e <strong>de</strong> morte, mas busca algo diferente, a renovação. Instaura-se,<br />

então, uma luta contra as escolas parnasiana e naturalista, contra o aca<strong>de</strong>mismo poético. E<br />

assim, o Deca<strong>de</strong>ntismo segue a linha do i<strong>de</strong>alismo.<br />

Em abril <strong>de</strong> 1886, Anatole Baju fundou o jornal Le déca<strong>de</strong><strong>de</strong>nt littéraire et artistique e<br />

publicou o manifesto Aux lecteurs. Segundo Telles (1992), o movimento <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>ntista<br />

terminaria três anos <strong>de</strong>pois, confundindo-se com o Simbolismo.<br />

O Simbolismo também se opõe ao Parnasianismo buscando renovação, apesar <strong>de</strong><br />

muitos simbolistas terem nascido em meio aos parnasianos, como fica bem claro em Martino<br />

(1925). O movimento foi um vento <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> rompendo com a tradição vigente. Teve a<br />

música como gran<strong>de</strong> influência e alia<strong>da</strong>, sendo Wagner o nome <strong>de</strong> maior relevância, por sua<br />

<strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> novas combinações <strong>de</strong> comunicação artística. A influência <strong>de</strong> Wagner foi tão<br />

importante quanto a <strong>de</strong> qualquer poeta, pois a música tem papel significativo no movimento<br />

<strong>de</strong>vido ao <strong>de</strong>sejo dos simbolistas: elevar a poesia à condição <strong>de</strong> música, a mais subjetiva <strong>da</strong>s<br />

artes. Além disso, a in<strong>de</strong>finição é um traço marcante (para POE) <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira expressão<br />

musical; e a poesia simbolista é o maior exemplo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>finição. A poesia para os simbolistas<br />

era o encontro com o “eu” mais profundo do poeta, um “eu” diferente do romântico na<br />

medi<strong>da</strong> em que não era envolto <strong>de</strong> sentimentalismos e suspiros, era o “eu” mais interior e<br />

mais secreto que po<strong>de</strong> existir. Wilson (1967) diz que, algumas vezes, os simbolistas fizeram<br />

<strong>da</strong> poesia algo tão privativo do poeta que ela se tornou incomunicável ao leitor. E isso foi bem<br />

notado e ironizado por Jules Laforgue.<br />

Os românticos tiveram também consi<strong>de</strong>rável influência no movimento, sobretudo<br />

Edgar Allan Poe, bastante apreciado por Bau<strong>de</strong>laire. Segundo Wilson (1967), o que torna Poe<br />

aceitável para os franceses é o que o distinguia dos outros românticos <strong>de</strong> língua inglesa, ou<br />

seja, seu interesse pela teoria estética. O Romantismo foi extremamente revolucionário, é nele<br />

que se inicia a mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> literária. E Laforgue apresenta muitas <strong>da</strong>s características <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> em sua obra: ruptura, dissonância, surpresa, crítica, etc.<br />

O movimento simbolista vingou na França entre 1885 e 1895, período em que se<br />

formou um cénacle que publicou manifestos, revistas literárias e atraiu para Paris poetas e<br />

literatos <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as partes do Oci<strong>de</strong>nte. Os gran<strong>de</strong>s poetas franceses do século XIX,<br />

Bau<strong>de</strong>laire, Verlaine, Rimbaud e Mallarmé po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados antecipadores do<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 50


movimento que teve, entre seus inúmeros poetas, Jules Laforgue como o nome significativo<br />

que foi retomado no século XX pelas características particulares <strong>de</strong> sua obra.<br />

O Simbolismo espalhou-se pela Europa, Ásia e América no século XX, como aponta<br />

Balakian (2000). Tem seu marco antecipador com a publicação <strong>de</strong> Les Fleurs du Mal, <strong>de</strong><br />

Bau<strong>de</strong>laire, em 1857, obra que provocou gran<strong>de</strong> escân<strong>da</strong>lo na época, pois rompeu com temas<br />

consi<strong>de</strong>rados tabus e buscou criar uma nova poesia.<br />

Observa-se que o Simbolismo cultiva o mistério, o vago, o indizível, o sonho, o<br />

invisível, seus poetas situam-se em “torres <strong>de</strong> marfim”, à margem <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois não<br />

encontram nela o seu lugar; chegam a ser chamados <strong>de</strong> nefelibatas, ou seja, aqueles que vivem<br />

nas nuvens. Por isso agem como <strong>da</strong>ndy, tentando chocar a socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Empregam o<br />

cromatismo, a sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> e o impressionismo para tornar sua poesia mais subjetiva. Não<br />

dizem, sugerem e esperam ser <strong>de</strong>cifrados por seus leitores, pois, para eles, o poeta <strong>de</strong>ve ser<br />

um vi<strong>de</strong>nte, ter o dom <strong>de</strong> captar os segredos escondidos em meio aos símbolos, à maneira do<br />

que sugere o poema “Correspon<strong>da</strong>nces” <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire (1857). Simbolismo vem <strong>de</strong><br />

“símbolo”, o que <strong>de</strong>monstra a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s obras escritas sob a luz <strong>de</strong>sse movimento. Os<br />

símbolos são, via <strong>de</strong> regra, arbitrariamente escolhidos pelo poeta para representarem suas<br />

idéias. Insinuar coisas ao invés <strong>de</strong> formulá-las <strong>de</strong>clara<strong>da</strong>mente é apontado como um dos<br />

traços mais marcantes do movimento.<br />

To<strong>da</strong>via, o Simbolismo teve, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, duas vertentes. Uma <strong>de</strong>las, menos estu<strong>da</strong><strong>da</strong>,<br />

a “coloquial-irônica”, segundo <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Wilson (1967), é representa<strong>da</strong> por Laforgue e<br />

Corbière (ambos foram incluídos no movimento simbolista por T. S. Eliot, que enxergou na<br />

obra <strong>de</strong>les uma poesia tão representativa quanto a <strong>de</strong> Bau<strong>de</strong>laire, Rimbaud, Verlaine e<br />

Mallarmé). Essa corrente, diferente <strong>da</strong> “sério-estética”, que <strong>de</strong>screvemos anteriormente, não<br />

queria <strong>da</strong>r um sentido mais puro às palavras, ao contrário, pretendia colocar em confronto as<br />

torres <strong>de</strong> marfim e o mundo fin-<strong>de</strong>-siècle; ela preocupava-se, ain<strong>da</strong>, com o cotidiano e o<br />

tematizava. É sob ela que se pautam os recursos utilizados nas composições <strong>de</strong> Laforgue. Este<br />

possui uma escrita inovadora, em que se vê a presença <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> ironia, do humor e <strong>da</strong><br />

crítica. Ele consegue unir o incompatível, o que parece ser radicalmente diferente: a poesia e o<br />

humor. Além disso, utiliza a paródia, a alegoria, o pastiche e a caricatura para <strong>da</strong>r ain<strong>da</strong> mais<br />

efeito a suas criações.<br />

Laforgue nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1960; contudo, viveu anos na França e<br />

compôs seus escritos em francês; traduziu também autores como Walt Whitman. Faleceu<br />

muito jovem, com apenas 27 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apesar disso, <strong>de</strong>ixou uma rica obra literária<br />

repleta <strong>de</strong> inovações.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 51


É possível perceber algumas constantes na obra <strong>de</strong> Laforgue: a ironia, a paródia, a<br />

procura por formas orais, a criação <strong>de</strong> novas palavras e a citação <strong>de</strong> nomes e obras<br />

conheci<strong>da</strong>s, inclusive clássicas. É fato dizer que a obra <strong>de</strong> Jules Laforgue é rica em recursos<br />

estilísticos e em vocabulário; há forte presença dos mitos, <strong>da</strong>s len<strong>da</strong>s e <strong>da</strong>s cantigas. O escritor<br />

cria, com maestria, uma linguagem própria e, através <strong>de</strong> seus neologismos, <strong>da</strong> dissonância e<br />

<strong>da</strong> quebra <strong>de</strong> expectativa, impressiona os leitores e <strong>de</strong>monstra sua relevância literária.<br />

A erudição <strong>de</strong> Jules Laforgue, seu conhecimento <strong>da</strong>s artes e <strong>da</strong> literatura e os recursos<br />

utilizados na confecção <strong>de</strong> seus poemas tornam os textos <strong>de</strong>ste autor extremamente<br />

complexos. É necessário um intenso trabalho investigativo, gran<strong>de</strong> atenção às palavras, que<br />

po<strong>de</strong>m ter significados diferentes dos usuais, atenção às possíveis ironias e paródias, enfim,<br />

<strong>de</strong>sconfiar sempre <strong>de</strong> mensagens camufla<strong>da</strong>s ou escondi<strong>da</strong>s por <strong>de</strong>trás <strong>da</strong>s palavras.<br />

Dentre os recursos utilizados por Laforgue, a recorrência dos mitos e nomes grecoromanos<br />

é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância. O poeta faz uso constante do mundo clássico para enfatizar,<br />

justificar e vali<strong>da</strong>r uma <strong>de</strong> suas principais características: a ironia.<br />

Ironia é pressuposição; a posição intermediária do autor entre o sério e o ato <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smascarar; um contraste transparente entre a mensagem literal e a mensagem ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira.<br />

Traz consigo a franqueza, a zombaria, a sátira, a crítica. O poeta faz uso <strong>da</strong> ironia inclusive<br />

enquanto parodia. Mas a ironia po<strong>de</strong> ser somente do autor, po<strong>de</strong> estar apenas nas entrelinhas<br />

do texto, ou ain<strong>da</strong>, apenas na mente que a i<strong>de</strong>alizou. Segundo Duarte (2006), o autor não se<br />

coloca explicitamente em sua obra, ele adota a postura <strong>de</strong> um <strong>de</strong>miurgo. E, apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as<br />

técnicas existentes, ca<strong>da</strong> autor tem sua própria ironia. Por isso, juntamente com os traços <strong>da</strong><br />

orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ironia torna a poesia <strong>de</strong> Laforgue ain<strong>da</strong> mais complexa.<br />

E, nesse contexto, está inserido o mito. É difícil <strong>de</strong>finirmos exatamente o que<br />

impulsiona o aparecimento <strong>de</strong> um mito. Muitos fatos que não possuem explicação imediata,<br />

crenças, costumes tornam-se mitos; normalmente representam relações entre os seres. Mas o<br />

que não se po<strong>de</strong> contestar é sua ligação direta com a palavra. Em grego, inclusive, o termo<br />

mito já foi sinônimo <strong>de</strong> palavra. E uma palavra forte, cristaliza<strong>da</strong>, duradoura, que muitos<br />

perpassa os tempos e as culturas.<br />

Jules Laforgue foi um escritor extremamente criativo. Suas construções frasais e a<br />

escolha <strong>de</strong> termos para suas composições impressionam os estudiosos. E uma <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s<br />

curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua obra é o uso bastante peculiar do universo clássico. O intuito <strong>de</strong> fazer uso<br />

dos mitos greco-romanos é o <strong>de</strong> <strong>de</strong>ssacralizá-los, <strong>de</strong>smistificá-los, <strong>de</strong>sviá-los burlescamente,<br />

acentuar a ironia expressa.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 52


Os livros utilizados neste estudo são as duas últimas composições em verso do<br />

escritor: L’Imitation <strong>de</strong> Notre-Dame la Lune e Des Fleurs <strong>de</strong> Bonne Volonté. O poema<br />

escolhido para exemplificar as menções clássicas é <strong>da</strong> primeira obra cita<strong>da</strong>.<br />

DIMANCHES Nº 2<br />

Le Dimanche on se plaît<br />

À dire un chapelet<br />

À ses frères <strong>de</strong> lait.<br />

Orphée, ô jeune Orphée!<br />

Serials <strong>de</strong>s coriphées<br />

Aux soirs du fleuve Alphée…<br />

Parcifal, Parcifal!<br />

Éten<strong>da</strong>rt virginal<br />

Sur les ramparts du mal…<br />

Prométhée, Prométhée!<br />

Phrase répercutée<br />

Par les siècles athées...<br />

Nabucodonosor!<br />

Moloch <strong>de</strong>s âges d’or<br />

Régissez-nous encor?...<br />

Et vous donc, filles d’Ève,<br />

Soeurs <strong>de</strong> lait, soeurs <strong>de</strong> sève,<br />

Des <strong>de</strong>stines qu’on se rêve!<br />

Salomé, Salomé!<br />

Sarcophage embaumé<br />

Où dort maint Bien-Aimé…<br />

Ophélie toi surtout<br />

Viens moi par ce soir d’août<br />

Ce sera entre nous.<br />

Salammbo, Salammbo!<br />

Lune au chaste halo<br />

Qui laves nos tombeaux...<br />

Gran<strong>de</strong> soeur, Messaline!<br />

Ô panthère câline<br />

Griffant nos mousselines…<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 53


Oh! même Cendrillon<br />

Reprisant ses haillons<br />

Au foyer sans grillon…<br />

Ou Paul et Virginie,<br />

Ô vignette bénie<br />

Des ciels <strong>de</strong>s colonies...<br />

⎯Psyché, folle Psyché,<br />

feu-follet du péché,<br />

vous vous ferez moucher!…<br />

DOMINGOS Nº 2<br />

No domingo exerço<br />

Dizer o meu terço<br />

Às irmãs <strong>de</strong> berço.<br />

Orfeu, belo Orfeu!<br />

Harém, corifeu<br />

Das margens do Alfeu...<br />

Jovem Parsifal!<br />

Pendão virginal<br />

Nos muros do mal...<br />

Preso Prometeu!<br />

Plá que percorreu<br />

Séculos ateus...<br />

Nabuco’nosor<br />

Moloch-esplendor<br />

Nosso imperador?<br />

Vós filhas <strong>de</strong> Eva<br />

Irmãs, berço e seiva,<br />

Destino que enleva!<br />

Salomé <strong>de</strong> Na<strong>da</strong>!<br />

Múmia embalsama<strong>da</strong><br />

Dormem as ama<strong>da</strong>s...<br />

Ofélia <strong>de</strong> tudo<br />

Vin<strong>de</strong> a mim (outubro)<br />

Sou surdo e sou mudo.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 54


Casta Salambô!<br />

A lua e seu halo,<br />

Lava meu mantô...<br />

Irmã Messalina!<br />

Ó pantera fina<br />

Rasga musselinas...<br />

E tu Cin<strong>de</strong>rela<br />

Reprisa a novela<br />

Palco sem janela!<br />

Ou Paulo e Virgínia<br />

Vinheta bendita<br />

Dos céus <strong>da</strong>s colônias...<br />

Ó louca psique!<br />

Pecado-nenê<br />

Sem quê nem pra quê...<br />

(Tradução <strong>de</strong> Régis Bonvicino)<br />

Esse poema foi <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente selecionado para ilustrar um dos recursos <strong>de</strong> Laforgue: a<br />

menção <strong>de</strong> obras, <strong>de</strong> autores, <strong>de</strong> mitos, <strong>da</strong> tradição oral, entre outros, fazendo com que o leitor<br />

precise realizar um aprofun<strong>da</strong>do trabalho investigativo. Essa é uma característica <strong>da</strong><br />

mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> literária. A poesia se torna mais complexa, repleta <strong>de</strong> recursos, <strong>de</strong><br />

intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>s; o autor precisa, então, como nunca do leitor para <strong>de</strong>cifrar suas<br />

composições, mas <strong>de</strong> um leitor i<strong>de</strong>al, um leitor que conheça os termos aos quais o poeta faz<br />

alusão para <strong>da</strong>r vi<strong>da</strong> às imagens e às comparações. Primeiramente, vale ressaltar que Laforgue<br />

escreveu muitos poemas batizados dimanches, os domingos. Domingo é o dia <strong>da</strong> inação, do<br />

tédio, do <strong>de</strong>scanso, no regime capitalista. É uma forte crítica à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao materialismo, ao<br />

progresso que gera miséria e <strong>de</strong>cadência, à vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente agita<strong>da</strong>. O domingo <strong>de</strong><br />

Laforgue não é visto como um dia <strong>de</strong> lazer e sim como um dia <strong>de</strong> extremo tédio, <strong>de</strong><br />

pessimismo e cansaço. Po<strong>de</strong>mos notar, com essas linhas, como o escritor está inserido no<br />

Deca<strong>de</strong>ntismo, valendo-se <strong>de</strong> características e do espírito <strong>de</strong> revolução que norteiam esse<br />

movimento.<br />

Na primeira estrofe, vemos o domingo ligado à religião por meio <strong>da</strong> referência à<br />

oração do terço. É a continuação <strong>da</strong> ironia implícita no título do poema.<br />

Na segun<strong>da</strong> estrofe, há referência a Orfeu e Alfeu. Ambos os nomes não são parecidos<br />

apenas na rima; referem-se a mitos gregos. Orfeu era poeta e músico, o maior músico que já<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 55


existiu; tudo acalmava com sua lira. Contudo, apaixonou-se por Eurídice, que morreu. Orfeu,<br />

por meio <strong>da</strong> melancolia <strong>de</strong> sua música, consegue chegar ao mundo dos mortos e convencer<br />

Ha<strong>de</strong>s e Perséfone a <strong>de</strong>ixá-lo levar a ama<strong>da</strong> novamente até o mundo dos vivos. Ha<strong>de</strong>s aceita<br />

conce<strong>de</strong>r seu <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o músico não olhasse para trás. Orfeu segue firme, tocando,<br />

mas, por um instante, vira-se e per<strong>de</strong> Eurídice para sempre. Posteriormente, é morto e,<br />

finalmente, encontra-se com a ama<strong>da</strong>.<br />

Alfeu é o nome <strong>de</strong> um rio <strong>da</strong> Grécia. Segundo a mitologia, Alfeu apaixonou-se pela<br />

ninfa Aretusa e a perseguiu até a Sicília por <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> terra. Acabou unindo-se a ela que havia<br />

sido metamorfosea<strong>da</strong> em uma fonte.<br />

Aparece também a figura do corifeu, o chefe do coro no teatro antigo. O corifeu é a<br />

pessoa que mais se distingue, que mais se <strong>de</strong>staca, é o chefe, o cabeça, o mestre.<br />

Essas figuras não são cita<strong>da</strong>s aleatoriamente. Orfeu e Alfeu são personagens<br />

transgressores, que não aceitaram a situação em que se encontravam, não aceitaram a per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

ama<strong>da</strong>. Este espírito <strong>de</strong> contestação vem vali<strong>da</strong>r a inserção do escritor no Deca<strong>de</strong>ntismo e no<br />

Simbolismo - apesar <strong>de</strong> que, os movimentos aos quais po<strong>de</strong>mos enquadrar Laforgue, também<br />

são ironizados por ele, sobretudo o segundo. É produzi<strong>da</strong> a ironia, a crítica ao mundo<br />

mo<strong>de</strong>rno, através <strong>da</strong> inserção <strong>de</strong> figuras do mundo antigo.<br />

Na terceira estrofe, há referência a Parcifal. Esse é o nome <strong>de</strong> uma ópera em três atos<br />

do compositor alemão Richard Wagner, com libreto do próprio, além <strong>de</strong> ser herói <strong>de</strong><br />

romances <strong>de</strong> cavalaria <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média. Percebemos, nessas duas estrofes, como Laforgue<br />

po<strong>de</strong> ser enquadrado entre os simbolistas, como a música tem sua significativa relevância, e<br />

como está diretamente relaciona<strong>da</strong> com a poesia.<br />

Prometeu aparece na quarta estrofe. Prometeu, titã grego, é uma figura transgressora,<br />

revolucionária, que roubou o fogo divino <strong>de</strong> Zeus e o entregou aos homens, que lhes <strong>de</strong>u a<br />

possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do conhecimento. É um mito forte e muito abor<strong>da</strong>do por diversos autores <strong>de</strong><br />

diferentes movimentos literários. É uma <strong>da</strong>s figuras mais contestadoras, o que vem ao<br />

encontro do espírito crítico <strong>de</strong> Jules Laforgue.<br />

Na quinta estrofe, encontramos personagens liga<strong>da</strong>s à religião, tema insinuado na<br />

primeira estrofe e que está sempre presente nos poemas laforguianos. Nabucodonosor foi o rei<br />

<strong>da</strong> Babilônia, muito conhecido pelos seus gran<strong>de</strong>s feitos: a conquista <strong>de</strong> Judá, a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong><br />

Jerusalém e a construção dos Jardins Suspensos <strong>da</strong> Babilônia. Na Bíblia, é um personagem<br />

soberbo e orgulhoso. E Moloch, na tradição bíblica, é o nome do <strong>de</strong>us ao qual os amonitas,<br />

uma etnia <strong>de</strong> Canaã, sacrificavam seus recém-nascidos jogando-os em uma fogueira. Também<br />

é o nome <strong>de</strong> um <strong>de</strong>mônio na tradição cabalística. Temos, então, personagens <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 56


<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m que, justamente pelas características cita<strong>da</strong>s, ironizam os mitos e a tradição<br />

religiosa.<br />

Na sexta estrofe aparece Eva, outra transgressora em busca do conhecimento <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />

as coisas, assim como Prometeu. É a primeira mulher <strong>da</strong> humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, segundo a tradição<br />

ju<strong>da</strong>ico-cristã; foi quem corrompeu Adão <strong>da</strong>ndo-lhe a maçã que lhe foi ofereci<strong>da</strong> pela<br />

serpente; é a causadora do pecado original, em busca <strong>da</strong> sabedoria suprema. Vem reforçar a<br />

idéia <strong>de</strong> revolução, <strong>de</strong> não aceitação <strong>da</strong>s regras. Mais uma vez, a visão que se quer mostrar <strong>da</strong><br />

religião – e do mito em geral - é a <strong>de</strong> orgulho, po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong>sobediência.<br />

O sétimo parágrafo é marcado por uma figura bíblica polêmica: Salomé. Sobrinha do<br />

rei Hero<strong>de</strong>s, foi responsável por <strong>de</strong>capitarem João Baptista - influencia<strong>da</strong> pela mãe que<br />

mantinha um relacionamento extraconjugal com Hero<strong>de</strong>s. Tinha 16 anos <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong> quando<br />

<strong>da</strong>nçou na presença <strong>de</strong> Hero<strong>de</strong>s, fun<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> Tibería<strong>de</strong>s, e pediu-lhe, em segui<strong>da</strong>, a cabeça do<br />

profeta em uma ban<strong>de</strong>ja <strong>de</strong> prata.<br />

Investigando as figuras, é possível estabelecer uma relação entre elas e a temática do<br />

poema, crítico <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu título. Não po<strong>de</strong>ria ser melhor ilustrado senão pela inserção <strong>de</strong><br />

personagens tão transgressores. O domingo do tédio, a crítica à mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong> e aos<br />

acomo<strong>da</strong>dos é reforça<strong>da</strong> pelos nomes escolhidos e inseridos neste poema. Como já dito,<br />

Laforgue utiliza as figuras míticas a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>ssacralizá-las, mostrar o lado transgressor e <strong>da</strong>r<br />

vali<strong>da</strong><strong>de</strong> a suas ironias escritas. Criticar o mundo mo<strong>de</strong>rno com figuras do mundo antigo não<br />

é novi<strong>da</strong><strong>de</strong>, outros já o fizeram; to<strong>da</strong>via, criticar o mundo mo<strong>de</strong>rno ironizando as figuras<br />

antigas é muito interessante, é uma ironia feita com outras ironias, com ironias críticas.<br />

Laforgue utiliza seus conhecimentos <strong>da</strong>s artes em geral e <strong>da</strong> literatura para ironizar a própria<br />

literatura.<br />

Na sétima estrofe é cita<strong>da</strong> Ofélia, personagem <strong>de</strong> Hamlet. Na oitava estrofe, há<br />

Salambô. Essas obras <strong>de</strong> Shakespeare e <strong>de</strong> Flaubert, respectivamente, são muito critica<strong>da</strong>s e<br />

ironiza<strong>da</strong>s por Laforgue. O poeta ironiza autores, obras e períodos literários, inclusive o<br />

próprio Simbolismo. Po<strong>de</strong>mos acrescentar aqui a menção a Paul et Virginie, na décima<br />

segun<strong>da</strong> estrofe. Trata-se <strong>de</strong> um romance romântico <strong>de</strong> Bernardin <strong>de</strong> Saint-Pierre que, assim<br />

como as obras <strong>de</strong> Shakespeare e <strong>de</strong> Flaubert, é também ironiza<strong>da</strong>.<br />

Na décima estrofe, é a vez <strong>de</strong> Messalina, Valéria Messalina, esposa do rei Cláudio,<br />

mulher <strong>de</strong> reputação duvidosa, cruel e ambiciosa. A figura feminina, nesse poema, é a <strong>da</strong><br />

ambição.<br />

Laforgue utiliza a Cin<strong>de</strong>rela na estrofe seguinte, fato que <strong>de</strong>monstra uma obra calca<strong>da</strong><br />

na tradição oral. Este conto também faz parte <strong>da</strong> atmosfera <strong>da</strong> ambição feminina e <strong>da</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 57


transgressão dos personagens. Trata-se <strong>de</strong> uma moça pobre e excluí<strong>da</strong> que burla as regras,<br />

busca a ascensão social, tenta fugir do estado em que se encontra contando com o amor do<br />

príncipe. É uma visão bastante diferente <strong>da</strong> que temos <strong>de</strong>ste conto. Mais uma vez, a figura<br />

vem vali<strong>da</strong>r a crítica, a ironia <strong>de</strong> Laforgue, mas sem <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser ironiza<strong>da</strong>.<br />

E, por fim, na última estrofe, há um apelo à razão, não ao materialismo. É a figura<br />

mítica <strong>da</strong> Psiqué que aparece, reforçando, portanto, a ironia crítica ao mundo mo<strong>de</strong>rno<br />

movido pelo lucro, pelo trabalho incessante que gera tédio, cansaço, miséria para muitos e<br />

conforto para poucos.<br />

É uma crítica forte feita por meio <strong>de</strong> artifícios inovadores. Jules Laforgue é o poeta <strong>da</strong><br />

criação e <strong>da</strong> crítica, <strong>da</strong> ironia e do humor, <strong>da</strong> inserção <strong>de</strong> figuras, personagens, obras, autores e<br />

mitos quase sempre ironizados, contudo. E é em meio a essa atmosfera que o mundo grecoromano<br />

se faz, aqui, presente, auxiliando as ironias e sendo alvo <strong>de</strong>las.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 58


Referências Bibliográficas<br />

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Gallimard, 1979.<br />

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PEYRE, H. A Literatura Simbolista. São Paulo: Cultrix: USP, 1983.<br />

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apresentação dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências<br />

vanguardistas, <strong>de</strong> 1857 a 1972. 11 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.<br />

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<strong>de</strong> 1870 a 1930. Trad. <strong>de</strong> José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1967.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 49-59, 2008 59


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

Carlos Alberto Nunes, tradutor dos clássicos 1<br />

Luana <strong>de</strong> CONTO<br />

G – UFPR<br />

luana.conto@gmail.com<br />

No Brasil, são duas as traduções <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> que ocupam maior espaço nos estudos<br />

clássicos: a <strong>de</strong> Manoel Odorico Men<strong>de</strong>s (cuja primeira edição saiu em 1854, na França, pela<br />

Editora Rignoux) e a <strong>de</strong> Carlos Alberto <strong>da</strong> Costa Nunes (cuja primeira edição saiu em 1981,<br />

pela editora <strong>da</strong> UnB). Ambas as propostas têm suas particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s e atraem seus<br />

admiradores. No entanto, são projetos <strong>de</strong> tradução muito diferentes, principalmente no que<br />

concerne ao objetivo <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> trabalho e aos efeitos conseqüentes <strong>de</strong>le.<br />

A tradução <strong>de</strong> Nunes é usualmente consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como aquela <strong>de</strong> leitura mais<br />

facilita<strong>da</strong>, em oposição à <strong>de</strong> Odorico Men<strong>de</strong>s, que <strong>de</strong>man<strong>da</strong> atenção mais laboriosa do leitor.<br />

E, <strong>de</strong> fato, o verso mais longo utilizado pelo primeiro permite-lhe uma sintaxe mais usual,<br />

enquanto um verso mais curto exige mais concisão e resulta em inversões.<br />

Mesmo que ambos tenham como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> o mesmo texto, suas traduções não<br />

são comparáveis, pois se propõem a realizar projetos diferentes.<br />

Odorico Men<strong>de</strong>s (1799-1864) reflete em seu trabalho a forte influência dos seus<br />

momentos <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> política em Portugal, para on<strong>de</strong> foi man<strong>da</strong>do aos <strong>de</strong>zessete anos.<br />

Durante sua estadia em território português, ele teve forte contato com as idéias liberais que<br />

culminaram na Revolução do Porto. Além disso, fez amiza<strong>de</strong> com o literato português<br />

Almei<strong>da</strong> Garret, o que certamente também influenciou a sua formação literária. Retornado ao<br />

Brasil, o maranhense chegou a ser eleito <strong>de</strong>putado <strong>da</strong> Assembléia Legislativa e permaneceu<br />

na carreira política até 1847, quando partiu para a França, on<strong>de</strong> passou a <strong>de</strong>dicar-se a suas<br />

traduções. Perceba-se que se <strong>de</strong>correram aproxima<strong>da</strong>mente sete anos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando ele passou<br />

a <strong>de</strong>dicar-se efetivamente ao projeto <strong>de</strong> tradução até a publicação <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> Brazileira. Sua<br />

versão do épico <strong>de</strong> Virgílio é versa<strong>da</strong> em <strong>de</strong>cassílabos e foi escrita usando vocabulário mais<br />

rebuscado e estruturas muito concisas. O resultado é um texto um pouco mais áspero, com<br />

arcaísmos e latinismos, cujo ritmo remete à épica d’Os Lusía<strong>da</strong>s, como se observa nos versos<br />

abaixo:<br />

1 Este trabalho tem gran<strong>de</strong> influência <strong>da</strong>s reflexões do grupo <strong>de</strong> tradução <strong>de</strong> Clássicos que se mantém na<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná, especialmente nos momentos em que procuramos traduzir as Metamorfoses <strong>de</strong><br />

Ovídio utilizando o metro núnico – como carinhosamente chamamos o verso utilizado por Carlos Alberto Nunes.<br />

Por isso, <strong>de</strong>dico especial agra<strong>de</strong>cimento ao Prof. Rodrigo T. Gonçalves, a Álvaro K. Fujihara, a Gabriel D.<br />

Rachwal e a Marina Legroski, que junto comigo participam <strong>de</strong>ste projeto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o princípio.


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

[…] Disse,^e^arroja^o velho<br />

Dardo^imbele sem gume, que repulso<br />

Pelo rouco metal, á superfície<br />

Do^embigo do broquel frustrado pen<strong>de</strong>.<br />

(Livro II, v. 573-576).<br />

Não é estranho encontrar em seu trabalho diversas características <strong>da</strong> poesia épica <strong>de</strong><br />

língua portuguesa, já que se sabe <strong>de</strong> seu patriotismo e <strong>de</strong> sua relação íntima com questões <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> política. Assim, o seu projeto <strong>de</strong> tradução está preocupado em expressar por meio<br />

<strong>de</strong> ferramentas <strong>da</strong> língua portuguesa a altivez artística que os clássicos sempre simbolizaram.<br />

A escolha do <strong>de</strong>cassílabo, o metro camoniano, como metro para suas traduções, explicita a<br />

filiação que ele <strong>de</strong>seja estabelecer com a tradição épica portuguesa. Além disso, as escolhas<br />

lexicais e estruturais mostram que o tradutor quer manter o leitor próximo também <strong>da</strong> tradição<br />

latina 2 , <strong>da</strong> mesma forma que Camões fê-lo buscando na obra <strong>de</strong> Virgílio influências para sua<br />

épica. O resultado <strong>da</strong>s escolhas <strong>de</strong> Odorico é um texto que formalmente aproxima-se <strong>de</strong>ssa<br />

tradição portuguesa, <strong>de</strong> modo mais familiar ao leitor, e que mantém ligações com o texto <strong>de</strong><br />

parti<strong>da</strong> por meio do vocabulário e <strong>da</strong> arquitetura textual, <strong>de</strong> modo mais distante <strong>de</strong> seu leitor.<br />

Já a respeito <strong>de</strong> Carlos Alberto <strong>da</strong> Costa Nunes (1897-1990), não se conhecem<br />

muitos <strong>de</strong>talhes sobre a sua carreira <strong>de</strong> tradutor e nem sobre suas influências. As<br />

características <strong>de</strong> seu texto permanecem pouco explora<strong>da</strong>s. Por isso, este trabalho procura<br />

<strong>de</strong>limitar mais claramente as características formais <strong>de</strong> seu estilo, analisando mais<br />

especificamente a sua versão <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> <strong>de</strong> Virgílio.<br />

A principal característica <strong>de</strong> sua proposta <strong>de</strong> tradução é a a<strong>da</strong>ptação métrica do<br />

hexâmetro <strong>da</strong>ctílico para a língua portuguesa. O hexâmetro <strong>da</strong>ctílico era o verso característico<br />

<strong>da</strong> épica clássica, já utilizado por <strong>Home</strong>ro na Ilía<strong>da</strong> e na Odisséia. Para compor em latim a<br />

sua épica, Virgílio escolhe esse verso a fim <strong>de</strong> estabelecer um elemento <strong>de</strong> conexão com a<br />

epopéia grega. Esse reaproveitamento do metro é uma forma <strong>de</strong> aproximar a sua audiência <strong>da</strong><br />

tradição helênica, <strong>de</strong> modo a retomar na Enei<strong>da</strong> o ritmo épico <strong>da</strong>s obras homéricas, simbólico<br />

para os ouvidos dos espectadores, e <strong>de</strong> não <strong>de</strong>ixar dúvi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> que sua intenção é, sim, filiar-se<br />

aos gregos.<br />

A proposta <strong>de</strong> Nunes recebeu muitas críticas, especialmente porque os sistemas<br />

fonéticos e poéticos do português e do latim são diferentes. O principal aspecto que conta na<br />

transposição do latim para o português é a relevância que a duração <strong>da</strong>s vogais tem na língua<br />

latina, que não acontece na língua portuguesa, cujo padrão é acentual. Por não haver essa<br />

2 Contudo, a eruditização do texto que Odorico Men<strong>de</strong>s faz é maior do que a natureza do texto <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>.<br />

61


correspondência, os sistemas <strong>de</strong> metrificação antigos estão baseados em ritmos diferentes dos<br />

nossos.<br />

A oscilação <strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> vocálica era aproveita<strong>da</strong> nos sistemas métricos, <strong>de</strong> modo<br />

que a seqüência prosódica fosse dita<strong>da</strong> por pés métricos. No verso hexâmetro <strong>da</strong>ctílico, por<br />

exemplo, os pés po<strong>de</strong>m variar entre uma longa e duas breves ou só duas longas, já que duas<br />

breves equivalem a uma longa. Então, até o quarto pé, os pés po<strong>de</strong>m ser dáctilos (longabreve-breve)<br />

ou espon<strong>de</strong>us (longa-longa); o quinto pé é muito freqüentemente um dáctilo; e o<br />

último pé é composto por apenas duas sílabas, que po<strong>de</strong>m ser ambas longas, ou a primeira<br />

longa e a segun<strong>da</strong> breve. Por isso, o hexâmetro admite variações <strong>de</strong> 13 a 17 sílabas. Como os<br />

nossos versos em geral têm número fixo <strong>de</strong> sílabas (com exceção do verso livre), nenhum<br />

<strong>de</strong>les equipara-se à dinâmica do verso latino. Embora esse número <strong>de</strong> sílabas varie, os versos<br />

são todos do mesmo tamanho no momento em que são cantados, porque um verso com 13<br />

sílabas e outro com 17 sílabas levariam exatamente o mesmo tempo para serem cantados.<br />

Esse fato é muito importante para que o leitor não pense em algo análogo ao verso livre, no<br />

qual ca<strong>da</strong> verso tem uma duração diferente, enquanto que na antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> a duração é a<br />

mesma, apesar <strong>de</strong> o número <strong>de</strong> sílabas variarem.<br />

Levando em consi<strong>de</strong>ração que as sílabas tônicas geralmente têm duração maior que<br />

as sílabas átonas (MASSINI-CAGLIARI, 1992), é possível que se faça a correspondência <strong>da</strong>s<br />

sílabas longas latinas com as sílabas tônicas portuguesas e <strong>da</strong>s curtas latinas com as átonas<br />

portuguesas. E é essa a relação que Carlos Alberto Nunes usou em sua a<strong>da</strong>ptação.<br />

No entanto, não é provável, em português, que se forme um pé “espon<strong>de</strong>u” nesse<br />

contexto métrico. Ao analisar esse ponto mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>mente, nota-se que um espon<strong>de</strong>u <strong>de</strong>ve<br />

ser seguido ou <strong>de</strong> outro espon<strong>de</strong>u ou <strong>de</strong> um dáctilo e, por conseqüência disso, haverá<br />

necessariamente no mínimo três longas segui<strong>da</strong>s. No sistema <strong>de</strong> equivalência explicitado<br />

acima, trocam-se as longas do sistema fonético latino por sílabas tônicas em português. Uma<br />

seqüência <strong>de</strong> três tônicas em português só seria possível em um contexto que reunisse, nessa<br />

or<strong>de</strong>m, uma oxítona, um monossílabo tônico e outra palavra que se iniciasse em tônica. Por<br />

exemplo, Estes botões são mágicos. Ora, contextos assim são improváveis e pouco<br />

freqüentes, mesmo porque a língua resolve estes problemas naturalmente, enfraquecendo a<br />

tonici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sílaba forte situa<strong>da</strong> no meio (CHOCIAY, 1972, p. 73). No entanto, o an<strong>da</strong>mento<br />

<strong>da</strong>ctílico enquadra-se bem em nosso sistema fonético, como comprovam os versos <strong>de</strong> Nunes.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

|Turno, que^o| grosso <strong>da</strong>s| tropas <strong>de</strong>| marcha tra|va<strong>da</strong> <strong>de</strong>i|xara<br />

62


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

|na reta|guar<strong>da</strong>,^adin|tou 3 -se com| vinte^exce|lentes ca|valos<br />

(IX, 6-7)<br />

O an<strong>da</strong>mento exemplificado acima é o mais regular na versão <strong>de</strong> Carlos Alberto<br />

Nunes, preservando sempre dáctilos no interior do verso. Dessa forma, portanto, o dinamismo<br />

que o hexâmetro continha em variar o comprimento do verso per<strong>de</strong>-se no sistema fonológico<br />

português, <strong>da</strong>ndo lugar a certa regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> monódica.<br />

Essa regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>, porém, é quebra<strong>da</strong> nos momentos <strong>de</strong> construção do primeiro pé.<br />

Espera-se que, como ca<strong>da</strong> verso inicia-se com um correspon<strong>de</strong>nte do dáctilo latino, todo verso<br />

inicie-se com uma sílaba tônica. Contudo, essa não é uma regra que Carlos Alberto Nunes<br />

segue. Em função, principalmente, <strong>de</strong> partículas átonas – como o artigo, que em português é<br />

utilizado diante <strong>da</strong> maioria dos substantivos – há uma resistência natural <strong>da</strong> língua portuguesa<br />

<strong>de</strong> que se encontre, recorrentemente, sílaba tônica em início <strong>de</strong> verso. Além <strong>da</strong><br />

obrigatorie<strong>da</strong><strong>de</strong> do artigo, po<strong>de</strong>-se enumerar ain<strong>da</strong> como agravantes <strong>de</strong>sse fato o uso<br />

necessário <strong>de</strong> preposições mais que em latim (<strong>da</strong><strong>da</strong> a ausência <strong>de</strong> marca morfológica <strong>de</strong> caso),<br />

o uso <strong>de</strong> outras partículas, como a conjunção coor<strong>de</strong>nativa e e até propriamente <strong>de</strong> palavras<br />

cujas primeiras sílabas sejam pré-tônicas. Vale ressaltar que o tradutor tinha a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar estes elementos isolados no fim do verso anterior, em enjambement, o que<br />

acarretaria na quebra <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sentido, e não o fez por questão <strong>de</strong> estilo.<br />

Nesses casos, em que não há possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar à métrica as estruturas <strong>da</strong><br />

língua, o tradutor usa o recurso <strong>da</strong> inversão <strong>de</strong> sílaba tônica, como ilustram o primeiro, o<br />

quarto e o quinto verso <strong>da</strong> estrofe a seguir, que abre o Livro IX (v. 1-5).<br />

|Ao mesmo| tempo que |tais ocor|rências pas|savam na |terra<br />

|Juno Sa|túrnia do |céu <strong>de</strong>spa|chou para| Turno^au<strong>da</strong>|cioso<br />

|Íris com| breve re|cado.^Encon|trou-o <strong>de</strong>i|tado na |sombra<br />

|<strong>de</strong>^um belo| bosque no |vale di|cado^ao a|vô seu, Pi|lumno.<br />

|Com lábios| róseos falou-lhe^a nas|ci<strong>da</strong> do| divo Taumante: […]<br />

Nos exemplos mostrados acima (primeiro, quarto e quinto versos), a sílaba mais forte<br />

do primeiro pé não é a primeira, mas a segun<strong>da</strong>. Esse fato com certeza <strong>de</strong>stoa do esperado<br />

para o ritmo <strong>da</strong>ctílico, mas é um fato com que Carlos Alberto Nunes li<strong>da</strong> sem maiores<br />

problemas. Esse recurso é tão utilizado em seu trabalho que se <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar esse verso<br />

como uma alternativa àquele verso hexâmetro a<strong>da</strong>ptado estrito, rígido. Mesmo porque,<br />

fazendo uma leitura força<strong>da</strong> em ritmo <strong>da</strong>ctílico <strong>de</strong> modo a acentuar a primeira sílaba<br />

3<br />

Adintou-se parece ser fruto <strong>de</strong> uma sinérese em adiantou-se, ou seja, é uma crase que ocorre <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> palavra<br />

e que já foi marca<strong>da</strong> graficamente.<br />

63


in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua natureza átona ou tônica, esse pé é capaz <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar-se ao<br />

an<strong>da</strong>mento esperado. Nesta segun<strong>da</strong> opção <strong>de</strong> leitura, a tonici<strong>da</strong><strong>de</strong> ficaria como abaixo.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

|Ao mesmo| tempo que |tais ocor|rências pas|savam na |terra<br />

|Juno Sa|túrnia do |céu <strong>de</strong>spa|chou para| Turno^au<strong>da</strong>|cioso<br />

|Íris com| breve re|cado.^Encon|trou-o <strong>de</strong>i|tado na |sombra<br />

|<strong>de</strong>^um belo| bosque no |vale di|cado^ao a|vô seu, Pi|lumno.<br />

|Com lábios| róseos fa|lou-lhe^a nas|ci<strong>da</strong> do| divo Taumante: (…)<br />

Esse recurso, por vezes, confun<strong>de</strong>-se com a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma sílaba em anacruse,<br />

i.e., uma sílaba <strong>de</strong> apoio no início <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> verso que não entra na contagem <strong>de</strong> sílabas<br />

(CHOCIAY, 1974). Essa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação está presente em exemplos como o<br />

que se segue:<br />

|E^o seu gran|<strong>de</strong>^arco tra|çou no céu| claro, <strong>de</strong>| nuvens or|nado.<br />

(IX, v. 15)<br />

Na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura esboça<strong>da</strong> acima, ocorre a inversão <strong>de</strong> tônica no primeiro<br />

pé e a sinalefa no segundo. Mas, por outro lado, se consi<strong>de</strong>rarmos que a átona inicial está em<br />

anacruse, o an<strong>da</strong>mento rítmico iniciar-se-á a partir <strong>da</strong> sílaba tônica seu, e haverá por<br />

conseqüência do ritmo uma dialefa antes do início do segundo pé, entre as vogais finais <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> e arco, como a seguir:<br />

E^o |seu gran<strong>de</strong>| arco tra|çou no céu| claro, <strong>de</strong>| nuvens or|nado.<br />

(IX, v. 15)<br />

Contudo, não foi encontrado nenhum verso que tivesse como possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> ao metro somente a leitura com anacruse, ou seja, que a anacruse fosse condição<br />

para a existência do verso hexâmetro a<strong>da</strong>ptado <strong>de</strong> que o tradutor faz uso. Portanto, não se<br />

po<strong>de</strong> afirmar que esse é um recurso utilizado conscientemente pelo tradutor como ferramenta<br />

poética.<br />

Usando <strong>de</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> poética, o tradutor, por vezes, utiliza em favor <strong>da</strong> a<strong>de</strong>quação<br />

métrica outros processos <strong>de</strong> acomo<strong>da</strong>ção, como abran<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> sílaba tônica, exploração <strong>de</strong><br />

acento secundário e sinalefa ou dialefa <strong>de</strong> vogais. Abaixo, cita-se o exemplo <strong>de</strong> um verso que<br />

sozinho consegue englobar todos os processos citados.<br />

|Reconhe|ceu-a^o man|cebo; pa|ra^o^alto di|rige^as mãos| ambas<br />

(IX, v. 16)<br />

Em Reconheceu-a, a sílaba inicial que é fraca, torna-se forte, assinalando um acento<br />

secundário no interior <strong>da</strong> palavra, que tem como tônica principal a última sílaba. Esse<br />

mecanismo só possível em palavras longas, que admitem dois acentos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si e, assim,<br />

64


po<strong>de</strong>m conter um dáctilo inteiro internalizado. Ressalta-se que as três primeiras sílabas<br />

formaram um dáctilo e a última – que é a tônica principal – inicia o dáctilo seguinte.<br />

No segundo pé, a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação <strong>de</strong> leitura em dáctilos, <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong><br />

acima, assume que primeiro ocorre a dialefa, separando o ditongo tônico final do verbo do<br />

grupo vocálico que se segue. Na sílaba seguinte, que é átona, juntam-se o pronome oblíquo e<br />

o artigo em uma sinalefa. O quarto pé contrai na sílaba forte as três vogais que estão em<br />

contato numa só sílaba dinâmica, em que se estabelece como vogal principal a tônica <strong>de</strong> alto.<br />

No quinto pé, o monossílabo tônico mãos é abran<strong>da</strong>do por ocupar uma posição átona<br />

e, na leitura, fica mais fraco que as outras sílabas tônicas que o ro<strong>de</strong>iam, -ri- anteriormente e<br />

am- posteriormente.<br />

Esses processos são plenamente aceitáveis diante <strong>da</strong> dinâmica prosódica do verbo e,<br />

muitas vezes, acontecem até mesmo na fala coloquial.<br />

À guisa <strong>de</strong> exemplo, apresenta-se a análise <strong>da</strong> primeira estrofe <strong>da</strong> tradução <strong>de</strong> Carlos<br />

Alberto Nunes, procurando mostrar a presença dos elementos enumerados acima,<br />

consi<strong>de</strong>rados características do estilo poético do tradutor:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

|As armas| canto^e^o va|rão que, fu|gindo <strong>da</strong>s |plagas <strong>de</strong> |Tróia<br />

|Por injun|ções do Des|tino,^insta|lou-se na^I|tália pri|meiro<br />

|E <strong>de</strong> La|vínio nas| praias. A^im|pulso dos| <strong>de</strong>uses por| muito<br />

|Tempo nos| mares e^em| terras va|gou sob as| iras <strong>de</strong> |Juno,<br />

|Guerras sem |fim susten|tou para^as| bases lan|çar <strong>da</strong> Ci|<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

|E^ao Lácio^os| <strong>de</strong>uses tra|zer – o co|meço <strong>da</strong> |gente la|tina,<br />

|Dos pais al|banos pri|meiros e^os| muros <strong>de</strong>| Roma^alta|nados.<br />

|Musa! Re|cor<strong>da</strong>-me^as| causas <strong>da</strong>| guerra,^a <strong>de</strong>i|<strong>da</strong><strong>de</strong>^agra|va<strong>da</strong>;<br />

|Por qual o|fensa^a ra|inha dos| <strong>de</strong>uses le|vou um guer|reiro<br />

|Tão reli|gioso^a^enfren|tar sem <strong>de</strong>s|canso^esses| duros tra|balhos?<br />

(I, 1-10)<br />

O mais importante <strong>de</strong> ressaltar é o ritmo, que dita os processos <strong>de</strong> acomo<strong>da</strong>ção ao<br />

longo <strong>da</strong> entoação, conferido pela predominância <strong>de</strong> dáctilos no poema.<br />

O início do segundo e do terceiro verso são marcados pela tonici<strong>da</strong><strong>de</strong> atribuí<strong>da</strong> às<br />

partículas átonas – por e e, respectivamente. Estas sílabas não são átonas naturalmente, mas<br />

recebem acento mais marcado em função <strong>da</strong> posição tônica que ocupam e também por não<br />

haver nenhuma outra sílaba tônica no pé.<br />

A inversão <strong>de</strong> tônica, <strong>de</strong> primeira para segun<strong>da</strong> sílaba, ocorre no primeiro, no sexto,<br />

no sétimo e no nono verso. Como já foi explicita<strong>da</strong>, esta alternância <strong>de</strong>ve-se à freqüência<br />

eleva<strong>da</strong> <strong>de</strong> artigos, conjunções e preposições, enfim, elementos monossílabos átonos<br />

antece<strong>de</strong>ndo sílabas tônicas. Esse pé inicial com a tônica inverti<strong>da</strong> é uma alternativa ao verso<br />

65


estritamente formado por pés dáctilos, mas não <strong>de</strong>stoa completamente do an<strong>da</strong>mento do todo<br />

do poema, que é retomado no segundo pé compulsoriamente.<br />

O único abran<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> acento registrado nos versos acima trata <strong>da</strong> palavra sem,<br />

um monossílabo tônico que figura no quinto e no décimo verso. Esse não é um recurso radical<br />

que cause impacto tanto quanto o abran<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> mãos, analisado acima, pois as sílabas<br />

tônicas que a cercam têm acento mais forte que o seu.<br />

As sinalefas (simboliza<strong>da</strong>s pelo símbolo ^ entre as vogais) são correntes e<br />

praticamente regras na contagem <strong>da</strong>s sílabas métricas, <strong>de</strong> forma que estão presentes em todos<br />

os versos acima enumerados e ocorrem até mesmo sobrepondo-se a pausas <strong>de</strong> acentuação – a<br />

quais, nesses casos, ou não acontecem ou têm sua duração altamente reduzi<strong>da</strong>. Foram<br />

encontra<strong>da</strong>s dialefas ocorrendo tanto entre duas quanto entre três vogais.<br />

Já a dialefa, registra<strong>da</strong> no quinto pé do nono verso, não é tão freqüente quanto à<br />

sinalefa. Também caracteriza um recurso <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação ao metro, sem <strong>de</strong> modo algum<br />

apresentar problemas ao an<strong>da</strong>mento prosódico. Naturalmente, o ritmo pe<strong>de</strong> quando <strong>de</strong>ve<br />

haver uma sinalefa ou uma dialefa, <strong>de</strong> modo que as escolhas do verso apenas seguem esse<br />

fluxo musical.<br />

Po<strong>de</strong>-se aplicar ao verso inovador <strong>de</strong> Carlos Alberto Nunes o mesmo critério que é<br />

aplicado aos poetas que seguem receitas métricas rígi<strong>da</strong>s. Os metros <strong>de</strong> versificação são<br />

mo<strong>de</strong>los que invariavelmente aceitam pequenos <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> acordo com o fazer poético.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

Para a mais rígi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s receitas sempre houve <strong>de</strong>svios espontâneos ou intencionais <strong>da</strong><br />

parte dos poetas, e o falar-se em erro, aí, nem sempre será proce<strong>de</strong>nte, já que a<br />

versificação, como, aliás, qualquer ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural humana, é dinâmica e aberta,<br />

não se po<strong>de</strong>ndo enclausurar em normas excessivamente rígi<strong>da</strong>s e coercitivas. […]<br />

Ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que um ou outro exemplar que explicamos parece afastar-se <strong>de</strong>mais <strong>de</strong> tal<br />

receita, mas julgá-los errados será ignorar a distância que vai do Metro ao Ritmo; o<br />

artista aceita padrões, mas não se pren<strong>de</strong> necessariamente a eles, quebrando-os<br />

sempre que a irregulari<strong>da</strong><strong>de</strong> for mais expressiva que a regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>. (CHOCIAY,<br />

1974, p. 35; 42)<br />

Ain<strong>da</strong> faltou neste trabalho a abor<strong>da</strong>gem <strong>de</strong> questões como a cesura do hexâmetro<br />

latino e a sílaba final do verso <strong>de</strong> Nunes. Mas, diante dos inúmeros pontos abor<strong>da</strong>dos,<br />

conclui-se que Carlos Alberto Nunes usa em sua tradução um verso que se assemelha muito<br />

ao hexâmetro <strong>da</strong>ctílico utilizado por Virgílio na composição <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>, na medi<strong>da</strong> em que ele<br />

po<strong>de</strong> ser transposto para o português. Contudo, em razão <strong>de</strong> características próprias <strong>da</strong> língua<br />

portuguesa, que difere <strong>da</strong> latina, o tradutor adota algumas a<strong>da</strong>ptações, em especial a<br />

predominância <strong>de</strong> pés dáctilos e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> inversão <strong>de</strong> tônica no primeiro pé. Logo, o<br />

verso utilizado encontra-se nos mol<strong>de</strong>s do hexâmetro clássico, mas a<strong>da</strong>ptado ao português,<br />

66


que tem como traço predominante o ritmo do todo, <strong>de</strong> modo que o tradutor acaba por<br />

sacrificar certos conceitos poéticos no nível do verso, mas esses <strong>de</strong>talhes tornam-se menores<br />

no an<strong>da</strong>mento aliado à expressão <strong>da</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong> do poema.<br />

A intenção <strong>de</strong> Nunes ao recriar o hexâmetro nos mol<strong>de</strong>s <strong>da</strong> língua portuguesa é usar<br />

um verso que esteja mais próximo do original, ao contrário <strong>de</strong> Odorico Men<strong>de</strong>s que usa um<br />

metro que se distancia do metro latino e que se aproxima <strong>da</strong> tradição portuguesa. Assim, a<br />

leitura em an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>ctílico é a chave para a interpretação dos versos <strong>de</strong> acordo com a<br />

tradição sonora do hexâmetro, pois o ritmo sobrepõe-se à contagem mecaniza<strong>da</strong> <strong>da</strong>s sílabas<br />

poéticas.<br />

O resultado dos esforços <strong>de</strong> Odorico Men<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> Carlos Alberto Nunes possibilita<br />

os estu<strong>da</strong>ntes <strong>da</strong>s literaturas clássicas terem em mãos duas oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s distintas <strong>de</strong> análise<br />

dos poemas clássicos. Uma aproxima-lhe dos mitos e histórias clássicas por meio <strong>de</strong><br />

ferramentas <strong>da</strong> tradição poética em língua portuguesa, portanto, domestica o metro. A outra<br />

preserva a fórmula métrica que, assim como as histórias narra<strong>da</strong>s nos versos, pertence ao<br />

universo antigo, portanto, estrangeiriza o metro, encaminha o leitor a um contexto diferente<br />

<strong>de</strong> significação dos poemas épicos.<br />

Referências Bibliográficas<br />

CHOCIAY, R. Teoria do Verso. São Paulo: Editora McGraw-Hill do Brasil, 1974.<br />

“DITRA Dicionário <strong>de</strong> tradutores literários no Brasil – Odorico Men<strong>de</strong>s” disponível em<br />

. Último acesso<br />

em: 17/08/2008.<br />

MASSINI-CAGLIARI, G. Acento e Ritmo. São Paulo: Editora Contexto, 1992.<br />

PARATORE, E. História <strong>da</strong> literatura latina. Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian,<br />

1987.<br />

VERGÍLIO. Enei<strong>da</strong>. Trad. <strong>de</strong> Carlos Alberto Nunes. Brasília: EDUNB; São Paulo: A<br />

montanha, 1981.<br />

VIRGÍLIO. A Enei<strong>da</strong>. Tradução <strong>de</strong> Manuel Odorico Men<strong>de</strong>s. São Paulo: Atena Editora,<br />

1956.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 60-67, 2008<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 68-73, 2008<br />

Ecos Ovidianos na Poesia <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros<br />

Thyago José <strong>da</strong> CRUZ<br />

G – UFMS<br />

Profª Drª Rosana Cristina Zanelatto SANTOS<br />

UFMS<br />

tjdoms@hotmail.com<br />

Pela leitura do Livro <strong>de</strong> Pré-coisas, do poeta Manoel <strong>de</strong> Barros, i<strong>de</strong>ntificam-se alguns<br />

pontos que o relacionam com o livro do poeta latino Públio Ovídio Naso, Metamorfoses. Em<br />

um primeiro momento, indicar-se-ão alguns <strong>de</strong>sses pontos.<br />

O Livro <strong>de</strong> Pré-coisas começa com um anúncio ao leitor no qual se nota,<br />

aparentemente, uma preparação para o que ele po<strong>de</strong> encontrar no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua leitura,<br />

como a atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> um guia que prepara aos seus para uma excursão. O poeta apresenta <strong>de</strong><br />

antemão que o livro trata-se <strong>de</strong> uma excursão, porém <strong>de</strong> caráter poético. Há ain<strong>da</strong> a ressalva<br />

<strong>de</strong> que não é um livro sobre o Pantanal, mas uma anunciação <strong>de</strong> “enunciados constativos”.<br />

Verifica-se também uma espécie <strong>de</strong> “<strong>de</strong>svalor” <strong>da</strong>quilo que se po<strong>de</strong> esperar <strong>de</strong> um livro e <strong>de</strong><br />

um poeta, pois este, pela palavra, adoece a natureza: “Seria antes (o livro) uma anunciação.<br />

[...] Manchas. Nódoas <strong>de</strong> imagens. [...] Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza”<br />

(BARROS, 1997, p.9).<br />

Em Metamorfoses, Ovídio apresenta o valor <strong>de</strong> sua escritura, isto é, acredita na<br />

magnitu<strong>de</strong> e na imortali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua obra e na superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> que o poeta adquire sobre os<br />

<strong>de</strong>mais homens. Tal comentário é feito ao final <strong>da</strong> obra, por meio <strong>de</strong> um epílogo (ao contrário<br />

do anúncio manoelino que aparece logo no início). O poeta não se consi<strong>de</strong>ra no mesmo<br />

patamar dos mortais. Por sua literatura, adquire uma posição quase divina.<br />

Essa divinização confere ao eu lírico o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> criar, transformar e transmutar os<br />

seres pelo condão <strong>da</strong> palavra. Vejamos o seguinte fragmento:<br />

1 In noua fert animus mutatas dicere formas<br />

corpora; Di, coeptis, nam uos mutasti et illas,<br />

adspirate meis primaque ab origine mundi<br />

ad mea perpetuum <strong>de</strong>ducite tempora carmen.<br />

Vem-me a idéia <strong>de</strong> contar as formas mu<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

em novos corpos. Deuses- pois também vos as<br />

mu<strong>da</strong>stes-,<br />

inspirai a minha iniciativa e, <strong>da</strong> primeira<br />

origem do mundo,<br />

guiai ininterrupto o meu canto, até o meu<br />

tempo (OVIDIO, 2003, p. 187). 1


Na estrofe inicial <strong>de</strong> Metamorfoses, constata-se que os <strong>de</strong>uses transformaram as<br />

formas em novos corpos. Porém, pela presença do advérbio “também”, representado pela<br />

conjunção “et” no original, que, além <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r significar a conjunção aditiva “e”, adquire em<br />

alguns casos a mesma função adverbial <strong>de</strong> “etiam”(também), po<strong>de</strong>-se, então, incluir nesse<br />

ambiente outros agentes <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nças, inclusive o próprio poeta, capazes <strong>de</strong> transformar as<br />

coisas.<br />

No livro I <strong>de</strong> Metamorfoses, há a preocupação em relatar a origem do mundo. Cabenos<br />

pensar se há uma tentativa <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um novo cenário estético-literário, em que o<br />

homem é posteriormente apresentado e, a partir <strong>da</strong>í, os seres passam a ser passíveis <strong>de</strong><br />

transformações.<br />

Antes do mar e <strong>da</strong>s terras e do céu que cobre tudo,<br />

Única era a face <strong>da</strong> natureza em todo orbe,<br />

E a chamaram caos: massa tosca e confusa,<br />

[...]<br />

Esta luta, um Deus e melhor natureza a interrompeu:<br />

Separou do céu as terras e <strong>da</strong>s terras as on<strong>da</strong>s,<br />

[...]<br />

Para que nenhuma região fosse priva<strong>da</strong> dos seus seres animados,<br />

Os astros e as formas dos Deuses dominam a celeste;<br />

Acalmaram-se as on<strong>da</strong>s para ser habita<strong>da</strong>s por peixes brilhantes;<br />

A terra acolheu as feras; e os pássaros, o ar instável 2<br />

(OVIDIO, 2003, p. 187-191).<br />

Antes <strong>de</strong> tudo, a natureza possuía uma só forma, que era chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> Caos. Graças à<br />

ação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us, qualquer que tenha sido (Ovídio opta por não apontar qual seja), é que a<br />

terra começa a adquirir o seu formato, capaz <strong>de</strong> sustentar o homem e outras formas <strong>de</strong> seres<br />

vivos e não vivos. Por meio <strong>de</strong>ssa cosmogonia, o eu lírico também vai mol<strong>da</strong>ndo o seu<br />

cenário i<strong>de</strong>al, o qual já sofre mu<strong>da</strong>nças <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início e será, posteriormente, palco <strong>de</strong><br />

diversas metamorfoses. Logo, nesse contexto, Ovídio aproxima-se do Deus Criador,<br />

tornando-se também um artífice.<br />

2 Ante mare et terra et, quod tegit omnia, caelum<br />

unus erat toto naturae uultus in orbe,<br />

quam dixere chaos, rudis indigestaque moles<br />

[...]<br />

Hanc Deus et melior litem natura diremit;<br />

Nam caelo terras et terris abscidit un<strong>da</strong>s<br />

[...]<br />

Neu regio foret ulla suis animalibus orba,<br />

Astra tenent caeleste solum formaeque Deorum,<br />

Cesserunt nitidis habitan<strong>da</strong>e piscibus un<strong>da</strong>e,<br />

Terra feras cepit, uolucres agitabilis aer.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 68-73, 2008 69


Retornemos ao Livro <strong>de</strong> Pré-coisas: a sua primeira parte intitula-se Ponto <strong>de</strong> Parti<strong>da</strong>.<br />

Após o Anúncio, que está contido nessa parte, o narrador apresenta a sua terra natal. Há um<br />

cenário todo pronto, em que os seres e as coisas são ao mesmo tempo lançados e apresentados<br />

na narrativa. Na seqüência, o narrador inicia a sua viagem em busca <strong>de</strong> seu personagem, que<br />

mais tar<strong>de</strong> será revelado na figura <strong>de</strong> Bernardo, no capítulo “O personagem”. Deve-se aqui<br />

chamar a atenção para o <strong>de</strong>monstrativo seu: não sabemos, a princípio, se tal pronome remetese<br />

a um personagem que está <strong>de</strong>ntro do próprio narrador, numa ação reflexiva, ou a outro<br />

indivíduo alheio a ele, numa ação anafórica. Há uma aparente simbiose entre o narrador e<br />

Bernardo.<br />

O narrador então abandona o lugar inicial – Deixamos Corumbá tar<strong>de</strong>ando.<br />

(BARROS, 1997, p. 15) – e <strong>de</strong>para-se com o surgimento <strong>de</strong> outro meio. Embora, segundo o<br />

próprio narrador, Corumbá seja o portão <strong>de</strong> entra<strong>da</strong> para o Pantanal, é somente neste outro<br />

local, on<strong>de</strong> encontramos a Nhá Velina e Pocito, em que realmente está a entra<strong>da</strong> pioneira do<br />

Pantanal: trata-se <strong>de</strong> um portão – e por que não dizer portal - <strong>da</strong> Nhecolândia.<br />

Chega-se à parte chama<strong>da</strong> <strong>de</strong> Cenários. Vemos aí pequenas metamorfoses, como a<br />

arraia que se converte em um espécime <strong>de</strong> útero vegetal, insetal, natural (BARROS, 1997, p.<br />

21). Somente após a chuva tão aguar<strong>da</strong><strong>da</strong> e pressenti<strong>da</strong> pelos seres é que notaremos as<br />

significativas transformações. A afirmativa utiliza<strong>da</strong> pelo narrador em Agroval já prenuncia<br />

com o que vamos <strong>de</strong>parar, servindo como um marco divisório entre dois momentos distintos.<br />

Agroval possui certas metamorfoses, comporta-se, portanto, como um espaço mediador entre<br />

o (quase) normal e o metamórfico. Vejamos o citado fragmento: “É a pura inauguração <strong>de</strong><br />

outro universo. Que vai corromper, irromper e recompor a natureza” (BARROS, 1997, p. 23).<br />

Não temos como em Metamorfoses um relato <strong>da</strong> cosmogonia feita aos mol<strong>de</strong>s<br />

tradicionais, ou seja, a preocupação com a origem e com o aparecimento <strong>da</strong>s coisas, mas nos<br />

<strong>de</strong>paramos com um ambiente já construído que sofrerá modificações no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> narrativa,<br />

até tornar-se capaz <strong>de</strong> abrigar significativamente as mais varia<strong>da</strong>s metamorfoses. Contudo,<br />

ambos os universos encontram-se ain<strong>da</strong> em seu estado “pré”: no primeiro, a massa confusa e<br />

disforme, e, no segundo, o cenário pronto para receber a chuva transformadora. Depois <strong>de</strong>la, o<br />

mundo é renovado para que as coisas possam acontecer ou <strong>de</strong>sacontecer:<br />

O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir [...] A pelagem do gado está limpa. A alma do fazen<strong>de</strong>iro está limpa. O<br />

roceiro está alegre na roça, porque a sua planta está salva. Pequenos caracóis pregam<br />

saliva nas roseiras. E a primavera imatura <strong>da</strong>s araras sobrevoa nossas cabeças com sua<br />

voz racha<strong>da</strong> ver<strong>de</strong> (BARROS, 1997, p. 29-30).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 68-73, 2008 70


Igualmente diz-se do dilúvio que <strong>de</strong>saba em Metamorfoses: para uma renovação do<br />

mundo, a tão espera<strong>da</strong> chuva prepara o cenário para as transformações, como se po<strong>de</strong> ver no<br />

seguinte fragmento:<br />

Quando Júpiter viu que o orbe não passava <strong>de</strong> um lago imenso, e que <strong>de</strong> todos os<br />

milhares <strong>de</strong> homens um só sobrevivera, e <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as mulheres só sobrevivera uma,<br />

ambos inocentes, ambos <strong>de</strong>votos dos <strong>de</strong>uses, dispersa as nuvens, com as chuvas afasta<strong>da</strong>s<br />

por Aquilão, e mostra a terra ao céu e o céu à terra (OVÍDIO, 1983, p.19).<br />

Em Livro <strong>de</strong> Pré-coisas, na parte intitula<strong>da</strong> “O Personagem”, após o capítulo sexto<br />

(Retrato <strong>de</strong> Irmão), em que se <strong>de</strong>screve - ou cria-se - um ser irresolvido, é apresentado um<br />

recorte do Tratado <strong>de</strong> Metamorfoses, o Livro <strong>de</strong> pré-coisas, <strong>de</strong>ixado por aquele ser.<br />

Encontramos nesse espaço várias transformações, transmutações, transla<strong>da</strong>ções, tanto <strong>de</strong><br />

pequenas coisas (como um osso que se converte em roupa) quanto nas mais complexas (como<br />

o peixe em cachorro, por exemplo).<br />

Segundo os autores Brunel, Pichois & Rousseau (1995), po<strong>de</strong>-se chamar <strong>de</strong> mito<br />

literário todo e qualquer conjunto narrativo que foi consagrado pela tradição e que se pren<strong>de</strong> a<br />

um espaço e a um tempo literário. Denominar-se-á, pois, <strong>de</strong> tema “um assunto <strong>de</strong> preocupação<br />

ou <strong>de</strong> interesse geral para o homem” (p. 114). Essas classificações po<strong>de</strong>m parecer um tanto<br />

simplificadoras, mas são <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valia para uma primeira análise. O mito, portanto,<br />

comporta-se como um pano <strong>de</strong> fundo que po<strong>de</strong> abarcar um ou vários temas em sua<br />

constituição. É importante também ressaltar que dificilmente o tema será único em uma obra,<br />

pois, na maioria <strong>da</strong>s vezes, pertence a um complexo temático.<br />

Ovídio, em sua obra, aproveita-se dos mitos <strong>da</strong> metamorfose (o qual oferece o nome à<br />

lírica) e <strong>da</strong> criação. Dentre os diversos temas, po<strong>de</strong>-se apontar inicialmente o <strong>da</strong> or<strong>de</strong>nação do<br />

caos. Como já foi dito, há a preocupação <strong>de</strong> relatar a origem do mundo, as transformações<br />

ocorrentes nele e a tentativa <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us em or<strong>de</strong>nar o caos.<br />

Encontra-se em Barros a retoma<strong>da</strong> do mito <strong>da</strong> metamorfose, tanto antes <strong>de</strong> Tratado <strong>de</strong><br />

Metamorfoses (em eventos isolados) quanto, principalmente, inserido nele. Vemos também,<br />

ao redor do personagem Bernardo, a presença do mito <strong>da</strong> criação e <strong>da</strong> temática do organizador<br />

do caos.<br />

O narrador <strong>de</strong> Livro <strong>de</strong> Pré-coisas, após preparar o seu cenário, constrói, com<br />

refinamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes, a figura <strong>de</strong> Bernardo. Mostra a procedência e a trajetória <strong>da</strong><br />

personagem. É a pura criação <strong>de</strong> um ser que se liga, em simbiose, ao natural. Por tratar-se <strong>de</strong><br />

um ser irresolvido, Bernardo aproxima-se muito <strong>da</strong>quele Deus - o não especificado por<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 68-73, 2008 71


Ovídio e que impôs or<strong>de</strong>m ao caos. Ambos acabam por estar envolvido em uma cama<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

in<strong>de</strong>terminação. O personagem do Livro <strong>de</strong> Pré-coisas é abrangido por Deus e isso lhe<br />

confere certo domínio e controle <strong>da</strong>s coisas naturais. Entretanto, o que lhe interessa são as<br />

<strong>de</strong>scoisas, o organizar e o cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> tudo quanto é mais <strong>de</strong>snecessário nessa fazen<strong>da</strong><br />

(BARROS, 1997, 46). Além <strong>de</strong> pastorear borboletas, ajeitar éguas para jumento, ensinar<br />

papagaio a fumar e assobiar com o subaco (id. ib., p.45).<br />

Já sobre a criação, segundo Afonso <strong>de</strong> Castro, em seu Livro A Poética <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong><br />

Barros, algumas afirmações, como “Vou nascendo <strong>de</strong> meu vazio” ou “Sei <strong>de</strong> muitas coisas<br />

<strong>da</strong>s cousas”, cercam o ser do poeta e<br />

[...] expõe a profundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e estabelecem o referencial ontológico do ser-poeta, do ser<br />

criador, transfazedor <strong>da</strong> natureza. O pressuposto <strong>da</strong> nu<strong>de</strong>z e do vazio é a condição para o<br />

ato criador[...] é o ato criador livre para instaurar e estabelecer o novo e, também, a<br />

palavra nova. Esta é a postura <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros neste Livro <strong>de</strong> Pré-coisas em relação<br />

ao ser-poeta e ser transfazedor <strong>da</strong> natureza pela palavra (CASTRO, 1992, p. 44).<br />

Castro salienta ain<strong>da</strong> a inauguração <strong>da</strong> nova criação estético-poética a partir do<br />

Tratado <strong>de</strong> Metamorfoses manoelino e que, ain<strong>da</strong> com tais inovações e variações em sua<br />

própria poética, Barros não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seu fluxo criador, fato observado<br />

também na poética <strong>de</strong> Ovídio, em que o po<strong>de</strong>r criador (no sentido mais amplo <strong>da</strong> palavra) do<br />

eu lírico torna-se notável a nós.<br />

Manoel <strong>de</strong> Barros, portanto, consegue a<strong>de</strong>quar a poética ovidiana e atribuir-lhe uma<br />

nova forma, em novo espaço e em novo tempo. Assim, apoiando-nos na teoria <strong>de</strong> Harold<br />

Bloom, apresenta<strong>da</strong> em seu livro A Angústia <strong>da</strong> Influência, po<strong>de</strong>-se dizer que o poeta<br />

transforma o texto clássico em um tipo apophra<strong>de</strong>s, ou seja, “expressa um retorno ao ponto<br />

<strong>de</strong> origem, ao proto-sentido perdido” (apud CARVALHAL, 1999, p. 59). Nota-se isso pelo<br />

próprio nome <strong>da</strong> obra (Livro <strong>de</strong> pré-coisas), em que o objeto a que se refere está em seu<br />

estado ain<strong>da</strong> “pré”, anterior. A busca ao retorno, portanto, faz-se presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o título. Há<br />

uma revalorização <strong>da</strong> poesia <strong>de</strong> Ovídio, gran<strong>de</strong> poeta que consegue atravessar os séculos nas<br />

escrituras <strong>de</strong> outros poetas.<br />

Os estudos comparados tornam-se, portanto, necessários para o trabalho, pois se po<strong>de</strong><br />

utilizar <strong>da</strong> investigação histórica pela conseqüente reflexão crítico-literária. Há um pano <strong>de</strong><br />

fundo literário que permeia outras poéticas no <strong>de</strong>correr dos tempos e que só o i<strong>de</strong>ntificamos<br />

por um estudo crítico-comparativo.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 68-73, 2008 72


Referências Bibliográficas:<br />

ALMEIDA, Napoleão Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong>. Gramática Latina: curso único e completo. 23. ed. São<br />

Paulo: Saraiva, 1990.<br />

BARROS, Manoel. Livro <strong>de</strong> Pré-coisas: roteiro para uma excursão poética no Pantanal. 2.<br />

ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 1997.<br />

BRUNEL, P.; PICHOIS, C.; ROUSSEAU, A.M. Que é Literatura Compara<strong>da</strong>?. Trad.<br />

Célia Berretini. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.<br />

CARVALHAL, Tânia. A literatura Compara<strong>da</strong>. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999.<br />

CASTRO, Afonso <strong>de</strong>. A poética <strong>de</strong> Manoel <strong>de</strong> Barros. Campo Gran<strong>de</strong>: UCDB, 1992.<br />

OVIDIO. As Metamorfoses. Trad. David Jardim Junior. São Paulo: Ediouro, 1983.<br />

OVIDIO. Metamorfoses. In: NOVAK, Maria <strong>da</strong> Glória & NERI, Maria Luiza (org.). Poesia<br />

Lírica Latina. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 68-73, 2008 73


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

Orfismo e Cristianismo<br />

Prof. Aluysio FÁVARO<br />

UEL<br />

Profª Cláudia Valéria Penavel BINATO<br />

FCL <strong>de</strong> Assis - UNESP<br />

claudiapbinato@uol.com.br<br />

O homem é espírito e matéria. Todos sentimos em nós esse dualismo. A matéria é<br />

perecível, o espírito, imperecível. Que é imperecível <strong>de</strong>duz-se pelo fato <strong>de</strong> o homem ter ínsito<br />

em si o tríplice <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e amor, certamente irrealizável aqui, mas como a<br />

natureza não se engana, há que realizar-se alhures, em outra forma <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

A matéria arrasta o homem para o visível, para o sensível, para a terra, para satisfazerse<br />

aqui e agora. A honra o seduz; a fortuna, a posse, o prazer o atraem, mas, se ele os tem, não<br />

se sacia, continua <strong>de</strong>sejando, ciente, contudo, <strong>da</strong> finitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Que adianta ter tudo, se um<br />

dia vai per<strong>de</strong>r tudo. Há momentos em que ele se sente invadido pela angústia; um temor<br />

esquisito se apo<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>le, mesmo quando não há razão aparente.<br />

Acompanha-o por to<strong>da</strong> parte e sempre a se<strong>de</strong> <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas felici<strong>da</strong><strong>de</strong> é gozo <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>-se encontrar quem queira enganar os outros, mas ninguém que queira ser<br />

enganado. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> encontra-se no cultivo do próprio interior. É a vi<strong>da</strong> interior que torna o<br />

homem mais humano, mais livre, mais senhor <strong>de</strong> si. Distanciando-se <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> interior, o<br />

homem distancia-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sempre po<strong>de</strong>m-se encontrar pessoas muito<br />

ricas e infelizes e pessoas pobres relativamente felizes. Quantos <strong>de</strong>sfrutam <strong>de</strong> todos o<br />

prazeres, mas em seu íntimo sentem-se vazios. O filósofo cristão Agostinho criou uma frase<br />

que exprime bem o que o homem realmente procura: Ad Te Deus nos fecisti et irriquietum est<br />

cor nostrum donece requiescat in Te 1 .<br />

Em todos os tempos e em to<strong>da</strong>s as partes <strong>da</strong> terra, homens se preocupam com seu<br />

<strong>de</strong>stino e procuram conhecer o sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e há os que, não satisfeitos <strong>de</strong> cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> si,<br />

preocupam-se com os outros e dão início a uma religião ou a movimentos religiosos,<br />

apontando a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> e como fazer para alcançá-la.<br />

Religião é relação do homem com a divin<strong>da</strong><strong>de</strong>. A religião do homem primitivo era<br />

uma religião anímica: animais, plantas, montes, fontes, forças <strong>da</strong> natureza eram para ele como<br />

que divin<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

1<br />

Santo Agostinho. Confissões I, 1,1: Fizeste-nos, Senhor, para ti e inquieto está nosso coração<br />

enquanto não repousar em ti.


As gran<strong>de</strong>s religiões que conhecemos são o cristianismo - com suas várias<br />

<strong>de</strong>nominações, o ju<strong>da</strong>ísmo, o islamismo, o budismo. To<strong>da</strong>s tiveram o seu fun<strong>da</strong>dor.<br />

Na Grécia antiga praticava-se a religião dos <strong>de</strong>uses olímpicos, o culto a Dionísio, <strong>de</strong>us<br />

Baco, a religião <strong>de</strong> Elêusis e a religião órifica, o orfismo.<br />

Dante Tringali consi<strong>de</strong>ra o orfismo como uma <strong>da</strong>s mais importantes religiões <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma religião completa, bem organiza<strong>da</strong>... com sua dogmática, sua moral, sua<br />

ascese, sua mística e sua liturgia; consi<strong>de</strong>ra também que há relações e analogias entre o<br />

orfismo e o cristianismo 2 .<br />

Tem-se a Orfeu como fun<strong>da</strong>dor do orfismo.<br />

Sobre ele na<strong>da</strong> se sabe. A primeira referência a ele é feita pelo poeta Íbico <strong>de</strong> Régio<br />

que diz ser Orfeu um nome famoso – onoma klyton. Sobre <strong>Home</strong>ro também na<strong>da</strong> se sabe, mas<br />

pelo menos atribuem-se-lhe duas epopéias, e sete ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s disputam a honra <strong>de</strong> ser sua pátria:<br />

Smyrna, Chios Colophon, Salamis, Rhodon, Argos, Athenae<br />

Orbis <strong>de</strong> Patria certat, <strong>Home</strong>re, tua.<br />

Por ser o orfismo uma religião popular e por na<strong>da</strong> se saber sobre seu fun<strong>da</strong>dor, a não<br />

ser o nome, criaram-se len<strong>da</strong>s mirabolantes em torno <strong>de</strong>le, passando a ser ele apenas uma<br />

figura lendária, mítica. Sua mãe foi uma musa, Calíope, seu pai um rio <strong>da</strong> Trácia, Oeagro, e<br />

sua esposa, a ninfa Eurídice. Tendo esta morrido, ele <strong>de</strong>sceu ao Ha<strong>de</strong>s para reavê-la e,<br />

encantando os ínferos com sua música, conseguiu que ela o acompanhasse <strong>de</strong> volta à vi<strong>da</strong>,<br />

mas per<strong>de</strong>u-a <strong>de</strong>finitivamente por ter olhado para trás, <strong>de</strong>satento ao interdito; participou <strong>da</strong><br />

expedição dos argonautas - len<strong>da</strong> que o coloca bem antes <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro – foi <strong>de</strong>vorado pelos<br />

Titãs, mas, renascido foi, por fim, esquartejado pelas bacantes.<br />

Essas criações, principalmente sua Katábasis ao Ha<strong>de</strong>s, e outras mais fazem <strong>de</strong>le um<br />

herói, e seu contato, sua experiência com o outro mundo, tornou-o um sábio capaz <strong>de</strong> ensinar<br />

os mistérios <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. To<strong>da</strong>s elas têm, afinal, um significado mítico.<br />

Na mitologia, o herói nasce <strong>de</strong> uma divin<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> um ser humano. Deve passar por<br />

ritos iniciáticos e se consagra como herói enfrentando muitas provações e, ao final, uma morte<br />

violenta.<br />

Quem consegue ir ao mundo do além e voltar torna-se sábio, é apto a instruir, orientar,<br />

ensinar. Quem consegue voltar do caminho sem volta, não é mais tão-somente humano 3 .<br />

2<br />

TRINGALI, Dante. O Orfismo. Apud CARVALHO, Sílvia Maria S.(org.) Orfeu, orfismo e viagens<br />

a mundos paralelos. São Paulo: Editora <strong>Unesp</strong>, 1990, p. 19.<br />

3<br />

CARVALHO, Sílvia Maria S.(org.) O Orfismo. Apud Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos.<br />

São Paulo: Editora <strong>Unesp</strong>, 1990, p. 13.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

75


De qualquer forma, houve um homem que <strong>de</strong>u início ao orfismo e foi certamente um<br />

homem <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor, recebeu um nome que se tornou famoso, foi um teólogo, um herói,<br />

um poeta, talvez um excepcional músico e cantor. Isso é algo que se po<strong>de</strong> aceitar.<br />

Se o que se diz sobre Orfeu são criações míticas para fun<strong>da</strong>mentar e valorizar<br />

ensinamentos, o orfismo foi uma religião histórica, popular e teve muitos seguidores, mas dáse-lhe<br />

importância exagera<strong>da</strong>.<br />

Existem muitas obras poéticas sob o nome Orfeu; há os hinos, os argonáuticas, os<br />

líticas. Com base nessas obras e através <strong>de</strong> Pín<strong>da</strong>ro, Eurípe<strong>de</strong>s, Platão..., po<strong>de</strong>-se chegar a<br />

conhecer algo <strong>da</strong> fase primitiva do orfismo. Na fase antiga, circulavam algumas teogonias<br />

ditas órficas. O neoplatônico Damásio fez uma resenha <strong>de</strong>las em seu escrito Perì tòn próton<br />

archón. Muito conhecido foi o poema em vinte e quatro cantos, hoje conhecido com o nome<br />

Teogonia rapsódica. O que se sabe sobre esses cantos permite conhecer, em seu aspecto<br />

formal, algumas <strong>de</strong>rivações hesio<strong>de</strong>as. Trata-se <strong>da</strong> criação do mundo, em que se misturam<br />

cosmogonia e teogonia.<br />

Os Titãs haviam <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çado e <strong>de</strong>vorado Zagreu, o primeiro Dionísio, mas, Júpiter,<br />

com seus raios, o transformou em cinzas, <strong>da</strong> qual nasceu o homem que traz em si o elemento<br />

divino, dionisíaco, e o elemento mau, titânico, terreno, por isso os órficos tinham uma<br />

concepção pessimista <strong>da</strong> natureza humana. E, com alguma segurança, po<strong>de</strong>m se situar, já no<br />

sexto século, os traços essenciais <strong>de</strong>ssa len<strong>da</strong>, <strong>de</strong>sses ensinamentos. É a partir <strong>de</strong>ssa len<strong>da</strong> que<br />

se <strong>de</strong>senvolvem as concepções <strong>da</strong> natureza e <strong>da</strong> alma, muito diversas <strong>da</strong>s <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro. A alma<br />

contém a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira essência do homem, o elemento divino. Após a morte, a alma não é<br />

apenas uma sombra reclusa no Ha<strong>de</strong>s (<strong>Home</strong>ro), mas, <strong>de</strong> acordo com sua vi<strong>da</strong> pregressa, ela<br />

vai para a Ilha dos Bem-aventurados ou sujeita-se à transmigração ou submete-se a castigos,<br />

que para alguns autores são eternos, para outros, não.<br />

Pín<strong>da</strong>ro, na II Olímpica, faz referência a essa crença e, visto dirigir-se a Terão <strong>de</strong><br />

Agrigento, seguidor <strong>da</strong> doutrina órfica, bastante difundi<strong>da</strong> na região (<strong>de</strong>monstram-no as<br />

lâminas <strong>de</strong> ouro <strong>da</strong> Itália meridional chama<strong>da</strong>s passaportes dos mortos – Diels -, que eram<br />

coloca<strong>da</strong>s nas tumbas dos mortos <strong>da</strong> seita e <strong>de</strong>viam ajudá-los a encontrar o caminho certo do<br />

além: sejas bem-vindo, tu que caminhas pela estra<strong>da</strong> <strong>da</strong> direita em direção às campinas<br />

sagra<strong>da</strong>s e ao bosque <strong>de</strong> Perséfone...), é bem provável que a crença a que ele se refere seja a<br />

órfica. Com base nesse escrito, po<strong>de</strong>-se supor que os órficos cultivassem a crença numa vi<strong>da</strong><br />

feliz além-túmulo ou em sucessivas reencarnações, e que se esforçassem por purificar a alma<br />

para que assim ela pu<strong>de</strong>sse livrar-se do peso do corpo, libertando o divino <strong>da</strong> prisão.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

76


Além dos escritos teogônicos, contam-se ain<strong>da</strong> os carmes <strong>de</strong> purificação e uma<br />

katábasis, ou <strong>de</strong>sci<strong>da</strong> <strong>de</strong> Orfeu aos ínferos.<br />

Como membros <strong>de</strong> um movimento <strong>de</strong> profun<strong>da</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, os órficos formavam<br />

grupos, faziam reuniões, ouviam instruções sobre os ensinamentos e praticavam ritos<br />

diversos.<br />

Quanto ao orfismo e, em especial à doutrina <strong>da</strong> transmigração, não se po<strong>de</strong> precisar a<br />

origem. De qualquer forma, o <strong>de</strong>senvolvimento do orfismo se <strong>de</strong>u no mundo grego. Mas, por<br />

serem escassos os escritos órficos e pouco se saber sobre ele não se po<strong>de</strong> sobrevalorizá-lo.<br />

É interessante acrescentar o que escreve Tringali: os órficos acreditam num pecado<br />

original coletivo, na existência do elemento titânico, o corpo, <strong>de</strong> que se <strong>de</strong>vem libertar... os<br />

homens se distinguem pela virtu<strong>de</strong>... o corpo é perecível, a alma, imortal, preexiste e<br />

sobrevive ao corpo e se <strong>de</strong>stina a um lugar feliz ou a um lugar <strong>de</strong> penas ou a reencarnações<br />

sucessivas. Da crença na transmigração <strong>de</strong>duz-se o vegetarianismo.<br />

Como eram <strong>de</strong>votos <strong>de</strong> Dionísio tinham momentos <strong>de</strong> êxtase, mas individualmente,<br />

não coletivamente como os dionisíacos. O orfismo abarcava a vi<strong>da</strong> integral do homem, tinha<br />

sua ascese e seu culto, principalmente a iniciação. Influenciou a filosofia e <strong>de</strong>ixou marcas na<br />

poesia. Mais afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s tem Platão com o orfismo e mais relações há entre o orfismo e o<br />

pitagorismo. O homem é um composto <strong>de</strong> corpo e alma. A alma, centelha divina, é prisioneira<br />

do corpo; há reencarnação, pratica-se a purificação; há um <strong>de</strong>stino eterno. Tanto os órficos<br />

quanto os o pitagóricos respeitavam os animais 4 .<br />

Atribui-se importância exagera<strong>da</strong> ao orfismo, atribuem-se analogias e relações com o<br />

cristianismo. Se há alguma analogia entre ambas as religiões, ela existe certamente no<br />

dualismo corpo - alma e no antagonismo entre aquele e esta, pregado pela filosofia platônica e<br />

abraçado por Santo Agostinho; existe mais ain<strong>da</strong> na crença na imortali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alma,<br />

diferindo, no entanto, uma <strong>da</strong> outra quanto ao <strong>de</strong>stino do corpo. Para o orfismo o corpo,<br />

cárcere <strong>da</strong> alma, é por ela abandonado na morte e segue seu <strong>de</strong>stino, a corrupção,<br />

simplesmente torna-se pó.<br />

O cristianismo, referindo-se ao corpo, diz: memento homo quia pulvis es et in<br />

pulverem reverteris 5 – lembra-te, homem, que és pó e ao pó voltarás -, mas prega que também<br />

o corpo ressuscitará.<br />

4<br />

TRINGALI, Dante. O Orfismo. Apud CARVALHO, Sílvia Maria S.(org.) Orfeu, orfismo e viagens<br />

a mundos paralelos. São Paulo: Editora <strong>Unesp</strong>, 1990, p. 21.<br />

5<br />

Liturgia <strong>da</strong> Quarta-Feira <strong>de</strong> Cinzas, ao se impor a cinza na cabeça do penitente.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

77


Para o cristianismo o corpo não é titânico, proveniente do mal, mas companheiro e<br />

instrumento <strong>da</strong> alma, é criatura <strong>de</strong> Deus e é sagrado: não sabeis que sois o templo <strong>de</strong> Deus e<br />

que o espírito <strong>de</strong> Deus habita em vós? 6 O próprio filho <strong>de</strong> Deus assumiu o corpo humano e o<br />

elevou ao céu.<br />

Mas, dirá alguém:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

Como ressussitam os mortos? Com que corpo voltam eles? Insensato! O que<br />

tu semeias não retorna à vi<strong>da</strong> se não morrer e o que tu semeias não é o<br />

corpo que virá um dia (não é a planta que surgirá) mas um simples grão...Há<br />

corpos celestes e há corpos terrestres... Semeia-se corpo animal, ressussitase<br />

corpo espititual; o primeiro homem tirado <strong>da</strong> terra é terreno, o segundo<br />

vem do céu 7 .<br />

Mas, o que há <strong>de</strong> mais comum entre ambas, como entre to<strong>da</strong>s as religiões, é que to<strong>da</strong>s<br />

pregam o bem, a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> do homem, e que o homem <strong>de</strong>ve relacionar-se com a divin<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

No entanto, entre o orfismo e o cristianismo há uma distância incomensurável. O <strong>de</strong>us<br />

do orfismo é Dionísio, mas os órficos certamente reconheciam outras divin<strong>da</strong><strong>de</strong>s, ao passo<br />

que o Deus do cristianismo é o Deus revelado, Deus único, é a Santíssima Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Distância inigualável entre o cristianismo e o orfismo há ain<strong>da</strong> quanto à reencarnação.<br />

O orfismo afirma-a, o cristianismo a repudia totalmente. Cristo jamais falou <strong>de</strong> reencarnação,<br />

ele só pregou ressurreição:<br />

Et quemadmodum statutum est homnibus semel mori, post hoc autem<br />

judicium – e como está <strong>de</strong>cretado aos homens morrer uma só vez, <strong>de</strong>pois<br />

disso, o juízo 8 .<br />

Distância infinita existe entre ambas as religiões em razão dos fun<strong>da</strong>dores. Quem é<br />

Orfeu? Quem é Jesus Cristo? Sobre Orfeu já ouvimos; quanto a Cristo, ele é homem<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, bem situado na história, e é também ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro Deus.<br />

O que dizem os evangelhos sobre ele, o que ele falou e ensinou, como foi sua<br />

passagem por este mundo prova sobejamente que ele é Deus.<br />

Vejamos: suas parábolas, por exemplo, o filho pródigo, o bom pastor..., o sermão <strong>da</strong><br />

montanha, como superou em todos os enfrentamentos os chefes do povo <strong>de</strong> Israel. Eles<br />

queriam apanhá-lo com alguma cila<strong>da</strong> para con<strong>de</strong>ná-lo à morte:<br />

6 I Cor. 3, 16<br />

7 Paulo, I Cor. 15,35ss<br />

8 Paulo aos hebreus 9,27.<br />

- Mestre, é lícito pagar imposto a César?<br />

- Mostrai-me uma moe<strong>da</strong>. De quem é a imagem e inscrição?<br />

78


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

- De César, respon<strong>de</strong>m.<br />

- Daí, então, a César o que é <strong>de</strong> César e a Deus o que é <strong>de</strong> Deus 9 .<br />

- Mestre, apanhamos esta mulher em adultério. A lei man<strong>da</strong> apedrejá-la.<br />

Que dizes?<br />

- Atira a primeira pedra quem estiver sem pecado.<br />

Ninguém teve coragem <strong>de</strong> fazê-lo, lendo o que ele escrevia no chão. E ele<br />

voltando-se para a mulher disse:<br />

- Ninguém te con<strong>de</strong>nou?<br />

- Ninguém, Senhor.<br />

- Nem eu te con<strong>de</strong>no, disse Jesus. Vai em paz e não tornes a pecar. 10<br />

Após a ressurreição, soprando sobre eles disse: Recebei o Espírito Santo, aqueles, a<br />

quem perdoar<strong>de</strong>s os pecados, serão perdoados 11 .<br />

E, ao ladrão, na hora <strong>da</strong> morte disse: Ain<strong>da</strong> hoje estarás comigo no paraíso 12 .<br />

Nenhum sábio, nenhum filósofo, nem um fun<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> religião ensinou o homem a<br />

dirigir-se a Deus chamando-o <strong>de</strong> Pai. Somente ele o fez, ensinando a mais bela, a mais sábia,<br />

a mais completa oração.<br />

E mais, ele proferiu palavras inauditas sobre si mesmo:<br />

Eu sou o pão vivo que <strong>de</strong>sceu do céu; se alguém comer <strong>de</strong>ste pão, viverá<br />

eternamente; e o pão que eu <strong>da</strong>rei é a minha carne pela vi<strong>da</strong> do mundo<br />

Puseram-se, então, os ju<strong>de</strong>us a altercar entre si dizendo: Como po<strong>de</strong> ele <strong>da</strong>rnos<br />

a comer a sua carne? Jesus disse-lhes: Em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, em ver<strong>da</strong><strong>de</strong> vos<br />

digo: se não comer<strong>de</strong>s a carne do filho do homem e não beber<strong>de</strong>s o seu<br />

sangue, não tereis a vi<strong>da</strong> em vós. Quem come a minha carne e bebe meu<br />

sangue, tem a vi<strong>da</strong> eterna, e eu o ressuscitarei no ultimo dia...<br />

Muitos dos seus discípulos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvirem tais palavras disseram: É dura<br />

tal linguagem, quem po<strong>de</strong> escutá-la? 13<br />

Por isso, perguntou Jesus aos doze: Também vós quereis partir? Respon<strong>de</strong>ulhe<br />

Simão Pedro: Para quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras <strong>de</strong> vi<strong>da</strong><br />

eterna...<br />

E o que disse ao sumo sacerdote no momento em que este solenemente lhe perguntou:<br />

És o Filho <strong>de</strong> Deus? Ele respon<strong>de</strong>u claramente: Eu o sou 14 .<br />

9 Matheus 22,15ss<br />

10 João 8, 1-11<br />

11 João 20, 22<br />

12 Lucas 23, 42<br />

13 João 6,51ss<br />

79


Que homem diria tais palavras, palavras cujo sentido ultrapassa to<strong>da</strong> a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

humana, sem ser consi<strong>de</strong>rado um <strong>de</strong>svairado? Ele, porém, as disse com a autori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> quem<br />

as po<strong>de</strong> dizer.<br />

Como enfrentou o martírio. Momentos antes <strong>da</strong> prisão, suou sangue. Depois <strong>de</strong> uma<br />

noite <strong>de</strong> tortura tomou a cruz em seus ombros e todo cheio <strong>de</strong> chagas e coroado <strong>de</strong> espinhos<br />

fez a caminha<strong>da</strong> até o Monte Calvário.<br />

Durante três horas, em intermináveis segundos suspenso na cruz, com as mãos e os pés<br />

perfurados, suportou o martírio com total domínio <strong>da</strong> dor, mantendo to<strong>da</strong> a luci<strong>de</strong>z <strong>de</strong> espírito<br />

e proferindo palavras distintas e plenas <strong>de</strong> sentido.<br />

Nesses momentos supremos <strong>de</strong> sua paixão, proferiu palavras que nos fazem pensar. Às<br />

mulheres que choravam por vê-lo em tanto sofrimento: Não choreis por mim. Chorai por vós<br />

mesmas e por vossos filhos 15 . E , ao ser pregado na cruz: Pai, perdoai-lhes porque não sabem<br />

o que fazem 16 . E <strong>da</strong>ndo por encerra<strong>da</strong> a sua missão, dirigiu-se ao Pai: Pai, em tuas mãos<br />

entrego o me espírito 17 . E finalmente, <strong>da</strong>ndo um alto brado, disse: Consumatum est 18 . E<br />

trevas cobriram a terra.<br />

Que homem seria capaz <strong>de</strong> suportar tão gran<strong>de</strong> martírio com total domínio sobre a dor<br />

e total controle <strong>de</strong> suas emoções?<br />

Já houve quem dissesse que tudo isso, tudo o que consta nos evangelhos, não passa <strong>de</strong><br />

criações cerebrinas, como se alguém fosse capaz <strong>de</strong> tais criações. Nem os maiores sábios<br />

seriam capazes <strong>de</strong> elaborar o que está contido nos evangelhos, máxime certas frases ditas por<br />

Jesus, as quais seriam um completo absurdo proferi<strong>da</strong>s por alguém que não fosse ele. Ele,<br />

porém, teve autori<strong>da</strong><strong>de</strong> para dizê-las.<br />

Reconhecem os racionalistas que Jesus teve a inteligência mais sublime que um ser<br />

humano po<strong>de</strong> ter, que ele criou o ensinamento mais perfeito para a humani<strong>da</strong><strong>de</strong>, que ninguém<br />

será capaz <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> conhecer, em profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, suas sentenças e parábolas, que<br />

ele foi <strong>de</strong> absoluta perfeição moral, <strong>de</strong> conduta <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>, que se conduziu na vi<strong>da</strong> com to<strong>da</strong><br />

humil<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas também com soberana autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, que suportou os sofrimentos mais atrozes,<br />

todo ódio, ofensa, com completo domínio sobre si, que foi perfeito na inteligência e na moral,<br />

14 Marcos 14,61<br />

15 Lucas 23, 28<br />

16 Lucas 23, 34<br />

17 Lucas 23, 46<br />

18 João 19, 30<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

80


que foi a alma mais bela que já existiu, que é mais que homem, que há entre Ele e nós uma<br />

distância insuperável.<br />

Escreveu Rousseau: Se a vi<strong>da</strong> e a morte <strong>de</strong> Sócrates são <strong>de</strong> um sábio, as <strong>de</strong> Jesus são<br />

as <strong>de</strong> um Deus 19 .<br />

Renan o coloca no mais alto cimo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za humana, como princípio inesgotável <strong>de</strong><br />

conhecimento moral 20 .<br />

Dizem e pensam tudo isso sobre Jesus os racionalistas, mas não o reconhecem como<br />

Deus, o que é o mesmo que afirmar uma coisa e ao mesmo tempo negá-la. Dizendo ser Jesus<br />

inatingível por qualquer homem na inteligência, na moral, no domínio sobre si mesmo, ser<br />

perfeito em tudo, mas não aceitar o que ele disse sobre si mesmo é o mesmo que tê-lo por<br />

paranóico, por impostor, pois, ele afirmou repeti<strong>da</strong>s vezes que é o Filho <strong>de</strong> Deus, que existe<br />

antes <strong>de</strong> Abraão, que é mais que Salomão e chegou a ameaçar <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nação quem não<br />

acredita nele, que tem todo po<strong>de</strong>r no céu e na terra e que virá no dia do juízo julgar to<strong>da</strong> a<br />

humani<strong>da</strong><strong>de</strong>. Diante disso, <strong>de</strong>vemos dizer que eles é que são insensatos. Jesus Cristo é<br />

realmente o Filho <strong>de</strong> Deus e o cristianismo é uma religião divina.<br />

A maioria dos homens, no tocante à religião, ain<strong>da</strong> hoje <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>da</strong> razão, não têm<br />

clareza sobre aquilo que realmente interessa saber: <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vêm, para on<strong>de</strong> vão, qual o<br />

sentido <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem o universo.<br />

Ao passo que os cristão sabem, pela revelação, que Deus é o princípio e o fim <strong>de</strong> tudo,<br />

que a lei máxima que garante a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> do homem é: amar a Deus sobre to<strong>da</strong>s as coisas e ao<br />

próximo como ca<strong>da</strong> um se ama.<br />

A teologia cristã está conti<strong>da</strong> no credo niceno-constantinopolitano, ato <strong>de</strong> fé na<br />

revelação – mesmo as igrejas cristãs que não o adotam aceitam o que nele se afirma: há um só<br />

Deus, ser supremo, criador <strong>da</strong> terra e <strong>de</strong> tudo que nela existe, dos bilhões e bilhões <strong>de</strong> estrelas.<br />

Jesus Cristo é o enviado do Pai, gerado e não criado. Ele veio para libertar o homem do jugo<br />

do pecado e para orientá-lo rumo à eterni<strong>da</strong><strong>de</strong> feliz. Ele veio ao mundo nascendo como<br />

homem do seio <strong>de</strong> Maria. Ele é Deus como o Pai, natureza divina <strong>de</strong>s<strong>de</strong> to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

Verbo <strong>de</strong> Deus, que assumiu no tempo a natureza humana; é, portanto, ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro Deus e<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro homem, uma pessoa, a divina, em duas naturezas. Há também o Espírito que<br />

proce<strong>de</strong> do Pai e do Filho, Deus como o Pai e o Filho. Em Deus, há, pois, três pessoas, ou<br />

19<br />

Apud LABURU, José A. <strong>de</strong>. Jesus Cristo é Deus. Conferências sobre a divin<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus Cristo.<br />

10ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1974. p. 84<br />

20<br />

I<strong>de</strong>m, p..80.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

81


Deus é uno em três pessoas, é o mistério dos mistérios. Tanto dista <strong>da</strong> mente humana, quanto<br />

dista o na<strong>da</strong> do tudo.<br />

Não se po<strong>de</strong> comparar o átomo em gran<strong>de</strong>za com o universo. Não po<strong>de</strong> o homem, um<br />

ser tão pequeno como um grão <strong>de</strong> pó, perdido no universo, preten<strong>de</strong>r compreen<strong>de</strong>r Deus que é<br />

simplesmente infinito, que é infinitamente maior do que tudo que sabemos, e <strong>de</strong> tudo que não<br />

sabemos. O mistério <strong>da</strong> Trin<strong>da</strong><strong>de</strong> é por isso artigo <strong>de</strong> fé, não <strong>da</strong> compreensão do ser humano.<br />

Para coroar a crença na Trin<strong>da</strong><strong>de</strong>, na vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> Cristo ao mundo para redimir o homem<br />

do pecado, o cristão crê firmemente na ressurreição e na vi<strong>da</strong> eterna. São esses os<br />

ensinamentos, e para aju<strong>da</strong>r a manter a fé nesses ensinamentos revelados e a esperança na<br />

vi<strong>da</strong> eterna e assim crescer no amor a Deus e ao próximo e manter-se no caminho que o leva à<br />

felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, a sua plena realização como ser humano propõe-se a leitura e meditação <strong>da</strong> Bíblia,<br />

especialmente o Novo Testamento, conjunto <strong>de</strong> livros que se consi<strong>de</strong>ram como a carta <strong>de</strong><br />

Deus aos homens, como a revelação dos planos divinos.<br />

Outros meios são: participação nos cultos religiosos, encontros <strong>de</strong> estudos, orações<br />

comunitárias, a prática <strong>da</strong> cari<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>da</strong> ascese.<br />

Além <strong>de</strong>sses meios, ou melhor, como meio por excelência, a igreja Católica Romana,<br />

assim como a Ortodoxa e algumas <strong>de</strong>nominações evangélicas, reavivam e rememoram o<br />

sacrifício <strong>de</strong> Cristo, centro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cristã. Há ain<strong>da</strong> os sacramentos: batismo, crisma,<br />

penitência, eucaristia, matrimônio, or<strong>de</strong>m e unção dos enfermos.<br />

Como norma <strong>de</strong> conduta <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, propõem-se os <strong>de</strong>z man<strong>da</strong>mentos. São leis entregues<br />

por Deus a Moisés. São o caminho que todo homem, e não apenas os cristãos, <strong>de</strong>ve seguir se<br />

quiser ser feliz, pois são compêndios <strong>da</strong> lei divina.<br />

Mas, o homem é livre e Deus respeita a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> do homem.<br />

Por essas razões, vemos que entre Orfeu, figura mítica, e Cristo, homem na história e<br />

Verbo <strong>de</strong> Deus, a distância é infinita, e que a distância entre o orfismo e o cristianismo é a que<br />

existe entre aquilo que o homem é capaz <strong>de</strong> conhecer pelos seus próprios recursos e aquilo<br />

que lhe é revelado por Deus.<br />

Para concluir, Deus é o bem supremo. É princípio filosófico: Bonum difusivum sui.<br />

Deus criou o homem no transbor<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> sua felici<strong>da</strong><strong>de</strong> e quer a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> do homem.<br />

Po<strong>de</strong> uma mãe esquecer o fruto <strong>de</strong> suas entranhas? Eu jamais me esquecerei.<br />

Num encontro com Dalai Lama, Leonardo Boff perguntou: Santi<strong>da</strong><strong>de</strong>, qual é a melhor<br />

religião?<br />

Dalai Lama respon<strong>de</strong>u: A melhor religião é a que mais te aproxima <strong>de</strong> Deus, é a que<br />

te faz melhor.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

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Leonardo, porém insistiu: E o que me faz melhor?<br />

- É aquilo que te faz mais compassivo, mais sensível, mais <strong>de</strong>sapegado, mais amoroso,<br />

mais humanitário, mais responsável. A religião que conseguir fazer isso <strong>de</strong> ti é a melhor 21 .<br />

Referências Bibliográficas:<br />

Bíblia – Tradução dos textos originais, com notas, dirigi<strong>da</strong> pelo Pontifício Instituto Bíblico <strong>de</strong><br />

Roma. São Paulo: Edições Paulinas. 1967<br />

BRANDÃO. Junito <strong>de</strong> Souza. Mitologia Grega. v. I. Petrópolis: Editora Vozes, 1996.<br />

CARRIÈRE, Jean-Clau<strong>de</strong> et allii. O olhar <strong>de</strong> Orfeu. Os mitos literários do Oci<strong>de</strong>nte.<br />

Organização: Berna<strong>de</strong>tte Bricout. Tradução: Lelita O. Benoit. São Paulo: Companhia<br />

<strong>da</strong>s Letras, 2003.<br />

CARVALHO, Sílvia Maria S.(org.) Orfeu, orfismo e viagens a mundos paralelos. São<br />

Paulo: Editora <strong>Unesp</strong>, 1990.<br />

LABURU, José A. <strong>de</strong>. Jesus Cristo é Deus. Conferências sobre a divin<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Jesus Cristo.<br />

10ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 1974.<br />

LESKY. Albin, Geschichte <strong>de</strong>r griechischen Literatur. Storia <strong>de</strong>lla letteratura greca. V.1<br />

Traduzione di Fausto Codino. Milano: Il Saggiatore. 1962.<br />

Novum Testamentum Graece et Latine. Editio Stereotypa Quinta<strong>de</strong>cima. Lipsiae. 1907<br />

SANTO AGOSTINHO. Confissões. De magistro. São Paulo: Ed. Abril, 1980.<br />

21 Jornal Rumos . Ano 26, nº. 206 julho/setembro 2008.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 74-83, 2008<br />

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Lingüística, Poética e Cultura: estudos do enunciado latino (IV Bucólica <strong>de</strong><br />

Virgílio)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 84-89, 2008<br />

Thalita Morato FERREIRA<br />

G – FCLAr – UNESP<br />

Prof. Dr. Márcio THAMOS<br />

FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

thalitamorato@yahoo.com.br<br />

A poesia tem a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> perpetuar valores e <strong>de</strong> registrar um povo e um momento <strong>da</strong><br />

fala <strong>de</strong>sse povo. Assim, por meio <strong>da</strong> poesia, po<strong>de</strong>mos tentar resgatar a cultura e a beleza do<br />

mundo romano que se perpetua na fala <strong>de</strong> autores legítimos, aqueles que, vivendo na<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana, adotaram o latim como meio legítimo <strong>de</strong> comunicação e por meio <strong>de</strong>sse<br />

idioma expressaram sua cultura e a perpetuaram. Portanto, é na fala <strong>de</strong> um autor como<br />

Virgílio, um falante natural, que o presente trabalho ganha consistência.<br />

Somente a língua materna tem a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar com legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> a cultura <strong>de</strong> um<br />

povo, e como bem atesta Alceu Dias Lima “a única língua compatível com o homem e com a<br />

sabedoria é a <strong>da</strong> poesia”. Assim, o presente trabalho, intitulado “Lingüística, poética e<br />

cultura: estudos do enunciado latino”, procura estu<strong>da</strong>r o registro textual <strong>de</strong> um falante<br />

natural, alguém que, imerso na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana, pô<strong>de</strong>-se servir do idioma latino em to<strong>da</strong> e<br />

qualquer situação <strong>de</strong> comunicação, sem nenhum grau <strong>de</strong> artificialismo. Não se trata aqui <strong>de</strong><br />

um purismo estéril e conservador em relação aos textos clássicos, mas sim <strong>de</strong> acreditar que é<br />

só por meio do uso que falantes naturais fizeram <strong>de</strong>ssa língua antiga que conseguimos<br />

apreen<strong>de</strong>r a cultura e a beleza <strong>de</strong> um povo inteiro.<br />

Tendo em vista que a herança literária dos antigos romanos não está encerra<strong>da</strong> no<br />

passado, mas permanece no tempo, com avi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> presente, como um legado legítimo para as<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s atuais, po<strong>de</strong>mos apreen<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>nsi<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural <strong>da</strong> civilização romana,<br />

imortaliza<strong>da</strong> na expressão poética <strong>de</strong> um autor como Virgílio, por exemplo. Assim,<br />

escolhemos para este estudo a IV Bucólica 1 <strong>de</strong>sse autor latino.<br />

O latim, idioma materno dos antigos romanos, comumente recebe o epíteto <strong>de</strong> língua<br />

morta. Contudo, é necessário combater a idéia <strong>de</strong> morte que, in<strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente, é imputa<strong>da</strong> a<br />

esse idioma antigo, porque, afinal, o que morre são os falantes e não a língua e, embora a<br />

1 As Bucólicas foram a primeira obra divulga<strong>da</strong> do poeta. Trata-se <strong>de</strong> uma coleção <strong>de</strong> <strong>de</strong>z poemas curtos<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, compostos em hexâmetros e produzidos entre 42 e 37 a.C.


língua latina, <strong>de</strong>vido à extinção <strong>de</strong> seus falantes naturais, tenha <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> apresentar<br />

variações <strong>de</strong> qualquer natureza em seu sistema, não há que se falar que esteja morta, já que<br />

po<strong>de</strong>mos resgatar todo um legado cultural do mundo romano, por meio <strong>da</strong> fala <strong>de</strong> autores<br />

como Virgílio, aqueles que pu<strong>de</strong>ram sentir o mundo romano por meio <strong>de</strong>ssa língua antiga,<br />

sem artificialismo. Julga-se, pois, que qualquer tentativa <strong>de</strong> se produzir hoje um enunciado em<br />

língua latina, por alguém que não tenha vivenciado to<strong>da</strong> a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> histórica e cultural do<br />

mundo romano, não passará <strong>de</strong> uma simulação do que, por ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong>, se quer chamar <strong>de</strong><br />

latim.<br />

O que nos compete, neste trabalho específico, é a obtenção <strong>da</strong> competência receptiva<br />

<strong>da</strong> língua latina em sua mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> escrita, já que o trabalho tem como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> o<br />

texto legítimo, ou seja, a representação <strong>da</strong> enunciação viva <strong>de</strong> falantes naturais, aqueles que<br />

adotaram o latim por uma necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> real <strong>de</strong> comunicação e pu<strong>de</strong>ram atualizar a sua língua<br />

com legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O trabalho ain<strong>da</strong> tem o intuito <strong>de</strong> reconhecer, nos versos <strong>de</strong> Virgílio, certos<br />

efeitos <strong>de</strong> sentido que po<strong>de</strong>m ser captados pela percepção <strong>da</strong> leitura e julga-se necessário<br />

refletir <strong>de</strong> que modo o arranjo particular <strong>da</strong> linguagem <strong>de</strong> um autor como Virgílio po<strong>de</strong> ser<br />

responsável pela expressão <strong>de</strong>sses efeitos. O pesquisador iniciante, visando a competência<br />

receptiva <strong>da</strong> língua latina, tem o intuito <strong>de</strong> elaborar uma tradução <strong>de</strong> estudo do texto <strong>de</strong><br />

Virgílio e fornecer um subsídio básico para a leitura do original em latim, juntamente com as<br />

notas <strong>de</strong> cultura que, geralmente, reclama um texto antigo.<br />

Sob a luz dos conceitos explicitados por Ferdinand <strong>de</strong> Saussure, foi possível perceber<br />

que o latim, como qualquer outra língua, só po<strong>de</strong> ser analisado do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> sincronia,<br />

porque é ela, a sincronia, que constitui a única e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> língua. Uma vez que<br />

se encontra impossibilitado <strong>de</strong> apresentar variações <strong>de</strong> qualquer natureza em seu sistema, em<br />

sua estrutura fonológica, morfossintática e lexical, po<strong>de</strong>-se dizer que o latim é uma língua <strong>de</strong><br />

sincronia fecha<strong>da</strong>, ao passo que as línguas mo<strong>de</strong>rnas, que ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong>m ser atualiza<strong>da</strong>s por<br />

falantes naturais, seriam línguas <strong>de</strong> sincronia aberta. Ora, ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong>mos assimilar o sistema<br />

<strong>da</strong> língua latina por meio <strong>da</strong> fala, por meio do uso que falantes naturais fizeram <strong>de</strong>ssa língua<br />

antiga.<br />

De acordo com Émile Benveniste (1976) “língua e socie<strong>da</strong><strong>de</strong> não se concebem uma<br />

sem a outra” e “a cultura é inerente à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> dos homens, qualquer que seja o nível <strong>de</strong><br />

civilização”. Assim, o estudo do idioma materno dos antigos romanos só encontrará<br />

legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong> quando entrarmos em contato com o registro textual <strong>de</strong> um autor como Virgílio,<br />

por exemplo, que adotou naturalmente o latim como meio <strong>de</strong> expressão e atualizou sua língua<br />

por meio <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> discursos, por meio <strong>de</strong> seus versos, por exemplo. Logo, po<strong>de</strong>-se<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 84-89, 2008<br />

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abor<strong>da</strong>r o latim pelo ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> sincronia, apreen<strong>de</strong>ndo-se o funcionamento<br />

morfossintático <strong>de</strong>ssa língua através <strong>de</strong> textos que foram produzidos por um falante natural.<br />

Com o objetivo <strong>de</strong> realizar uma tradução literal do córpus selecionado e <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r<br />

o sistema formal <strong>da</strong> língua latina, bem como o arranjo particular <strong>da</strong> linguagem <strong>de</strong> Virgílio, o<br />

trabalho investiu no conhecimento morfossintático do idioma materno do poeta, a fim <strong>de</strong><br />

obter, por parte do pesquisador iniciante, a competência receptiva <strong>da</strong> língua latina em sua<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> escrita, bem como <strong>de</strong> apreen<strong>de</strong>r um pouco do legado cultural que se perpetua por<br />

meio <strong>da</strong> expressão poética <strong>de</strong> um falante natural.<br />

Estes versos foram extraídos do texto <strong>de</strong> Virgílio (hex. 8-10) e escolhidos para<br />

apresentação como exemplo <strong>de</strong> arranjo particular <strong>da</strong> linguagem, cujos efeitos <strong>de</strong> sentido não<br />

po<strong>de</strong>ríamos apreen<strong>de</strong>r plenamente sem as referências <strong>de</strong> cultura (os versos também contêm o<br />

cerne do que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a IV Bucólica representa, um hino à esperança):<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 84-89, 2008<br />

Tu modo nascenti puero, quo ferrea primum<br />

<strong>de</strong>sinet ac toto surget gens aurea mundo<br />

casta, faue, Lucina: tuus iam regnat Apollo.<br />

[Tu, ó casta Lucina, favorece o menino que está nascendo agora, com o qual, pela<br />

primeira vez, uma raça <strong>de</strong> ferro cessará e uma <strong>de</strong> ouro surgirá no mundo inteiro: já<br />

reina o teu Apolo]<br />

A IV Bucólica nos revela o nascimento <strong>de</strong> uma criança como símbolo <strong>da</strong> esperança, a<br />

condição necessária para se instaurar, novamente, a harmonia e a paz sobre a Terra. É por<br />

meio do nascimento <strong>de</strong> uma criança que se terá o retorno <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro, que marca um<br />

período <strong>de</strong> prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong> e alegria, ao passo que as outras I<strong>da</strong><strong>de</strong>s (a <strong>de</strong> Prata, a <strong>de</strong> Bronze, e a<br />

<strong>de</strong> Ferro) marcam a cruel<strong>da</strong><strong>de</strong> e feal<strong>da</strong><strong>de</strong> humanas, numa <strong>de</strong>cadência progressiva que na<strong>da</strong><br />

tem a ver com harmonia e prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Assim, estes versos assinalam o nascimento <strong>de</strong> um<br />

menino, uma criança que será responsável pela instauração <strong>da</strong> harmonia e <strong>da</strong> paz sobre a<br />

Terra, do retorno <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro. Os versos evocam a casta Lucina que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, é<br />

Diana, geralmente conheci<strong>da</strong> como a <strong>de</strong>usa <strong>da</strong> caça, mas também como a própria Lua, e<br />

responsável pela proteção nos partos. Há também a evocação <strong>de</strong> Apolo, irmão <strong>de</strong> Diana,<br />

conhecido como o <strong>de</strong>us sol, como protetor <strong>da</strong>s artes e exímio tocador <strong>de</strong> flauta, quando<br />

evocado pelo universo pastoril.<br />

Com o retorno <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro, a terra, mesmo sem ser cultiva<strong>da</strong>, produzirá tudo<br />

sozinha e (hex 21-23):<br />

Ipsae lacte domum referent distenta capellae<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 84-89, 2008<br />

ubera, nec magnos metuent armenta leones;<br />

Ipsa tibi blandos fun<strong>de</strong>nt cunabula flores.<br />

[As próprias cabritinhas levarão à casa as tetas cheias <strong>de</strong> leite, e os rebanhos não<br />

temerão os terríveis leões; para ti o próprio berço espalhará as <strong>de</strong>lica<strong>da</strong>s flores]<br />

Dentro do sistema <strong>da</strong> língua há elementos que se inter<strong>de</strong>finem. Logo, se retirássemos<br />

dos versos os adjetivos magnos e blandos, os versos não teriam sentido algum, já que tanto<br />

armenta e cunabula, substantivos neutros, como leones e flores, substantivos masculinos,<br />

po<strong>de</strong>riam ocupar tanto o lugar <strong>de</strong> sujeito como o <strong>de</strong> objeto na frase latina. Sem os adjetivos as<br />

frases latinas ficariam ambíguas, já que não saberíamos se os rebanhos não temeriam os leões<br />

ou se os leões não temeriam os rebanhos, por exemplo. Assim, qual seria o sujeito e o objeto<br />

<strong>da</strong> frase latina?<br />

Os versos <strong>de</strong> Virgílio trazem os adjetivos magnos e blandos, e é só por meio <strong>de</strong>les que<br />

a ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> termina, já que eles só po<strong>de</strong>m concor<strong>da</strong>r com um substantivo masculino plural<br />

e no caso, acusativo, ou seja, objeto direto. Logo, os substantivos leones e flores só po<strong>de</strong>rão<br />

ser os objetos <strong>da</strong> frase, uma vez que os adjetivos, que concor<strong>da</strong>m em gênero, número e caso,<br />

contribuíram para a não ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> frase. Ora, como bem elucidou Saussure (2003), “um<br />

termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o prece<strong>de</strong> ou ao que o segue, ou a ambos”;<br />

assim leones e flores adquirem seu valor quando se opõem a armenta e cunabula<br />

respectivamente, porque, ao se <strong>de</strong>finirem como objetos <strong>da</strong> frase latina, estão automaticamente<br />

evocando os respectivos sujeitos que, no caso, são armenta e cunabula. Dessa forma, vê-se<br />

que um único signo tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> evocar formalmente todo o sistema do qual faz parte.<br />

Depreen<strong>de</strong>-se dos versos o retorno <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro, o retorno <strong>da</strong> harmonia e<br />

prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Não só a terra produzirá tudo sozinha, mas também as cabritinhas não<br />

precisarão ser or<strong>de</strong>nha<strong>da</strong>s, já que trarão à casa o leite por livre vonta<strong>de</strong>; e os rebanhos, no<br />

campo, não mais temerão os leões, já que haverá harmonia, equilíbrio sobre a Terra.<br />

Todos os dias afloram na superfície <strong>de</strong> um idioma novas frases e palavras, ao passo<br />

que outras <strong>de</strong>saparecem. Os idiomas mo<strong>de</strong>rnos sofrem essas variações todos os dias e o latim<br />

também sofreu enquanto houve falantes que atualizassem a língua por meio <strong>da</strong> produção <strong>de</strong><br />

discursos. O texto <strong>de</strong> Virgílio, a IV Bucólica, é a representação do discurso <strong>de</strong> um falante<br />

natural, que, portanto, pô<strong>de</strong>-se utilizar do latim com to<strong>da</strong> a legitimi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

“Pela língua o homem assimila sua cultura, a perpetua ou a transforma”, como bem<br />

elucidou Émile Benveniste (1976); assim, o projeto estu<strong>da</strong> a enunciação viva <strong>de</strong> um autor, que<br />

imerso em sua cultura, atualizou sua língua naturalmente por meio <strong>de</strong> seus versos, por<br />

exemplo. Logo, a IV Bucólica é o exemplo do uso que Virgílio fez <strong>de</strong> sua língua. Ora, foi por<br />

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meio <strong>de</strong> sua língua que Virgílio viu seu Mundo, seu tempo e também o nosso, uma vez que se<br />

enten<strong>da</strong> que as palavras do poeta têm o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r seu tempo e permanecer<br />

universalmente sempre com avi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> presente.<br />

De acordo com Italo Calvino “os clássicos servem para enten<strong>de</strong>r quem somos e aon<strong>de</strong><br />

chegamos” e “é clássico aquilo que persiste como rumor mesmo on<strong>de</strong> predomina a atuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

mais incompatível”, <strong>de</strong>ssa forma, o texto <strong>de</strong> Virgílio afirma a potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma cultura<br />

que permanece para as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s atuais. Logo, é oportuno afirmar que o poeta latino traça o<br />

perfil <strong>de</strong> seu universo singular e também o universo alheio, é o fun<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e a condição necessária para a sua permanência.<br />

Bibliografia:<br />

BENVENISTE, É. Problemas <strong>de</strong> Lingüística Geral.São Paulo: Nacional-Edusp,1976.<br />

CALVINO, I. Por que ler os clássicos. Trad. N. Moulin. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras,<br />

2002.<br />

CART, A.. et al. Grammaire Latine. Paris: Fernand Nathan Éditeur, 1955.<br />

COMMELIN, P. Mitologia grega e romana. Trad. Thomaz Lopes. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ediouro,<br />

[19--].<br />

DEZOTTI, J. D. O papel do texto documento. In: <strong>Estudos</strong> Lingüísticos. XIX <strong>Anais</strong> do<br />

Seminário do GEL. Bauru: UNESP, 1990, p.27-30.<br />

FARIA, E. Dicionário escolar latino-português. 6 a ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: FAE, 1992.<br />

HARVEY, P. Dicionário Oxford <strong>de</strong> literatura clássica grega e latina. Trad. Mário <strong>da</strong><br />

Gama Kury. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1987.<br />

LIMA, A. D. O golpe do latim. XXI <strong>Anais</strong> <strong>de</strong> Seminários do GEL. Jaú, 1992, Vol I, pp.<br />

144-150.<br />

___________. Uma estranha língua?: questões <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong> método. São Paulo:<br />

EDUNESP, 1995.<br />

__________ & THAMOS, M. Verso é pra cantar: e agora , Virgílio? In: Alfa: revista <strong>de</strong><br />

lingüística (UNESP), São Paulo, v.49(2), p. 125-132, 2005.<br />

LONGO, Giovanna. Ensino <strong>de</strong> latim: problemas lingüísticos e uso <strong>de</strong> dicionário. Dissertação<br />

<strong>de</strong> mestrado apresenta<strong>da</strong> à FCL <strong>da</strong> UNESP, Câmpus <strong>de</strong> Araraquara, 2006.<br />

LOPES, Edward. Fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> lingüística contemporânea. São Paulo: Cultrix, 2005.<br />

SAUSSURE, F. <strong>de</strong>. Curso <strong>de</strong> Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 2003.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 84-89, 2008<br />

88


VIRGILE. Bucoliques. Texte établi et traduit par Henri Goelzer. Paris: Les Belles Lettres,<br />

1956.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 84-89, 2008<br />

89


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 90-94, 2008<br />

O Sentido <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s no Sermão XII <strong>de</strong> São Cesário<br />

Profª. Drª. Jandyra Gonçalves FIGUEIREDO<br />

UFF<br />

jandyrfig@yahoo.com.br<br />

O presente trabalho tem como base um texto <strong>de</strong> latim cristão do século IV, <strong>de</strong>stinado à<br />

conversão <strong>de</strong> pessoas do povo. O Sermão XII <strong>de</strong> São Cesário, bispo <strong>de</strong> Arles, constitui-se um<br />

belo exemplo <strong>da</strong> oratória religiosa <strong>da</strong>quele século. Preten<strong>de</strong>mos analisar o sentido do<br />

vocábulo fi<strong>de</strong>s como é utilizado pelo bispo no Sermão XII, segundo critérios <strong>da</strong> teoria<br />

semântica <strong>de</strong>scritos por Pierre Guiraud em A Semântica (1980).<br />

A Palavra fi<strong>de</strong>s sofreu um processo <strong>de</strong> cristianização ao longo dos séculos e, para<br />

analisá-la, escolhemos o Sermão XII em virtu<strong>de</strong> do <strong>de</strong>sempenho oratório evi<strong>de</strong>nciado por São<br />

Cesário, que manifesta clara intenção <strong>de</strong> convencimento aos fiéis em seu texto.<br />

Para analisar a cristianização <strong>da</strong> palavra fi<strong>de</strong>s, no Sermão XII <strong>de</strong> São Cesário, faz-se<br />

necessário <strong>de</strong>fini-la por critérios semânticos, a fim <strong>de</strong> que possamos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r os sentidos<br />

usados pelo bispo e observar o seu <strong>de</strong>sempenho oratório ao ampliar o sentido <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s para<br />

garantir a temática do Sermão XII, a partir <strong>da</strong> frase “Fi<strong>de</strong>s a fit nomen accepi”.<br />

A origem <strong>de</strong> uma palavra é explica<strong>da</strong> pelo estudo <strong>da</strong> etimologia. Como sabemos o<br />

estudo <strong>da</strong> a origem <strong>da</strong>s palavras teve real <strong>de</strong>staque na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Segundo Ullmann (1964),<br />

“na filosofia grega, havia duas escolas <strong>de</strong> pensamentos rivais. Os naturalistas acreditavam<br />

existir entre o som e o sentido uma relação intrínseca; os convencionalistas <strong>de</strong>fendiam ser<br />

essa relação puramente arbitrária”. Mais tar<strong>de</strong>, Varrão consi<strong>de</strong>rou a etimologia como uma <strong>da</strong>s<br />

três divisões dos estudos lingüísticos, ao lado <strong>da</strong> morfologia e <strong>da</strong> sintaxe. No século XIX,<br />

quando os estudos etimológicos ain<strong>da</strong> não apresentavam cunho científico, a semântica tornase<br />

um estudo autônomo e surge como uma parte importante <strong>da</strong> lingüística, especialmente com<br />

o lingüista francês Michel Bréal.<br />

O estudo <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s palavras (etimologia) gera múltiplas <strong>de</strong>finições que atestam<br />

sua origem, ou ain<strong>da</strong>, po<strong>de</strong>mos baseá-lo na concepção aristotélica <strong>de</strong> que a palavra é a menor<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> significação <strong>da</strong> fala. Embora essa teoria tenha sido fun<strong>da</strong>mental para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estudos nas áreas <strong>da</strong> filologia e <strong>da</strong> lingüística, mais tar<strong>de</strong> foi revista por<br />

outros gramáticos. Observou-se que a parte menor <strong>de</strong> significação <strong>de</strong> uma palavra é apenas<br />

um morfema: os sufixos, os prefixos, os morfemas verbais, os temas, etc. Mas, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

po<strong>de</strong>mos explicar a etimologia <strong>de</strong> uma palavra por meio <strong>da</strong> observação <strong>da</strong> raiz do nome, <strong>da</strong>


função <strong>da</strong>s partes mínimas que se juntam a esse tema e que dão origem a outros nomes<br />

diferentes que surgem, bem como <strong>de</strong>scobrir a época em que se <strong>de</strong>u o aparecimento <strong>da</strong> palavra.<br />

Assim os vários processos <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> um nome são caminhos possíveis para um estudo<br />

na área <strong>da</strong> etimologia. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que sempre haverá dúvi<strong>da</strong>s ao buscar-se o reconhecimento<br />

<strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s palavras.<br />

Em nossa análise, será consi<strong>de</strong>rado o fato <strong>de</strong> que o bispo <strong>de</strong> Arles vai asseverar o<br />

sentido do substantivo fi<strong>de</strong>s partindo <strong>da</strong> frase Fi<strong>de</strong>s a fit visto que o verbo fio tem como<br />

primeira acepção “ser feito, fazer-se”. Logo, São Cesário vai ampliar o sentido <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s<br />

apoiando-se na raiz do verbo fio. Sabemos que essa etimologia não tem base científica, ou<br />

seja, foi emprega<strong>da</strong> no texto cesariano com fun<strong>da</strong>mento doutrinário visto que sua intenção é<br />

garantir, através do verbo fio, o sentido <strong>de</strong> fazer cumprir com as obras. São Cesário usa essa<br />

etimologia fictícia como o argumento principal sobre o qual faz seu sermão, não querendo<br />

ocupar-se do sentido <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s, mas servir-se do sentido expresso por ela porque quer respal<strong>da</strong>r<br />

a idéia que preten<strong>de</strong> <strong>da</strong>r ao termo em sua pregação. Torna-se, este o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua<br />

pregação: fi<strong>de</strong>s provém <strong>de</strong> fit.<br />

Percebemos aqui um ponto <strong>de</strong> contato entre a etimologia e a semântica. Se a<br />

etimologia vai <strong>da</strong>r o significado <strong>de</strong>sejado à palavra, é necessário, então, nos ocuparmos do<br />

campo semântico <strong>de</strong>ssa palavra. A etimologia funcionou como um apoio para chegar ao<br />

sentido <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>fendido pelo autor que <strong>de</strong>u forte carga emotiva à palavra, para que seus<br />

fiéis reconhecessem que a fé <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>da</strong>s obras feitas. Conforme Ullmann:<br />

Outro fator que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> largamente do contexto é o aspecto emotivo do significado <strong>da</strong><br />

palavra. Em princípio, praticamente qualquer termo po<strong>de</strong> adquirir tonali<strong>da</strong><strong>de</strong>s emotivas<br />

num contexto apropriado (1977, p. 106).<br />

Ocorre que, na área <strong>da</strong> semântica, os estudos são vários e nem sempre claros, visto que<br />

quanto mais nos aprofun<strong>da</strong>mos na leitura <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> filósofos e lingüistas, constatamos um<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong>scontínuo <strong>de</strong> teorias e discordâncias.<br />

Um exemplo disso ocorre com a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> significado. Ullman (1977, p.111)<br />

afirma que o significado é um dos termos mais ambíguos e controversos <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong><br />

linguagem. Também Ferwillerger (apud ULLMANN, 1977, p.107) afirma que “antes <strong>de</strong><br />

apresentarmos e criticarmos teorias que tentam explicar o significado seria melhor <strong>de</strong>fini-lo.<br />

Reconhecendo a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir significado.<br />

Wittgenstein (apud ULLMANN, 1977, p.131), por sua vez, diz que o significado <strong>de</strong><br />

uma palavra é o seu uso na língua. O lado positivo <strong>de</strong>ssa conceituação está em <strong>de</strong>finir o<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 90-94, 2008<br />

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significado em termos contextuais e, portanto, empíricos. Isso po<strong>de</strong> corroborar o uso<br />

semântico feito por Cesário <strong>da</strong> palavra fi<strong>de</strong>s no Sermão XII. O conceito <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s adquire uma<br />

função cognitiva, como a base <strong>da</strong> comunicação entre os indivíduos (o pregador e seus fiéis),<br />

através <strong>da</strong>s imagens que se formam no espírito <strong>de</strong>sses indivíduos.<br />

Partindo <strong>de</strong>sse sentido, a produção textual <strong>de</strong> São Cesário, po<strong>de</strong>mos afirmar, revela-se<br />

através do sentido interior, <strong>de</strong> sua alma. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> fazer-se enten<strong>de</strong>r pelos seus ouvintes faz<br />

com que ele exacerbe a sua emoção e, <strong>de</strong>ssa forma, <strong>de</strong>ixa nascer os vários sentidos do<br />

vocábulo fi<strong>de</strong>s que comprovem a sua imagem do que ele <strong>de</strong>seja transmitir: sem as obras não<br />

existe fé. Essa explicação encontra respaldo nas palavras <strong>de</strong> Guiraud:<br />

A linguagem, como já se viu, tem uma função lógica ou cognitiva, ela serve para a<br />

comunicação <strong>de</strong> conceitos, evocando no espírito do interlocutor as imagens que se<br />

formam no nosso próprio espírito. Mas essa comunicação nocional, que é a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

ciência ou do conhecimento lógico, só é indiretamente a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> comunicação<br />

social, que é essencialmente volitiva: comunicamos nossos pensamentos com o fim <strong>de</strong><br />

obter certas reações (1980, p.37).<br />

Constata-se, assim, que Cesário, ao partir <strong>da</strong> etimologia, pratica uma teoria semântica<br />

<strong>de</strong> forma muito eficiente. Usa a etimologia no sentido canônico <strong>da</strong> palavra, mas fica claro<br />

que há uma riqueza semântica que se expan<strong>de</strong> continuamente. O vocábulo fi<strong>de</strong>s sofre uma<br />

transfiguração semântica, uma pequena transferência <strong>de</strong> sentido que parte <strong>de</strong> um sentido geral<br />

para um sentido cognitivo, subjetivo, emocional.<br />

O sentido <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s como leal<strong>da</strong><strong>de</strong>, empenho no cumprimento <strong>da</strong> palavra <strong>da</strong><strong>da</strong> contém<br />

um traço semântico <strong>de</strong> ação pratica<strong>da</strong> pelo homem (ser leal na guerra, ser leal na política, ser<br />

leal no amor...).<br />

Já no Sermão XII, Cesário transmuta esse sentido objetivo e mais coletivo para um<br />

subjetivo e emocional, visto que ele não tem como provar o sentimento <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>s. O indivíduo<br />

latino podia externar a sua fi<strong>de</strong>s por ações na guerra e na política, por exemplo, mas como o<br />

cristão vai externar a sua fé? Somente através <strong>da</strong>s obras. Fazer as obras é acreditar que se<br />

agra<strong>da</strong> a Deus para receber a recompensa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> eterna. Assim o crer nos conduz ao fazer.<br />

Vemos que a palavra fi<strong>de</strong>s assume um novo sentido sem abandonar totalmente o<br />

sentido anterior. É como se avançasse na especifici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sentido.<br />

É Guiraud, com muita proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, quem fun<strong>da</strong>menta essa análise: “O sentido mu<strong>da</strong><br />

porque uma <strong>da</strong>s associações é secundária (sentido contextual, valor expressivo, valor social);<br />

ele <strong>de</strong>sliza progressivamente sobre o sentido <strong>da</strong> base e o substitui; o sentido evolui” (1980,<br />

p.61).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 90-94, 2008<br />

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Vemos, assim, que o universo <strong>da</strong>s teorias semânticas – embora com discordâncias – é<br />

unânime quanto ao reconhecimento <strong>da</strong> importância do contexto no estudo do significado. É<br />

exatamente o estudo do contexto em que o Sermão XII é pregado que revela o processo <strong>de</strong><br />

cristianização já presente no vocábulo fi<strong>de</strong>s.<br />

Partindo, portanto, <strong>de</strong> uma etimologia já corrente no mundo clássico, São Cesário<br />

ensina que a fé sem as obras é morta, citando várias passagens bíblicas em que este conceito é<br />

ressaltado. Por quê? Porque fi<strong>de</strong>s (fé) provém <strong>de</strong> fit (é feito).<br />

Comprovamos, assim, que o religioso francês amplia o sentido <strong>da</strong> palavra fi<strong>de</strong>s para<br />

garantir a persuasão dos que <strong>de</strong>vem ser convertidos, ou mantidos na fé, ao mesmo tempo em<br />

que a utiliza para garantir a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> temática do Sermão XII.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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Paris: Les Editions du Cerf, 1994.<br />

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Delage. Paris: Les Éditions du Cerf, 1971. v.1<br />

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Paris: 1951.<br />

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FREYBURGER, Gérard. Fi<strong>de</strong>s: étu<strong>de</strong> sémantique et religieuse <strong>de</strong>puis les origines jusqu’à<br />

l’époque augustéenne. Paris: Les Belles Lettres, 1986.<br />

GUIRAUD, Pierre. A semântica. Trad. São Paulo: DIFEL, 1980.<br />

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SILVA NETO, Serafim. História do Latim Vulgar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Livraria Acadêmica,<br />

1957.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 90-94, 2008<br />

93


PARATORE, Ettore. História <strong>da</strong> Literatura Latina. Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste<br />

Gulbenkian, 1987.<br />

ULMANN, Stephen. Semântica. Trad. Coimbra: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1977.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 90-94, 2008<br />

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Amiano Marcelino e sua obra Res Gestae: tratamento documental e os livros XXV,<br />

XXVI e XXVII<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

Bruna Campos GONÇALVES<br />

G (FAPESP) – FHDSS Franca – UNESP<br />

bruna.camposg@gmail.com<br />

A presente apresentação se insere <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma pesquisa que estamos realizando com<br />

financiamento <strong>da</strong> FAPESP, cujo título é: A visão <strong>de</strong> Amiano Marcelino sobre a sucessão do<br />

po<strong>de</strong>r imperial romano em um período <strong>de</strong> barbarização do Exército. Este estudo é realizado<br />

na Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista/ Campus Franca, sob a orientação <strong>da</strong> Professora Doutora<br />

Margari<strong>da</strong> Maria <strong>de</strong> Carvalho. Nesta apresentação vamos pontuar algumas reflexões a cerca<br />

do retrato e <strong>da</strong> narrativa <strong>de</strong> Amiano Marcelino.<br />

Amiano nasceu na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Antioquia, localiza<strong>da</strong> na Síria, entre os anos <strong>de</strong> 325 e 330<br />

d.C., era proveniente <strong>de</strong> uma família grega, não cristã e partícipe <strong>da</strong> elite <strong>de</strong>sta ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, on<strong>de</strong><br />

recebeu sua educação que abrangia o Grego e o Latim literário e estudos retóricos – Ronald<br />

Mellor ressalta que:<br />

Este último não é uma surpresa quando lembramos que Líbanio, um gran<strong>de</strong><br />

professor grego <strong>da</strong> Antioquia naquele tempo, reclamava do sucesso que os<br />

retóricos Latinos faziam com os estu<strong>da</strong>ntes que ambicionavam uma carreira<br />

militar ou no governo. (MELLOR, 1999, p.111).<br />

Quando jovem, por volta do ano <strong>de</strong> 350 d.C., ingressou no exército, uma carreira<br />

extremamente rara no período para pessoas provenientes <strong>de</strong> boa família; inscreveu-se para<br />

protectores domestici, um regimento <strong>de</strong> alto prestigio social (THOMPSON, 1947, P.2-3), que,<br />

segundo Gilvan Ventura <strong>da</strong> Silva, significa ser um ‘burocrata a serviço dos coman<strong>da</strong>ntes<br />

militares’, auxiliar <strong>de</strong> campo <strong>de</strong> um general, sendo assim, responsáveis pela atualização dos<br />

efetivos militares disponíveis, pela supervisão do abastecimento <strong>da</strong>s tropas e pelo<br />

<strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> missões especiais. (SILVA, 2007, p.168).<br />

No ano <strong>de</strong> 353 d.C., recebeu or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> atuar junto ao coman<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> cavalaria,<br />

Ursicino, ligando-se ao exército até 363 d.C. Desta maneira, seu contato com o órgão militar<br />

foi intenso. Embora estivesse ligado mais à estratégia e à inteligência que à artilharia<br />

(AUSTIN, 1979, p.13), tornou-se testemunha ocular <strong>de</strong> inúmeras batalhas envolvendo<br />

generais e Imperadores romanos contra os bárbaros (CARVALHO e FUNARI, 2007, p.281);<br />

legando-nos um extenso material sobre o assunto.


Mesmo Amiano tendo afirmado sua busca pela ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e veraci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua narrativa,<br />

acreditamos que essa característica não torna seu relato mais real ou ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro que o <strong>de</strong> seus<br />

contemporâneos, mas sim, nos fornece uma trama mais <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> dos acontecimentos<br />

militares, repletos <strong>de</strong> especifici<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>da</strong>dos que apenas um elemento inserido no corpo<br />

militar po<strong>de</strong>ria nos revelar. Vi<strong>de</strong> as citações abaixo:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

Até on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> investigar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, eu, após por vários eventos em uma<br />

or<strong>de</strong>m clara, relatei o que eu mesmo fui permitido testemunhar no curso <strong>de</strong><br />

minha vi<strong>da</strong>, ou aprendido por meticulosos questionamentos <strong>da</strong>queles<br />

diretamente envolvidos 1 . (Livro 15, 1, 1).<br />

Estes eventos, do principado do imperador Nerva até a morte <strong>de</strong> Valente, eu,<br />

um sol<strong>da</strong>do formado e um Grego, expus na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> minha habili<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

sem nunca (eu acredito) conscientemente aventurar-me a <strong>de</strong>preciar pelo<br />

silêncio ou pela falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> um trabalho que tem por objetivo a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> 2 .<br />

(Livro 31, 16, 9).<br />

E como <strong>de</strong>staca Keith Jenkins, e outros teóricos como Paul Veyne, quando fala <strong>da</strong><br />

subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> história e <strong>da</strong>s diferentes interpretações dos fatos por ca<strong>da</strong> um, não se po<strong>de</strong><br />

pensar em uma única ver<strong>da</strong><strong>de</strong> em história, já que todos os <strong>de</strong>poimentos aos quais temos<br />

acesso remontam expectativas, anseios, visões e sentimentos <strong>de</strong> seu autor, que <strong>de</strong> forma<br />

alguma po<strong>de</strong> ser julga<strong>da</strong> imparcial. Po<strong>de</strong>mos dizer, assim, que são múltiplas as ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

existentes, cabendo ao leitor sua interpretação.<br />

Alguns historiadores <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, entre eles Pat Southern e Karen Ramsey Dixon<br />

(1996, p.2), confiam em Amiano e acreditam que, comparado a outros autores, estaria livre <strong>de</strong><br />

preconceitos religiosos ou pessoais. Discor<strong>da</strong>mos, entretanto, <strong>de</strong>ssa visão, pois acreditamos<br />

que, mesmo tendo escrito uma narrativa <strong>de</strong> eventos que tenha presenciado, o autor seja<br />

passível <strong>de</strong> embutir em seus escritos preceitos pessoais sobre a política do momento. Nossa<br />

opinião vai <strong>de</strong> encontro com as reflexões <strong>de</strong> Jenkins (2004, p.33), o qual nos mostra que o<br />

passado que conhecemos é sempre condicionado por nossas próprias visões do nosso próprio<br />

presente.<br />

E a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong> aparência <strong>de</strong> imparciali<strong>da</strong><strong>de</strong> e objetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> supostamente professa<strong>da</strong><br />

por Amiano, seu trabalho carrega as discretas marcas <strong>da</strong>s principais crises e <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> seu tempo. É importante lembrar neste momento que a obra <strong>de</strong> Amiano Marcelino foi<br />

1 Nossa tradução.<br />

2 Nossa tradução.<br />

96


edigi<strong>da</strong> no governo <strong>de</strong> Teodósio I (378-395 d.C.), no período conhecido como Renascimento<br />

Teodosiano.<br />

Guy Sabbah coloca a obra <strong>de</strong> Amiano Marcelino, Res Gestae, <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

(...), a Res Gestae não é nem uma síntese ou seleção <strong>de</strong> elementos préexistentes<br />

nem a justaposição <strong>de</strong> elemento ou tendências <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>da</strong><br />

história, o epítome, a biografia, o panegírico e os panfletos. É a fusão <strong>de</strong>sses<br />

elementos por uma mente capaz <strong>de</strong> transcen<strong>de</strong>r os limites e fronteiras sem se<br />

tornar incoerente. Amiano incorpora diferentes registros em um texto<br />

justamente escrito, no qual ele reúne, reforçando aquele pelo outro, <strong>de</strong>talhes<br />

realistas retirados <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> preservado em to<strong>da</strong> sua vivaci<strong>da</strong><strong>de</strong> e sua idéia ou<br />

tese, ou seja, a sua visão mais ampla do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Roma. (SABBAH, 2003,<br />

p.66).<br />

Propôs-se a escrever uma história <strong>da</strong>s sucessões e feitos dos imperadores romanos;<br />

acredita-se que Amiano procurou continuar a obra <strong>de</strong> Tácito, mas não foi nem seu imitador<br />

nem seu epígono 3 , seu relato começa em 96 d.C. com o reinado do imperador Nerva (96-98<br />

d.C.) e perpassa por todos os imperadores terminando sua narrativa com o governo <strong>de</strong><br />

Valentiniano II (378-383 d.C.). E como <strong>de</strong>stacou Sabbah “sua visão mais ampla do <strong>de</strong>stino <strong>de</strong><br />

Roma”.<br />

Tinha uma gran<strong>de</strong> veneração por Roma, ci<strong>da</strong><strong>de</strong> escolhi<strong>da</strong> para escrever sua obra. Após<br />

uma longa viagem que fez por terras distintas, po<strong>de</strong>ndo assim enriquecer sua obra com suas<br />

observações <strong>de</strong>stes lugares, em algum momento após 378 d.C., volta a capital para redigir seu<br />

trabalho (THOMPSON, 1947, p.14).<br />

O grego Amiano escolhe o latim para compor sua obra, ficando claro assim seu<br />

interesse nos leitores romanos, não nos diz o porquê <strong>da</strong> escolha, mas existem duas prováveis<br />

razões: uma literária e outra política.<br />

A óbvia razão literária era continuar a obra <strong>de</strong> Tácito, enquanto que a razão<br />

política era escrever, como chamou o retórico grego Temístio<br />

την διαλεκτον κρατουσαν (‘a língua dos nossos governantes’).<br />

Diferentemente do cortesão Temístio, Amiano não estava tentando alcançar<br />

os favores imperiais, mas estava profun<strong>da</strong>mente comprometido com Roma e<br />

com sua herança politica. Seu orgulho <strong>de</strong> sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia romana é evi<strong>de</strong>nte<br />

em to<strong>da</strong> sua obra. (MELLOR, 1999, p.126).<br />

Apesar <strong>de</strong> discor<strong>da</strong>rmos dos juízos <strong>de</strong> valores que Mellor atribui a Temístio,<br />

concor<strong>da</strong>mos com sua assertiva quando se refere a Amiano Marcelino.<br />

3<br />

De acordo com o dicionário Aurélio epígono seria aquele que pertence à geração seguinte; discípulo ou<br />

imitador <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> mestre.<br />

97


John C. Rolfe, tradutor <strong>da</strong> obra Res Gestae <strong>de</strong> Amiano editado pela Loeb Classical <strong>de</strong><br />

1982, tradução a que nos reportamos no presente trabalho, aponta na introdução que Amiano<br />

conhecia o Latim como língua oficial do exército, “ele podia falar, ler, e escrever, mas não<br />

adquiriu a maestria <strong>da</strong> língua” (ROLFE, 1982). Em contraposição a essa afirmativa, Mellor<br />

<strong>de</strong>staca que “Amiano era um bem educado oficial superior que estava profun<strong>da</strong>mente imbuído<br />

com a cultura literária <strong>da</strong> língua adota<strong>da</strong>” (MELLOR, 1999, p.127), embora não tenha escrito<br />

na sua língua nativa, o grego, seu conhecimento <strong>de</strong> latim não era igual ao <strong>de</strong> um sol<strong>da</strong>do<br />

comum.<br />

Quanto à <strong>da</strong>tação <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Amiano não há uma <strong>da</strong>ta precisa (tudo indica que foi<br />

redigi<strong>da</strong> entre os anos <strong>de</strong> 378 a 395 d.C.), só algumas especulações com base em cartas <strong>de</strong><br />

amigos ou informações conti<strong>da</strong>s em seu texto. Temos notícia, por meio <strong>de</strong> uma carta que<br />

Líbanio, sofista neoplatônico conterrâneo <strong>de</strong> Amiano, direciona a ele congratulando-o pelo<br />

seu sucesso em 392 d.C.; a partir disto temos a evidência que uma parte consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> seu<br />

trabalho já havia sido publicado até este ano, acredita-se que até o livro XXV. Tendo em vista<br />

a falta <strong>de</strong> algumas informações, que Amiano não inseriu no seu texto, mas que caso soubesse<br />

teria incluído, po<strong>de</strong>-se afirmar que antes <strong>de</strong> 397 d.C. todo seu livro se encontrava em<br />

circulação. (THOMPSON, 1947, p.18). E. A. Thompson não <strong>de</strong>fine por quais setores a obra<br />

circulou, porém tudo leva a crer que foi nos altos escalões <strong>da</strong> administração imperial.<br />

Thompson <strong>de</strong>staca em seu livro, “The Historical Work of Ammianus Marcellinus”,<br />

como o trabalho <strong>de</strong> Amiano sobreviveu a I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, pontuando que a respeito do assunto<br />

“só po<strong>de</strong>mos fazer conjunturas; Sandys observa que ‘a sobrevivência <strong>de</strong> certos Clássicos<br />

Latinos era <strong>de</strong>vido aos interesses locais’, e nota que Amiano foi preservado na Germânia”<br />

(THOMPSON, 1999, p.19).<br />

É no mínimo curiosa essa observação, porque, embora Amiano esteja vivendo num<br />

período em que os bárbaros estão ca<strong>da</strong> vez mais fazendo parte <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política, militar e social<br />

<strong>de</strong> Roma, o autor antioquiano coloca todo crédito <strong>da</strong> crise que o Império está vivendo nos<br />

estrangeiros. Sabbah se opõem a essa acertiva, uma vez que para o próprio:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

“O (...) conhecimento <strong>de</strong> Amiano <strong>da</strong> ameaça dos bárbaros e o apelo para a<br />

mobilização <strong>de</strong> energias para respon<strong>de</strong>r a ela, embora sendo um traço<br />

fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> sua i<strong>de</strong>ologia patriótica, não implica num primário antigermanismo<br />

e não se exclui o entendimento ou mesmo simpatia por aqueles<br />

que são tratados <strong>de</strong> forma cruel.” (SABBAH, 2003, p.75).<br />

98


O argumento <strong>de</strong> Sabbah baseia-se em algumas passagens do texto em que Amiano<br />

reconhece o valor <strong>de</strong> alguns generais não-romanos 4 , não isenta o sentimento que tinha quanto<br />

a todo o processo que estava acontecendo, ressaltando outra passagem <strong>de</strong> Amiano em que<br />

<strong>de</strong>staca o problema <strong>de</strong> se confiar em coman<strong>da</strong>ntes <strong>de</strong> origem bárbara 5 .<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

Um guia familiarizado com a região apareceu inespera<strong>da</strong>mente, e, em<br />

troca <strong>de</strong> dinheiro, apontou para um lugar on<strong>de</strong> a noite havia pouca<br />

profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, ali o rio po<strong>de</strong>ria ser atravessado. E lá o exército po<strong>de</strong>ria ser<br />

conduzido na travessia do rio, enquanto a atenção do inimigo estava<br />

volta<strong>da</strong> para qualquer outro lugar, e <strong>de</strong>vastariam todo o país sem<br />

oposição, não fosse por alguns homens <strong>da</strong> mesma raça, que possuíam<br />

posição no alto escalão militar, informar seus conterrâneos sobre o plano<br />

através <strong>de</strong> mensageiros secretos, como pensavam alguns. Agora, a<br />

vergonha <strong>de</strong>ssa suspeita recaiu sobre Latinus, contava com o comando <strong>da</strong><br />

guar<strong>da</strong> imperial, Agilo, tribuno em mu<strong>da</strong>nça para a estabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, e<br />

Scudilo, coman<strong>da</strong>nte dos targeteers, que eram então altamente<br />

consi<strong>de</strong>rados como tendo em suas mãos a <strong>de</strong>fesa do estado (XIV, 10, 7-<br />

8).<br />

E eles na reali<strong>da</strong><strong>de</strong> em marcha rápi<strong>da</strong> acelera<strong>da</strong> para preservar-los,<br />

suspeitavam dos seus projetos. Mas ele [chefe militar godo Farnobius],<br />

conhecendo ambos: como coman<strong>da</strong>r seus sol<strong>da</strong>dos e preservá-los,<br />

suspeitava dos propósitos <strong>de</strong>les [romanos] ou tinha plenas informações<br />

disso [do plano <strong>de</strong> espera-los] a partir do relatório dos batedores que ele<br />

havia enviado a frente; então ele retornou ao longo <strong>da</strong>s solenes montanhas<br />

e através <strong>de</strong> <strong>de</strong>nsas florestas <strong>de</strong> Illyricum (…)(XXXI, 9, 2).<br />

É curioso observar, nestas passagens acima cita<strong>da</strong>s, que Amiano começa sua narrativa<br />

criticando negativamente os bárbaros e ao seu término já reconhece seu valor.<br />

Sua obra encontra-se dividi<strong>da</strong> em 31 livros, <strong>de</strong>ntre os quais somente 18 acham-se<br />

disponíveis, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o livro 14 ao 31. Tais livros se remetem aos anos <strong>de</strong> 353 a 378 d.C.,<br />

enriquecendo a historiografia acerca dos reinados dos seguintes imperadores: Constâncio II<br />

(337-361 d.C.), Juliano (361-363 d.C.), Joviano (363-364 d.C.), Valentiniano I (364-375<br />

d.C.), Valente (364-378 d.C.), Graciano (375-383 d.C.), e Valentiniano II (378-392 d.C.),<br />

focalizando, sobretudo, os aspectos militares dos governos <strong>de</strong>sses príncipes.<br />

Tais livros, apesar <strong>de</strong> não constituírem to<strong>da</strong> a obra do estrategista militar, servem<br />

como um vetor <strong>de</strong> investigação sobre a política diplomática <strong>de</strong> Roma, bem como do<br />

complexo administrativo do tempo do próprio escritor. Assim sendo, ao se analisar a obra não<br />

<strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Amiano.<br />

4 Amiano Marcelino (31, 9, 2).<br />

5 Amiano Marcelino (14, 10, 7-8)<br />

99


Dessa forma, tenho como foco principal os livros XXV, XXVI e XXVII, em especial<br />

os que narram a morte do imperador Juliano, a ascenssão <strong>de</strong> Joviano, Valentiniano I e<br />

Valente. Nestes exemplares, Amiano nos informa a respeito <strong>da</strong> importância que o po<strong>de</strong>r<br />

militar passa a receber, não só no tocante à <strong>de</strong>fesa <strong>da</strong>s fronteiras-tarefa fun<strong>da</strong>mental do<br />

exército no IV século d.C. -, como também na interferência que exerce na administração <strong>de</strong><br />

todo o Império, ficando a seu critério a escolha do governante.<br />

Acreditamos ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância submeter sua obra, assim como os livros por nós<br />

selecionados, a uma análise crítica <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>, levando em consi<strong>de</strong>ração as críticas internas e<br />

externas, necessárias a serem feitas. Como <strong>de</strong>screve Keith Jenkins, “se o passado é um texto<br />

(repleto <strong>de</strong> ‘velhos’ textos) para ser lido e receber significado, então cabem as críticas os<br />

limites <strong>de</strong> qualquer textuali<strong>da</strong><strong>de</strong>” (JENKINS, 2005, P. 61).<br />

A partir <strong>da</strong>í procuramos sempre fazer a relação entre o discurso <strong>de</strong> Amiano Marcelino<br />

e a recente historiografia sobre o período.<br />

A questão anuncia<strong>da</strong> auxilia no esclarecimento <strong>de</strong>sse estudo que tem como objetivo a<br />

análise interpretativa <strong>da</strong> relação existente entre o Exército e o po<strong>de</strong>r imperial, uma vez que no<br />

século IV d.C. a indicação para o posto mais alto <strong>da</strong> administração imperial era feita pelo<br />

corpo militar. Esse fato também se mostrou presente em meados do século III d.C., no<br />

período <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> “Anarquia Militar”, embora nesta época, tudo indique que os<br />

imperadores aclamados pelo exército ain<strong>da</strong> tinham uma preocupação em se legitimar diante<br />

do Senado, fato esse que não encontra continui<strong>da</strong><strong>de</strong> no início do século seguinte.<br />

O aparato militar tinha como priori<strong>da</strong><strong>de</strong> na política governamental a <strong>de</strong>fesa e a<br />

manutenção dos territórios romanos, em um ambiente que se fazia ca<strong>da</strong> vez mais hostil<br />

(SILVA, 1993, p. 40), em <strong>de</strong>trimento <strong>da</strong>s constantes ameaças <strong>de</strong> invasão dos povos<br />

estrangeiros, não obstante, o Exército romano já contasse com a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong>les há algum tempo.<br />

Trata-se, portanto, <strong>de</strong> uma situação dúbia. Com o passar do tempo, principalmente após a<br />

batalha <strong>de</strong> Adrianópolis e seu fracasso, o alistamento <strong>de</strong> bárbaros para o front romano só fez<br />

aumentar. Como nos mostra Arther Ferril (1986, p.60), essa <strong>de</strong>rrota <strong>de</strong>sestruturou o corpo<br />

militar do exército romano. Diante disso, torna-se necessário sua recomposição, visto que<br />

pereceram aproxima<strong>da</strong>mente dois terços <strong>de</strong> seu conjunto durante a luta.<br />

Logo, houve um gran<strong>de</strong> alistamento <strong>de</strong> bárbaros. Além disso, presenciamos, ain<strong>da</strong><br />

segundo Ferril, um acordo proposto pelo imperador Teodosio I (378 – 395 d.C.) aos<br />

Visigodos garantindo o apoio <strong>de</strong>stes para a causa romana, o que fez aumentar<br />

significativamente o número <strong>de</strong> bárbaros no exército.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

100


No período que antece<strong>de</strong> a guerra <strong>de</strong> Adrianópolis, notamos maior proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />

interação dos romanos com outros povos, visto que a administração <strong>da</strong>s fronteiras <strong>de</strong>man<strong>da</strong>va<br />

uma maior aproximação com os bárbaros. De acordo com Peter Heather (1999, p.240) o<br />

exército romano normalmente <strong>de</strong>rrotava os estrangeiros em conflitos armados, e neles<br />

inspirava admiração, respeito e temor, passou a ser, também, a mora<strong>da</strong> <strong>de</strong>les.<br />

Portanto, é possível através do tratamento documental, <strong>da</strong>do a obra do Amiano<br />

Marcelino, <strong>de</strong>tectarmos uma perspectiva mais ampla, que correspon<strong>de</strong> à concretização <strong>de</strong><br />

nossa hipótese <strong>de</strong> trabalho quando afirmamos que os bárbaros também participavam do<br />

processo <strong>de</strong> sucessão imperial por meio <strong>de</strong> sua integração no exército romano. Com <strong>de</strong>staque<br />

aos Imperadores Joviano e Valentiniano I, Imperadores que rompem com a tentativa <strong>de</strong><br />

manutenção <strong>de</strong> quadros dinásticos elaborados durante a história <strong>de</strong> Roma.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

A. Documentação Textual:<br />

MARCELLINUS, A. History. With an english translation by John C. Rolfe. London: The<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

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Brasília, 1971.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 95-102, 2008<br />

102


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 103-109, 2008<br />

A figura <strong>da</strong> mulher nos romances do Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca<br />

Heloiza B. GRANJEIRO<br />

G (FAPESP) – FCL Assis – UNESP<br />

Prof. Dr. Carlos E. M. <strong>de</strong> MORAES<br />

FCL Assis – UNESP<br />

hbrambatti@yahoo.com.br<br />

Esta comunicação visa enfocar a temática do Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca que viveu no<br />

final do século XVII, e que apresenta uma biografia controversa, conhecido também como<br />

Frei Antônio <strong>da</strong>s Chagas 1 .<br />

Fonseca escreveu mais <strong>de</strong> cem romances, objeto <strong>de</strong> nosso estudo, e ain<strong>da</strong> alguns<br />

sonetos. O padre apresenta uma temática não muito recorrente ao seu ofício, já que era um<br />

sacerdócio e escreveu sobre as mulheres ou algo relacionado à figura feminina.<br />

Fonseca viveu na época do Barroco, período em que o homem se encontrava em uma<br />

profun<strong>da</strong> crise espiritual, já que <strong>de</strong> um lado havia o paganismo e o sensualismo do<br />

Renascimento, em <strong>de</strong>clínio, e do outro, a forte on<strong>da</strong> <strong>de</strong> religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> do teocentrismo<br />

medieval, em ascendência.<br />

Neste ambiente <strong>de</strong> ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre fé e razão, i<strong>de</strong>alização amorosa e sentimento <strong>de</strong><br />

culpa é que Fonseca redigiu seus romances <strong>de</strong>monstrando seu estado <strong>de</strong> espírito contraditório.<br />

Deste modo é possível estabelecer uma interpretação para tal escolha temática, já que no<br />

cenário literário e em outras artes não havia uma lineari<strong>da</strong><strong>de</strong> temática a ser segui<strong>da</strong>, uma vez<br />

que os homens se encontravam em estado conflitante.<br />

A temática dos romances <strong>de</strong> Fonseca tem como tema principal a figura feminina em<br />

suas várias amplitu<strong>de</strong>s, ao mesmo tempo que ele enaltece a mulher, ele a <strong>de</strong>negri. As<br />

mulheres cita<strong>da</strong>s por Fonseca po<strong>de</strong>m ser dividi<strong>da</strong>s em dois tópicos, o primeiro, são as<br />

1 Frei Antônio <strong>da</strong>s Chagas (1631 – 1682), cujo nome secular era Antônio <strong>da</strong> Fonseca Soares, era fra<strong>de</strong> <strong>da</strong> Or<strong>de</strong>m<br />

<strong>de</strong> São Francisco. Filho <strong>de</strong> um juiz, participou na guerra <strong>da</strong> Restauração, escapando <strong>de</strong> ser con<strong>de</strong>nado <strong>de</strong>vido a<br />

um crime que cometera. É nesse período que se <strong>de</strong>dica à poesia, ganhando o cognome <strong>de</strong> Capitão <strong>da</strong>s Boninas.<br />

Parte entretanto para o Brasil, regressando em 1656 e continuando a carreira <strong>da</strong>s armas. Em 1663 <strong>de</strong>ixa a vi<strong>da</strong><br />

militar e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> tomar or<strong>de</strong>ns. Tornou-se pregador e fundou o seminário do Varatojo. O seu trabalho como<br />

pregador foi criticado pelo Padre Antônio Vieira, que o achava excessivo e teatral. Dos tratados espirituais que<br />

escreveu <strong>de</strong>staca-se o “Tratado dos Gemidos Espirituais, vertidos <strong>de</strong> um pe<strong>de</strong>rnal humano a golpes <strong>de</strong> Amor<br />

Divino”. As suas cartas foram compila<strong>da</strong>s no volume “Cartas espirituais” e os seus poemas foram publicados na<br />

Fénix Renasci<strong>da</strong>. Disponível em HTTP://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/fchagas.htm, acesso em 02 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong><br />

2007 às 15h51.


mulheres pastoris, e o segundo, as mulheres mitológicas. Ambas estão expostas ao escárnio<br />

ou à benevolência do padre.<br />

Ao escolher esta temática, Fonseca po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um escritor ambíguo, pois<br />

vai contra seus princípios religiosos ao se referir à mulher, principalmente na época em que<br />

ele viveu, pois havia uma gran<strong>de</strong> contradição histórica em vigência.<br />

Ao se referir às mulheres, Fonseca escreve <strong>de</strong> modo exortativo, dialógico e narrativo.<br />

Deste modo, traça três perfis para que se possa expor a figura feminina <strong>de</strong> acordo com sua<br />

visão masculina na era Barroca. Fonseca relata suas belezas, seus ofícios, seus nomes, seus<br />

<strong>de</strong>sejos, suas atitu<strong>de</strong>s, suas índoles, enfim, o universo feminino é caracterizado pelos<br />

romances <strong>de</strong> Fonseca <strong>de</strong> forma que ele consegue abranger to<strong>da</strong>s as perspectivas <strong>da</strong> figura <strong>da</strong><br />

mulher.<br />

Seguem abaixo alguns exemplos <strong>de</strong> nomes pastoris ou mitológicos, como o romance<br />

95, em que ele trata <strong>de</strong> um nome pastoril:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 103-109, 2008<br />

Vão todos ver Marioca<br />

Lá na Capela real<br />

Que por <strong>da</strong>ma esta no paço<br />

Por flor na capela esta<br />

ou ain<strong>da</strong> no romance 72, em que ele se refere a um nome mitológico:<br />

Ia em corpo, e tão bizarra<br />

Que eu vivera mais gostoso<br />

Se em alma me parecera<br />

Filis tão bem como em corpo<br />

Veremos, agora, exemplos <strong>da</strong> figura feminina em sua <strong>de</strong>scrição física, em que Fonseca<br />

ressalta olhos, bocas, braços, cabelos, rostos, mãos, enfim, o corpo <strong>da</strong> mulher é <strong>de</strong>scrito por<br />

sua beleza e sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong> no ato <strong>de</strong> agir diariamente e no ato <strong>de</strong> seduzir o eu-lírico. A maior<br />

parte dos romances que se refere a alguma parte do corpo feminino são encontrados como<br />

<strong>de</strong>scritivos. No romance 46, o eu-lírico <strong>de</strong>screve as mãos <strong>da</strong> ama<strong>da</strong>:<br />

Se nelas <strong>de</strong>ssas mãos belas<br />

104


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 103-109, 2008<br />

Quis um nasce a brancura<br />

Quem teve essas mãos humanas<br />

Não tem que as tornar injustas<br />

E no romance 60 há uma comparação entre os olhos <strong>da</strong> ama<strong>da</strong> e o sol:<br />

Adorei tua beleza<br />

Forçado <strong>de</strong> meu <strong>de</strong>sejo<br />

Mas que muito se teus olhos<br />

São do sol luzido espelho<br />

E por fim o romance 13, em que o eu-lírico refere-se ao rosto <strong>da</strong> ama<strong>da</strong>, para tal<br />

comparação, ele faz jus <strong>da</strong>s flores e <strong>de</strong> pedras preciosas:<br />

O rostinho era composto<br />

De rosa, e branca sem cem<br />

Tão mimoso que acusava<br />

Ao zéfiro <strong>de</strong> cruel<br />

Uma parcela acentua<strong>da</strong> dos romances trata <strong>da</strong> mulher em seus ofícios, os quais ele<br />

abrange os mais diversos, tendo em vista lugares abertos para tal realização, como no<br />

romance 22, em que o eu-lírico trata <strong>da</strong> lava<strong>de</strong>ira:<br />

Clarinha <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong><br />

Que junto <strong>da</strong> ponte lava<br />

Levando to<strong>da</strong>s as vi<strong>da</strong>s<br />

Dos que matas as mãos lava<strong>da</strong>s<br />

E no romance 23 em que o eu lírico refere a ven<strong>de</strong>dora <strong>de</strong> frutas:<br />

Eu te vi lá no rocio<br />

Por sinal que o que vendias<br />

Com ser o preço mui alto<br />

105


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 103-109, 2008<br />

Se comprava as rebatinhas<br />

A atitu<strong>de</strong> má, por parte <strong>da</strong> mulher, po<strong>de</strong> suscitar uma série <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s. A<br />

mal<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong> significar o <strong>de</strong>sprezo pelo amante, a prostituição, a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>sregra<strong>da</strong>, a bruxaria.<br />

Embora sejam <strong>de</strong>feitos diversos, eles são em geral postos na esfera do erotismo e vituperados<br />

com figuras e construções <strong>de</strong> forte conotação sexual negativa como no romance 54:<br />

Minha Santinha esse instante<br />

Me chegaram novas vossas<br />

Sem ser isto dita minha<br />

Me pareceu coisa nova<br />

O jogo entre os dois usos <strong>da</strong> palavra “nova”, primeiramente substantivo e <strong>de</strong>pois<br />

adjetivo, <strong>de</strong>senvolver-se-á até a conclusão do “comportamento na<strong>da</strong> exemplar” <strong>da</strong> “Santinha”.<br />

Exemplos <strong>de</strong> vitupérios, praticados contra as mulheres <strong>de</strong> má atitu<strong>de</strong>, estão postos nos<br />

objetos <strong>de</strong> conotação fálica mencionados nos poemas, como a vara, o ferrão <strong>da</strong> abelha, etc,<br />

como no romance 95:<br />

De quando em quando na vara<br />

Pega mas em caso tal<br />

Mais que vara <strong>de</strong> medir<br />

Vara <strong>de</strong> pren<strong>de</strong>r será<br />

As antíteses, por sua vez, evocam a atitu<strong>de</strong> dissimula<strong>da</strong> e ambígua <strong>da</strong> mulher como no<br />

romance 70:<br />

No jogo do truque entendo<br />

Fílis que mui <strong>de</strong>stra sois<br />

Pois que sobre os meus azares<br />

Fizestes este primor<br />

Por fim, o predomínio <strong>da</strong>s estruturas <strong>de</strong> exortação que aqui po<strong>de</strong>m ser vistas como<br />

equivalentes ao vitupério pelas palavras – o xingamento – e a narração, forma <strong>de</strong> “contar”, <strong>de</strong><br />

106


promover o mexerico, ambientando, assim, as mulheres más ao contexto construído pelo eulírico,<br />

como no romance 28:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 103-109, 2008<br />

És Isabel, muito lin<strong>da</strong><br />

Mas porém muito avarenta<br />

A beleza é trata<strong>da</strong> por Fonseca predominantemente em tons <strong>de</strong>scritivo e narrativo. Em<br />

termos estruturais, predominam as comparações, assim como as alusões à mitologia, que,<br />

como mencionamos acima, auxilia no ornato e na alegorização dos atributos <strong>de</strong> beleza divina<br />

<strong>da</strong> mulher, como se refere o romance 63:<br />

Enfim Clori nesses raios<br />

Não negueis mais a evidência<br />

Não é bem que uma nuvem<br />

Mais que uma vi<strong>da</strong> mereça<br />

Por se tratar <strong>de</strong> aspecto explicitamente visual, o recurso ao ut pictura poesis, às<br />

<strong>de</strong>scrições, às comparações e à divinização (mitológica) <strong>da</strong> mulher apresentam-se como<br />

recursos <strong>de</strong> prescrição, consi<strong>de</strong>rando-se as limitações que o <strong>de</strong>coro impõe tanto ao eu-lírico<br />

quanto ao autor.<br />

O primeiro, na alusão <strong>de</strong> um personagem <strong>da</strong> ficção poética que se coloca na condição<br />

<strong>de</strong> religioso (por ofício) que é, tornando seus relatos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> i<strong>de</strong>alização <strong>da</strong> mulher como<br />

objeto <strong>de</strong> sua expressão poética como mostra o romance 97:<br />

Beliza aquela bel<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Cujas perfeições são tais<br />

Que a fermosura e juízo<br />

Vivem nela muito em paz<br />

O segundo, externamente à poesia, cria a persona má, cuja aparência não se coaduna,<br />

em geral, com a sua atitu<strong>de</strong>, estabelecendo uma relação <strong>de</strong> tensão e não completu<strong>de</strong> do amor,<br />

que se i<strong>de</strong>aliza e não se realiza visto no romance 26:<br />

107


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 103-109, 2008<br />

Que as vezes os <strong>de</strong>salinhos<br />

Permitem que os olhos logrem<br />

D’alma superiores vistas<br />

Que avarenta a gala encobre<br />

O erotismo, farto na poesia <strong>de</strong> Fonseca, realiza-se <strong>de</strong> diversas maneiras.<br />

Predominantemente, faz-se pela narração, pela <strong>de</strong>scrição e algumas vezes pelo diálogo, que o<br />

eu lírico estabelece com a mulher.<br />

Nesse conjunto <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s, predomina o universo <strong>da</strong>s mulheres <strong>de</strong> origem<br />

popular, como marca <strong>da</strong> relação entre materiali<strong>da</strong><strong>de</strong> (em oposição à i<strong>de</strong>alização <strong>da</strong> mulher) e<br />

cotidiano como no romance 46:<br />

Mas <strong>de</strong> querer-me matar-me<br />

Quem não fará conjecturas<br />

Se <strong>da</strong>r<strong>de</strong>s esta bainha<br />

Foi por ter a espa<strong>da</strong> nua<br />

Diversas são as construções que se relacionam com o erotismo. Há aquelas que tratam<br />

<strong>da</strong>s ações sensuais como <strong>de</strong>monstra o romance 18:<br />

Destoucai essa toalha<br />

Os alfinetes <strong>de</strong>sprego<br />

Postos em nuvem me abracem<br />

Os raios <strong>de</strong>sse cabelo<br />

Das antíteses, escolhemos a oposição religião versus <strong>de</strong>sejo sexual para ilustrar o jogo<br />

que Fonseca faz com maestria visto no romance 44:<br />

Dizeis que homem <strong>de</strong> palavra<br />

Me quereis <strong>da</strong>ndo-me indícios<br />

De que curais com palavras<br />

Os ataques <strong>de</strong> marido<br />

108


Finalmente, apresentam-se também metáforas, com as quais o eu lírico associa<br />

atitu<strong>de</strong>s, objetos, materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>s ao erotismo como no romance 40:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 103-109, 2008<br />

Se eu for a pele <strong>de</strong> cobra<br />

A pele e mui justamente<br />

Vos viera fazer gala<br />

De fazer <strong>de</strong>spir-me às vezes<br />

Enfim, estas são algumas <strong>da</strong>s maneiras que Fonseca refere às figuras femininas, tendo<br />

nelas o foco central <strong>de</strong> suas obras caracteriza<strong>da</strong>s em suas diversas amplitu<strong>de</strong>s sendo elas<br />

positivas ou negativas. Portanto, a temática <strong>de</strong> Fonseca se contrapõe ao seu oficio <strong>de</strong> padre e<br />

também se mostra como característica <strong>da</strong> arte Barroca em que a razão do homem é vista como<br />

um algo contraditório.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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São Paulo: Cultrix, 2005.<br />

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ALFENA, G. Santinho do pau oco: sensuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e religiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> nos romances do Padre<br />

Antônio <strong>da</strong> Fonseca. Assis, 2005.<br />

109


Prosa narrativa antiga: martírios, atos apócrifos, vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> santos<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

Prof. Dr. Pedro IPIRANGA JÚNIOR<br />

UFPR<br />

junioripiranga@yahoo.com.br<br />

Pétros Pétroi Khaírein<br />

Pedro a Pedro, saú<strong>de</strong>, romance, festa.<br />

No princípio <strong>da</strong>s cartas na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> havia o verbo khaírein, constituinte <strong>de</strong> uma<br />

fórmula <strong>de</strong> sau<strong>da</strong>ção em que eram indicados o <strong>de</strong>stinatário e o remetente. O remetente, assim,<br />

nesta fórmula em que estaria implícita a forma verbal légei ou keleuei (ou seja, alguém<br />

enuncia que <strong>de</strong>seja sau<strong>da</strong>r alguém) expressa sua sau<strong>da</strong>ção ou voto <strong>de</strong> que esteja contente ou<br />

fique alegre o <strong>de</strong>stinatário. A relação com um ausente, a fim <strong>de</strong> manter ou estabelecer algum<br />

tipo <strong>de</strong> contato, mostrar-se-ia, a princípio, como a função, por excelência, <strong>da</strong> carta e, <strong>de</strong> fato, a<br />

carta se afigurou, ao lado dos discursos retóricos, como dos gêneros mais relevantes <strong>de</strong><br />

comunicação nos períodos clássico, helenístico e romano-helenístico.<br />

Embora possa parecer estranho iniciar uma comunicação como esta com um<br />

en<strong>de</strong>reçamento epistolar, <strong>de</strong>sejo com isso pôr em <strong>de</strong>staque o fato <strong>de</strong> que a carta, nos<br />

princípios do cristianismo, <strong>de</strong>veria ser li<strong>da</strong> diante <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, como, por exemplo,<br />

explicita o final <strong>da</strong> Epístola <strong>de</strong> Paulo aos Tessalonicenses, 1Tess 5,27 (anagosthênai tèn<br />

epistolèn pâsin a<strong>de</strong>lphoîs) e, por conseguinte, a performance <strong>da</strong> leitura pública <strong>de</strong> uma carta<br />

tornava-se parte constitutiva do ritual cristão.<br />

Dessa maneira, se pensarmos a carta como substituindo a presença do escritor e,<br />

consoante a isso, substituindo seu discurso, seu lógos, então seria esperável encontrarmos<br />

vários procedimentos e convenções próprios à retórica <strong>da</strong> época. Como exemplificação disso,<br />

os estu<strong>da</strong>ntes podiam exercitar seu estilo retórico ao escrever cartas sob o nome <strong>de</strong> figuras<br />

famosas do passado. A carta, a partir <strong>de</strong>sse uso didático, além <strong>de</strong> proporcionar um<br />

treinamento retórico, teria um caráter ethopoético, no sentido <strong>de</strong> representar e construir no<br />

discurso a imagem do escritor, mas também do pretenso leitor ou dos supostos <strong>de</strong>stinatários.<br />

Não obstante, o gênero epistolar se diferencia bastante do campo <strong>de</strong> composição<br />

retórico. Na análise <strong>de</strong> Jeffrey Reed, embora, em relação às partes do discurso, a escrita<br />

epistolar tenha sofrido uma influência marginal quanto à reapropriação <strong>de</strong> procedimentos <strong>da</strong><br />

inuentio e <strong>da</strong> elocutio, os teóricos e escritores <strong>de</strong> cartas na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>saconselhavam o<br />

uso <strong>da</strong>s convenções e elementos <strong>da</strong> retórica, além <strong>de</strong> que uma abor<strong>da</strong>gem sistemática acerca


<strong>da</strong> escrita <strong>de</strong> cartas em manuais <strong>de</strong> retórica ocorre apenas tardiamente a partir do século IV<br />

d.C., com a Ars Rhetorica <strong>de</strong> Júlio Victor (Cf. REED, 1997, p.190).<br />

O que se afigurava relevante na escrita epistolar, a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong> maior ou menor<br />

influência dos três gêneros retóricos (<strong>de</strong>liberativo, dicânico e epidítico), era a sua a<strong>de</strong>quação e<br />

apropriação a contextos pragmático-sociais específicos, o que acarretava o emprego <strong>de</strong><br />

procedimentos <strong>de</strong>terminados por situações típicas. Daí que, em vez <strong>de</strong> se restringir às<br />

enunciações próprias ao tribunal, ao conselho <strong>de</strong>liberativo ou às apresentações <strong>de</strong> aparato, as<br />

ações que as pessoas realizavam através <strong>da</strong>s cartas seriam muito mais diversifica<strong>da</strong>s e<br />

flexíveis, tais como, pedir provisões, recomen<strong>da</strong>r alguém, promover hábitos, adquirir virtu<strong>de</strong>s,<br />

fornecer conselhos, consolar, <strong>da</strong>r or<strong>de</strong>ns, elogiar ou censurar alguém, fazer um relato <strong>de</strong><br />

eventos, fazer com que um grupo partilhe <strong>de</strong> uma esperança comum, ameaçar alguém,<br />

expressar gratidão, conferir honra, fazer a mediação acerca <strong>de</strong> uma questão entre indivíduos<br />

ou grupos, restabelecer ou terminar uma relação com alguém, manter ou iniciar uma relação<br />

com uma pessoa ou com um grupo etc.<br />

A carta, <strong>de</strong>ssa forma, introduz uma disrupção na lógica do sistema teórico e promove<br />

como que uma tensão não aparente entre discursos orais e discursos escritos. Com efeito, as<br />

marcas epistolares são, <strong>de</strong> certa forma, marcas <strong>de</strong> escrita e o recebedor <strong>de</strong> uma carta é, a<br />

princípio, um leitor. É preciso relembrar, to<strong>da</strong>via, que o texto <strong>da</strong> carta será freqüentemente<br />

vocalizado, ou seja, <strong>de</strong>stinado a uma leitura pública, como era o caso <strong>da</strong>s cartas <strong>de</strong> Paulo, no<br />

tempo <strong>de</strong> sua pregação, ou <strong>da</strong>s <strong>de</strong> Atanásio, durante seu episcopado em Alexandria.<br />

Desviando-se, assim, <strong>de</strong> uma esquematização segundo os tipos retóricos, a carta<br />

estará vincula<strong>da</strong> a um outro campo discursivo:<br />

A classificação dos tipos <strong>de</strong> carta segundo as três espécies retóricas somente parcialmente<br />

funciona. Isso porque a tradição <strong>de</strong> escrita epistolar era essencialmente in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong><br />

retórica. Além disso, muitos tipos <strong>de</strong> carta correspon<strong>de</strong>m a espécies <strong>de</strong> exortação<br />

(paraenesis) e a exortação era apenas tangencialmente relaciona<strong>da</strong> com a teoria retórica.<br />

De fato, o mais sistemático tratamento <strong>da</strong> exortação estava na filosofia moral<br />

(STOWERS, 1986, p.52).<br />

Esta tradição parenética po<strong>de</strong> ser rastrea<strong>da</strong> até dois mo<strong>de</strong>los que representam dois<br />

pólos no uso <strong>da</strong> exortação: o Protrepticus <strong>de</strong> Aristóteles e o A Nícocles <strong>de</strong> Isócrates. Enquanto<br />

este último seria <strong>de</strong> índole mais conservadora, instando o seu leitor a cumprir e assumir as<br />

mais altas expectativas <strong>da</strong> cultura, aquele outro propunha uma transformação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>,<br />

enquadrando-se assim como paradigma <strong>de</strong> uma literatura <strong>de</strong> conversão. Na esteira <strong>de</strong>ssa<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

111


literatura exortativa vão se situar célebres obras, como a Carta a Meneceu <strong>de</strong> Epicuro e o<br />

Protréptico <strong>de</strong> Clemente <strong>de</strong> Alexandria (STOWERS, 1986, p.91-113).<br />

A primeira carta <strong>de</strong> Paulo aos tessalonicenses é repleta <strong>de</strong> exortações. Aí ele<br />

explicita os pressupostos <strong>de</strong> uma carta: a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ir on<strong>de</strong> estão os <strong>de</strong>stinatários<br />

(1Tess. 2:17-19); a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> premente <strong>de</strong> estabelecer contato (3:1-2); a explicitação <strong>da</strong>s<br />

relações <strong>de</strong> afeto e amiza<strong>de</strong> (1:1); a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> manter os vínculos afetivos ligados à<br />

crença em comum (3:3-13); o objetivo explícito <strong>de</strong> exortação (4:1-12; 5:12-19). No final<br />

(5:27), Paulo insta seus <strong>de</strong>stinatários a lerem a carta em público, durante as assembléias<br />

litúrgicas. Mais complexa, to<strong>da</strong>via, é a primeira carta aos coríntios, em que, ao caráter<br />

exortativo mais geral, se somam conselhos e admoestações. Em resposta às dissensões entre<br />

os coríntios, Paulo coloca a si mesmo como exemplo a ser imitado (1Cor. 4:16-17); em outra<br />

passagem (9:1-27), em que apresenta uma <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> si mesmo <strong>de</strong> prováveis críticas,<br />

<strong>de</strong>senvolve, em tons um pouco biográficos, seu próprio exemplo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> como paradigma,<br />

concluindo assim sua epístola: “Se<strong>de</strong> meus imitadores, como eu sou <strong>de</strong> Cristo” (11:1).<br />

Segundo Stowers, havia um circuito <strong>de</strong> cartas fictícias, produzi<strong>da</strong>s entre os cínicos,<br />

que retratavam correspondências imagina<strong>da</strong>s em círculos filosóficos. Sua intenção seria<br />

pe<strong>da</strong>gógica, tendo um objetivo parenético, ou seja, ligado a exortações morais. A carta seria<br />

mesmo o meio a<strong>de</strong>quado para a paraínesis: “Voltando, pelo menos, ao famoso Protrepticus<br />

<strong>de</strong> Aristóteles, havia uma longa tradição <strong>de</strong> colocar exortações para a vi<strong>da</strong> filosófica em forma<br />

<strong>de</strong> cartas. A literatura <strong>de</strong> conversão no mundo greco-romano veio <strong>da</strong> filosofia e não <strong>de</strong> cultos<br />

religiosos gregos e romanos”.<br />

Como expõe Hadot, a filosofia e, certamente, o ensino filosófico não tinha um<br />

caráter abstrato, meramente cognitivo ou teórico, mas buscavam modificar e transformar<br />

aqueles a quem se dirigiam, a partir <strong>da</strong> vivência concreta dos princípios advogados por tal ou<br />

qual corrente. E a efetivação <strong>de</strong>ssa vivência se realizaria por aquilo que Hadot <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong><br />

“exercícios espirituais” (HADOT, 1993, p.21). Com efeito, Foucault empregou expressões<br />

como “prática <strong>de</strong> si” ou “cultura <strong>de</strong> si” para <strong>de</strong>nominar essa técnica <strong>de</strong> viver pelo<br />

a<strong>de</strong>stramento <strong>de</strong> si mesmo, segundo várias mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> askéseis (Cf. FOUCAULT, 1985;<br />

1984). Esse treinamento <strong>de</strong> si envolve ou concerne a uma relação consigo mesmo, uma forma<br />

<strong>de</strong> constituir o si mesmo e é esse tipo <strong>de</strong> relação consigo que uma carta dirigi<strong>da</strong> a mim mesmo<br />

(<strong>de</strong> Pedro a Pedro, segundo a fórmula epistolar inicial) quer mimetizar, num esforço <strong>de</strong><br />

áskesis acadêmico-biográfica.<br />

Desse tipo <strong>de</strong> exercício há to<strong>da</strong> uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> práticas para adquirir hábitos<br />

morais até condicionamentos corporais. Cabe assinalar-lhes alguns traços em comum: a<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

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prática é recorrente e continua<strong>da</strong>, <strong>de</strong>man<strong>da</strong>ndo um espaço <strong>de</strong> tempo; diz respeito à liberação<br />

<strong>da</strong>s paixões, dos seus efeitos <strong>de</strong>sreguladores sobre o indivíduo; em conseqüência, diz respeito<br />

também a uma imagem <strong>de</strong> si; essa imagem <strong>de</strong> si está na <strong>de</strong>pendência <strong>da</strong> transformação a ser<br />

enceta<strong>da</strong> pelo exercício; há sempre um treinamento <strong>de</strong>stinado à memorização; a perspectiva é<br />

dialógica, uma vez que se tem em mente a presença <strong>de</strong> si para si, a divin<strong>da</strong><strong>de</strong> e os outros; a<br />

finali<strong>da</strong><strong>de</strong> é fornecer um padrão ou um mo<strong>de</strong>lo.<br />

As vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> santos, como a Vita Antonii <strong>de</strong> Atanásio, vão retomar tanto o aspecto<br />

testemunhal <strong>da</strong>s primeiras cartas cristãs, quanto essa prática <strong>de</strong> si própria <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

epistolar filosófica greco-romana anterior. O bíos hagiográfico cristão, portanto, perfaz uma<br />

experimentação biográfica mais complexa, em que estão dispostos em maior ou menor grau<br />

elementos do discurso romanesco.<br />

Os Atos Apócrifos dos Apóstolos, por seu turno, embora tenham uma vinculação<br />

temática com os atos canônicos, foram produzidos numa época (segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século II<br />

d.C) justamente quando os Atos <strong>de</strong> Lucas estariam em vias <strong>de</strong> canonização (cf.<br />

MORESCHINI, 1996, 2000; TOSAUS ABADÍA, 2000). Assim, enquanto estes se<br />

afiguravam como os atos <strong>de</strong> todos os apóstolos, muito embora as figuras <strong>de</strong> Pedro e Paulo<br />

sejam aí os protagonistas, aqueles se concentravam nas ações <strong>de</strong> um único apóstolo. O certo é<br />

que um conjunto <strong>de</strong> cinco atos apócrifos (Atos <strong>de</strong> Pedro, <strong>de</strong> Paulo, <strong>de</strong> João, <strong>de</strong> André, <strong>de</strong><br />

Tomé) foi reunido numa coleção provavelmente <strong>de</strong> origem maniquéia (cf. OTERO, 1999;<br />

PIÑERO, 2004), porém, ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les tem características próprias e diferenças tais que seria<br />

temerário abrigá-los sob uma mesma formulação teórica.<br />

Por sua remissão a figuras históricas efetivas (cf. BERGER, 1998), os atos apócrifos<br />

já <strong>de</strong>lineiam para a sua provável recepção um quadro narrativo em que <strong>da</strong>dos e eventos<br />

biográficos possuem um caráter relevante. Alguns privilegiam, assim, as práxeis, as ações<br />

propriamente ditas do apóstolo, enquanto outros se atêm mais às peregrinações (perió<strong>de</strong>is) e,<br />

por sua vez, o tema <strong>da</strong> viagem, que imbrica em si todos os reveses, obstáculos, perigos <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong>, naufrágios por que passa o protagonista, ambienta a narrativa com motivos romanescos.<br />

De uma forma ou <strong>de</strong> outra, estes atos apócrifos se situam no campo do biográfico e, em<br />

analogia com os atos canônicos, se servem <strong>de</strong> vários procedimentos historiográficos <strong>da</strong> época.<br />

Se, por outro lado, nos perguntamos quais os eixos temático-discursivos e, por assim<br />

dizer, estruturais que vinculariam tais narrativas cristãs ao gênero romanesco, teríamos <strong>de</strong><br />

li<strong>da</strong>r, pelo menos, com dois eixos principais: o páthos erotikón, a paixão amorosa, e a<br />

ocorrência <strong>de</strong> parádoxa, <strong>de</strong> fenômenos extraordinários conduzidos pela ação <strong>da</strong> fortuna (cf.<br />

BRANDÃO, 1996). Isso po<strong>de</strong> ser exemplificado, <strong>de</strong> forma paradigmática, nos Atos <strong>de</strong> Paulo<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

113


e Tecla, a fim <strong>de</strong> verificarmos paralelos, correspondências, assim como diferenças e<br />

novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s em relação ao romance.<br />

No tipo <strong>de</strong> romance grego i<strong>de</strong>al,aos personagens sofrem <strong>de</strong> um páthos que os atinge<br />

e os afeta <strong>de</strong> uma forma total e absoluta. Isso vale também para a protagonista <strong>de</strong> um dos atos<br />

apócrifos, Tecla (e para uma personagem <strong>de</strong> narrativa romanesca ju<strong>da</strong>ica como Aseneth), mas<br />

o páthos, nesse caso, vincula, irresistivelmente, noções cruciais do ensinamento moral cristão<br />

e ju<strong>da</strong>ico. No contexto ju<strong>da</strong>ico, temos como exemplo a obra José e Aseneth; nesta narrativa, a<br />

paixão <strong>de</strong> Aseneth por José é arrebatadora, embora, a princípio, não haja reciproci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

To<strong>da</strong>via, essa afecção, enquanto páthos erotikón, que a consome e oprime, leva-a a um<br />

processo <strong>de</strong> isolamento, purgação e penitência, a partir <strong>de</strong> que ela se arrepen<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua anterior<br />

<strong>de</strong>voção aos <strong>de</strong>uses egípcios e se converte à religião ju<strong>da</strong>ica. De uma forma ou <strong>de</strong> outra, tanto<br />

para Aseneth, quanto para Tecla, o páthos agencia e compartilha, juntamente com a paixão<br />

amorosa, uma outra espécie <strong>de</strong> vinculação semântica e pragmática, resultando num tipo <strong>de</strong><br />

sentimento marcado pela a<strong>de</strong>são a um sofrimento buscado, o sofrimento do convertido que se<br />

penitencia, o páthos do mártir cuja vi<strong>da</strong> se expõe conforme um testemunho público e teatral<br />

<strong>de</strong>sse páthos, que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong>finir a própria narrativa.<br />

Há <strong>de</strong> se chamar a atenção, mais uma vez, para o fato <strong>de</strong> que o páthos <strong>de</strong> Tecla<br />

incorpora então, <strong>de</strong> certa maneira, os sofrimentos <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong> sua conversão ao<br />

cristianismo. Os relatos <strong>de</strong> martírio, <strong>da</strong> mesma forma, vão li<strong>da</strong>r com essa noção <strong>de</strong> páthos (cf.<br />

PERKINS, 1995), englobando to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>sventuras que os mártires sofrem até sua morte,<br />

como na Paixão <strong>de</strong> Santa Perpétua e Santa Felici<strong>da</strong><strong>de</strong> (cf. AMAT, 1996). As ações dos<br />

mártires são orquestra<strong>da</strong>s <strong>de</strong> modo dramático (cf. DAVIDSON, 2000), em que tanto seu<br />

julgamento como sua exposição às feras são apresentados como um espetáculo público,<br />

ambientado em teatros, praças públicas ou anfiteatros.<br />

Com efeito, os relatos <strong>de</strong> martírio, a princípio, se concentravam na cena <strong>de</strong> julgamento,<br />

registrando a interlocução entre mártir e juiz, numa seqüência <strong>de</strong> perguntas e respostas, como<br />

acontece, por exemplo, nas atas <strong>de</strong> Cipriano; passam eles, <strong>de</strong>pois, a narrar os últimos dias <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong> do mártir, sendo constantes os relatos <strong>de</strong> sonhos e visões (cf. DELEHAYE, 1927, 1933,<br />

1966). O sucesso <strong>da</strong> literatura <strong>de</strong> martírio e o emprego <strong>da</strong> situação <strong>de</strong> julgamento como<br />

<strong>de</strong>terminante na estruturação <strong>de</strong> boa parte <strong>de</strong>ssas obras indicariam uma forma <strong>de</strong> pensar<br />

pauta<strong>da</strong> na memória <strong>de</strong> julgamentos, incluindo punição, tortura e con<strong>de</strong>nação, que se<br />

<strong>de</strong>svelaria como um padrão recorrente para as primeiras comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s cristãs assola<strong>da</strong>s pelas<br />

perseguições, mas que se manteria por muito tempo <strong>de</strong>pois nos escritos eclesiásticos<br />

referentes a martírios <strong>de</strong> santos (cf. IPIRANGA JÚNIOR, 2006).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

114


Segundo a perspectiva <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por Brent Shaw, haveria uma vinculação entre esses<br />

eventos teatralmente dramáticos <strong>de</strong> julgamento e as narrativas <strong>de</strong> martírio, assim como ao<br />

modo <strong>de</strong> registrá-los internamente na mente sob a forma <strong>de</strong> uma memória coletiva. Com<br />

relação a este último aspecto, isso se manifestaria como sintomas <strong>de</strong> uma figuração coletiva<br />

<strong>de</strong> memória associa<strong>da</strong> a um tipo específico <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, cuja expressão explícita seriam os<br />

sonhos envolvendo situações judiciais ou pesa<strong>de</strong>los com punições. To<strong>da</strong>via, Shaw enfatiza<br />

que são, além dos romances, <strong>de</strong> preferência, ou quase unicamente, os escritos cristãos que<br />

abor<strong>da</strong>rão mais concretamente os relatos cuja referência imediata são os processos <strong>de</strong><br />

julgamento e <strong>de</strong> castigo, utilizando, se não as atas efetivas, formas <strong>de</strong> interrogatório muito<br />

próximas <strong>de</strong>las (cf. MUSURILLO, 2000; BUENO, 1961).<br />

Em certa medi<strong>da</strong>, a paixão amorosa cristã ultrapassa o páthos erotikón do romance<br />

grego na própria espetacularização <strong>de</strong>sse páthos, ou melhor, na dramatização do relato <strong>de</strong>sse<br />

páthos, o relato, como testemunho e como martírio, transformando o calendário,<br />

transformando-se em <strong>da</strong>ta comemorativa para a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã, transformando o<br />

romanesco em biográfico, inserindo a paixão no registro <strong>da</strong> história.<br />

Deve-se chamar a atenção para a relevância do papel feminino <strong>de</strong> Tecla, bem mais<br />

central e focalizado que o <strong>de</strong> Paulo, em correspondência com a ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> ao personagem<br />

feminino no romance grego <strong>de</strong> tipo i<strong>de</strong>al. No entanto, não se po<strong>de</strong> achar aqui o que David<br />

Konstan chama <strong>de</strong> simetria amorosa (KONSTAN, 1994), uma vez que Tecla, na posição <strong>de</strong><br />

discípula do apóstolo, sempre é enquadra<strong>da</strong> numa posição hierarquicamente inferior, ain<strong>da</strong><br />

que seja a protagonista propriamente dita <strong>da</strong> narrativa. Há, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, to<strong>da</strong> uma polêmica<br />

acerca do que teria sido o papel <strong>da</strong>s mulheres na produção e recepção <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> narrativa<br />

(cf. DUNN, 1993; KAESTLI, 1990), mas é inegável que a representação <strong>da</strong> ação, <strong>da</strong> posição<br />

e <strong>de</strong> todo um imaginário relativo à mulher toma aqui uma dimensão bem maior e mais<br />

elabora<strong>da</strong> do que em outros tipos <strong>de</strong> relato.<br />

Alguns teóricos do romance preferem colocar esse tipo <strong>de</strong> narrativa nas fronteiras do<br />

gênero romanesco (cf. HOLZBERG, 1995; HÄGG, 1991; REARDON, 1991; TATUM,<br />

1994), acentuando o fato <strong>de</strong> que, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong> outra, os relatos <strong>de</strong> martírio, vi<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

santos e atos apócrifos suce<strong>de</strong>ram o romance no gosto do público na época seguinte. Embora<br />

concor<strong>de</strong>mos em parte com essas afirmações, o caso é que esse tipo <strong>de</strong> narrativa cristã<br />

representa um gênero narrativo que teve ampla repercussão, mesmo que nos atenhamos<br />

apenas aos atos apócrifos, os quais, por seu turno, foram relegados ao limbo pela corrente<br />

ortodoxa <strong>da</strong> Igreja, mas que sobreviveram fragmentária e romanescamente. Mesmo se<br />

adotarmos uma concepção <strong>de</strong> um gênero híbrido entre biografia e romance, mormente para<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

115


alguns atos apócrifos, como os Atos <strong>de</strong> Paulo e Tecla, temos <strong>de</strong> ter em mente esse caráter<br />

testemunhal <strong>da</strong> literatura cristã que a literatura epistolar e <strong>de</strong> martírio selaram como uma<br />

marca in<strong>de</strong>lével <strong>da</strong>quilo que se possa chamar <strong>de</strong> uma literatura cristã, pois, se o romance <strong>de</strong><br />

linhagem grego-latina ten<strong>de</strong> para uma ficcionalização generaliza<strong>da</strong> para caracterizar sua<br />

própria poética romanesca, como a obra <strong>de</strong> Luciano <strong>de</strong> Samósata po<strong>de</strong>ria explicitar 1 , a prosa<br />

literária cristã <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> parte <strong>de</strong> um enquadramento biográfico e autobiográfico, <strong>de</strong><br />

uma relação propriamente epistolar entre leitor, escritor e grafia <strong>de</strong> carta.<br />

A fórmula <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong> nas cartas gregas podia se restringir a um Érrose ou Érrosthe,<br />

termos que significam “Esteja bem” ou “Estejais bem”. Paulo, assim, como jogou<br />

intertextualmente com a fórmula <strong>de</strong> sau<strong>da</strong>ção khaírein, alongando-a em formas como kháris e<br />

eiréne, graça e paz, também aumentou a sau<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> <strong>de</strong>spedi<strong>da</strong>, acrescentando uma bênção, a<br />

exortação a se sau<strong>da</strong>rem com o beijo filial e, às vezes, a prescrição para lerem o seu escrito.<br />

De mim a mim, Força e ânimo.<br />

Érrose.<br />

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1<br />

Cf. Proêmio <strong>da</strong> obra Das Narrativas Ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras; cf. também IPIRANGA JÚNIOR, 2006, 2001; BRANDÃO,<br />

1996.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

116


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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 110-118, 2008<br />

118


Estratégia e estudo <strong>de</strong> gênero no final do século I a.C.: Cleópatra e suas relações<br />

político-amorosas com os militares romanos Júlio César e Marco Antônio 1 .<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 119-127, 2008<br />

Natália Frazão JOSÉ<br />

G (FAPESP) – FHDSS Franca – UNESP<br />

nafrazao@bol.com.br<br />

A filha <strong>de</strong> Ptolomeu XII, Cleópatra VII, é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s mulheres mais<br />

famosas do Antigo Egito. Nos últimos anos, a imagem <strong>da</strong> rainha transformou-se em um<br />

importante objeto <strong>de</strong> estudo, tanto por historiadores quanto por escritores romancistas. Além<br />

disso, a rainha tornou-se um ícone, sendo retrata<strong>da</strong> em diversos longas-metragens, exibidos<br />

por todo mundo. Partindo <strong>de</strong>ste ponto, é possível analisar como o mito <strong>de</strong> Cleópatra, a mulher<br />

libertina <strong>de</strong> sedução fatal, foi se perpetuando através dos séculos.<br />

Segundo autores contemporâneos, tais como Shohat (2004, p. 2) e Hughes-Hallet<br />

(2005), são inúmeras as versões existentes sobre a última rainha ptolomaica. Ca<strong>da</strong> período <strong>da</strong><br />

História <strong>de</strong>finiu a imagem <strong>da</strong> soberana <strong>de</strong> uma maneira, seguindo conceitos e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

próprias <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> época. Des<strong>de</strong> sua morte, em 30 a.C., Cleópatra foi reinventa<strong>da</strong> diversas<br />

vezes, assumindo contornos diferentes e particulares.<br />

As mu<strong>da</strong>nças constantes nas formas e significados na história <strong>de</strong> Cleópatra refletem<br />

alterações nas posições <strong>da</strong>queles que a interpretam. Ou seja, ca<strong>da</strong> escritor, ao <strong>de</strong>screver a vi<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> ptolomaica, leva em conta a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em que está inserido, além <strong>de</strong> seus próprios valores<br />

pessoais e os do público que preten<strong>de</strong> atingir. Sendo assim, fazendo novamente uso <strong>da</strong> obra <strong>de</strong><br />

Ella Shohat, po<strong>de</strong>mos citar uma passagem <strong>de</strong> sua referi<strong>da</strong> obra para explicitarmos nossas<br />

consi<strong>de</strong>rações:<br />

Enfrentar o tema Cleópatra envolve quase necessariamente perguntar sobre a<br />

construção <strong>da</strong> imagem e a representação visual. Durante milênios, sua<br />

história <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> morte, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> dominação e<br />

subordinação, e do intercurso imperial entre as civilizações grega, egípcia e<br />

romana, tem excitado a imaginação popular, provocando opiniões<br />

apaixona<strong>da</strong>s sobre sua aparência e origens. O histórico e o fantástico se<br />

alimentam mutuamente. [...] Ca<strong>da</strong> época, po<strong>de</strong>-se dizer, tem sua própria<br />

Cleópatra, a ponto <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r estu<strong>da</strong>r os pensamentos e discursos <strong>de</strong> uma<br />

época através <strong>de</strong> suas fantasias sobre Cleópatra (SHOHAT, 2004, p. 2).<br />

1 Esta apresentação é parte do projeto “As relações político – amorosas <strong>de</strong> Cleópatra VII com os generais<br />

militares Júlio César e Marco Antônio: o testemunho <strong>de</strong> Plutarco”, <strong>de</strong>senvolvido sob a orientação <strong>da</strong> Profª.Dra.<br />

Margari<strong>da</strong> Maria <strong>de</strong> Carvalho e com financiamento <strong>da</strong> agência <strong>de</strong> fomento FAPESP. Apresentarei aqui alguns<br />

apontamentos iniciais <strong>de</strong> nossa pesquisa.


Logo, as pon<strong>de</strong>rações acima arrola<strong>da</strong>s, nos levaram a crer, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> nossa<br />

análise, que a personificação <strong>da</strong> imagem <strong>de</strong> Cleópatra VII, assim como as len<strong>da</strong>s em torno<br />

<strong>de</strong>sta, mu<strong>da</strong>ram constantemente no <strong>de</strong>correr dos anos, alterando drasticamente o teor dos<br />

fatos, assim como as concepções sobre a personagem narra<strong>da</strong>. Desta maneira, ca<strong>da</strong> imagem<br />

<strong>da</strong> rainha nos fornece pistas sobre a cultura que a produziu. Tal característica não se altera,<br />

não importando o tempo histórico em que está inseri<strong>da</strong>. Este é o caso <strong>de</strong> Plutarco <strong>de</strong><br />

Queronéia, o qual, ao biografar a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> homens ilustres, tais como Júlio César e Marco<br />

Antônio, inseriu em seus escritos, mesmo que indiretamente, suas próprias percepções e<br />

influências <strong>de</strong> sua socie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Dentre as obras plutarquianas, são na Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Júlio César e na Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Marco Antônio<br />

que po<strong>de</strong>mos encontrar referências sobre a soberana ptolomaica Cleópatra VII. A discussão<br />

corrente na recente historiografia gira em torno <strong>da</strong> época em que Plutarco teria escrito suas<br />

obras, principalmente os escritos biográficos. Para autores como Funari (2007) e Fonseca<br />

(2007), Plutarco teria escrito suas obras no percorrer do século II d.C. Já para Oliveira (2006),<br />

Swain (1989), Lacy (1952) e Jones (1969), o autor grego teria escrito suas obras em finais do<br />

I d.C. Em nossa concepção, o fato <strong>de</strong> Plutarco estar situado em um período <strong>de</strong> transição do<br />

século I d.C. para o II d.C. gera to<strong>da</strong>s estas discussões, colocando seus escritos ora em um<br />

século ora em outro.<br />

Entretanto, para além <strong>da</strong> época dos escritos plutarquianos, é importante ressaltarmos<br />

que Plutarco analisa socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s distintas e distantes temporalmente <strong>da</strong> sua, fato este que po<strong>de</strong><br />

provocar alterações e distorções em suas análises.<br />

Ain<strong>da</strong>, segundo autores como Hughes-Hallet (2005, p. 61), Clarke (1978, p. 50) e<br />

Salmon (1956, p. 26), Otávio teria criado uma propagan<strong>da</strong>, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> seu triunvirato,<br />

com a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>negrir a imagem <strong>de</strong> Antônio e Cleópatra e resquícios <strong>de</strong>sta mesma<br />

propagan<strong>da</strong> política po<strong>de</strong>ria ter chegado a Plutarco através <strong>de</strong> relatos orais ou fontes. Segundo<br />

Rostovtzeff:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 119-127, 2008<br />

Otaviano aproveitou-se ao máximo dos erros e fracassos do adversário.<br />

Engenhoso, tranqüilo e persistente, procurou provar à Itália e a Roma que<br />

Antônio era o miserável escravo <strong>de</strong> Cleópatra, homem sem <strong>de</strong>sejo próprio e<br />

senso <strong>de</strong> honra, traidor dos i<strong>de</strong>ais romanos, dos quais Otaviano se<br />

proclamava campeão. Se Antônio vencesse, Roma seria escraviza<strong>da</strong> pelo<br />

Oriente, a Itália passaria a uma província do Egito e o orgulho do<br />

conquistador seria substituído pela vergonha <strong>da</strong> <strong>de</strong>rrota. A fim <strong>de</strong> provar<br />

suas afirmações, Otávio divulgou o testamento <strong>de</strong> Antônio e parte <strong>da</strong><br />

correspondência particular <strong>de</strong>ste.<br />

120


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 119-127, 2008<br />

As afirmações <strong>de</strong> Otaviano, porém, fizeram efeito: A Itália e muitos oficiais<br />

romanos e homens do exército <strong>de</strong> Antônio acreditaram nelas. O Senado toma<br />

o partido <strong>de</strong> Otaviano. (1961, p. 146)<br />

Seguindo essa linha <strong>de</strong> raciocínio, na possível len<strong>da</strong> cria<strong>da</strong> pelo jovem governante<br />

romano, Cleópatra aparece, <strong>de</strong> acordo com Reinhold (1981, p. 99), como uma mulher lin<strong>da</strong>;<br />

porém, bárbara, <strong>de</strong>genera<strong>da</strong> e libertina que, através <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução subordinou<br />

Antônio à sua vonta<strong>de</strong>, confundiu-o com seus truques ardilosos e tornou-o seu escravo. Essa<br />

possível distorção <strong>da</strong> imagem <strong>da</strong> soberana ptolomaica ocorre porque, <strong>de</strong> acordo com os<br />

autores já citados, para Otávio, ela representava perigo tanto politicamente quanto<br />

moralmente. No campo do político, ela era uma rainha que governava uma região<br />

extremamente rica e que se encontrava associa<strong>da</strong> a um dos homens mais importantes <strong>de</strong><br />

Roma: Marco Antônio. Além do mais, Cleópatra também dizia ser mãe do único filho <strong>de</strong><br />

César e, portanto, her<strong>de</strong>iro legítimo do po<strong>de</strong>r romano. No campo dos costumes e <strong>da</strong> moral,<br />

Cleópatra era uma mulher no po<strong>de</strong>r, uma figura feminina posta<strong>da</strong> em um alto grau<br />

hierárquico.<br />

Se concor<strong>da</strong>rmos com os autores que nos levaram a suposição <strong>de</strong> que Otávio é quem<br />

inicia a <strong>de</strong>negrir a imagem <strong>de</strong> Cleópatra, chegamos a suposição <strong>de</strong> que, ao transformar<br />

Cleópatra em inimiga <strong>de</strong> Roma, Otávio solucionava tais problemas e, uma vez que Antônio se<br />

encontrava relacionado a ela, eliminava-o <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política romana, o que nos parece ser sua<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira intenção <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início: excluir Antônio do po<strong>de</strong>r, tornando-se o único governante.<br />

Para tanto, o suposto sobrinho <strong>de</strong> César fez uso <strong>de</strong> inúmeras artimanhas políticas.<br />

Seguindo essa mesma linha <strong>de</strong> raciocínio, para tais autores, <strong>de</strong> início, Cleópatra foi<br />

imbuí<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma beleza magnífica e <strong>de</strong> um apetite sexual voraz e <strong>de</strong>senfreado, algo que não<br />

era digno <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s matronas romanas. A rainha ptolomaica também havia sido casa<strong>da</strong> com<br />

seus dois irmãos mais novos, costume <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> egípcia; porém que não condizia com a<br />

cultura romana. Do mesmo modo, o fato <strong>de</strong> ela estar no po<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> ser governante, também ia<br />

contra os valores pregados pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana em relação à posição social <strong>da</strong> mulher. Tais<br />

valores diferiam-se dos egípcios ao se tratar <strong>de</strong> questões econômicas, culturais e jurídicas,<br />

como nos mostra Cardoso: “Já é quase um lugar comum salientar que a situação jurídica <strong>da</strong>s<br />

mulheres egípcias era privilegia<strong>da</strong> em comparação com a observável nas <strong>de</strong>mais civilizações”<br />

(2003a, p. 58). Da mesma forma po<strong>de</strong>mos citar autoras como Gonçalves (1999) e Scott (1992)<br />

que, ao analisarem a questão <strong>de</strong> gêneros na Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> também relatam as diferenças<br />

existentes entre as mulheres <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s grega, romana e egípcia.<br />

121


Desta maneira, nota-se que o fato <strong>de</strong> Cleópatra ser estrangeira em na<strong>da</strong> a ajudou. Para<br />

os romanos do século I a.C., o fato <strong>da</strong> pessoa ser estrangeira já a tornava automaticamente<br />

inferior, o que, ao se tratar <strong>da</strong> soberana, só veio por agravar sua situação, uma vez que, além<br />

<strong>de</strong> ser oriental era mulher, ou seja, por natureza já era inferior ao homem, como relatam<br />

Hobson (1967, p. 72) e Cardoso (2003b). Da mesma forma, o fato <strong>de</strong> Cleópatra ostentar sua<br />

riqueza e a <strong>de</strong> seu país não a faz digna do respeito e <strong>da</strong> confiança dos romanos.<br />

Em nossa visão, as supostas características culturais que, para os autores já citados,<br />

tais como Meyer Reinhold, foram cria<strong>da</strong>s pela propagan<strong>da</strong> <strong>de</strong> Otávio, serviram para a criação<br />

<strong>de</strong>sta peculiar imagem <strong>de</strong> Cleópatra. Ao supostamente propagan<strong>de</strong>á-la na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana, o<br />

triúnviro <strong>de</strong>negria indiretamente a imagem <strong>de</strong> Antônio. A partir disto, segundo Canfora (2002<br />

p. 89), mostra-se um inteligente jogo político; já que para este autor, Otávio estava ciente que<br />

se criticasse abertamente seu companheiro triúnviro, o povo romano, por questões i<strong>de</strong>ntitárias,<br />

não interagiriam às questões <strong>da</strong> maneira espera<strong>da</strong> por Otávio. Portanto, ao hipoteticamente<br />

fazer uso <strong>da</strong> imagem <strong>de</strong> Cleópatra, o jovem político romano atingiu a figura <strong>de</strong> Antônio que,<br />

ao se relacionar amorosamente com a soberana, subjugou-se a uma mulher estrangeira. Logo,<br />

Antônio per<strong>de</strong>u a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> governar Roma e Otávio <strong>de</strong>monstrou-se capaz <strong>de</strong> tal proeza,<br />

como relata Hughes-Hallet; “Cleópatra era perigosa, Antônio era inapto para governar e<br />

Otávio, pelo contrário era justo, competente e afortunado-o homem certo, em resumo, por<br />

quem os romanos <strong>de</strong>sejavam ser governados” (2005, p. 67).<br />

É importante ressaltarmos que a idéia <strong>de</strong> Otávio como o melhor dos governantes<br />

romanos, a imagem <strong>de</strong> bom príncipe, é senso comum na historiografia, situação esta que<br />

questionamos, pois autores que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m tal i<strong>de</strong>al po<strong>de</strong>m não ter realizado uma análise crítica<br />

<strong>de</strong>ste personagem histórico.<br />

Ain<strong>da</strong>, a possível versão <strong>da</strong> história <strong>de</strong> Cleópatra cria<strong>da</strong> pela propagan<strong>da</strong> augusta po<strong>de</strong><br />

ter servido <strong>de</strong> mol<strong>de</strong> para as versões posteriores. Segundo Hughes-Hallet, escritores como<br />

Virgílio, contemporâneo a época <strong>de</strong> Otávio, po<strong>de</strong>m ter corroborado a versão otaviana. Para<br />

esta autora, quando Virgílio, em sua obra Enei<strong>da</strong>, relata a relação entre o herói Enéias e a<br />

rainha <strong>de</strong> Cártago Dido, ele esta fazendo referência a Cleópatra. No entanto, Enéias, após um<br />

certo tempo, consegue escapar dos encantos <strong>de</strong> Dido, o que não acontece a Antônio, que<br />

sucumbe por amor a Cleópatra.<br />

De acordo com esta autora, a partir <strong>da</strong> obras dos escritores antigos forma-se um ciclo,<br />

pois, no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong>s épocas, estas versões <strong>da</strong> história foram utiliza<strong>da</strong>s por outros escritores<br />

que, através <strong>de</strong>las, <strong>de</strong>screveram suas próprias análises sobre esta história e assim por diante,<br />

até as possíveis concepções otavianas sobre Cleópatra chegarem aos tempos presentes.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 119-127, 2008<br />

122


No <strong>de</strong>correr <strong>da</strong>s duas biografias plutarquianas analisa<strong>da</strong>s em nossa pesquisa – Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

César e Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Marco Antônio – é na segun<strong>da</strong> obra que aparecem maiores referências à<br />

Cleópatra VII. Logo, nota-se que para o autor, a relação com Antônio, que se esten<strong>de</strong>u por<br />

mais tempo, foi <strong>de</strong> maior importância, pois atingiu diretamente a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana.<br />

No entanto, é importante percebermos que a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Cleópatra apresenta<br />

semelhanças em ambas as obras. Ela é <strong>de</strong>linea<strong>da</strong> como uma mulher <strong>de</strong> certa beleza, tal como<br />

aparece no trecho a seguir:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 119-127, 2008<br />

[...] Cleópatra acreditou no que dizia Délio, e, contando com o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sua<br />

beleza graças às relações que mantivera prece<strong>de</strong>ntemente com César e Cneu,<br />

filho <strong>de</strong> Pompeu, esperava subjugar Antônio ain<strong>da</strong> mais facilmente.<br />

(PLUTARCO, 1991, 26, p. 6).<br />

No entanto, é curioso observarmos a duali<strong>da</strong><strong>de</strong> existente nos escritos plutarquianos.<br />

No <strong>de</strong>senvolver <strong>da</strong> mesma obra cita<strong>da</strong> acima, Plutarco nos diz: “E, com efeito, diz-se que sua<br />

beleza (a <strong>de</strong> Cleópatra), por si mesma, não era incomparável ou <strong>de</strong> mol<strong>de</strong> a maravilhar os que<br />

a contemplavam” (27, p. 3, grifo nosso). Nesta passagem, Plutarco, obviamente, contradiz-se<br />

ao <strong>de</strong>ixar transparecer o que se aproximaria <strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> soberana. Mas, mesmo assim, a<br />

Cleópatra plutarquiana não per<strong>de</strong> o seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sedução. Este se encontra na maneira <strong>de</strong> se<br />

vestir e na forma <strong>de</strong> falar:<br />

[...] no entanto, seu trato tinha um encanto irresistível, e to<strong>da</strong> a sua pessoa,<br />

principalmente a conversação sedutora e a graça natural <strong>da</strong>s palavras, era<br />

como uma espécie <strong>de</strong> aguilhão. Quando falava, até o tom <strong>da</strong> voz causava<br />

prazer. A língua <strong>de</strong> Cleópatra era um instrumento <strong>de</strong> várias cor<strong>da</strong>s, do qual<br />

se servia à vonta<strong>de</strong> no dialeto que bem enten<strong>de</strong>sse (PLUTARCO, 1991, 27,<br />

p. 3-4).<br />

A visão <strong>da</strong> Cleópatra sedutora libertina não <strong>de</strong>saparece durante as biografias dos dois<br />

militares romanos. Também em sua particular <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> soberana, Plutarco lhe atribui<br />

características <strong>de</strong> uma mulher ciumenta e mesquinha, a qual “[...] cooptou o povo mercê <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong>s liberali<strong>da</strong><strong>de</strong>s” (PLUTARCO, 1991, 57, p. 2).<br />

Desta forma, nas concepções plutarquianas, a rainha ptolomaica não era digna <strong>da</strong><br />

confiança dos romanos, uma vez que suas características e costumes morais não se<br />

equiparavam aos <strong>de</strong> uma mulher romana, como po<strong>de</strong>mos observar a seguir:<br />

123


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 119-127, 2008<br />

Mas os romanos não se apie<strong>da</strong>ram menos <strong>de</strong>la 2 <strong>de</strong> que <strong>de</strong> Antônio, sobretudo<br />

àqueles que, tendo conhecido Cleópatra, sabiam que a egípcia não superava<br />

Otávia nem em beleza, nem em moci<strong>da</strong><strong>de</strong> (PLUTARCO, 1991, 57, p. 8).<br />

Os preconceitos presentes nas obras plutarquianas po<strong>de</strong>m estar relacionados, como já<br />

dito anteriormente, às diferenças culturais entre as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> época. Em nossa opinião, o<br />

fato <strong>de</strong> Plutarco estar relatando socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e culturas distintas <strong>da</strong>quelas que lhes são<br />

familiares influencia suas análises a respeito dos personagens que biografa.<br />

Como nos mostra Pimentel (2003, p. 218), socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s distintas possuíam e, <strong>de</strong> certa<br />

forma, ain<strong>da</strong> possuem, percepções distintas <strong>de</strong> homem e <strong>de</strong> mulher. No interior <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, tais percepções alteram-se segundo a religião, a raça, a i<strong>da</strong><strong>de</strong> e a posição social.<br />

Logo, a visão <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> por Plutarco, um grego do século I d.C., po<strong>de</strong>ria não ser a mesma<br />

apresenta<strong>da</strong> por um egípcio dos tempos ptolomaicos.<br />

Seguindo os mesmos parâmetros, po<strong>de</strong>mos encontrar Scott e Cavicchioli, que observa:<br />

Ca<strong>da</strong> gênero (masculino, feminino, homossexual) é construído <strong>de</strong> maneira<br />

diferente em ca<strong>da</strong> cultura e socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, apresentando diferenças mesmo<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com o grupo social em que está inserido.<br />

Dessa forma, as relações entre os gêneros também são construí<strong>da</strong>s social e<br />

culturalmente. (2003, p. 20).<br />

Concor<strong>da</strong>mos com a autora na compreensão que diferentes culturas produzem distintas<br />

relações <strong>de</strong> gêneros, que são direciona<strong>da</strong>s diretamente pelas características sociais.<br />

Desta maneira, po<strong>de</strong>mos perceber que o olhar <strong>de</strong> Plutarco foi também direcionado pela<br />

percepção <strong>de</strong> sua própria época, já que, segundo Beloboni (2003, p. 150), os i<strong>de</strong>ais atribuídos<br />

à mulher grega <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua socie<strong>da</strong><strong>de</strong> diferenciavam-se dos atribuídos às romanas e às<br />

egípcias <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> suas respectivas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. De acordo com Flamarion, diferentemente <strong>da</strong>s<br />

mulheres gregas, no Egito: “[...] são atesta<strong>da</strong>s mulheres no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> funções estatais<br />

(incluindo as sacerdotais), em posições <strong>de</strong> mando, <strong>da</strong>s quais <strong>de</strong>pendia o controle <strong>de</strong> bens e <strong>de</strong><br />

mão <strong>de</strong> obra” (2003, p. 56).<br />

Portanto, como já nos referimos, as características atribuí<strong>da</strong>s à Cleópatra VII por<br />

Plutarco, em nossos estudos, estão dota<strong>da</strong>s <strong>de</strong> preconceitos e xenofobias a uma cultura, cujos<br />

costumes lhe eram estranhos. É por contrariar as práticas culturais gregas e romanas, que a<br />

soberana ptolomaica é vista como a culpa<strong>da</strong> pela <strong>de</strong>cadência e, no caso <strong>de</strong> Antônio, pela a<br />

morte dos homens que por ela se apaixonaram.<br />

2 Plutarco se refere aqui a Otávia, irmã <strong>de</strong> Otávio, que foi casa<strong>da</strong> com Antônio, o qual se separou <strong>de</strong>sta<br />

em razão, segundo o escritor grego, dos <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> Cleópatra.<br />

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O estatuto do bom ci<strong>da</strong>dão: o aprimoramento <strong>da</strong>s quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s através <strong>da</strong> educação<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

Prof. Aparecido Gomes LEAL<br />

PG – IFCH – UNICAMP / IESA<br />

apagoleal@yahoo.com.br<br />

A República, <strong>de</strong> Platão, é um livro <strong>de</strong> filosofia moral, nisto po<strong>de</strong> ser enganador para<br />

alguns o seu título habitual, porquanto esperamos encontrar uma obra <strong>de</strong> filosofia política<br />

apenas, e ficamos <strong>de</strong>sconcertados pela gran<strong>de</strong> amplitu<strong>de</strong> do seu tema, que inclui problemas <strong>de</strong><br />

política, mas também <strong>de</strong> educação, estética, sexo, filosofia social, psicologia, ética, metafísica<br />

e religião. Isto po<strong>de</strong> ser compreendido prontamente, se nos <strong>de</strong>rmos conta <strong>de</strong> que o homem,<br />

para os gregos, significa homem na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, afirma Ferguson (1957, p. 29).<br />

A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> República <strong>de</strong>ve ser governa<strong>da</strong> pela sophia e a sophia <strong>da</strong> pólis consiste no<br />

fato <strong>de</strong> ela possuir uma epistéme que a torna capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberar acerca do comportamento<br />

interno e externo <strong>de</strong> seus ci<strong>da</strong>dãos, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo, assim, essencialmente <strong>de</strong> seu governante. Ao<br />

fun<strong>da</strong>r sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em lógos, Sócrates está preocupado em ver nascer e florescer a maior <strong>da</strong>s<br />

virtu<strong>de</strong>s junto aos homens, a justiça, que <strong>de</strong>ve imperar na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e na alma dos ci<strong>da</strong>dãos - e é<br />

no seu encalço que ele vai estar o tempo todo neste diálogo.<br />

É através <strong>da</strong> união dos indivíduos 1 , transformados em ci<strong>da</strong>dãos, que a pólis socrática<br />

se expan<strong>de</strong> e floresce em muitas outras ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que não aquelas primeiras e necessárias à<br />

sobrevivência, pelas quais o grupo originalmente se uniu. Ca<strong>da</strong> um, porém, guar<strong>da</strong> suas<br />

diferenças para com os <strong>de</strong>mais e ain<strong>da</strong> assim <strong>de</strong>ve aceitar as diferenças dos outros e ocupar o<br />

lugar que lhe cabe na pólis, cumprindo admiravelmente a função que lhe cabe. A causa <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>sgraça <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> seria, e portanto <strong>da</strong> imorali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos ci<strong>da</strong>dãos, é a <strong>de</strong>sunião (Châtelet,<br />

1977, p. 191)<br />

Esta pólis será mais bem organiza<strong>da</strong> quanto mais seus habitantes estiverem <strong>de</strong> acordo<br />

em aplicar, <strong>de</strong> fato, as expressões “meu” e “não meu”. No mito do anel <strong>de</strong> Giges (República,<br />

359 d-360 a), quem possuir o anel mágico capaz <strong>de</strong> tornar invisível seu portador, po<strong>de</strong>ria<br />

adquirir o que é <strong>de</strong> outrem sem ser penalizado, como faz Giges, personagem do mito. Isto<br />

acaba por criar uma situação embaraçosa, pois o que importa é a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> pólis, respeita<strong>da</strong>s<br />

as várias partes que a compõem, sem que se faça qualquer mal a outrem, pois todos <strong>de</strong>vem<br />

convergir para um só objetivo, o bem <strong>da</strong> pólis, e, por conseguinte, o bem <strong>de</strong>les mesmos.<br />

1 Existe em grego uma espécie <strong>de</strong> sentença, um ditado que expressa um consenso: entre amigos tudo é comum. A<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> só existe quando seus membros estejam unidos entre si, através dos laços <strong>da</strong> philía e ela consiste em<br />

tornar um grupo homogêneo, em unificá-lo. (VERNANT, 2001, p. 27/28).


Geneviève Droz (1997, p. 162) comenta este mito, reafirmando aquilo que faz parte <strong>da</strong><br />

pregação socrática, a máxima <strong>de</strong> que ninguém é bom voluntariamente, o que traduz uma<br />

“opinião comumente aceita”, amoral nos seus fun<strong>da</strong>mentos, perigosa em suas conseqüências.<br />

Desta forma, se assegurarmos a impuni<strong>da</strong><strong>de</strong> ao homem que age injustamente, estaremos<br />

rompendo o verniz <strong>da</strong> educação moral e <strong>da</strong> “civilização”.<br />

A liber<strong>da</strong><strong>de</strong> se expressa no bom uso do lógos, no afastamento <strong>da</strong>quilo que ameaça a<br />

reflexão, que harmoniza o homem, o cosmos e o político. Sabedoria e virtu<strong>de</strong> são inseparáveis<br />

<strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. No caso do tirano, que se afasta <strong>de</strong> todos, escravizando-se aos seus próprios<br />

<strong>de</strong>sejos, acaba <strong>de</strong>struindo-se na solidão do po<strong>de</strong>r. Sócrates trata <strong>da</strong> liber<strong>da</strong><strong>de</strong> na sua pólis,<br />

acomo<strong>da</strong><strong>da</strong> à natureza <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um, o que remete à liber<strong>da</strong><strong>de</strong> que pertenceria à alma do<br />

homem. O homem, contudo, experimenta apenas a liber<strong>da</strong><strong>de</strong> possível.<br />

A uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sta pólis i<strong>de</strong>al, porém, é uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> excessiva, mas é isto mesmo que<br />

garante aos seus habitantes a sua existência. Mas esta uni<strong>da</strong><strong>de</strong> tem uma finali<strong>da</strong><strong>de</strong> que é o<br />

bem-viver e a vi<strong>da</strong> moral, pois esta pólis foi cria<strong>da</strong> para se ver nascer/germinar, (nela) a<br />

justiça e que assim se possa imaginar como seria uma pólis justa, é claro, com ci<strong>da</strong>dãos<br />

justos. O que o filósofo preten<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finitivamente, é que o homem participe em um grau<br />

máximo possível <strong>da</strong> justiça. Afinal, como salienta Châtelet (1977, p. 191-192): fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

justa não há “salvação” para o indivíduo, quer dizer, a garantia mais séria <strong>da</strong> in<strong>de</strong>pendência<br />

continua a ser a soli<strong>de</strong>z do corpo social, a sua uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fato.<br />

O que encontramos na República seria o esboço <strong>de</strong> um regime autoritário. No entanto,<br />

se nos libertarmos dos nossos padrões <strong>de</strong> individualismo mo<strong>de</strong>rno e pensarmos tudo isso a<br />

partir <strong>da</strong> pólis grega, compreen<strong>de</strong>remos (ain<strong>da</strong> que não aceitemos), em parte, a absoluta<br />

soberania <strong>da</strong> pólis sobre os ci<strong>da</strong>dãos, como está na República. No entanto, este totalitarismo<br />

que não era totalmente afastado <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s reais, lembra ain<strong>da</strong> que a vi<strong>da</strong> individual na pólis<br />

imaginária <strong>da</strong> República era limita<strong>da</strong> para todos, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> pertencer a este ou<br />

aquele nível na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>; ain<strong>da</strong> que se saiba que na Atenas <strong>de</strong>mocrática, vivia-se um<br />

período <strong>de</strong> profun<strong>da</strong> mu<strong>da</strong>nça à época <strong>de</strong> Sócrates e, sem dúvi<strong>da</strong>, durante os séculos V e IV,<br />

ocorria uma aceleração do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> noção do indivíduo.<br />

O filósofo i<strong>de</strong>alizador do projeto <strong>de</strong>sta pólis trata sim, com extremo rigor, <strong>da</strong>s<br />

características que parecem fun<strong>da</strong>mentais para que ela possa ser pensa<strong>da</strong> como um mo<strong>de</strong>lo,<br />

para aquele que quer pautar sua vi<strong>da</strong> pelas virtu<strong>de</strong>s, sendo necessário educar-se para isto. A<br />

relação estreita entre o ci<strong>da</strong>dão e sua pólis é <strong>de</strong> suma importância, para tanto, ca<strong>da</strong> indivíduo<br />

envi<strong>da</strong>ria todos os seus esforços para que a sua pólis pu<strong>de</strong>sse ser o espaço on<strong>de</strong> a bemaventurança<br />

gerenciasse a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> todos, indistintamente.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

129


Quanto à felici<strong>da</strong><strong>de</strong> individual, Popper (1987, p. 100-101) lembra que o filósofo estava<br />

atento ao fato <strong>de</strong> ter que encontrar uma saí<strong>da</strong> para as causas <strong>da</strong> infelici<strong>da</strong><strong>de</strong> social <strong>de</strong> sua<br />

época - que estava arraiga<strong>da</strong> nas mu<strong>da</strong>nças e dissensões sociais -, fazendo o máximo para<br />

combatê-las, tentando encontrar, a partir <strong>da</strong>í, o “caminho” para a reconquista <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

para seus ci<strong>da</strong>dãos, através <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> conduta para a vi<strong>da</strong> justa, para o bem viver. 2<br />

A pólis <strong>da</strong> República é um exercício <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> e do radicalismo para atingir um<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> pólis. Não importa para o filósofo, que este mundo (mo<strong>de</strong>lo), não venha a existir,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, ou o mais importante, que este homem para quem Sócrates dita as normas morais e<br />

políticas, venha a ser justo, o mais possível (para um ser humano), se comportando <strong>de</strong>ntro dos<br />

parâmetros <strong>da</strong> maior virtu<strong>de</strong>. Ele quer que a idéia <strong>da</strong> justiça seja reguladora do<br />

comportamento dos homens, que o homem tenha este mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> pólis <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si, incrustado<br />

em sua alma. A alma socrática é <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> e simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> absolutas e, uma vez que ela<br />

é a se<strong>de</strong> <strong>da</strong>s virtu<strong>de</strong>s, a única coisa que ela aspira é o bem. Para Sócrates, ao <strong>de</strong>senhar, em<br />

lógos uma pólis feliz, ele toma a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> como objetivo para a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> inteira, para to<strong>da</strong>s as<br />

partes que a compõem, pois, ca<strong>da</strong> qual fazendo aquilo para qual é naturalmente talhado, se<br />

realiza, faz porque gosta, o trabalho não pesa, <strong>da</strong>ndo o melhor <strong>de</strong> si e, então, é feliz. Há uma<br />

estreita relação entre o uno e o múltiplo e ao privilegiar o todo, quer dizer o coletivo, a ci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

inteira, o indivíduo também recebe sua parte.<br />

Sócrates lembra que para esta pólis justa, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em lógos, existir, teria que ser<br />

encontra<strong>da</strong> uma maneira <strong>de</strong> concretizá-la, buscando saber dos <strong>de</strong>feitos encontrados nas<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua época. É a partir <strong>da</strong>í que aparece a discussão acerca dos reis-filósofos, aqueles<br />

mais capazes <strong>de</strong>ntre os capazes, que unissem o po<strong>de</strong>r político à filosofia. Seriam estes, os reisfilósofos,<br />

os únicos que po<strong>de</strong>riam realizar este i<strong>de</strong>al. A maior dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> seria, no entanto, a<br />

<strong>de</strong> que os ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros filósofos quisessem tornar-se reis. Eles relutariam em abandonar a vi<strong>da</strong><br />

que levam, <strong>de</strong> contemplação <strong>da</strong> idéias e, ain<strong>da</strong> que soubessem que somente eles po<strong>de</strong>riam<br />

governar com justiça, através <strong>de</strong> uma constituição perfeita, aceita pelos ci<strong>da</strong>dãos, só com<br />

muito custo aceitariam governar e aceitariam tendo em vista o bem maior <strong>da</strong> pólis inteira.<br />

Também esta idéia: do rei-filósofo, muitos críticos vêem com relutância, alegando <strong>de</strong> novo,<br />

um totalitarismo (ain<strong>da</strong> que <strong>da</strong> filosofia e do filósofo).<br />

2 Popper (1987, p. 100-101), ao discutir o totalitarismo encontrado na obra <strong>de</strong> Platão, diz que a doutrina política<br />

que ali encontramos, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> certas similari<strong>da</strong><strong>de</strong>s, claramente se distingue do totalitarismo mo<strong>de</strong>rno em<br />

razão <strong>de</strong>sses alvos, a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> dos ci<strong>da</strong>dãos e o reino <strong>da</strong> justiça. Apesar dos argumentos <strong>de</strong> críticos contrários a<br />

estas doutrinas. Popper acredita que este programa político, longe <strong>de</strong> ser superiormente moral ao totalitarismo,<br />

i<strong>de</strong>ntifica-se fun<strong>da</strong>mentalmente com ele. Ele crê que as objeções contra este ponto <strong>de</strong> vista se baseiam num<br />

preconceito enraizado e antigo em favor <strong>de</strong> um Platão i<strong>de</strong>alizado. Não se po<strong>de</strong> duvi<strong>da</strong>r, no entanto <strong>de</strong> que o<br />

filósofo fosse, fun<strong>da</strong>mentalmente, humanitário.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

130


A teoria constitucional que encontramos na República assim como no Político e nas<br />

Leis assenta-se na convicção <strong>de</strong> que o homem é seguramente feliz se obe<strong>de</strong>ce a um sábio<br />

pastor, como em um rebanho. O filósofo enxerga então, na monarquia o regime i<strong>de</strong>al e, <strong>de</strong><br />

acordo com essa teoria, o melhor governante é o político sábio (Barros, 1995, p. 67).<br />

Na República, a pólis é apenas um <strong>de</strong>ver ser, pois é indiferente para o filósofo, seu<br />

fun<strong>da</strong>dor, a sua realização (ain<strong>da</strong> que ele tenha, em princípio, <strong>de</strong>sejado que este lugar pu<strong>de</strong>sse<br />

<strong>de</strong> fato existir); mas nas Leis não é isto que encontramos, ali, a elaboração do perfil <strong>da</strong> pólis<br />

não só aparece como necessária, mas como possível <strong>de</strong> ser realiza<strong>da</strong>, não se contentando mais<br />

com a pólis fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em lógos, po<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>duzir.<br />

Parece claro que o filósofo, ao ver o mundo à sua volta, atento que estava na<br />

problemática <strong>de</strong> sua época, criticava aci<strong>da</strong>mente o comportamento dos governos e ci<strong>da</strong>dãos<br />

que caminhavam para uma <strong>de</strong>cadência <strong>de</strong>scrita longamente pelos historiadores. Desta forma,<br />

o filósofo se preocupa com a educação moral e, assim sendo, tenta lançar idéias sobre a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> educação do ci<strong>da</strong>dão para que este seja o ci<strong>da</strong>dão i<strong>de</strong>al em uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>al<br />

virtuosa, bem distante <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s históricas <strong>de</strong> então.<br />

Sócrates tinha como compromisso moral ensinar a pensar. Neste intuito, ele adotou a<br />

ironia e a maiêutica, como métodos <strong>de</strong>ssa educação intelectual, que tornaram inconfundíveis<br />

seus <strong>de</strong>bates, principalmente o seu modo <strong>de</strong> provocar, junto aos seus contendores, um diálogo<br />

em torno <strong>de</strong> assuntos que ele próprio se predispunha a explorar. A ironia é o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong><br />

para que o interlocutor perceba aquilo que não sabe, melhor dizendo, o quanto não sabe e,<br />

então, que tem para apren<strong>de</strong>r, envolvendo-se no aprendizado, para atingir uma melhor<br />

quali<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto aos conceitos, po<strong>de</strong>ndo então, compreendê-los e discuti-los com segurança.<br />

Este processo <strong>da</strong> maiêutica faz com que idéias latentes nasçam durante o <strong>de</strong>senrolar do<br />

diálogo, vindo à luz e, numa alusão ao trabalho <strong>da</strong>s parteiras, Sócrates provoca o nascimento<br />

<strong>de</strong>stas idéias, pois através <strong>da</strong> reminiscência elas vêm à luz. Há uma intenção <strong>de</strong> que os<br />

interlocutores façam um “exame” rigoroso <strong>da</strong>quilo que querem conhecer ou <strong>da</strong>quilo que estão<br />

a <strong>de</strong>bater, buscando <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les mesmos as condições para chegar, com sucesso, aos<br />

conceitos mais elaborados e solidários à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Desta forma, os interlocutores <strong>de</strong> Sócrates<br />

acabavam percebendo o grau <strong>de</strong> ignorância que possuíam e assim, através dos esforços<br />

pessoais, instigados e conduzidos pelo filósofo, atingiam um nível <strong>de</strong> saber maior do que o<br />

que tinham no início <strong>da</strong> conversa.<br />

Jaeger (1989, p. 385) diz que Sócrates estava convencido <strong>de</strong> que se aos homens<br />

dotados <strong>de</strong> naturezas especiais – aqueles voltados para a mais alta cultura espiritual e moral –<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

131


fosse ministra<strong>da</strong> a educação a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>, atingiriam por eles próprios as maiores alturas, sendo<br />

felizes e fazendo felizes também os outros, seus companheiros. O filósofo acreditava que o<br />

homem virtuoso po<strong>de</strong>ria irradiar para os próximos o seu comportamento virtuoso, <strong>de</strong> forma<br />

educativa, mas não era isto mesmo que ele tentava fazer a vi<strong>da</strong> to<strong>da</strong>? Sócrates objetivava<br />

principalmente a educação dos seus conci<strong>da</strong>dãos, por isto ele se propunha a falar sobre to<strong>da</strong>s<br />

as coisas, criticando a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> ateniense, englobando aí até mesmo a crença e os costumes<br />

gregos, pregando uma moral rígi<strong>da</strong> que serviria <strong>de</strong> medi<strong>da</strong> para to<strong>da</strong>s as pessoas e pela qual<br />

todos <strong>de</strong>veriam pautar suas vi<strong>da</strong>s, assim como ele próprio fazia.<br />

O que Sócrates <strong>de</strong>seja formar na sua República é o ci<strong>da</strong>dão, através <strong>de</strong> um projeto<br />

educacional voltado para a formação do melhor ci<strong>da</strong>dão. Todo esforço no i<strong>de</strong>al educativo<br />

resulta no aprimoramento e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>queles que haverão <strong>de</strong> governar<br />

a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e que serão exemplos a serem seguidos. Talvez, por isto, esta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> esteja fun<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

sobre a arché do ser humano, ou do melhor <strong>de</strong>les: o filósofo. Assim, esta ci<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>al é<br />

plausível a to<strong>da</strong> alma que se volta para as coisas que estão além <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> pauta<strong>da</strong> pelas<br />

paixões, cultivando o <strong>de</strong>sejo entusiástico que impulsiona à filosofia.<br />

Na ci<strong>da</strong><strong>de</strong> socrática há a supremacia <strong>da</strong> razão sobre to<strong>da</strong>s as outras capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

humanas. Neste projeto político o ci<strong>da</strong>dão é, emblematicamente, tomado como princípio e,<br />

também, como fim para o qual “o bom regime” <strong>de</strong>ve ten<strong>de</strong>r (República, 462 a-d), pois é para<br />

o ci<strong>da</strong>dão, quer dizer, para o indivíduo, que este ambicioso projeto é elaborado, fazendo com<br />

que o uso <strong>da</strong> razão possa <strong>de</strong>sempenhar o papel <strong>de</strong> mestre prático <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> seus<br />

habitantes. A vi<strong>da</strong> perfeita privilegia a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> filosófica, como aparece no Livro IX, esta,<br />

por sua vez, anseia pela justiça, <strong>de</strong>ste modo, o governo do filósofo é, ao mesmo tempo, o que<br />

legitima <strong>de</strong> forma prática - assim como é também o inquiridor teórico <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> -, o<br />

equilíbrio entre as paixões humanas, harmonizando-as.<br />

Po<strong>de</strong>mos constatar que na República há um esboço <strong>de</strong> “estatuto para o bom ci<strong>da</strong>dão”.<br />

Ci<strong>da</strong>dão este que <strong>de</strong>ve estar preparado para o exercício pleno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia, exercendo com<br />

<strong>de</strong>svelo suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, tendo como meta a excelência <strong>de</strong> suas funções e a prática<br />

constante <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> virtuosa. O que conta na pólis <strong>da</strong> República, é o Bem supremo, que abrange<br />

todos os indivíduos, suas diferenças, suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

Na República encontramos a constante preocupação com a or<strong>de</strong>m ético-jurídica do<br />

homem e <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e a República representa o mais alto momento <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong>s idéias, assim<br />

como <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> educação e <strong>da</strong> teoria política (<strong>de</strong> governo), confrontando outras formas <strong>de</strong><br />

educação, então presentes na cultura grega, como a poesia e a retórica. Quanto à educação, o<br />

filósofo é o primeiro a sistematizar um projeto político-pe<strong>da</strong>gógico para o governo do<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

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filósofo. Esta educação visa aprimorar as capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, próprias do indivíduo, em todos os<br />

seus pormenores, <strong>de</strong> tal maneira que aquele que for o governante <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, o será por mérito<br />

unicamente, mérito este contemplado por longos anos <strong>de</strong> estudo e observância às leis e às<br />

inclinações naturais <strong>da</strong>s quais o indivíduo for dotado.<br />

Mas será a virtu<strong>de</strong> uma coisa que se apren<strong>de</strong>? Esta discussão surge no diálogo<br />

Menão, 3 quando, logo no seu início, o próprio Menão expõe a Sócrates esta questão, a qual<br />

ele respon<strong>de</strong> dizendo ser esta uma pergunta muito difícil e que nunca tinha encontrado uma<br />

pessoa que soubesse a resposta. 4 Ora, para que se possa ensinar a virtu<strong>de</strong> é necessário que ela<br />

seja ciência, uma vez que ciência é a única coisa que se po<strong>de</strong> ensinar. 5 Sequer existem mestres<br />

que ensinam a virtu<strong>de</strong>. Isto não é uma opinião pessoal <strong>de</strong> Sócrates: é a dos atenienses em<br />

geral. Sócrates chega à conclusão mais à frente <strong>de</strong> que a virtu<strong>de</strong> é “opinião justa”, ou seja,<br />

como se fosse uma crença ou uma convicção cega, porém justa, que se equivale a “saber”, se<br />

distinguindo, porém, do “saber”, pela instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> enquanto não for enca<strong>de</strong>a<strong>da</strong> por um<br />

raciocínio, o que, certamente a transformaria em ciência. Porém, para Sócrates, a “opinião<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira” já seria suficiente (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a possuamos). Este diálogo termina com Sócrates<br />

lançando a idéia <strong>de</strong> que a virtu<strong>de</strong> parece ser, naqueles em que se mostra, o resultado <strong>de</strong> um<br />

favor divino (sem intervenção <strong>da</strong> inteligência). Quando a discussão vai se dirigindo para,<br />

enfim, investigar o que seria a virtu<strong>de</strong> em si, Sócrates vai-se embora, <strong>de</strong>ixando os seus<br />

interlocutores surpresos, por não terem chegado ao fim <strong>da</strong> discussão/investigação.<br />

O tema <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> tem indubitável priori<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os gran<strong>de</strong>s temas, aparecendo<br />

constantemente nos diálogos <strong>de</strong> Platão, trazendo Sócrates, não só como personagem principal,<br />

como personagem histórico, que gostava <strong>de</strong> tratar <strong>de</strong>ste tema. Po<strong>de</strong>-se ver isto mais <strong>de</strong> perto<br />

com a sua <strong>de</strong>fesa perante os juízes, dizendo que sua ocupação havia sido, durante to<strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> persuadir tanto os jovens, quanto os velhos, para que se preocupassem mais com a<br />

alma do que com o corpo, uma vez que as virtu<strong>de</strong>s vêm <strong>da</strong> alma e não do corpo. 6<br />

3 “Po<strong>de</strong>s dizer-me, Sócrates: a virtu<strong>de</strong> é coisa que se ensina? Ou não é coisa que se ensina, mas que se adquire<br />

pelo exercício? Ou nem coisa que se adquire pelo exercício nem coisa que se apren<strong>de</strong>, mas algo que advém aos<br />

homens por natureza ou por alguma outra maneira.” Mênon, 70a.<br />

4 “Sofro com meus conci<strong>da</strong>dãos <strong>da</strong> mesma carência no que se refere a esse assunto, e me censuro a mim mesmo<br />

por não saber absolutamente na<strong>da</strong> sobre a virtu<strong>de</strong>.”(...) “Não somente isso, amigo, mas também que ain<strong>da</strong> não<br />

encontrei outra pessoa que o soubesse, segundo me parece.” Mênon, 71, b, c.<br />

5 Cf. KOYRÉ (1984, p. 20): O termo “ensinar” <strong>de</strong>signa a ação do mestre que transmite ao aluno o saber que<br />

possui. O mestre age, o aluno sofre a ação. O mestre dá, o aluno recebe. O mestre ensina a poesia: o aluno<br />

apren<strong>de</strong>-a, imprime-a na sua memória. É <strong>de</strong> maneira completamente diferente que se ensina a ciência: o mestre<br />

explica, o aluno compreen<strong>de</strong>.<br />

6 Nos diálogos <strong>de</strong> Platão, em muitos <strong>de</strong>les, nós temos também, além do conteúdo filosófico e provocações<br />

polêmicas como os sofistas, uma concepção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que se impunha a si mesmo e <strong>de</strong>sejava para<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

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Segundo Kitto (1980, p. 283-285), algumas <strong>da</strong>s virtu<strong>de</strong>s gregas parecem ser tanto<br />

intelectuais como morais – o que as tornam intraduzíveis, visto o nosso vocabulário ter <strong>de</strong><br />

distinguir com outros sentidos que estes conceitos carregam. Para Kitto, areté, palavra<br />

tipicamente grega, que traduzimos por “virtu<strong>de</strong>”, é um termo usado indistintamente em to<strong>da</strong>s<br />

as categorias e significa simplesmente “excelência”, que po<strong>de</strong> ser limita<strong>da</strong> pelo seu contexto,<br />

por exemplo, a aretê <strong>de</strong> um cavalo <strong>de</strong> corri<strong>da</strong> é a veloci<strong>da</strong><strong>de</strong>; <strong>de</strong> um carro <strong>de</strong> cavalos, a sua<br />

resistência, porém, se atribuí<strong>da</strong>, num contexto geral, a um homem, implicará excelência na<br />

medi<strong>da</strong> em que um homem tem possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser excelente, moral, intelectual e física.<br />

No diálogo Alcibía<strong>de</strong>s (I), transparece o contraste entre a concepção <strong>de</strong> justiça <strong>de</strong><br />

Sócrates e aquela que se tinha em sua época. Em princípio, o que importa saber seria qual a<br />

virtu<strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> aspirar e que permita ser um homem, superior. Alcibía<strong>de</strong>s diz que esta<br />

virtu<strong>de</strong> seria aquela que se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong> um homem <strong>de</strong> valor (Alcebía<strong>de</strong>s,<br />

124 e). Isto é o que<br />

evi<strong>de</strong>nciaria, com certa ênfase, os adjetivos <strong>de</strong> mérito pessoal e cívico, como se distinguiam<br />

aqueles dos tempos heróicos. Para Alcibía<strong>de</strong>s este qualificativo merecem os homens que são<br />

capazes <strong>de</strong> man<strong>da</strong>r na pólis, <strong>de</strong>sta forma acaba transformando areté em adjetivo <strong>de</strong><br />

dominação. Mas há gran<strong>de</strong> diferença entre administrar rebanhos e homens. Pastorear um<br />

rebanho <strong>de</strong> animais, por exemplo, é para a utili<strong>da</strong><strong>de</strong> do dono, governar uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

humana, por outro lado, tem em vistas o bem dos governados e não do governante, como<br />

encontramos na República. O bom governo <strong>de</strong>veria estar <strong>de</strong> acordo com a justiça, o que não é<br />

tão somente a administração <strong>da</strong> justiça, mas <strong>de</strong>ve se esten<strong>de</strong>r a fazer “melhores”, em todos os<br />

sentidos, os ci<strong>da</strong>dãos, os governados (o que pressupõe uma reforma moral através <strong>da</strong><br />

educação).<br />

No diálogo Protágoras, existem as mesmas perguntas – o que é virtu<strong>de</strong> e se po<strong>de</strong> ser<br />

ensina<strong>da</strong>. Sócrates vai dizer que a virtu<strong>de</strong> é ciência, assim como a justiça, a temperança, a<br />

coragem. Protágoras, por sua vez, causa polêmica, ao acreditar que a virtu<strong>de</strong> não é ciência,<br />

mas que po<strong>de</strong> ser ensina<strong>da</strong>, em contradição com a anterior afirmação <strong>de</strong> Sócrates (Protágoras,<br />

os outros. Nestes diálogos Sócrates acaba rebatendo a crítica que recebe por se <strong>de</strong>dicar à filosofia, sem ter em<br />

vistas lucros e riquezas, como, por exemplo, aparece no diálogo Hípias Maior, ao refutar Hípias que dizia que o<br />

que é belo e digno <strong>de</strong> merecimento seria ser capaz <strong>de</strong> produzir um discurso bem feito e com beleza, para<br />

encantar o obter a a<strong>de</strong>são dos ouvintes em uma assembléia, convencendo a todos <strong>de</strong> seus argumentos po<strong>de</strong>ndo<br />

promover perante as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, a salvação própria e dos amigos. Para Hípias é isto o que vale a pena. Esta<br />

idéia era corrente entre gran<strong>de</strong> parte dos ci<strong>da</strong>dãos que até chegavam a contratar estes “<strong>de</strong>fensores” para ensinálos<br />

a se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r perante as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s ou convencer as pessoas, tento em vistas alcançar algum bem. É um<br />

Sócrates irônico que respon<strong>de</strong> a Hípias que este sim é que seria feliz, pois conhece as tarefas próprias <strong>de</strong> um<br />

homem ao contrário <strong>de</strong>le, Sócrates, que errava por aí, sem ter nunca um caminho certo, expondo suas incertezas<br />

e escutando dizerem que as questões <strong>da</strong>s quais se ocupava eram tolas, insignificantes e sem interesse algum,<br />

porém, mesmo assim, ele acabava sempre tendo proveito com estas conversas. (Ver Hípias Maior, 304 a–e).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

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360 e). Sendo isto ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que a virtu<strong>de</strong> po<strong>de</strong> sim, ser ensina<strong>da</strong>, então, a pergunta que surge<br />

é: quem po<strong>de</strong>ria ensiná-la? Claro está que não seria por Protágoras, renomado sofista, pois o<br />

que ele ensina a seus alunos não é ciência. Seria então, por Sócrates? Isto parece ser o mais<br />

acertado, pois para o filósofo esta ciência <strong>da</strong> “medi<strong>da</strong>” dos valores e <strong>da</strong>s satisfações,<br />

evi<strong>de</strong>nciava o papel <strong>da</strong> filosofia.<br />

Aqui observamos a polêmica crítica <strong>de</strong> Sócrates aos sofistas, porém, não po<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> observar que estes faziam o papel <strong>de</strong> professores naquela época, A crítica <strong>da</strong><br />

sofística enche meta<strong>de</strong> <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Platão, o sofista, então, seria o homem que ensina a técnica<br />

– e a moral – do sucesso, do gozo, <strong>da</strong> afirmação <strong>de</strong> si; que nega as noções, profun<strong>da</strong>mente<br />

solidárias, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. O ensino sofístico forma o orador público, essa falsificação do homem<br />

<strong>de</strong> Estado ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro, ou seja, o homem capaz <strong>de</strong> arrastar a multidão com argumentos<br />

baseados não no saber, pois como po<strong>de</strong>ria praticá-lo, ele que na<strong>da</strong> sabe, que troça do saber e<br />

contesta a sua existência? O orador público – o político – é o homem <strong>da</strong> ilusão oposta à<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, o homem <strong>da</strong> mentira oposta à ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, tão cara ao filósofo. Neste caso, o sofista é a<br />

falsificação do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro filósofo, como o tirano é a falsificação do ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro chefe <strong>de</strong><br />

Estado. 7 O problema político tem um papel muito importante na obra <strong>de</strong> Platão, aliás, nenhum<br />

grego e, sobretudo, nenhum ateniense, podia - mesmo que o tivesse querido -, <strong>de</strong>sinteressar-se<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> política, pois a participação na vi<strong>da</strong> política era consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> pelos gregos como um<br />

privilégio do homem livre, isto é, o proprium que os distinguia e os punha acima dos bárbaros<br />

(Koyré, 1984, p. 67) 8 .<br />

Para a “reforma moral” 9 o filósofo invoca o preceito órfico: “conhece-te a ti mesmo”.<br />

Seria este o princípio e fun<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> to<strong>da</strong> reforma moral, que há <strong>de</strong> se iniciar pela alma do<br />

governante e <strong>de</strong>verá ser seguido por todos os ci<strong>da</strong>dãos. Quando à educação <strong>da</strong>s crianças e<br />

jovens, há na República uma constante preocupação (pe<strong>da</strong>gógica), com o que os mitos<br />

7<br />

Cf. comentário <strong>de</strong> KOYRÉ (1984, p.78-81), o que encontramos em Platão, a tirania e a sofística são solidárias e<br />

que é o sofista que prepara o caminho ao tirano.<br />

8<br />

Sócrates tem urgência em reeducar a Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, instituindo o sentido dos ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros valores. Isto, porém, é, sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, uma tarefa difícil e árdua, cheia <strong>de</strong> incertezas e riscos. Para ele, filosofar e fazer política equivalem a<br />

uma mesma coisa. Assim, combater o sofista é ao mesmo tempo <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a ci<strong>da</strong><strong>de</strong> contra a tirania. O amor <strong>da</strong><br />

justiça, a <strong>de</strong>voção à ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, o respeito pela lei, no fundo é a mesma coisa, porque, para o filósofo, não respeitar a<br />

lei, a lei que é a própria alma <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, é pôr-se acima <strong>de</strong>la, é preferir-se à ci<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que seria uma injustiça,<br />

aquilo que o filósofo, <strong>de</strong> forma alguma quer para a sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> República, afirma Koyré (1984, p. 127-129).<br />

9 Guiado pelo raciocínio, o homem <strong>de</strong>ve dirigir o seu espírito para o inteligível, on<strong>de</strong> se encontra o conhecimento<br />

do bem e <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. Aquele que pela via do conhecimento e <strong>da</strong> razão atinge a essência <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> e conduz as<br />

suas ações, durante a vi<strong>da</strong>, conforme esta razão, é homem <strong>de</strong> bem capaz <strong>de</strong>, em justiça, governar a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. (Vi<strong>de</strong><br />

comentário introdutório ao Górgias, 2002, p. 38).<br />

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possam provocar: <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> comportamentos. Para evitar este mal, ele recomen<strong>da</strong> que os<br />

autores <strong>de</strong> fábulas sejam vigiados <strong>de</strong> perto para que estes não possam usar <strong>da</strong> má fé para<br />

persuadir e propagar a “mentira sem nobreza”. Ele teme os “maus exemplos” que as fábulas<br />

fantasiosas possam provocar. Concor<strong>da</strong>, porém, que o mito po<strong>de</strong> conviver com a filosofia,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que seja um mito “refinado”, que passe pelo crivo <strong>da</strong> razão, tornando-o mais verídico e<br />

mais racionalizado.<br />

Sócrates, porém, ama discorrer, em particular contar, mas não parece que, na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong><br />

seus discursos seja atribuído um “lugar”, ou, um “estatuto” preciso às narrações ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras<br />

sobre o passado. Assim, nos vários diálogos platônicos multiplicam-se as referências gerais<br />

aos modos <strong>de</strong> narração, que Sócrates utiliza com maestria (Lima, 2004, p. 134).<br />

Entretanto, a contun<strong>de</strong>nte crítica <strong>de</strong> Sócrates ao mito e à mitologia tem em vista a<br />

educação dos ci<strong>da</strong>dãos, mas não impe<strong>de</strong> que vários mitos sejam evocados pelo filósofo na<br />

República, alguns <strong>de</strong>les, inclusive, ficaram famosos, exatamente através dos diálogos <strong>de</strong><br />

Platão, como o mito do anel <strong>de</strong> Giges, a alegoria <strong>da</strong> caverna, o mito <strong>de</strong> Er, o mito <strong>de</strong> Eros, o<br />

mito <strong>de</strong> Atlânti<strong>da</strong> etc. O mesmo se dá com os poetas. É singular que os filósofos venham a<br />

<strong>de</strong>sprezar os poetas, no entanto, muitos, porém, utilizam-se dos versos poéticos. Sócrates<br />

ain<strong>da</strong> assim, diminui a sua crítica aos poetas, afinal, eram tidos, naquela época, como pessoas<br />

muito populares, queri<strong>da</strong>s e <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong>s fortemente por seus conci<strong>da</strong>dãos. Havia torneios <strong>de</strong><br />

poesia on<strong>de</strong> os melhores tinham <strong>de</strong>staque e fama, como po<strong>de</strong>mos ver no Banquete, diálogo<br />

bastante conhecido on<strong>de</strong> se faz uma apologia a Eros. Os gregos também conheciam e<br />

admiravam as outras artes, nota<strong>da</strong>mente a escultura, afinal, um Fídias tinha estatuto <strong>de</strong> quase<br />

uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> divina, provocando muito respeito e admiração. Mas, assim, como os gregos<br />

não compreendiam a “estética” (uma invenção mo<strong>de</strong>rna), para eles o que tinha sentido era se<br />

a arte era bela, se ela tocava os sentidos do corpo e <strong>da</strong> alma. O que se está a criticar na<br />

República é o que se via então, àquela época, quando muitos utilizavam justificativas para<br />

suas condutas, retira<strong>da</strong>s do comportamento <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s míticas. 10<br />

Para Sócrates, a educação repousa no valor essencial que é a filosofia, que tem por<br />

objetivo alcançar a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e o bem. A filosofia é a própria condição <strong>da</strong> educação, é o que<br />

garante a prática <strong>da</strong> justiça. Sobremaneira, a filosofia implica em compromisso <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, não é<br />

10 Cf. DROZ (1977, p. 116), a questão é <strong>de</strong> importância capital: trata-se <strong>de</strong> saber quem presi<strong>de</strong> o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

um. Sabe-se que, até a época clássica, os gregos – sem terem criado a noção – tinham imposto a imagem<br />

majestosa <strong>de</strong> uma lei suprema que governava os <strong>de</strong>uses e os homens. Mas, os homens pagarão caro por<br />

refletirem pouco, <strong>de</strong>pressa e tão mal. Escolher bem é o que está em jogo. Contudo, se praticarmos o mal, somos<br />

os únicos culpados; os <strong>de</strong>uses “isentam-se <strong>da</strong> questão”. O mal é assunto nosso, os <strong>de</strong>uses são inocentes. (Vi<strong>de</strong><br />

Timeu: 42 d: “Pois <strong>da</strong> eventual malícia dos homens, <strong>de</strong>us entendia ser inocente”).<br />

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apenas um saber que se situa no plano teórico, mas uma prática, um caminho, enfim, uma<br />

opção <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> e é ela que po<strong>de</strong> conduzir o homem ao bem e à justiça.<br />

Referências Bibliográficas<br />

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Investigação Científica, 1985.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

137


VERNANT, J.-P. Entre mito e política. São Paulo: Editora <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong>, 2001.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 128-138, 2008<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

O latim vulgar na Vulgata <strong>de</strong> Jerônimo<br />

Em seu livro Pequena História <strong>da</strong> Lingüística, Robins escreve:<br />

Marina Chiara LEGROSKI<br />

G – UFPR<br />

marinalegroski@gmail.com<br />

Com o <strong>de</strong>correr do tempo, os diversos usos do latim se diferenciavam<br />

ca<strong>da</strong> vez mais do uso clássico <strong>da</strong> língua. Isto po<strong>de</strong> ser observado<br />

quando se compara a gramática e estilo <strong>da</strong> tradução <strong>da</strong> Bíblia (a<br />

Vulgata) feita por S. Jerônimo no século IV, texto em que se<br />

antecipam diversas características <strong>da</strong>s línguas românicas, com o latim<br />

preservado e <strong>de</strong>scrito pelos gramáticos (2004, p.43).<br />

De fato, o registro que Jerônimo utiliza não é o mesmo latim utilizado por Cícero;<br />

entretanto não se sabe em que medi<strong>da</strong> o latim que aparece lá é o latim vulgar. Dessa forma,<br />

esse trabalho <strong>de</strong>stina-se a investigar os usos lingüísticos que transpareceram em dois livros <strong>da</strong><br />

Vulgata: o Gênesis e o Evangelho <strong>de</strong> São João. São dois trechos escolhidos aleatoriamente, <strong>de</strong><br />

forma a não privilegiar trechos que possuíssem mais exemplares que outros. A partir <strong>da</strong><br />

análise <strong>de</strong>sses trechos, pretendo olhar mais <strong>de</strong> perto para as construções e usos lingüísticos<br />

efetuados por Jerônimo e investigar, com isso, se as estruturas coinci<strong>de</strong>m com as do latim<br />

vulgar ou não.<br />

1. Latim Vulgar<br />

A <strong>de</strong>signação “latim vulgar” foi estabeleci<strong>da</strong> por Friedrich Diez (1870) certamente<br />

para opor a língua utiliza<strong>da</strong> pelos romanos àquela utiliza<strong>da</strong> na escrita, ou seja, o “latim<br />

literário”. Evi<strong>de</strong>ntemente, acreditar que havia apenas duas varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e chamar <strong>de</strong> “vulgar”<br />

tudo aquilo que não era a língua escrita, seria reduzir a na<strong>da</strong> a diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a riqueza <strong>da</strong>quela<br />

língua.<br />

Carlos Alberto Faraco, em seu livro Lingüística histórica, provoca algumas reflexões<br />

importantes <strong>de</strong> serem feitas na introdução <strong>de</strong>sse estudo. Primeiramente, é necessário<br />

“acostumar-se a olhar a língua como uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> heterogênea, buscando compreen<strong>de</strong>r as<br />

bases <strong>de</strong>ssa heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> (...), porque é <strong>de</strong> tal heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> que emerge a mu<strong>da</strong>nça”<br />

(2005, p. 30-31) e, em segui<strong>da</strong>, que é necessário “apren<strong>de</strong>r a li<strong>da</strong>r com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

heterogênea <strong>da</strong>s línguas” (2005, p.31)


Tais questões nos levam a refletir sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>svincularmos <strong>de</strong><br />

preconceitos quando vamos tratar <strong>de</strong> questões lingüísticas (e evi<strong>de</strong>ntemente esse é o ponto<br />

para o autor) e, mais do que isso, sobre a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> olhar para qualquer língua como<br />

forma<strong>da</strong> por diversas varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Dessa forma, é impossível pensar que qualquer língua seja<br />

um objeto uniforme, mesmo que seja composta <strong>de</strong> algumas variáveis também homogêneas.<br />

Para estu<strong>da</strong>r uma língua, é necessário ter em mente que o que se analisa são aspectos muito<br />

pequenos <strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s muito heterogêneas, simplifica<strong>da</strong>s apenas para propósitos didáticos<br />

(obviamente porque não po<strong>de</strong>mos relativizar tanto e pensar que é impossível <strong>da</strong>r conta <strong>de</strong><br />

qualquer fenômeno apenas por ele ser heterogêneo <strong>de</strong>mais).<br />

Pelo conhecimento trazido a nós pela sociolingüística, sabemos que to<strong>da</strong>s as línguas<br />

possuem variações internas, tanto verticais (<strong>de</strong> estratos sociais, porque a língua varia<br />

socialmente; sabemos que a língua que utilizamos para falar com pessoas ou do mesmo nível<br />

social, ou <strong>de</strong> níveis inferiores ou <strong>de</strong> superiores não é a mesma) quanto horizontais (<strong>de</strong><br />

localização geográfica e, <strong>de</strong> fato, sabemos que a língua que utilizamos em uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong><br />

região possui diferenças entre as utiliza<strong>da</strong>s em outras regiões, por vezes nem tão distantes 1 ).<br />

Aplicando esses conceitos para enten<strong>de</strong>r o que acontecia nas terras on<strong>de</strong> se falava o<br />

latim, certamente encontraremos esses fatores como causa <strong>de</strong> diversas variações. Assim, é<br />

preciso dizer que o latim, como uma língua natural, foi sujeito a variações <strong>da</strong>s mais diversas,<br />

<strong>da</strong> mesma forma que as línguas fala<strong>da</strong>s mo<strong>de</strong>rnamente o são.<br />

Dessa forma, existem discussões muito interessantes a respeito do conceito <strong>de</strong> “latim<br />

vulgar” e principalmente <strong>de</strong> que forma se dá a sua oposição ao “latim clássico”. As formas a<br />

que temos acesso ao latim clássico são formas escritas, e é necessário observar que, em<br />

qualquer língua, a forma utiliza<strong>da</strong> na escrita é bastante diferente <strong>da</strong> fala. Consi<strong>de</strong>rando que “a<br />

única espécie <strong>de</strong> língua que realmente existe é a fala<strong>da</strong>” (SILVA NETO, 1977, p. 16), não se<br />

po<strong>de</strong> olhar para textos escritos como exemplares <strong>de</strong> latim vulgar, porque sabemos que a<br />

realização escrita segue regras diferentes <strong>da</strong>s <strong>da</strong> fala, embora se tratem <strong>da</strong> mesma coisa.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, é o que as duas realizações têm em comum que nos interessa.<br />

Por outro lado, não po<strong>de</strong>mos ignorar que os registros do “vulgar” que chegaram até<br />

nós também são escritos. O impasse se resolve se pensarmos que os contextos seriam menos<br />

formais que os dos textos literários, ou seja, grafites encontrados em pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Pompéia ou<br />

mesmo manuscritos famosos, como o Appendix Probi, que não são textos literários mesmo<br />

1 Utilizo aqui a discussão realiza<strong>da</strong> em Faraco (2005).<br />

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que tenham sido escritos, ou seja, seu contexto informal <strong>de</strong> produção permite uma liber<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

lingüística que não existia nos textos clássicos.<br />

Silva Neto, citando Grandgent, afirma que o latim vulgar <strong>de</strong>ve ser entendido “como o<br />

substrato <strong>da</strong>s línguas românicas e <strong>de</strong>finir-se como a língua <strong>da</strong>s classes médias <strong>da</strong> população”<br />

(1977, p. 13). Ou seja, não é o latim <strong>da</strong>s pessoas mais humil<strong>de</strong>s, mas o <strong>da</strong> cama<strong>da</strong> mediana,<br />

que possuía acesso à escrita, supõe-se, e que convivia com estratos sociais mais e menos<br />

abastados.<br />

Além disso, há que se notar um certo controle por parte dos gramáticos romanos, que<br />

repreendiam muitos dos vulgarismos que permeavam a língua culta <strong>da</strong> época. Como dito<br />

anteriormente, a língua fala<strong>da</strong> pelas pessoas consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s mais cultas não era necessariamente<br />

a língua dos textos clássicos. Por isso, Grandgent estabelece uma divisão do latim em pelo<br />

menos 4 níveis diferentes:<br />

1) o latim culto, literário; a urbanitas<br />

2) o latim dos bairros pobres e as gírias,<br />

3) o latim vulgar, isto é, língua <strong>da</strong> classe média, substrato <strong>da</strong>s atuais línguas<br />

românicas<br />

4) o latim dos campos.<br />

Silva Neto, entretanto, afirma que essa divisão é insuficiente, mas po<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r <strong>de</strong>la que não po<strong>de</strong>mos pensar em uma língua uniforme, comum a to<strong>da</strong>s as<br />

cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população. E, além disso, também não se po<strong>de</strong> imaginar que o que se<br />

convencionou chamar <strong>de</strong> “latim vulgar” seja uma variante uniforme, principalmente se<br />

levarmos em conta a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> territórios e <strong>de</strong> séculos <strong>de</strong> dominação romana na Europa.<br />

Bassetto propõe uma outra divisão. Para ele, o latim falado em Roma a partir do<br />

século III a.C. distingue 3 normas:<br />

a) O sermo classicus ou literarius: burilado, artístico, sintético, só escrito, que atingiu<br />

o ápice estilístico no período áureo <strong>da</strong> literatura latina entre 81a.C e 14d.C., tanto na<br />

prosa com Cícero, César e Salústio, como no verso com Virgílio, Horácio, Ovídio,<br />

Lucrécio e Catulo. É uma estilização do sermo urbanus.<br />

b) O sermo urbanus: a língua fala<strong>da</strong> pelas classes cultas <strong>de</strong> Roma, certamente correto<br />

do ponto <strong>de</strong> vista gramatical, mas sem os refinamentos e a estilização <strong>da</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

literária, <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong> vulgaris por Cícero. Os falantes <strong>de</strong>ssa norma eram os principais<br />

<strong>de</strong>tentores <strong>da</strong> norma literária.<br />

c) O sermo plebeius: essencialmente falado, era a norma <strong>da</strong> gran<strong>de</strong> massa popular<br />

menos favoreci<strong>da</strong>, analfabeta. Foi metodicamente ignora<strong>da</strong> pelos gramáticos e<br />

escritores romanos, mas era viva e real; apresenta variantes sobretudo no léxico,<br />

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segundo o modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos falantes, distinguindo-se o sermo rusticus, o castrensis e<br />

o peregrinus (2005, p.92).<br />

Contudo, po<strong>de</strong>mos observar que a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> que chamamos <strong>de</strong> “latim vulgar” é uma<br />

realização lingüística que esteve submeti<strong>da</strong> a diversos tipos <strong>de</strong> influência. Para Ilari (2006), o<br />

melhor seria enten<strong>de</strong>r essa língua como “proto-romance”, ou seja, a língua que <strong>de</strong>u origem às<br />

línguas românicas que conhecemos hoje.<br />

Ilari afirma que “há bons motivos para crer que o proto-romance foi <strong>de</strong> fato uma<br />

língua eminentemente popular” e cita um trabalho <strong>de</strong> Maurer (1962) que cita diversos<br />

argumentos históricos para pensarmos no proto-romance como uma língua não-culta. Para<br />

isso, Maurer, <strong>de</strong> acordo com Ilari, apresenta características estruturais <strong>da</strong> língua que estariam<br />

presentes em diversas varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s populares.<br />

Para Maurer, po<strong>de</strong>mos encontrar diversos textos clássicos em que os autores aludiam a<br />

uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> conheci<strong>da</strong> como rusticitas (ou peregrinitas), que possuiria formas<br />

severamente critica<strong>da</strong>s por esses autores, que pretendiam que essas formas jamais chegassem<br />

à escrita. Levando em conta o caráter aristocrático <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> latina, diz Maurer, po<strong>de</strong>mos<br />

concluir que essas formas só po<strong>de</strong>riam vir <strong>de</strong> cama<strong>da</strong>s inferiores <strong>da</strong> população. Um dos<br />

principais elementos que essa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> continha seria a pronúncia <strong>de</strong> uma única vogal on<strong>de</strong><br />

eram grafa<strong>da</strong>s duas. Há, segundo Ilari, <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> escritores latinos em que se critica a<br />

pronúncia [pretor] 2 , e privilegia [praetor]; critica [edus] para privilegiar [haedus]. Há ain<strong>da</strong> o<br />

histórico exemplo do político Claudius, cita Ilari (2006, p.59), que teria mu<strong>da</strong>do seu nome<br />

para Clódio quando se candi<strong>da</strong>tou a tribuno <strong>da</strong> plebe, por julgar que essa forma seria “mais<br />

popular”.<br />

Outro argumento apontado por Maurer é a distribuição geográfica <strong>da</strong> língua pela<br />

România. Ora, é necessário compreen<strong>de</strong>r que quem avançava com o império nas terras<br />

conquista<strong>da</strong>s eram principalmente sol<strong>da</strong>dos, e não literatos ou aristocratas. A latinização dos<br />

territórios se <strong>de</strong>u, portanto, por pessoas que não utilizavam a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> culta, mas uma<br />

varie<strong>da</strong><strong>de</strong> repleta <strong>de</strong> marcas <strong>da</strong> língua popular.<br />

1.1 Características do latim vulgar<br />

A síncope dos ditongos não aconteceu apenas nos casos citados anteriormente por<br />

Ilari. Sabemos que na morfologia verbal, por exemplo, era gran<strong>de</strong> a instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do morfema<br />

2<br />

Não estou utilizando a notação oficial <strong>de</strong> pronúncia, que seria a do IPA, mas uma representação mais<br />

simplifica<strong>da</strong>.<br />

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-v-, uma semi-vogal que exercia a função <strong>de</strong> marca do perfeito. De acordo com Ilari,<br />

inclusive, foi uma <strong>da</strong>s influências que o vulgar exerceu sobre a língua escrita: “um exemplo<br />

(...) é a síncope <strong>da</strong>s sílabas vi, ve nos perfeitos fracos (lau<strong>da</strong>sti por lau<strong>da</strong>visti)” (2006, p.62).<br />

Além <strong>de</strong>sses fatores, Ilari comenta que a estrutura lingüística do latim clássico difere<br />

em diversos termos <strong>da</strong> do proto-romance, por exemplo, porque esta possui um menor número<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>clinações, <strong>de</strong> pronomes in<strong>de</strong>finidos e <strong>de</strong>monstrativos 3 ; “faltam” alguns numerais 4 , entre<br />

outros fatores. Evi<strong>de</strong>ntemente, não se po<strong>de</strong> dizer que essa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> é mais simples, como o<br />

fazem Ilari e Bassetto 5 , mas é interessante notar que há uma diminuição quantitativa nas<br />

estruturas, mesmo em algumas consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s extremamente funcionais para o latim, como as<br />

<strong>de</strong>clinações.<br />

As relações sintáticas também são, no proto-romance, diferentes <strong>da</strong>s do latim clássico.<br />

Ao que parece, a morfologia vai se enfraquecendo e, por isso, o papel sintático na oração não<br />

é mais marcado morfologicamente, mas pela or<strong>de</strong>m dos constituintes. Nas palavras <strong>de</strong><br />

Bassetto, “a maior simplici<strong>da</strong><strong>de</strong> na sintaxe verifica-se também na or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s palavras na<br />

oração e na construção do período, até certo ponto conseqüência <strong>da</strong> per<strong>da</strong> dos casos e<br />

<strong>de</strong>clinações”(2005, p.93). Disso <strong>de</strong>corre que tempos e modos verbais são indicados por<br />

perífrases, e adjetivos comparativos e superlativos passam a ser feitos <strong>da</strong> forma analítica.<br />

Outra <strong>de</strong>corrência disso é que as preposições, que existiam em número reduzido e com usos<br />

bastante específicos, começam a ser mais utiliza<strong>da</strong>s, até mesmo com sentidos diferentes e<br />

usos mais especializados.<br />

Na sintaxe há, ain<strong>da</strong>, outros fenômenos igualmente interessantes, apontados por<br />

Bassetto. Segundo ele, há uma regularização do uso <strong>de</strong> non e ne, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> permaneceu apenas<br />

o non para fazer as negações (2005, p.93). Além disso, o uso <strong>da</strong> preposição <strong>de</strong> foi ampliado e<br />

passou a substituir em muitos casos as preposições ab e ex. Quanto ao uso <strong>da</strong>s preposições,<br />

3 A esse respeito, Bassetto afirma que dos seis <strong>de</strong>monstrativos que existiam no latim clássico (a saber, is, hic,<br />

iste, ille, ipse e i<strong>de</strong>m) apenas três foram conservados (iste, ipse, ille) “ain<strong>da</strong> que com o auxílio <strong>de</strong> partículas <strong>de</strong><br />

reforço, como ecc’iste” ou mesmo como em “metipse ou metipsimus (> port. mesmo, cast. mismo, fr.même, it<br />

me<strong>de</strong>simo, etc)” (BASSETTO, op. cit., p.93)<br />

4 Como exemplifica Bassetto, entre outros fenômenos que ocorreram aos numerais, uma <strong>da</strong>s mais interessantes<br />

foi a uniformização dos nomes que eram formados pela subtração (18 duo<strong>de</strong>viginti, 19 un<strong>de</strong>viginti) resultaram<br />

em nomes pela adição (<strong>de</strong>cem et octo, <strong>de</strong>cem et novem). O mesmo processo, segundo ele, aconteceu com os<br />

outros números, por exemplo <strong>de</strong>cem et sex, <strong>de</strong>cem et septem. (ibi<strong>de</strong>m, p. 93)<br />

5 Consi<strong>de</strong>rar que uma língua é mais simples que a outra é algo que não posso fazer levando em consi<strong>de</strong>ração as<br />

observações <strong>de</strong> Faraco que utilizei acima. Acredito que só porque algumas estruturas são “simplifica<strong>da</strong>s”, não é<br />

o caso <strong>de</strong> afirmar que a língua to<strong>da</strong> está mais simples, uma vez que outros níveis acabam sendo afetados e,<br />

portanto, tornando-se mais complexas.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

143


Bassetto ain<strong>da</strong> afirma que elas passam a substituir as “flexões casuais”, ou seja, a nossa<br />

hipótese <strong>de</strong> que a sintaxe estava mu<strong>da</strong>ndo e os casos sendo substituídos possui embasamento.<br />

Bassetto também afirma que o latim vulgar era mais analítico que o latim clássico. Um<br />

dos exemplos que ele cita é a substituição <strong>da</strong> forma sintética dos adjetivos pela forma<br />

analítica. Os adjetivos comparativos <strong>de</strong> superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> e os superlativos, por exemplo, eram<br />

geralmente expressos por sufixos, ou seja, a forma sintética. Assim, “mais alto que” era<br />

expresso altior, e “o mais alto” era altissimus. Com a tendência analítica, o latim vulgar<br />

(segundo Bassetto, certamente a língua assimilando por analogia as formas do comparativo <strong>de</strong><br />

igual<strong>da</strong><strong>de</strong> “tan... quam” e <strong>de</strong> inferiori<strong>da</strong><strong>de</strong> “minus... quam”) <strong>de</strong>senvolveu uma forma analítica<br />

<strong>de</strong> superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> “magis – quam” e superlativa com advérbios <strong>de</strong> intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> (como val<strong>de</strong> e<br />

maxime, que ele cita.)<br />

Além <strong>de</strong> todos esses fenômenos, Ilari aponta que formas concretas e expressivas, ou<br />

seja, termos abstratos, generalizações, ou mesmo conceitos <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong> abstrações são<br />

substituídos por formas concretas, com referente no mundo. Para Bassetto, isso também é um<br />

reflexo <strong>da</strong> visão <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong>ssa cultura, ou seja, “o caráter concreto do latim vulgar é uma<br />

<strong>de</strong>corrência do modo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus falantes (...) voltado sobretudo para os problemas<br />

materiais” (2005, p.95). Ou seja, como o estilo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssas pessoas menos aristocratas não<br />

era o <strong>de</strong> raciocinar sobre o mundo, mas <strong>de</strong> interagir com ele, isso se refletiria na sua<br />

linguagem. Para melhor i<strong>de</strong>ntificar os substantivos, então, tornou-se necessário o uso <strong>de</strong><br />

pronomes, artigos e nomes concretos, além <strong>de</strong> “abun<strong>da</strong>nte prefixação e sufixação,<br />

hipocorísticos que substituem as formas correntes, germinação expressiva etc”, como afirma<br />

Ilari (2006, p.60).<br />

Outra característica bastante interessante do proto-romance é a baixa resistência, por<br />

assim dizer, a termos exóticos. Po<strong>de</strong>mos pensar que isso se <strong>de</strong>ve ao intenso contato,<br />

principalmente geográfico, com outras línguas <strong>da</strong>s quais vocábulos passam a ser assimilados.<br />

É o caso, por exemplo, do termo grego parabolé (que dá, em português, “palavra”), do termo<br />

celta bertium (“berço”, em português), do germânico werra (que chega até nós como<br />

“guerra”) que, pela sua freqüência em quase to<strong>da</strong>s as línguas neo-latinas, parecem ter sido<br />

incorporados ao proto-romance em uma fase mais primitiva.<br />

Olhando para essas características, po<strong>de</strong>mos pensar que são mu<strong>da</strong>nças que ocorrem na<br />

língua <strong>de</strong> cama<strong>da</strong>s mais populares que aparentemente não tinham acesso à escrita e à cultura<br />

formal. Não está <strong>de</strong>scartado, porém, segundo Ilari, que essa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> tenha sido utiliza<strong>da</strong> por<br />

aristocratas em situações informais. (Evi<strong>de</strong>ntemente, essa não é a característica que a <strong>de</strong>fine.)<br />

Parece coerente, entretanto, pensar que, se as cama<strong>da</strong>s mais nobres tinham acesso a esse<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

144


“controle lingüístico”, que a escrita, a cultura formal e o convívio com escritores e gramáticos<br />

proporcionaram, certamente a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> coloquial <strong>da</strong> aristocracia não era a mesma varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s inferiores.<br />

Por outro lado, se os “vulgarismos” eram con<strong>de</strong>nados pelos literatos, po<strong>de</strong>mos pensar<br />

que essa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> tinha um corpo bastante significativo, e atingia, por assim dizer, muitas<br />

pessoas <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s mais baixas <strong>de</strong> forma a repercutir nas cama<strong>da</strong>s superiores.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, essa quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> diferenças não chega a fazer do latim vulgar (ou protoromance)<br />

uma língua diferente, nem mesmo po<strong>de</strong>-se pensar que a utilização <strong>de</strong>ssa varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

chegasse a impedir a comunicação entre as cama<strong>da</strong>s, mas po<strong>de</strong>mos concluir que coexistiam<br />

essas diferenças num mesmo espaço temporal e que ela possuía um corpo tão representativo<br />

que os puristas sentiam sua língua “ameaça<strong>da</strong>”.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, existem outras características capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar o que se afirma<br />

acima, e mesmo Ilari aponta fatores para provar que o latim vulgar já existia mesmo quando o<br />

latim literário estava florescendo.<br />

Insisto nessas afirmações para <strong>de</strong>monstrar que a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>u origem às línguas<br />

neo-latinas não surgiu tardiamente como <strong>de</strong>cadência ou <strong>de</strong>terioração causa<strong>da</strong>s pelo tempo<br />

(porque uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> não suce<strong>de</strong> cronologicamente à outra), mas que era uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

legítima, utiliza<strong>da</strong> por milhares <strong>de</strong> pessoas ain<strong>da</strong> nas épocas áureas do Império Romano.<br />

Provas disso são: a difusão <strong>de</strong> alguns “vulgarismos” por to<strong>da</strong> a România, que só seria possível<br />

se essa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> fosse uniforme antes <strong>de</strong> ser leva<strong>da</strong> a outros territórios; a presença <strong>de</strong> alguns<br />

<strong>de</strong>sses fenômenos na literatura do final <strong>da</strong> República e mesmo em comédias antigas, como as<br />

<strong>de</strong> Plauto; e mesmo a presença <strong>de</strong> alguns arcaísmos, que não po<strong>de</strong>riam simplesmente ter<br />

“reaparecido” em uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> tardia. Segundo Ilari, “como era improvável que estes<br />

arcaísmos <strong>de</strong>ixassem <strong>de</strong> existir no latim culto e voltassem em segui<strong>da</strong> a aparecer na sua<br />

‘corrupção’, <strong>de</strong>ve-se admitir que o latim vulgar já estava constituído quando o latim literário<br />

atingiu seu apogeu, sobrevivendo ao lado <strong>de</strong>le durante alguns séculos” (2006, p.61).<br />

Ilari ain<strong>da</strong> aponta outro aspecto interessante: o latim literário se manteve como uma<br />

língua bastante estável (obviamente porque se manifestava em um contexto extremamente<br />

protegido e restrito), enquanto a língua do povo apresentava inovações constantemente.<br />

Inclusive, para ele, a questão lingüística po<strong>de</strong> ser um reflexo <strong>da</strong> cultura <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana,<br />

em que a aristocracia representava um bloco fechado, conservador e, por isso, utilizava uma<br />

língua mais “homogênea”, enquanto a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> fala<strong>da</strong> seria uma representação <strong>de</strong> um povo<br />

aberto a todos os tipos <strong>de</strong> influências e, portanto, plebeu.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

145


2. Confrontando os <strong>da</strong>dos<br />

Para realizar a análise dos <strong>da</strong>dos, recorri a dois livros <strong>da</strong> Vulgata: o Gênesis e o<br />

Evangelho <strong>de</strong> São João. A escolha foi aleatória, <strong>de</strong> forma a não privilegiar um ou outro trecho<br />

e para que meus exemplos não ficassem enviesados. Entretanto, não foi gratuita a escolha <strong>de</strong><br />

um livro do chamado Antigo Testamento e um do Novo Testamento: a idéia aqui é confrontar<br />

a tradução em dois momentos diferentes do trabalho <strong>de</strong> Jerônimo, a saber, um em que ele<br />

utiliza registros do latim clássico e outro com influências do latim vulgar – ou, como preferem<br />

os católicos, antes e <strong>de</strong>pois do sonho.<br />

Certamente, a interpretação que aqui se faz do sonho <strong>de</strong> Jerônimo não é a mais<br />

recorrente: estudiosos <strong>da</strong> tradução afirmam que “interpretam esse sonho” como para<br />

<strong>de</strong>monstrar uma mu<strong>da</strong>nça na prática tradutória <strong>de</strong> Jerônimo. Cabe, no entanto, nossa<br />

interpretação, pois se trata <strong>de</strong> uma len<strong>da</strong> com diversas interpretações possíveis e é, <strong>de</strong> fato,<br />

observável o que propomos.<br />

2.1 Mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m canônica <strong>da</strong> frase<br />

Outro fenômeno que vem à tona quando observamos e contrastamos os dois textos é a<br />

mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m canônica <strong>da</strong> frase no latim. Sabemos que, por ser uma língua <strong>de</strong> casos, o<br />

latim permitia uma enorme varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> combinações dos constituintes <strong>da</strong> sentença. O sujeito<br />

nem sempre precisava aparecer no começo, assim como o verbo nem sempre precisava<br />

aparecer no final <strong>da</strong> frase, embora essa configuração tenha sido largamente utiliza<strong>da</strong> nos<br />

textos clássicos.<br />

A mu<strong>da</strong>nça <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m é uma <strong>de</strong>corrência direta do enfraquecimento <strong>da</strong> morfologia,<br />

porque era necessário que <strong>de</strong> alguma forma os constituintes <strong>da</strong> sentença fossem marcados. É o<br />

que diz Ilari:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

como era <strong>de</strong> esperar, a per<strong>da</strong> dos casos obrigou a buscar novos meios<br />

para indicar as funções sintáticas, tarefa que passou a ser<br />

<strong>de</strong>sempenha<strong>da</strong> pela or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s palavras e pelo uso <strong>de</strong> preposições;<br />

chegou-se assim a uma or<strong>de</strong>m mais fixa, importante sobretudo para<br />

distinguir entre as expressões nominais <strong>da</strong> oração: o sujeito e o objeto<br />

direto (2006, p.108).<br />

Sabemos também que a or<strong>de</strong>m dos constituintes nas línguas românicas é,<br />

majoritariamente, a seguinte: sujeito, verbo e, então, objeto (SVO). Na Vulgata, encontramos<br />

alternância <strong>da</strong>s situações, como po<strong>de</strong>mos ver em:<br />

3 Maria (...)accepit libram unguenti nardi pistici (nominativo, verbo, acusativo,<br />

genitivo)<br />

146


Maria tomou uma libra <strong>de</strong> perfume <strong>de</strong> nardo puro. (sujeito, verbo, objeto, adjunto<br />

adnominal)<br />

34 Nos audivimus ex lege quia Christus manet in aeternum; (nominativo, verbo,<br />

preposição, ablativo, preposição, nominativo, verbo, preposição, acusativo)<br />

Nós ouvimos <strong>da</strong> lei que o Cristo permanece para sempre (sujeito, verbo, adjunto<br />

adnominal, conjunção que introduz subordina<strong>da</strong>, sujeito, verbo, adjunto adverbial)<br />

Ou seja, fica evi<strong>de</strong>nte que a or<strong>de</strong>m começa a ser muito mais pareci<strong>da</strong> com a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s<br />

línguas românicas que com a do latim clássico. Contrastando esses exemplos com os<br />

exemplos do Gênesis, vemos:<br />

1 (...) serpens erat callidior cunctis animantibus terrae quae fecerat Dominus Deus<br />

(...) A serpente era a mais esperta entre to<strong>da</strong>s as criaturas <strong>da</strong> terra que o Senhor Deus<br />

tinha feito<br />

7 et aperti sunt oculi amborum (...) (verbo, nominativo, genitivo)<br />

E abriram-se os olhos dos dois (verbo, sujeito, adjunto adnominal)<br />

Ou seja, a or<strong>de</strong>m utiliza<strong>da</strong> pelo tradutor também não é a canônica, mesmo no trecho<br />

que parece ser o mais conservador dos dois observados. Não necessariamente é uma<br />

influência do vulgar, mas parece ser um fenômeno bastante intrínseco no uso <strong>da</strong> língua, para<br />

que o tradutor não tenha consi<strong>de</strong>rado a or<strong>de</strong>m canônica e tenha utilizado, com muito mais<br />

freqüência, a or<strong>de</strong>m sujeito-verbo-objeto, a mais freqüente e, por que não, canônica, <strong>da</strong>s<br />

línguas românicas.<br />

Esses exemplos não esgotam to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s nem mesmo to<strong>da</strong>s as<br />

características do latim vulgar apresenta<strong>da</strong>s na bibliografia consulta<strong>da</strong>, entretanto<br />

consi<strong>de</strong>ramos que já servem <strong>de</strong> parâmetro para efetuar algumas consi<strong>de</strong>rações.<br />

3. Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

A Vulgata é um texto prolífico em questões para serem analisa<strong>da</strong>s e estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

profun<strong>da</strong>mente. O simples fato <strong>de</strong> ser um trabalho <strong>de</strong> tradução <strong>de</strong> fôlego já <strong>de</strong>spertaria o<br />

interesse <strong>de</strong> estudiosos. Entretanto, o trabalho <strong>de</strong> tradução <strong>de</strong> Jerônimo não é a única coisa<br />

que salta aos olhos. Ao final <strong>de</strong>sse trabalho, po<strong>de</strong>mos perceber que o uso lingüístico <strong>de</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

147


Jerônimo tem muito a dizer, seja sobre as políticas <strong>da</strong> Igreja, seja sobre o homem <strong>de</strong>ntro do<br />

seu contexto histórico.<br />

Jerônimo era um homem bastante culto e conhecia muito bem o latim, como fica claro<br />

pelo uso lingüístico que ele faz no começo <strong>da</strong> sua tradução. Evi<strong>de</strong>ntemente, quando ele mu<strong>da</strong><br />

o registro, não o faz gratuitamente, e po<strong>de</strong>-se pensar, inclusive, que, como parte do seu<br />

projeto <strong>de</strong> tradução, (traduzindo apenas o sentido, e não literalmente) o uso <strong>de</strong> uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

mais popular faz mais sentido que o uso <strong>de</strong> qualquer outra.<br />

Fica claro, também, que a Vulgata po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> um registro escrito permeado<br />

por elementos do latim vulgar. Mesmo que as escolhas lexicais não <strong>de</strong>monstrem um<br />

vocabulário menos erudito, as construções utiliza<strong>da</strong>s, a or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s sentenças, o uso <strong>de</strong> formas<br />

analíticas e os <strong>de</strong>mais <strong>da</strong>dos aqui apresentados corroboram para essa hipótese. Se não<br />

inscrevermos essa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro do latim vulgar, pelo menos <strong>de</strong>vemos admitir que as<br />

construções se modificam <strong>de</strong> forma a parecerem mais com a língua mais popular.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, esses <strong>da</strong>dos não esgotam to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e é sabido que a<br />

tradução <strong>de</strong> apenas dois capítulos, <strong>de</strong>ntre mais <strong>de</strong> setenta, faz com que o corpus <strong>de</strong>ssa análise<br />

seja reduzido. Entretanto, se po<strong>de</strong>mos encontrar tais fenômenos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> poucos capítulos,<br />

seria produtivo que fossem investigados mais, <strong>de</strong> forma a garimpar mais e melhores <strong>da</strong>dos<br />

para essa análise.<br />

A discussão acerca <strong>da</strong> terminologia <strong>da</strong>s varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s lingüísticas do latim que<br />

coexistiam também não está encerra<strong>da</strong>: mesmo que os trabalhos <strong>de</strong> filologia possuam vasta<br />

tradição, os estudos <strong>de</strong> sociolingüística ain<strong>da</strong> têm muito a contribuir nessa área.<br />

Referências Bibliográficas<br />

BASSETTO, Bruno F. Elementos <strong>de</strong> filologia românica. São Paulo: Edusp, 2005.<br />

CÂMARA JR., J. Mattoso. Dicionário <strong>de</strong> Lingüística e gramática: referente à língua<br />

portuguesa. 13ª ed. Petrópolis: Vozes, 1986.<br />

FARACO, Carlos Alberto. Lingüística histórica: uma introdução ao estudo <strong>da</strong> história<br />

<strong>da</strong>s línguas. São Paulo: Parábola, 2005.<br />

FARIA, Ernesto. Fonética histórica do latim. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Acadêmica, 1955.<br />

ILARI, Rodolfo. Lingüística Românica. 3ª edição. São Paulo, Editora Ática, 2006.<br />

ROBINS, R.H., Pequena história <strong>da</strong> lingüística. 6ª impressão. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ao livro<br />

técnico. 2004.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

148


ROBINSON, Douglas. Western translation theory: from Herodotus to Nietzsche.<br />

Manchester, UK & Northampton, MA: St. Jerome Publishing, 2002<br />

SILVA NETO, Serafim <strong>da</strong>. História do Latim Vulgar. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ao livro técnico,<br />

1977.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 139-149, 2008<br />

149


Da Fala à Língua:<br />

Proposta <strong>de</strong> encaminhamento para o estudo do enunciado latino<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

Giovanna LONGO<br />

PG (CAPES) – FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

giolongo@bol.com.br<br />

Não há ensino <strong>de</strong> língua sem um certo grau <strong>de</strong> artificialismo. E em se tratando <strong>da</strong> língua<br />

latina, isso parece ain<strong>da</strong> mais evi<strong>de</strong>nte, já que, legitimamente, <strong>de</strong>la não se po<strong>de</strong> garantir senão a<br />

aquisição <strong>de</strong> uma competência receptiva escrita.<br />

Se a fala legitimamente romana <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser produzi<strong>da</strong> há tantos séculos, os registros<br />

textuais <strong>de</strong> falantes natos <strong>de</strong>vem constituir não somente o alvo <strong>da</strong>queles que se <strong>de</strong>dicam ao estudo<br />

<strong>de</strong>sse idioma, mas também a única fonte a partir <strong>da</strong> qual é possível <strong>de</strong>terminar o sistema formal<br />

<strong>de</strong>ssa língua antiga. Assim, o latim como língua materna só po<strong>de</strong> ser estabelecido a partir <strong>da</strong> fala<br />

<strong>de</strong> autores romanos, imortaliza<strong>da</strong> em suas obras literárias. Ou seja, essa perspectiva lingüística<br />

que impõem o texto legítimo como ponto <strong>de</strong> chega<strong>da</strong> para o estudo do latim, <strong>de</strong>termina ain<strong>da</strong> que<br />

ele seja tomado também como ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> para o ensino.<br />

Se não há como reconhecer nessas fontes escritas um repertório mínimo <strong>de</strong> registros<br />

coloquiais, e se não há como produzir discursos que possam expressar em latim as experiências<br />

cotidianas <strong>de</strong> falantes mo<strong>de</strong>rnos, como, então, a<strong>de</strong>quar às exigências do ensino inicial <strong>de</strong>ssa<br />

língua antiga a fala estilisticamente elabora<strong>da</strong> <strong>de</strong> seus textos?<br />

A teoria lingüística permite reconhecer que todos os inconvenientes do ensino tradicional<br />

se <strong>de</strong>vem à não distinção entre o que é formal e o que seria próprio do uso, na <strong>de</strong>scrição do<br />

idioma. O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição no qual sempre se pautou o ensino <strong>de</strong> latim, é um exemplo claro<br />

<strong>de</strong> que não há como garantir o entendimento a<strong>de</strong>quado do sistema se houver interferências<br />

<strong>da</strong>quilo que seja próprio do uso. Ao impor ao ensino um sem-número <strong>de</strong> <strong>da</strong>dos que, por serem<br />

baseados na substância, não são pertinentes para a <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> língua, o ensino <strong>da</strong> tradição não<br />

chama a atenção para aquilo que é realmente importante: as oposições <strong>de</strong> casos. São elas, e não<br />

esta ou aquela configuração do vocábulo nominal, as responsáveis pela produção <strong>de</strong> sentido na<br />

frase latina.<br />

Da<strong>da</strong>s as circunstâncias em que se encontra o latim e a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se trabalhar com a<br />

forma, impõem-se como o método mais apropriado para o ensino inicial <strong>de</strong>ssa língua aquele que


permita <strong>de</strong>duzir <strong>de</strong> seus textos escritos apenas as oposições básicas responsáveis pela formação<br />

<strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> oracional, no interior do sistema.<br />

A presença reitera<strong>da</strong> <strong>de</strong> um número limitado e constante <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s estruturais é inerente<br />

a to<strong>da</strong> e qualquer manifestação. É graças a essa potenciali<strong>da</strong><strong>de</strong> reiterativa <strong>da</strong>s estruturas do<br />

sistema que o falante é capaz <strong>de</strong> criar e reconhecer enunciados novos e ilimitados. Característica<br />

própria <strong>da</strong> língua enquanto forma, é essa criativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, e não as manifestações resultantes <strong>da</strong>s<br />

possíveis combinações <strong>de</strong>ssas estruturas, que importa no estudo <strong>de</strong> uma língua. Assim, o<br />

primeiro passo é colocar à disposição do aluno essas estruturas, subjacentes aos textos legítimos.<br />

EXERCÍCIOS DE RECORRÊNCIA A PARTIR DE FRASES NORMALIZADAS E SIMULAÇÃO DA<br />

ORALIDADE<br />

Numa tentativa <strong>de</strong> encaminhar as idéias do método “Da Fala à Língua: estudos do<br />

enunciado latino”, apresenta-se a seguir uma sugestão <strong>de</strong> material que po<strong>de</strong>ria ser leva<strong>da</strong> à sala<br />

<strong>de</strong> aula com exercícios <strong>de</strong> compreensão <strong>da</strong> frase latina que estimulam a recorrência <strong>de</strong> suas<br />

oposições básicas.<br />

O material contém as seguintes partes:<br />

1. Apresentação do texto. Da<strong>da</strong> a distância temporal e as diferenças culturais que<br />

me<strong>de</strong>iam a época <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> um texto clássico e a atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma breve<br />

contextualização com informações sobre texto e autor permitem evitar possíveis estranhamentos<br />

iniciais por parte do aluno, sobretudo com relação ao assunto <strong>de</strong> que trata o texto.<br />

2. Excerto original, a partir do qual foram realiza<strong>da</strong>s as normalizações. A leitura em voz<br />

alta do original po<strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r no processo <strong>de</strong> familiarização do aluno com as ocorrências em latim.<br />

Vale lembrar, no entanto, as palavras <strong>de</strong> Alceu Dias Lima: “É [...] muito salutar e até <strong>de</strong>mocrático<br />

<strong>de</strong>ixar claro que a pronúncia e a prosódia com que nossas melhores intenções busquem satisfazer<br />

às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s inarredáveis do ensino são, quando muito, aproximativas e, em certos pontos<br />

essenciais, puramente substitutivas”.<br />

3. Tradução <strong>de</strong> referência do excerto original. O que se está chamando aqui <strong>de</strong> tradução<br />

<strong>de</strong> referência <strong>de</strong>ve ser entendido apenas como o resultado <strong>de</strong> uma prática em que se busca<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

151


transpor os componentes léxico e morfossintático do latim para o português a fim <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>r o<br />

leitor a ter uma primeira compreensão do texto. Esse procedimento é necessário para a realização<br />

<strong>da</strong>s normalizações. A proposta é <strong>de</strong> que se apresente uma tradução <strong>de</strong> referência junto com o<br />

excerto original. A leitura <strong>de</strong> ambos também <strong>de</strong>ve fazer parte do exercício.<br />

4. Comentários e notas. Como o exercício trabalha com frases isola<strong>da</strong>s toma<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

pequenos excertos, os comentários e as notas visam fornecer algumas informações que só<br />

po<strong>de</strong>riam ser inferi<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> leitura do texto integral. São forneci<strong>da</strong>s apenas as referências<br />

culturais necessárias para garantir a compreensão do contexto do qual a frase foi toma<strong>da</strong>. Não<br />

são, portanto, relevantes nesse momento <strong>da</strong>dos sobre o estilo, já que o foco inicial do trabalho<br />

não é o texto em si, mas as oposições frasais do sistema latino.<br />

5. Estrutura <strong>da</strong> oração normaliza<strong>da</strong>, em que se explicitam os componentes oracionais a<br />

ca<strong>da</strong> apresentação <strong>de</strong> uma nova estrutura frasal. O intuito é garantir que o aluno atente para a<br />

recorrência e perceba que uma diferença no som ou na grafia não correspon<strong>de</strong> necessariamente a<br />

uma diferença formal. Ou seja, que não é a enti<strong>da</strong><strong>de</strong> fonética (ou gráfica) fisicamente apreensível<br />

que constitui o morfema, mas a oposição <strong>de</strong>corrente <strong>da</strong> diferença virtual, que se estabelece entre<br />

os sons <strong>da</strong> língua. Ca<strong>da</strong> estrutura frasal contém os seguintes elementos assim expostos:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

SNSUJ + SNOBJ. / SNPRED+ SNADV + V[T / I / L / DEP].<br />

6. Orações normaliza<strong>da</strong>s. Destina<strong>da</strong>s a estimular a recorrência <strong>da</strong>s estruturas, é a partir<br />

<strong>de</strong>las que o aluno <strong>de</strong>ve realizar os exercícios <strong>de</strong> leitura e <strong>de</strong> simulação <strong>da</strong> orali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A<br />

normalização é entendi<strong>da</strong> como um mecanismo operatório concebido para reconduzir enunciados<br />

complexos a um estado hipotético inicial, isto é, anterior a qualquer realização concreta. Baseado<br />

no fato <strong>de</strong> que tudo o que se refere à língua é <strong>de</strong> natureza virtual, esse procedimento em na<strong>da</strong><br />

afeta o texto original em sua integri<strong>da</strong><strong>de</strong> filológica. É importante <strong>de</strong>ixar claro que a frase<br />

normaliza<strong>da</strong> não é uma mera facilitação para a compreensão do aluno. O que está em jogo não é a<br />

frase em si ou o conteúdo que ela veicula e a habili<strong>da</strong><strong>de</strong> do aluno em <strong>de</strong>cifrá-lo. O que interessa é<br />

tão-somente a explicitação <strong>de</strong> sua estrutura, que evi<strong>de</strong>ncia as oposições <strong>de</strong> caso, uma vez que o<br />

que está em mira é o trabalho com a forma.<br />

152


7. Perguntas. Outro procedimento <strong>de</strong>stinado a estimular a recorrência, a simulação <strong>da</strong><br />

orali<strong>da</strong><strong>de</strong>, consiste na realização <strong>de</strong> diálogos mínimos, na forma <strong>de</strong> perguntas e respostas, a partir<br />

<strong>de</strong> elementos lexicais tomados <strong>da</strong>s próprias frases normaliza<strong>da</strong>s. Para a elaboração <strong>da</strong>s perguntas<br />

são usados pronomes e advérbios interrogativos. Uma <strong>da</strong>s principais virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sse<br />

procedimento, que o fazem indispensável ao método, é ser feito com elementos que possuem o<br />

estatuto <strong>de</strong> nome e, por isso, estão sujeitos ao fenômeno <strong>da</strong> <strong>de</strong>clinação, tal como as classes <strong>de</strong><br />

repertório aberto. O que diferencia os pronomes <strong>de</strong> substantivos e <strong>de</strong> adjetivos, porém, é o fato <strong>de</strong><br />

serem itens lexicalmente vazios quando tomados em sua virtuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por ser forma<strong>da</strong> por nomes<br />

inextensos, essa classe reduz-se a um repertório limitado <strong>de</strong> formas. Essa característica, que<br />

permite um elevado índice <strong>de</strong> recorrência, facilita o controle <strong>de</strong> suas formas pela memória.<br />

Sobre essas etapas do trabalho valem ain<strong>da</strong> algumas observações.<br />

Esses procedimentos pressupõem uma fase inicial em que sejam claramente expostos os<br />

princípios <strong>da</strong> língua latina, no que se refere às oposições <strong>de</strong> caso, gênero e número, para as<br />

enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s nominais, e às <strong>de</strong> modo, tempo, número, pessoa e voz para as verbais.<br />

O fato <strong>de</strong> o procedimento <strong>de</strong> normalização, utilizado no ensino inicial, ser tarefa exclusiva<br />

do professor, não é motivo para impedir que o aluno tenha conhecimento dos fun<strong>da</strong>mentos sobre<br />

os quais o método está pautado. É preciso que ele adquira consciência efetiva <strong>de</strong> que o latim foi<br />

uma língua materna, e que o fato <strong>de</strong> não mais possuir falantes naturais acarreta a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> se produzirem novos discursos nesse idioma. A normalização, que não equivale às chama<strong>da</strong>s<br />

“a<strong>da</strong>ptações” e que não fere a integri<strong>da</strong><strong>de</strong> filológica do texto original, é um procedimento com<br />

fins puramente didáticos, uma tentativa lingüística <strong>de</strong> superar as sérias implicações trazi<strong>da</strong>s ao<br />

ensino do latim pela circunstância <strong>de</strong> que se há <strong>de</strong> partir <strong>de</strong> seus textos literários. Desse modo,<br />

acredita-se, é possível levar o aluno a compreen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do aprendizado, os conceitos<br />

lingüísticos – forma e substância, língua e fala, uso, norma, escrita, etc. – necessários à sua<br />

formação.<br />

É por essa razão que não haveria problemas em apresentar, no material, as frases<br />

normaliza<strong>da</strong>s acompanha<strong>da</strong>s do excerto original com uma respectiva tradução <strong>de</strong> referência. Se<br />

não é a simples transposição <strong>de</strong> conteúdos do latim para o português que <strong>de</strong>ve estar em mira na<br />

etapa inicial do ensino, mas sim a internalização <strong>da</strong>s oposições <strong>de</strong> caso e como elas se<br />

manifestam em latim, não haveria por que contestar a apresentação <strong>da</strong> tradução <strong>de</strong> referência ao<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

153


original. Por isso, mais importante do que se preocupar com a i<strong>de</strong>ntificação do conteúdo lexical<br />

<strong>de</strong> ca<strong>da</strong> item frasal, é atentar-se para o jogo recorrente <strong>de</strong> oposições sintáticas.<br />

A aquisição <strong>de</strong> uma competência metalingüística é garanti<strong>da</strong> não apenas com exercícios<br />

<strong>de</strong> tradução <strong>de</strong> frases isola<strong>da</strong>s. Assim, é imprescindível ao método que ca<strong>da</strong> frase normaliza<strong>da</strong><br />

seja submeti<strong>da</strong> à recorrência estimula<strong>da</strong> por perguntas e respostas. Para tanto, empregam-se os<br />

pronomes e os advérbios interrogativos.<br />

O exercício que se apresenta a seguir já vem acompanhado <strong>de</strong> uma possível resolução.<br />

Enten<strong>de</strong>-se, no entanto, que a realização <strong>de</strong> perguntas e respostas e a leitura <strong>da</strong>s orações<br />

normaliza<strong>da</strong>s sejam tarefas que se <strong>de</strong>vam propor ao aluno.<br />

Caberá ao aluno realizar o levantamento do vocabulário <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> frase a partir <strong>da</strong> consulta<br />

ao dicionário bilíngüe. Ao professor cabe somente orientar a consulta <strong>de</strong> modo a garantir tanto a<br />

compreensão <strong>da</strong>s convenções lexicográficas <strong>da</strong> obra, quanto o entendimento a<strong>de</strong>quado dos<br />

conceitos lingüísticos nos quais o método está pautado.<br />

Embora nessa fase do ensino a leitura <strong>da</strong>s frases <strong>de</strong>pen<strong>da</strong> <strong>de</strong> uma versão para o português,<br />

esta não é mais do que um exercício, faz parte <strong>da</strong> metalinguagem. O <strong>de</strong>spretensioso<br />

correspon<strong>de</strong>nte vernáculo, ao qual se chega com os conhecimentos <strong>de</strong> morfossintaxe e a consulta<br />

ao dicionário, visa apenas possibilitar o entendimento <strong>da</strong> estrutura sintática <strong>da</strong> frase latina. Não se<br />

<strong>de</strong>ve confundir essa prática com aquilo que se enten<strong>de</strong> por tradução.<br />

Com relação aos <strong>da</strong>dos morfológicos, o i<strong>de</strong>al é que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, o aluno <strong>de</strong>duza os<br />

<strong>da</strong>dos significantes, a partir <strong>da</strong> observação <strong>de</strong> que certas variações na substância <strong>da</strong> expressão<br />

nem sempre acarretam uma mu<strong>da</strong>nça <strong>de</strong> significado. Esses <strong>da</strong>dos po<strong>de</strong>m ser, paulatinamente,<br />

sistematizados com a aju<strong>da</strong> do professor.<br />

Acredita-se que <strong>de</strong>sta maneira seja possível conciliar o uso do dicionário, obra <strong>de</strong><br />

referência indispensável, mas <strong>de</strong>scrita nos mol<strong>de</strong>s tradicionais, às necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> um ensino<br />

inicial do latim pautado na <strong>de</strong>scrição lingüística do idioma.<br />

Por mais que essa obra apresente incoerências lingüísticas, seria um equívoco pensar que<br />

o fato <strong>de</strong> adiar seu encontro com o aluno irá diminuir as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s quando o recurso ao<br />

dicionário se fizer imprescindível. A proposta que aqui se faz é a <strong>de</strong> que, junto com a aplicação<br />

<strong>de</strong>sses procedimentos didáticos, o professor oriente as consultas, sempre <strong>de</strong> acordo com os<br />

ensinamentos <strong>da</strong> Lingüística. Dessa forma, esse instrumento po<strong>de</strong>rá servir também para<br />

confrontar a <strong>de</strong>scrição tradicional e o entendimento <strong>da</strong> teoria.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

154


Os procedimentos didáticos <strong>de</strong>scritos foram realizados a partir <strong>de</strong> um excerto <strong>de</strong> Virgílio.<br />

A escolha para este trabalho, no entanto, po<strong>de</strong>ria ter recaído sobre textos <strong>de</strong> qualquer autor, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que aten<strong>de</strong>ssem ao critério indispensável <strong>da</strong> autentici<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou seja, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que pertencessem a<br />

falantes legítimos do latim.<br />

EXEMPLO<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

VIRGÍLIO, Geórgicas, II<br />

Tomados do II livro <strong>da</strong>s Geórgicas, os versos que se seguem são parte do trecho<br />

tradicionalmente conhecido como Hino à Primavera. Nele, o poeta canta com entusiasmo e<br />

otimismo a chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> estação que, com a força fecun<strong>da</strong>nte <strong>da</strong> natureza, suce<strong>de</strong> ao inverno<br />

morto, renovando a vi<strong>da</strong> sobre a terra.<br />

336-342<br />

Non alios prima crescentis origine mundi<br />

illuxisse dies, aliumue habuisse tenorem<br />

credi<strong>de</strong>rim; uer illud erat, uer magnus agebat<br />

Orbis, et hibernis parcebant flatibus Euri,<br />

cum primae lucem pecu<strong>de</strong>s hausere, uirumque<br />

terrae progenies duris caput extulit aruis,<br />

immissaeque ferae siluis, et si<strong>de</strong>ra caelo.<br />

Eu não acreditaria que, na primeira origem 1<br />

do mundo em formação, outros fossem os dias que<br />

brilharam ou que outro curso tivessem. Isso era a<br />

Primavera: o gran<strong>de</strong> Orbe a conduzia e os Euros se<br />

abstinham <strong>de</strong> seus sopros invernais, quando os<br />

primeiros rebanhos experimentaram a luz e a raça<br />

terrestre dos homens ergueu sua cabeça <strong>da</strong>s duras<br />

planícies 2 e as feras foram lança<strong>da</strong>s às selvas e os<br />

astros ao céu.<br />

NOTAS<br />

1 A i<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ouro, período <strong>da</strong> eterna Primavera, do qual o mundo <strong>de</strong>sfrutava em sua origem.<br />

2 Cf. Mito <strong>de</strong> Deucalião e Pirra.<br />

EXERCÍCIO<br />

ESTRUTURA:<br />

SNSUJ + SNOBJ DIR +VT<br />

I – Prima pecus lucem haurit.<br />

[O primeiro rebanho experimenta a luz.]<br />

1) Quid lucem haurit? [O que experimenta a luz?]<br />

- Prima pecus. [O primeiro rebanho.]<br />

2) Quid prima pecus haurit? [O que o primeiro rebanho experimenta?]<br />

- Lucem. [A luz.]<br />

3) Quid prima pecus facit? [O que o primeiro rebanho faz?]<br />

- Haurit lucem. [Experimenta a luz.]<br />

155


Dados <strong>de</strong> comparação:<br />

1.Texto original:<br />

Hexâmetro 340: [ ¯ ¯ | primae lucem pecu<strong>de</strong>s hausere ˘ | ¯ ˘ ]<br />

2.Frase normaliza<strong>da</strong>:<br />

Prima pecus lucem haurit.<br />

3. Termos encontrados no dicionário Latino-Português:<br />

lux, lucis, f.;<br />

haurio, hausi, haustum, v.t.;<br />

pecus, oris, n.;<br />

primus, a, um, adj.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A visão aclara<strong>da</strong> pelos ensinamentos lingüísticos permite reconhecer que muitos são os<br />

problemas impostos ao ensino do latim. Mas, em gran<strong>de</strong> parte, essas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s se <strong>de</strong>vem não à<br />

natureza <strong>de</strong>ssa língua antiga, e sim à maneira como ela foi trata<strong>da</strong> ao longo dos séculos pela<br />

escola. Talvez se possa dizer, então, que um ensino regulado por tão rígi<strong>da</strong> disciplina escolar<br />

esteja em conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o tal mito <strong>de</strong> superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> do latim frente às <strong>de</strong>mais línguas.<br />

Para <strong>de</strong>sfazer a mistificação do ensino tradicional é preciso guiar-se por um método que<br />

encaminhe a reflexão estrutural <strong>da</strong> linguagem. Acredita-se, assim, que um aprendizado inicial<br />

feito nesses mol<strong>de</strong>s possa fornecer as bases para uma formação lingüística do latinista. Bases<br />

estas que permitem que se tenha a consciência <strong>de</strong> que o latim, embora não seja a língua <strong>de</strong><br />

nenhum falante <strong>da</strong> atuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, é uma língua materna. Este é o primeiro passo para proporcionar<br />

uma leitura efetiva <strong>de</strong> seus textos.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria <strong>da</strong> linguagem. Trad. Teixeira Coelho Neto. São<br />

Paulo: Perspectiva, 1975. (<strong>Estudos</strong>).<br />

LIMA, A. D. Memorial - Concurso para obtenção <strong>de</strong> cargo <strong>de</strong> Professor Titular. Departamento<br />

<strong>de</strong> Lingüística, Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e Letras - UNESP, Araraquara, [2000].<br />

LIMA, A. D. Uma estranha língua?: questões <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong> método. São Paulo: UNESP,<br />

1995.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

156


SAUSSURE, F. Curso <strong>de</strong> Lingüística Geral. 25 a ed. Trad. Antônio Chelini, José Paulo Paes e<br />

Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 2003.<br />

THAMOS, M. Poesia e imitação: a busca <strong>da</strong> expressão concreta. Araraquara, 1998. 154f.<br />

Dissertação (Mestrado em <strong>Estudos</strong> Literários). Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e Letras,<br />

Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista, Araraquara, 1998.<br />

TORRINHA, F. Dicionário latino-português. 2 a ed. Porto: Gráficos Reunidos, 1942.<br />

VIRGILE. Géorgiques. Texte établi et traduit par E. <strong>de</strong> Saint-Denis. Paris: Les Belles Lettres,<br />

1966.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 150-157, 2008<br />

157


A Construção do Erótico nos Romances do Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 158-164, 2008<br />

André <strong>da</strong> Costa LOPES<br />

G (FAPESP) – FCL Assis – UNESP<br />

<strong>da</strong>costta@hotmail.com<br />

O Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca, também conhecido por Frei Antônio <strong>da</strong>s Chagas e,<br />

possivelmente, pelo pseudônimo Gustave Auricops, foi um poeta que viveu em Portugal e no<br />

Brasil, provavelmente em fins do século XVII. Em seu nome há o ms.1636, contendo diversos<br />

sonetos e romances com duas caligrafias diferentes, e o ms. 392, corpus <strong>de</strong>ste trabalho 1 ,<br />

composto por 104 romances com predominância <strong>de</strong> tema satírico e erótico-religioso, além <strong>da</strong><br />

obra sacra em seu nome religioso Antônio <strong>da</strong>s Chagas.<br />

Os referenciais <strong>de</strong> escrita <strong>de</strong>ste tempo são influenciados pelos manuais <strong>de</strong> poética e<br />

retórica antigas. Aristóteles e Horácio, este com sua arte poética, aquele com sua arte poética<br />

e retórica, foram muito difundidos por homens que, durante este século, eram artífices <strong>da</strong>s<br />

palavras, os “letrados”. Contemporaneamente, produziam-se os tratados <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za escritos<br />

por preceptistas, como Emanuel Tesauro e Baltazar Gracián, nos quais eram traçados<br />

preceitos para uma expressão orna<strong>da</strong>.<br />

O Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca está inserido neste contexto, e sua obra, além <strong>de</strong>sses<br />

referenciais <strong>de</strong> escrita, possui importantes referências históricas, como a Contra Reforma, a<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> corte e, principalmente, um movimento <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça na perspectiva <strong>da</strong> difusão <strong>da</strong><br />

história em Portugal e em suas possessões. Tanto a Igreja Católica quanto a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

corte <strong>de</strong>ixaram enraiza<strong>da</strong>s no espírito dos homens <strong>de</strong>sse tempo fortes marcas i<strong>de</strong>ológicas que<br />

influenciaram o seu estilo <strong>de</strong> escrita e a sua arte.<br />

A Igreja, utilizando-se <strong>de</strong> uma po<strong>de</strong>rosa arma, a Santa Inquisição, construiu o homem<br />

temente a Deus, provi<strong>de</strong>ncial, anti-herético e incapaz <strong>de</strong> expressar qualquer coisa<br />

“diretamente”. Capazes <strong>de</strong> tais expressões eram somente as enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas. Restava ao<br />

homem o modo <strong>de</strong> expressão disfarçado, ornado, construído por expressões complexas, ricas<br />

em figuras às vezes herméticas, retorci<strong>da</strong>s, por assim dizer. Já a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> corte gerou o<br />

homem pru<strong>de</strong>nte. Este era obrigado a seguir rígidos rituais <strong>de</strong> etiqueta, os quais o tornariam<br />

um homem capaz <strong>de</strong> atingir to<strong>da</strong>s as partes <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> enumera<strong>da</strong>s por Aristóteles: a justiça, a<br />

coragem, a temperança, a magnificência, a magnanimi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a liberali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a mansidão, a<br />

prudência e a sabedoria. Uma máscara capaz <strong>de</strong> envolver e proteger este homem.<br />

1<br />

Este trabalho é uma parte dos resultados <strong>da</strong> pesquisa As escolhas vocabulares nos romances do Padre Antônio<br />

<strong>da</strong> Fonseca.


Deste modo, a poesia erótica feita pelo nosso poeta se constrói seguindo o espírito <strong>de</strong><br />

seu tempo, em que alguns preceitos dos manuais <strong>de</strong> retórica e poética clássicos sofrem<br />

releituras e, por conseguinte, são modificados <strong>de</strong>terminados conceitos <strong>de</strong> escrita. A idéia <strong>de</strong><br />

clareza, preceito difundido nos manuais <strong>de</strong> poética aristotélico e horaciano, por exemplo, é<br />

reinterpreta<strong>da</strong>, e abre espaço para uma prática <strong>de</strong> escrita mais orna<strong>da</strong>. Aristóteles (2005, p.44)<br />

<strong>de</strong>clara que:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 158-164, 2008<br />

A excelência <strong>da</strong> linguagem consiste em ser clara sem ser chã. A mais clara é<br />

a regi<strong>da</strong> em termos correntes, mas é chã; [....] Nobre e distinta do vulgar é a<br />

que emprega termos surpreen<strong>de</strong>ntes. Entendo surpreen<strong>de</strong>ntes o termo raro, a<br />

metáfora, o alongamento e tudo que foge ao trivial. Mas, quando to<strong>da</strong> a<br />

composição se faz em termos tais, resulta um enigma, ou um barbarismo; a<br />

linguagem feita <strong>de</strong> metáforas dá em enigma; a <strong>de</strong> termos raros, em<br />

barbarismo. [...] É necessário, portanto, como que fundir esses processos;<br />

tirarão à linguagem o caráter vulgar e chão, por exemplo, a metáfora, o<br />

adorno e <strong>de</strong>mais espécies referi<strong>da</strong>s; o termo corrente, doutro lado, lhe <strong>da</strong>rá<br />

clareza”. (ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO, 2005, p.44)<br />

Entretanto, Pécora (1994, p.161), ao analisar as analogias nos sermões do Padre<br />

Antônio Vieira, baseando-se em Baltazar Gracián, preceptista do XVII, observa que:<br />

Em Gracián, por exemplo, fica nítido que a analogia ou correspondência<br />

conceitual é o procedimento básico <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as formas <strong>de</strong> produção agu<strong>da</strong>,<br />

conquanto, por outro lado, os objetos que se relacionam nela não tenham<br />

quaisquer limites fixáveis a priori. Da mesma forma que os objetos, também<br />

a matéria [...] nunca é tão estéril que não dê margem à sutileza analógica:<br />

“Hay unas matérias tan copiosas como otras estériles, pero ninguna no es<br />

tanto que uma buena inventiva no halle en qué hacer presa, o por<br />

conformi<strong>da</strong>d o por <strong>de</strong>sconveniencia, echado sus puntas <strong>de</strong>l careo”<br />

(“Agu<strong>de</strong>za y Arte <strong>de</strong> Ingenio”, p.513).<br />

Como po<strong>de</strong>mos ver, o que em Aristóteles é recomen<strong>da</strong>do a se fazer com parcimônia,<br />

em Gracián é tido como procedimento básico. Assim, a metáfora, que po<strong>de</strong> causar enigma, é<br />

justamente o procedimento mais usual para os letrados do século XVII e, <strong>de</strong>ixando mais claro,<br />

não somente esse tipo <strong>de</strong> figura, mas é usual uma série <strong>de</strong> outros recursos expressivos, como<br />

por exemplo, as antíteses, paranomásias, inversões sintáticas, quiasmas, entre outros. Hansen<br />

(1989, p. 239) para explicar a poesia orna<strong>da</strong> e agu<strong>da</strong> do século XVII, <strong>de</strong>senvolve o conceito<br />

<strong>de</strong> ornato-dialético, o qual, segundo ele, se constrói por meio <strong>de</strong> expressões engenhosas,<br />

“operação metafórica <strong>de</strong> aproximação e fusão <strong>de</strong> conceitos.”<br />

O Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca no romance <strong>de</strong> número 27 <strong>de</strong>senvolve o erótico por meio<br />

dos contrastes água/fogo e neve/fogo, tópicas muito usa<strong>da</strong>s por poetas barrocos, que<br />

aproximam conceitos antitéticos para reforçar a imagem <strong>de</strong> um eu-lírico tomado pelo <strong>de</strong>sejo:<br />

159


Romance 27 (excerto 1)<br />

A mim mesmo pena dou<br />

pois he bençao que te paga<br />

meu peito com puras chamas<br />

meus olhos com vivas agoas<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 158-164, 2008<br />

Romance 27 (excerto 2)<br />

Ja me confeço perdido,<br />

porque meu amor so acha<br />

tudo fogo no que sente<br />

tudo neve no que palpa<br />

Acerca do excerto 1, vale a pena citar uma análise que Hansen (1989, p.240) faz <strong>de</strong><br />

um poema <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos com tema muito parecido com o do exemplo citado:<br />

Ardor em firme coração nascido;<br />

Pranto por belos olhos <strong>de</strong>rramados;<br />

Incêndio em mares <strong>de</strong> água disfarçado;<br />

Rio <strong>de</strong> neve em fogo convertido<br />

Como divisão conceituosa, um termo metafórico como “fogo” substitui o<br />

significado <strong>da</strong> ação ardorosa; outro termo metafórico, como “água”, equivale<br />

ao efeito <strong>da</strong> paixão. Tem-se uma primeira divisão: Paixão = ação e efeito;<br />

uma primeira metaforização: Paixão = ardor (fogo) e pranto (água); e<br />

também uma primeira oposição: Paixão = fogo diferente <strong>de</strong> água. A mesma<br />

divisão produz oposições semânticas exploráveis: “fogo” = /quente/, /seco/;<br />

“água” = /frio/, /úmido/; etc. Dispostas simetricamente, as metáforas<br />

efetua<strong>da</strong>s funcionam como matrizes <strong>de</strong> subdivisões engenhosas, que as<br />

substituem por outras metáforas ca<strong>da</strong> vez mais distantes, como amplificação,<br />

mantendo-se sempre, porém, a relação analógica <strong>de</strong> substituição e <strong>de</strong><br />

oposição semântica. Em outros termos, o procedimento é sintético e<br />

analítico, “ornato dialético”, <strong>de</strong> efeito pictórico. Tem-se nele algo paradoxal<br />

(“maravilhoso, segundo os barrocos”).<br />

No excerto 2, o efeito é o mesmo, pois Paixão = ardor (fogo) e Indiferença = frieza<br />

(neve). Paixão = a fogo diferente <strong>de</strong> indiferença = a neve. A contraposição <strong>da</strong>s duas metáforas<br />

gera um efeito engenhoso que torna “visível” o forte <strong>de</strong>sejo do eu-lírico e a indiferença <strong>de</strong> sua<br />

musa. Desejo e indiferença saem do nível conceitual para se tornarem matéria tátil e visual:<br />

fogo e neve.<br />

O poeta também usa a correspondência conceitual no campo lexical. Assim, em alguns<br />

romances, algumas palavras <strong>de</strong> campos semânticos diversos entram na semântica erótica. É o<br />

que acontece com as palavras ânsia e ausência. No romance 24 e 69, elas expressam<br />

respectivamente o <strong>de</strong>sejo e a abstinência sexual do eu-lírico. Este tipo <strong>de</strong> recurso expressivo<br />

lembra bem uma frase horaciana: “No arranjo <strong>da</strong>s palavras <strong>de</strong>verás ser subtil e cauteloso e<br />

magnificamente dirás se, por engenhosa combinação, transformares em novi<strong>da</strong><strong>de</strong>s as palavras<br />

mais correntes” (HORÁCIO, 1984, p. 59-61).<br />

Romance 24<br />

Roamcece 69<br />

160


Don<strong>de</strong> meu suspiro amante<br />

caminhaes interneçido,<br />

suspen<strong>de</strong>i hum pouco os uoos,<br />

paray paray meu suspiro<br />

Se <strong>da</strong> vossa ançia em<br />

hi<strong>de</strong>s buscar aliuio<br />

ay, que imagino intentais<br />

remedios nos perigos<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 158-164, 2008<br />

Ouir meu mimo, meu bem<br />

meus extremos nesta auzençia<br />

mas que muyto extremos faça<br />

por uos extremos <strong>da</strong>s pren<strong>da</strong>s<br />

Ouvi meu brinco os excessos<br />

<strong>de</strong> hum amante que <strong>de</strong>zeja<br />

por uosso amor fazer tantos<br />

que auossa fé hoje creja<br />

No excerto do romance 24, a palavra ânsia está associa<strong>da</strong> ao vocábulo alívio, isto é,<br />

aliviar-se sugere a cura <strong>da</strong> ânsia ou, simplesmente, curar o <strong>de</strong>sejo. Entretanto, o remédio para<br />

essa cura, a musa, conspira perigo. Já no romance 69, há uma voz que, num tom persuasivo,<br />

tenta convencer seu interlocutor dos “extremos” causados por certa ausência, sendo que<br />

extremos e também excesso têm significado <strong>de</strong> um exacerbado <strong>de</strong>sejo causado pela<br />

“ausência” ou abstinência.<br />

Para expressar uma idéia erótica, às vezes objetos ou certas situações são matérias<br />

expressivas para criar imagens. É o caso <strong>de</strong> objetos como: a espa<strong>da</strong> (romance 43); a bainha e a<br />

espa<strong>da</strong> (romance 46); a vara (romance 65); a agulha (romance 66); o vaso (romance 54); a<br />

concha (romance 54); e <strong>de</strong> situações como: a ação <strong>de</strong> tear (romance 12) ou <strong>de</strong> costurar<br />

(romance 66). Esses objetos e situações remetem a símbolos fálicos e símbolos <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

feminina, os quais sugerem, muitas vezes, a idéia <strong>de</strong> relação sexual. Separamos dois excertos,<br />

nos quais essas situações aparecem:<br />

Romance 76<br />

Era que estaua cozendo<br />

branca, e crespa olan<strong>da</strong> fina<br />

E por cozer Em olan<strong>da</strong><br />

era olan<strong>de</strong>za <strong>da</strong>s ui<strong>da</strong>s<br />

Entre os pontos <strong>da</strong> custura<br />

hum <strong>de</strong>do picou Maria<br />

e cô o pique dâgulha<br />

ficou pica<strong>da</strong> a menina<br />

Romance 76<br />

Acodio ao pique logo<br />

com palauras que sabia<br />

porque como he tao discreta<br />

a todo o pique acodia<br />

Romance 66<br />

Picou se emfim no <strong>de</strong>dinho<br />

e foi noui<strong>da</strong><strong>de</strong>s a fê<br />

porque athe gora esta <strong>da</strong>ma<br />

pica<strong>da</strong> a não uiu nimguem<br />

Nos exemplos acima, o poeta tira seu recurso expressivo <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong> costura.<br />

Ele aproveita a variação <strong>de</strong> sentido que a palavra picar possui para chegar ao erótico. Por<br />

meio <strong>da</strong> paranomásia, figura bastante usa<strong>da</strong> pelo poeta, ele constrói um efeito engenhoso on<strong>de</strong><br />

as palavras <strong>de</strong> sons semelhantes e, aparentemente, <strong>de</strong> sentidos também semelhantes, assumem<br />

sentido alegórico, sendo contamina<strong>da</strong>s pelo campo semântico do erótico. Assim, o vocábulo<br />

pica<strong>da</strong> po<strong>de</strong> sugerir golpe com a “pica”, mulher que recebeu a “pica” ou movimento vai e<br />

vem <strong>de</strong> picar. A<strong>de</strong>mais, o verso “ficou pica<strong>da</strong> a menina”, do romance 76, além <strong>de</strong> erótico,<br />

161


assume tom jocoso, e os versos “porque athe gora esta <strong>da</strong>ma/pica<strong>da</strong> a não uiu nimguem”<br />

geram a idéia <strong>de</strong> casti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> musa.<br />

Enfim, o conflito razão/<strong>de</strong>sejo, imagem central nos romances eróticos, materializa-se<br />

principalmente por meio <strong>da</strong>s relações, dos jogos conceituais, <strong>da</strong>s antíteses e metáforas<br />

pictóricas. Deste modo, o eu-lírico, quando tomado pelo <strong>de</strong>sejo, torna-se um ser vicioso e o<br />

“tipo vicioso não é livre, pois em to<strong>da</strong>s as ocasiões só obe<strong>de</strong>ce a vonta<strong>de</strong>, que o escraviza: não<br />

<strong>de</strong>seja, é <strong>de</strong>sejado <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>sejo” (HANSEN, 1989, p.338), <strong>da</strong>í a razão bater à porta, pois o<br />

homem pru<strong>de</strong>nte do XVII não quer ter nenhuma relação com os atos viciosos, pois o vício é o<br />

seu oposto.<br />

Assim, o <strong>de</strong>sejo latente no eu-poemático o faz chegar a “extremos”, expressos em<br />

versos como “on<strong>de</strong> os <strong>de</strong>sejos são gran<strong>de</strong>s/ a razão é pouca” (romance 21), “temo <strong>da</strong>r me o<br />

miolo uma volta” (romance 54), e, enfim, em:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 158-164, 2008<br />

Mas vin<strong>de</strong> para meos braços<br />

que ja com mil aluorossos.<br />

Por uos meter nao sey don<strong>de</strong><br />

cre<strong>de</strong> que estou naõ sey como.<br />

Como po<strong>de</strong>mos observar nos excertos analisados, o erótico nos romances do Padre<br />

Antônio <strong>da</strong> Fonseca é construído por meio <strong>de</strong> vocábulos ou expressões ambíguas. O potencial<br />

semântico <strong>da</strong>s palavras é explorado <strong>de</strong> maneira que as mesmas ganhem novas significações e<br />

compartilhem seu novo significado com o antigo. Deste modo, o erótico é construído por<br />

meio do alegórico e dos jogos metafóricos. Os conceitos são transformados em imagens feitas<br />

por meio <strong>de</strong> metáforas ou aproximação <strong>de</strong> opostos que con<strong>de</strong>nsam conceitos, amplificando o<br />

discurso, gerando o que Hansen (1989) chama <strong>de</strong> ornato dialético.<br />

Embora a poesia do Padre Antônio <strong>da</strong> Fonseca siga os procedimentos <strong>da</strong> agu<strong>de</strong>za e do<br />

ornato, ela não foge totalmente à regra do <strong>de</strong>coro clássico, pois segue a regra <strong>de</strong> divisão <strong>de</strong><br />

gêneros. Com efeito, o poeta, para assegurar o valor estético <strong>de</strong> sua obra, preocupou-se em<br />

a<strong>de</strong>quar o tema <strong>de</strong> sua poesia a uma forma poemática a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> e, principalmente, não se<br />

<strong>de</strong>scuidou com o trato <strong>da</strong> linguagem. Assim, nosso poeta segue uma <strong>da</strong>s prescrições<br />

horacianas:<br />

Se não posso nem sei observar as funções prescritas e os tons característicos<br />

dos diversos gêneros, por que hei <strong>de</strong> ser sau<strong>da</strong>do como poeta? Qual a razão<br />

por que prefiro, com falso pudor, <strong>de</strong>sconhecê-los e aprendê-los? Mesmo a<br />

comédia não quer os seus assuntos expostos em versos <strong>de</strong> tragédia e<br />

igualmente a ceia <strong>de</strong> Tiestes não se enquadra na narração em metro vulgar,<br />

162


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 158-164, 2008<br />

mais próprio dos socos <strong>da</strong> comédia. Que a ca<strong>da</strong> gênero, bem distribuído<br />

ocupe o lugar que lhe compete. (HORACIO, 1984, p.69)<br />

A poesia orna<strong>da</strong> do século XVII é feita, sobretudo, para o homem pru<strong>de</strong>nte <strong>da</strong><br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> corte, capaz <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as regras do <strong>de</strong>coro e as nuances <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za <strong>da</strong>s obras<br />

barrocas. Hansen (1989, p.257) <strong>de</strong>clara que “a agu<strong>de</strong>za não é individual, mas social, no<br />

sentido forte <strong>de</strong> estilo, estilo <strong>de</strong> época”. Destarte, lança mão <strong>da</strong> concepção <strong>de</strong> ut pictura poesis<br />

horaciana para esclarecer a “obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>da</strong> poesia barroca. Numa análise <strong>da</strong> sátira <strong>de</strong><br />

Gregório <strong>de</strong> Matos para explicar sua “<strong>de</strong>formação programática”, <strong>de</strong>clara que:<br />

“Em termos <strong>de</strong> ut pictura poesis, a sátira ajusta a distância apropria<strong>da</strong> que o<br />

receptor <strong>de</strong>ve assumir frente às <strong>de</strong>formações para mais e para menos quando<br />

faz a voz grave e séria <strong>da</strong> enunciação tematizar as mesmas <strong>de</strong>formações,<br />

conferindo-lhes o sentido disfórico capturado pela interpretação pru<strong>de</strong>nte”.<br />

(ib., id., p.256)<br />

Portanto, o Padre Antonio <strong>da</strong> Fonseca, ao construir sua poesia, foi guiado pelos<br />

princípios <strong>da</strong> invenção barroca, que prezava as tópicas, e pela prática <strong>da</strong> expressão orna<strong>da</strong>,<br />

princípios estes inerentes às obras, capazes <strong>de</strong> serem apreciados e entendidos pela recepção. O<br />

conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>coro clássico continuava a ser a idéia central <strong>da</strong> construção estética, entretanto<br />

o homem letrado do século XVII a<strong>de</strong>quou a ele os seus tão cultuados princípios <strong>de</strong> agu<strong>de</strong>za.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 158-164, 2008<br />

164


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

O caráter dêitico <strong>da</strong>s androktasiai em Ilía<strong>da</strong>, XI<br />

Caroline Evangelista LOPES<br />

G – (PIBIC) – FFLCH – USP<br />

caroline.lopes@usp.br<br />

A poesia homérica é foco <strong>de</strong> estudos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento <strong>da</strong> filologia até os dias atuais.<br />

Tamanha importância não <strong>de</strong>corre somente do fato <strong>de</strong> ser a base <strong>de</strong> boa parte <strong>da</strong> literatura<br />

oci<strong>de</strong>ntal, mas <strong>de</strong> levantar questões referentes ao contexto do período em que foi<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>, ferramentas que levam a enten<strong>de</strong>r melhor esse período. Uma <strong>da</strong>s questões<br />

centrais aos homeristas refere-se à composição e transmissão dos poemas: <strong>de</strong> que modo a<br />

poesia monumental <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro foi construí<strong>da</strong> e se propagou. Fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Milmam Parry e<br />

Albert B. Lord, esta escola mo<strong>de</strong>rna foi a primeira a elaborar uma teoria oral abrangendo<br />

todos os momentos <strong>da</strong> composição, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a formação dos poetas até a composição durante<br />

apresentação pública (performance poética). Segundo a teoria Parry-Lord, a composição<br />

durante a apresentação do poeta diante <strong>de</strong> uma platéia subenten<strong>de</strong> todo um processo complexo<br />

<strong>de</strong> aprendizagem; o poeta-cantor começaria ain<strong>da</strong> criança a apreen<strong>de</strong>r, <strong>de</strong> outros poetas,<br />

canções, o que implica a tradição <strong>da</strong> cultura oral e suas ferramentas <strong>de</strong> transmissão e<br />

composição. Essas ferramentas são, no caso <strong>da</strong> poesia oral do período arcaico na Grécia,<br />

fórmulas e temas1 .<br />

Fórmula é um grupo <strong>de</strong> palavras ou bloco <strong>de</strong> versos utilizados sempre sob as mesmas<br />

condições métricas e contextuais, indicando uma idéia básica. Como nas passagens abaixo:<br />

Phlhi£<strong>de</strong>w 'AcilÁoj (Il,I,1)<br />

d√oj 'AcilleÚj (Il,I,7)<br />

pÒ<strong>da</strong>j çkÚj 'Acilleàj (Il,I,58)<br />

To<strong>da</strong>s as passagens acima indicam unicamente Aquiles, sua idéia básica. Essa é a<br />

primeira <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> fórmula, adota<strong>da</strong> tanto por Parry quanto por Lord, mas entre a maioria<br />

dos pesquisadores posteriores não há opinião unânime sobre o que seria <strong>de</strong> fato uma fórmula,<br />

pois afirmam que a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> acima é muito ampla e vaga – qualquer<br />

combinação <strong>de</strong> palavras po<strong>de</strong>ria ser uma fórmula <strong>de</strong>ntro do hexâmetro.<br />

Também a <strong>de</strong>finição do que é um tema abarca variações consi<strong>de</strong>ráveis. Para Lord,<br />

tema são grupos <strong>de</strong> idéias recorrentes nos poemas, não reproduzi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> forma exata, palavra<br />

por palavra, que estruturam a narração (1960, p. 68). Já Irene J. F. Jong (2001) separa essa<br />

<strong>de</strong>finição inicial em três categorias: motivo, tema e cena típica. Motivo seria uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

1 Há ain<strong>da</strong> uma terceira ferramenta: o enredo. Apesar <strong>de</strong> importante, o enredo não <strong>de</strong>sempenha um papel<br />

significativo na pesquisa que será <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>.


narrativa mínima recorrente, já tema seria “um tópico recorrente que é essencial para a<br />

narrativa como um todo”. Por sua vez, cena típica seria “(...) um bloco recorrente <strong>de</strong><br />

narrativa com uma estrutura i<strong>de</strong>ntificável e freqüentemente em linguagem idêntica,<br />

<strong>de</strong>screvendo ações recorrentes do dia-a-dia (por exemplo as cenas típicas <strong>de</strong> sacrifício)”.<br />

Seguindo essa <strong>de</strong>finição, o tema serviria para estruturar a narração em seu aspecto geral,<br />

enquanto que, em um nível narrativo menor, as cenas típicas exerceriam a mesma função.<br />

Além disso, essas cenas po<strong>de</strong>m ser comprimi<strong>da</strong>s e expandi<strong>da</strong>s, e a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> seus elementos<br />

altera<strong>da</strong> - manipulações que as tornam instrumentos narrativos po<strong>de</strong>rosos (JONG, 2001, p.<br />

XIX) 2 . Logo, cenas típicas são ações do cotidiano <strong>de</strong>scritas em linguagem padrão que po<strong>de</strong>m<br />

ser abrevia<strong>da</strong>s ou elabora<strong>da</strong>s segundo as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s do aedo durante a performance.<br />

O uso <strong>de</strong> material temático tem importância funcional tanto na construção do poema<br />

quanto na manutenção <strong>de</strong> um poema épico. A combinação dos motivos tradicionais e do<br />

material temático com a elaboração <strong>da</strong> épica resulta na riqueza e no vivo colorido <strong>da</strong> narração.<br />

Em especial na Ilía<strong>da</strong>, o colorido e a vivência <strong>da</strong> experiência guerreira são resultados <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>scrição minuciosa <strong>da</strong>s cenas <strong>de</strong> combate. É através <strong>de</strong>las que personagens principais<br />

reafirmam sua importância na narrativa, e os principais acontecimentos ganham passagem<br />

para se realizarem.<br />

Dentro <strong>da</strong>s cenas <strong>de</strong> batalha, um motivo recorrente e não menos importante são as<br />

androktasiai: <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> ferimentos e morte dos guerreiros, responsáveis pela sensação <strong>de</strong><br />

vivenciamento <strong>da</strong> ação e <strong>da</strong> geração <strong>de</strong> pathos no ouvinte. Como nota Charles Rowan Beye<br />

(1964, p. 345), as cenas <strong>de</strong> duelo nos poemas homéricos po<strong>de</strong>m ser compara<strong>da</strong>s a listas<br />

semelhantes ao catálogo <strong>da</strong>s naus: “(...) peças isola<strong>da</strong>s <strong>de</strong> informação que obtêm uma mo<strong>de</strong>sta<br />

coerência pelo simples fato <strong>da</strong> justaposição” 3 . Estas listas são forma<strong>da</strong>s por itens (pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong><br />

informação que juntos formam uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> narrativa maior). No caso do catálogo <strong>da</strong>s naus,<br />

os itens têm caráter mais nominal; já nas androktasiai, a ação, ou seja, o caráter verbal<br />

predomina. Os itens po<strong>de</strong>m ser divididos segundo a seguinte estrutura:<br />

• Informação básica: nome do assassino e <strong>da</strong> vítima;<br />

2 “type-scene: a recurrent block of narrative with an i<strong>de</strong>ntifiable structure and often in i<strong>de</strong>ntical language, <strong>de</strong>scribing<br />

recurrent actions of every<strong>da</strong>y life (e.g., the ‘sacrifice’ type-scene). Type-scene can be compressed and expan<strong>de</strong>d, and the<br />

or<strong>de</strong>r of their elements changed. These manipulations turn them into powerful narrative instruments, e.g., they place accents<br />

or create – surprising or dramatic – effects.”.<br />

3 “...isolated pieces of information that gain a mo<strong>de</strong>st coherence or unity by the simple fact of justaposition”.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

166


• Informação individualizante 4 : mitos, len<strong>da</strong>s ou estórias liga<strong>da</strong>s à vítima, geralmente<br />

introduzindo a família ou alguma outra informação que individualize o guerreiro que será<br />

morto;<br />

• Informação contextual: <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> como a vítima foi morta 5 .<br />

Apesar <strong>de</strong> importantes ao caráter <strong>da</strong> poesia épica, as androktasiai mantêm<br />

in<strong>de</strong>pendência <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s narrativas, formando elas mesmas uma única uni<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

como já foi explicita<strong>da</strong>. Essa in<strong>de</strong>pendência é <strong>de</strong>staca<strong>da</strong> pela necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma introdução<br />

no início <strong>da</strong> cena, fator que ain<strong>da</strong> mu<strong>da</strong> o ritmo <strong>da</strong> narrativa. 6 Scott Richardson nota que a<br />

introdução <strong>da</strong>s personagens não visa estabelecer sua importância, mas auxiliar na avaliação <strong>da</strong><br />

cena em questão, variando a ênfase nas características necessárias conforme a cena. Essa<br />

pausa interrompe o fluxo narrativo para mol<strong>da</strong>r a percepção <strong>da</strong> narrativa, ligando-se à própria<br />

performance do poeta. Da mesma forma que a introdução, a informação individualizante tem<br />

a mesma função: “não primariamente contribuir para o retrato <strong>da</strong> personagem, mas também<br />

enriquecer a cena” (1990, p. 45). 7 Ela também mu<strong>da</strong> o ritmo e a linguagem <strong>da</strong> narrativa para<br />

individualizar a vítima, mostrando sua família e a conseqüente lacuna que sua morte causará,<br />

ao mesmo tempo em que ressalta seu momento <strong>de</strong> glória: lutar e ser morto em combate ain<strong>da</strong><br />

jovem.<br />

A pesquisa <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> teve como foco o exame <strong>da</strong>s cenas <strong>de</strong> androktasiai do canto<br />

XI <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> construção verbal nelas utiliza<strong>da</strong>s. Para tal análise, as teses<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por Albert Rijksbaron (1997) e Egbert. G. Bakker (2005) foram principal ponto<br />

<strong>de</strong> parti<strong>da</strong>. Eles apresentam o aoristo e principalmente o imperfeito como tempos essenciais<br />

4 No texto <strong>de</strong> BEYE (1964), o termo usado no ingles é “anecto<strong>de</strong>”, difícil <strong>de</strong> traduzir no português, pois<br />

“anedota” apresenta o sentido <strong>de</strong> história engraça<strong>da</strong> sobre algo ou alguém. Logo, como o objetivo <strong>da</strong> chama<strong>da</strong><br />

“anecdote” é individualizar o guerreiro, optei por adotar os termos informação individualizante, até a escolha <strong>de</strong><br />

um termo mais a<strong>de</strong>quado.<br />

5KIRK (1990: 25) admite a mesma divisão nas cenas <strong>de</strong> duelo: “No <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s disputas individuais a<br />

vítima é <strong>de</strong>scrita no chamado padrão ABC: A, informação básica (seu nome, patronímico, ci<strong>da</strong><strong>de</strong>); B,<br />

informação individualizante, freqüentemente patética (ex.: ele é rico e hospitaleiro, ou filho único, ou bastardo);<br />

C, resumo e <strong>de</strong>talhes <strong>da</strong> morte (ele foi morto <strong>de</strong> tal e tal maneira)” [“In <strong>de</strong>veloped individual contests the victim<br />

is <strong>de</strong>scribed in teh so called ABC pattern: A, basic information (his name, patronimic, city); B, anecdotal<br />

information, often pathetic (e.g. He is rich and hospitable, or na only son, or a bastard); C, resumption and <strong>de</strong>tails<br />

of <strong>de</strong>ath (He was killed in such-and-such-away).”]. Ambas divisões são basea<strong>da</strong>s nos estudos <strong>de</strong> G. Strasburger<br />

(1954)<br />

6 BEYE (1964: 352-353).“A necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> introduções assim como a mu<strong>da</strong>nça na textura narrativa que elas<br />

causam ten<strong>de</strong>m a aumentar a sensação <strong>de</strong> que as androktasiai não são ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iramente orgânicas em seus<br />

contextos e que o poeta estava consciente disso” [“The need for introductions, as well the change in narrative<br />

texture that they cause, tends to give rise to the feeling that the androktasiai are not truly organic in their context<br />

and that the poet himself was conscious of this”].<br />

7 “Nevertheless, the anecdote does in<strong>de</strong>ed serve essentialy the same purpose, not primarily to contribute to the<br />

portrait of the character as such but to enrich the scene” .<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

167


para a estruturação <strong>da</strong> narração. Rijksbaron no artigo “The discourse function of the<br />

imperfect” 8 discute a função dos tempos no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> narrativa; para ele “o<br />

presente do indicativo não é um tempo absoluto (...) mas, um tempo relativo, um tempo on<strong>de</strong><br />

o ponto <strong>de</strong> referência para a localização <strong>de</strong> uma situação é <strong>da</strong>do em alguns pontos do tempo<br />

pelo contexto” 9 , sendo que o habitual, o omnitemporal e o presente são os formadores do<br />

valor do próprio presente, os valores do passado e do futuro também são <strong>da</strong>dos pelo<br />

contexto 10 . Quanto ao passado, o imperfeito seria um tempo absoluto, pois teria como<br />

referência absoluta o momento <strong>de</strong> fala, não uma ação acaba<strong>da</strong>, mas uma ação em an<strong>da</strong>mento a<br />

partir <strong>de</strong> um momento <strong>da</strong>do no passado. Já o aoristo exerceria duas funções: primeiro como<br />

um passado perfeito e, em segundo plano, como um perfeito geral. O aoristo sempre expressa<br />

uma ação concluí<strong>da</strong>, não sendo, necessariamente, temporalmente fixado (o valor do passado<br />

estaria ligado ao momento <strong>da</strong> fala). Na escala <strong>de</strong> funcionali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma narrativa, o<br />

aoristo dá a direção <strong>da</strong> narrativa, pois, virtualmente, uma narrativa contendo apenas<br />

imperfeitos não mostraria nenhum progresso. Já o imperfeito assume duas funções relativas<br />

ao nível narrativo: no nível <strong>de</strong> uma pequena escala <strong>de</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> narrativa, ele serve como<br />

âncora temporal para os eventos; em uma larga escala, ele estabelece coesão entre diferentes<br />

partes <strong>da</strong> narrativa, caso essa seja interrompi<strong>da</strong>. 11<br />

Por sua vez, no capítulo “Mimesis as performance” do livro Pointing to the past,<br />

Bakker (2005, p. 57-80) <strong>de</strong>senvolve uma análise a respeito dos usos do imperfeito e do aoristo<br />

na construção <strong>da</strong> épica, baseando-se no contexto <strong>de</strong> enunciação, ou seja, a performance, para<br />

evi<strong>de</strong>nciar o caráter dêitico-temporal <strong>de</strong>sses tempos. Ele a apresenta sob o olhar do poeta em<br />

frente à audiência ‘<strong>de</strong>sejando recriar os eventos heróicos do passado’, recorrendo à mi/mhsij<br />

como uma personificação dos próprios personagens. O narrador homérico assumiria a visão<br />

<strong>de</strong> seus personagens, <strong>de</strong>screvendo o quê vê ao narrar e atuando como se presenciasse os fatos,<br />

representando a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> do poema. É isso que torna a poesia homérica tão visual e concreta<br />

8 Cf. RIJKSBARON (1988:236-254).<br />

9IDEM, p.240: “this could be taken to mean that the verb form as such does not provi<strong>de</strong> specific temporal<br />

information, and, consequently, that the present indicative is not an absolute tense, i.e. a tense ‘which inclu<strong>de</strong>s as<br />

part of its meaning the present moment as <strong>de</strong>ictic center’ (Comrie 1985: 36), but, rather, a relative tense, i.e. a<br />

tense ‘qhere the reference point for location of a situation is some point of time given by the context’ (Comrie<br />

1985: 56).”<br />

10Habitual: referência a enti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>s. Omnitemporal: referências genéricas, valor universal,<br />

temporalmente irrestrita. Tanto o valor habitual quanto o omnitemporal são <strong>de</strong>finidos no momento <strong>de</strong> fala.<br />

11 Cf. RIJKSBARON (1988:242-244).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

168


– características imanentes <strong>da</strong> tradição oral: “Se algo tem <strong>de</strong> ser fácil para relembrar, isto <strong>de</strong>ve<br />

ser fácil para imaginar e visualizar”. 12<br />

Tais características do narrador homérico interferem no momento <strong>de</strong> enunciação,<br />

como fica evi<strong>de</strong>nte através dos dêiticos, que são reflexos dos actantes (enten<strong>de</strong>ndo o poeta<br />

oral como locutor e a audiência como <strong>de</strong>stinatário) 13 , do tempo e do espaço no texto<br />

enunciado. Para Bakker, o tempo <strong>da</strong> enunciação do poeta oral é basicamente o presente –<br />

tempo não marcado morfologicamente: “a ausência do sufixo temporal significa que ele não é<br />

nem um passado nem um futuro e, no mesmo lance, o torna disponível para qualquer uma <strong>da</strong>s<br />

três épocas” (JEAN CERVONE, 1989, p. 36).<br />

É o contexto <strong>da</strong> enunciação que <strong>de</strong>fine a marcação temporal. Baseando-se nessa<br />

análise, o pesquisador no capítulo Similes, augment, and the language of immediacy,<br />

<strong>de</strong>senvolve uma análise <strong>de</strong>talha<strong>da</strong> do uso ou não do aumento verbal nos aoristos em <strong>Home</strong>ro.<br />

Ele parte <strong>da</strong> teoria, <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> também por Pierre Chantraine, que o aumento verbal seria,<br />

originalmente, um advérbio prece<strong>de</strong>nte ao verbo em <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s circunstâncias, e que com o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> língua arcaica, tornou-se sufixo obrigatório em tempos passados no modo<br />

indicativo. Os poemas homéricos aparentemente são frutos <strong>de</strong> um processo intermediário,<br />

pois ora o aumento verbal é usado e ora omitido. Foi pesando essa variação, que Bakker<br />

observa na Ilía<strong>da</strong> quais são os contextos em que o aumento verbal é omitido ou não 14 ,<br />

utilizando-se, <strong>da</strong> diferenciação feita por Emile Benveniste (1966, p. 238-245 apud. BAKKER<br />

2005, p.117) entre história e discurso: o primeiro, um discurso objetivo e voltado ao passado,<br />

enquanto o segundo, um discurso subjetivo em que o tempo <strong>de</strong> referência é o presente. Bakker<br />

nota que o aumento é mais freqüente em falas do que em narrativas, pois a <strong>de</strong>limitação<br />

temporal do passado é <strong>da</strong><strong>da</strong> no contexto <strong>da</strong> própria narração; já nas falas, como o contexto<br />

passado não é tão evi<strong>de</strong>nte, o aumento torna-se necessário.<br />

1. O aumento verbal é favorecido em:<br />

a. Discurso ligado ao ‘agora’ do falante,<br />

b. Introduções <strong>de</strong> falas,<br />

12 IDEM. “ If something is to be easy to remember, it must be easy to image and visualize” p.65<br />

13 Essa comparação toma por base o diálogo direto entre o aedo e sua audiência, posto que ambos compartilham<br />

não só <strong>da</strong> mesma competência lingüística mas também <strong>da</strong> mesma competência interdiscursiva (a tradição, no<br />

sentido que Foley emprega no livro <strong>Home</strong>r’s traditional art.) e situacional – sendo a imagem que o locutor tem<br />

do alocutário essencial para a formação do poema.<br />

14<br />

Limitando sua pesquisa ao estudo <strong>da</strong>s formas no aoristo indicativo, <strong>de</strong>vido ‘a complicações próprias do<br />

imperfeito’.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

169


c. Símiles,<br />

d. Provérbios e ‘ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s gerais’.<br />

2. O aumento verbal é <strong>de</strong>sfavorecido em:<br />

a. Verbos que marcam eventos fora <strong>da</strong> narrativa,<br />

b. Verbos nas orações introduzi<strong>da</strong>s por fipei, tanto na narrativa<br />

quanto no discurso (somente quando indicar tempo),<br />

c. Verbos em orações negativas,<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

d. Verbos com infixo -sk- .<br />

Bakker conclui que o aumento é um sufixo dêitico, que marca um evento próximo ao<br />

presente do falante e sua situação imediata. Assim como tudo o que o poeta usa para trazer,<br />

até a audiência, o presente <strong>da</strong> narrativa, o aumento seria mais uma ferramenta <strong>da</strong> ‘linguagem<br />

do imediato’ 15 usa<strong>da</strong> quando o narrador tenta tornar a ação mais próxima <strong>da</strong> audiência: “O<br />

tempo presente e os aoristos aumentados nos símiles evocam, <strong>de</strong> fato pressupõem a<br />

presença.” 16<br />

Baseando-se nesses pressupostos teóricos, as seguintes passagens foram analisa<strong>da</strong>s:<br />

1. Abate <strong>de</strong> Biênor e Oileu:<br />

(...) e0n d’ 0Agam/emnwn<br />

prîtoj Ôrous', Ÿle d' ¥ndra Bi£nora poim◊na laî<br />

aÙtÒn, ⁄peita d' Œta√ron 'OilÁa plˇxippon.<br />

½toi Ó g' œx ∑ppwn katep£lmenoj ¢nt∂oj ⁄sth·<br />

tÕn d' ≥qÝj memaîta metèpion Ñx◊i dourπ<br />

nÚx', oÙd‹ stef£nh dÒru o≤ sc◊qe calkob£reia,<br />

¢ll¦ di' aÙtÁj Ãlqe kaπ Ñst◊ou, œgk◊faloj d‹<br />

⁄ndon ¤paj pep£lakto· d£masse d◊ min memaîta.<br />

kaπ toÝj m‹n l∂pen aâqi ¥nax ¢ndrîn 'Agam◊mnwn<br />

stˇqesi pamfa∂nontaj, œpeπ klut¦ teÚce' ¢phÚra:<br />

(Il, XI, 91-100)<br />

2. Abate <strong>de</strong> Iso e Ântifo:<br />

aÙt¦r Ö bÁ ’IsÒn te kaπ ”Antifon œxenar∂xwn<br />

uƒe dÚw Pri£moio nÒqon kaπ gnˇsion ¥mfw<br />

e≥n Œnπ d∂frJ œÒntaj· Ö m‹n nÒqoj ¹niÒceuen,<br />

”Antifoj aâ par◊baske periklutÒj· é pot' 'AcilleÝj<br />

”Idhj œn knhmo√si d∂dh mÒscoisi lÚgoisi,<br />

poima∂nont' œp' Ôessi labèn, kaπ ⁄lusen ¢po∂nwn.<br />

d¾ tÒte g' 'Atre…dhj eÙrÝ kre∂wn 'Agam◊mnwn<br />

15 Linguagem do imediato é tudo o que o interlocutor utiliza para representar o seu contexto tempo-espacial, ou<br />

seja, advérbios, partículas, preposições e outros.<br />

16<br />

BAKKER (2005: 135) “ The present tense and augmented aorists in the símiles evoke, in<strong>de</strong>ed presuppose<br />

presence”.<br />

170


tÕn m‹n Øp‹r mazo√o kat¦ stÁqoj b£le dour∂,<br />

”Antifon aâ par¦ oâj ⁄lase x∂fei, œk d' ⁄bal' ∑ppwn.<br />

spercÒmenoj d' ¢pÕ to√in œsÚla teÚcea kal¦<br />

gignèskwn· kaπ g£r sfe p£roj par¦ nhusπ qoÍsin<br />

e≈<strong>de</strong>n, Ót' œx ”Idhj ¥gagen pÒ<strong>da</strong>j çkÝj 'AcilleÚj.<br />

æj d‹ l◊wn œl£foio tace∂hj nˇpia t◊kna<br />

˛hid∂wj sun◊axe labën kratero√sin Ñdoàsin<br />

œlqën e≥j eÙnˇn, ¡palÒn t◊ sf' Ãtor ¢phÚra·<br />

¿ d' e∏ p◊r te tÚcVsi m£la scedÒn, oÙ dÚnata∂ sfi<br />

craisme√n· aÙt¾n g£r min ØpÕ trÒmoj a≥nÕj ≤k£nei·<br />

karpal∂mwj d' ½ixe di¦ drum¦ pukn¦ kaπ Ûlhn<br />

speÚdous' ≤drèousa krataioà qhrÕj Øf' ÐrmÁj·<br />

ìj ¥ra to√j oÜ tij dÚnato craismÁsai Ôleqron<br />

Trèwn, ¢ll¦ kaπ aÙtoπ Øp' 'Arge∂oisi f◊bonto.<br />

(Il, XI, 101-122)<br />

3. Abate <strong>de</strong> Pisandro e Hipóloco:<br />

AÙt¦r Ö Pe∂sandrÒn te kaπ `IppÒlocon menec£rmhn<br />

u≤◊aj 'Antim£coio <strong>da</strong>…fronoj, Ój ˛a m£lista<br />

crusÕn 'Alex£ndroio <strong>de</strong><strong>de</strong>gm◊noj ¢gla¦ dîra<br />

oÙk e∏asc' `El◊nhn dÒmenai xanqù Menel£J,<br />

toà per d¾ dÚo pa√<strong>de</strong> l£be kre∂wn 'Agam◊mnwn<br />

e≥n Œnπ d∂frJ œÒntaj, Ðmoà d' ⁄con çk◊aj ∑ppouj·<br />

œk g£r sfeaj ceirîn fÚgon ¹n∂a sigalÒenta,<br />

të d‹ kukhqˇthn· Ö d' œnant∂on ðrto l◊wn ìj<br />

'Atre…dhj· të d' aât' œk d∂frou gounaz◊sqhn·<br />

zègrei 'Atr◊oj u≤◊, sÝ d' ¥xia d◊xai ¥poina·<br />

poll¦ d' œn 'Antim£coio dÒmoij keimˇlia ke√tai<br />

calkÒj te crusÒj te polÚkmhtÒj te s∂dhroj,<br />

tîn k◊n toi car∂saito pat¾r ¢pere∂si' ¥poina,<br />

e≥ nîi zwoÝj pepÚqoit' œpπ nhusπn 'Acaiîn.<br />

flWj tè ge kla∂onte prosaudˇthn basilÁa<br />

meilic∂oij œp◊essin· ¢me∂likton d' Ôp' ¥kousan·<br />

e≥ m‹n d¾ 'Antim£coio <strong>da</strong>…fronoj u≤◊ej œstÒn,<br />

Ój pot' œnπ Trèwn ¢gorÍ Men◊laon ¥nwgen<br />

¢ggel∂hn œlqÒnta sÝn ¢ntiq◊J 'OdusÁi<br />

aâqi katakte√nai mhd' œx◊men ¨y œj 'AcaioÚj,<br />

nàn m‹n d¾ toà patrÕj ¢eik◊a t∂sete lèbhn.<br />

’H, kaπ Pe∂sandron m‹n ¢f' ∑ppwn ðse cam©ze<br />

dourπ balën prÕj stÁqoj· Ö d' Ûptioj oÜ<strong>de</strong>i œre∂sqh.<br />

`IppÒlocoj d' ¢pÒrouse, tÕn aâ camaπ œxen£rixe<br />

ce√raj ¢pÕ x∂fei tmˇxaj ¢pÒ t' aÙc◊na kÒyaj,<br />

Ólmon d' ìj ⁄sseue kul∂n<strong>de</strong>sqai di' Ðm∂lou.<br />

toÝj m‹n ⁄as'· Ö d' Óqi ple√stai klon◊onto f£laggej,<br />

tÍ ˛' œnÒrous', ¤ma d' ¥lloi œãknˇmi<strong>de</strong>j 'Acaio∂.<br />

(Il, XI, 122-149)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

171


4. Abate <strong>de</strong> Ifi<strong>da</strong>mio.<br />

”Espete nàn moi Moàsai 'OlÚmpia dèmat' ⁄cousai<br />

Ój tij d¾ prîtoj 'Agam◊mnonoj ¢nt∂on Ãlqen<br />

À aÙtîn Trèwn º‹ kleitîn œpikoÚrwn.<br />

'Ifid£maj 'Anthnor∂dhj ºäj te m◊gaj te<br />

Öj tr£fh œn QrÇkV œribèlaki mht◊ri mˇlwn·<br />

KissÁj tÒn g' ⁄qreye dÒmoij ⁄ni tutqÕn œÒnta<br />

mhtrop£twr, Öj t∂kte Qeanë kallip£rVon·<br />

aÙt¦r œpe∂ ˛' ¼bhj œrikud◊oj ∑keto m◊tron,<br />

aÙtoà min kat◊ruke, d∂dou d' Ó ge qugat◊ra ¼n·<br />

gˇmaj d' œk qal£moio met¦ kl◊oj ∑ket' 'Acaiîn<br />

sÝn duoka∂<strong>de</strong>ka nhusπ korwn∂sin, a∑ o≤ Ÿponto.<br />

t¦j m‹n ⁄peit' œn PerkètV l∂pe nÁaj œ…saj,<br />

aÙt¦r Ö pezÕj œën œj ”Ilion e≥lhloÚqei·<br />

Ój ˛a tÒt' 'Atre…<strong>de</strong>w 'Agam◊mnonoj ¢nt∂on Ãlqen.<br />

o∫ d' Óte d¾ scedÕn Ãsan œp' ¢llˇloisin ≥Òntej,<br />

'Atre…dhj m‹n ¤marte, paraπ d◊ o≤ œtr£pet' ⁄gcoj,<br />

'Ifid£maj d‹ kat¦ zènhn qèrhkoj ⁄nerqe<br />

nÚx', œpπ d' aÙtÕj ⁄reise bare∂V ceirπ piqˇsaj·<br />

oÙd' ⁄tore zwstÁra pana∂olon, ¢ll¦ polÝ prπn<br />

¢rgÚrJ ¢ntom◊nh mÒliboj ìj œtr£pet' a≥cmˇ.<br />

kaπ tÒ ge ceirπ labën eÙrÝ kre∂wn 'Agam◊mnwn<br />

Ÿlk' œpπ oƒ memaëj éj te l∂j, œk d' ¥ra ceirÕj<br />

sp£ssato· tÕn d' ¥ori plÁx' aÙc◊na, làse d‹ gu√a.<br />

ìj Ö m‹n aâqi pesën koimˇsato c£lkeon Ûpnon<br />

o≥ktrÕj ¢pÕ mnhstÁj ¢lÒcou, ¢sto√sin ¢rˇgwn,<br />

kourid∂hj, Âj oÜ ti c£rin ∏<strong>de</strong>, poll¦ d' ⁄dwke·<br />

prîq' ŒkatÕn boàj dîken, ⁄peita d‹ c∂li' Øp◊sth<br />

a≈gaj Ðmoà kaπ Ôij, t£ o≤ ¥speta poima∂nonto.<br />

d¾ tÒte g' 'Atre…dhj 'Agam◊mnwn œxen£rixe,<br />

bÁ d‹ f◊rwn ¢n' Ómilon 'Acaiîn teÚcea kal£.<br />

(Il, XI, 218-247)<br />

5. Abate <strong>de</strong> Cóon.<br />

TÕn d' æj oân œnÒhse KÒwn ¢ri<strong>de</strong>∂ketoj ¢ndrîn<br />

presbugen¾j 'Anthnor∂dhj, kraterÒn ˛£ Œ p◊nqoj<br />

ÑfqalmoÝj œk£luye kasignˇtoio pesÒntoj.<br />

stÁ d' eÙr¦x sÝn dourπ laqën 'Agam◊mnona d√on,<br />

nÚxe d◊ min kat¦ ce√ra m◊shn ¢gkînoj ⁄nerqe,<br />

¢ntikrÝ d‹ di◊sce faeinoà dourÕj ¢kwkˇ.<br />

˛∂ghs◊n t' ¥r' ⁄peita ¥nax ¢ndrîn 'Agam◊mnwn·<br />

¢ll' oÙd' ïj ¢p◊lhge m£chj ºd‹ ptol◊moio,<br />

¢ll' œpÒrouse KÒwni ⁄cwn ¢nemotref‹j ⁄gcoj.<br />

½toi Ö 'Ifid£manta kas∂gnhton kaπ Ôpatron<br />

Ÿlke podÕj memaèj, kaπ ¢ätei p£ntaj ¢r∂stouj·<br />

tÕn d' Ÿlkont' ¢n' Ómilon Øp' ¢sp∂doj Ñmfalo◊sshj<br />

oÜthse xustù calkˇrei, làse d‹ gu√a·<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

172


to√o d' œp' 'Ifid£manti k£rh ¢p◊koye parast£j.<br />

⁄nq' 'Antˇnoroj uƒej Øp' 'Atre…dV basilÁi<br />

pÒtmon ¢naplˇsantej ⁄dun dÒmon ”Aidoj e∏sw.<br />

AÙt¦r Ö tîn ¥llwn œpepwle√to st∂caj ¢ndrîn<br />

⁄gce… t' ¥or∂ te meg£lois∂ te cermad∂oisin,<br />

Ôfr£ o≤ aƒm' ⁄ti qermÕn ¢nˇnoqen œx çteilÁj.<br />

aÙt¦r œpeπ tÕ m‹n Ÿlkoj œt◊rseto, paÚsato d' aƒma,<br />

Ñxe√ai d' ÑdÚnai dànon m◊noj 'Atre…<strong>da</strong>o.<br />

æj d' Ót' ¨n çd∂nousan ⁄cV b◊loj ÑxÝ guna√ka<br />

drimÚ, tÒ te proVie√si mogostÒkoi E≥le∂quiai<br />

“Hrhj qugat◊rej pikr¦j çd√naj ⁄cousai,<br />

ìj Ñxe√' ÑdÚnai dànon m◊noj 'Atre…<strong>da</strong>o.<br />

œj d∂fron d' ¢nÒrouse, kaπ ¹niÒcJ œp◊telle<br />

nhusπn ⁄pi glafurÍsin œlaun◊men· ½cqeto g¦r kÁr.<br />

(Il, XI, 248-274)<br />

6. Abate <strong>de</strong> Múlio.<br />

¢ll' Óte d¾ Pul∂wn kaπ 'Epeiîn ⁄pleto ne√koj,<br />

prîtoj œgën Ÿlon ¥ndra, kÒmissa d‹ mènucaj ∑ppouj,<br />

MoÚlion a≥cmhtˇn· gambrÕj d' Ãn AÙge∂ao,<br />

presbut£thn d‹ qÚgatr' e≈ce xanq¾n 'Agamˇdhn,<br />

¿ tÒsa f£rmaka Édh Ósa tr◊fei eÙre√a cqèn.<br />

tÕn m‹n œgë prosiÒnta b£lon calkˇrei dour∂,<br />

½ripe d' œn kon∂Vsin· œgë d' œj d∂fron ÑroÚsaj<br />

stÁn ˛a met¦ prom£coisin· ¢t¦r meg£qumoi 'Epeioπ<br />

⁄tresan ¥lludij ¥lloj, œpeπ ∏don ¥ndra pesÒnta<br />

¹gemÒn' ≤ppˇwn, Öj ¢risteÚeske m£cesqai.<br />

aÙt¦r œgën œpÒrousa kelainÍ la∂lapi ≈soj,<br />

pentˇkonta d' Ÿlon d∂frouj, dÚo d' ¢mfπj Ÿkaston<br />

fîtej Ñd¦x Ÿlon oâ<strong>da</strong>j œmù ØpÕ dourπ <strong>da</strong>m◊ntej.<br />

(Il, XI, 248-274)<br />

O levantamento 17 <strong>da</strong>s formas aumenta<strong>da</strong>s e não aumenta<strong>da</strong>s dos tempos secundários<br />

do indicativo <strong>da</strong>s androktasiai do canto XI <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> <strong>de</strong>monstrou que as formas não<br />

aumenta<strong>da</strong>s são mais freqüentes, ocorrendo, no total, 68,3%. Esse resultado reforça a teoria <strong>de</strong><br />

Bakker <strong>de</strong> que o aumento verbal é omitido em momentos <strong>da</strong> narração on<strong>de</strong> não se faz<br />

necessária a <strong>de</strong>limitação temporal, pois as androktasiai são performatiza<strong>da</strong>s para o público a<br />

fim <strong>de</strong> não só reafirmar o valor do guerreiro antigo, como também <strong>de</strong> aumentar o pathos<br />

causado, tornando presentes cenas fortes, não só através <strong>da</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong> poética do narrador,<br />

mas pela própria omissão do aumento verbal que posicionaria as ações mais distantes do<br />

público.<br />

17 Levantamento total: Formas aumenta<strong>da</strong>s: 26 ou 31,7%. Formas não-aumenta<strong>da</strong>s: 56 ou 68,3%.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

173


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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 165-175, 2008<br />

175


Metamorfoseando O Asno <strong>de</strong> Ouro: a presença <strong>de</strong> Apuleio em Memórias póstumas <strong>de</strong><br />

Brás Cubas<br />

1. Introdução<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 176-182, 2008<br />

Priscila Maria Mendonça MACHADO<br />

PG (Capes) – FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

pmachado@fclar.unesp.br<br />

Tendo em vista os conceitos sobre intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> que permeiam o universo literário,<br />

a análise a seguir será pauta<strong>da</strong> por um estudo a respeito <strong>da</strong> presença latina no romance<br />

machadiano Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas.<br />

Sabendo-se que todo autor traz para sua obra seu arcabouço <strong>de</strong> influências literárias e<br />

artísticas que cultivou durante a vi<strong>da</strong>, o trabalho <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é caracterizar ca<strong>da</strong> uma<br />

<strong>de</strong>las e <strong>de</strong>monstrar o seu papel na obra.<br />

Machado <strong>de</strong> Assis não é diferente. Em suas obras, o autor traz a tona seu<br />

conhecimento sobre diversas culturas em seus mais diversos tempos. Muitas são as culturas<br />

cita<strong>da</strong>s e muitos são os livros em que tal recurso surge, mas a análise em questão tomará para<br />

si a presença latina, mais especificamente o livro O Asno <strong>de</strong> Ouro, <strong>de</strong> Apuleio, no romance<br />

machadiano Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas.<br />

Tal análise será calca<strong>da</strong> na transformação do narrador nas duas obras, bem como<br />

outros aspectos semelhantes entre si, nas obras em questão.<br />

Assim sendo, tem-se o estudo sobre a intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e seu papel nas narrativas em<br />

questão.<br />

2. Intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> machadiana<br />

Tomando por pressuposto a conheci<strong>da</strong> e sabi<strong>da</strong> asserção <strong>de</strong> que a literatura latina tem<br />

forte e marca<strong>da</strong> ascendência, direta e indireta, sobre os textos contemporâneos, esta análise<br />

procurará conduzir um estudo que será pautado pelo levantamento <strong>da</strong> ocorrência proveniente<br />

<strong>da</strong> tradição literária latina verifica<strong>da</strong> num <strong>de</strong>terminado córpus <strong>da</strong> literatura brasileira. O<br />

recorte proposto tomará, como córpus o romance Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas <strong>de</strong><br />

Machado <strong>de</strong> Assis. A escolha <strong>de</strong> Machado motiva-se pela gran<strong>de</strong> relevância do autor na


literatura brasileira, ao passo que a opção por esse romance <strong>de</strong>ve-se pela forte e <strong>de</strong>fini<strong>da</strong><br />

presença <strong>de</strong> referências à literatura latina que permeiam as peripécias do <strong>de</strong>funto autor. Na<br />

análise em questão se fará o estudo entre o texto machadiano e o texto latino <strong>de</strong> Apuleio.<br />

Impossível negar a presença estrangeira, não só pela freqüência, mas também por sua<br />

integração no romance machadiano, o que <strong>de</strong>ixa manifesta a complexa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

machadiana <strong>de</strong> operar sentidos. Sentidos que se completam e que vêm traduzir o próprio autor<br />

em sua obra. Nota-se nessa prática mais do que um caráter pe<strong>da</strong>gogizante, uma<br />

responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> explorar outras barreiras e somá-las ao seu mundo.<br />

Vale ressaltar que o narrador machadiano utiliza o processo <strong>de</strong> empréstimo, seja<br />

através <strong>de</strong> referências a autores, seja pelo uso <strong>de</strong> citações, sinalizando a presença do<br />

intertexto, como já observou Passos:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 176-182, 2008<br />

por meio <strong>da</strong> escritura, é significativo o ‘outro’ passar a fazer parte <strong>de</strong> uma<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong> textual diferente <strong>da</strong>quela que servia como campo <strong>de</strong> manobra. Tal<br />

estratégia <strong>de</strong>semboca numa ‘relação especular’: a busca <strong>de</strong> se ver refletido<br />

no ‘outro’, em ponto pequeno ou em proporções aumenta<strong>da</strong>s, incluindo-o em<br />

uma órbita <strong>de</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s (PASSOS, 1996, p. 14).<br />

É possível que atualmente tenha se perdido boa parte do referencial que se manifesta<br />

pelas citações e referências, e é por isso que a complexi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> se faz<br />

necessária, para que a poética do empréstimo possa ser analisa<strong>da</strong> e incorpora<strong>da</strong> à<br />

interpretação do todo ficcional. “Isso mostra a importância <strong>de</strong> se revelar, a ca<strong>da</strong> momento, o<br />

estimulante jogo <strong>de</strong> que ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> nós po<strong>de</strong> fazer parte, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que conheça ca<strong>da</strong> fonte e<br />

possa apreen<strong>de</strong>r as insuspeita<strong>da</strong>s relações cria<strong>da</strong>s, ao longo do romance” (PASSOS, 1996, p.<br />

15).<br />

Com Bakhtin o dialogismo passou a ser entendido como vozes <strong>de</strong>ntro do texto sem<br />

ligação com o mundo externo. Mas foi com Kristeva que surgiu o termo intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

calcado naquilo que Bakhtin chama <strong>de</strong> dialogismo, isto é, as relações que todo enunciado<br />

mantém com outros enunciados. Para Bakhtin (1997) todo texto se constitui por meio <strong>de</strong> um<br />

mosaico <strong>de</strong> citações, sendo assim o texto é absorção e transformação <strong>de</strong> um outro, um diálogo<br />

<strong>de</strong> vários textos em uma nova escritura. A intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> não tem haver com o mundo, mas<br />

com a “conversa” com outros textos. Se em todos os textos vê-se a presença <strong>de</strong> discursos já<br />

feitos anteriormente, então todo texto trata-se <strong>de</strong> um intertexto. A partir <strong>de</strong>sse pressuposto<br />

enten<strong>de</strong>mos intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, então, como bem <strong>de</strong>finiu Fiorin como<br />

177


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 176-182, 2008<br />

qualquer referência ao Outro, tomado como posição discursiva: paródias,<br />

alusões, estilizações, citações, ressonâncias, repetições, reproduções <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>los, <strong>de</strong> situações narrativas, <strong>de</strong> personagens, variantes lingüísticas,<br />

lugares comuns, etc (2006, p.165).<br />

No enunciado <strong>de</strong> um texto tem-se ecos e lembranças <strong>de</strong> outros enunciados anteriores.<br />

O novo enunciado trata-se <strong>de</strong> uma resposta aos anteriores, uma vez que “refuta-os, confirmaos,<br />

completa-os, supõe-nos conhecidos e, <strong>de</strong> um modo ou <strong>de</strong> outro, conta com eles”<br />

(BAKHTIN, 1997, p. 316).<br />

O intertexto é a percepção, pelo leitor, <strong>de</strong> relações entre uma obra e outras que a<br />

prece<strong>de</strong>ram ou se lhe seguiram.<br />

Segundo Passos (1995) é <strong>de</strong>ssa forma que Machado <strong>de</strong> Assis age em seu romance,<br />

supondo que seu leitor é conhecedor do recurso que ele trouxe para seu texto, uma vez que é o<br />

leitor que pensa que o texto se refere a outro, po<strong>de</strong>ndo assim utilizar o enunciado anterior para<br />

traduzir pensamentos que só alcançarão seu auge com o reconhecimento do intertexto.<br />

Machado armou para si e para seu leitor. O narrador propõe para sua obra um diálogo,<br />

sendo um tradutor <strong>da</strong>s leituras literárias que compõem seu repertório <strong>de</strong> cultura; “o sentido<br />

duplo <strong>da</strong>s tradições machadianas: tanto implicam o reducionismo implícito ou explícito do<br />

mo<strong>de</strong>lo quanto a manutenção do mesmo sentido básico do ‘original’, atualizado e<br />

‘traduzido’”. (VILLAÇA, 1998, p. 12) Um escritor que é também leitor, e como processo <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação escolhe suas referências, aqueles que alimentaram sua escrita. Nesse processo,<br />

<strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> referências, o autor faz uso <strong>de</strong> diversas fontes, mas para esse momento adotarse-á<br />

a referência clássica.<br />

As literaturas clássicas, não só a latina, mas a grega também, forneceram ao mundo<br />

mo<strong>de</strong>rno protótipos para praticamente to<strong>da</strong>s as formas narrativas existentes. “Os romanos<br />

prestaram uma contribuição extraordinária e original ao <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> formas<br />

narrativas, a extensão e natureza <strong>da</strong> qual raramente, ou talvez nunca, foi <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>mente<br />

aprecia<strong>da</strong>”. (SCHOLES et KELLOG, 1977, p. 47)<br />

O fato é que o autor em questão era gran<strong>de</strong> apreciador <strong>da</strong> cultura clássica. Em seus<br />

romances, esta presença é sempre nota<strong>da</strong>, às vezes não é cita<strong>da</strong> claramente, mas nota-se na<br />

temática usa<strong>da</strong> por Machado. Um caso <strong>de</strong> intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> presente, mesmo que não cita<strong>da</strong><br />

claramente, no romance em questão, é o do livro O asno <strong>de</strong> ouro ou Metamorfoses, <strong>de</strong><br />

Apuleio, como po<strong>de</strong> ser visto a seguir.<br />

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3. A presença <strong>de</strong> Apuleio em Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 176-182, 2008<br />

Ca<strong>da</strong> tempo tem o seu estilo. Mas estu<strong>da</strong>r-lhe as formas mais apura<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

linguagem, <strong>de</strong>sentranhar <strong>de</strong>les mil riquezas, que, à força <strong>de</strong> velhas se fazem<br />

novas, - não me parece que se <strong>de</strong>va <strong>de</strong>sprezar. Nem tudo tinham os antigos,<br />

nem tudo têm os mo<strong>de</strong>rnos; com haveres <strong>de</strong> uns e outros é que se enriquece<br />

o pecúlio comum. (MACHADO DE ASSIS, 2004, p.804)<br />

A obra latina trata-se <strong>da</strong> história <strong>de</strong> um homem que após uma aventura mal-sucedi<strong>da</strong> se<br />

transforma em um burro. Como tal, vive mil peripécias, sempre buscando voltar a sua forma original.<br />

No final Lúcio (homem-burro) tem sua rendição.<br />

Apuleio fez <strong>de</strong> O Asno <strong>de</strong> Ouro uma autêntica obra-prima em que se revela a<br />

preocupação com a ornamentação <strong>da</strong> frase, embora sem sobrecarga <strong>de</strong> recursos estilísticos,<br />

com o realismo <strong>de</strong>scritivo e a força <strong>da</strong> expressão. O clímax <strong>da</strong> narrativa tem a ver com a<br />

regeneração moral do herói que, como burro, apren<strong>de</strong>u o que significa ser um homem. A obra<br />

<strong>de</strong> Apuleio foi consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> por alguns como uma representação alegórica do mito platônico<br />

<strong>de</strong> Fedro: a alma <strong>de</strong>ve morrer para chegar à concepção do divino e sofrer duras provas para<br />

elevar-se até <strong>de</strong>us.<br />

Mas nesse jogo fantástico entre homem e burro nasce o objetivo <strong>de</strong> tudo: o livro.<br />

Lúcio sempre almejou a glória eterna, mas foi preciso uma metamorfose para conseguir<br />

transformar seu papel <strong>de</strong> personagem em narrador.<br />

Machado fez uso do mesmo recurso, necessitando <strong>de</strong> uma metamorfose ain<strong>da</strong> maior, a<br />

metamorfose <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> em morte, fazendo seu personagem pagar com o preço <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> para<br />

po<strong>de</strong>r imortalizar o seu narrador, <strong>de</strong>funto-autor, que conta as peripécias <strong>de</strong> um Brás vivo. É<br />

preciso que a personagem morra para que o narrador nasça. Um jogo <strong>de</strong> sorte com moe<strong>da</strong>s,<br />

em que <strong>de</strong> um lado se tem a vi<strong>da</strong> e do outro a morte. Duas mortes e duas vi<strong>da</strong>s são possíveis<br />

para o ser humano – a morte que leva à vi<strong>da</strong> e a vi<strong>da</strong> que leva à morte. Tendo em vista, que a<br />

morte é começo e fim <strong>de</strong> tudo e que a vi<strong>da</strong> é o percurso a ser trilhado para se voltar a<br />

condição inicial, é em uma pulsão <strong>de</strong> morte que o narrador machadiano nasce.<br />

Machado <strong>de</strong> Assis arma, nas Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, a sua<br />

equação entre o narrador e o personagem com a oposição entre a vi<strong>da</strong><br />

(esperteza) e a morte (ingenui<strong>da</strong><strong>de</strong>), para chegar à incógnita do ‘túmulo’<br />

como metáfora <strong>da</strong> obra (...) Em Apuleio, o personagem Lúcio não morre,<br />

179


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 176-182, 2008<br />

mas tem que vivenciar as agruras <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> no corpo <strong>de</strong> um asno, para<br />

que o narrador experimente a glorificação literária. Machado, com a morte<br />

do personagem, escreve uma ‘estória <strong>de</strong> escritor’. (MOTTA, 2004, p.202)<br />

Nesse percurso <strong>de</strong> metamorfoses dos dois romances, vê-se o diálogo com o leitor, sendo este<br />

manipulado pelo narrador, uma vez que este fornece a sua opinião. Acabando a distância entre o<br />

narrador e seu leitor, acaba a ilusão, a distância estética <strong>de</strong>saparece e o leitor entra no camarim <strong>da</strong><br />

produção literária. “O acordo entre o narrador e o leitor, antecipando a estrutura <strong>da</strong>s histórias<br />

intercala<strong>da</strong>s do projeto narrativo, fiel ao estilo her<strong>da</strong>do <strong>da</strong> tradição, ganha corpo na pele <strong>de</strong><br />

uma nova escritura” (MOTTA, 2004, p.177)<br />

Apuleio mantém uma relação aberta com seu leitor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início: “Da Grécia veio<br />

esta história. Atenção, leitor: ela vai-te alegrar” (APULEIO, 1969, p.15). Machado, por sua<br />

vez, escon<strong>de</strong> na figura do emplasto sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira intenção, construir uma obra literária,<br />

metáfora que só é <strong>de</strong>smascara<strong>da</strong> ao final, quando <strong>de</strong> seu livro <strong>de</strong> negativas tem-se uma<br />

ressalva: o próprio livro.<br />

Da mesma forma como Brás não teve filhos e <strong>de</strong>ixou como único legado sua obra<br />

escritural, Lúcio também não se casou, não teve filhos, mas não morreu, <strong>de</strong>ixando, também, o<br />

fruto <strong>de</strong> sua criação: o livro.<br />

Relação, também, presente entre as duas obras é a retoma<strong>da</strong> do mundo míticomaravilhoso<br />

através <strong>da</strong> figura <strong>da</strong> mãe <strong>da</strong> natureza, Pandora. Se em Apuleio ela vem como sua<br />

salvadora <strong>da</strong> transformação <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> burro: “Venho a ti Lúcio, comovi<strong>da</strong> por tuas preces,<br />

eu, mãe <strong>da</strong> Natureza inteira, dirigente <strong>de</strong> todos os elementos, origem e princípio dos séculos”<br />

(APULEIO, 1969, p.72); em Machado ela surge no momento <strong>de</strong> maior agrura, o <strong>de</strong>lírio:<br />

“Chama-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga” (MACHADO DE ASSIS, 1975,<br />

p. 24). Sendo assim, ambos fecham seu processo metamórfico por meio do míticomaravilhoso.<br />

Dessa forma, o narrador machadiano organizou esses pequenos jogos prontos para<br />

serem <strong>de</strong>cifrados não apenas por seu público, mas também por si mesmo. Po<strong>de</strong>r-se-ia<br />

organizar as relações entre a obra latina e a brasileira <strong>da</strong> seguinte forma:<br />

Narrador-personagem / Narrador-personagem<br />

Glorificação / Imortalização<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 176-182, 2008<br />

Diálogo com o leitor / Diálogo com o leitor<br />

Preço: metamorfose homem-asno / Preço: metamorfose vivo-morto<br />

Saldo: o livro / Saldo: o livro<br />

Uso do mítico-maravilhoso / Uso do mítico-maravilhoso<br />

Um tradutor <strong>da</strong>s tradições que constituem seu repertório <strong>de</strong> cultura, composto não<br />

apenas pelos autores latinos, mas por uma infini<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> influências, que são tão bem<br />

amarra<strong>da</strong>s por sua ironia, as traduzem e criam uma rica possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> composição.<br />

Dessa forma, Machado lançou mão <strong>de</strong> sua formação para construir um interessante e<br />

bem amarrado jogo <strong>de</strong> intertextos pronto para serem <strong>de</strong>sfiados pelo seu leitor, que após entrar<br />

em seu camarim e ver todo o processo ficcional, agora se senta para admirar o resultado.<br />

Machado não usou apenas as referências <strong>de</strong> Apuleio, usou o próprio livro como asno<br />

ao escrever sua história, percorrendo no lombo <strong>de</strong>ste referências <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as peripécias vivi<strong>da</strong>s<br />

por Lúcio.<br />

4. Conclusão<br />

Vê-se, então, que no lombo <strong>de</strong> Apuleio, Machado teceu seu mais surpreen<strong>de</strong>nte<br />

romance. Sacrificando seu personagem para alcançar a glória como narrador, imortalizandose<br />

após morto por meio <strong>de</strong> sua obra escritural, dialogando com seu leitor, mesmo sem ser<br />

totalmente sincero (já que como <strong>de</strong>funto-autor, torna-se impossível julgar suas mesquinharias<br />

<strong>de</strong> Brás Cubas vivo), fazendo uso do mítico-maravilhoso, mesmo que com ironia, assim como<br />

Apuleio, e obtendo em meio a tantas negativas um saldo satisfatório.<br />

Machado <strong>de</strong> Assis, em seu romance, tem a preocupação em tornar seu texto na marca<br />

<strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong>, no seu legado, uma vez que do seu livro <strong>de</strong> negativas o narrador-personagem tira<br />

um único produto: sua obra. Obra que transforma sua vi<strong>da</strong> mesquinha e sua morte<br />

insignificante em monumento vivo. Obra que o mantém vivo através dos tempos. Que lhe traz<br />

a glória eterna e o transforma em monumento escritural. Que nega o <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro fim, e vai<br />

contra a pulsão <strong>de</strong> morte que motiva todo ser humano para a morte, situação inicial e cabal <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong> criatura, que tem como legado transmitir a miséria humana.<br />

181


5. Referências bibliográficas<br />

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: _____. Notas <strong>de</strong><br />

literatura 1. Trad. Jorge <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>. São Paulo: Duas Ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s/Ed. 34, 2003. p. 55-<br />

63.<br />

APULEIO. O Asno <strong>de</strong> Ouro. Introdução, notas e tradução Ruth Guimarães. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Ediouro, 1969.<br />

BAKHTIN, M. Problemas <strong>da</strong> poética <strong>de</strong> Dostoiévski. Tradução, notas e prefácio Paulo<br />

Bezerra. 2ª ed. ver. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Forense Universitária, 1997.<br />

CARDOSO, Zélia <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong>. A Literatura Latina. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.<br />

FIORIN, J. L. Interdiscursivi<strong>da</strong><strong>de</strong> e Intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. In: BRAIT, B.(org.) Bakhtin: outros<br />

conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.<br />

MACHADO DE ASSIS, J. M. Memórias póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

civilização Brasileira; Brasília: INL, 1975. (Edições críticas <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, v.<br />

13).<br />

______________. Obra Completa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar, 2004.<br />

MOTTA, Sérgio Vicente. O Engenho <strong>da</strong> narrativa e sua árvore genealógica: <strong>da</strong>s origens a<br />

Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. São Paulo: Editora UNESP, 2006.<br />

_____________ e RAMOS, Maria Celeste Tommasello (Orgs.). À Ro<strong>da</strong> <strong>de</strong> Memórias<br />

Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas: leituras. Campinas-SP: Alínea Editora, 2006.<br />

PASSOS, G. P. A poética do legado: presença francesa em Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás<br />

Cubas. São Paulo: Annablume, 1995.<br />

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1993.<br />

SCHOLES, R. et KELLOG, R. A natureza <strong>da</strong> narrativa. Trad.: Gert Meyer. São Paulo: Mc<br />

Graw – Hill do Brasil, 1977.<br />

VILLAÇA, A. Machado <strong>de</strong> Assis, tradutor <strong>de</strong> si mesmo. Revista Novos <strong>Estudos</strong> CEBRAP,<br />

São Paulo, v. 51, p. 03-14, 1998.07. 276 f.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 176-182, 2008<br />

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A bela Deusa e sua fera<br />

Na barriga do lobo<br />

Flávia Regina MARQUETTI<br />

Pós-Doutora FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

flaviarm@fclar.unesp.br<br />

Um dos contos mais antigos e difundidos pela literatura e, posteriormente, pelo<br />

cinema é o <strong>da</strong> Bela e a Fera. Sua temática remonta à época <strong>de</strong> Apuléio, que em seu<br />

Metamorfoses apresenta a história <strong>de</strong> Eros e Psique. Eros, <strong>de</strong>us do amor, surge na narrativa<br />

como a personificação do princípio erótico masculino, um monstro, uma ameaça po<strong>de</strong>rosa.<br />

Psique é a bela e jovem mortal, a terceira filha <strong>de</strong> um rei, que é entregue a esse monstro pelos<br />

pais.<br />

Analisando o conto e comparando-o ao mito <strong>de</strong> Eros e Psique, vê-se uma sucessão <strong>de</strong><br />

elementos repetirem-se. A união <strong>da</strong> caçula <strong>de</strong> três irmãs, <strong>de</strong> beleza insuperável, a um<br />

monstro, contra a vonta<strong>de</strong> dos pais, é o motivo temático que norteia os <strong>de</strong>mais motivos que<br />

irão compor o conjunto <strong>de</strong> figuras “banaliza<strong>da</strong>s”, que levam ao arcabouço figurativo <strong>da</strong><br />

Deusa Mãe e seu consorte animal. A banalização já está presente na narrativa <strong>de</strong> Psique, feita<br />

por Apuléio, que se apresenta parcialmente esvazia<strong>da</strong> <strong>de</strong> sua sacrali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é entendi<strong>da</strong><br />

como um relato que leva à divin<strong>da</strong><strong>de</strong> ou ao temor a divin<strong>da</strong><strong>de</strong>. A história <strong>de</strong> Psique é uma<br />

narrativa <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> outra maior, a história <strong>de</strong> Lúcio e os reveses pelos quais este passa após<br />

sua metamorfose em asno.<br />

Psique é <strong>de</strong>scrita possuindo uma beleza “rara, brilhante, ela é a perfeição”. Psique é<br />

adora<strong>da</strong> como uma <strong>de</strong>usa, uma nova Vênus “nasci<strong>da</strong> <strong>da</strong> flor virginal <strong>da</strong> terra”. Augusta,<br />

protagonista do conto A bela e a fera, é apresenta<strong>da</strong> como uma jovem bondosa, sem ambição,<br />

respeitosa e afetuosa para com os pais e é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pelo narrador como “um sol que iluminava<br />

a casa paterna”. Nas duas narrativas, vê-se a associação <strong>da</strong>s jovens à luz, ao brilho do sol e,<br />

portanto, aos tons do ouro. A beleza rara, perfeita e “doura<strong>da</strong>”, presente nas jovens, remete a<br />

Afrodite e a seus adornos, todos em ouro brilhante, e que guar<strong>da</strong>m os semas <strong>de</strong> sua<br />

fertili<strong>da</strong><strong>de</strong>/fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. O ouro, índice máximo <strong>de</strong> riqueza no universo cultural, equivale, nas<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s arcaicas, aos po<strong>de</strong>res <strong>da</strong> Deusa Mãe em propiciar a fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

homem e <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a terra. A própria Afrodite é retrata<strong>da</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro, com belas tranças<br />

doura<strong>da</strong>s. Esta característica física, o brilho, o resplan<strong>de</strong>cer dourado, geralmente associado<br />

aos cabelos <strong>da</strong>s heroínas, não é o único traço figurativo que as levam às suas funções <strong>de</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008


jovens <strong>de</strong>usas, ou seja, <strong>de</strong> propiciadoras <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong>/fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. As provas ou ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong>s por elas retomam esse motivo. No caso <strong>de</strong> Psique, as provas impostas a ela por<br />

Afrodite possuem sempre uma dicotomia que leva <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> à morte e vice-versa.<br />

1. Separar as sementes <strong>de</strong> uma taça (trigo, ceva<strong>da</strong>, milho, papoula, grão-<strong>de</strong>-bico,<br />

lentilha e fava), na qual é auxilia<strong>da</strong> pelas formigas.<br />

2. Trazer um punhado <strong>da</strong> lã doura<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ovelhas divinas, que pastam junto a uma<br />

fonte/bosque nos confins <strong>da</strong> terra, ela é auxilia<strong>da</strong> pelos caniços.<br />

3. A terceira e a quarta provas envolvem um pequeno frasco ou cofre, símile do<br />

sexo/ventre, que <strong>de</strong>ve ser preenchido, na terceira tarefa, pelas águas escuras <strong>da</strong><br />

nascente do Estige e do Cocito, os rios infernais, a águia <strong>de</strong> Zeus a auxilia.<br />

4. Na quarta prova, ela <strong>de</strong>ve encher um pequeno cofre com as águas <strong>da</strong> fonte <strong>da</strong><br />

juventu<strong>de</strong>, ou seja, ela <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>scer ao Ha<strong>de</strong>s e pedir um pouco <strong>de</strong> beleza a<br />

Proserpina - Na volta <strong>de</strong> tal tarefa, que ela consegue realizar auxilia<strong>da</strong> por uma<br />

montanha, Psique não resiste à curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> e abre o cofre, caindo num sono<br />

profundo. Eros, atormentado por sua lembrança, sai a sua procura, a vê dormindo<br />

e a <strong>de</strong>sperta, tocando-a com uma <strong>de</strong> suas setas.<br />

É significativo que Eros a <strong>de</strong>sperte <strong>de</strong> seu sono mortal com uma <strong>de</strong> suas setas, na<br />

análise do Touro/sol, a seta, o falo, o chifre e o raio são intercambiáveis. Eros <strong>de</strong>sperta sua<br />

ama<strong>da</strong> tocando-a com seu falo, ou seja, copulando com ela. A <strong>de</strong>floração, ou festa <strong>da</strong> retira<strong>da</strong><br />

do véu, era para os gregos a gran<strong>de</strong> passagem ritual reserva<strong>da</strong> às jovens, uma vez que estas<br />

<strong>de</strong>ixavam sua condição <strong>de</strong> ninfas/abelhas adormeci<strong>da</strong>s, ou virgens ursas, não submeti<strong>da</strong>s ao<br />

jugo, e assumiam o status <strong>de</strong> esposas e <strong>de</strong> mães.<br />

As tarefas <strong>de</strong> Psique lhe são impostas por Afrodite, já Augusta, a Bela, ocupa-se<br />

voluntariamente <strong>de</strong> três ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, que também conotam as potências geradoras e<br />

fertilizadoras.<br />

Após ser leva<strong>da</strong> para o palácio do Monstro, Augusta entedia-se <strong>de</strong> na<strong>da</strong> fazer e pe<strong>de</strong>:<br />

1. uma roca para fiar com algumas estrigas <strong>de</strong> linho;<br />

2. um bastidor para bor<strong>da</strong>r;<br />

3. com que fazer meias.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 184


A ca<strong>da</strong> amanhecer, os pedidos eram atendidos, ao acor<strong>da</strong>r “o primeiro olhar <strong>de</strong><br />

Augusta é para uma artística roca <strong>de</strong> fiar com estrigas cor <strong>de</strong> ouro na roca”.<br />

A conotação <strong>da</strong> roca <strong>de</strong> fiar doura<strong>da</strong> com o sexo feminino é clara. Além dos semas<br />

curvilíneo, continente e cromático que a faz equivaler ao cinto 1 , o ato <strong>de</strong> fiar/tecer mostra-se<br />

como elo importantíssimo entre a virgem e a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma vez que o tecer está<br />

intimamente ligado ao ato <strong>da</strong> reprodução, e seu produto, o tecido ou fio, ao nascimento. Em<br />

diversas culturas, as jovens virgens são instruí<strong>da</strong>s sobre as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s sexuais ao mesmo<br />

tempo em que apren<strong>de</strong>m a tecer. Entre os gregos, Perséfone é seduzi<strong>da</strong> por Zeus, sob a forma<br />

<strong>de</strong> uma serpente, enquanto tecia numa gruta, aos cui<strong>da</strong>dos <strong>de</strong> Atena, é <strong>de</strong>ssa união que nasce<br />

Dioniso. No santuário <strong>de</strong> Ártemis, em Brauron, foram encontra<strong>da</strong>s inúmeras oferen<strong>da</strong>s têxteis<br />

<strong>de</strong>dica<strong>da</strong>s à <strong>de</strong>usa, que presi<strong>de</strong> o nascimento e o parto. Ariadne oferece a Teseu um fio <strong>de</strong><br />

ouro para que ele retorne do labirinto, ao fazê-lo ela lhe conce<strong>de</strong> nova vi<strong>da</strong>. As Moiras fiam o<br />

<strong>de</strong>stino humano, ou seja, as vi<strong>da</strong>s.<br />

Em contos como Os Sete Corvos, A Bela Adormeci<strong>da</strong> e mesmo Rapunzel, que trança<br />

os cabelos, o ato <strong>de</strong> fiar, tecer ou trançar leva ao nascimento, ao renascimento e/ou à volta a<br />

forma humana dos irmãos, <strong>da</strong> própria heroína ou <strong>de</strong> seus filhos.<br />

O fio dourado, <strong>de</strong>licado e perfeito, que sai <strong>da</strong> roca é um motivo recorrente, esvaziado<br />

<strong>de</strong> seu sentido ritual e sagrado, que o ligava à <strong>de</strong>floração <strong>da</strong> virgem, sua gestação e posterior<br />

nascimento <strong>de</strong> um filho, é sentido apenas como ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> feminina característica do período<br />

retratado pelos contos. Mas seu valor iniciático po<strong>de</strong> ser percebido ain<strong>da</strong> em outro motivo, o<br />

silêncio observado pela heroína durante o ato <strong>de</strong> fiar. Augusta, só no palácio, fia cala<strong>da</strong> por<br />

todo o dia, e só à noite, quando recebe a visita do Monstro, e já interrompeu a fiação, é que<br />

ela fala.<br />

No conto Os sete corvos, a jovem heroína é obriga<strong>da</strong> a fiar completamente cala<strong>da</strong>, por<br />

sete anos, sete camisas (<strong>de</strong> urtiga), uma para ca<strong>da</strong> irmão, para que estes voltem a assumir a<br />

forma humana, <strong>de</strong>ixando a forma <strong>de</strong> corvos. Embora os irmãos retornem durante a noite à<br />

forma humana e lhe façam companhia, Hil<strong>da</strong> não po<strong>de</strong> dirigir-lhes a palavra.<br />

Em a Bela Adormeci<strong>da</strong>, <strong>de</strong> Perrault e dos Grimm, a primeira tentativa <strong>de</strong> fiar <strong>da</strong><br />

jovem princesa é <strong>de</strong>sastrosa, ela cai em um sono/silêncio profundo por cem anos, para só<br />

<strong>de</strong>pois ser <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong> pelo príncipe e conceber dois filhos, Aurora e Dia, ambos marcados<br />

com o signo <strong>da</strong> luz, do sol e do dourado (versão <strong>de</strong> Perrault, tradução <strong>de</strong> Monteiro Lobato).<br />

Nessa versão, Bela Adormeci<strong>da</strong> casa-se com o príncipe em segredo e fica “escondi<strong>da</strong>” <strong>da</strong><br />

1 Conferir análise <strong>da</strong> roca, cinto, sexo feminino em MARQUETTI, F.R. Da sedução e outros perigos. O mito <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>usa Mãe. Tese <strong>de</strong> doutorado, UNESP, 2001.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 185


corte <strong>de</strong>ste por dois anos, até que ele assuma o trono, o que ocorre após a morte do pai, e<br />

revele o seu casamento.<br />

Isola<strong>da</strong>s, silenciosas, as jovens fiam e aguar<strong>da</strong>m, como crisáli<strong>da</strong>s, o momento <strong>de</strong> sua<br />

metamorfose – quando o casulo é rompido e elas assumem seu novo papel na socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, o <strong>de</strong><br />

mãe.<br />

O segundo presente <strong>da</strong>do a Augusta pelo Monstro é um bastidor com vários mo<strong>de</strong>los<br />

e todos os pertences necessários para que ela possa bor<strong>da</strong>r. A jovem, feliz, põe-se “logo a<br />

bor<strong>da</strong>r uma lin<strong>da</strong> almofa<strong>da</strong>, para o Monstro se sentar quando voltasse, à noite”.<br />

O bastidor, assim como a roca, possui os mesmos semas conotados <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> e<br />

fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, chamando a atenção para o fato <strong>de</strong> ser uma “continuação” <strong>da</strong> ação anterior, fiar.<br />

A <strong>de</strong>signação <strong>da</strong> almofa<strong>da</strong> para o Monstro indica, na narrativa, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Augusta<br />

pela volta <strong>de</strong>ste à noite. O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> rever o Monstro é bem explorado por Bruno Bettelheim<br />

em sua análise dos contos <strong>de</strong> fa<strong>da</strong>; Marina Werner e outros estudiosos concor<strong>da</strong>m em ver<br />

nesse <strong>de</strong>sejo o apelo <strong>da</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong> em Bela/Augusta pelo Monstro, em sua<br />

primeira visita.<br />

O terceiro pedido <strong>de</strong> Augusta é “com que fazer meias”, o objeto, em questão, é<br />

in<strong>de</strong>finido, não se po<strong>de</strong> precisar se seriam agulhas ou qualquer outra coisa utiliza<strong>da</strong> para<br />

tecer, <strong>de</strong> qualquer modo, o objeto pedido compõe um conjunto com os dois anteriores e seu<br />

produto final, as meias, indica uma proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>/intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> que foi sendo escalona<strong>da</strong> ao<br />

longo dos objetos. Se na primeira visita ele se <strong>de</strong>ita a seus pés, no chão, na segun<strong>da</strong> e terceira<br />

visitas, quando ela lhe bor<strong>da</strong> a almofa<strong>da</strong>, ele senta-se ao seu lado, indicando uma<br />

aproximação maior. Após o terceiro pedido, com o que fazer meias, o narrador omite o<br />

resultado <strong>da</strong> ação e para quem seriam as meias, assim como também se abstém <strong>de</strong> informar<br />

ao leitor o lugar ocupado pela Fera, junto <strong>de</strong> Bela, nas <strong>de</strong>mais visitas.<br />

Se para Freud em sua análise “do culto fetichista do pé” ou do calçado feminino, o pé<br />

parece ser tomado como mero símbolo substitutivo do pênis <strong>da</strong> mulher, outrora tão<br />

reverenciado e <strong>de</strong>pois perdido; para Bettelheim, “o sapato é um receptáculo pequenino, no<br />

qual po<strong>de</strong>-se inserir uma parte do corpo <strong>de</strong> modo justo, po<strong>de</strong>ndo ser visto como um símbolo<br />

<strong>da</strong> vagina”; as meias compartilhariam o formato e as <strong>de</strong>mais características aponta<strong>da</strong>s para o<br />

sapato, mas apresentariam uma variação, enquanto o sapato, no caso o <strong>de</strong> cristal, é frágil e<br />

não <strong>de</strong>ve ser esticado, pois correria o risco <strong>de</strong> romper-se, como o hímen; as meias são<br />

maleáveis, esticam, são macias e confortáveis, e não correm o risco <strong>de</strong> romperem-se<br />

facilmente, portanto, não po<strong>de</strong>m ser vistas como semelhantes ao hímen, mas sim, ao próprio<br />

sexo feminino após a <strong>de</strong>floração, quando não corre mais o risco <strong>de</strong> sangrar ou romper-se,<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 186


a<strong>da</strong>ptando-se, confortavelmente, prazerosamente, ao pênis, envolvendo-o em sua maciez e<br />

calor.<br />

Só após “fazer as meias” é que Augusta se atreve a pedir ao Monstro que a <strong>de</strong>ixe rever<br />

os pais. Nesse intervalo <strong>de</strong> tempo, po<strong>de</strong>-se supor que a intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> entre Augusta e o Monstro<br />

tornou-se constante.<br />

No mito <strong>de</strong> Psique a união entre esta e Eros é bem evi<strong>de</strong>ncia<strong>da</strong>, ela está grávi<strong>da</strong><br />

quando o vai procurar. Já no conto O Monstro Peludo, a <strong>de</strong>floração <strong>de</strong> Augusta é apenas<br />

sugeri<strong>da</strong> pelos presentes <strong>da</strong>dos a ela pelo Monstro, mas a mensagem é reforça<strong>da</strong> ao longo do<br />

conto em um motivo que se tornará um dos tópoi, não só dos contos maravilhosos, mas<br />

também dos romances românticos: é o motivo <strong>da</strong> fuga, ou corri<strong>da</strong>, através <strong>da</strong> floresta, na qual<br />

a jovem se fere e rasga suas vestes.<br />

No conto Augusta consegue do Monstro a permissão para rever os pais, ele lhe dá sete<br />

dias, findo os quais, ela <strong>de</strong>verá voltar se não o fizer, ele perecerá. Augusta adia em <strong>da</strong>r a<br />

notícia <strong>de</strong> sua parti<strong>da</strong> para os pais e, só no último dia, ao anoitecer, é que ela parte em meio<br />

às trevas, ela chega ao local combinado, mas o Monstro não está mais lá, Augusta então: “Na<br />

tar<strong>de</strong> do segundo dia, com os vestidos <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çados pelos espinhos, as mãos e os pés<br />

sangrando, avistou finalmente o castelo” (BEETZ, 1939, p.156).<br />

Os vestidos assumem, nos contos, o lugar do véu <strong>de</strong> Afrodite e outras Korai, nessa<br />

corri<strong>da</strong> através <strong>da</strong> floresta eles são rasgados, <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çados pelos espinhos, que também ferem<br />

e fazem sangrar as mãos e os pés <strong>da</strong> jovem.<br />

A análise <strong>da</strong>s representações do Paleolítico e do Neolítico <strong>da</strong> Deusa Mãe mostrou que<br />

os punhos e tornozelos eram intercambiáveis, na figurativização do erótico para os primeiros<br />

homens, como o cinto ou o sulco do baixo ventre presente nas vênus, no universo<br />

sinedóquico e metafórico assumido pelos contos, os pés e as mãos são correlatos do sexo;<br />

fazê-los sangrar, cortados pelos espinhos, é, novamente, camuflar a <strong>de</strong>floração em uma ação<br />

que se preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>stituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo erótico, embora reforça<strong>da</strong> pela corri<strong>da</strong>, rito pré-nupcial<br />

em diversas culturas arcaicas, e pelos presentes ligados à esfera do sexual e <strong>da</strong><br />

fertili<strong>da</strong><strong>de</strong>/fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Em alguns contos mais antigos o rasgar dos vestidos, o ferir e o sangrar dos pés e <strong>da</strong>s<br />

mãos são substituídos por alguma forma <strong>de</strong> mutilação. No conto Os Sete Corvos, a jovem<br />

Hil<strong>da</strong> parte à procura dos irmãos, transformados em corvos pela própria mãe, e tem <strong>de</strong> passar<br />

por inúmeras dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s e tarefas perigosas, <strong>de</strong>ntre elas, o encontro com o Sol, a Lua e o<br />

Vento, nos três, a jovem corre o risco <strong>de</strong> morte, mas ela consegue a informação busca<strong>da</strong>,<br />

além <strong>de</strong> um auxílio mágico <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um. O Sol lhe dá um <strong>de</strong> seus fios <strong>de</strong> cabelo dourado,<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 187


além dos ossos <strong>de</strong> um leitão; a Lua lhe dá um floco <strong>de</strong> gelo e os ossos <strong>de</strong> uma lebre; o vento<br />

leva-a até a montanha on<strong>de</strong> estão seus irmãos e lhe dá os ossos <strong>de</strong> um cabrito 2 , tudo é<br />

guar<strong>da</strong>do em sua cestinha, juntamente com o pão, o fuso e algumas estrigas <strong>de</strong> linho que ela<br />

trouxe <strong>de</strong> casa. Os ossos são mágicos e sempre que a jovem tem fome, eles se transformam<br />

no assado do animal. Quando o vento está quase no topo <strong>da</strong> montanha, Hil<strong>da</strong> espia para fora<br />

do manto <strong>de</strong>ste e, toma<strong>da</strong> <strong>de</strong> tontura, cai. O vento não a <strong>de</strong>ixa machucar-se, mas ela acaba<br />

ficando a alguns metros do topo, como a encosta é lisa e íngreme, ela não po<strong>de</strong> subir, a única<br />

solução que encontra é fiar uma esca<strong>da</strong>, fazendo <strong>de</strong>graus com os ossos dos animais e, <strong>de</strong>ssa<br />

forma, chegar ao topo. Ela assim o faz, mas ain<strong>da</strong> lhe faltam quatro, e todos os ossos já<br />

acabaram. Hil<strong>da</strong> olha as próprias mãos e arranca, com os <strong>de</strong>ntes, quatro <strong>de</strong>dos <strong>da</strong>s mãos e os<br />

coloca como <strong>de</strong>graus, chegando, assim, ao topo. “As mãozinhas ensangüenta<strong>da</strong>s ardiam-lhe<br />

como fogo, mas a alegria <strong>de</strong> estar próxima <strong>de</strong> seus irmãos era maior que a dor. Tomou o floco<br />

<strong>de</strong> neve, esfregou as feri<strong>da</strong>s e estas, imediatamente, cicatrizaram” (BEETZ, 1939, p. 113-4).<br />

A mutilação voluntária <strong>da</strong> jovem assemelha-se a outras vistas em outros contos, ela<br />

ocorre como um simulacro <strong>da</strong> <strong>de</strong>floração, tanto que o sangramento causado é rapi<strong>da</strong>mente<br />

interrompido. Segundo Marina Werner, a mutilação <strong>da</strong>s mãos, ou <strong>de</strong>dos, <strong>de</strong>monstra a feroz<br />

ênfase <strong>da</strong><strong>da</strong> ao papel <strong>da</strong>s mãos na sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Os espinhos, bem como a floresta nos contos e romances, possuem um valor<br />

masculino, signo do macho agressor e potente. Os espinhos, assim como a lança e os chifres,<br />

conotam o falo, já que partilham os mesmos semas contextuais: anguloso, <strong>de</strong>scontínuo,<br />

saliente, sólido, formado, forma fecha<strong>da</strong>, liso, retilíneo.<br />

A <strong>de</strong>scrição do Monstro pauta-se to<strong>da</strong> nesse conjunto sêmico, pois ele possui:<br />

...um corpo <strong>de</strong>sengonçado e coberto <strong>de</strong> espessa cama<strong>da</strong> <strong>de</strong> pelos, terminando por uma cau<strong>da</strong> enorme e<br />

cabelu<strong>da</strong>. As quatro patas <strong>da</strong>vam idéia <strong>de</strong> um lagarto gigantesco <strong>de</strong> garras po<strong>de</strong>rosas. O pescoço<br />

coberto <strong>de</strong> escamas terminava numa cabeça alonga<strong>da</strong> e as queixa<strong>da</strong>s enormes apresentavam uns<br />

<strong>de</strong>ntes aguçados através dos quais escorria uma baba pegajosa (BEETZ, 1939, p. 136).<br />

To<strong>da</strong> a <strong>de</strong>scrição prima por ressaltar as formas alonga<strong>da</strong>s, angulosas e pontiagu<strong>da</strong>s,<br />

to<strong>da</strong>s fálicas. O Monstro é todo “sexo”, até mesmo na baba que lhe escorre <strong>da</strong>s queixa<strong>da</strong>s, um<br />

símile do esperma.<br />

Encontramos uma <strong>de</strong>scrição similar para o lobo em Chapeuzinho Vermelho: animal<br />

feroz, com pelos, garras e <strong>de</strong>ntes afiados, pronto a <strong>de</strong>vorar a jovem “in<strong>de</strong>fesa”, que se <strong>de</strong>spe e<br />

<strong>de</strong>ita-se ao seu lado na cama, na versão <strong>de</strong> Charles Perrault, e próxima ao leito, na versão dos<br />

Grimm. Em Barba Azul, os pelos e a fúria animal, mesmo que antropomorfiza<strong>da</strong>s, indicam a<br />

2 Todos estes animais estão ligados aos ritos <strong>de</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> ou à suas divin<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 188


pujança viril do consorte <strong>da</strong> Deusa Mãe. Em O Primeiro que Aparecer, o preten<strong>de</strong>nte <strong>da</strong><br />

jovem, não a caçula, mas a mais velha <strong>de</strong> sete irmãs, é um bo<strong>de</strong> cinzento, animal que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, é ligado à luxúria e aos excessos do sexo, sem falar em sua ligação com os<br />

gran<strong>de</strong>s mamíferos providos <strong>de</strong> cornos e que eram associados à Deusa Mãe.<br />

No Paleolítico e Neolítico, o consorte assumia a imagem do touro, do bisão, do<br />

mamute, animais temidos e capazes <strong>de</strong> cobrir todo o rebanho. Na Grécia, o touro, que teve<br />

sua hegemonia em Creta, é substituído pelo leão, a domesticação do gado fez com que o<br />

imaginário buscasse uma nova fera para unir-se à Deusa. Na Europa do século XVIII e XIX,<br />

praticamente <strong>de</strong>stituí<strong>da</strong> <strong>de</strong> animais selvagens, exceção feita para o lobo e o urso, que ain<strong>da</strong><br />

percorriam os bosques e florestas, surge um novo animal/fera/monstro, conjugando os traços<br />

realistas e terríveis dos anteriores e a imaginação fantasiosa. Desse hibridismo nascem os<br />

diversos monstros dos contos <strong>de</strong> A Bela e a Fera. No conto, o monstro peludo também é<br />

associado aos seres ctônicos (lagartos, cobras, sapos), suas patas fazem lembrar um enorme<br />

lagarto. Essa aproximação do Monstro ao lagarto remete também ao dragão e a serpente, o<br />

primeiro é muito comum nos contos, estes dois seres <strong>da</strong>s trevas e do infra-mundo conjugam o<br />

lado <strong>de</strong> guardiães <strong>de</strong> tesouros ocultos, sobretudo os <strong>da</strong> terra-mãe, por isso os heróis<br />

civilizadores têm <strong>de</strong> <strong>de</strong>struí-los. O lado cristão associa-os ao <strong>de</strong>mônio, ao mal e a<br />

obscuri<strong>da</strong><strong>de</strong>. Enquanto ser benéfico, o dragão está ligado ora às águas primordiais e<br />

fertilizantes, ora ao fogo, ao raio e, portanto à chuva e a fertili<strong>da</strong><strong>de</strong>, todos elementos ligados,<br />

por sua vez, ao <strong>de</strong>us uraniano, macho e fecun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> terra. Como a serpente, ele po<strong>de</strong><br />

habitar as cavernas, as entranhas <strong>da</strong> terra. Sua associação com a antiga Deusa Mãe e seus<br />

ritos, fez do dragão um representante <strong>da</strong>s legiões <strong>de</strong> Lúcifer, que se opõem aos anjos celestes,<br />

para os cristãos. Dentro <strong>de</strong>ssa ambigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> é que se constrói a imagem do Monstro, peludo,<br />

<strong>de</strong> garras afia<strong>da</strong>s e baba pegajosa, um ser todo virili<strong>da</strong><strong>de</strong> e que <strong>de</strong>ve, por isso mesmo, ser<br />

temido.<br />

A imagem <strong>de</strong> pujança fecun<strong>da</strong>nte do Monstro não está somente em seu aspecto, mas<br />

também na <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> seus domínios: o palácio e os jardins que o cercam mostram uma<br />

exuberância <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, quer seja no âmbito do natural, quer seja do cultural.<br />

O castelo “magnífico” situa-se no centro <strong>de</strong> um “maravilhoso jardim no qual se viam<br />

as mais varia<strong>da</strong>s e lin<strong>da</strong>s flores e artísticos chafarizes” (BEETZ, 1939). O po<strong>de</strong>r econômico, a<br />

riqueza, é mostrado no castelo magnífico e ricamente mobiliado, como já foi dito, o ouro é<br />

uma <strong>da</strong>s formas assumi<strong>da</strong>s nas transformações figurais <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong>/fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>ndo<br />

ser estendi<strong>da</strong> aos <strong>de</strong>mais bens materiais. A abundância <strong>de</strong> alimentos, menciona<strong>da</strong> quando <strong>da</strong>s<br />

refeições feitas pelo pai e por Augusta, bem como a profusão <strong>de</strong> flores dos jardins, remete à<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 189


fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> e a fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> natureza <strong>de</strong> maneira mais explícita. Principalmente, quando se<br />

leva em conta um <strong>de</strong>talhe do conto: é outono quando o pai <strong>de</strong> Augusta chega ao castelo do<br />

Monstro e, por to<strong>da</strong> a floresta, ele não havia encontrado flor alguma. Augusta é leva<strong>da</strong> ao<br />

castelo um ano após a chega<strong>da</strong> do pai, portanto, outono novamente.<br />

As flores têm ligação com o feminino e os chafarizes possuem conotação masculina,<br />

novamente a virili<strong>da</strong><strong>de</strong> fecun<strong>da</strong>nte vem associa<strong>da</strong> à água. Esse universo fértil e fecundo do<br />

castelo situa-se atrás, ou no centro, <strong>de</strong> uma floresta <strong>de</strong>nsa e assustadora, ou seja, fora do<br />

mundo civilizado. Território selvagem que é habitado pela Deusa Mãe, a Senhora dos<br />

Animais, e local escolhido, nos mitos <strong>da</strong>s gran<strong>de</strong>s Mães, para sua união com o consorte,<br />

como mostra o hino homérico a Afrodite, o mito <strong>de</strong> Deméter e Posidão; ou é o local<br />

escolhido por elas para seu <strong>de</strong>leite, como ocorre com Ártemis, Afrodite, Deméter, Gaia entre<br />

outras. Augusta assemelha-se a elas ao <strong>de</strong>slumbrar-se com a beleza do castelo e dos jardins e<br />

ao ser <strong>de</strong>fini<strong>da</strong> pelo Monstro como a sua Senhora, a quem ele obe<strong>de</strong>cerá.<br />

A floresta que cerca o castelo, cheia <strong>de</strong> espinheiros e difícil <strong>de</strong> transpor é uma nova<br />

figurativização do cinto <strong>da</strong> Deusa, limite a ser transposto, que guar<strong>da</strong> o ventre <strong>da</strong> Deusa-<br />

Terra, perpetuamente fecundo e cheio <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>, protegido e habitado pelo seu consorte, mas <strong>de</strong><br />

“proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>da</strong> Deusa, pois sem ela, tudo perece.<br />

A floresta marca a passagem <strong>de</strong> um signo a outro, <strong>da</strong> koré à Deusa Mãe, <strong>da</strong><br />

“esterili<strong>da</strong><strong>de</strong>” virginal à fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por isso, a casa <strong>da</strong> avó <strong>de</strong> Chapeuzinho Vermelho<br />

situa-se após a floresta ou em seu interior. O que uma pobre velhinha faria morando aí e<br />

sozinha? “Detalhe” insignificante <strong>da</strong> narrativa? Não, a avó, tão bem integra<strong>da</strong> à floresta, é a<br />

imagem <strong>da</strong> Deusa Mãe já velha e que <strong>de</strong>ve ser substituí<strong>da</strong> pela jovem Koré, para que a<br />

fertili<strong>da</strong><strong>de</strong> seja manti<strong>da</strong>, pois a velha já não mais po<strong>de</strong> conceber. É por isso que Chapeuzinho<br />

vai para a cama <strong>da</strong> avó com o lobo. Ele é o consorte que tomará a nova Deusa, Senhora, e a<br />

fecun<strong>da</strong>rá, <strong>da</strong>ndo continui<strong>da</strong><strong>de</strong> ao ciclo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Vale lembrar que nos ritos cretenses e gregos<br />

a sacerdotisa, representante <strong>da</strong> Deusa na terra e no culto, era substituí<strong>da</strong> por uma mais jovem<br />

em intervalos regulares; em Creta, a filha substituía a mãe quando chegava à puber<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Ariadne substitui a Pasífae e Medéia a Ariadne na união com o touro/Teseu. Essa troca não<br />

implicava na morte <strong>da</strong> antiga sacerdotisa, apenas o seu afastamento, tal qual a avó.<br />

Diferentemente, o sacerdote, representante do <strong>de</strong>us/consorte, tinha uma morte violenta nas<br />

mãos <strong>de</strong> seu sucessor.<br />

Não só em Chapeuzinho Vermelho, a floresta é apresenta<strong>da</strong> como local <strong>de</strong> união entre<br />

a jovem e seu amante, também em a Bela Adormeci<strong>da</strong> o castelo é cercado por um bosque <strong>de</strong><br />

espinho <strong>de</strong>nso e inexpugnável, que só <strong>de</strong>ixa passar o príncipe; Branca <strong>de</strong> Neve, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 190


morta, é exposta em um caixão <strong>de</strong> vidro na floresta, local on<strong>de</strong> o príncipe caçava. A jovem<br />

heroína <strong>de</strong> Os Sete Corvos, Hil<strong>da</strong>, atravessa a floresta para encontrar a casa dos irmãos.<br />

Em todos esses contos, a re<strong>de</strong>nção <strong>da</strong> fera, ou encontro do par amoroso e o<br />

casamento, levam a transformação <strong>da</strong> floresta em um espaço civilizado, geralmente, os<br />

domínios do príncipe, que volta a ser vila e casas, ou terras férteis e cultiva<strong>da</strong>s. O traço<br />

civilizador se apresenta, no tocante às terras, no cultivo do campo, ação humana sobre a terra<br />

fértil e selvagem e que po<strong>de</strong>ria ser explora<strong>da</strong>, antes <strong>da</strong> transformação, enquanto local <strong>de</strong> caça<br />

e coleta, mas que não era cultiva<strong>da</strong>.<br />

Essa transformação tem como mediadora a jovem heroína e sua bon<strong>da</strong><strong>de</strong>, geralmente,<br />

prefigura<strong>da</strong> no coração puro e íntegro. Características presentes em to<strong>da</strong>s as heroínas dos<br />

contos, a bon<strong>da</strong><strong>de</strong> e a pureza são traços conquistados após o cristianismo.<br />

A Deusa Mãe, Senhora absoluta, ao longo dos séculos, foi per<strong>de</strong>ndo para os <strong>de</strong>uses<br />

masculinos a sua hegemonia <strong>de</strong> centro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Essa posição <strong>de</strong> submissão feminina ao po<strong>de</strong>r<br />

masculino, muitas vezes afronta<strong>da</strong> nos mitos gregos, é amplia<strong>da</strong> com o advento do<br />

cristianismo, transformando as heroínas dos contos apenas em instrumentos, embora<br />

po<strong>de</strong>rosos, <strong>de</strong> conversão do monstro em homem civilizado. É o sacrifício <strong>da</strong> heroína que<br />

redime o monstro, é a aceitação passiva do <strong>de</strong>stino que lhe é imposto, primeiro pela vonta<strong>de</strong><br />

paterna e <strong>de</strong>pois pelo amor <strong>de</strong>spertado pelo monstro, que a leva a assumir a função <strong>de</strong><br />

mediadora entre o bem e o mal. Ela não mais é o ser para on<strong>de</strong> converge, ou <strong>de</strong> on<strong>de</strong> emana o<br />

bem e o mal, é apenas aquela, que por bon<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã e humanitária, vem para sanar o mal<br />

cometido por outrem, muitas vezes, esse outro é figurativizado pelo feminino: a velha bruxa e<br />

seus correlatos, ecos do lado terrível <strong>da</strong> Deusa Mãe, outras vezes, é apresentado como um ser<br />

vago e impreciso, sem <strong>de</strong>finição, omitido pelo conto, que inicia a narrativa após a ocorrência<br />

do <strong>da</strong>no.<br />

As lágrimas, símbolo do amor altruísta <strong>da</strong> heroína, embora <strong>de</strong>stituído <strong>de</strong> interesse<br />

erótico, econômico, social, em uma leitura superficial, permitem a transformação <strong>da</strong> Fera, <strong>de</strong><br />

animal ligado ao mundo natural, no qual a cultura, a fé e os códigos sociais estão ausentes,<br />

em homem culturalmente e socialmente a<strong>da</strong>ptado. A bon<strong>da</strong><strong>de</strong> e o respeito aos man<strong>da</strong>mentos<br />

cristãos, muitas vezes explicitados, é que permitem tal transformação.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 183-193, 2008 193


A recuperação <strong>da</strong> cultura clássica em O Anel <strong>de</strong> Polícrates, <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis<br />

Introdução<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 194-203, 2008<br />

Cláudia <strong>de</strong> Fátima MONTESINI<br />

PG – IBILCE – UNESP<br />

claumontesini@yahoo.com.br<br />

O conto O anel <strong>de</strong> Polícrates, faz parte <strong>da</strong> coletânea Papéis Avulsos (1882), publica<strong>da</strong><br />

logo após Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas, romance consi<strong>de</strong>rado “divisor <strong>de</strong> águas” na<br />

produção literária machadiana.<br />

A maioria dos contos <strong>de</strong>sse livro foi publica<strong>da</strong> anteriormente em jornais e revistas,<br />

entre eles a Gazeta <strong>de</strong> Notícias, um dos principais veículos <strong>de</strong> comunicação <strong>da</strong>quela época. A<br />

Gazeta tinha um formato mo<strong>de</strong>sto e colunas estreitas, era um jornal barato, popular, liberal.<br />

Segundo Costa & Vi<strong>da</strong>l “foi o jornal que iniciou a entrevista, a reportagem fotográfica, a<br />

caricatura diária, o que <strong>de</strong>u a fórmula a reportagem mo<strong>de</strong>rna” (1940, p. 160).<br />

Ao final <strong>de</strong> 1882, os contos foram reunidos pelo autor e então, publicados em volume<br />

único sob o título <strong>de</strong> Papéis Avulsos, Machado fez a seguinte advertência no início <strong>da</strong><br />

coletânea (ASSIS, 1998, v.2, p.527):<br />

Este título <strong>de</strong> Papéis avulsos parece negar ao livro uma certa uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. [...] Avulsos são<br />

eles, mas não vieram para aqui como passageiros, que acertam <strong>de</strong> entrar na mesma<br />

hospe<strong>da</strong>ria. São pessoas <strong>de</strong> uma só família, que a obrigação do pai fez sentar à mesma<br />

mesa.<br />

Segundo os estudiosos do autor em questão, Papéis Avulsos representa, para os textos<br />

curtos e médios, o mesmo que Memórias Póstumas <strong>de</strong> Brás Cubas para o romance, ou seja, a<br />

passagem <strong>da</strong> fase experimental para a fase <strong>de</strong> total maturi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Na coletânea escolhi<strong>da</strong> para a<br />

análise, Machado já apresenta todos os recursos <strong>de</strong> estilo, <strong>de</strong> humour e <strong>de</strong> fabulação,<br />

característicos <strong>de</strong>ssa sua “nova fase”, como aponta Gledson (ASSIS, 1998, v.1, p. 31) “O que<br />

é mais extraordinário nesta mu<strong>da</strong>nça, [...], é que o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> prosa <strong>de</strong> Machado ganha uma<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> e uma confiança inéditas.”.<br />

Nos contos existe a referência a autores e trechos <strong>de</strong> obras <strong>da</strong> literatura mundial,<br />

po<strong>de</strong>ríamos imaginar que tal recurso é simples amostra <strong>de</strong> erudição do autor, mas para os que<br />

conhecem bem o texto machadiano, fica evi<strong>de</strong>nte que nele tudo tem uma função maior e,


nesse estudo mais aprofun<strong>da</strong>do sobre a influência Clássica, buscaremos verificar <strong>de</strong> que<br />

maneira essas citações preenchem o texto.<br />

A metodologia adota<strong>da</strong> foi a fenomenológico-hermenêutica já que se trata <strong>de</strong> análise <strong>de</strong><br />

texto literário, com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar proposta crítica com interesse nas possíveis<br />

interpretações suscita<strong>da</strong>s pelos contos estu<strong>da</strong>dos.<br />

Por tratarmos <strong>de</strong> mitologia, achamos necessário <strong>de</strong>finir qual concepção seguiremos;<br />

também há um breve aporte aos principais textos teóricos.<br />

Mito e Literatura<br />

A palavra “mito”, segundo Marilena Chauí (2000), origina-se do grego Mythos que<br />

<strong>de</strong>riva <strong>de</strong> dois verbos: mytheyo (contar, narrar) e mytheo (conversar, anunciar, nomear). A<br />

etimologia <strong>de</strong>ssa palavra ressalta o caráter oral do mito, o qual era, em sua origem, sagrado e<br />

proferido em público por um poeta rapsodo, que possuía muita confiabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e autori<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

pois era consi<strong>de</strong>rado um escolhido dos <strong>de</strong>uses, e por isso, podia testemunhar o que narrava ou<br />

conhecia quem testemunhou. Para essa estudiosa, o mito tem três funções fun<strong>da</strong>mentais:<br />

explicar tudo o que existe; organizar as relações sociais; e compensar ou não as atitu<strong>de</strong>s.<br />

Hoje, o mito possui dois significados distintos, no primeiro, mito seria um fruto <strong>da</strong><br />

imaginação, ou seja, como uma fábula ou uma ficção. No segundo, o mito <strong>de</strong>signaria uma<br />

história sagra<strong>da</strong> e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira. Mircea Elia<strong>de</strong> (1972, p. 11), baseado nessa segun<strong>da</strong> acepção<br />

afirma que “o mito conta uma história sagra<strong>da</strong>; ele relata um acontecimento ocorrido num<br />

tempo primordial, num tempo fabuloso do princípio”. E ain<strong>da</strong> acrescenta que o mito “fornece<br />

os mo<strong>de</strong>los para a conduta humana, conferindo, por isso mesmo, significação e valor à<br />

existência” (ELIADE, 1972, p. 8). Já para esse estudioso, a principal função do mito é revelar<br />

os mo<strong>de</strong>los “<strong>de</strong> todos os ritos e ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s humanas significativas” (ELIADE, 1972, p. 13).<br />

Ou seja, “os mitos revelam que o mundo, o homem e a vi<strong>da</strong> têm uma origem e uma história<br />

sobrenaturais, e que essa história é significativa, preciosa e exemplar” (ELIADE, 1972, p.<br />

22).<br />

No Dicionário <strong>de</strong> Termos Literários, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se que a palavra “mito” <strong>de</strong>ve ser<br />

separa<strong>da</strong> pelas diferentes perspectivas em que é abor<strong>da</strong><strong>da</strong>: Filosofia, Lingüística, Psicologia,<br />

Teologia, Antropologia e Crítica Literária. Do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> Antropologia, o mito é uma<br />

narrativa do que os <strong>de</strong>uses ou os seres divinos fizeram no começo do Tempo: “O mito é<br />

encarado como a palavra que <strong>de</strong>signa um estágio <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento humano anterior à<br />

História, à Lógica, à Arte” (MOISÉS, p. 342). Ca<strong>da</strong> mito nos mostra como uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 194-203, 2008<br />

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veio a existir, seja uma reali<strong>da</strong><strong>de</strong> total, ou um fragmento <strong>de</strong>ssa reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do ponto <strong>de</strong> vista<br />

literário, Aristóteles aproxima o mito <strong>da</strong> narrativa, pois “o mito não só expressa o sentido<br />

profundo <strong>da</strong>s coisas, como também o expressa, particularmente, através <strong>de</strong> uma história”<br />

(MOISÉS, p. 345).<br />

Dow<strong>de</strong>n (1994, p. 18) estu<strong>da</strong> uma “<strong>de</strong>generação” do mito, separando-os em quatro<br />

estágios:<br />

Estágio 1: o mito é associado com o ritual religioso e é esta a sua função;<br />

Estágio 2: o mito se torna “história”;<br />

Estágio 3: a “história” se converte em folclore;<br />

Estágio 4: o folclore se presta a objetivos literários.<br />

Esclareça-se que estamos falando <strong>da</strong> mitologia clássica, pois ain<strong>da</strong> há mitologias ti<strong>da</strong>s<br />

como sagra<strong>da</strong>s como a ju<strong>da</strong>ico-cristã. Então temos que na Grécia Antiga, os mitos foram<br />

sagrados, mais adiante com o advento <strong>da</strong> Filosofia, passam a ser histórias exemplares,<br />

símbolos. Ficam “esquecidos” durante boa parte <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, por serem julgados como<br />

heresias pela Igreja Católica, foram retomados a partir <strong>da</strong> Renascença, como símbolos e/ou<br />

alegorias e por sua “arte superior”, e assim nos chegam até hoje.<br />

Esse mito antes oral, só nos foi possível conhece-lo, pela passagem dos mesmos a<br />

literatura escrita. Assim, consi<strong>de</strong>ramos o mito greco-romano como uma narrativa que foi<br />

sagra<strong>da</strong>, que transmitia a “reali<strong>da</strong><strong>de</strong>”, mas que na época <strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis, já não o é<br />

mais, assim o autor aproveita-as como uma fonte literária, livre para as suas experimentações;<br />

uso que Fiker <strong>de</strong>fine como mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> temática e assim a <strong>de</strong>fine:<br />

A mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> temática ocorre <strong>de</strong> maneira direta quando <strong>da</strong> utilização – tradicionalmente<br />

imposta ou <strong>de</strong>libera<strong>da</strong>mente escolhi<strong>da</strong> – <strong>de</strong> um tema mítico para <strong>de</strong>senvolvimento<br />

literário por um autor, ou através <strong>de</strong> todo um processo <strong>de</strong> romanceamento <strong>de</strong> um mito ou<br />

tradição mítica.<br />

Finalmente, se nesta etapa o mito ain<strong>da</strong> se articula em narrativas, [...] sua articulação –<br />

como foi sublinhado diversas vezes – se dá em termos literários, isto é, em função <strong>de</strong><br />

diretivas não mais estritamente religiosas, mas estéticas. Não se trata apenas do grau <strong>de</strong><br />

literarie<strong>da</strong><strong>de</strong> que a narrativa oral adquire ao ser escrita, impondo ao mito certa[s]<br />

características que lhe são originariamente estranhas. Trata-se aqui <strong>de</strong> uma mu<strong>da</strong>nça<br />

profun<strong>da</strong> no nível <strong>da</strong> finali<strong>da</strong><strong>de</strong> mesma <strong>da</strong> narrativa. Os enredos tradicionais se<br />

<strong>de</strong>sintegram em função <strong>de</strong> novas estruturas aglutinantes <strong>de</strong>correntes <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

(FIKER, 2000, p. 57 e 69).<br />

Segue-se agora, uma breve explanação dos estudos <strong>de</strong> intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que engendram<br />

nosso estudo.<br />

O que é intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 194-203, 2008<br />

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Para estu<strong>da</strong>rmos a intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> presente nos textos machadianos, com relação à<br />

cultura clássica, nos fun<strong>da</strong>mentaremos na noção <strong>de</strong> dialogismo e polifonia estabeleci<strong>da</strong> por<br />

Mikhail Bakhtin em Problemas <strong>da</strong> poética <strong>de</strong> Dostoiévsky (2005), no qual tal teórico<br />

percebeu, através <strong>de</strong> seus estudos, que não havia uma voz unificadora, existia sim uma<br />

“plurali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> vozes” (polifonia) que apontava para uma nova forma <strong>de</strong> discurso<br />

(dialogismo).<br />

[...] a representação <strong>da</strong>s personagens em Dostoiévski é acima <strong>de</strong> tudo a representação <strong>de</strong><br />

consciências, que não se trata <strong>da</strong> consciência <strong>de</strong> um eu único e indiviso mas <strong>da</strong> interação<br />

<strong>de</strong> muitas consciências, <strong>de</strong> consciências isônomas e plenivalentes que dialogam entre si,<br />

interagem, preenchem com suas vozes as lacunas e evasivas <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s por seus<br />

interlocutores [...] (BAKHTIN, 2005, p. 7).<br />

Ain<strong>da</strong> do mesmo autor, utilizaremos o conceito <strong>de</strong> carnavalização, presente na obra: A<br />

cultura popular na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média e no Renascimento: o contexto <strong>de</strong> François Rabelais, que por<br />

meio <strong>da</strong> análise do contexto e linguagem utiliza<strong>da</strong> por Rabelais, verificou que era recorrente<br />

em suas obras o carnavalesco, cuja principal característica é o riso “[...] o mundo inteiro<br />

parece cômico e é percebido e consi<strong>de</strong>rado no seu aspecto jocoso, no seu alegre relativismo;<br />

por último, esse riso é ambivalente: alegre e cheio <strong>de</strong> alvoroço, mas ao mesmo tempo<br />

burlador e sarcástico, nega e afirma, amortalha e ressuscita simultaneamente” (BAKHTIN,<br />

1999, p. 10).<br />

A partir dos estudos <strong>de</strong> Bakhtin, Julia Kristeva observou que todos os textos eram<br />

formados por “um diálogo <strong>de</strong> várias escritas: do escritor, do <strong>de</strong>stinatário (ou <strong>da</strong> personagem),<br />

do contexto cultural actual ou anterior” (1974, p. 70). E através <strong>da</strong> teoria sobre dialogismo e<br />

polifonia, Kristeva fun<strong>da</strong>mentou os estudos sobre intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Essa estudiosa foi a<br />

primeira a <strong>de</strong>finir, nomear e diferenciar os principais usos e funções <strong>da</strong> intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>:<br />

A palavra (o texto) é um entrecruzar <strong>de</strong> palavras (<strong>de</strong> textos) on<strong>de</strong> se lê pelo menos uma<br />

outra palavra (texto). [...] todo o texto se constrói como mosaico <strong>de</strong> citações, todo o texto<br />

é absorção e transformação <strong>de</strong> um outro texto. No lugar <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> intersubjectivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

instala-se a <strong>de</strong> intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, e a linguagem poética lê-se, pelo menos como dupla<br />

(KRISTEVA, 1974, p. 72).<br />

A intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> é o diálogo <strong>de</strong> um texto com outros textos e/ou com o contexto.<br />

Esse diálogo/relação po<strong>de</strong> ser estabelecido pelo conteúdo, pela forma, ou por ambos. Com o<br />

estabelecimento <strong>de</strong> uma relação intertextual, o autor provoca uma interação ente o sentido dos<br />

dois textos, po<strong>de</strong>ndo reafirmá-lo, negá-lo, satirizá-lo, etc. Com isso, chegamos a principal<br />

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contribuição <strong>de</strong> Laurent Jenny, que negando a banali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> significação estabeleci<strong>da</strong> por<br />

Kristeva, afirmou que “a intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>signa não uma soma confusa e misteriosa <strong>de</strong><br />

influências, mas o trabalho <strong>de</strong> transformação e assimilação <strong>de</strong> vários textos, operado por um<br />

texto centralizador, que <strong>de</strong>tém o comando <strong>de</strong> sentido” (1979, p. 14). Para esse pesquisador,<br />

sem a intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> a obra literária não teria a mesma importância: “Fora <strong>da</strong><br />

intertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, a obra literária seria muito simplesmente incompreensível, tal como a<br />

palavra duma língua ain<strong>da</strong> <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>” (JENNY, 1979, p. 5), ou seja, seria impossível<br />

pensar o texto literário fora <strong>de</strong> um sistema literário.<br />

Consi<strong>de</strong>rando-se o texto como esse “ponto <strong>de</strong> intersecção <strong>de</strong> muitos diálogos”<br />

(BARROS E FIORIN, 1994, p. 4), há uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão muito mais ampla,<br />

propicia<strong>da</strong> pelo trabalho intertextual, que Machado <strong>de</strong> Assis fornece ao seu leitor ao fazer<br />

referências à cultura greco-romana, visto que ela chegou até nós por ter sido registra<strong>da</strong> em<br />

textos literários nos primórdios <strong>da</strong> civilização grega. Esses textos se transformaram na fonte<br />

em que muitos autores beberam para produzir seus textos. Entre eles está Machado <strong>de</strong> Assis<br />

que “bebeu” <strong>da</strong> cultura clássica por meio dos textos antigos e com esses dialoga em Papéis<br />

Avulsos.<br />

Conhece o caso do anel <strong>de</strong> Polícrates?<br />

O conto analisado no presente estudo, intitulado O anel <strong>de</strong> Polícrates, foi publicado<br />

pela primeira vez em dois <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1882, na Gazeta <strong>de</strong> Notícias.<br />

Esse conto apresenta-se em forma <strong>de</strong> diálogo entre as personagens “A” e “Z”, sobre a<br />

vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> um conhecido em comum, Xavier. Para “A”, Xavier é um homem rico, fértil em<br />

idéias, e muito feliz, já para “Z”, Xavier é um homem humil<strong>de</strong>, como ele próprio diz “não é<br />

mendigo, nunca foi nababo”. “A” então adverte que ele está falando do Xavier interior e “Z”<br />

está falando do Xavier exterior. E “A” passa a narrar as diversas idéias <strong>de</strong> Xavier, até que um<br />

dia, essas se esgotam. É quando Xavier a olhar pela janela, vê um cavaleiro passando, <strong>de</strong><br />

repente, o cavalo corcoveou e o cavaleiro quase foi ao chão, mas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma longa “luta”,<br />

o cavalo volta a marchar e <strong>da</strong>í veio a idéia <strong>de</strong> comparar “a vi<strong>da</strong> a um cavalo xucro ou<br />

manhoso”, e acrescentou “Quem não for cavaleiro, que o pareça.” (ASSIS, 1998, v. 1, p. 377).<br />

Voltando-se para “Z”, “A” pergunta: “Conhece o caso do anel <strong>de</strong> Polícrates?”, e assim o mito<br />

é introduzido no conto machadiano.<br />

[...] Polícrates governava a ilha <strong>de</strong> Samos. Era o rei mais feliz <strong>da</strong> terra; tão feliz, que<br />

começou a recear alguma viravolta <strong>da</strong> Fortuna, e para aplacá-la antecipa<strong>da</strong>mente,<br />

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<strong>de</strong>terminou fazer um gra<strong>de</strong> sacrifício: <strong>de</strong>itar ao mar o anel precioso que, segundo alguns,<br />

lhe servia <strong>de</strong> sinete. Assim fez; mas a Fortuna an<strong>da</strong>va tão aposta<strong>da</strong> em cumulá-lo <strong>de</strong><br />

obséquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e man<strong>da</strong>do para a<br />

cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo na<strong>da</strong> a respeito <strong>de</strong>sta<br />

anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando...<br />

[...]<br />

Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia, lança<strong>da</strong> ao mar, po<strong>de</strong><br />

tornar ao meu po<strong>de</strong>r, como o anel <strong>de</strong> Polícrates, no bucho <strong>de</strong> algum peixe, ou se o meu<br />

caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão (ASSIS, 1998, v.1, pág. 377 – 378).<br />

E então como o anel jogado ao mar e retornado a posse <strong>de</strong> Polícrates, Xavier quis testar<br />

sua sorte, para saber se um dia sua idéia retornaria a ele. A idéia <strong>de</strong> Xavier espalhou-se, mas<br />

sempre que alguém a dizia, não lhe atribuía autoria.<br />

Como o próprio narrador já se refere, esse mito é recontado brevemente por Plínio, o<br />

Velho, que nasceu em 23 ou 24 e morreu na gran<strong>de</strong> erupção do Vesúvio. Esse autor antigo<br />

escreveu muitas obras (quase to<strong>da</strong>s perdi<strong>da</strong>s) sobre oratória, gramática, arte militar e história;<br />

seu trabalho mais importante (e que se conservou) foi uma obra <strong>de</strong> cunho enciclopédico<br />

intitula<strong>da</strong> História Natural, composta por trinta e sete livros, <strong>de</strong>dica<strong>da</strong> ao então futuro<br />

imperador Tito, o mito <strong>de</strong> Polícrates está brevemente contando nessa obra, no volume trinta e<br />

três, capítulo seis, <strong>da</strong> seguinte maneira:<br />

A gema do tirano Polícrates<br />

II. I. Assim começou a mo<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pedras preciosas. Logo a estima se transformou em<br />

paixão. Polícrates, o tirano <strong>de</strong> Samos, respeitado na ilha e no continente, querendo expiar,<br />

pelas per<strong>da</strong>s, o que ele próprio chamava <strong>de</strong> excesso <strong>de</strong> prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong>, acreditou fazer<br />

suficiente sacrifício, e ren<strong>de</strong>r dom por dom à Fortuna, pela privação voluntária <strong>de</strong> uma<br />

pedra: ele acreditou que a dor <strong>de</strong>ssa única per<strong>da</strong> seria o bastante para colocá-lo ao abrigo<br />

<strong>da</strong> inveja e <strong>da</strong> inconstância <strong>da</strong> <strong>de</strong>usa. Cansado <strong>de</strong> uma felici<strong>da</strong><strong>de</strong> incessante, ele embarca,<br />

atinge o alto mar, atira seu anel às on<strong>da</strong>s. Um enorme peixe, gran<strong>de</strong> o suficiente para<br />

alimentar o rei, engole a gema; <strong>de</strong>pois, acaba nas mãos do cozinheiro <strong>de</strong> Polícrates, que a<br />

<strong>de</strong>ixa reaparecer aos olhos do tirano. Presságio sinistro! Pérfi<strong>da</strong> restituição <strong>da</strong> Fortuna!<br />

Essa gema, com certeza, era uma esmeral<strong>da</strong>: a vimos em Roma, no templo <strong>da</strong> Concórdia,<br />

presa a um chifre <strong>de</strong> ouro, oferen<strong>da</strong> <strong>de</strong> Augusto: é quase a menor do templo; cem outras<br />

mais belas vêm em primeiro lugar 1 .<br />

Porém o mito é muito resumido em Plínio, e recorremos a outras fontes para acessarmos<br />

o mito por completo, segundo Greene e Sharman-Burke (2001), Polícrates, o tirano <strong>da</strong> ilha <strong>de</strong><br />

Samos, parecia ser o homem mais feliz do mundo, governava uma ilha riquíssima (que foi<br />

toma<strong>da</strong> a força dos seus dois irmãos), raramente se passava um dia que não recebesse notícias<br />

1 Tradução para o português realiza<strong>da</strong> pela Profa. Dra. Maria Cristina Parreira <strong>da</strong> Silva, <strong>da</strong> Área <strong>de</strong> Francês do<br />

Departamento <strong>de</strong> Letras Mo<strong>de</strong>rnas <strong>da</strong> UNESP <strong>de</strong> São José do Rio Preto – SP, basea<strong>da</strong> na versão francesa (Plínio,<br />

1883, p. 299)<br />

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<strong>de</strong> uma vitória <strong>de</strong> sua frota ou <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> ao porto <strong>de</strong> um navio seu, carregado <strong>de</strong> tesouros e<br />

escravos.<br />

Buscou aliança com Amósis, gran<strong>de</strong> faraó do Egito, que a princípio acolheu a amiza<strong>de</strong>,<br />

porém o faraó temente aos <strong>de</strong>uses, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> algum tempo, mandou a seguinte mensagem a<br />

Polícrates:<br />

O homem que é sempre feliz tem muito a temer. Ninguém chega a um po<strong>de</strong>r como o<br />

vosso sem fazer inimigos, e até os próprios <strong>de</strong>uses sentem inveja <strong>de</strong> um homem tão bem<br />

sucedido [...]. Aceitai meu conselho: buscai vosso mais rico tesouro e oferecei-o em<br />

sacrifício aos <strong>de</strong>uses, para que eles não vos tratem mal (GREENE e SHARMAN-<br />

BURKE, 2001, p. 142).<br />

Polícrates ao aceitar o conselho do amigo, escolheu um anel <strong>de</strong> esmeral<strong>da</strong>, muito<br />

valioso que era por ele consi<strong>de</strong>rado como um dos tesouros que menos queria per<strong>de</strong>r, e o jogou<br />

ao mar. Porém antes mesmo <strong>de</strong> jogá-lo lamentava sua per<strong>da</strong>, e durante vários dias, censurouse<br />

por tê-lo jogado com tanta precipitação. Uma semana <strong>de</strong>pois, um pescador levou ao palácio<br />

um peixe enorme, para agra<strong>da</strong>r-lhe. Quando os criados abriram o peixe, encontraram em sua<br />

barriga o mesmo anel <strong>de</strong> esmeral<strong>da</strong> que tinha sido jogado e o entregaram ao rei. Muito feliz<br />

por ter seu tesouro <strong>de</strong> volta e por achar que os <strong>de</strong>uses estavam dispostos a lhe conce<strong>de</strong>r boa<br />

sorte, o governante enviou uma mensagem a Amósis, contando todo o ocorrido. Para sua<br />

surpresa o faraó egípcio <strong>de</strong>sfez a aliança entre eles, por acreditar que o retorno do tesouro era<br />

sinal <strong>de</strong> que os <strong>de</strong>uses não aceitaram a oferen<strong>da</strong> <strong>de</strong> Polícrates e estavam dispostos a puni-lo.<br />

Mas em seu orgulho e por se julgar agora invencível, o soberano <strong>de</strong> Samos continuou a buscar<br />

riquezas e conquistas, até que Orestes, rei <strong>da</strong> Pérsia, armou uma cila<strong>da</strong> para Polícrates, que<br />

mesmo contra as previsões do oráculo e os protestos <strong>da</strong> filha, foi a esse reino em busca <strong>de</strong> um<br />

gran<strong>de</strong> tesouro que o rei lhe oferecera, e morre crucificado.<br />

Po<strong>de</strong>mos notar que Machado <strong>de</strong> Assis manipulou o mito, ocultando o final trágico <strong>de</strong><br />

Polícrates, para então compará-lo com Xavier, que foi um homem afortunado, possuía idéias<br />

brilhantes, mas não conseguia concretizá-las literariamente. Desconhecendo o final trágico do<br />

soberano, Xavier <strong>de</strong>seja ser Polícrates e ter sua máxima <strong>de</strong> volta, para então materializá-la,<br />

mas a idéia nunca retornou ao seu po<strong>de</strong>r, para o seu azar. O texto machadiano não consi<strong>de</strong>ra<br />

as relações com o divino, não fala <strong>da</strong> oferen<strong>da</strong>, tudo é uma questão <strong>de</strong> sorte; Polícrates é tido<br />

como um afortunado por ter seu anel <strong>de</strong> volta, enquanto o “caiporismo” <strong>de</strong> Xavier não<br />

permite que a sua máxima retorne a ele. Assim, o escritor brasileiro une a cultura clássica<br />

(Polícrates) à reali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> sua época (Xavier), e isso fica mais evi<strong>de</strong>nte quando vemos a nota<br />

que acompanha esse conto.<br />

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200


Ao amigo<br />

Em nota Machado <strong>de</strong> Assis afirma que a personagem Xavier é na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> seu amigo<br />

Artur <strong>de</strong> Oliveira “menos a vai<strong>da</strong><strong>de</strong>, que não tinha, e salvo alguns rasgos mais acentuados,<br />

este Xavier era o Artur” (ASSIS, 1998, v.2, p. 530).<br />

Artur <strong>de</strong> Oliveira nasceu em Porto Alegre, veio para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, aos <strong>de</strong>zesseis<br />

anos, e morreu nessa ci<strong>da</strong><strong>de</strong> em 21 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1882, aos trinta e um anos. Foi professor do<br />

Colégio D. Pedro e patrono <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras, por ter morado na França,<br />

introduziu o pensamento parnasiano no Brasil, sobre esta influência, Manuel Ban<strong>de</strong>ira<br />

<strong>de</strong>clarou:<br />

Artur <strong>de</strong> Oliveira, curioso tipo <strong>de</strong> boêmio, que quase na<strong>da</strong> produziu, mas tendo residido<br />

algum tempo em Paris, exerceu <strong>de</strong> volta enorme fascinação sobre o meio literário<br />

brasileiro, para o qual foi sem dúvi<strong>da</strong> o revelador <strong>da</strong> corrente parnasiana já dominante em<br />

França. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Artur_<strong>de</strong>_Oliveira)<br />

Segundo o site <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras, outro amigo <strong>de</strong> Artur, Alberto <strong>de</strong><br />

Oliveira, numa entrevista a Terra Roxa e Outras Terras, em 1926, também fala <strong>da</strong><br />

importância <strong>de</strong> Artur <strong>de</strong> Oliveira na introdução do parnasianismo no Brasil: "O Artur lia<br />

Gautier, Banville, Sully-Prudhomme, Bau<strong>de</strong>laire e empolgava-nos com seu entusiasmo". Mas,<br />

na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, conversou mais do que escreveu. Sua produção literária é escassa e, não<br />

correspon<strong>de</strong> ao que se espera <strong>da</strong> geniali<strong>da</strong><strong>de</strong> apregoa<strong>da</strong> pelos que com ele conviveram.<br />

Mais referências<br />

Encontramos também, nesse conto, outras referências, em uma <strong>da</strong>s falas <strong>de</strong> “A”, sobre<br />

Xavier, temos a seguinte narração: “Sabe quem lhe fazia o café, <strong>de</strong> manhã? A Aurora, com<br />

aqueles mesmos <strong>de</strong>dos cor-<strong>de</strong>-rosa, que <strong>Home</strong>ro lhe pôs” (ASSIS, 1998, v.1, pág. 372). A<br />

Aurora, <strong>de</strong>usa do amanhecer, é <strong>de</strong>scrita como ruiva com os <strong>de</strong>dos cor-<strong>de</strong>-rosa tanto na Ilía<strong>da</strong><br />

quanto na Odisséia. Po<strong>de</strong>mos perceber uma maneira do escritor brasileiro <strong>de</strong> fazer alusão à<br />

<strong>de</strong>usa <strong>da</strong> mitologia grego-romana, e ao mesmo tempo <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que ele não vê nela algo<br />

sacro, já que se refere a ela através <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro “que lhe pôs” os <strong>de</strong>dos cor-<strong>de</strong>-rosa.<br />

Para finalizar temos uma última referência, agora a duas gran<strong>de</strong>s personali<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong><br />

cultura clássica: “O Xavier não só per<strong>de</strong>u as idéias que tinha, mas até exauriu a facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

as criar; ficou o que sabemos. Que moe<strong>da</strong> rara se lhe vê hoje nas mãos? Que sestércio <strong>de</strong><br />

Horácio? Que drama <strong>de</strong> Péricles? Na<strong>da</strong>” (ASSIS, 1998, v. 1, pág. 375).<br />

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<strong>Home</strong>ro tido como o gran<strong>de</strong> poeta épico grego; Horácio consi<strong>de</strong>rado um dos maiores<br />

poetas latinos; Péricles foi um gran<strong>de</strong> estadista ateniense; e Plínio.<br />

Buscando uma ligação entre as referências, po<strong>de</strong>mos notar que <strong>Home</strong>ro, Horácio,<br />

Plínio, Péricles foram gran<strong>de</strong>s pensadores <strong>da</strong> época clássica, e que <strong>de</strong>vem essa posição em<br />

gran<strong>de</strong> parte a sua excelente oratória, certamente ponto que os ligue a Xavier e assim também<br />

a Artur <strong>de</strong> Oliveira, fazendo um complexo jogo intertextual.<br />

Palavras Finais<br />

Como vimos, no conto O anel <strong>de</strong> Polícrates, houve uma manipulação do mito, sendo<br />

omitido seu final trágico, servindo assim para ser um exemplo <strong>de</strong> fortuna, contra Xavier que<br />

seria o azarado. Ramos (2008, p. 80) <strong>de</strong>staca que “em geral, a citação ou alusão tem o<br />

objetivo <strong>de</strong> <strong>da</strong>r mais credibili<strong>da</strong><strong>de</strong> ao discurso argumentativo <strong>de</strong> quem a utiliza. No discurso<br />

machadiano, no entanto, muitas vezes ela aparece distorci<strong>da</strong> ou trunca<strong>da</strong> e acaba assumindo<br />

funções diferentes.” Exatamente o que acontece no conto machadiano em questão, o diálogo<br />

intertextual travado realiza o processo <strong>de</strong> “apequenamento” (PASSOS, 1996) <strong>da</strong> cultura<br />

clássica, ao comparar Polícrates a Xavier; e também ao aproximar <strong>Home</strong>ro, Horácio, Plínio e<br />

Péricles, conhecidos pela sua oratória, ao personagem Xavier e assim a Artur <strong>de</strong> Oliveira.<br />

Como na “Advertência” feita por Machado <strong>de</strong> Assis no início do livro, vemos que as<br />

referências não foram feitas ao léu, não são avulsas, são sim resultado <strong>de</strong> um longo trabalho<br />

<strong>de</strong> escolha.<br />

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Imprensa Oficial, 1940.<br />

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Papirus, 1994.<br />

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Editorial/UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2000.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 194-203, 2008<br />

203


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008<br />

qewri/a e as duas vi<strong>da</strong>s felizes na Ética a Nicômaco<br />

Guilherme W. O. MORAES<br />

G – UFMG 1<br />

guilhermewerkema@yahoo.com<br />

Bem conheci<strong>da</strong> é a controvérsia em relação à interpretação do termo eu0<strong>da</strong>imoni/a<br />

na Ética a Nicômaco <strong>de</strong> Aristóteles. 2 Em que pese a reconheci<strong>da</strong> tensão presente entre<br />

as duas formas <strong>de</strong> ser feliz segundo Aristóteles, não há razões, segundo pensamos, para<br />

questionarmos a afirmação do livro X. 6-8 <strong>de</strong> que a vi<strong>da</strong> mais feliz é a vi<strong>da</strong> teorética em<br />

prol <strong>de</strong> uma interpretação compreensivista <strong>da</strong> noção <strong>de</strong> eu0<strong>da</strong>imoni/a. O presente<br />

trabalho tem por fim analisar essa questão a partir <strong>da</strong> tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r como<br />

Aristóteles po<strong>de</strong> apresentar duas vi<strong>da</strong>s, aparentemente tão distintas, como instâncias <strong>de</strong><br />

felici<strong>da</strong><strong>de</strong>. O que torna as duas vi<strong>da</strong>s felizes do livro X, ambas, felizes? Defendo que<br />

aquilo que permite a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> entre as duas vi<strong>da</strong>s felizes é a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> contemplativa, que<br />

se coloca como paradigma para as ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s racionais. Se isso se passa <strong>de</strong>ssa forma, é<br />

possível, em larga medi<strong>da</strong>, nos afastarmos <strong>da</strong> controvérsia inclusivismo X<br />

intelectualismo e assentarmos uma interpretação <strong>de</strong> eu0<strong>da</strong>imoni/a como bem final<br />

dominante.<br />

Howard CURZER (1990), ao avaliar os critérios com os quais Aristóteles<br />

preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar o que é felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que há uma diferença entre os critérios<br />

avançados em I.7 e X. 6-8. Sem negar a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do livro, Curzer acredita que<br />

Aristóteles passa <strong>de</strong> uma exposição mais esquemática no primeiro livro para uma versão<br />

reformula<strong>da</strong> <strong>de</strong> eu0<strong>da</strong>imoni/a no Livro X. E afirma ain<strong>da</strong>:<br />

1 Essa pesquisa foi realiza<strong>da</strong> no âmbito do programa PET – Filosofia UFMG, mantido com recursos <strong>da</strong><br />

SESU/MEC. Agra<strong>de</strong>ço a orientação que recebi do professor Fernando Rey Puente e as interessantes<br />

discussões que pu<strong>de</strong> travar com meus colegas <strong>de</strong> PET sobre esta pesquisa.<br />

2 Essa controvérsia em <strong>de</strong>terminar o sentido <strong>de</strong> eu0<strong>da</strong>imoni/a se dá, conforme à exposição <strong>de</strong> Hardie, na<br />

medi<strong>da</strong> em que Aristóteles oscilaria entre uma concepção <strong>de</strong> bem final dominante – que i<strong>de</strong>ntifica<br />

eu0<strong>da</strong>imoni/a à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> contemplativa, à exclusão dos <strong>de</strong>mais bens; e uma concepção inclusivista –<br />

segundo a qual a eu0<strong>da</strong>imoni/a seria um bem <strong>de</strong> segun<strong>da</strong> or<strong>de</strong>m que or<strong>de</strong>naria em si os diversos fins<br />

primários que, por sua vez or<strong>de</strong>nam nossas ações. (HARDIE, 1965: 279)


A mais óbvia evidência <strong>da</strong> diferença entre os critérios <strong>de</strong> I. 7 e X. 6-8 é que [...] o<br />

critério <strong>de</strong> I.7 implica que haja somente uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> feliz e uma vi<strong>da</strong> feliz, mas<br />

em X. 6-8 Aristóteles afirma que há duas vi<strong>da</strong>s felizes e, portanto,duas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

que aten<strong>de</strong>m os critérios para felici<strong>da</strong><strong>de</strong> (CURZER, 1990: 421).<br />

Apesar <strong>de</strong> discor<strong>da</strong>r <strong>da</strong> posição <strong>de</strong> Curzer, acredito que alguns problemas aos quais ela<br />

se refere po<strong>de</strong>m ser muito profícuos para o <strong>de</strong>bate sobre a eu0<strong>da</strong>imoni/a na Ética a<br />

Nicômaco: “o que torna as duas vi<strong>da</strong>s felizes que Aristóteles menciona no Livro X – a<br />

vi<strong>da</strong> contemplativa e a vi<strong>da</strong> política – ambas felizes?” e, “em que medi<strong>da</strong> essa vi<strong>da</strong>s<br />

satisfazem os critérios mencionados para a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>?”. Para tentar respon<strong>de</strong>r a esses<br />

questionamentos é preciso que nós voltemos ao texto <strong>de</strong> Aristóteles.<br />

Na abertura do capítulo 7 do livro X, após ter retomado a discussão sobre a<br />

natureza <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> no capítulo anterior, Aristóteles afirma:<br />

Se a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> é a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> segundo a excelência, é razoável que seja segundo a<br />

mais forte. E essa seria <strong>da</strong> melhor [parte <strong>de</strong> nós]. Se, então, esta é o intelecto ou<br />

uma outra coisa, que naturalmente parece governar e guiar e ter consciência <strong>da</strong>s<br />

coisas nobres e divinas, se sendo divina ela mesma ou a mais divina <strong>da</strong>s nossas<br />

[facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s], a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa [facul<strong>da</strong><strong>de</strong>] segundo a excelência seria a felici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

perfeita. Que essa [ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>] é a teorética, já dissemos. (EN X. 7 1177a12-18) 3<br />

Essa não é uma passagem muito difícil <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista textual. Quando se<br />

trata, porém, <strong>de</strong> compreendê-la à luz <strong>da</strong> Ethica Nicomachea como um todo é que vemos<br />

por que ela se tornou tão controversa 4 . Num curto espaço <strong>de</strong> seis linhas nos <strong>de</strong>paramos<br />

com pelo menos três afirmações que não são na<strong>da</strong> claras e que cobram <strong>de</strong> nós alguma<br />

explicação. Primeiro é preciso enten<strong>de</strong>r por que “se a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> é a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> conforme<br />

a excelência, é razoável que seja segundo a mais forte”, pois não parece óbvio que<br />

sendo a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> em conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com a excelência ela <strong>de</strong>ve se<br />

3 Ei0 d 0 e0sti_n h9 eu0<strong>da</strong>imoni/a kat 0 a0reth_n e0ne/rgeia. eu1logon kata_ th_n krati/sthn: au3th d' a2n ei1h tou~<br />

a0ristou. ei2te dh_ nou~j tou~to ei2te a1llo ti. o3 dh\ kata_ fu/sin dokei~ a1rxein kai_ h9geisqai kai\<br />

e1nnoian e1cein peri kalw~n kai\ qei/wn, e2ite qei~on o1n kai\ au0to\ ei2te tw~n e0n h9mi~n to\ teleio/taton, h9<br />

tou/tou e0ne/rgeia kata\ th\n a0reth\n ei1h a2n h9 telei/aeu0<strong>da</strong>imoni/a. o9ti d 0 e0sti\ qewrhtikh/, ei1rhtai.<br />

Utilizamos como texto padrão para to<strong>da</strong>s as citações <strong>da</strong> Ética a Nicômaco a edição <strong>de</strong> Bywater <strong>da</strong> OCT.<br />

As traduções são nossas.<br />

4 Só a título <strong>de</strong> exemplo, <strong>da</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretações dos trechos compreendidos em X, 7-8, cf. Jan<br />

MOLINE (1983) que sugere uma leitura que enten<strong>de</strong> esse trecho como um argumento por ironia, ou<br />

seja, com a intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar que tal tipo <strong>de</strong> argumento não se sustenta e sua posição é, na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a <strong>de</strong> uma vi<strong>da</strong> feliz <strong>de</strong> natureza inclusiva. Gavin LAWRENCE (1993), por sua vez, argumenta<br />

que a análise que Aristóteles faz <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> filosófica é a <strong>de</strong> um “i<strong>de</strong>al utópico”, além <strong>da</strong> natureza humana,<br />

e que é absolutamente incapaz <strong>de</strong> ser realizado por estarmos submetidos a circunstâncias muito aquém<br />

<strong>da</strong>s i<strong>de</strong>ais.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 205


i<strong>de</strong>ntificar com aquela que é a mais forte e não, por exemplo, com to<strong>da</strong>s elas. Segundo,<br />

não é sem surpresa que essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> é i<strong>de</strong>ntifica<strong>da</strong> ao nou~j uma vez que, ao longo <strong>da</strong><br />

Ética, Aristóteles não parece estar falando <strong>de</strong>ssa facul<strong>da</strong><strong>de</strong> ao se referir à eu0<strong>da</strong>imoni/a; e,<br />

por último, a muito aponta<strong>da</strong> observação <strong>de</strong> “que já foi dito que essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> é a<br />

contemplativa” não está marca<strong>da</strong> explicitamente em lugar algum <strong>da</strong> Ética a Nicômaco<br />

anterior a EN X. 7.<br />

Apesar <strong>de</strong> em EN X. 7 Aristóteles apresentar algumas idéias novas a respeito <strong>da</strong><br />

eu0<strong>da</strong>imoni/a, essas não parecem, a nosso ver, irem <strong>de</strong> encontro ao que foi estabelecido<br />

anteriormente seja no Livro I ou em qualquer lugar <strong>da</strong> Ética a Nicômaco. Em I. 7 já<br />

havia sido mencionado que a função do homem “é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do elemento racional<br />

do homem” e que “a função do homem é uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> segundo a razão e não priva<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> razão” (kata\ lo/gon h1 mh\ a1neu lo/gou) (EN I.7,1098a7-8). Já sabemos também que<br />

a eu0<strong>da</strong>imoni/a, por ser algo final, <strong>de</strong>ve também se relacionar a alguma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que seja<br />

uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> última, <strong>da</strong>í entendê-la como a mais forte ou mais dominante (krati/sthn)<br />

entre duas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s que sejam finais. O problema, então, para aceitar a vali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

afirmação <strong>de</strong> EN X.7, 1177a12-18, não está tanto na i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong> eu0<strong>da</strong>imoni/a à<br />

virtu<strong>de</strong> do intelecto, mas particularmente a uma <strong>de</strong> suas ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, à virtu<strong>de</strong><br />

correspon<strong>de</strong>nte à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> teorética, uma vez que não é claro em que sentido<br />

po<strong>de</strong>ríamos enten<strong>de</strong>r que a qewri/a po<strong>de</strong> ser mais relaciona<strong>da</strong> à função própria do<br />

homem do que a fro/nhsij, senão por um novo critério que não está contemplado no<br />

argumento <strong>da</strong> função em EN I,7.<br />

Uma importante noção cuja investigação po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> para esse<br />

<strong>de</strong>bate é a <strong>de</strong> e1rgon, que Aristóteles compreen<strong>de</strong> como função ou ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

característica. Infelizmente, essa linha <strong>de</strong> investigação, pelo pequeno porte <strong>de</strong>sse artigo,<br />

não po<strong>de</strong> ser persegui<strong>da</strong> aqui senão como uma breve digressão. Aristóteles formula o<br />

conceito <strong>de</strong> e[rgon <strong>de</strong> diferentes maneiras ao longo do Corpus, mas a noção <strong>de</strong> te/loj<br />

está sempre presente nessas diversas formulações. 5 “A função (e1rgon) <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> coisa é<br />

seu fim (te/loj)” (EE 1219ª8). Ao buscar, então, a função do homem, na<strong>da</strong> mais natural<br />

que essa busca se dirija ao fim ao qual a vi<strong>da</strong> humana se dirige. Esse fim é, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

aquilo que é a essência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, e a vi<strong>da</strong> humana enquanto tal (i.e., no sentido<br />

5<br />

Ou, ao menos, tanto a noção <strong>de</strong> e1rgon quanto a <strong>de</strong> te/loj po<strong>de</strong>m referir às mesmas coisas. Cf. CLARK,<br />

1972: 274.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 206


em que só é aplicável ao homem) é a vi<strong>da</strong> “que tem a razão”. Contudo, Aristóteles<br />

distingue na Ética a Nicômaco diferentes ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> razão. A razão não funciona em<br />

bloco, <strong>de</strong> modo que a ligação <strong>da</strong> função humana com a razão não é o bastante para<br />

<strong>de</strong>limitar uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que possa ser o fim para o homem.<br />

Convém observar, contudo, que é possível distinguir uma gra<strong>da</strong>ção na<br />

atualização <strong>de</strong> uma função, e essa gra<strong>da</strong>ção nos permite compreen<strong>de</strong>r o que é o mais<br />

essencial naquela coisa.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que um indivíduo atualiza sua humani<strong>da</strong><strong>de</strong> em maior ou menor grau.<br />

Apesar <strong>de</strong> todos os homens serem humanos, alguns são <strong>de</strong> fato mais humanos que<br />

outros. É nesses homens que vemos mais claramente o que dá sentido à estrutura<br />

humana e à socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. (CLARK, 1972:283)<br />

Mas como i<strong>de</strong>ntificar tal gra<strong>da</strong>ção no interior <strong>da</strong> função do homem, se é que ela<br />

existe? Se é próprio do homem a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> racional e é isso que o <strong>de</strong>fine, é preciso<br />

buscar no interior <strong>de</strong>ssa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> as diferentes maneiras em que po<strong>de</strong> ser atualiza<strong>da</strong>.<br />

Uma maneira natural que se sugere para tentarmos solucionar o problema <strong>de</strong><br />

como consi<strong>de</strong>rar a contemplação em relação à eu0<strong>da</strong>imoni/a é através <strong>da</strong> análise <strong>da</strong><br />

relação entre as virtu<strong>de</strong>s do intelecto Livro VI e os gêneros <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> feliz do Livro X <strong>da</strong><br />

Ética a Nicômaco 6 , mas tal empresa seria gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais para a natureza <strong>de</strong>sse trabalho.<br />

Gostaria, contudo, <strong>de</strong> me <strong>de</strong>dicar brevemente a algumas passagens <strong>de</strong>sse livro que,<br />

acredito, favorecerão uma leitura mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> do trecho em que Aristóteles no Livro<br />

X expõe a superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> contemplativa. Deixando <strong>de</strong> lado, assim, a numeração<br />

exaustiva e complexa que Aristóteles faz <strong>da</strong>s facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s racionais, po<strong>de</strong>-se dizer que o<br />

estagirita trabalha <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma divisão básica entre a parte propriamente teórica e a<br />

parte prática <strong>da</strong> alma racional. Enquanto à primeira concerne exclusivamente o<br />

necessário, à outra cabe levar em conta a situação particular. Ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las tem um<br />

modo particular <strong>de</strong> raciocínio e uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> excelente: a qewri/a ou contemplação,<br />

referente às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s teóricas; e a fro/nhsij ou discernimento, referente à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

prática envolvendo a ação humana.<br />

É importante perceber aqui como Aristóteles, com um jogo <strong>de</strong> exemplos e<br />

analogias, <strong>de</strong>monstra a posição relativa entre a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> teórica e prática <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um<br />

esquema geral baseado na relação entre ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e falsi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Do mesmo modo que para<br />

6 Nesse sentido cf. PAIXÃO, 2002; 2007<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 207


o <strong>de</strong>sejo a relação entre busca e repulsa é paralela à <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> do raciocínio<br />

prático, os juízos particulares <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> prática são, em última análise, a mesma<br />

relação entre ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e falso próprios <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> teórica, mas aplicados em função<br />

<strong>de</strong> um indivíduo em uma <strong>da</strong><strong>da</strong> situação. (EN VI. 1-2 1139a-b) Um pouco mais adiante<br />

no texto, Aristóteles afirma explicitamente que:<br />

a função <strong>de</strong> ambas as partes intelectivas [<strong>da</strong> alma] é, então, a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. As<br />

disposições em que ca<strong>da</strong> uma, principalmente, diz a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> são as virtu<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

ambas. (EN VI. 2 1139b12-13)7<br />

No entanto, é preciso atentar para o fato <strong>de</strong> que, apesar <strong>de</strong> ambas serem<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s cuja função é a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, elas se relacionam sob uma certa hierarquia, e isso é<br />

justamente o que Aristóteles afirma em EN VI. 13 1145ª 6-8, quando a hierarquia <strong>da</strong>s<br />

duas virtu<strong>de</strong>s do intelecto é posta às claras:<br />

Mas, contudo, [a fro/nhsij] nem é senhora <strong>da</strong> sabedoria nem <strong>da</strong> melhor<br />

parte, do mesmo modo que a medicina não é <strong>da</strong> saú<strong>de</strong>. Pois [a medicina]<br />

não a usa, mas observa como ela se produz, ela dá or<strong>de</strong>ns em função <strong>da</strong><br />

saú<strong>de</strong>, mas não para ela. 8<br />

Aristóteles, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> afirmar a imprescindibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do discernimento<br />

(fro/nhsij) para a excelência moral propriamente dita, <strong>de</strong> como ele permite a escolha e<br />

como ele, por si só, já seria bom por ser uma excelência do intelecto – ain<strong>da</strong> que na<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>corresse <strong>de</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> (EN VI. 13 1144b30-a6), nos lembra <strong>de</strong> que, apesar disso<br />

tudo, o discernimento não tem autori<strong>da</strong><strong>de</strong> sobre a sabedoria, pois se coloca para com ela<br />

em uma relação semelhante a <strong>da</strong> que a medicina tem com a saú<strong>de</strong>. É difícil ler nessa<br />

passagem outra coisa senão que Aristóteles atribui à eu)<strong>da</strong>imoni/a o papel <strong>de</strong> fim para o<br />

qual a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> fro/nhsij se dirige. É claro que não faz sentido afirmar que a<br />

fro/nhsij se coloca como meio para a sabedoria em sentido instrumental, uma vez que<br />

Aristóteles já <strong>de</strong>ixou claro o papel que a fro/nhsij tem na <strong>de</strong>liberação e na consecução<br />

<strong>da</strong> ação moral e como essa é in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> qewri/a. A idéia <strong>de</strong>ssa passagem só po<strong>de</strong><br />

ser, então, que, a <strong>de</strong>speito <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> regulativa que a fro/nhsij tem no âmbito <strong>da</strong><br />

7 a0mfote/rwn dh\ tw~n nohtikw~n mori/wn a0lh/qeia to\ e1rgon. kaq 0 a3j ou[n ma/lista e3ceij alhqeu/sei<br />

e(ka/teron, au[tai a)retai\ a0mfoi~n.<br />

8<br />

a)lla\ mh\n ou)<strong>de</strong>\ kuri/a g0 e)sti\ th~j sofi/aj ou)<strong>de</strong> tou~ belti/onoj mori/ou, w3sper ou)<strong>de</strong> th~j u(giei/as h(<br />

i)atrikh/: ou) ga\r xrh~tai au)th|/, a)ll0 o(ra| ~ o#pwj ge/nhtai: e)kei/nhj ou[n e3neka e)pita/ttei, all0 ou)k<br />

e)keinh|.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 208


ação moral, ela não ocupa o papel <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> que um fim mais final tem. A qewri/a,<br />

por sua vez, é aquilo que é o mais digno <strong>de</strong> ser buscado e, exatamente por isso, ela se<br />

coloca como aquilo para o que a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> fro/nhsij se dirige em última análise.<br />

(assim como a saú<strong>de</strong> para a medicina). Ain<strong>da</strong> que as ações que visam a estabelecer a<br />

saú<strong>de</strong> sejam coman<strong>da</strong><strong>da</strong>s pela medicina, não é esta que <strong>de</strong>termina o que seja a saú<strong>de</strong><br />

nem como ela seja alcança<strong>da</strong>. Ao contrário, apesar <strong>da</strong> saú<strong>de</strong> não interferir propriamente<br />

na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> medicina, é aquela que coman<strong>da</strong> esta, pois é o fim último ao qual essa<br />

arte visa.<br />

Essa relação entre as virtu<strong>de</strong>s <strong>da</strong>s partes do intelecto confirma aquilo que<br />

suspeitávamos quanto ao papel <strong>da</strong> qewri/a no interior <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> e corrobora para<br />

uma nova especificação que é feita <strong>da</strong> natureza humana em EN X. 7.<br />

E o que foi dito antes servirá também agora: aquilo que é próprio <strong>de</strong> ca<strong>da</strong><br />

coisa é por natureza o mais forte e mais prazeroso para essa coisa. E para o<br />

homem, então, é a vi<strong>da</strong> segundo o intelecto, uma vez que isso, mais que<br />

outra coisa, é o homem. (EN X. 7 1178 a 4-7) 9<br />

Se o homem é principalmente o nou~j , é na ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> qewri/a que ele realiza<br />

aquilo que lhe é mais essencial, e se utilizarmos aqui o argumento <strong>da</strong> função avançado<br />

no Livro I teremos que é nessa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, então, que resi<strong>de</strong> para o homem a eu)<strong>da</strong>imoni/a.<br />

Saber, entretanto, que a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mais própria do homem é a qewri/a e que a função<br />

po<strong>de</strong> ser exerci<strong>da</strong> em diferentes graus não é o bastante para resolver o problema<br />

apontado por PURINTON (1998) <strong>de</strong> que a existência <strong>de</strong> duas vi<strong>da</strong>s felizes não <strong>de</strong>corre<br />

do argumento <strong>da</strong> função.<br />

Em EN I, 6 1096b27-31 Aristóteles propõe, em contraste a noção platônica do<br />

bem como forma única, uma leitura <strong>de</strong> bem por analogia:<br />

[As coisas chama<strong>da</strong>s bens] não se assemelham, pois, às coisas homônimas<br />

por acaso. Mas são os bens um por serem a partir <strong>de</strong> um ou por todos<br />

contribuírem para um único bem, ou, ain<strong>da</strong>, por analogia? Como a visão<br />

para o corpo assim é o intelecto para a alma, isto é, alguma outra coisa para<br />

outra coisa. (EN I. 6 1096 b 27-31) 10<br />

9<br />

to_ lexqe/n te pro/teron a(rmo/sei kai_ nu~n: to_ ga_r oi)kei~on e(ka/stw| th| ~ fu/sei kra/tiston kai_ h3disto/n<br />

e)stin e(kastw|: kai_ tw~ | a)nqrw/pw| dh_ o( kata_ to_n nou~n bi/oj, ei1per tou~to ma/lista a1nqrwpoj.<br />

10<br />

ou) ga_r e1oike toi~j ge a)po/ tu/xhj o(mwnu/moij. all0 a]ra/ ge tw| ~ a)f0 e(no_j ei]nai h2 pro_j e4n a#panta<br />

suntelei~n, h2 ma~llon kat0 a)nalogi/an; w(j ga_r e_n sw_mati o1yij, e)n yuxh~ | nou~j, kai\ a!llo dh_ e)n<br />

a!llw|.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 209


Seria possível, então, utilizar essa noção <strong>de</strong> bem por analogia para tentar<br />

compreen<strong>de</strong>r melhor a relação entre a contemplação e uma outra forma <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>?<br />

Isso é o que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> David CHARLES em seu artigo “Aristotle on well-being and<br />

intellectual contemplation”, segundo o qual assim como qewri/a é a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> excelente<br />

e final <strong>de</strong> uma parte <strong>da</strong> alma, a fro/nhsij também o é com relação à outra parte <strong>da</strong><br />

alma. Como já vimos que a qewri/a é a melhor ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> e a que é mais essencial ao<br />

homem e vimos que a fro/nhsij apresenta, <strong>de</strong> fato, uma semelhança estrutural com<br />

aquela ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> em enquadrar as vi<strong>da</strong>s teórica e política como felizes está<br />

em gran<strong>de</strong> medi<strong>da</strong> resolvi<strong>da</strong>. Se qewri/a é o caso principal <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, a fro/nhsij é<br />

uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> que se enquadraria como felici<strong>da</strong><strong>de</strong> na medi<strong>da</strong> em que se relaciona com<br />

qewri/a. (CHARLES, 1999: 217-218).<br />

É interessante notar que a semelhança estrutural entre as vi<strong>da</strong>s ética e<br />

contemplativa não foi aponta<strong>da</strong> somente por partidários <strong>de</strong> uma posição intelectualista.<br />

Marco ZINGANO (2007: 508) argumenta que a estratégia <strong>de</strong> inserção <strong>da</strong> contemplação<br />

no quadro do que é a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> na Ética a Nicômaco é por vias <strong>de</strong> sua semelhança com<br />

aquilo que já foi estabelecido como a “boa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>”.<br />

E se for <strong>de</strong>monstrado que ela satisfaz estas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s [as características<br />

atribuí<strong>da</strong>s à virtu<strong>de</strong> moral] do melhor modo, mostra-se assim não somente<br />

que a contemplação tem lugar na felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas também que tem aí o<br />

primeiro lugar (ZINGANO, 2007:508)<br />

Essa abor<strong>da</strong>gem, apesar <strong>de</strong> notar esse aspecto <strong>de</strong> maior relevância entre a<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> moral e a contemplação, na tentativa <strong>de</strong> sustentar uma concepção <strong>de</strong><br />

eu)<strong>da</strong>imoni/a que inclua vários bens, falha por inverter a seta valorativa entre a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

contemplativa e a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> moral, ao dizer que a primeira afere sua participação na<br />

eu)<strong>da</strong>imoni/a pela semelhança que carrega com a segun<strong>da</strong>, enquanto que o que acontece<br />

é exatamente o contrário. É na medi<strong>da</strong> em que o exercício <strong>da</strong> fro/nhsij presente na<br />

ação moral é uma forma <strong>de</strong> realizar a função humana, cuja mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> mais excelente é<br />

a contemplação, que po<strong>de</strong>mos dizer que a vi<strong>da</strong> moral satisfaz os requisitos necessários<br />

para qualificar essa vi<strong>da</strong> como feliz em segundo grau.<br />

Não há porque duvi<strong>da</strong>r <strong>de</strong> que a teoria seja realmente o caso central <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

no pensamento <strong>de</strong> Aristóteles, e isso é exposto com muita clareza em EN X 8, quando o<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 210


estagirita investiga a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> em ca<strong>da</strong> classe <strong>de</strong> sua divisão tripartite<br />

dos seres vivos. Os <strong>de</strong>uses, que na<strong>da</strong> mais fazem senão engajar em ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> teorética,<br />

são aqueles sumamente bem aventurados, ao passo que o homem, cuja ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> se<br />

assemelha à divina, também po<strong>de</strong> ser feliz. Aos animais, por sua vez, como estão<br />

absolutamente privados <strong>de</strong> qewri/a, não é possível chamá-los felizes em nenhum grau<br />

(EN X. 8 1178b20-28). Não há, no entanto passagem que expresse mais claramente essa<br />

relação com a eu)<strong>da</strong>imoni/a que:<br />

Tanto se esten<strong>de</strong> a contemplação, quanto se esten<strong>de</strong> a felici<strong>da</strong><strong>de</strong>, e para os<br />

que ao contemplar mais se <strong>de</strong>dicam, mais são felizes, não por aci<strong>de</strong>nte, mas<br />

pela própria contemplação, pois é valiosa por ela mesma. A felici<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

assim, <strong>de</strong>ve ser uma certa contemplação (EN X.8 1178b28-32) 11<br />

A i<strong>de</strong>ntificação <strong>da</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> com a contemplação neste trecho é inequívoca. “A<br />

felici<strong>da</strong><strong>de</strong> se esten<strong>de</strong> tanto quanto há contemplação” e isso quer dizer que é a<br />

contemplação a própria fonte <strong>de</strong> eu)<strong>da</strong>imoni/a Não é preciso recuperar o argumento que<br />

justifica a inclusão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> política como sendo semelhante à <strong>da</strong> contemplação e,<br />

por isso, participando <strong>da</strong> eu)<strong>da</strong>imoni/a na mesma medi<strong>da</strong> em que participa <strong>de</strong>la. E tal<br />

compreensão, se não é dita expressamente nesse trecho, é por ele autoriza<strong>da</strong> pela<br />

afirmação <strong>de</strong> que a felici<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser uma certa contemplação (qewri/a tij). Como<br />

Aristóteles não dá exemplos <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> contemplação, é razoável pensar que, com essa<br />

provisão, ele gostaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar aberto a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma felici<strong>da</strong><strong>de</strong> que não fosse<br />

contemplação stricto sensu, mas algo como a contemplação, um tipo <strong>de</strong> contemplação.<br />

A julgar pela <strong>de</strong>scrição que faz o estagirita <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s e virtu<strong>de</strong>s do intelecto no<br />

Livro VI, como vimos, não haveria porque não enten<strong>de</strong>rmos a fro/nhsij como uma<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse tipo.<br />

Acreditamos ter chegado, nesse ponto, à exposição, ain<strong>da</strong> que muito<br />

rápi<strong>da</strong>, <strong>de</strong> uma hipótese que permite enten<strong>de</strong>r a Ética a Nicômaco como um todo<br />

coerente. Essa leitura, se correta, aponta para uma concepção <strong>de</strong> felici<strong>da</strong><strong>de</strong> que parte <strong>da</strong>s<br />

noções <strong>de</strong> finali<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong> função do homem para chegar à conclusão <strong>de</strong> que a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

última ou o bem para o homem é a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> virtuosa do intelecto. Essa ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a<br />

qewri/a, é, nesse sentido, aquilo que é o bem para o homem, po<strong>de</strong>ndo-se dizer que uma<br />

11 e)f0 o#son dh_ diatei/nei h( qewri/a, kai\ h( eu)<strong>da</strong>imoni/a, kai\ oi[j ma~llon u(parxei to_ qewrei~n, kai_<br />

eu)<strong>da</strong>imonei~n, ou) kata_ sumbebhko_j a)lla_ kata_ th_n qewri/an: au3th ga_r kaq 0 au(th_n timi/a. w#st0 ei1h<br />

a2n h( eu)<strong>da</strong>imoni/a qewri/a tij.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 211


vi<strong>da</strong> é feliz na medi<strong>da</strong> em que ela tem por meta a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do nou~j. No entanto – o<br />

que tem <strong>de</strong>ixado muitos dos comentadores perplexos – aceitar que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> vi<strong>da</strong><br />

teórico é o exemplo máximo <strong>de</strong> eu)<strong>da</strong>imoni/a não implica uma rejeição do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

vi<strong>da</strong> político pautado pela ação moral, ao menos na medi<strong>da</strong> em que, em última análise,<br />

tal mo<strong>de</strong>lo também se orienta em analogia com a qewri/a.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 204-213, 2008 213


Análise Crítica-Literária e Tradução <strong>da</strong> Carta Circular <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Esmirna Sobre o<br />

Martírio <strong>de</strong> São Policarpo: a mais antiga narrativa do gênero<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

Elias Santos do PARAIZO JÚNIOR<br />

Especialista pela UFPR-UMESP<br />

espjr1996@hotmail.com<br />

A carta que a Igreja <strong>de</strong> Esmirna enviou à <strong>de</strong> Filomélio, narrando este martírio, é um<br />

documento <strong>de</strong> meados do séc. II (156 d.C.); a mais antiga narrativa <strong>de</strong> martírio que se<br />

conhece; transcen<strong>de</strong> em importância, razão pela qual se procura evi<strong>de</strong>nciar que nenhum<br />

estudo <strong>da</strong> Igreja po<strong>de</strong> ser completo sem a discussão <strong>da</strong>s Atas dos primeiros mártires. Há<br />

muito, eruditos têm confiado na monumental coleção <strong>de</strong>stes Atos do literato marista – Thierry<br />

Ruinart, e sua Acta primorum martyrum sincera (1689, 1801 e 1859); ao mesmo tempo, com<br />

a gran<strong>de</strong> coleção <strong>de</strong> vitae e passiones dos Jesuítas em Antwerp (1643) sob a orientação do<br />

estudioso Jean Bolland, foi feito muito para estabelecer realmente os textos dos Atos. Outras<br />

mais recentes edições encontram-se <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>ste escopo. Porém, não é muito grandiosa a<br />

tarefa <strong>de</strong> justificar a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> novas edições críticas e traduções para os Atos e Relatos<br />

<strong>de</strong> Martírio, ferramentas tão necessárias a todos os estu<strong>da</strong>ntes do império romano e <strong>da</strong> história<br />

do cristianismo primitivo. As palavras <strong>de</strong> Hebert Mussurilo, expert <strong>de</strong>sta questão, são:<br />

“Nossas pesquisas em Grego e Latim amplamente dispersas, e a existência <strong>de</strong> diferentes<br />

recensões adicionais torna <strong>de</strong>licado o surgimento <strong>de</strong> alguma edição; comentários e traduções<br />

são esparsas ou não existem” (1972, p.v.). Não é possível embarcar em uma nova tradução<br />

sem antes chamar as palavras <strong>de</strong> Edward Gibbon. Os tempos mu<strong>da</strong>ram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ele escreveu<br />

A negligência total <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e provavelmente <strong>de</strong>stes martírios primitivos foi<br />

ocasiona<strong>da</strong> por um gran<strong>de</strong> erro natural. Os escritores eclesiásticos dos quartos<br />

e quintos séculos atribuíram aos magistrados <strong>de</strong> Roma o mesmo ardor<br />

implacável e empenho severo com o qual encheram seus próprios peitos <strong>de</strong><br />

encontro aos heréticos ou aos idolatras <strong>de</strong> suas épocas (1952, p. 467).<br />

Certamente a críticas <strong>de</strong> Gibbon, impaciente com o estado <strong>da</strong> erudição contemporânea,<br />

acelerou o surgimento <strong>da</strong> história na Igreja primitiva basea<strong>da</strong> em fun<strong>da</strong>mentos mais<br />

a<strong>de</strong>quados.


A Literatura <strong>da</strong> Era <strong>da</strong>s Perseguições<br />

Os extratos literários, do período <strong>da</strong>s perseguições que chegaram até nós, <strong>da</strong>tam <strong>de</strong><br />

meados do séc. II até começo do séc. IV. Uma literatura que sofreu uma consi<strong>de</strong>rável<br />

alteração em <strong>de</strong>corrência <strong>da</strong>s novas condições <strong>de</strong> vi<strong>da</strong>. Os escritos <strong>da</strong> era apostólica e subapostólicas<br />

haviam se circunscrito, sobretudo a cultivar e a comunicar fielmente a mensagem<br />

<strong>de</strong> Jesus, bem como as instituições e preceitos indispensáveis para a vi<strong>da</strong> cristã <strong>da</strong>s<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e indivíduos. A aceitação <strong>de</strong> relações mais intensas, inclusive literárias, com o<br />

ambiente não-cristão parecia <strong>de</strong>snecessária com a expectativa do retorno, < p a r o u s i a ><br />

do Messias para breve. Limitavam-se à vi<strong>da</strong> diária, à missão e à superação espiritual <strong>da</strong>s<br />

perseguições, que sempre <strong>de</strong> novo eclodiam, e que eram interpreta<strong>da</strong>s como provações pelas<br />

quais a Igreja tinha que passar. Por outro lado, também o ambiente secular ou pagão não teve<br />

ocasião <strong>de</strong> ocupar-se mais a fundo com o cristianismo, sob o aspecto intelectual e literário.<br />

Era tido como um dos muitos grupos religiosos do Império Romano, que não cumpria<br />

qualquer papel importante na vi<strong>da</strong> pública, e que na visão do povo muitas vezes nem mesmo<br />

se distinguia do ju<strong>da</strong>ísmo on<strong>de</strong> nascera.<br />

Mas cem anos após a morte e ressurreição <strong>de</strong> Jesus os cristãos, enfim, tiveram que<br />

reconhecer que a < p a r o u s i a > do Senhor haveria <strong>de</strong> protelar-se por um tempo in<strong>de</strong>finido,<br />

e que, por conseguinte, fazia-se imperioso estabelecer em caráter permanente o cristianismo<br />

na terra. Ao mesmo tempo o êxito do trabalho missionário fizera acrescer <strong>de</strong> tal modo o<br />

número dos cristãos nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s que sua presença já não podia passar <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>, passando<br />

aos poucos a abarcar também to<strong>da</strong>s as cama<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população, não apenas os que não<br />

possuíam formação e que eram mais fáceis <strong>de</strong> seduzir, como <strong>de</strong> início gostava <strong>de</strong> apresentálos<br />

a crítica secular mais erudita. Pelo contrário, os cristãos instruídos inseriram na Igreja sua<br />

erudição filosófica e retórica, com ela começando a perpassar sua fé e a fun<strong>da</strong>mentar e<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r sua racionali<strong>da</strong><strong>de</strong> na altercação com as religiões tradicionais. Suas <strong>de</strong>clarações,<br />

apesar <strong>de</strong> afirmações em contrário, foram leva<strong>da</strong>s bastante a sério pelos antagonistas, os<br />

intelectuais pagãos, e também consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s dignas <strong>de</strong> uma resposta literária. Frontão <strong>de</strong> Cirta,<br />

o mestre do imperador Marco Aurélio (161-180), fez um discurso público contra os cristãos.<br />

O sofista Luciano <strong>de</strong> Samósata, em sua sátira De morte Pelegrini, ridicularizou os cristãos por<br />

volta <strong>de</strong> 170 por causa <strong>de</strong> seu amor ao próximo e <strong>de</strong> sua disposição ao sacrifício. O platônico<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

215


alexandrino Celso compôs por volta <strong>de</strong> 178 1 um escrito polêmico com o nome Ἀληθὴς<br />

Λόγος contra os cristãos, a que Orígenes respon<strong>de</strong>u com seu gran<strong>de</strong> tratado Contra Celsum.<br />

A literatura apologética cristã tinha, além disso, que rebater as agressões práticas do<br />

estado pagão contra a Igreja, isto é, as perseguições, não somente evi<strong>de</strong>nciando o caráter<br />

racional e inofensivo do cristianismo, mas também fun<strong>da</strong>mentando sua exigência exclusiva <strong>de</strong><br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> e recomen<strong>da</strong>do seu valor único para o estado, inclusive com base no comportamento<br />

mo<strong>de</strong>lar <strong>de</strong> seus seguidores. De meados do séc. II até inícios do séc. IV as perseguições e a<br />

discussão do cristianismo com o ambiente pagão marcaram <strong>de</strong> maneira tão intensa o conjunto<br />

<strong>da</strong> literatura cristã, que este período po<strong>de</strong> ser resumido sob este conceito, mais histórico que<br />

literário, <strong>da</strong> “literatura <strong>da</strong> era <strong>da</strong>s perseguições”. Seu tema passou a ser os processos contra os<br />

cristãos, em parte como autos judiciais e em parte também como relatos e narrativas a seu<br />

respeito. As gran<strong>de</strong>s perseguições a partir <strong>de</strong> meados do séc. III representavam um grave<br />

problema para a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Igreja, e também um problema teológico, que precisava ser<br />

pon<strong>de</strong>rado e respondido nos tratados que com ela se ocupava.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, a penetração <strong>da</strong> formação filosófico-retórica <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> na Igreja<br />

configurou não apenas o seu trabalho para fora, mas também o seu <strong>de</strong>senvolvimento interno,<br />

sua exegese, pregação e dogmática, que passou por um primeiro período <strong>de</strong> florescimento. Se<br />

os livros bíblicos ain<strong>da</strong> podiam ser acusados pela forma e estilo literário, agora os escritos<br />

cristãos evoluíram para ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras obras-primas, <strong>de</strong> acordo com padrões <strong>da</strong> arte literária<br />

antiga. Disto fazia parte também a discussão interna que se cristalizou por escrito sobre o<br />

caminho eclesiástico e teológico a ser trilhado pelo cristianismo em expansão, isto é,<br />

esclarecer o que na Igreja podia ser acolhido como teologia váli<strong>da</strong> < o r t o d o x i a > e o que<br />

<strong>de</strong>veria ser refutado como herético < h e t e r o d o x o >. Para este abstruso processo <strong>de</strong><br />

inculturação do cristianismo à cultura grega antiga foi cunhado, por volta <strong>da</strong> vira<strong>da</strong> dos sécs.<br />

XIX para XX, o conceito “helenização” do cristianismo, se bem que no sentido <strong>de</strong> uma<br />

inadmissível superestrutura e falsificação <strong>da</strong> doutrina original <strong>de</strong> Jesus tal como se havia<br />

cristalizado nos escritos bíblicos. Mesmo sem po<strong>de</strong>rmos entrar mais a fundo nos complicados<br />

problemas <strong>de</strong> hermenêutica, po<strong>de</strong>-se, no entanto articular que a pesquisa mais recente<br />

<strong>de</strong>monstrou com clareza que tal processo era e é inevitável para a expansão universal do<br />

cristianismo, que ele nunca permanece unilateral e que não ocorreu exclusivamente na era<br />

1<br />

Esta <strong>da</strong>tação tradicional e amplamente aceita baseia-se em conclusões, sendo também posta em dúvi<strong>da</strong> na era<br />

mo<strong>de</strong>rna.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

216


helenista, mas ocorre to<strong>da</strong>s as vezes que a mensagem cristã é traduzi<strong>da</strong> para outra linguagem<br />

e para outra cultura. O que nisto se per<strong>de</strong> e o que se aufere para a fé é difícil <strong>de</strong> ser<br />

corretamente avaliado.<br />

Diante <strong>de</strong>ste pano <strong>de</strong> fundo, a literatura cristã dos sécs. II e III po<strong>de</strong> ser qualifica<strong>da</strong><br />

nestes dois gran<strong>de</strong>s grupos: o do predomínio exclusivo <strong>da</strong> literatura grega - κοινὴ διάλεκτος<br />

(língua comum) até o final do séc. II, e o dos inícios <strong>da</strong> literatura latina cristã na África do<br />

Norte e em Roma a partir do final do séc. II. De acordo com o conteúdo e os gêneros literários<br />

po<strong>de</strong>-se distinguir: escritos apologéticos, os martirológicos, a literatura teológica através <strong>de</strong><br />

tratados, comentários, pregações etc., on<strong>de</strong> um < t o p o s > literário cabe às discussões em<br />

torno <strong>da</strong> fé ortodoxa, bem como obras que visam francamente as necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s práticas <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

cristã <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s, como cartas, escritos litúrgicos, tratados morais, etc.<br />

Gênero Literário: Relatos <strong>de</strong> Martírio<br />

Passam a existir a partir do séc. II, sob coação direta <strong>da</strong>s perseguições contra cristãos, os<br />

escritos sobre os mártires, que po<strong>de</strong>m ser divididos em três grupos: Acta, Passiones /<br />

Martyria e Legen<strong>da</strong>e. Os < Acta > são atas (protocolos) do processo concretizado<br />

normalmente diante do procônsul, glosa<strong>da</strong>s pelos escrivões do tribunal e reproduzindo ao pé<br />

<strong>da</strong> letra o interrogatório. Isso não exclui que mais tar<strong>de</strong> fossem completa<strong>da</strong>s ou refundi<strong>da</strong>s por<br />

um relator cristão, pois elas se preservam na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> apenas na tradição <strong>da</strong> Igreja. Nas <<br />

Passiones / Martyria >, pelo contrário, são autores cristãos que narram – muitas vezes com<br />

interpretação <strong>de</strong>cidi<strong>da</strong>mente teológica – os últimos dias e a morte dos mártires. As <<br />

Legen<strong>da</strong>e > contêm um cerne histórico, mas em volta <strong>de</strong>sse escol há muitos elementos <strong>da</strong><br />

fantasia piedosa; constituem a origem <strong>da</strong> literatura hagiográfica, mas não precisamos falar<br />

<strong>de</strong>las aqui, uma vez que surgem só a partir do séc. IV.<br />

As Atas dos mártires em regra começam informando a <strong>da</strong>ta, o nome do juiz e dos<br />

acusados como também a acusação. A elaboração cristã do quadro revela-se nas<br />

caracterizações <strong>da</strong>s pessoas como “santos mártires”, “imperadores iníquos”, ou na<br />

qualificação <strong>da</strong>s leis como “injustas”. O procônsul abre o interrogatório indicando a<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> dos acusados, e estes às vezes não dão o seu nome civil, mas apenas professam:<br />

“cristianus / a sum” como o único e ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro nome <strong>de</strong> um cristão. O processo não discute a<br />

substância do cristianismo, mas procura provar o pretenso crime dos cristãos, ou exige<br />

simplesmente que se jure pelo gênio <strong>de</strong> César e se ofereça um sacrifício imprecatório <<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

217


supplicatio > por ele; em suma, voltar à religião tradicional e racional dos romanos. O<br />

procônsul procura persuadir disso os réus, lembrando-lhes sua juventu<strong>de</strong> ou sua i<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

adianta<strong>da</strong>, suas obrigações familiares, etc., prometendo riqueza, honras e cargos ou<br />

ameaçando-os com torturas e a morte. Comumente, tudo isso não obtém o efeito esperado; ao<br />

contrário, os mártires, por sua vez, tomam a iniciativa e procuram <strong>da</strong>r testemunho <strong>de</strong> sua fé<br />

cristã, ou advertem o juiz e o público com a punição <strong>de</strong> Deus. No final, ficam apenas a<br />

confissão “cristianus / a sum” e a abdicação do culto pagão. É apregoa<strong>da</strong> então a pena <strong>de</strong><br />

morte. Isso se dá < ex tabella >: o julgamento é lido <strong>de</strong> uma tabela. Ou seja, a sentença já<br />

estava prepara<strong>da</strong> e estabeleci<strong>da</strong> básica e anteriormente.<br />

Os Martyria e Passiones reelaboram os subsídios dos Acta; agora, porém fala um autor<br />

cristão, que apresenta todo o episódio: as circunstâncias <strong>da</strong> prisão, a conjuntura do cárcere, a<br />

caracterização <strong>de</strong> pessoas, a <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s torturas e dos milagres que ocorrem nessas<br />

ocasiões. São sobrepostas reflexões teológicas e espirituais, cita-se a Bíblia e torna-se claro<br />

acima <strong>de</strong> tudo o <strong>de</strong>sígnio <strong>da</strong> tradição: edificar os crentes e fortalecer aqueles que também<br />

tenham que pa<strong>de</strong>cer o martírio mais tar<strong>de</strong>.<br />

Advém uma quali<strong>da</strong><strong>de</strong> peculiar do gênero literário dos relatos <strong>de</strong> mártires: enquanto<br />

todos os <strong>de</strong>mais escritos dos sécs. II e III po<strong>de</strong>m ser classificados segundo os diferentes<br />

grupos lingüísticos e autores <strong>de</strong> acordo com seus vínculos histórico-literários, os relatos <strong>de</strong><br />

mártires formam uma tal uni<strong>da</strong><strong>de</strong> global <strong>de</strong> línguas e autores que <strong>de</strong>vem ser tratados<br />

conjuntamente sem consi<strong>de</strong>rar a língua ou o autor.<br />

As “Atas Pagãs <strong>de</strong> Mártires”<br />

Deste modo como as cognomina Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff (1898) – não<br />

po<strong>de</strong>m ser equipara<strong>da</strong>s às Atas cristãs <strong>de</strong> mártires e não são antecessoras ou análogas no<br />

paganismo. Trata-se antes <strong>de</strong> 22 fragmentos <strong>de</strong> papiro dos sécs. I-III, que constituem escritos<br />

<strong>de</strong> propagan<strong>da</strong> <strong>da</strong> resistência <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dãos gregos <strong>de</strong> Alexandria contra a dominação romana.<br />

Assemelham-se às Atas cristãs <strong>de</strong> mártires unicamente por escolherem a forma protocolar<br />

judicial e informarem sobre a oposição à violência do Estado, estando dispostos a morrer em<br />

nome <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al. Quando muito tiveram alguma acepção para o cristianismo na medi<strong>da</strong> em<br />

que talvez alguns cristãos se inspiraram em seus mo<strong>de</strong>los, como Tertualiano 2 que apresenta<br />

2 E.g. Tertuliano em Apologeticum 50,5-9.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

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também heróis não-cristãos como dignos <strong>de</strong> serem imitados. Mas já Justino 3 , Clemente <strong>de</strong><br />

Alexandria 4 e João Crisóstomo 5 salientam claramente as diferenças – não se trata<br />

propriamente <strong>de</strong> mártires <strong>da</strong> fé e seus motivos são inteiramente diferentes dos motivos<br />

cristãos – <strong>de</strong> modo que é preferível <strong>da</strong>r a esse gênero literário o título neutro <strong>de</strong> Acta<br />

Alexandrinorum.<br />

Policarpo e o seu Contexto Histórico<br />

Policarpo que nasceu em uma família cristã <strong>da</strong> alta burguesia no ano 69, em Esmirna,<br />

cujo nome significa “muito fruto”, chegou ain<strong>da</strong> a ver e a ouvir, na sua juventu<strong>de</strong>, o apóstolo<br />

João, que o investiu no cargo <strong>de</strong> bispo <strong>de</strong> Esmirna 6 , on<strong>de</strong> se conservou por mais <strong>de</strong> cinqüenta<br />

anos. Foi mestre <strong>de</strong> Irineu, o mais importante erudito cristão do final do séc. II. Se pu<strong>de</strong>rmos<br />

acreditar em Tertuliano 7 e Ireneu 8 , Policarpo foi <strong>de</strong>signado para seu ofício <strong>de</strong> bispo pelos<br />

apóstolos, que o tinham conhecido ain<strong>da</strong> como infante.<br />

Pelo ano <strong>de</strong> 154 ou 155, esforçou-se por obter um acordo, em Roma, com o papa<br />

Aniceto, a respeito do dia e <strong>da</strong> celebração litúrgica <strong>da</strong> festa <strong>da</strong> Páscoa; não se conseguiu, na<strong>da</strong><br />

obstante, um entendimento entre ambos 9 ; a Igreja <strong>de</strong> Roma celebrava a festa sempre no Dom.,<br />

ao passo que as igrejas <strong>da</strong> Ásia a celebravam segundo o “uso antigo”, isto é, a 14 <strong>de</strong> Nisan<br />

(calendário ju<strong>da</strong>ico), pouco importando o dia <strong>da</strong> semana em que caísse. O bispo <strong>de</strong> Esmirna e<br />

o bispo <strong>de</strong> Roma permaneceram firmes nas respectivas posições, mas “em paz”. Quando<br />

Marcião, o heresiarca, <strong>de</strong>stituído por seu bispo, perguntou a Policarpo se o conhecia,<br />

respon<strong>de</strong>u: “Sim; eu te conheço. És o primogênito <strong>de</strong> Satanás" 10 . Ain<strong>da</strong> estando em Roma,<br />

Policarpo conheceu alguns hereges <strong>da</strong> seita dos Valencianos.<br />

3 E.g. Justino em 2 Apologia 10,8.<br />

4 E.g. Clemente <strong>de</strong> Alexandria em Stromateis IV, 17,1-3.<br />

5 E.g. João Crisóstomo In sanctum Babylam 7: SC 362,136ss.<br />

6 Cf. Tertuliano De praescr. 32,2; Euzébio h.e. 5.20,5ss.<br />

7 Cf. Tertuliano De praescr. 32,2.<br />

8 Cf. Ireneu Her. 3.3,4.<br />

9 Cf. Euzébio h.e. IV, 14,1.<br />

10 Ireneu Haer. 3,3.4.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

219


Sua morte se <strong>de</strong>u em um local que era palco <strong>de</strong> muitas mortes <strong>de</strong> cristãos: o estádio, que<br />

tinha um caráter muito importante para a civilização romana. Eram centros <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> social dos<br />

romanos, e fonte <strong>de</strong> lazer e diversão para eles. On<strong>de</strong> quer que dominassem uma ci<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

construíam um estádio. Era um símbolo do po<strong>de</strong>r e engenhosi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos romanos. Eles<br />

adoravam o caráter espetaculoso <strong>da</strong>s apresentações, em especial no que se refere às mortes<br />

ocorri<strong>da</strong>s durante os espetáculos. Mas não eram só nos estádios que os cristãos eram mortos.<br />

Apesar <strong>de</strong> muitas vezes a perseguição ser coman<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos próprios lí<strong>de</strong>res do Império,<br />

outras vezes ocorriam perseguições conduzi<strong>da</strong>s por ci<strong>da</strong>dãos comuns, entre eles muitos<br />

ju<strong>de</strong>us, que não concor<strong>da</strong>vam com sua pregação que, entre outras coisas, pregava o abandono<br />

do culto aos <strong>de</strong>uses. Estima-se que até o final do séc. II cerca <strong>de</strong> 80 mil cristãos foram mortos.<br />

Mas, como <strong>de</strong>clarara Tertuliano: “o sangue dos mártires é semente <strong>de</strong> cristãos”. Quanto mais<br />

cristãos eram mortos, mais a igreja crescia. Os relatos <strong>de</strong> martírio registram o momento em<br />

que se dá o embate civilizacional entre a ‘or<strong>de</strong>m sacrifical antiga’ e a ‘or<strong>de</strong>m cristã’, do qual,<br />

não por acaso, o cristianismo sai vitorioso na exata medi<strong>da</strong> em que abdica <strong>da</strong> guerra.<br />

A socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e a religião estiveram, até o advento do Cristianismo, fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s no<br />

mecanismo do bo<strong>de</strong> expiatório e na possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua repetição simbólica no rito sacrifical.<br />

O holocausto do bo<strong>de</strong> expiatório, neste aspecto, surge <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarregar a soma<br />

dos antagonismos e <strong>da</strong> violência social generaliza<strong>da</strong> sobre uma vítima inerme, a qual, incapaz<br />

<strong>de</strong> retaliação, porá fim com sua morte ao ciclo <strong>de</strong> vinganças mútuas. Uma vez sacrifica<strong>da</strong>, a<br />

vítima é converti<strong>da</strong> em objeto <strong>de</strong> adoração, e a sua memória, na forma do rito e do mito,<br />

proverá à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> meios simbólicos <strong>de</strong> administrar a violência, pelo menos enquanto não<br />

se produza uma nova crise mimética. Com o advento do cristianismo, o mecanismo sacrifical<br />

é revelado e inutilizado. Doravante o conflito mimético, em vez <strong>de</strong> mediatizado pela<br />

coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>, é apresentado à consciência, na qual adquire sentido moral e ascético. O que<br />

diferencia o Evangelho dos mitos antigos, ou do mito como tal, é a revelação cristã acerca <strong>da</strong><br />

inocência <strong>da</strong> vítima e <strong>da</strong> culpa <strong>da</strong> coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong> homici<strong>da</strong>, numa inversão simétrica do<br />

mecanismo do bo<strong>de</strong> expiatório.<br />

No séc. II o Império Romano estava em seu apogeu. O imperador Trajano havia<br />

estendido a fronteira do Império à sua máxima extensão. Adriano, seu sucessor, conservou a<br />

enorme área do império e reconheceu que não valia a pena estendê-lo ain<strong>da</strong> mais. Ao tempo<br />

do martírio <strong>de</strong> Policarpo o imperador <strong>de</strong> Roma era Antonino Pio — sucessor <strong>de</strong> Adriano,<br />

tendo sido adotado como filho por ele —, o qual reinou <strong>de</strong> 138-161 e não foi um imperador<br />

<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s realizações.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

220


A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Esmirna (atual Izmir, na Turquia) está localiza<strong>da</strong> junto à costa do mar Egeu,<br />

a cerca <strong>de</strong> 450 km ao sudoeste <strong>de</strong> Istambul. Esta região, na época do Império Romano, era<br />

conheci<strong>da</strong> como Ásia Menor. Esmirna foi fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por volta do ano 3000 a.C. e foi anexa<strong>da</strong><br />

ao Império Romano no ano <strong>de</strong> 85 a.C., após o final <strong>da</strong> Primeira Guerra Mitridática (89-85<br />

a.C.). Fazia parte <strong>da</strong> província romana <strong>da</strong> Ásia. A primeira evidência do cristianismo em<br />

Esmirna é a referência feita à Igreja nela estabeleci<strong>da</strong> no livro do Apocalipse (2.8-11).<br />

Análise e Crítica-Literária <strong>da</strong> Carta Circular <strong>da</strong> Igreja <strong>de</strong> Esmirna<br />

Esta é a mais antiga narrativa <strong>da</strong> paixão e morte <strong>de</strong> mártir que se tenha conservado. É a<br />

primeira obra a usar este título “mártir” para <strong>de</strong>signar um cristão morto pela fé. Ela sofreu<br />

influência <strong>de</strong> narrativas análogas, escritas no ju<strong>da</strong>ísmo como II e IV Macabeus, e influenciou<br />

por sua vez o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ste gênero literário entre os cristãos. Em substância, é<br />

autêntica e fi<strong>de</strong>digna; reveste a forma <strong>de</strong> epístola <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Esmirna à Igreja <strong>de</strong><br />

Filomélio, uma pequena ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Psídia localiza<strong>da</strong> próxima a fronteira com a Frígia e cerca<br />

<strong>de</strong> 400 km a leste <strong>de</strong> Esmirna (ambas na Turquia asiática). Foi escrita pouco <strong>de</strong>pois <strong>da</strong> morte<br />

<strong>de</strong> Policarpo por um certo Marcião, não o gnóstico (cap. 20). Posteriormente, vários<br />

apêndices foram arraigados nos últimos capítulos.<br />

O autor, rememorando a paixão <strong>de</strong> Cristo, <strong>de</strong>lineia o testemunho cruento do bispo,<br />

citando também a réplica <strong>da</strong><strong>da</strong> ao procônsul Estácio, quando lhe or<strong>de</strong>nou amaldiçoar a Cristo:<br />

“Há oitenta e seis anos que O sirvo; jamais ele me fez mal algum; como po<strong>de</strong>rei eu blasfemar<br />

contra meu Rei e Salvador?” 11 No cap. 14, o narrador põe nos lábios do mártir, atado na<br />

fogueira, uma oração que é <strong>de</strong> extraordinário valor para a história <strong>da</strong>s antigas orações cristãs.<br />

Visto que as chamas <strong>da</strong> fogueira se abaularam em redor do mártir à guisa <strong>de</strong> velas <strong>de</strong> um<br />

navio, o confector transpassou-o com o punhal.<br />

Tal suce<strong>de</strong>u-se provavelmente aos 22 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 156. Um número menor <strong>de</strong><br />

estudiosos advoga na atuali<strong>da</strong><strong>de</strong> que o martírio <strong>de</strong>u-se no “gran<strong>de</strong> dia <strong>de</strong> sábado”, isto é, um<br />

domingo (para a significação <strong>de</strong>sta expressão) 12 ; o dia 23 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> fato caiu num<br />

domingo como advoga Euzébio 13 (167) durante o reinado do imperador Marcus Aurelius.<br />

11<br />

Tal frase <strong>de</strong>u na arena, lugar dos jogos olímpicos, um dos maiores teatros abertos <strong>da</strong> Ásia Menor, parte <strong>de</strong> cuja<br />

construção permanece até hoje.<br />

12 Cf. Epifânio. Pan. expos fi<strong>de</strong>i 24.<br />

13 Cf. Euzébio h.e. XV.1.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

221


Porém, a maioria dos estudiosos pensa que Euzébio estava mal informado, por não ter<br />

consciência do material contido no cap. 21. Mas a correta solução a partir <strong>da</strong> <strong>da</strong>ta menciona<strong>da</strong><br />

cap. 21 (se for aceita como histórico), e também L. Statius Quadratus for o consul ordinarius<br />

em 142 14 , então é impossível <strong>de</strong> se acreditar que por mais <strong>de</strong> 25 anos tenha permanecido no<br />

consulado. Portanto, a <strong>da</strong>ta mais plausível é, e.g. 155-56. Há outras discussões em an<strong>da</strong>mento<br />

também e os <strong>da</strong>dos contidos no relato do martírio <strong>de</strong> Policarpo <strong>de</strong> Esmirna não permitem<br />

<strong>de</strong>terminar com exatidão a <strong>da</strong>ta <strong>de</strong> sua morte 15 .<br />

O término <strong>da</strong> carta retoma a idéia do começo, terminando com um louvor ao mártir e a<br />

exortação a que seu exemplo seja seguido, < imitatio > (19-20). Conzelmann (1987, p.v.)<br />

atribui as informações sobre a <strong>da</strong>ta e a oração anexa<strong>da</strong>s no final (21-22) ao assim chamado –<br />

por Campenhausen (1957, p.v.) – “re<strong>da</strong>tor do Evangelho” (Evangeliumre<strong>da</strong>ktor). Segundo<br />

Campenhausen tratar-se-ia <strong>de</strong> início <strong>de</strong> um relato sobre doze mártires, em que o Martyrium<br />

Polycarpi era apenas o ponto culminante. Depois o re<strong>da</strong>tor teria <strong>de</strong>stacado Policarpo e<br />

mol<strong>da</strong>do a obra segundo sua concepção teológica própria: a < imitatio Christi > segundo o<br />

Evangelho. Por outro lado, Dehandshutter (1979, p.v.), apoiado em Buschmann (1994, p.v.),<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> re<strong>da</strong>cional <strong>de</strong> todo o texto, no qual o cap. 21 seria um acréscimo<br />

relativamente antigo.<br />

No comportamento <strong>de</strong> Policarpo, nos fatos milagrosos ocorridos no martírio, bem como<br />

na interpretação teológica e espiritual dos fenômenos ocorridos, po<strong>de</strong>mos diagnosticar os<br />

rudimentos típicos dos relatos <strong>de</strong> martírio. To<strong>da</strong>via, <strong>de</strong>ve-se consi<strong>de</strong>rar como fato fora do<br />

comum o tom <strong>de</strong>nsamente antiju<strong>da</strong>ico (12.2; 13.1; 18.1), que <strong>de</strong> resto ocorre apenas no<br />

martírio <strong>de</strong> Piônio 16 . São dignos <strong>de</strong> nota os pressupostos trinitarianos que abrolham no cap. 14<br />

e em outros lugares.<br />

Talvez a porção mais significativa <strong>de</strong>sse opúsculo seja o fato <strong>de</strong> que ele nos informa<br />

sobre as obras e as atitu<strong>de</strong>s dos cristãos que tiveram que sofrer o martírio no começo do séc.<br />

II. Um <strong>de</strong>sses cristãos, Germânico, sofreu uma morte heróica (3); mas um outro, Quinto,<br />

apostatou. Este era menos corajoso do que pensava. Denunciou-se como cristão, diante <strong>da</strong>s<br />

autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s, em um momento impetuoso; mas, chega<strong>da</strong> a hora <strong>de</strong> enfrentar a morte, per<strong>de</strong>u a<br />

14 Cf. PIR iii. 640.<br />

15 Cf. cap. II.I.C.<br />

16 Pionius 4.II ss.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

222


avura (4). Este inci<strong>de</strong>nte foi usado como lembrete, feito aos cristãos em geral, para que não<br />

se auto<strong>de</strong>nunciassem; que a natureza seguisse seu próprio curso (4).<br />

Quanto ao estilo do corpo do texto (1-20) é puramente funcional e ao mesmo tempo<br />

coloquial; ocasionalmente homilético (2.1-2, 22.1) com fortes reminiscências dos Evangelhos,<br />

por isso von Campenhausen sugere a teoria do Re<strong>da</strong>tor do Evangelho. Não há razões para<br />

conjeturar que o chefe <strong>de</strong> polícia – Hero<strong>de</strong>s, na prisão <strong>de</strong> Policarpo é uma imitação do<br />

martírio <strong>de</strong> Jesus (6.2). Po<strong>de</strong>ria se supor que eles estavam agindo pelas diretrizes em vigor<br />

com Plínio, reescritas pelo Imperador Trajano 17 <strong>de</strong> acordo com (11.1) que trata <strong>da</strong> punição<br />

com feras não ser possível. O autor do Martírio parece acreditar na teoria <strong>da</strong> conspiração do<br />

<strong>de</strong>mônio (17.1); também ele subscreve uma dimensão sobrenatural e bíblica <strong>da</strong> história,<br />

referindo a profecias <strong>de</strong> Policarpo (5.2; 16.2). Quando o fogo assume o formato <strong>de</strong> uma vela<br />

<strong>de</strong> navio – simbolicamente remete ao barco <strong>de</strong> Pedro e o trabalho do qual gostava (15.2); ou<br />

ain<strong>da</strong> quando fala do “ouro e prata” remete a freqüente linguagem bíblica (Pv 17.3; Ap. 1.15 e<br />

outros). De resto há uma relevante diferença em Euzébio que omite o “milagre <strong>da</strong> pomba”<br />

(16.1), que possivelmente tenha sido conhecido por ele, mas ao transmitir o texto ele omitiu<br />

como trivial ou não-confiável.<br />

Outros Documentos Literários Acerca <strong>de</strong> Policarpo<br />

Conforme atesta o testemunho <strong>de</strong> Ireneu 18 , natural <strong>de</strong> Esmirna, Policarpo escreveu<br />

diversas cartas a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s e a bispos em particular, <strong>da</strong>s quais resta apenas a Carta aos<br />

Filipenses. Quatro escritos, testemunhos <strong>de</strong> sua vi<strong>da</strong> e <strong>de</strong> sua morte, trazem seu nome:<br />

1. Carta <strong>de</strong> santo Inácio a Policarpo.<br />

2. A Carta <strong>de</strong> Policarpo aos filipenses.<br />

3. A Vita Polycarpi, <strong>de</strong> Piônio, é insignificante compilação, totalmente lendária.<br />

Aparato Crítico<br />

17 Epist. 10.97.<br />

18 Euzébio HE 5,20,8.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

223


O texto apresentado é a<strong>da</strong>ptado <strong>de</strong> Karl Bihlmeyer, Die apostolischen Väter. Tubingen:<br />

1924. Os manuscritos são os seguintes: P = códice Parisinus graecus 1452 (s.x); H = códice<br />

Hierosollymitanus sancti Sepulchri (s. IX/X) na Biblioteca do Patriarcado Grego Ortodoxo <strong>de</strong><br />

Jerusalém; B = códice Baroccianus 238 (s. XI) na Biblioteca Bodleian, Oxford; C = códice<br />

Chalcensis Mon. 95 (s. XI) do Convento do Espírito Santo, ilha <strong>de</strong> Halki, formalmente na<br />

Biblioteca Patriarcal, Istambul; V = códice Vindobonensis graecus eccles. Iii (s. XI) na<br />

Biblioteca Nacional, Viena; M = códice Mosquensis 150 (s. XIII) na Biblioteca Sino<strong>da</strong>l,<br />

Moscou; Há também uma importante porção preserva<strong>da</strong> em Euzébio, h.e. IV, 15 19 .<br />

Amostra do Texto Crítico Cap. I em Grego - Μαρτύριον τοῦ Ἁγίου<br />

Πολυκάρπου - e Sua Tradução<br />

Ἡ ἐκκλησία τοῦ θεοῦ, ἡ παροικοῦσα Σµύρναν, τῇ ἐκκλησίᾳ τοῦ θεοῦ, τῇ<br />

παροικούσῃ ἐν Φιλοµηλίῳ καὶ πάσαις ταῖς κατὰ πάντα τόπον τῆς ἁγίας καὶ<br />

καθολικῆς ἐκκλησίας παροικίαις. ἔλεος καὶ εἰρήνη καὶ ἀγάπη θεοῦ πατρός καὶ<br />

τοῦ κυρίου ἡµῶν Ἰησοῦ Χριστοῦ πληθυνθείη.<br />

A Igreja <strong>de</strong> Deus, que vive como forasteira 20 em Esmirna, à Igreja <strong>de</strong> Deus forasteira em<br />

Filomélia e a to<strong>da</strong>s as comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Igreja santa e universal 21 on<strong>de</strong> quer que esteja: a<br />

misericórdia, a paz e a amor <strong>de</strong> Deus Pai, <strong>de</strong> Jesus Cristo nosso Senhor, superabun<strong>de</strong>m em<br />

vós. 22<br />

1. 1. Ἐγράψαµεν ὑµῖν, ἀδελφοί, τὰ κατὰ τοὺς µαρτυρήσαντας καὶ τὸν µακάριον<br />

Πολύκαρπον, ὅστις ὥσπερ ἐπισφραγίσας διὰ τῆς µαρτυρίας αὐτοῦ κατέπαυσε<br />

19 Schwartz, 336 ss.<br />

20 Cf. 1Pe 2.11.<br />

21 Quando esta epístola foi escrita (por volta <strong>de</strong> 156 d.C.), a palavra grega καθολικῆς (católica) não tinha o<br />

sentido que tem hoje a expressão Igreja Católica, o que ocorreu nos anos 381 d.C., quando o imperador Teodósio<br />

I reconheceu oficialmente um único ramo do cristianismo como ortodoxia católica. A aplicação apenas como um<br />

adjetivo fica claríssimo na construção usual <strong>da</strong> língua grega τῆς ἁγίας καὶ καθολικῆς ἐκκλησίας; portanto,<br />

“universal” é apenas um adjetivo <strong>de</strong> “igreja” e não uma distinção teológica que só muito posteriormente passaria<br />

a existir.<br />

22 Cf. Jd 1.2 e 1Pe 1.2.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

224


τὸν διωγµόν. σχεδὸν γὰρ πάντα τὰ προάγοντα ἐγένετο, ἵνα ἡµῖν ὁ κύριος<br />

ἄνωθεν ἐπιδείξῃ τὸ κατὰ τὸ εὐαγγέλιον µαρτύριον. 2. περιέµενεν γὰρ ἵνα<br />

παραδοθῇ, ὡς καὶ ὁ κύριος, ἵνα µιµηταὶ καὶ ἡµεῖς αὐτοῦ γενώµεθα, µὴ µόνον<br />

σκοποῦντες τὸ καθ᾽ ἑαυτούς, ἀλλὰ καὶ τὸ κατὰ τοὺς πέλας. ἀγάπης γὰρ<br />

ἀληθοῦς καὶ βεβαίας ἐστίν, µὴ µόνον ἑαυτὸν θέλειν σώζεσθαι ἀλλὰ καὶ πάντας<br />

τοὺς ἀδελφούς.<br />

1. 1. Escrevemos-vos, irmãos, relatos a cerca dos que sofrem martírio e do bem-aventurado 23<br />

Policarpo, cujo martírio foi, por assim dizer, o selo final, que pôs termo à perseguição. Na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, quase todos os acontecimentos anteriores se efetuaram para que, do céu, o Senhor<br />

nos fizesse ver o martírio narrado no Evangelho. 2. Policarpo esperou pacientemente ser<br />

entregue 24 , como o Senhor, para que aprendêssemos, através do seu exemplo 25 , a não ter em<br />

mira somente o que nos concerne, mas também os interesses do próximo 26 . Realmente, o<br />

amor ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro e firme consiste em não <strong>de</strong>sejar apenas a própria salvação, mas também a <strong>de</strong><br />

todos os irmãos.<br />

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23 Cf. Lc 12.43 e 14.15.<br />

24 Cf. At 8.32; Is 53.7.<br />

25 Cf. 1Cor 11.1; Fl 3.17; 1Ts 2.14; Hb 6.12. Note-se que a construção em língua grega ἵνα µιµηταὶ καὶ ἡµεῖς<br />

αὐτοῦ γενώµεθα, é uma remissão aos textos bíblicos mencionados. Porém, lá a questão coloca<strong>da</strong> nos seus<br />

contextos “é apren<strong>de</strong>r segundo exemplos para um <strong>de</strong>terminado fim”; e a remissão se dá no contexto <strong>de</strong>ste ensino.<br />

Se traduzíssemos literalmente “para que imitadores também nós <strong>de</strong>le nos tornássemos,” po<strong>de</strong>ria <strong>da</strong>r a idéia <strong>de</strong><br />

que <strong>de</strong>veríamos esperar pacientemente para sermos entregues, quando o que é dito é que <strong>de</strong>veremos apren<strong>de</strong>r<br />

“através do seu exemplo” a focar-se nas coisas que afetam os outros e não apenas as que afetam a nós próprios.<br />

26 Cf. Fl 2.4.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

225


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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 214-227, 2008<br />

227


Consi<strong>de</strong>rações gerais sobre os comentários agostinianos e jeronimianos à Bíblia e a<br />

questão dos controles sobre a leitura na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> tardia<br />

INTRODUÇÃO<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

Luciano César Garcia PINTO<br />

PG – IEL – UNICAMP<br />

lucianuscaesar@gmail.com<br />

Desbor<strong>de</strong>s (1995) apresenta a gramática antiga (τέχνη γραµµατιϰή [tékhnē<br />

grammatikē]/ars grammatica) como uma ciência dividi<strong>da</strong> em duas perspectivas: a <strong>da</strong> língua e a<br />

do texto. Se, na primeira, a disciplina atinha-se à “lógica” (λόγος [lógos]/ratio) <strong>da</strong> língua, na<br />

segun<strong>da</strong>, era ofício do gramático antigo (ὁ γραµµατιϰός [ho grammatikós]/grammaticus),<br />

<strong>de</strong>ntre outros, manipular séries <strong>de</strong> manuscritos, a fim <strong>de</strong> estabelecer o texto mais “correto”.<br />

Esses pontos também estão contemplados, por exemplo, na apresentação feita pela obra<br />

intitula<strong>da</strong> Tékhnē grammatikē, atribuí<strong>da</strong>, com ressalvas (NEVES, 2005, p. 165, n. 53), a Dionísio<br />

<strong>da</strong> Trácia (170 -90 a.C.).<br />

A gramática é a empiria do que é dito no mais <strong>da</strong>s vezes conforme os poetas e prosadores.<br />

Seis são suas partes: primeiro, leitura exercita<strong>da</strong> segundo a prosódia; segundo, a exegese<br />

[ἐξήγησις (ex ē gēsis)] <strong>da</strong>s figuras poéticas encontra<strong>da</strong>s; terceiro, a atualização<br />

espontânea <strong>da</strong>s palavras e <strong>da</strong>s histórias; quarto, busca pelas etimologias; quinto,<br />

consi<strong>de</strong>ração <strong>da</strong>s analogias; sexto, avaliação dos poemas, que é o que tem <strong>de</strong> mais belo<br />

nesta técnica. 1 (Dion. Thr. Ars gramm. I, 1; tradução nossa)<br />

Nessa <strong>de</strong>finição introdutória à obra, vê-se que o segundo ponto diz respeito à exegese,<br />

ou seja, a como ler os trópoi (τρόποι¸“figuras”) encontrados nos textos, cujo entendimento<br />

não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria só do conhecimento dos valores <strong>da</strong>s letras, <strong>da</strong> reconstituição <strong>da</strong> prosódia e <strong>da</strong>s<br />

partes do discurso. Por último, essa técnica gramatical promove a krísis poiēmátōn (ϰρίσις<br />

ποιηµάτων, “julgamento crítico dos poemas”), que, segundo o próprio excerto, é a mais<br />

“bela” tarefa <strong>de</strong>sse ofício. Ressoando a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>ssa obra alexandrina, Quintiliano diz:<br />

1 γραµµατιϰή ἐστιν ἐµπειρία τῶν παρὰ ποιηταῖς τε ϰαὶ συγγραφεῦσιν ὡς ἐπὶ τὸ πολὺ λεγοµένων.<br />

µέρη δὲ αὐτῆς ἐστιν ἕξ· πρῶτον ἀνάγνωσις ἐντριβὴς ϰατὰ προσωιδίαν, δεύτερον ἐξήγησις ϰατὰ<br />

τούς ἐνυπάρχοντας ποιητιϰοὺς τρόπους, τρίτον γλωσσῶν τε ϰαὶ ἱστοριῶν πρόχειρος ἀπόδοσις,<br />

τέταρτον ἐτυµολογίας εὕρεσις, πέµπτον ἀναλογίας ἐϰλογισµός, ἕϰτον ϰρίσις ποιηµάτων, ὃ δὲ<br />

ϰάλλιστόν ἐστι πάντων τῶν ἐν τῆι τέχνηι.


[...] esse mister, embora se divi<strong>da</strong>, muito sucintamente, em duas partes – a arte <strong>de</strong> falar<br />

corretamente [recte loquendi scientia] e a explicação dos poetas [poetarum enarratio] –,<br />

encerra mais em si do que <strong>de</strong>ixa transparecer. Com efeito, tanto as regras <strong>da</strong> escrita se<br />

combinam com as do falar, como uma leitura correta prece<strong>de</strong> a explicação, e um juízo<br />

crítico permeia a ambas 2 (Inst. or. I, 4,2-3; trad. Pereira, 2000, p. 87-8; grifos nossos).<br />

A ars grammatica incitaria, portanto, a formação <strong>de</strong> um juízo crítico dos textos a partir<br />

dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> língua “bem” fala<strong>da</strong> e <strong>de</strong> uma leitura “bem” feita. Com o intuito <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>monstrar essa prática <strong>de</strong> leitura gramatical, era contumaz os gramáticos produzirem textos<br />

em que comentassem outros textos consi<strong>de</strong>rados canônicos (especialmente a Enei<strong>da</strong> entre os<br />

latinos e a Ilía<strong>da</strong> e a Odisséia entre os gregos; cf. SAWYER, 1999, p. 60-61). Assim, talvez<br />

seja possível dizer que havia, na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> greco-romana, um gênero discursivo específico,<br />

consi<strong>de</strong>rado parte <strong>de</strong>ssa tékhnē/ars, <strong>de</strong>stinado a “resolver” dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> um texto, a “traduzilo”,<br />

<strong>de</strong> modo a torná-lo, ao mesmo tempo, “inteligível” e “atualizado”: o comentário 3 . Esse<br />

gênero, no âmbito <strong>da</strong> grammatica, na<strong>da</strong> mais era senão a “aplicação” dos pressupostos <strong>da</strong> ex ē<br />

gēsis/enarratio. Isso quer dizer que, nesses comentários <strong>de</strong> matiz gramatical (diferentemente<br />

<strong>de</strong> outros <strong>de</strong> matiz filosófico ou retórico etc. 4 ), <strong>da</strong>va-se especial atenção à explicação <strong>da</strong>quilo<br />

que se convencionou chamar <strong>de</strong> tropói (τρόποι)/tropi e <strong>de</strong> skhēmata (σχήµατα)/figurae 5 , além<br />

<strong>de</strong> questões como auctor, intentio scribentis etc 6 . Assim, é lícito pensar, seguindo Irvine<br />

(1994, p. 1-2), que:<br />

Como fun<strong>da</strong>mento <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> disciplinas, a grammatica instituiu um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

ensino, interpretação e conhecimento que <strong>de</strong>finiu várias comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s textuais locais e<br />

forneceu as competências discursivas e textuais que eram precondições para a<br />

participação na cultura letra<strong>da</strong> ao longo <strong>de</strong> to<strong>da</strong> Europa medieval. O discurso gramatical<br />

constituiu um campo especial <strong>de</strong> conhecimento – um cânon tradicional <strong>de</strong> textos, tanto<br />

cristão como clássico (os auctores), e um latim escrito ou textual (latinitas), cuja<br />

estrutura e estilo foram reduzidos para um ensino e <strong>de</strong>scrição sistemáticos (ars). [...]<br />

Como uma disciplina sustenta<strong>da</strong> por instituições político-sociais dominantes <strong>da</strong> Europa<br />

medieval, a grammatica serviu para perpetuar e reproduzir as condições fun<strong>da</strong>mentais<br />

2 Cf. também Quint. Inst. or. I, 8, 18 (enarratio historiarum)e I.9.I (enarratio auctorum).<br />

3 Embora se empregassem, mais comumente, os termos commentarius/commentarium, em latim, e hypómnēma<br />

(ὑπόµνηµα), em grego, não havia, no entanto, um título unívoco para esse tipo <strong>de</strong> texto, como será possível ver<br />

no caso dos autores que serão citados no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste nosso texto. Pelo menos a partir <strong>de</strong> Isidoro <strong>de</strong> Sevilha<br />

(560-636 e.c.), por outro lado, já estava clara a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse gênero <strong>de</strong> discurso. Po<strong>de</strong>-se ver, por<br />

exemplo, Orig. VI, 8, em que o Hispalense apresenta os diversos genera opusculorum conhecidos em sua época.<br />

4 Veja, por exemplos, a edição dos Commentaria in Aristotelem graeca, além <strong>de</strong>, em certo sentido, as Ennea<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> Plotino, um comentário sobre Platão, e os comentários <strong>de</strong> Boécio e Mário Vitorino acerca <strong>de</strong> Aristotéles.<br />

5 Cf., por exemplo, Arstt. Poet. 19,7; Cic. Brut. 69; Quint. Inst. or. 1, 8, 16; 8,6,1-3; e Isid. Orig. I, 1, 36-37.<br />

6 Cf., por exemplo, Serv. Commen. In Verg. I,1.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

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para uma cultura textual, fornecendo as regras discursivas e as estratégias interpretativas<br />

que construíram certos textos como repositórios <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong> e valor. Em seu papel<br />

institucional, a grammatica também criou um tipo especial <strong>de</strong> subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong> literária, uma<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e uma posição social para os litterati, que foi fortemente vista como masculina<br />

e socialmente autoriza<strong>da</strong>. (Tradução nossa).<br />

A grammatica era, portanto, o campo privilegiado do trabalho com a língua e com o<br />

texto, e os comentários aplicação máxima <strong>de</strong> seus pressupostos. Longe <strong>de</strong> serem consi<strong>de</strong>rados<br />

textos <strong>de</strong> “segun<strong>da</strong> linha”, coloca-se, hodiernamente, os comentários lato sensu, seguindo<br />

Maingueneau (1996, p. 69-70), sob a rubrica <strong>da</strong> reformulação:<br />

Num sentido bastante amplo, enten<strong>de</strong>-se por reformulação a transformação <strong>de</strong><br />

uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> discursiva <strong>de</strong> tamanho variado (<strong>da</strong> palavra ao texto) numa outra que<br />

se consi<strong>de</strong>ra ser semanticamente “equivalente” <strong>de</strong> uma maneira ou <strong>de</strong> outra. Essa<br />

operação toma caminhos muito variados segundo o nível no qual ela intervém, o<br />

tipo <strong>de</strong> discurso <strong>de</strong> que ela trata e a natureza <strong>de</strong>ssa transformação. (Tradução<br />

nossa).<br />

Essa reformulação po<strong>de</strong>, ain<strong>da</strong>, dividir-se em intradiscursiva, quando “[...] o<br />

enunciador relaciona duas uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s sucessivas <strong>de</strong> seu discurso, as quais ele coloca como<br />

equivalentes. A reformulação oscila, então, entre a simples substituição e a paráfrase<br />

explicativa” (Ibid., p. 69; tradução nossa); ou interdiscursiva, a qual<br />

[...] implica a transformação dum texto noutro. Ela po<strong>de</strong> ser igualmente uma autoreformulação<br />

ou uma hetero-reformulação, conforme seja o autor do discurso-fonte<br />

aquele que a produziu (caso <strong>de</strong> um autor que faz um resumo <strong>de</strong> seu próprio artigo) ou um<br />

outro enunciador (caso <strong>de</strong> um jornalista que vulgariza trabalhos científicos ou <strong>de</strong> um<br />

crítico que resume um romance). Com essa reformulação interdiscursiva, reuni-se a<br />

problemática <strong>da</strong> hipertextuali<strong>da</strong><strong>de</strong> (paródia...) mas também a vulgarização, na qual um<br />

texto transforma-se num texto “equivalente” <strong>de</strong>stinado a um público menos especializado;<br />

o resumo, no qual é proposto um equivalente con<strong>de</strong>nsado do texto; a tradução <strong>de</strong> uma<br />

língua ou <strong>de</strong> um registro <strong>de</strong> língua noutro... (Tradução nossa)<br />

Se essa reformulação implica numa transformação, o comentário fun<strong>da</strong>do nas técnicas<br />

<strong>de</strong> leitura <strong>da</strong> ex ē gēsis/enarratio produziu, como afirma Irvine, um mo<strong>de</strong>lo próprio <strong>de</strong> textos<br />

explicativos. Esse método <strong>de</strong> crítica textual não só não passou incólume à emergência do<br />

cristianismo, como sua adoção era motivo <strong>de</strong> polêmicas, produzindo uma cisão entre os que a<br />

aceitavam como necessária para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a Bíblia em “terreno inimigo” (AMSLER, 1989, p.<br />

86), e aqueles que pregaram um isolamento mais radical <strong>de</strong> tudo que vinha do “gentios”.<br />

Muitos dos chamados “Padres <strong>da</strong> Igreja” fizeram uso <strong>de</strong>sse método com intuito <strong>de</strong> explicar o<br />

texto bíblico. Nesse sentido, a entra<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssa “tecnologia do texto” nos círculos cristãos<br />

<strong>de</strong>terminou um certo modus interpretandi <strong>da</strong> Bíblia, para a qual, po<strong>de</strong>-se pensar que o “[...]<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

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comentário apresenta-se não como um trabalho <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte nem auto-suficiente, mas como a<br />

escrita <strong>de</strong> uma leitura, o texto-objeto-lido, um texto vali<strong>da</strong>do em sua afirmação <strong>de</strong> revelar a<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> outro texto” (IRVINE, 1994, p. 246-7; tradução nossa).<br />

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES<br />

1.1 COMENTÁRIOS À BÍBLIA E A “CRIAÇÃO” DE UM TEXTO<br />

Questões <strong>de</strong> linguagem estão presentes em vários momentos <strong>da</strong>s polêmicas cristãs.<br />

Para Swiggers (1992, p. 76):<br />

Os Pais <strong>da</strong> Igreja têm seu lugar na história <strong>da</strong>s teorias lingüísticas, e isso por várias razões:<br />

as preocupações e as discussões teológicas na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> estão indissociavelmente<br />

liga<strong>da</strong>s à reflexão sobre a linguagem (suas funções e sua relação com o pensamento e<br />

com a reali<strong>da</strong><strong>de</strong>), e elas pressupõem conhecimentos gramaticais e semióticos<br />

aprofun<strong>da</strong>dos, freqüentemente abor<strong>da</strong>dos por esses mesmos autores. O pano <strong>de</strong> fundo <strong>de</strong><br />

sua reflexão caracteriza-se pela continui<strong>da</strong><strong>de</strong> em relação ao pensamento antigo (sobretudo<br />

o neoplatonismo e certos temas <strong>da</strong> filosofia aristotélica, estóica e epicurista) e pelo<br />

impacto <strong>de</strong> moral cristã e dum texto constituído, no primeiro milênio, como um cânon<br />

numa parte do mundo semita e no mundo europeu: a Bíblia [...]. (Tradução nossa).<br />

Um grupo <strong>de</strong> cristãos em especial foi incessante na <strong>de</strong>fesa (e na prática) <strong>da</strong><br />

apropriação dos saberes tradicionais do mundo greco-romano, em especial, a grammatica,<br />

para analisarem (e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem) a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> dos textos bíblicos. É possível nomeá-lo, a <strong>de</strong>speito<br />

do anacronismo, <strong>de</strong> “alexandrinos”, uma vez que seus representantes “fun<strong>da</strong>dores”, Clemente<br />

(morto c. 216 e.c.) e Orígines <strong>de</strong> Alexandria (185-c.254 e.c.), foram dois autores, cujos<br />

trabalhos emergiram na famosa metrópole do mundo helenístico 7 . Alexandria já havia sido a<br />

se<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma “escola” <strong>de</strong> grammatica <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período helenístico, cuja figura <strong>de</strong> Dionísio <strong>da</strong><br />

Trácia foi <strong>da</strong>s mais cita<strong>da</strong>s ao longo dos séculos. Lá, a disciplina gramatical caracterizou-se,<br />

justamente, pelo trabalho exegético com os textos. É em Alexandria, além disso, que se<br />

organizou a mais famosa biblioteca do mundo antigo e foi lá também que outro gran<strong>de</strong><br />

empreendimento aconteceu: a tradução <strong>da</strong> Tanakh para o grego, a chama<strong>da</strong> “tradução dos<br />

setenta”, mais conheci<strong>da</strong> por Septuaginta (LXX). A<strong>de</strong>mais, foi Alexandria a se<strong>de</strong> <strong>da</strong> primeira<br />

7 Designação que empregamos seguindo a afirmação <strong>de</strong> Irvine (1994, p. 167): “[…] a observação <strong>de</strong> que o<br />

método <strong>de</strong> Orígines baseia-se na exegese gramatical helenística está essencialmente correta, uma vez que essas<br />

eram as fontes comuns <strong>da</strong> cultura literária alexandrina. Embora os escritos <strong>de</strong> Orígines tenham sido con<strong>de</strong>nados<br />

no século sexto, em gran<strong>de</strong> parte por causa <strong>de</strong> algumas <strong>de</strong> suas obras que pareciam endossar o arianismo, o<br />

método exegético que Orígines a<strong>da</strong>ptou <strong>da</strong> grammatike estóica e helenística nunca foi questiona<strong>da</strong> ou <strong>de</strong>safia<strong>da</strong>:<br />

a alegoria tornou-se a estratégia exegética chave <strong>da</strong> ortodoxia. Como o primeiro escritor cristão a usar a exegese<br />

alegórica sistematicamente, Orígines teve gran<strong>de</strong> influência sobre Ambrósio, Jerônimo (a pesar dos protestos<br />

<strong>de</strong>ste), Agostinho e em to<strong>da</strong> a tradição exegética dos albores <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média.” (tradução nossa).<br />

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gran<strong>de</strong> escola catequista cristã, on<strong>de</strong> lecionaram tanto Clemente como Orígenes (cf.<br />

MORESCHINI, NORELLI, 1996, p. 341).<br />

Segundo Sawyer (1999, p. 73), até fins do século II e.c., não havia nenhuma lista fixa<br />

dos livros <strong>de</strong> que os cristãos <strong>de</strong>veriam fazer uso. Em geral, mantinha-se uma tradição ju<strong>da</strong>ica<br />

<strong>de</strong> observância <strong>da</strong> Torá e <strong>de</strong> uso dos Profetas como livros autorizados, além dos Evangelhos,<br />

por conterem os ensinamentos <strong>de</strong> Jesus. Mas não havia ain<strong>da</strong> uma Bíblia comparável, por<br />

exemplo, ao que viria a ser a Vulgata, edita<strong>da</strong> por Jerônimo. Vários textos paralelos<br />

(apócrifos) 8 eram utilizados por várias comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s cristãs como escritos auxiliares <strong>da</strong>queles<br />

consi<strong>de</strong>rados sagrados. É, sobretudo, graças às polêmicas com os gnósticos 9 que se começou a<br />

<strong>de</strong>senvolver uma lista fixa dos escritos que <strong>de</strong>veriam ser sagrados para o cristianismo e dos<br />

que não <strong>de</strong>veriam ser. Nessa “escolha”, evi<strong>de</strong>ntemente, também se dizia o que era ser cristão<br />

e o que não era. A gran<strong>de</strong> reação aos gnósticos produziu-se entre os “alexandrinos”, inicia<strong>da</strong><br />

na figura <strong>de</strong> Clemente <strong>de</strong> Alexandria, o qual, nas palavras <strong>de</strong> Trigg (1998, p. 4):<br />

[…] advogava uma ‘regra <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>’ ou ‘<strong>da</strong> igreja’, correspon<strong>de</strong>ndo ao testemunho<br />

unificado dos apóstolos. Ele não diz o que constitui essa regra, exceto que ela afirma a<br />

uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Escritura. Isso distinguia a ele e a sua comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> fé dos heréticos<br />

gnósticos que atribuíam o Velho e o Novo Testamento a <strong>de</strong>uses diferentes”. (Tradução e<br />

grifos nossos).<br />

Afirmava-se, com isso, o sema (cf. MAINGUENEAU, 1983, p. 25) do uno contra o<br />

múltiplo: <strong>de</strong>veria ser um só texto, um só Deus, uma só ver<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

A resposta “cientificamente” autoriza<strong>da</strong> aos gnósticos <strong>de</strong>u-se, sobretudo, por meio dos<br />

comentários. Numa passagem <strong>de</strong> seu Comentário ao Evangelho <strong>de</strong> João, Orígenes rivaliza<br />

com uma interpretação gnóstica acerca <strong>de</strong> Jo. 4,22 10 , on<strong>de</strong>, supostamente, se faria referência à<br />

ligação entre os dois “testamentos”. Orígenes, seguindo a tradição “alexandrina” do explicar<br />

“<strong>Home</strong>ro a partir <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro” (SAWYER, 1999, p. 148), argumenta que Heracleon, o<br />

interlocutor gnóstico em questão, “carece” <strong>de</strong> “acui<strong>da</strong><strong>de</strong>” (akribeia; cf. TRIGG, 1999, p.150-<br />

8 Apócrifo, significava, nesse período, “escritos secretos”. Mais tar<strong>de</strong>, com a consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> ortodoxia,<br />

‘apócrifo” ganhou a conotação <strong>de</strong> “falso”, ou seja, <strong>de</strong> não referen<strong>da</strong>do como parte <strong>da</strong> ‘uni<strong>da</strong><strong>de</strong>’ <strong>da</strong> Bíblia. (cf.<br />

SAWYER, 1999, p. 71-72).<br />

9 Um dos que mais ficou conhecido para a posteri<strong>da</strong><strong>de</strong> foi Marcião <strong>de</strong> Sinope (c. 110-160 e.c.), que, por exemplo,<br />

recusava os escritos <strong>da</strong> Tanakh e tudo aquilo que tivesse “influência ju<strong>da</strong>ica”, <strong>da</strong> qual somente o Evangelho <strong>de</strong><br />

Lucas e <strong>de</strong>z <strong>da</strong>s cartas paulinas, em especial, Gálatas, po<strong>de</strong>riam estar livres. (Cf. SAWYER, 1999, p. 73;<br />

TRIGG, 1998, p. 8; MORESCHINI, NORELLI, 1996, p. 237-242).<br />

10 Para as abreviações referentes aos livros <strong>da</strong> Bíblia, siguimos as sugestões <strong>da</strong> Bíblia <strong>de</strong> Jerusálem.<br />

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1). A falta <strong>de</strong> acui<strong>da</strong><strong>de</strong> é revela<strong>da</strong> pelo modo como Heracleon, segundo Orígenes, interpreta<br />

ὑµεῖς (hymeîs, “vós”) na dita passagem.<br />

O “vós”, quão literal for, (refere-se) aos samaritanos; mas quão anagógico for, àqueles <strong>de</strong><br />

opinião diferente (heteródoxoi, ἑτερόδοξοι) acerca <strong>da</strong>s escrituras (hai graphaí, αἱ γραφαί);<br />

por outro lado, o “nós”, quão <strong>de</strong> acordo com a passagem (epì tōi rhētōi, ἐπὶ τῷ ῥητῷ)<br />

estiver, (diz respeito) aos ju<strong>de</strong>us, mas quão alegórico for, (refere-se) a: “eu, o lógos, e os<br />

que estão formados segundo a mim”, os quais têm a salvação fora dos discursos dos<br />

ju<strong>de</strong>us. Com efeito, o mistério, tendo sido agora revelado, continua revelando-se através<br />

dos escritos (hai graphaí) proféticos e <strong>da</strong> aparição do senhor Jesus Cristo a nós. E vê se<br />

Heracleon, tendo compreendido o “vós” por “os ju<strong>de</strong>us gentios (ethnikoí,<br />

ἐθνικοί)”, não havia minuciado idiossincratimente e contra a concordância (akolouthía,<br />

ἀκολουθία) <strong>da</strong>s passagens (hoi rhētoí). É possível que se diga para a samaritana: vós, os<br />

ju<strong>de</strong>us, ou para uma samaritana, vós, os gentios? Porém, os heterodoxos certamente não<br />

sabem diante <strong>de</strong> que se prosternam, uma vez que é um mo<strong>de</strong>lo e não uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, um<br />

mito e os mistérios; mas o que se prosterna diante do <strong>de</strong>miurgo, sobretudo<br />

conforme o ju<strong>de</strong>u em segredo e segundo os textos espirituais (pneumatikoí, πνευµατικοί)<br />

ju<strong>da</strong>icos, este sabe diante do que se prosternar. 11 (ORIG. Comm. in euang. Ioan., 13, 17,<br />

101-103; tradução e grifos nossos).<br />

O éthos do comentador põe em contraste uma interpretação – que seria particular,<br />

basea<strong>da</strong> numa idiossincrasia qualquer – com aquela que se inscreve na concordância <strong>da</strong>s<br />

passagens, ou seja, a <strong>da</strong> ortodoxia, a qual é referen<strong>da</strong><strong>da</strong> pela grammatica e que proíbe<br />

interpretações que fugiriam a essa “concordância”.<br />

Mas é no prefácio ao seu comentário que ele <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> claramente a “uni<strong>da</strong><strong>de</strong>” <strong>da</strong>s<br />

Escrituras:<br />

o início do evangelho – com efeito, ele tem uma gran<strong>de</strong>za, que consta <strong>de</strong> um início,<br />

segui<strong>da</strong>mente <strong>de</strong> um meio e <strong>de</strong> um fim – é, sem dúvi<strong>da</strong>, todo o antigo testamento, sendo<br />

João uma representação (týpos, τύπος) <strong>de</strong>sse, ou, por causa <strong>da</strong> ligação do novo com o<br />

velho, é o fim do velho se mostrando através <strong>de</strong> João. [...] Don<strong>de</strong> me parece<br />

impressionante como os heterodoxos (heteródoxoi) atribuem ambos os testamentos a dois<br />

<strong>de</strong>uses, não se convencendo nem mesmo a partir do próprio texto (rhētós). Com efeito,<br />

como é possível ser, como eles pensam, João o início do euangelho, se falasse justamente<br />

11 Τὸ «ὑµεῖς», ὅσον ἐπὶ τῇ λέξει, οἱ Σαµα ρεῖς· ὅσον δὲ ἐπὶ τῇ ἀναγωγῇ, οἱ περὶ τὰς γραφὰς ἑτερό<br />

δοξοι· τὸ δὲ «ἡµεῖς», ὅσον ἐπὶ τῷ ῥητῷ, οἱ Ἰουδαῖοι· ὅσον δὲ ἐπὶ τῇ ἀλληγορίᾳ, ἐγὼ ὁ λόγος καὶ οἱ<br />

κατʹ ἐµὲ µεµορφω µένοι, τὴν σωτηρίαν ἔχοντες ἀπὸ τῶν Ἰουδαϊκῶν λόγων· τὸ γὰρ φανερωθὲν<br />

νῦν µυστήριον πεφανέρωται διά τε γραφῶν προφητικῶν καὶ τῆς ἐπιφανείας τοῦ κυρίου ἡµῶν<br />

Ἰησοῦ Χριστοῦ. Ὅρα δὲ εἰ µὴ ἰδίως καὶ παρὰ τὴν ἀκολουθίαν τῶν ῥητῶν ὁ Ἡρακλέων<br />

ἐκδεξάµενος τὸ «ὑµεῖς» ἀντὶ τοῦ «Οἱ Ἰουδαῖοι ἐθνικοὶ» διηγήσατο. Οἷον δέ ἐστιν πρὸς τὴν<br />

Σαµαρεῖτιν λέγεσθαι· Ὑµεῖς οἱ Ἰουδαῖοι, ἢ πρὸς Σαµαρεῖτιν· Ὑµεῖς οἱ ἐθνικοί; ἀλλʹ οὐκ οἴδασίν γε<br />

οἱ ἑτερόδοξοι ὃ προσκυνοῦσιν, ὅτι πλάσµα ἐστὶν καὶ οὐκ ἀλήθεια, καὶ µῦθος καὶ µυστήρια· ὁ<br />

δὲ προσκυνῶν τὸν δηµιουργόν, µάλιστα κατὰ τὸν ἐν κρυπτῷ Ἰουδαῖον καὶ τοὺς λόγους τοὺς<br />

πνευµατικοὺς Ἰουδαϊκούς, οὗτος ὃ οἶδεν προσκυνεῖ.<br />

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<strong>de</strong> outro <strong>de</strong>us o homem que fala justamente do <strong>de</strong>miurgo e ignora, como crêem, a nova<br />

divin<strong>da</strong><strong>de</strong>? 12 (ORIG. Comm. in euang. Ioan., 13, 13, 80-82; tradução e grifos nossos).<br />

Nessa passagem, parece estar claro, pelo uso dos <strong>de</strong>terminantes, que “o texto” está<br />

<strong>da</strong>do a priori. A análise “apenas” confirma esse a priori, apesar <strong>de</strong>sse aspecto estar<br />

“apagado” no discurso. Novamente, o “mal <strong>da</strong> multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong>” está representado, agora, na<br />

figura dos “heterodoxos”.<br />

No que se refere à recepção do método alexandrino no universo <strong>de</strong> escrita latina, é<br />

possível vê-lo, por exemplo, tempos <strong>de</strong>pois, em fins do século IV, nos escritos <strong>de</strong> Agostinho<br />

<strong>de</strong> Hipona e <strong>de</strong> Jerônimo <strong>de</strong> Estridão. Em polêmica com os maniqueus, por exemplo,<br />

Agostinho afirma que eles mantinham as dúvi<strong>da</strong>s sobre a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> dos testamentos. No seu De<br />

Genesi contra Manichaeos, o bispo <strong>de</strong> Hipona “reproduz” os argumentos adversários, aos<br />

quais respon<strong>de</strong> em mol<strong>de</strong>s alexandrinos:<br />

Agora já po<strong>de</strong>mos ver também aquilo <strong>de</strong> que costumam zombar, antes com a maior<br />

impudência do que por imperícia, acerca do que está escrito, que Deus, consumado o céu<br />

e a terra e tudo aquilo que fez, <strong>de</strong>scansou (requieuisse), no sétimo dia, <strong>da</strong>s suas obras [...].<br />

Dizem, pois: “que necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> havia <strong>de</strong> que Deus <strong>de</strong>scansasse? Estaria ele, por acaso,<br />

fatigado e cansado por causa <strong>da</strong>s obras dos seis dias?” Adicionam também o testemunho<br />

do Senhor, quando diz, “meu Pai está trabalhando até agora”. Daí que enganam muitos<br />

imperitos, ao tentar persuadi-los <strong>de</strong> que o Novo Testamento opõe-se ao Velho Testamento.<br />

[...] A partir <strong>de</strong>sta figura (a alegoria), muitas questões nas divinas Escrituras são<br />

resolvi<strong>da</strong>s sem nenhuma dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> por aqueles que já conhecem um gênero <strong>de</strong> locução<br />

<strong>de</strong>ste tipo. Em nosso uso (cotidiano) abun<strong>da</strong>m também tais locuções, quando dizemos:<br />

“dia alegre”, porque nos faz alegres; “frio preguiçoso”, porque nos faz preguiçosos;<br />

“fossa cega”, porque não a vemos; “língua poli<strong>da</strong>”, porque faz as palavras poli<strong>da</strong>s; por<br />

fim, dizemos também “tempo livre (quietum) <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as moléstias”, no qual ficamos<br />

livres <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as moléstias. Mas também se diz que Deus <strong>de</strong>scansou (requieuisse) <strong>de</strong><br />

to<strong>da</strong>s as suas obras, as quais certamente as fez boas, porque, nele, <strong>de</strong>scansaremos <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s<br />

as nossas obras, se tivermos feito obras boas, porque também as nossas próprias obras<br />

boas têm <strong>de</strong> serem atribuí<strong>da</strong>s a ele, que chama, prescreve, mostra o caminho <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

que nos convi<strong>da</strong> para que também queiramos e nos dá força para realizar aquilo que<br />

or<strong>de</strong>na 13 (AUGUST. De Gen. contra Manich., PL 34, col. 189-190; tradução e grifos<br />

nossos).<br />

12 [...] ἡ ἀρχὴ τοῦ εὐαγγελίου–ἔστι γὰρ αὐτοῦ µέγεθος ἀρχὴν καὶ τὰ ἑξῆς καὶ µέσα καὶ τέλη<br />

ἔχοντος–ἤτοι πᾶσά ἐστιν ἡ παλαιὰ διαθήκη, τύπου αὐτῆς ὄντος Ἰωάννου, ἢ διὰ τὴν συναφὴν τῆς<br />

καινῆς πρὸς τὴν παλαιὰν τὰ τέλη τῆς παλαιᾶς διὰ Ἰωάννου παριστάµενα. [...] Ὅθεν θαυµάζειν<br />

µοι ἔπεισι, πῶς δυσὶ θεοῖς προσάπτουσιν ἀµφοτέρας τὰς διαθήκας οἱ ἑτερόδοξοι, οὐκ ἔλαττον καὶ<br />

ἐκ τούτου τοῦ ῥητοῦ ἐλεγχόµενοι. Πῶς γὰρ δύναται ἀρχὴ εἶναι τοῦ εὐαγγελίου, ὡς αὐτοὶ οἴονται,<br />

ἑτέρου τυγχάνων θεοῦ ὁ Ἰωάννης, ὁ τοῦ δηµιουργοῦ ἄνθρωπος καὶ ἀγνοῶν, ὡς νοµίζουσι, τὴν<br />

καινὴν θεότητα.<br />

13<br />

Iam nunc ui<strong>de</strong>amus etiam illud, quod solent maiore impu<strong>de</strong>ntia, quam imperitia <strong>de</strong>ri<strong>de</strong>re, quod scriptum est,<br />

Deum consummato coelo et terra et omnibus quae fecit, requieuisse die septimo ab omnibus operibus suis [...].<br />

Dicunt enim: Quid opus erat ut Deus requiesceret? an forte operibus sex dierum fatigatus et lassatus erat?<br />

Addunt etiam Domini testimonium, ubi ait, Pater meus usque nunc operatur (Ioan. V, 17); et hinc multos<br />

imperitos <strong>de</strong>cipiunt, quibus persua<strong>de</strong>re conantur Nouum Testamentum Veteri Testamento aduersari. [...] Ex hac<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

234


É <strong>de</strong> modo semelhante que Jerônimo revela a motivação <strong>de</strong> seus comentários:<br />

[...] peço ao leitor [...] que, nos livros <strong>da</strong>s Questões hebraicas, os quais <strong>de</strong>cidi escrever<br />

visando to<strong>da</strong> a santa Escritura, não procure eloqüência nem finura <strong>de</strong> expressões; mas<br />

que o próprio possa respon<strong>de</strong>r aos nossos maiores inimigos, está <strong>da</strong><strong>da</strong> a razão para a<br />

nossa obra. [...]. Será próprio <strong>de</strong> nosso estudo ou refutar os erros <strong>da</strong>queles que têm várias<br />

suspeitas acerca dos livros hebraicos, ou restituir, com autori<strong>da</strong><strong>de</strong>, as suas próprias<br />

palavras no lugar <strong>da</strong>quelas que parecem se diferenciar nos códices latinos e gregos;<br />

explicar, pela lógica (ratio) <strong>da</strong>s línguas vernáculas, as etimologias <strong>da</strong>s coisas, nomes e<br />

regiões, que não fazem sentido em nossa língua. [...] Mas, com isso, não estamos<br />

mostrando, como ladram os invejosos, os erros dos intérpretes <strong>da</strong> Septuaginta nem<br />

achamos que nosso trabalho é a censura do <strong>de</strong>les. 14 (Hieron. Hebr. quaest. in Gen., PL 23,<br />

col. 935B-937A; tradução e grifos nossos)<br />

A uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Bíblia (logo, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>) só não é percebi<strong>da</strong> pelos “imperitos”.<br />

1.2. COMENTÁRIOS E POLÊMICA: OS CRISTÃOS “ALEXANDRINOS” E A GRAMMATICA<br />

Se o comentário, na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> tardia, apresentava-se como um gênero específico <strong>de</strong><br />

gran<strong>de</strong> prestígio, esse na<strong>da</strong> mais era, como se disse, senão uma formalização particular <strong>de</strong><br />

uma ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> mais ampla que é a reformulação. Se os discursos são, par excellence,<br />

dialógicos (MAINGUENEAU, 1984, p. 26-27), ou seja, estão sempre construídos sobre um<br />

(simulacro do) Outro, as suas fronteiras são permanentemente trabalha<strong>da</strong>s pelos sujeitos, <strong>de</strong><br />

modo a conjurar os “perigos” externos. Na reformulação interdiscursiva, a presença do Outro<br />

está mais sensível nas superfícies do discurso 15 , <strong>de</strong> modo que a relações polêmicas se <strong>de</strong>ixem<br />

evi<strong>de</strong>nciar (MAINGUENEAU, 1984, p. 119). Portanto, é muito comum encontrar nos<br />

figura multae quaestiones in diuinis Scripturis, eis qui iam genus locutionis huius nouerunt, sine ulla difficultate<br />

soluuntur. Talibus locutionibus etiam abun<strong>da</strong>t nostra consuetudo, cum dicimus laetum diem, quia nos laetos<br />

facit; et pigrum frigus, quia nos pigros facit; et fossam caecam, quia nos eam non ui<strong>de</strong>mus; et linguam politam,<br />

quia uerba polita facit: postremo etiam quietum ab omnibus molestiis tempus dicimus, in quo nos ab omnibus<br />

molestiis quieti sumus. Sed et Deus requieuisse dictus est ab omnibus operibus suis,quae fecit bona ual<strong>de</strong>, quia<br />

in illo requiescemus ab omnibus operibus nostris, si opera bona fecerimus: quia et ipsa bona opera nostra illi<br />

tribuen<strong>da</strong> sunt qui uocat, qui praecipit, qui uiam ueritatis ostendit, qui ut et uelimus inuitat, et uires implendi ea<br />

quae imperat, subministrat.<br />

14 lectorem obsecro [...] ut in libris Hebraicarum Quaestionum, quos in omnem Scripturam sanctam disposui<br />

scribere, non quaerat eloquentiam, non oratorum leporem; sed magis inimicis pro nobis ipse respon<strong>de</strong>at [...].<br />

Studii ergo nostri erit, uel eorum, qui <strong>de</strong> libris Hebraicis uaria suspicantur, errores refellere: uel ea quae in<br />

Latinis et Graecis codicibus scatere ui<strong>de</strong>ntur, auctoritati suae red<strong>de</strong>re; etymologias quoque rerum, nominum<br />

atque regionum, quae in nostro sermone non resonant, uernaculae linguae explanare ratione. [...] Neque uero<br />

Septuaginta Interpretum, ut inuidi latrant, errores arguimus: nec nostrum laborem, illorum reprehensionem<br />

putamus[...].<br />

15 Trata-se <strong>da</strong> heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong> mostra<strong>da</strong>, trata<strong>da</strong>, por exemplo, por Authier-Revuz (1998, p. 135).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

235


comentários alusões às interpretações “<strong>de</strong>sviantes” ou “inaceitáveis” para a nascente<br />

ortodoxia <strong>da</strong> Igreja, sendo o caso mais evi<strong>de</strong>nte, o próprio título do já citado comentário <strong>de</strong><br />

Agostinho ao Gênesis: De Genesi contra Manichaeos.<br />

Para os “alexandrinos”, a aplicação <strong>da</strong> enarratio aos textos bíblicos era uma po<strong>de</strong>rosa<br />

ferramenta hermenêutica contra os “inimigos”. Com esse “po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> interpretação”, os<br />

“alexandrinos” polemizavam, a um só tempo, com outras interpretações cristãs e com um<br />

certo ju<strong>da</strong>ísmo, alegando que esses não dispunham <strong>da</strong> perícia precisa <strong>de</strong> leitura e, portanto,<br />

eram incapazes <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a (ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira) “uni<strong>da</strong><strong>de</strong>” do texto. À época <strong>de</strong> Orígenes, por<br />

exemplo, polemizava-se, como se viu, com os gnósticos, representados na figura <strong>de</strong> Marcião<br />

(ver nota 8), cujo pressuposto fun<strong>da</strong>mental era a incompatibili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre o “Deus” <strong>da</strong> Torá<br />

com o “Pai <strong>de</strong> Cristo” do Novo Testamento. Para os “alexandrinos”, esse “erro” teológico 16 (a<br />

concepção <strong>de</strong> dois <strong>de</strong>uses diferentes) <strong>de</strong>rivava <strong>de</strong> uma leitura “<strong>de</strong>sviante”, que <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rava<br />

fenômenos como a citação 17 , explícita (literal) ou não (alegórica).<br />

Como então <strong>de</strong>monstramos, o ‘início do evangelho’ é, segundo uma só interpretação<br />

(ekdokh , ἐκδοχή), todo o antigo testamento, o qual está simbolizado (sēmainoménē,<br />

σηµαινοµένη) através do nome <strong>de</strong> João; para que não seja algo sem testemunho,<br />

remeteremos esta interpretação àquilo que está mencionado, nos Atos, acerca do eunuco<br />

<strong>da</strong> rainha dos etíopes e acerca <strong>de</strong> Filipe; diz, com efeito, a (passagen): ‘tendo começado<br />

Filipe a partir dos escritos <strong>de</strong> Isaías, “foi levado como uma ovelha à imolação e, como um<br />

cor<strong>de</strong>iro sem voz diante do tosquiador”, anunciou-lhe a boa nova a respeito do senhor<br />

Jesus”. Com efeito, como (ele po<strong>de</strong>ria), começando a partir do profeta, anunciar a boa<br />

nova a respeito <strong>de</strong> Jesus, se Isaías não fosse uma parte do início do evangelho? [...] E por<br />

que é preciso prolongar mais o discurso acerca do que é o evangelho? Essas menções são,<br />

então, evi<strong>de</strong>ntes por si sós (autárkōs, αὐτάρκως) e, a partir <strong>de</strong>las, aqueles que não são<br />

malversados (anentrekhoí, ἀνεντρεχοί) po<strong>de</strong>m reunir (passagens) quase semelhantes a<br />

partir <strong>da</strong>s escrituras [...]. (ORIG. Comm. in euang. Ioann. 13.15.85-88; tradução e grifos<br />

nossos).<br />

16 “Teologia” é usado aqui como concernente a “Deus”, pois que, <strong>de</strong> um certo modo, o termo é anacrônico. Seria<br />

mais apropriado utilizar a expressão “economia <strong>de</strong> Deus”, a qual <strong>de</strong>signa a lógica <strong>da</strong> atuação divina.<br />

17 Ἐπεὶ τοίνυν «ἀρχὴν τοῦ εὐαγγελίου» κατὰ µίαν ἐκδοχὴν τὴν πᾶσαν παρεστήσαµεν εἶναι<br />

παλαιὰν διαθήκην διὰ τοῦ ὀνόµατος Ἰωάννου σηµαινοµένην, ὑπὲρ τοῦ µὴ ἀµάρτυρον εἶναι τὴν<br />

ἐκδοχὴν ταύτην παραθησόµεθα τὸ ἐκ Πράξεων περὶ τοῦ τῆς Αἰθιόπων βασιλίδος εὐνούχου<br />

εἰρηµένον καὶ Φιλίππου· «Ἀρξάµενος, γάρ φησιν, ὁ Φίλιππος ἀπὸ τῆς Ἡσαΐου γραφῆς τῆς· Ὡς<br />

πρόβατον ἐπὶ σφαγὴν ἤχθη, καὶ ὡς ἀµνὸς ἐνώπιον τοῦ κείροντος ἄφωνος, εὐαγγελίσατο αὐτῷ<br />

τὸν κύριον Ἰησοῦν.» Πῶς γὰρ ἀρχόµενος ἀπὸ τοῦ προφήτου εὐαγγελίζεται Ἰησοῦν, εἰ µὴ τῆς<br />

ἀρχῆς τοῦ εὐαγγελίου µέρος τι ὁ Ἡσαΐας ἦν; [...] Καὶ τί δεῖ ἐπὶ πλεῖον µηκύνειν τὸν περὶ τοῦ τί τὸ<br />

εὐαγγέλιόν ἐστι λόγον; Αὐτάρκως δὴ τούτων εἰρηµένων καὶ ἐκ τούτων τῶν µὴ ἀνεντρεχῶν<br />

δυναµένων τὰ παραπλήσια συναγαγεῖν ἀπὸ τῶν γραφῶν [...].<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

236


Igualmente, polemizava-se com os ju<strong>de</strong>us por negarem Cristo como o Messias,<br />

afirmando ser <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconhecimento <strong>de</strong>sses, fenômenos textuais tais como a antecipação<br />

(alegórica), <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> relacionar, por exemplo, os escritos proféticos com a posterior vin<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong> Cristo. Por outro lado, <strong>de</strong>monstrando o caráter <strong>de</strong> simulacro <strong>de</strong> sua apropriação, a<br />

grammatica aparece per se como problema para os “alexandrinos”, na medi<strong>da</strong> em que era ela<br />

também a ferramenta hermenêutica <strong>de</strong> leitura par excellence nos <strong>de</strong>bates seculares. Usando-a,<br />

portanto, os “alexandrinos” abriam as fronteiras para que os grammatici seculares<br />

comparassem a própria Bíblia com textos <strong>da</strong> tradição secular como, por exemplo, <strong>Home</strong>ro e<br />

Virgílio. To<strong>da</strong>via, para “escapar” <strong>de</strong>ssa aporia – isto é, <strong>de</strong> que a Bíblia é um texto entre outros<br />

– os “alexandrinos” operam mu<strong>da</strong>nças na grammatica, apropriando-a e renomeando-a como<br />

doctrina christiana, tornando possível àquela tratar <strong>de</strong> algo <strong>de</strong>sconhecido aos “pagãos”: a<br />

sacrali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s línguas e do texto revelado por Deus 18 , que não são <strong>de</strong> uma natureza qualquer,<br />

mas, conforme uma regra <strong>de</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>. Partindo <strong>de</strong>sse credo, eles levaram às últimas<br />

conseqüências uma concepção <strong>de</strong> leitura que, não obstante contempla<strong>da</strong> pelos grammatici<br />

seculares, jamais tinha alcançado tal estatuto: a <strong>da</strong> alegoria 19 . Esse “dizer algo <strong>de</strong> modo<br />

diferente” (Cf. IRVINE, 1994:248-9), adotado com ressalvas 20 , será postulado como o<br />

princípio fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> leitura “correta” <strong>da</strong>s Escrituras. Doravante, será possível voltar ao<br />

<strong>de</strong>bate com os grammatici, alegando que o não entendimento e a não apreciação estética <strong>da</strong><br />

Bíblia advêm <strong>de</strong> uma ignorância, não em relação à língua humana, mas acerca do que seja a<br />

língua <strong>de</strong> Deus e o texto no qual ele a revelou 21 . Desenvolve-se, portanto, sob a rubrica <strong>da</strong><br />

18 Embora as línguas sacras sejam três, portanto, “diversas”, elas não contradizem a “uni<strong>da</strong><strong>de</strong>”, porque, para um<br />

“alexandrino”, o mundo é assim, múltiplo. Jesus, por “ter se feito carne”, “abraçou” a multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> do mundo,<br />

a fim <strong>de</strong> restaurá-lo no uno, no fim dos tempos, no paraíso celeste. Portanto, no mundo, as línguas sacras são três,<br />

porque, nelas, se narrou a história <strong>de</strong> Cristo no mundo, mas, no céu, há uma só língua, assim como a ver<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

fé também é una.<br />

19 Cf. Irvine (1994, 246-7): “[...] a interpretação alegórica obscurece seu estatuto textual ao se apresentar não<br />

como um discurso secundário mas como a <strong>de</strong>codificação <strong>de</strong> um código anterior, a <strong>de</strong>s-alegorização <strong>de</strong> uma<br />

superfície textual polissêmica. Em outras palavras, a interpretação alegórica fornece uma série <strong>de</strong> assunções que<br />

parecem reverter ou inverter o processo semiótico, apresentando o texto suplementar do comentário como o<br />

texto-objeto <strong>de</strong>snudo <strong>de</strong> alegoria, o texto ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro <strong>de</strong>sconhecido em si mesmo. [...] a interpretação alegórica<br />

inevitavelmente se esforça em representar o texto-objeto em sua forma unívoca, em grau zero, isto é, numa<br />

forma sem-estilo, não-metafórica, branca <strong>de</strong> escritura.” (tradução nossa).<br />

20 Um “exagero alegórico” será <strong>de</strong>nunciado mais tar<strong>de</strong>, pelo fato <strong>de</strong> que tal caminho po<strong>de</strong>ria levar a pensar que<br />

tudo, na Bíblia, era alegórico. Desse modo, po<strong>de</strong>r-se-ia negar a própria idéia <strong>de</strong> um Deus revelado<br />

historicamente, ou seja, pensar que os relatos bíblicos não são fatos históricos, mas apenas dispositivos retóricos<br />

para “dizer outras coisas”.<br />

21<br />

Conforme Amsler (1989, p 87), ao falar <strong>da</strong> <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong> certos autores cristão que consi<strong>de</strong>ravam que “[…]<br />

a linguagem <strong>da</strong> Bíblia (sacra eloquia) [...] possuía a sua própria gramática e retórica, seu próprio discurso,<br />

baseado na gramática e na retórica seculares, mas exce<strong>de</strong>ndo as regras (<strong>de</strong>las) por meio do po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> mensagem<br />

cristã.” (tradução nossa).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

237


alegoria, um eficiente controle discursivo, uma vez que, aos ortodoxos, é sempre garantido o<br />

primado <strong>da</strong> interpretação, pois são eles que dizem on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ve e on<strong>de</strong> não se <strong>de</strong>ve aplicar a<br />

leitura alegórica. A leitura “correta” e a fé “ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira” caminham juntas, porque seriam faces<br />

<strong>da</strong> mesma moe<strong>da</strong>.<br />

BREVE CONCLUSÃO: COMENTÁRIO E PODER<br />

Além <strong>de</strong> muitas “heranças”, como uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> visão <strong>de</strong> texto, leitura e<br />

interpretação, a prática discursiva do comentário era, concomitantemente a outras práticas<br />

sociais, um mecanismo <strong>de</strong> exclusão do Outro, <strong>de</strong> controle <strong>da</strong> interpretação e o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

império <strong>de</strong> um sentido, o <strong>da</strong> ortodoxia <strong>da</strong> Igreja, contra os <strong>da</strong>s outras correntes, construí<strong>da</strong>s,<br />

discursivamente, como “hereges”. Para tanto, seguimos a suposição <strong>de</strong> Foucault (2005:8) <strong>de</strong><br />

que<br />

que<br />

[...] em to<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> a produção do discurso é ao mesmo tempo controla<strong>da</strong>, seleciona<strong>da</strong>,<br />

organiza<strong>da</strong> e redistribuí<strong>da</strong> por certo número <strong>de</strong> procedimentos que têm por função<br />

conjurar seus po<strong>de</strong>res e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua<br />

pesa<strong>da</strong> e temível materiali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Dentre esses procedimentos, o filósofo francês inclui o comentário, e, <strong>de</strong>ste, afirma<br />

[...] o <strong>de</strong>snível entre texto primeiro e texto segundo <strong>de</strong>sempenha dois papéis que são<br />

solidários. Por um lado permite construir (e in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong>mente) novos discursos: o fato <strong>de</strong> o<br />

texto primeiro pairar acima, sua permanência, seu estatuto <strong>de</strong> discurso sempre<br />

reatualizável, o sentido múltiplo ou oculto <strong>de</strong> que passa por ser <strong>de</strong>tentor, a reticência e a<br />

riqueza essenciais que lhe atribuímos, tudo isso fun<strong>da</strong> uma possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> aberta <strong>de</strong> falar.<br />

Mas, por outro lado, o comentário não tem outro papel, sejam quais forem as técnicas<br />

emprega<strong>da</strong>s, senão o <strong>de</strong> dizer enfim o que estava articulado silenciosamente no texto<br />

primeiro. Deve, conforme um paradoxo que ele <strong>de</strong>sloca sempre, mas ao qual não escapa<br />

nunca, dizer pela primeira vez aquilo que, entretanto, já havia sido dito e repetir<br />

incansavelmente aquilo que, no entanto, não havia jamais sido dito. A repetição<br />

in<strong>de</strong>fini<strong>da</strong> dos comentários é trabalha<strong>da</strong> do interior pelo sonho <strong>de</strong> uma repetição<br />

disfarça<strong>da</strong>: em seu horizonte não há talvez na<strong>da</strong> além <strong>da</strong>quilo que já havia em seu ponto<br />

<strong>de</strong> parti<strong>da</strong>, a simples recitação. O comentário conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua<br />

parte: permite-lhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição <strong>de</strong> que o texto<br />

mesmo seja dito e <strong>de</strong> certo modo realizado. A multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong> aberta, o acaso são<br />

transferidos, pelo princípio do comentário, <strong>da</strong>quilo que arriscaria <strong>de</strong> ser dito, para o<br />

número, a forma, a máscara, a circunstância <strong>da</strong> repetição. O novo não está no que é dito,<br />

mas no acontecimento <strong>de</strong> sua volta. (FOUCAULT, 2005, p. 21-25)<br />

Nesse aspecto, os comentários bíblicos po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados aquilo que o mesmo<br />

Foucault <strong>de</strong>nominou como uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

238


Ora, essa vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber, como os outros sistemas <strong>de</strong> exclusão, apóia-se sobre um<br />

suporte institucional: é ao mesmo tempo reforça<strong>da</strong> e reconduzi<strong>da</strong> por todo um compacto<br />

conjunto <strong>de</strong> práticas como a pe<strong>da</strong>gogia, é claro, como o sistema <strong>de</strong> livros, <strong>da</strong> edição, <strong>da</strong>s<br />

bibliotecas, como as socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também<br />

reconduzi<strong>da</strong>, mais profun<strong>da</strong>mente sem dúvi<strong>da</strong>, pelo modo como o saber é aplicado em<br />

uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, como é valorizado, distribuído, repartido e <strong>de</strong> certo modo atribuído.<br />

(FOUCAULT, 2005, p. 17)<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

Corpus e outros textos antigos<br />

DIONÍSIO DA TRÁCIA. Tékhnē grammatikē. Disponível em: . Acesso em:<br />

26 nov. 2007.<br />

MIGNE, Jacques. Patrologia; cursus completus: series graeca. (Patrologia Graeca, PG).<br />

Paris: Migne, [1844-1855].<br />

MIGNE, Jacques. Patrologia; cursus completus: series latina. (Patrologia Latina, PL).<br />

Paris: Migne, 1844-1855.<br />

Outros estudos<br />

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middle ages. Amster<strong>da</strong>m: John Benjamins, 1989.<br />

AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas – as não-coincidências do dizer. Trad.<br />

Claudia R. C. Pfeiffer et al. Campinas: Unicamp, 1998.<br />

DESBORDES, Françoise. Concepções sobre a escrita na Roma antiga. Trad. Fulvia M. L.<br />

Moretto e Guacira M. Machado. São Paulo: Ática, 1995.<br />

FOUCAULT, Michel. A or<strong>de</strong>m do discurso. Trad. Laura Fraga <strong>de</strong> Almei<strong>da</strong> Sampaio. São<br />

Paulo: Loyola, 2005.<br />

IRVINE, Martin. The making of textual culture: “Grammatica” and literary theory, 350-<br />

1100. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Les termes clés <strong>de</strong> l’analyse du discours. Paris: Seuil, 1996.<br />

MAINGUENEAU, Dominique. Sémantique <strong>de</strong> la polemique – discours religieux et<br />

ruptures idéologiques au XVIIe siècle. Lousanne: L'Age d'Homme, 1983.<br />

MORESCHINI, Claudio e NORELLI, Enrico (org.). Historia <strong>da</strong> literatura cristã antiga<br />

grega e latina, tomo I. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Loyola, 1996.<br />

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NEVES, Maria H. <strong>de</strong> M. A vertente grega <strong>da</strong> gramática tradicional: uma visão do<br />

pensamento grego sobre a linguagem. 2ª ed. revista. São Paulo: Editora UNESP, 2005.<br />

PEREIRA, Marcos A. Quintiliano gramático: o papel do mestre <strong>de</strong> gramática na<br />

Institutio oratoria. São Paulo: Humanitas, 2000.<br />

SAWYER, John F. A. Sacred languages and sacred texts. Londres: Routledge, 1999.<br />

SWIGGERS, Pierre. “Les Pères <strong>de</strong> l’Eglise”. In: AUROUX, Sylvain (ed.). Histoire <strong>de</strong>s idées<br />

linguistiques, t. 2: le développement <strong>de</strong> la grammaire occi<strong>de</strong>ntale. Liège: Mar<strong>da</strong>ga,<br />

1992.<br />

TRIGG, Joseph W. Origen. Londres: Routledge, 1998.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 228-240, 2008<br />

240


Protágoras, Górgias, os Dissoi Logoi e a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ensino <strong>de</strong> aretē<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

Joseane PREZOTTO<br />

PG –UFPR<br />

joseane.prezotto@gmail.com<br />

Protágoras e Górgias são consi<strong>de</strong>rados os mais importantes sofistas <strong>da</strong> primeira<br />

geração. Atuantes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a meta<strong>de</strong> do séc. V a.C. eles vivenciaram e aju<strong>da</strong>ram a concretizar<br />

mu<strong>da</strong>nças profun<strong>da</strong>s na socie<strong>da</strong><strong>de</strong> grega <strong>de</strong> sua época. O século V a.C. é o século <strong>da</strong><br />

consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> <strong>de</strong>mocracia em Atenas, e também na Sicília e em outros lugares, e a atuação<br />

dos sofistas está diretamente relaciona<strong>da</strong> com o surgimento <strong>da</strong> pólis <strong>de</strong>mocrática. No<br />

ambiente <strong>da</strong>s disputas judiciais e assembléias públicas, estimulado pelas reformas<br />

constitucionais <strong>de</strong> Efialtes e Péricles a partir <strong>de</strong> 462 a.C. 1 , o êxito político <strong>de</strong>pendia <strong>da</strong><br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> influenciar e persuadir a multidão 2 e, se necessário, <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se, ou acusar<br />

alguém, diante dos tribunais 3 . As habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s oratórias tornam-se indispensáveis àquele que<br />

almeja ascensão social e reconhecimento público. Para o ci<strong>da</strong>dão comum, apren<strong>de</strong>r retórica,<br />

além <strong>de</strong> ser vantajoso em possíveis conten<strong>da</strong>s judiciais, era um meio <strong>de</strong> tornar-se estimado e<br />

influente. Além disso, não ser capaz <strong>de</strong> proferir um discurso razoável ou <strong>de</strong> acompanhar o<br />

discurso do adversário era consi<strong>de</strong>rado <strong>de</strong>sonroso. Grote (1907, p. 302, tradução nossa)<br />

afirmou que “nenhum ci<strong>da</strong>dão, rico ou pobre, estava isento <strong>de</strong> conhecer tais habili<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

alguma aptidão com as palavras não era menos essencial que alguma aptidão com armas.”<br />

Assim, há uma <strong>de</strong>man<strong>da</strong> crescente, neste período, por manuais <strong>de</strong> retórica e também por<br />

especialistas que escreviam discursos mediante encomen<strong>da</strong>, os logógrafos. No outro nível, o<br />

<strong>da</strong> formação do homem político, enquadra-se a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional dos sofistas.<br />

1 Efialtes, com a colaboração <strong>de</strong> Péricles, diminui os po<strong>de</strong>res legislativos e jurídicos do antigo Conselho do<br />

Areópago aumentando a importância dos Tribunais e do Conselho dos Quinhentos. Por volta <strong>de</strong> 461 a.C.,<br />

Péricles institui o pagamento <strong>de</strong> uma pequena quantia aos que trabalhavam nos júris.“O pagamento pelos cargos,<br />

pelo serviço no júri e até pela assistência à ekklesía viria a tornar-se um dos traços mais característicos <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>mocracia radical.” (JONES, 1997, p. 23)<br />

2 Estima-se que a Assembléia contava, normalmente, com a presença <strong>de</strong> quatro a seis mil ci<strong>da</strong>dãos e reunia-se<br />

quarenta vezes fixas por ano ou mais, caso fossem necessárias reuniões <strong>de</strong> emergência. Os assuntos ali <strong>de</strong>batidos<br />

eram variados: acordos <strong>de</strong> guerra e paz, expedições militares e provisões para a guerra; eleição e supervisão <strong>da</strong>s<br />

magistraturas; eleição <strong>de</strong> estrategos e outros cargos militares; casos <strong>de</strong> ostracismo e con<strong>de</strong>nações; legislação<br />

sobre assuntos <strong>de</strong> governo interno, etc.<br />

3 Ca<strong>da</strong> tribunal normalmente compunha-se por quinhentos e um membros. Depen<strong>de</strong>ndo <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> causa<br />

reuniam-se dois tribunais, mil e um membros, ou três, mil quinhentos e um membros, e assim por diante. O<br />

número total era sempre ímpar para evitar o empate. O número elevado <strong>de</strong> jurados evitava a prática do suborno e<br />

acabou por valorizar a retórica forense.


Caracterizar os sofistas a partir <strong>de</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional como professores <strong>de</strong><br />

retórica parece ser a maneira menos controversa <strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-los. Eles supriram a <strong>de</strong>man<strong>da</strong> por<br />

uma educação juvenil <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a formar homens capazes <strong>de</strong> distinguirem-se dos <strong>de</strong>mais nos<br />

assuntos públicos e privados. Vistos positivamente, eles eram “os transmissores <strong>de</strong><br />

competências valoriza<strong>da</strong>s no seu tempo como instrumentos <strong>de</strong>cisivos do sucesso na carreira<br />

política e, <strong>de</strong> um modo geral, nos êxitos mun<strong>da</strong>nos” (SOUSA; PINTO, 2002, p. 13-14). Seu<br />

ensino era pago e eram procurados, principalmente, por jovens <strong>de</strong> famílias abasta<strong>da</strong>s que<br />

pretendiam alcançar po<strong>de</strong>r político através do domínio <strong>da</strong>s técnicas do discurso persuasivo.<br />

Que alguns <strong>de</strong>sses jovens fossem mal intencionados e utilizassem, futuramente, os<br />

ensinamentos sofísticos com fins inescrupulosos era um risco <strong>da</strong> profissão e algo pelo qual os<br />

sofistas foram muitas vezes responsabilizados 4 .<br />

O estudo <strong>da</strong> retórica orientado pelos sofistas incluía <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o conhecimento <strong>de</strong><br />

pequenos <strong>de</strong>talhes gramaticais 5 até a discussão <strong>de</strong> assuntos <strong>de</strong> composição, estrutura e<br />

argumentação. Como <strong>de</strong>finiu Vervaecke (1990, p. 143, tradução nossa): “[neste ambiente] a<br />

arte oratória consiste em encontrar, a propósito <strong>de</strong> to<strong>da</strong> reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, os discursos possíveis,<br />

discernir o mais valioso e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r sua tese, mesmo, e sobretudo, se ela se opõe à opinião<br />

corrente.” O objetivo <strong>de</strong>stes estudos era a construção do discurso não apenas mais a<strong>de</strong>quado e<br />

convincente, mas do melhor e mais envolvente. Suas práticas pretendiam o aprimoramento<br />

no uso <strong>de</strong> técnicas discursivas tais como: o uso do argumento provável ou verossimilhante;<br />

contra-argumentação e justaposição <strong>de</strong> argumentos contrários; a<strong>de</strong>quação à ocasião (causa,<br />

público, situação, etc); figuras <strong>de</strong> linguagem, efeitos causados sobre o público; etc.<br />

Os sofistas, no sentido amplo <strong>de</strong> sua atuação, foram os promotores <strong>da</strong> ‘nova<br />

educação’. Até sua época, uma educação para além do nível básico ofertado às crianças pelos<br />

professores <strong>de</strong> ginástica, música 6 e gramática, ensinava a ler e escrever, era privilégio <strong>de</strong> umas<br />

poucas famílias aristocráticas. O acesso ao saber era, <strong>de</strong> fato, um legado familiar e, por isso,<br />

4 “These young men wanted political power. To gratify ambition was their end and aim. But this was an end<br />

which the Sophists did not implant. They found it pre-existing, learnt from other quarters [sic]; and they had to<br />

<strong>de</strong>al with it as a fact.” (GROTE, 1907, p. 320 cf. Ibi<strong>de</strong>m, p. 319-322)<br />

5 Protágoras teria sido o primeiro a distinguir quatro tipos <strong>de</strong> discursos (pedido, or<strong>de</strong>m, pergunta e resposta) ou<br />

sete (além <strong>da</strong>s anteriores, narração, relato e intimação), e o primeiro a dividir os nomes em femininos,<br />

masculinos e neutros. Pródico foi famoso por seu estudo <strong>da</strong> distinção dos significados entre palavras<br />

consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s sinônimas. Como seus estudos tinham fins práticos bem <strong>de</strong>finidos, o mais provável é que tratassem<br />

estas e outras questões gramaticais <strong>de</strong> um ponto <strong>de</strong> vista normativo, a fim <strong>de</strong> que seus alunos seguissem<br />

<strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s ‘regras’ consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>s mais a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s.<br />

6 A tarefa do professor <strong>de</strong> música, ou gramática, ou ambos, continha normalmente, além <strong>da</strong> orientação prática,<br />

um elemento moralizante: o estudo dos textos edificantes dos poetas, os alunos <strong>de</strong>veriam memorizá-los e<br />

recitá-los.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

242


acreditou-se ser um bem hereditário, próprio <strong>da</strong> nobreza. O mesmo com os cargos<br />

importantes, num regime oligárquico eles eram um direito <strong>de</strong> nascimento. As instituições<br />

<strong>de</strong>mocráticas criaram o espaço para a educação sofística e possibilitaram que ela fosse um<br />

instrumento <strong>de</strong> promoção social. Deve-se lembrar também que, após as Guerras Médicas e a<br />

criação <strong>da</strong> Liga <strong>de</strong> Delos em 478 a.C., Atenas torna-se a ci<strong>da</strong><strong>de</strong>-estado mais importante <strong>da</strong><br />

Grécia, vivendo um momento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prosperi<strong>da</strong><strong>de</strong> econômica, atraindo sofistas e outros<br />

pensadores, que encontravam ali muitos homens ricos dispostos a recebê-los e serem seus<br />

discípulos. Mesmo sendo <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> às elites e não às massas 7 , a ação educativa dos sofistas<br />

suscitou a discussão sobre as conseqüências <strong>da</strong> <strong>de</strong>mocratização do saber.<br />

De um modo geral, alguns professores esclarecidos <strong>da</strong> geração anterior<br />

assemelhavam-se aos sofistas, como os preceptores <strong>de</strong> Péricles, que ensinavam sobre<br />

astronomia, geografia e física e mantinham com seus alunos discussões dialéticas acerca <strong>de</strong><br />

problemas diversos. No entanto, embora partilhassem com seus pre<strong>de</strong>cessores o ofício <strong>de</strong><br />

treinar os jovens para os <strong>de</strong>veres, as atribuições e os acontecimentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> adulta, priva<strong>da</strong><br />

ou pública, os sofistas distinguiram-se<br />

[...] por trazer à tarefa uma gama maior <strong>de</strong> conhecimento, com uma maior multiplici<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> tópicos científicos e outros - não só po<strong>de</strong>res mais impressionantes <strong>de</strong> composição e<br />

discurso, servindo como um exemplo pessoal ao aluno, mas também uma compreensão<br />

dos elementos <strong>da</strong> boa oratória, para po<strong>de</strong>r transmitir os preceitos conducentes àquela<br />

realização - um tesouro consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> pensamento acumulado em moral e assuntos<br />

políticos, <strong>de</strong>stinado a tornar sua conversa instrutiva - e discursos prontos, sobre temas<br />

gerais ou ‘lugares comuns’, para que os alunos apren<strong>de</strong>ssem <strong>de</strong> cor. (GROTE, 1907, p.<br />

317, tradução nossa).<br />

Acreditar que os sofistas transmitissem apenas técnicas e aptidões específicas é<br />

simplificar o escopo <strong>de</strong> sua atuação. Influenciados pela filosofia jônica, os sofistas são<br />

racionalistas e inquiridores. As explicações ‘naturais’, <strong>de</strong> Anaximandro em diante, para a<br />

origem <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> abriram caminho para o tratamento dos eventos como<br />

problemas perscrutáveis, não mais como mistérios intangíveis on<strong>de</strong> os papéis fun<strong>da</strong>mentais<br />

eram representados pelos <strong>de</strong>uses. O contato com outros povos, a percepção <strong>da</strong> relativi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

dos valores morais, dos costumes, <strong>da</strong> religião, foi outro fator que contribuiu para a formação<br />

<strong>da</strong> nova geração <strong>de</strong> pensadores relativistas e humanistas. Os gregos tinham gosto pela<br />

<strong>de</strong>scrição dos costumes e modos <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> dos povos ‘exóticos’ e começaram a nutrir interesse<br />

7 Geralmente, apenas tinha acesso ao ensino sofista quem podia pagar seu preço. “Os recursos transmitidos, os<br />

conhecimentos especializados, bem como a aptidão dialéctica e retórica, parecem tão importantes ao sofista e aos<br />

seus ouvintes, que, regra geral, aquele exige uma retribuição que po<strong>de</strong> chegar a ser bastante eleva<strong>da</strong>.” (LESKY,<br />

1971, p. 373)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

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pela discussão dos fatores <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>antes <strong>de</strong>sta ou <strong>da</strong>quela moral. Não sendo a moral algo<br />

universal era, então, produto <strong>de</strong> uma interação específica, não <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> divinamente. Os<br />

sofistas participaram ativamente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> intelectual <strong>de</strong> sua época, propondo questões<br />

fun<strong>da</strong>mentais sobre a natureza humana 8 . Como disse Guthrie (1995, p. 78): “é notável que<br />

muitos argumentos que se po<strong>de</strong>riam pensar éticos ou políticos, e, sendo assim, tratar <strong>de</strong><br />

assuntos meramente práticos, <strong>de</strong>pen<strong>da</strong>m, <strong>de</strong> fato, <strong>de</strong> temas filosóficos mais profundos.” Dessa<br />

forma, seus discípulos recebiam muito mais que uma educação instrumental; implícita ou<br />

explicitamente, eram introduzidos a um modo novo <strong>de</strong> ver o mundo e atuar sobre ele.<br />

Outra característica dos sofistas é a <strong>de</strong> serem itinerantes, assim como os antigos aedos.<br />

Viajavam pelo mundo grego, visitando várias ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s, transmitindo os seus conhecimentos<br />

em palestras a pequenos grupos, em conferências maiores ou em epí<strong>de</strong>ixeis. Também se<br />

apresentaram em festivais e em outras ocasiões públicas. Dos sofistas mais famosos <strong>de</strong>sta<br />

época 9 , apenas Antífon parece ter sido ateniense; Protágoras era <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>ra 10 (na costa <strong>da</strong><br />

Trácia), Górgias <strong>de</strong> Leontinos (na Sicília 11 ), Pródico <strong>de</strong> Céos (em território jônico) e Hípias<br />

<strong>de</strong> Élis (nor<strong>de</strong>ste do Peloponeso). Todos eles estiveram, em algum ou vários momentos <strong>de</strong><br />

suas vi<strong>da</strong>s, em Atenas, pois “Atenas, por uns sessenta anos, na segun<strong>da</strong> meta<strong>de</strong> do século V<br />

a.C., era o ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro centro do movimento sofista. De fato, tanto isso é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, sem<br />

Atenas, é provável que o movimento dificilmente teria vindo a existir.”(KERFERD, 2003, p.<br />

31) A ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> assim <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> por estes homens permitiu que, mesmo sendo<br />

8 Estiveram envolvidos, principalmente, com questões práticas e manifestaram-se, sobretudo, acerca <strong>de</strong> questões<br />

relativas à interação social humana. Debateram, por exemplo, segundo Guthrie (op. cit., p. 29): o status <strong>da</strong>s leis e<br />

dos princípios morais; a teoria do progresso do homem do estado selvagem para o civilizado, substituindo a<br />

crença tradicional <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>generação a partir <strong>de</strong> um passado áureo; a idéia do contrato social; teorias subjetivas<br />

do conhecimento; ateísmo e agnosticismo; hedonismo e utilitarismo; a uni<strong>da</strong><strong>de</strong> do gênero humano; escravidão e<br />

igual<strong>da</strong><strong>de</strong>; a natureza <strong>da</strong> aretē; a importância <strong>da</strong> retórica e o estudo <strong>da</strong> linguagem. Alguns <strong>de</strong>les interessaram-se<br />

pelas áreas ‘mais científicas’ existentes à época, como o estudo <strong>da</strong> matemática, geometria, astronomia e outras<br />

matérias afins. cf. KERFERD, 2003, p. 10-13. Como disse Lesky (1971, p. 370): “nenhum movimento<br />

intelectual po<strong>de</strong>-se comparar com ele [o movimento sofista] na permanência <strong>de</strong> seus resultados, e as questões<br />

propostas pelos sofistas nunca se permitiram repousar na história do pensamento oci<strong>de</strong>ntal até nossos dias”.<br />

9Conforme Kerferd (2003, p. 75), “conhecemos os nomes <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> vinte e seis sofistas do período entre mais<br />

ou menos 460 a 380 a.C. [...], talvez oito ou nove eram muito famosos, e a esses <strong>de</strong>veríamos acrescentar os<br />

autores <strong>de</strong> duas obras anônimas, a Dissoi Logoi e o chamado Anônimo Iâmblico.” A lista <strong>de</strong> nomes dos sofistas<br />

mais famosos, cujos testemunhos foram compilados por Diels e Kranz (1960), inclui: Protágoras, Górgias,<br />

Pródico, Hípias, Antífon, Trasímaco, Licófron e Crítias, aos quais Kerferd (2003) acrescenta: Cálicles, Euti<strong>de</strong>mo<br />

e Dionisodoro; e Guthrie (1995): Antístenes e Alci<strong>da</strong>mas. Se tirássemos <strong>de</strong>stas listas os mais controversos e<br />

aqueles sobre os quais não teríamos muito que dizer, por termos pouca informação, ficaríamos com Antífon,<br />

Protágoras, Górgias, Pródico e Hípias.<br />

10 Mesma ci<strong>da</strong><strong>de</strong> natal <strong>de</strong> Demócrito, os dois foram coetâneos.<br />

11 Segundo a tradição, a retórica iniciou-se na Sicília com Córax e Tísias, estimula<strong>da</strong> pelo gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong><br />

processos judiciais existentes no início <strong>da</strong> <strong>de</strong>mocracia, após a que<strong>da</strong> dos tiranos <strong>de</strong> Siracusa em 467 a.C.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

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estrangeiros, exercessem influência política indireta nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s on<strong>de</strong> atuaram, por educarem<br />

os jovens <strong>da</strong>s famílias mais ilustres e mais po<strong>de</strong>rosas.<br />

To<strong>da</strong>s as características do movimento sofista até aqui expostas suscitam tanto<br />

admiração como repulsa. A nova educação que promove é satiriza<strong>da</strong> por Aristófanes em As<br />

Nuvens. Os sofistas foram acusados <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>rem um conhecimento imoral e pernicioso,<br />

ensinando os jovens a justificarem más ações com argumentos retóricos, livrando-se assim <strong>de</strong><br />

suas conseqüências. Os ricos e conservadores consi<strong>de</strong>ravam-nos uma ameaça pelas mu<strong>da</strong>nças<br />

e discussões que incitavam; os mais pobres, que não tinham acesso ao seu ensino, viam-nos<br />

com preconceito, como os <strong>de</strong>tratores dos bons e velhos costumes. Neste ambiente hostil,<br />

‘sofista’ 12 passa a ser um título <strong>de</strong>preciativo, usado para intelectuais, adivinhos, pe<strong>da</strong>ntes,<br />

ateus, físicos, filósofos, etc., implicando charlatanismo e velhacaria ou astúcia, esperteza em<br />

sentido pejorativo. A má reputação dos sofistas foi perpetua<strong>da</strong> pelo menosprezo <strong>de</strong> Platão,<br />

cuja opinião continua, ain<strong>da</strong> hoje, a influenciar a visão que se tem do período sofístico.<br />

Apenas a partir do séc. XIX é que se começa a <strong>de</strong>svincular o estudo do movimento sofista <strong>da</strong><br />

visão lega<strong>da</strong> por Platão.<br />

A crítica platônica, em linhas gerais, recai sob duas acusações: 1) os sofistas não são<br />

pensadores sérios e 2) eles são indivíduos imorais. A primeira acusação diz respeito ao<br />

empreendimento platônico que busca ridicularizar as proposições ou as possíveis conclusões<br />

advin<strong>da</strong>s <strong>da</strong> reflexão sofista, negando às doutrinas sofísticas valor filosófico. A energia gasta<br />

por Platão neste empreendimento, por si só, já é indício <strong>da</strong> influência exerci<strong>da</strong> por estes<br />

pensadores. Grosso modo, os sofistas difundiam uma concepção relativista aplica<strong>da</strong> aos níveis<br />

ontológico e epistemológico, e à questão <strong>da</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, e foram consi<strong>de</strong>rados rivais por Platão,<br />

que <strong>de</strong>senvolvia uma filosofia essencialmente ‘absolutista’. Embora Platão tenha tratado<br />

Protágoras e Górgias com respeito, diferenciando-os dos homens medíocres ligados mais<br />

tardiamente ao movimento, ele transmite um entendimento fun<strong>da</strong>mentalmente errôneo (ou<br />

conscientemente distorcido) do pensamento sofista. De qualquer forma, a obra platônica é<br />

nossa principal fonte <strong>de</strong> informação sobre os sofistas, pois quase na<strong>da</strong> restou <strong>de</strong> suas obras, é<br />

necessário, contudo, abordá-la <strong>de</strong> forma crítica e pon<strong>de</strong>ra<strong>da</strong>, pois sua exposição é uma<br />

interpretação pessoal.<br />

12 “Primeiramente, ‘sofista’ era sinônimo <strong>de</strong> ‘sábio’ e abrangia não só o que se afirmava como <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> saber<br />

especializado numa <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> área, como se aplicava, num plano mais genérico, a todo aquele que,<br />

conciliando a preparação teórica e a maneira sensata <strong>de</strong> orientar a sua vi<strong>da</strong> prática, surgia aos olhos dos <strong>de</strong>mais<br />

como protagonista do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> sabedoria. [...] Na seqüência do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> polis, quando surgiram os<br />

sofistas como agentes ou professores <strong>de</strong> um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> pai<strong>de</strong>ia, <strong>de</strong>u-se uma modificação no conteúdo<br />

semântico do termo, pois este passou a <strong>de</strong>signar esse tipo <strong>de</strong> novos mestres, com to<strong>da</strong> a ambivalência que a sua<br />

reputação provocava” (SOUSA; PINTO, 2005, p. 12-13).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

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A segun<strong>da</strong> acusação envolve as críticas direciona<strong>da</strong>s à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> profissional dos<br />

sofistas, visando <strong>de</strong>smerecer o valor <strong>da</strong> educação que ofereciam. São caracterizados, no<br />

diálogo Sofista, como caçadores <strong>de</strong> jovens ricos e comerciantes do ensino. Como Kerferd<br />

(2003, p. 47-49) elucidou, para enten<strong>de</strong>r esta crítica é necessário consi<strong>de</strong>rar a oposição<br />

conservadora a que qualquer um tenha acesso à formação política simplesmente pagando.<br />

Como dito acima, até este momento a educação juvenil era restrita aos membros <strong>da</strong>s famílias<br />

nobres e acontecia numa relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> entre o jovem e seu mestre. Que a instrução<br />

estivesse acessível a todos que pu<strong>de</strong>ssem pagar por ela forçava a reconsi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> estruturas<br />

internas <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. O ambiente <strong>da</strong> pólis <strong>de</strong>mocrática era propício a tais questionamentos,<br />

mas a polêmica foi gran<strong>de</strong> e <strong>de</strong>u origem a um dos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>bates <strong>da</strong> época: saber se aretē 13<br />

po<strong>de</strong> ou não ser ensina<strong>da</strong>.<br />

Tradicionalmente, aretē era palavra usa<strong>da</strong> para referir-se à quali<strong>da</strong><strong>de</strong> inata dos gran<strong>de</strong>s<br />

homens, os que se <strong>de</strong>stacaram historicamente pela coragem, força, valentia, sabedoria,<br />

li<strong>de</strong>rança; mas também havia um outro uso <strong>de</strong>sta palavra, que <strong>de</strong>notava a excelência em uma<br />

tarefa ou função específica, e relaciona-se ao domínio <strong>de</strong> uma técnica, téchnē, termo<br />

comumente traduzido por arte.<br />

No diálogo Protágoras, Platão apresenta Sócrates e Protágoras <strong>de</strong>batendo esta<br />

questão. Ao afirmar que ensina téchnē política (319a), Protágoras é confrontado com dois<br />

argumentos socráticos que preten<strong>de</strong>m <strong>de</strong>monstrar que ‘essa’ aretē não é um conhecimento<br />

que possa ser transmitido. Os argumentos socráticos são: 1) em questões técnicas os<br />

atenienses consultam especialistas, já em questões políticas, qualquer um po<strong>de</strong> opinar,<br />

ninguém se opõe a isto acreditando que é preciso ter estu<strong>da</strong>do ou freqüentado um professor<br />

(319b-d); 2) os melhores e mais sábios ci<strong>da</strong>dãos não foram capazes <strong>de</strong> transmitir sua aretē a<br />

outros, cita Péricles (319e-320b). Protágoras expõe sua opinião através <strong>de</strong> um mito e conclui<br />

que todos os homens são dotados <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que os tornam capazes <strong>de</strong> participar <strong>da</strong> téchnē<br />

política: justiça e respeito, díkē e aidōs – apenas por possuírem todos estas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s é que a<br />

vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong> é possível (320d-323c). Depois <strong>de</strong>monstra que os atenienses crêem que a<br />

13 A palavra aretē costuma ser traduzi<strong>da</strong> por ‘virtu<strong>de</strong>’, termo que evitei usar, preferindo manter o vocábulo<br />

grego transliterado. A palavra ‘virtu<strong>de</strong>’ parece ter um uso muito particular, atualmente, ligado a um conceito<br />

cristão <strong>de</strong> casti<strong>da</strong><strong>de</strong>, pie<strong>da</strong><strong>de</strong> e correção, que, talvez, funcionasse <strong>de</strong>ntro do contexto i<strong>de</strong>alista <strong>da</strong> filosofia<br />

platônica, mas não no ambiente prático do movimento sofista. Alguns sentidos atuais contêm o entendimento<br />

sofístico, mas há muitos mais que se afastam <strong>de</strong>le. Na discussão aqui apresenta<strong>da</strong>, ‘virtu<strong>de</strong>’ é um termo que<br />

po<strong>de</strong>ria vir a <strong>de</strong>smerecer o <strong>de</strong>bate; não é a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>, através do ensino, tornar um homem puro e <strong>de</strong> ‘bom<br />

coração’ que está sendo discuti<strong>da</strong>, mas a <strong>de</strong> torná-lo um homem influente, capaz <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s e<br />

ser honrado pelos <strong>de</strong>mais, recebendo distinção e reconhecimento público, bem como posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque no<br />

governo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

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aretē, ou téchnē política po<strong>de</strong> ser adquiri<strong>da</strong>, pois eles não punem por <strong>de</strong>feitos naturais ou<br />

aci<strong>de</strong>ntais, mas punem os que cometem injustiças, com fins educativos, para coibir as pessoas<br />

<strong>de</strong> agirem mal e estimular o aprendizado <strong>de</strong> aretē (323d-324d).<br />

A seguir irá expressar-se não mais em um mito, mas em um logos: para que a pólis<br />

exista, todos os ci<strong>da</strong>dãos, polítai, <strong>de</strong>vem possuir sentimento <strong>de</strong> justiça (dikaiosýnē),<br />

autocontrole (sōphrosýnē) e retidão (hósion), em uma palavra, aretē, e que o ensino <strong>de</strong> aretē é<br />

universal através <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, por pais, amas, professores, através <strong>da</strong>s leis e punições;<br />

assim, é posse <strong>de</strong> todos porque é ensina<strong>da</strong> a todos, embora aqueles que a ensinem não sejam<br />

chamados professores <strong>de</strong> aretē. “É importante notar que Protágoras não está simplesmente<br />

dizendo que as pessoas absorvem inconscientemente as tradições <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> nas quais<br />

vivem – não é uma questão casual, é uma parte essencial do ensino formal recebido por<br />

todos.” (KERFERD, 2003, p. 229). Quanto à diferença <strong>de</strong> aretē entre pais e filhos, ela <strong>de</strong>ve-se<br />

às aptidões naturais, às oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s que tiveram, à quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> instrução que receberam e<br />

<strong>de</strong> seus professores. Encontrar um professor capaz <strong>de</strong> fazer alguém avançar em aretē não é<br />

tarefa fácil, mas Protágoras se diz um <strong>de</strong>les: “Tenho-me na conta <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses, superior aos<br />

<strong>de</strong>mais homens no conhecimento <strong>da</strong>quilo que os po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar melhores e mais honestos, e me<br />

julgo, sem dúvi<strong>da</strong>, merecedor <strong>de</strong> receber o pagamento estipulado” (PLATÃO, 1980, p. 64).<br />

O entendimento protagórico <strong>de</strong> aretē é: um conjunto <strong>de</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s que permitem<br />

realizar uma tarefa ou encargo do melhor modo possível, no caso, uma tarefa social: ser um<br />

bom ci<strong>da</strong>dão, isto é, atuar e colaborar para o melhor <strong>de</strong> sua ci<strong>da</strong><strong>de</strong> e família. To<strong>da</strong>s as pessoas<br />

recebem uma educação mínima para a convivência social, o objetivo do ensino <strong>de</strong> Protágoras<br />

é a aretē neste assunto, a aretē política, totalmente volta<strong>da</strong> para a época e socie<strong>da</strong><strong>de</strong> em que<br />

vivia. As pessoas po<strong>de</strong>riam, assim, melhorar sua situação social através <strong>da</strong> educação.<br />

Também o capítulo seis do Dissoi Logoi 14 discute este tema, o ensino e aprendizagem<br />

<strong>de</strong> aretē e sophía. O capítulo inicia-se afirmando que há uma tese, nem ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira nem nova,<br />

que sustenta que aretē e sophía não se po<strong>de</strong>m nem ensinar nem apren<strong>de</strong>r; seguem-se cinco<br />

argumentos usados pelos <strong>de</strong>fensores <strong>de</strong>sta tese: 1) não se po<strong>de</strong> continuar a possuir algo <strong>de</strong>pois<br />

que o transmitimos a outro, 2) não se conhecem os mestres <strong>de</strong>ste ensino, 3) os sábios não são<br />

capazes <strong>de</strong> transmitir sua sabedoria aos seus, 4) alguns que foram discípulos dos<br />

14 O Dissoi Logoi é um tratado anônimo transmitido em a<strong>de</strong>ndo aos escritos <strong>de</strong> Sexto Empírico, sua composição<br />

costuma ser <strong>da</strong>ta<strong>da</strong> <strong>de</strong> 404 a.C.. Apresenta uma construção discursiva que reflete uma prática sofística <strong>da</strong> qual as<br />

Antilogiai <strong>de</strong> Protágoras também seriam um exemplo, constitui-se <strong>da</strong> oposição <strong>de</strong> duas teses diferentes acerca <strong>de</strong><br />

um mesmo tema. No caso do capítulo seis, no entanto, apenas uma tese é apresenta<strong>da</strong> e passa-se a valorar e<br />

contrastar seus argumentos concluindo-se pela insuficiência <strong>de</strong>les.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

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sofistas não se aprimoraram e 5) muitos se tornaram dignos <strong>de</strong> estima sem terem tido contato<br />

com os sofistas 15 (6, 1-6).<br />

O autor consi<strong>de</strong>ra essa tese simplória: com respeito ao primeiro argumento, os<br />

professores ensinam aquilo que sabem sem per<strong>de</strong>rem seu conhecimento (Dissoi Logoi, 6, 7).<br />

Os outros argumentos, note-se, são similares àqueles que Protágoras refuta no diálogo<br />

homônimo, inclusive, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u Solana Dueso (1996, p. 162-166), há semelhanças<br />

teóricas na réplica <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> pelos dois textos que po<strong>de</strong>ria sugerir uma inspiração<br />

protagórica para o Dissoi Logoi,- são elas: conceito amplo <strong>de</strong> ensino incluindo a escola e a<br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>; valoração <strong>da</strong>s disposições naturais enquanto condições para o êxito <strong>da</strong><br />

aprendizagem. Estas duas características são as mesmas aponta<strong>da</strong>s por Taylor (apud Kerferd,<br />

2003, p. 232) para o texto platônico: “Protágoras está empenhado em explicar a) que é<br />

possível ensinar a alguém como ser um homem bom, em sentido lato <strong>de</strong> ‘ensinar’, que inclui<br />

condicionamento nos costumes sociais bem como instrução em técnicas específicas tais como<br />

retórica, e b) que as disposições inalteráveis <strong>de</strong> caráter, que produzem a conduta especifica<strong>da</strong><br />

como apropria<strong>da</strong> às várias virtu<strong>de</strong>s particulares (p. ex. ações justas ou corajosas), não são<br />

idênticas entre si”. No Protágoras os posicionamentos encontram-se <strong>de</strong>senvolvidos e<br />

argumentados, o Dissoi Logoi traz afirmações concisas. A refutação do autor do Dissoi Logoi<br />

aos quatro argumentos restantes é simples: há mestres <strong>de</strong> sabedoria e virtu<strong>de</strong>, e mesmo que<br />

apenas um a tenha ensinado isto já é suficiente para <strong>de</strong>monstrar que é possível ensiná-la; há<br />

uma disposição natural que <strong>de</strong>fine que alguns, mesmo estu<strong>da</strong>ndo com os sofistas, não<br />

apren<strong>da</strong>m, e outros, sem freqüentá-los, adquiram muitos conhecimentos; apren<strong>de</strong>mos mesmo<br />

sem conhecer os mestres, através do ambiente familiar e social (6, 7-12).<br />

Este assunto foi um tópico freqüente nas discussões entre os sofistas e seus<br />

adversários. Górgias, no entanto, parece ter tentado se esquivar <strong>de</strong>le. No diálogo platônico<br />

Ménon, este personagem, discípulo <strong>de</strong> Górgias, diz que admira o mestre porque ele jamais<br />

prometeu ensinar aretē, inclusive ri-se quando ouve tais pretensões; sua tarefa é formar bons<br />

oradores (95c). No diálogo platônico homônimo, Górgias diz que a arte oratória, como as<br />

<strong>de</strong>mais formas <strong>de</strong> combate, <strong>de</strong>ve ser utiliza<strong>da</strong> com justiça. Se alguém adquire habili<strong>da</strong><strong>de</strong> na<br />

oratória e, aproveitando o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>sta arte, age injustamente, o seu instrutor não <strong>de</strong>ve ser<br />

culpado, pois não é o mestre que fez mau uso <strong>da</strong> arte e sim o discípulo (457b-c). Logo<br />

adiante, ele é levado por Sócrates a afirmar que ensinaria o justo e o injusto, caso seu aluno<br />

não o soubesse. Para o entendimento socrático isto significa que o homem retórico precisa<br />

15<br />

Estes argumentos foram ‘lugares comuns’ (topói), tendo sido aplicados em outros contextos. cf. SOLANA<br />

DUESO, 1996, p. 161.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

248


conhecer, sozinho ou com a aju<strong>da</strong> do mestre, a diferença entre o justo e o injusto, e, se ele a<br />

conhece, só po<strong>de</strong> obrar com justiça, então não po<strong>de</strong>ria usar a retórica injustamente (460a-<br />

461a). É importante perceber que a tira<strong>da</strong> socrática relaciona-se à sua própria concepção do<br />

assunto, que talvez fosse semelhante à <strong>de</strong> Protágoras, basea<strong>da</strong> na importância do<br />

esclarecimento acerca <strong>da</strong> justiça (obviamente os dois possuíam métodos <strong>de</strong> atuação<br />

diferentes). A acreditar no testemunho <strong>de</strong> Platão, Górgias ensinava a arte do discurso sem<br />

nenhuma preocupação com qualquer ensino moral ou edificante, apenas transmitia os recursos<br />

necessários ao bom <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> técnica oratória. É interessante ressaltar que, mesmo<br />

se fosse ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, isso não necessariamente qualifica-o como um indivíduo imoral ou seu<br />

ensino como pernicioso.<br />

Ao ser perguntado por Sócrates sobre o que é aretē, Ménon dirá que há muitas aretaí,<br />

<strong>de</strong> forma que não é difícil <strong>da</strong>r uma <strong>de</strong>finição: ela se apresenta conforme a i<strong>da</strong><strong>de</strong>, ocupação e<br />

ofício <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um (Ménon, 71e-72a). Assumindo este entendimento como influenciado por<br />

Górgias, constata-se que, mesmo em oposição acerca do objeto do ensino, sua visão e a <strong>de</strong><br />

Protágoras são ambas práticas, relativas, aplicáveis a contextos reais e específicos 16 .<br />

Observando o uso que Górgias faz <strong>da</strong> palavra aretē em seus escritos, Segal (1962, p. 103)<br />

conclui que: “Gorgias’ usage of arete simply follows the common practice of the fifth century<br />

before the re<strong>de</strong>finition of the word by Plato”. Górgias criticou o uso referencial ou<br />

‘i<strong>de</strong>acional’ <strong>da</strong>s palavras, isso po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>preendido do seu Tratado do Não-Ser: nós não<br />

comunicamos coisas que existem, mas apenas o logos, que é diferente <strong>de</strong>stas coisas (Sext.,<br />

Adv. Math. 7.84).<br />

Gorgias is aware of the peculiar nature of the communicatory medium qua medium.<br />

Communication itself, therefore, is a special area of human activity, an invention of<br />

society based upon prearranged conventions, and must inevitably involve distortions and<br />

rearrangements of the message. There is no such thing as a purely objective transmission<br />

of reality. […] Gorgias has discovered ‘the autonomy of speeech’; for him ‘speech is not<br />

a reflection of things, not a mere tool or slave of <strong>de</strong>scription, but… it is its own master’.<br />

The logos is thus as free from the exigencies of mimetic adherence to physical reality […]<br />

as from an instrumental function in a philosophical schematization of a metaphysical<br />

reality (SEGAL, 1962, p. 109-110).<br />

16 Dupréel (1980, p. 82) consi<strong>de</strong>rou que, enquanto Protágoras enten<strong>de</strong>u a virtu<strong>de</strong> como consistindo na<br />

observação <strong>de</strong> regras formais, convenciona<strong>da</strong>s pela socie<strong>da</strong><strong>de</strong> e explica<strong>da</strong>s pelos mestres, Górgias <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u<br />

uma moral <strong>de</strong> ocasião , segundo a qual a excelência e superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> consistia em perceber o que era oportuno em<br />

ca<strong>da</strong> ocasião e o que não era, a aretē seria um talento que encontra uma ocasião <strong>de</strong> exercer-se. Segal (1962,<br />

p. 103) afirma que: “Like his colleagues, Protagoras, Prodicus, and Hippias, Gorgias seems simply to have<br />

accepted the institutions of society as the necessary framework in which the civilized man can live and work.”<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

249


Provavelmente, Górgias evitou participar <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate cujos argumentos fossem<br />

‘cartas marca<strong>da</strong>s’. De um lado, Protágoras, cuja visão implicava a consi<strong>de</strong>ração do papel<br />

social do orador e <strong>de</strong> suas responsabili<strong>da</strong><strong>de</strong>s enquanto educador; <strong>de</strong> outro, Platão, preocupado<br />

em encontrar uma <strong>de</strong>finição única e inflexível <strong>da</strong>s palavras que refletisse a razão sempre sábia<br />

e justa <strong>de</strong> um mundo <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> casuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O diálogo entre Protágoras e Górgias, ain<strong>da</strong><br />

assim, é possível, pois os dois fazem uso <strong>de</strong> uma linguagem comum: um acredita no ensino <strong>da</strong><br />

aretē e posiciona-se como um professor <strong>de</strong>la; o outro consi<strong>de</strong>ra risível tal pretensão e afirma<br />

ser, apenas, professor <strong>de</strong> retórica. Entre os sofistas e Platão não há acordo, divergem no uso e<br />

no entendimento do conceito <strong>de</strong> aretē e no uso e entendimento <strong>da</strong> linguagem. Seus métodos e<br />

objetivos são diferentes, por trás <strong>de</strong> suas colocações estão pontos <strong>de</strong> vista essencialmente<br />

conflitantes. Tanto que Platão, além <strong>de</strong> atacar as idéias sofísticas, achou necessário<br />

<strong>de</strong>sacreditar, também, os homens que as partilhavam.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

DUPRÉEL, E. Les Sophistes. Protágoras, Górgias, Prodicus, Hippias. Neuchâtel: Éditions<br />

du Griffon, 1980.<br />

GROTE, G. A. A History of Greece. London: Dent, 1907. vol. 8<br />

GUTHRIE, W. K. C. Os Sofistas. São Paulo: Paulus, 1995.<br />

JONES, P. V. (Org.) O mundo <strong>de</strong> Atenas. Uma introdução à cultura clássica ateniense.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 1997.<br />

KERFERD, G. B. O movimento sofista. São Paulo: Loyola, 1990.<br />

LESKY, A. História <strong>da</strong> Literatura Grega. Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1995.<br />

PLATÃO. Diálogos. Tradução <strong>de</strong> Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora <strong>da</strong> UFPA, 1980.<br />

SEGAL, C. P. Górgias and the Psychology of the Logos. In: Harvard Studies in Classical<br />

Philology, 1962. v. 66, p. 99-155.<br />

SOLANA DUESO, J. Protágoras <strong>de</strong> Ab<strong>de</strong>ra. Dissoi Logoi. Textos relativistas. Madri: Akal,<br />

1996.<br />

SOUSA, A. A. A. <strong>de</strong>; PINTO, M. J. V. Sofistas. Testemunhos e Fragmentos. Lisboa:<br />

Imprensa Nacional – Casa <strong>da</strong> Moe<strong>da</strong>, 2005.<br />

VERVAECKE, G. Logo<strong>da</strong>i/<strong>da</strong>loi. La critique du langage <strong>da</strong>ns la Gréce Classique. In:<br />

SWIGGERS, P.; WOUTERS, A. (Dir.) Le Langage <strong>da</strong>ns l’Antiquité. Paris: Leuven<br />

University Press, 1990.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 241-250, 2008<br />

250


Consi<strong>de</strong>rações iniciais<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

De Hesíodo a Esopo: a permanência do mito<br />

Eliane QUINELATO<br />

PG – FCLAR – UNESP<br />

eliane.quinelato@itelefonica.com.br<br />

Indubitavelmente, os mitos estão disseminados em gran<strong>de</strong> parte <strong>da</strong> literatura que os<br />

gregos nos legaram, tais como nas epopéias, tragédias, romances e poemas. Da mesma<br />

maneira, é lícito afirmar que gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sses mitos aparece discursivizado <strong>de</strong> forma<br />

bastante diversifica<strong>da</strong> até mesmo <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> própria literatura grega, variando <strong>de</strong> acordo com<br />

os i<strong>de</strong>ais i<strong>de</strong>ológicos ou estéticos dos gêneros em que estão inseridos, e <strong>da</strong> época a que<br />

pertencem.<br />

A título <strong>de</strong> exemplo, po<strong>de</strong>mos citar a duali<strong>da</strong><strong>de</strong> que permeia o tema do trabalho na<br />

poesia didática <strong>de</strong> Hesíodo. O poema intitulado “Os trabalhos e dos dias” explica, num<br />

primeiro momento, o funcionamento <strong>da</strong>s leis naturais do mundo humano, que envolve, além<br />

<strong>de</strong> outras exigências, sacrifícios aos <strong>de</strong>uses e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho para que o homem<br />

possa sobreviver. O tema do trabalho perpassa todo o poema e apresenta uma duali<strong>da</strong><strong>de</strong>: ao<br />

mesmo tempo que Hesíodo o enaltece e aconselha os homens a trabalharem e praticarem uma<br />

vi<strong>da</strong> justa, que agra<strong>de</strong> aos <strong>de</strong>uses; o poeta evi<strong>de</strong>ncia, no mito “Prometeu e Pandora”, que o<br />

trabalho é um “mal”, criado por Zeus para vingar-se <strong>de</strong> Prometeu, quando este lhe roubou o<br />

fogo e o <strong>de</strong>u aos homens.<br />

Da mesma forma, a maioria dos estudos especializados sobre a cultura grega registra<br />

que o trabalho era visto com <strong>de</strong>sdém pelos gregos. A justificativa para tal asserção é que ele<br />

impossibilitava que os trabalhadores exercessem ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s políticas porque não restava ao<br />

homem o tempo livre necessário para exercer sua ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia. Diz-se que o <strong>de</strong>sprezo pelo<br />

trabalho, sobretudo pelo trabalho manual, era oriundo <strong>da</strong> nobreza aristocrática que<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhava <strong>da</strong> classe trabalhadora por julgar o trabalho intelectual superior e digno <strong>de</strong> um<br />

ci<strong>da</strong>dão.<br />

A partir <strong>de</strong> tais constatações, nos propusemos a investigar <strong>de</strong> que forma o tema do<br />

trabalho, assunto norteador do poema <strong>de</strong> Hesíodo, aparece figurativizado em um conjunto <strong>de</strong><br />

fábulas 1 gregas atribuí<strong>da</strong>s ao fabulista Esopo. Nas fábulas, chama a atenção o fato <strong>de</strong> a<br />

maioria <strong>da</strong>s personagens atribuírem valores disfóricos ao trabalho que realizam por diversos<br />

motivos: muitas <strong>de</strong>las são explora<strong>da</strong>s por um opressor que as faz trabalhar incessantemente,<br />

1 O corpus separado para análise é composto por 19 textos. Aqui, reproduziremos apenas dois.


sem direito a qualquer tipo <strong>de</strong> lazer; outras não recebem o alimento, que sempre aparece<br />

figurativizado como recompensa pelo trabalho; há ain<strong>da</strong> aquelas que rivalizam com outras<br />

personagens por <strong>de</strong>squalificar a profissão do outro e atribuir quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s apenas às suas<br />

ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, julgando-se os únicos merecedores <strong>da</strong> recompensa. De qualquer forma, esses<br />

atores nunca estão satisfeitos com o trabalho que executam e tentam libertar-se <strong>de</strong>le <strong>de</strong><br />

alguma forma, ain<strong>da</strong> que suas atitu<strong>de</strong>s resultem em malogro.<br />

Devido à brevi<strong>da</strong><strong>de</strong> do artigo, exporemos apenas alguns excertos do poema hesiódico<br />

em que fica evi<strong>de</strong>nte a duali<strong>da</strong><strong>de</strong> acerca do tema e faremos análise 2 comparativa entre duas<br />

fábulas esópicas que tematizam o trabalho, procurando precisar os traços mais significativos<br />

do mito que permanecem na composição discursiva <strong>da</strong>s fábulas.<br />

O mito do trabalho em Hesíodo<br />

Na literatura, talvez o poeta Hesíodo seja o maior representante <strong>da</strong> classe trabalhadora,<br />

uma vez que ele <strong>de</strong>monstra ter gran<strong>de</strong> conhecimento sobre o trabalho agrícola tanto nos<br />

conselhos que dá ao seu irmão Perses, quanto nos que dirige aos camponeses <strong>de</strong> sua época.<br />

De acordo com as informações <strong>de</strong> Aubreton (1956, p. 79-84), o poeta Hesíodo viveu,<br />

provavelmente, entre os séculos VIII e VII a.C., e consagrou-se, ao lado <strong>de</strong> <strong>Home</strong>ro, como um<br />

dos maiores poetas <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> grega. De sua genealogia o que se sabe é que Hesíodo era<br />

filho <strong>de</strong> um camponês que veio <strong>da</strong> Eólia e fixou-se em Ascra, ao sul do Hélicon, por conta <strong>de</strong><br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s financeiras. Essa era uma região estéril, <strong>de</strong> clima ru<strong>de</strong>, com poucas terras aráveis<br />

e <strong>de</strong> difícil cultivo, o que contribuía para a vi<strong>da</strong> pobre dos camponeses que trabalhavam<br />

arduamente para conseguir o sustento.<br />

Assim, o trabalho passa a ser o principio norteador <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> que abandona as<br />

riquezas adquiri<strong>da</strong>s por meio <strong>de</strong> espólios <strong>de</strong> guerra e passa a valorizar a riqueza oriun<strong>da</strong> do<br />

esforço humano e do trabalho disciplinado.<br />

É nesse contexto que se insere o poema <strong>de</strong> Hesíodo. Quando visto pelo aspecto<br />

positivo, o poeta incentiva a prática do trabalho, como se po<strong>de</strong> notar no poema O trabalho,<br />

em que ele diz:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

Trabalha (ejrgavzeu), ó Perses, divina progênie, para que a fome<br />

te <strong>de</strong>teste e te queira a bem coroa<strong>da</strong> e veneran<strong>da</strong><br />

Deméter, enchendo-te <strong>de</strong> alimentos o celeiro;<br />

2 A análise <strong>da</strong>s fábulas será feita à luz <strong>da</strong> teoria semiótica greimasiana.<br />

252


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

pois a fome é sempre do ocioso (ajergw~/~ )companheira;<br />

<strong>de</strong>uses e homens se irritam com quem ocioso (ajergoVς)<br />

vive; na índole se parece aos zangões sem <strong>da</strong>rdo,<br />

que o esforço <strong>da</strong>s abelhas, ociosamente <strong>de</strong>stroem,<br />

comendo-o; que te seja caro pru<strong>de</strong>ntes obras or<strong>de</strong>nar,<br />

para que teus celeiros se encham do sustento sazonal.<br />

Por trabalhos (e!rgwn) os homens são ricos em rebanhos e recursos<br />

e, trabalhando (e!rgazovmenoi), muito mais caros serão aos imortais.<br />

o trabalho (e!rgon), <strong>de</strong>sonra nenhuma, o ócio (ajergivh) <strong>de</strong>sonra é!<br />

(HESÍODO, 1990, vs. 299-311)<br />

Vemos, por meio <strong>de</strong>ssa citação, que Hesíodo atribui um valor eufórico para o trabalho,<br />

que aparece sempre grafado, em grego, pelo verbo e!rgavzomai. Como Hesíodo narra a vi<strong>da</strong><br />

camponesa <strong>da</strong> Grécia acaica, anterior ao regime <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s 3 , seu vocabulário não po<strong>de</strong>ria ser<br />

diferente <strong>da</strong>quele ligado à agricultura e, embora os gregos não tenham um temo específico<br />

para “trabalho”, o substantivo e!rgon e o verbo e!rgavzomai aparecem, normalmente,<br />

aplicados à ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> agrícola, aos trabalhos ligados ao campo.<br />

O poeta faz analogia do trabalho com um valor muito caro à socie<strong>da</strong><strong>de</strong> grega: o<br />

conceito <strong>de</strong> areté, palavra comumente traduzi<strong>da</strong> por “excelência”, “mérito”, “virtu<strong>de</strong>”. Ele<br />

nos diz, nos versos 289-295, que o caminho para a miséria é plano e muito fácil <strong>de</strong> alcançar,<br />

enquanto adquirir riquezas é muito difícil porque “diante <strong>da</strong> excelência (ajrethv), suor<br />

puseram os <strong>de</strong>uses imortais, e longa e íngreme é a via até ela”. Para Vernant (1989) o verbo<br />

e!rgavzomai refere-se a um tipo <strong>de</strong> trabalho que origina um produto <strong>da</strong> própria virtu<strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>quele que trabalha, <strong>de</strong> sua ajrethv.<br />

Já em termos míticos, como o poeta nos conta no mito <strong>de</strong> “Prometeu e Pandora”<br />

inserido na mesma obra, a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho advém <strong>da</strong> vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Zeus, imposto aos<br />

homens como um castigo. Ele origina-se <strong>da</strong> punição que o pai dos <strong>de</strong>uses dá aos homens por<br />

conta <strong>da</strong> astúcia <strong>de</strong> Prometeu:<br />

Antes vivia sobre a terra a grei dos humanos<br />

a recato dos males, dos difíceis trabalhos (calepo~io povnoio),<br />

<strong>da</strong>s terríveis doenças que ao homem põe fim;<br />

mas a mulher, a gran<strong>de</strong> tampa do jarro alçando,<br />

dispersou-os e para os homens tramou tristes pesares.<br />

(HESIODO, 1990, VS. 90-95)<br />

3 De acordo com vários historiadores, o regime <strong>da</strong>s ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s-estado na época <strong>de</strong> Hesíodo já existia, mas não estava<br />

completamente consoli<strong>da</strong>do. O momento histórico vivido por Hesíodo po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado um período <strong>de</strong><br />

transição entre uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> pauta<strong>da</strong> basicamente no coletivo (homérica) e uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> pauta<strong>da</strong> na<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> priva<strong>da</strong>.<br />

253


Diz o mito que, antes <strong>de</strong> Zeus entrar em <strong>de</strong>savenças com o Titã, ele permitia que os<br />

homens ficassem no ócio, longe dos males, <strong>da</strong>s doenças e dos difíceis trabalhos (calepo~io<br />

povnoio). Entretanto, surgiu a primeira discórdia quando Prometeu, ao repartir um boi em<br />

dois montes, separou, em uma <strong>da</strong>s partes, carne e gor<strong>da</strong>s vísceras com banha, cobrindo-o com<br />

o couro do boi; na outra, maldosamente, colocou ossos <strong>de</strong>scarnados e recobriu com gordura<br />

brilhante. O Titã, astuto que era, pediu para que Zeus escolhesse uma <strong>da</strong>s partes e jurou ter<br />

feito uma divisão muito honesta. Zeus, embora soubesse do ardil, escolheu o monte sedutor<br />

<strong>de</strong> gorduras e viu somente ossos <strong>de</strong>scarnados. Muito colérico, Zeus guar<strong>da</strong> rancor e, como<br />

castigo, oculta o fogo dos homens. Por sua vez, os homens <strong>de</strong>veriam fazer sacrifícios aos<br />

<strong>de</strong>uses para obter o fogo e, ain<strong>da</strong> assim, eles lhes <strong>da</strong>vam em pequenas porções. Mas Prometeu<br />

quis enganar os <strong>de</strong>uses e <strong>da</strong>r mais aos homens do que Zeus achava merecedor. Mais uma vez<br />

Prometeu usa <strong>de</strong> artimanhas, rouba o fogo e dá aos mortais. O pai dos <strong>de</strong>uses fica ain<strong>da</strong> mais<br />

furioso e castiga o Titã <strong>de</strong> duas formas: acorrenta-o ao alto <strong>de</strong> uma montanha <strong>de</strong> modo que<br />

uma ave coma-lhe o fígado e ain<strong>da</strong> fabrica Pandora, a primeira mulher envia<strong>da</strong> ao irmão <strong>de</strong><br />

Prometeu, Epimeteu acompanha<strong>da</strong> <strong>de</strong> um jarro repleto <strong>de</strong> males que se espalhariam pelo<br />

mundo dos humanos assim que a Curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> visitasse a moça e ela <strong>de</strong>stampasse o jarro.<br />

A partir do momento em que Pandora abre a tampa do jarro e espalha esses males, o<br />

homem estaria fa<strong>da</strong>do ao trabalho duro e penoso (povnoς), que lhe traria muitas doenças e<br />

fadigas.<br />

Nota-se que, aqui, o trabalho adquire uma conotação negativa, disfórica, confirma<strong>da</strong><br />

pelo próprio vocábulo grego “pónos”, que, segundo Vernant (1989, p.32) “aparece como<br />

submissão a uma or<strong>de</strong>m alheia à natureza humana, como pura obrigação e servidão”.<br />

O trabalho nas fábulas esópicas<br />

Ao examinarmos um conjunto <strong>de</strong> fábulas atribuí<strong>da</strong>s ao fabulista Esopo, que teria<br />

vivido no século VI a.C., dois séculos após Hesíodo, notamos que o tema do trabalho<br />

permanece retratado com mesma duali<strong>da</strong><strong>de</strong> que foi <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> através dos poemas<br />

hesiódicos: ora ele tem um aspecto positivo, ora adquire caráter negativo.<br />

Reproduziremos aqui, duas fábulas, observe a primeira:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

O lavrador e seus filhos<br />

Certo lavrador (gewrgovς), estando prestes a terminar sua vi<strong>da</strong> e querendo<br />

que os seus filhos adquirissem experiência na agricultura (gewrgivaς),<br />

mandou chamá-los e disse-lhes: “Meus filhos, eu estou <strong>de</strong>ixando esta vi<strong>da</strong>,<br />

254


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

porém vós procurareis aquilo que eu escondi na minha vinha, e achareis<br />

tudo”. Então os filhos, imaginando que o pai tinha enterrado um tesouro em<br />

algum lugar, reviraram (katevskayan) todo o solo <strong>da</strong> vinha <strong>de</strong>pois <strong>da</strong><br />

morte <strong>de</strong>le. Ora, <strong>de</strong> tesouro na<strong>da</strong> <strong>de</strong>scobriram, porém a vinha,<br />

minuciosamente revolvi<strong>da</strong>, teve a sua produção multiplica<strong>da</strong>.<br />

Esta fábula mostra que, para os homens, o trabalho (kavmatoς) é um<br />

tesouro.<br />

(ESOPO, apud. SOUSA, 1999, p. 187, acréscimo nosso)<br />

A figura central <strong>da</strong> narrativa é o ator “lavrador” - gewrgovς, em grego – responsável<br />

pela transmissão dos valores positivos em relação ao trabalho, tema que é figurativizado pela<br />

gewrgiva, palavra grega que significa “agricultura”.<br />

A temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> nas fábulas que tratam sobretudo <strong>da</strong> agricultura aparece nesta<br />

narrativa com uma singulari<strong>da</strong><strong>de</strong> que não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> notar: ela <strong>de</strong>marca a morte, a<br />

<strong>de</strong>scontinui<strong>da</strong><strong>de</strong>, a ruptura. Se o lavrador estava prestes a morrer, subenten<strong>de</strong>-se que ele era<br />

um gevrwn, um ancião, <strong>de</strong>tentor do saber e <strong>da</strong> experiência, tanto na li<strong>da</strong> com a terra quanto<br />

em relação aos seus pai~<strong>de</strong>ς (filhos). Além disso, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong>s ações <strong>da</strong>s<br />

personagens mostra que a temporali<strong>da</strong><strong>de</strong> marca, também, diferença <strong>de</strong> valores entre pai e<br />

filhos. Estes valorizam a facili<strong>da</strong><strong>de</strong>, o caminho suave em busca <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al, enquanto aquele<br />

preserva valores relacionados à conquista <strong>de</strong> seus i<strong>de</strong>ais. Essa observação po<strong>de</strong> ser<br />

comprova<strong>da</strong> através do próprio discurso <strong>da</strong> fábula no momento em que o pai, por meio <strong>de</strong><br />

uma <strong>de</strong>breagem enunciativa, assume a postura <strong>de</strong> um profeta, que profere um enigma para<br />

que os filhos encontrem a solução através <strong>de</strong> suas próprias ações. Ele diz para os filhos<br />

procurarem o que ele escon<strong>de</strong>u em sua vinha, pois acharão tudo.<br />

A palavra grega pavnta, que em língua portuguesa traduz-se pelo pronome<br />

in<strong>de</strong>finido “tudo” assume dois sememas diferentes para os atores “pai e filhos”. Po<strong>de</strong>mos<br />

dizer que este termo é um conector <strong>de</strong> isotopia figurativa que assume um aspecto dual <strong>de</strong>ntro<br />

do próprio texto, na concepção <strong>de</strong> atores distintos. Para o lavrador, esse “tudo” é a terra, a<br />

agricultura que traz riquezas e benefícios ao ser humano, e é essa a experiência que ele têm e<br />

quer transmitir; já os filhos interpretam esse “pavnta” como um tesouro, provavelmente<br />

dinheiro ou pedras preciosas, que estariam escondidos na vinha.<br />

A experiência e sapiência do pai fazem com que seu discurso argumentativo atinja o<br />

resultado esperado, pois, ao ocultar dos filhos o que seria o qhsaurovς, consegue fazer com<br />

que eles revolvam a vinha. O pai parece ter consciência <strong>de</strong> que os valores dos filhos não são<br />

os mesmos que os seus, mas consegue transmitir seu ensinamento quando manipula os filhos<br />

a realizarem a ação <strong>de</strong> revolver a vinha.<br />

255


Essa ação, além <strong>de</strong> garantir a continui<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho que havia sido interrompido<br />

pelo pai, também não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser vista como um trabalho, já que aparece expressa pelo<br />

verbo grego kataskavptw, que significa “escavar”, “retirar algo <strong>da</strong> terra”. A partir <strong>de</strong>sta<br />

atitu<strong>de</strong> inconsciente pratica<strong>da</strong> pelos filhos houve uma reação <strong>da</strong> terra, que produziu a<br />

multiplicação dos alimentos. A morali<strong>da</strong><strong>de</strong> reafirma os preceitos do discurso narrativo quando<br />

associa, <strong>de</strong> maneira eufórica, o trabalho ao tesouro. A palavra trabalho é espressa pelo<br />

substantivo grego kavmatoς, que <strong>de</strong>nota um trabalho penoso, resultado ou fruto do esforço,<br />

labuta, fadiga.<br />

Tais conceitos, ain<strong>da</strong> que aplicados ao trabalho visto positivamente, mostram que<br />

mesmo um trabalho tão valorizado como a agricultura, não é realizado sem sacrifícios. Essa<br />

valorização não significa, e nem a configuração discursiva mostra isso, que o trabalho seja<br />

fácil. Ao contrário, as figuras <strong>de</strong>notam esforço e ação, pois a terra precisou ser revolvi<strong>da</strong> para<br />

<strong>da</strong>r produção. Assim, à figura do trabalho estão liga<strong>da</strong>s as do esforço e do sofrimento.<br />

A segun<strong>da</strong> fábula mostra o trabalho em seu aspecto negativo. Observe:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

A mulher e suas cria<strong>da</strong>s<br />

Uma viúva trabalha<strong>de</strong>ira (fivlergoς) tinha cria<strong>da</strong>s (qerapainiv<strong>da</strong>ς) muito<br />

jovens, que ela costumava <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>, com o canto do galo,<br />

para os trabalhos domésticos (taV e!rga). Então as cria<strong>da</strong>s,<br />

permanentemente extenua<strong>da</strong>s pelo trabalho (e!rgwsan), acharam ser<br />

necessário matar o galo <strong>da</strong> casa, pois acreditavam ser ele a causa dos seus<br />

males, ao <strong>de</strong>spertar a patroa durante a noite. Ora ocorreu que, após terem<br />

elas executado esse seu intento, a situação tornou-se ain<strong>da</strong> mais penosa para<br />

elas: é que a patroa (<strong>de</strong>vspoina), <strong>de</strong>sconhecendo a hora dos galos, as fazia<br />

levantarem-se ain<strong>da</strong> mais cedo para trabalhar (toV e!rgon).<br />

Da mesma forma, para muitas pessoas, as suas próprias resoluções tornamse<br />

a causa <strong>de</strong> seus infortúnios (ESOPO apud SOUSA, 1999, p. 257,<br />

acréscimo nosso).<br />

Nesta fábula temos um sujeito figurativizado pelo ator “viúva” que se encontra em<br />

conjunção absoluta com o objeto-valor “trabalho”. Esse sujeito vê o trabalho como eufórico,<br />

pois aparece caracterizado, no texto grego, pelo adjetivo fivlergoς, que quer dizer “amante<br />

do trabalho”. Embora o ator “viúva” seja caracterizado como “trabalha<strong>de</strong>ira”, ela não exerce<br />

exatamente o papel <strong>de</strong> actante do fazer, mas <strong>de</strong> <strong>de</strong>stinador-manipulador dos actantes “cria<strong>da</strong>s<br />

muito jovens”. O termo grego usado para “cria<strong>da</strong>s” é a palavra qerapainivς, uma espécie <strong>de</strong><br />

serva, escrava muito jovem que trabalha em casa <strong>de</strong> família realizando serviços domésticos,<br />

bem caracterizados pelo termo taV e!rga.<br />

256


Para que a manipulação seja eficaz, a viúva conta com o auxílio do objeto-mo<strong>da</strong>l<br />

“galo” que também exerce a função predicativa do fazer: ao “cantar <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong>” ele<br />

<strong>de</strong>sperta as cria<strong>da</strong>s para os trabalhos domésticos. Por sua vez, as cria<strong>da</strong>s que realizam o fazer<br />

provavelmente por intimi<strong>da</strong>ção, cumprem o contrato estabelecido com o <strong>de</strong>stinadormanipulador,<br />

mas atribuem valores disfóricos para o trabalho, rejeitando os valores do<br />

<strong>de</strong>stinador. Essa rejeição alia<strong>da</strong> ao “cansaço”, implícito nos termos “permanentemente<br />

extenua<strong>da</strong>s pelo trabalho” nos faz pensar numa ação contínua que culmina na mo<strong>da</strong>lização<br />

dos actantes “cria<strong>da</strong>s” a querer livrar-se <strong>de</strong> suas árduas tarefas e realizarem uma ação<br />

<strong>de</strong>finitiva: aniquilar o sujeito “galo”, que se torna um anti-sujeito para as cria<strong>da</strong>s.<br />

Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a narrativa mostra um excesso <strong>de</strong> trabalho confirmado pelo advérbio<br />

sunecw~ς, que significa “permanentemente”, seguido do verbo grego kataponevw, que<br />

significa “estafar”, “humilhar”, “submeter a fadigas”, “esgotar”. A presença <strong>de</strong> tais temos<br />

reforçam o estado <strong>de</strong> insatisfação vivido pelos actantes e contribuem para sua posterior<br />

mo<strong>da</strong>lização e <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça.<br />

As “cria<strong>da</strong>s” crêem no parecer e, ao julgar que o “galo” era a causa <strong>de</strong> seus<br />

infortúnios, agem mo<strong>da</strong>liza<strong>da</strong>s por essa insatisfação. A atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> exterminar o “galo” <strong>de</strong>nota<br />

um esgotamento emocional dos sujeitos, que obviamente, está num grau bem elevado. Ao<br />

eliminar o oponente errado, são sanciona<strong>da</strong>s negativamente pelo <strong>de</strong>stinador-manipulador: a<br />

falta do galo faz com que sejam <strong>de</strong>sperta<strong>da</strong>s mais cedo para o trabalho.<br />

Notamos também que, subjacente ao revestimento figurativo que assinala sempre um<br />

ambiente <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> esforço e <strong>de</strong> fadiga, temos a negação <strong>de</strong> figuras relaciona<strong>da</strong>s ao<br />

prazer, como o dormir, que aparece negado neste texto. O acor<strong>da</strong>r <strong>de</strong> madruga<strong>da</strong> nega o<br />

“dormir”, figura relaciona<strong>da</strong> ao <strong>de</strong>scanso. Compreen<strong>de</strong>remos melhor esse aspecto não<br />

explorado pela narrativa se atentarmos para o fato <strong>de</strong> o enunciador salientar, no final <strong>da</strong><br />

narrativa, que após realizarem seu intento, “a situação tornou-se ain<strong>da</strong> mais penosa para elas:<br />

é que a patroa, <strong>de</strong>sconhecendo a hora dos galos, as fazia levantarem-se ain<strong>da</strong> mais cedo para<br />

trabalhar”. Os termos “tornar mais penoso” são marcados por um superlativo –<br />

calepwtevroiς – oriundo do adjetivo calepovς, que significa “difícil <strong>de</strong> suportar”,<br />

“penoso <strong>de</strong>mais”.<br />

Tais figuras reforçam que, se a situação inicial era ruim, a posterior, provoca<strong>da</strong> pela<br />

inconformi<strong>da</strong><strong>de</strong> do sujeito, torna-se pior e mais difícil <strong>de</strong> suportar.<br />

Consi<strong>de</strong>rações finais<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

257


Do exposto, fica evi<strong>de</strong>nte que as fábulas dialogam, quanto aos valores culturais, com<br />

os preceitos <strong>de</strong> Hesíodo. Nas fábulas analisa<strong>da</strong>s, observamos que o trabalho focado pelo lado<br />

positivo tem sempre o agricultor como guardião dos valores agrários, já que a personagem<br />

incentiva os filhos a trabalharem na lavoura e encontra uma forma ardilosa <strong>de</strong> persuadi-los.<br />

No segundo texto nota-se que há uma relação <strong>de</strong> opressão entre a patroa e as cria<strong>da</strong>s, em que<br />

estas, negam-se a trabalhar por conta <strong>de</strong> estarem extenua<strong>da</strong>s. Daí o caráter negativo que o<br />

trabalho assume.<br />

Entretanto, <strong>de</strong> modo geral, observamos que, nas fábulas, poucas são as personagens<br />

que têm consciência <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do trabalho para a sobrevivência, pois a maioria dos<br />

textos explicita uma visão disfórica sobre esse tema. O tipo <strong>de</strong> trabalho que aparece elogiado<br />

por algumas personagens é, sobretudo, o trabalho agrícola e as <strong>de</strong>mais ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s liga<strong>da</strong>s ao<br />

campo, mas essa visão não é compartilha<strong>da</strong> por todos os atores que compõem o mesmo<br />

espaço narrativo.<br />

Assim, conclui-se que ain<strong>da</strong> que os mitos gregos apareçam multifacetados em<br />

diferentes composições literárias, eles não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> cumprir sua função essencial, que é a <strong>de</strong><br />

contribuir para a permanência <strong>de</strong> traços <strong>da</strong> cultura grega que são essenciais para a<br />

compreensão <strong>de</strong> certos padrões <strong>de</strong> comportamento, crenças e costumes <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s<br />

épocas ou grupos sociais. No caso do trabalho, fica evi<strong>de</strong>nte que a rejeição <strong>da</strong>s personagens<br />

não está relacionado ao ato <strong>de</strong> trabalhar em si mesmo, mas relaciona-se às condições <strong>de</strong><br />

trabalho a que essas personagens estão submeti<strong>da</strong>s.<br />

Referências Bibliográficas<br />

AUBRETON, Robert. Introdução a Hesíodo. São Paulo: USP, 1956.<br />

BARROS, Diana L. P. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática, 2001.<br />

______ . Teoria do Discurso. São Paulo: Humanitas, 2001<br />

ESOPO. As fábulas <strong>de</strong> Esopo. Trad. Manuel Aveleza <strong>de</strong> Souza. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ática, 1999.<br />

HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução <strong>de</strong> Mary <strong>de</strong> C. N. Lafer. São Paulo:<br />

Iluminuras,1990.<br />

URBINA, José M. Pabón S. Diccionario Griego-Español. España: Cremagrafic, AS, 1998.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

258


VERNANT, Jean-Pierre & NAQUET, Pierre-Vi<strong>da</strong>l. Trabalho e escravidão na Grécia<br />

antiga. Campinas: Papirus, 1989.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 251-259, 2008<br />

259


A permanência <strong>da</strong> Gramática Latina na Gramática Científica Brasileira<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 260-266, 2008<br />

Profª Drª Maria Berna<strong>de</strong>te ROCHA<br />

UFF<br />

Profª Maria Lúcia Cardoso<br />

UFF<br />

rochaberna<strong>de</strong>te@yahoo.com.br<br />

Manuel Pacheco <strong>da</strong> Silva Júnior foi eminente professor, lingüista, filólogo e<br />

pesquisador <strong>da</strong> língua portuguesa no Brasil do século XIX. Sua obra insere-se no período <strong>da</strong><br />

gramática científica. Chama-se gramática científica o conjunto <strong>de</strong> estudos e obras produzidos<br />

acerca <strong>da</strong> língua portuguesa usa<strong>da</strong> no país, <strong>de</strong> 1881 a 1941 (CAVALIERE, 2002, p. 111).<br />

Os estudos lingüísticos do final do século XIX e começo do século XX recebem esse<br />

nome por evi<strong>de</strong>nciar uma nova or<strong>de</strong>m científica, caracteriza<strong>da</strong> por um rigorismo na<br />

investigação e <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> fatos <strong>da</strong> língua. Tal or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>correu do primeiro contato mais<br />

efetivo <strong>de</strong> estudiosos brasileiros com um paradigma estrangeiro que rompia com a tradição e<br />

apresentava bases para uma análise do vernáculo e, sobretudo, para o ensino <strong>de</strong> português<br />

como língua materna. Houve, pois, uma mu<strong>da</strong>nça significativa <strong>de</strong> enfoque: ao mesmo tempo<br />

em que havia forte renovação nos estudos lingüísticos, havia clara preocupação com a<br />

aplicação dos avanços e teorias no ensino <strong>de</strong> língua vernácula <strong>de</strong> modo a cumprir a função <strong>de</strong><br />

preparar o aluno para bem empregá-la na vi<strong>da</strong> em socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em outras palavras, houve uma<br />

gran<strong>de</strong> mu<strong>da</strong>nça quanto à concepção teórica adota<strong>da</strong> até então na elaboração <strong>de</strong> gramáticas no<br />

Brasil. Abandonou-se a chama<strong>da</strong> escola clássica tradicional e passou-se a observar a língua<br />

vernácula como um fenômeno natural, e, por isso mesmo, sujeita às análises <strong>de</strong> cunho<br />

histórico - comparativista como o era feito na Europa.<br />

Embora alicerçados no experimentalismo e caráter científico, os estudos gramaticais<br />

no Brasil não per<strong>de</strong>ram <strong>de</strong> todo a preocupação com o ensino. Ao mesmo tempo em que se<br />

instala aqui a linha científica dos estudos comparativistas, há também uma preocupação dos<br />

brasileiros em <strong>de</strong>screver a língua vernácula; junto aos novos rumos <strong>da</strong> Filologia há também<br />

interesse no ensino <strong>da</strong> tradição gramatical e no ensino <strong>de</strong> uma norma, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> útil à vi<strong>da</strong><br />

em coletivi<strong>da</strong><strong>de</strong>: a gramática assume a dupla função feição <strong>de</strong> ciência e arte. Como ciência,<br />

estaria sujeita à <strong>de</strong>terminação <strong>da</strong>s leis naturais que regem a sua evolução histórica; como arte,<br />

estaria liga<strong>da</strong> ao registro <strong>de</strong> uma tradição lingüística, a qual <strong>de</strong>ve ser preserva<strong>da</strong>. Tradição<br />

gramatical estava liga<strong>da</strong> à tradição latina e, conseqüentemente, à tradição gramatical grega.


Justifica-se, assim, a escolha do tema <strong>da</strong> presente comunicação cujo objeto <strong>de</strong> trabalho é<br />

registrar a permanência <strong>de</strong> conceitos <strong>da</strong> gramática latina na gramática científica <strong>de</strong> Manuel<br />

Pacheco <strong>da</strong> Silva Júnior, no final dos novecentos no Brasil. Como representante dos estudos<br />

<strong>de</strong> gramática latina, escolheu-se Varrão, em sua obra De lingua latina.<br />

Varrão era consi<strong>de</strong>rado pelos antigos como a maior autori<strong>da</strong><strong>de</strong> no domínio gramatical.<br />

Essa é uma afirmação <strong>de</strong> Jean Collart, estudioso do gramático latino, formula<strong>da</strong> com base na<br />

quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> citações constantes <strong>da</strong>s obras dos gramáticos e compiladores contemporâneos<br />

ou sucessores <strong>de</strong> Varrão. Bastaria essa constatação para justificar o interesse por sua obra.<br />

Contudo, como se preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar por meio <strong>de</strong> alguns exemplos, encontram-se já, em<br />

suas teorias gramaticais, algumas idéias inovadoras para sua época e váli<strong>da</strong>s para o nosso<br />

entendimento atual.<br />

Segundo Quintiliano, Marcus Terentius Varro nasceu em Reate, território Sabino, <strong>de</strong><br />

uma família rica, em 116 a.C. Foi oficial <strong>de</strong> Pompeu na Espanha na época <strong>da</strong> Guerra Civil;<br />

era, portanto, adversário político <strong>de</strong> César. Mais tar<strong>de</strong>, reconciliou-se com o ditador e foi<br />

encarregado <strong>de</strong> organizar a primeira biblioteca pública <strong>de</strong> Roma que César planejara. Foi<br />

poeta, satirista, estudioso <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> e cientista. Seus abun<strong>da</strong>ntes escritos incluíam<br />

também trabalhos sobre educação e filosofia. Somente uma vasta erudição explica uma<br />

produção tão profícua. Pouco sobreviveu <strong>de</strong> to<strong>da</strong> essa obra, com exceção <strong>de</strong> De re rustica,<br />

fragmentos <strong>da</strong>s Satirae Menipeae e Rerum et diuinarum antiquitates.<br />

Conservaram-se, também, os Livros <strong>de</strong> V a X do De lingua Latina, um tratado sobre<br />

gramática latina que versava sobre fonética, morfologia, etimologia, lexicologia e alguns<br />

traços <strong>de</strong> sintaxe. Obra pioneira, reveladora <strong>de</strong> um espírito penetrante, foi composta em 47 ou<br />

45 a.C. e publica<strong>da</strong> antes <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> Cícero (43 a.C.). Sobre o conteúdo dos <strong>de</strong>mais livros<br />

(ao todo, eram vinte e cinco livros), encontram-se notícias fragmenta<strong>da</strong>s por meio dos<br />

gramáticos posteriores. Mas a obra gramatical <strong>de</strong> Varrão não se restringiu ao De lingua<br />

Latina. Ele escreveu diversos outros livros cujas doutrinas, fragmenta<strong>da</strong>s, chegaram-nos,<br />

também, por meio <strong>de</strong> seus comentadores.<br />

Até on<strong>de</strong> se sabe, antes <strong>de</strong>le, a Gramática não era uma ciência in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. Era um<br />

pouco o domínio <strong>de</strong> todos, uma ciência acessória cujas fronteiras não eram <strong>de</strong>limita<strong>da</strong>s. Diz<br />

Collart que o filósofo via na Gramática uma teoria sobre as origens <strong>da</strong> linguagem; o retor, um<br />

manual do estilo correto; o crítico, um auxiliar para os estudos dos textos; o compilador, um<br />

guia <strong>de</strong> lexicografia; o poeta, um arsenal <strong>de</strong> termos pitorescos; o homem do mundo, um<br />

divertimento <strong>de</strong> salão.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 260-266, 2008<br />

261


Lembra ain<strong>da</strong> Collart que, agravando esse cenário <strong>de</strong> dispersão dos estudos<br />

gramaticais, predominava o <strong>de</strong>bate sobre a linguagem que travavam alexandrinos e estóicos.<br />

Os primeiros, partidários <strong>da</strong> analogia, <strong>de</strong>fendiam a regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> dos fatos lingüísticos<br />

enquanto os segundos <strong>de</strong>fendiam a anomalia, ou seja, sustentavam que a linguagem não<br />

possuía regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> e estava domina<strong>da</strong> pela arbitrarie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Esse <strong>de</strong>bate remonta aos filósofos<br />

gregos.<br />

Varrão <strong>de</strong>dicou ao estudo do problema três dos livros que compõem De lingua Latina.<br />

Sensível às duas correntes, procurou observar os fatos lingüísticos e esforçou-se para conciliálas<br />

em uma síntese. Concluiu que ambas coexistem no mundo, uma vez que os princípios<br />

caminham por pares na natureza, segundo a doutrina pitagórica:<br />

Pitágoras <strong>de</strong> Samos <strong>de</strong>clara que todos os princípios primeiros caminham por<br />

pares na natureza, por exemplo, o finito e o infinito, o bem e o mal, a vi<strong>da</strong> e a morte, o<br />

dia e a noite. Por isso também encontram-se duas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s essenciais: a imobili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

e o movimento.<br />

Assim a aliança <strong>de</strong>stes princípios contrários po<strong>de</strong> explicar que a vonta<strong>de</strong> cria a<br />

anomalia e é no uso corrente que se observa geralmente a analogia (VARRÃO, LL V,<br />

11- 13, apud CERQUEIRA, 1975).<br />

Para Varrão, a analogia <strong>de</strong>signava a semelhança (similitudo) nos tipos <strong>de</strong> formação<br />

gramatical. Mais freqüente, é uma lei <strong>de</strong> experiência elementar. Por sua vez, a anomalia<br />

<strong>de</strong>signava a “exceção” gramatical.<br />

Seu pensamento sobre a morfologia, ain<strong>da</strong> preso à querela anomalia x analogia, po<strong>de</strong><br />

ser <strong>de</strong>preendido <strong>da</strong> divisão que estabeleceu entre as <strong>de</strong>clinações (<strong>de</strong>clinatio, para Varrão,<br />

correspon<strong>de</strong> à conjugação e à <strong>de</strong>rivação, ou seja, às modificações secundárias <strong>da</strong> forma<br />

primeira <strong>da</strong>s palavras). Ele entendia que as <strong>de</strong>clinações po<strong>de</strong>m ser naturais ou voluntárias.<br />

Voluntária é a forma <strong>de</strong> um <strong>de</strong>rivado inventado por um criador. Natural é a aplicação<br />

mecânica <strong>da</strong>s <strong>de</strong>sinências casuais. Assim, para o gramático latino, a flexão obe<strong>de</strong>ce tanto a<br />

paradigmas quanto é produto <strong>de</strong> uma criativi<strong>da</strong><strong>de</strong> abona<strong>da</strong> pelo uso.<br />

Na obra gramatical varroniana, percebe-se também o eco <strong>de</strong> uma outra discussão, que<br />

já preocupava os filósofos gregos: aquela a respeito <strong>da</strong> origem <strong>da</strong>s palavras. As opiniões<br />

dividiam-se em dois grupos: as que admitiam uma relação entre o signo e o objeto que ele<br />

<strong>de</strong>signa e as que <strong>de</strong>fendiam a origem convencional <strong>da</strong> linguagem. Embora admitisse que os<br />

signos pu<strong>de</strong>ssem ser voluntariamente impostos aos objetos, Varrão <strong>de</strong>fendia a relação natural<br />

entre o signo e o objeto significado. Esse princípio falso <strong>de</strong>fendido pelo gramático latino em<br />

muito comprometeu seus estudos sobre Etimologia. To<strong>da</strong>via, lembra Collart, antes <strong>de</strong>le as<br />

pesquisas etimológicas seguiam duas correntes: uma que explicava to<strong>da</strong>s as palavras latinas<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 260-266, 2008<br />

262


pelo latim e não concor<strong>da</strong>va em procurar noutro local sua origem e outra que tinha a<br />

tendência <strong>de</strong> relacionar a origem <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as palavras ao grego. Entre esses dois extremos,<br />

Varrão elabora sua teoria <strong>de</strong> empréstimos que, apesar <strong>de</strong> estar longe <strong>de</strong> ser precisa, trata <strong>de</strong><br />

maneira satisfatória os elementos estrangeiros.<br />

A professora Ana Lúcia Cerqueira, em sua tese sobre os primeiros gramáticos<br />

portugueses e a contribuição gramatical varroniana, <strong>de</strong>staca, entre outras contribuições, a<br />

distinção estabeleci<strong>da</strong> entre perfectum e infectum, como marca principal <strong>da</strong> originali<strong>da</strong><strong>de</strong> do<br />

pensamento <strong>de</strong> Varrão. Para ele, a distinção temporal não aten<strong>de</strong> ao “espírito do latim”,<br />

consi<strong>de</strong>rando fun<strong>da</strong>mental estabelecer que os tempos do infectum exprimem a ação inacaba<strong>da</strong>,<br />

apresenta<strong>da</strong> em seu <strong>de</strong>senvolvimento, enquanto os tempos do perfectum expressam a ação<br />

acaba<strong>da</strong>.<br />

Finalmente, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> registrar que De lingua Latina traz também<br />

informações preciosas tanto para o historiador (como o excerto sobre a topografia e a história<br />

primitivas <strong>de</strong> Roma), quanto para o pesquisador <strong>da</strong> história <strong>da</strong> língua e <strong>da</strong> literatura, com os<br />

fragmentos <strong>de</strong> textos arcaicos que apresenta.<br />

Como enfatiza Collart, os escritos gramaticais <strong>de</strong> Varrão não têm somente o atrativo<br />

<strong>de</strong> uma relíquia. Tendo em vista a ausência <strong>de</strong> textos gramaticais anteriores a ele, Varrão po<strong>de</strong><br />

ser consi<strong>de</strong>rado o primeiro marco <strong>da</strong> ciência gramatical em Roma e, praticamente, o criador<br />

<strong>de</strong> uma doutrina e <strong>de</strong> uma terminologia que vêem <strong>de</strong>monstrando longa influência sobre a<br />

tradição gramatical posterior.<br />

Po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r que Varrão, ao tratar <strong>da</strong> oposição analogia x anomalia na produção<br />

<strong>de</strong> elementos lingüísticos, <strong>de</strong> certa forma, já sinalizava para os conceitos contemporâneos <strong>de</strong><br />

norma e <strong>de</strong>svio.<br />

Segundo Dubois (1987, p. 52), o termo analogia <strong>de</strong>signava, para os gramáticos gregos,<br />

o caráter <strong>da</strong> regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> presente em uma língua. Nos estudos lingüísticos, a analogia serviu<br />

para justificar a regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s línguas e, por isso, foi toma<strong>da</strong> como base para análise <strong>de</strong><br />

mu<strong>da</strong>nças lingüísticas ou <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> formação gramatical.<br />

É nesse ponto - a presença do processo <strong>de</strong> analogia em análises e <strong>de</strong>scrições<br />

gramaticais - que se encontra um aspecto em comum com afirmações feitas por Silva Júnior<br />

no final do século XIX.<br />

Um claro exemplo <strong>da</strong> presença <strong>da</strong> analogia como explicação para fatores lingüísticos<br />

encontra-se no Capítulo I que trata <strong>da</strong>s transformações fonéticas a que estão sujeitas as<br />

palavras <strong>de</strong> uma língua:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 260-266, 2008<br />

263


Ca<strong>da</strong> uma d’ellas, porém, e bem assim os dialectos e subdialectos, têm suas leis<br />

particulares; e, como já advertimos, a pronuncia mu<strong>da</strong> <strong>de</strong> época para época (...). Ha<br />

excepções, <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s:<br />

Á analogia – cui<strong>da</strong>r, <strong>de</strong> cogitare, <strong>de</strong>u cui<strong>da</strong>ção, e cogitar – cogitação; (...)Não crêa,<br />

apenas <strong>de</strong>senvolve tendência já existente (1907, p.79 ).<br />

Silva Júnior afirma que, ao se utilizar do processo <strong>de</strong> analogia, não há propriamente<br />

uma criação na língua, mas sim uma espécie <strong>de</strong> extensão <strong>de</strong> algo já existente, o que se po<strong>de</strong>ria<br />

comparar à similitudo <strong>de</strong> Varrão.<br />

Outro ponto em que se po<strong>de</strong> encontrar uma possível sobrevivência <strong>da</strong> <strong>de</strong>scrição<br />

varroniana está no campo <strong>da</strong> morfologia. Na gramática científica do século XIX, o estudo <strong>da</strong>s<br />

classes <strong>da</strong>s palavras costumava constituir um capítulo intitulado taxionomia.<br />

Escolheu-se aqui, como exemplo, uma explicação extraí<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse capítulo, acerca <strong>da</strong><br />

classe dos verbos, mais especificamente sobre a formação do pretérito perfeito:<br />

Dizem os grammaticos que amei é contracção <strong>de</strong> amado hei, amaste <strong>de</strong> amado hás,<br />

etc. De feito, são estas as fórmas correspon<strong>de</strong>ntes, e sabemos que no latim o participio<br />

precedia o auxiliar; mas basta confrontar o paradigma portuguez com o latino para nos<br />

convencermos <strong>de</strong> que a nossa língua aceitou o typo latino, e que as <strong>de</strong>sviações que<br />

apresenta são <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s ás regulares modificações phonicas. [...] Nos verbos <strong>da</strong> primeira<br />

conjugação (a-vi), <strong>de</strong>u-se a que<strong>da</strong> do v em to<strong>da</strong>s as pessoas [...]. Os verbos <strong>da</strong> 2ª e 3ª<br />

conj. formaram o pretérito analogicamente, <strong>da</strong>ndo-se [...] (1907, p. 435).<br />

Mas é na obra Noções <strong>de</strong> Semântica (1903) <strong>de</strong> Silva Júnior que o processo <strong>de</strong> analogia<br />

ganha evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>staque. Dedica-lhe o professor Pacheco todo o primeiro capítulo <strong>de</strong>sse livro<br />

cuja importância está em ser a primeira publicação brasileira inteiramente <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> a estudos<br />

semânticos.<br />

Para ele, a analogia é o que gera a extensão <strong>de</strong> significados, como as associações,<br />

símiles e metáforas:<br />

Uma <strong>da</strong>s causas <strong>da</strong>s continuas mu<strong>da</strong>nças do sentido <strong>da</strong>s palavras é a lei do menor<br />

esforço. O povo tem necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> bem exprimir idéias novas, mas afim <strong>de</strong> evitar<br />

dispêndio intellectual e ao mesmo tempo <strong>de</strong>sejando apresenta-las anima<strong>da</strong>s o<br />

revesti<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cores variega<strong>da</strong>s, em vez <strong>de</strong> crear vocabulos novos, prefere - movido por<br />

essa tendência natural e espontânea – servir-se <strong>de</strong> termos já conhecidos, apenas<br />

mu<strong>da</strong>ndo ou renovando os seus sentidos. E assim, <strong>de</strong>nominaram toupeira a quem tem<br />

olhos pequenos e piscos, esten<strong>de</strong>ndo-se o sentido aos estúpidos e incompetentes em<br />

qualquer matéria [....].<br />

O povo proce<strong>de</strong> d’esta forma nessas transferencias sob a acção <strong>da</strong> analogia,<br />

afim <strong>de</strong> evitar qualquer dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão, <strong>de</strong> conseguir mais clareza, mais pôr<br />

em relevo uma opposição ou semelhança, e pelo respeito a tradição . [...] É muito<br />

conhecido o meio analógico, condição primordial <strong>da</strong> linguagem (1903, p. 20).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 260-266, 2008<br />

264


Preten<strong>de</strong>u-se mostrar, assim, como Manuel Pacheco <strong>da</strong> Silva Júnior, filólogo e<br />

gramático ocupou-se, já às portas do século XX, <strong>da</strong> analogia em um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição<br />

lingüística histórico-comparativo.<br />

Guimarães, em sua obra História <strong>da</strong> Semântica: sujeito, sentido e gramática no Brasil<br />

(2004, p. 63) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que<br />

A obra <strong>de</strong> Pacheco Silva vai do biológico ao histórico reconfigurando a própria forma<br />

<strong>de</strong> enunciar o conhecimento sobre a linguagem. É interessante ver como esta operação<br />

é, em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a colocação em prática, no próprio dizer científico, do princípio <strong>da</strong><br />

analogia, <strong>de</strong>sta mesma obra, como o que fun<strong>da</strong>menta o funcionamento <strong>da</strong> linguagem.<br />

Como se po<strong>de</strong> ver, a contribuição <strong>de</strong> Varrão ain<strong>da</strong> po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> inspiradora e<br />

relevante. Mais ain<strong>da</strong>: crê-se que <strong>de</strong>ve constituir leitura imprescindível a todos aqueles que se<br />

interessem por estudos lingüísticos.<br />

BIBLIOGRAFIA<br />

CAVALIERE, Ricardo. Uma proposta <strong>de</strong> periodização dos estudos lingüísticos.<br />

Confluência: RJ: Liceu Literário Português, nº 23, 2002.<br />

CERQUEIRA, Ana Lúcia Silveira. Os primeiros gramáticos portugueses e a contribuição<br />

gramatical varroniana. Dissertação <strong>de</strong> Mestrado apresenta<strong>da</strong> à Coor<strong>de</strong>nação dos<br />

Programas <strong>de</strong> Pós-Graduação do Instituto <strong>de</strong> Letras <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

Fluminense. 1975.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 260-266, 2008<br />

265


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Grammatica <strong>da</strong> lingua portugueza para uso nos gymnasios, lyceus e escolas<br />

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VARRON. De lingua latina, livre V. Texte établi, traduit e annoté par Jean Collart. Paris,<br />

Les Belles Lettres, 1954.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 260-266, 2008<br />

266


INTRODUÇÃO<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 267-273, 2008<br />

A Obstinação <strong>de</strong> Aquiles<br />

Rita ROCHA<br />

G (FAPESP) – FFLCH – USP<br />

ritarocha@usp.br<br />

Esta apresentação faz parte do trabalho <strong>de</strong> Iniciação Científica que preten<strong>de</strong>, através<br />

<strong>de</strong> um estudo do conceito <strong>de</strong> mh=nij, analisar se, no contexto <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, tal palavra po<strong>de</strong> ser<br />

verti<strong>da</strong> por “obstinação”.<br />

O estudo <strong>da</strong> mh=nij <strong>de</strong> Aquiles po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> utili<strong>da</strong><strong>de</strong> para o entendimento <strong>de</strong><br />

elementos capitais e po<strong>de</strong>, eventualmente, orientar novas vias <strong>de</strong> interpretação <strong>da</strong> leitura <strong>da</strong><br />

composição homérica.<br />

Algumas questões constituirão o cerne <strong>de</strong>ste trabalho, para investigação do<br />

comportamento <strong>de</strong> Aquiles: o que o faz ser persistente e irredutível no que concerne às suas<br />

idéias, o que faz com que não <strong>de</strong>sista <strong>de</strong> sua meta, afastando-se até <strong>da</strong> guerra – coisa que mais<br />

gosta e sabe fazer – e, <strong>de</strong>pois, o que faz com que ele volte e <strong>de</strong>strua todo e qualquer obstáculo<br />

para tirar a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele que matou seu fi&loj.<br />

a)skele&wj, mh=nij e fi&loj<br />

Durante o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> fase inicial <strong>da</strong> pesquisa, foi efetua<strong>da</strong> a análise <strong>de</strong> alguns<br />

termos do texto em grego. Entre eles está o advérbio a)skele&wj, traduzido por Haroldo <strong>de</strong><br />

Campos por “obstina<strong>da</strong>mente”, nos versos 67-8 do Canto XIX. Semanticamente, essa palavra<br />

significa “sem pernas”, mas é <strong>de</strong>fini<strong>da</strong>, nos dicionários Bailly (1901, p. 287) e Lid<strong>de</strong>ll-Scott<br />

(1996, p. 257), por “obstinado”. Chantraine diz que, junto a a!qumoj, significa “sem força” e<br />

que, no contexto do Canto XIX, junto a a9iei/, toma o sentido <strong>de</strong> “obstinado” (1968-1980, p.<br />

123).<br />

Também é necessário que se apresente uma tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir fi&loj e mh=nij, dois<br />

conceitos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>.<br />

Segundo David Konstan, em A amiza<strong>de</strong> no mundo Clássico, fi&loj é um substantivo<br />

utilizado para referência a pessoas que se associavam voluntariamente com base na afeição<br />

mútua. Mas na linguagem homérica, o termo não se aplica para uma referência específica a<br />

amigos (2005, p. 41). Citando Robinson, Konstan (2005, p. 43) afirma que o estudioso nota<br />

que fi/loj po<strong>de</strong> ter o sentido ativo <strong>de</strong> “amoroso” e o sentido passivo <strong>de</strong> “bem-amado”.


O dicionário francês <strong>de</strong> Bailly (1901, p. 2078-9) e o léxico inglês <strong>de</strong> Lid<strong>de</strong>ll-Scott<br />

(1996, p.1939) <strong>de</strong>finem o termo como “amigo, amado ou querido”. Assim como Konstan, os<br />

dicionários também mostram que essa <strong>de</strong>finição funciona melhor no caso <strong>da</strong> linguagem<br />

homérica.<br />

A palavra mh=nij é verti<strong>da</strong> pelos principais léxicos por “ira” ou “cólera durável”. O<br />

inglês Lid<strong>de</strong>ll-Scott <strong>de</strong>fine mh=nij como “cólera, ira dos <strong>de</strong>uses” (1996, p. 1128). O francês<br />

Bailly também atribui entra<strong>da</strong> pareci<strong>da</strong> para a palavra (1901, p. 1278). Mas é no Dicionário<br />

Etimológico <strong>da</strong> Língua Grega, <strong>de</strong> Pierre Chantraine (1968-1980, p. 540-1), que temos uma<br />

<strong>da</strong>s <strong>de</strong>finições mais interessantes para o aspecto que se preten<strong>de</strong> analisar no presente trabalho.<br />

O autor <strong>de</strong>fine a palavra como “cólera durável, justifica<strong>da</strong> por um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança<br />

legítima, atribuído aos <strong>de</strong>uses e aos heróis, particularmente a Aquiles na Ilía<strong>da</strong>” (1968-1980,<br />

p. 696).<br />

Outra abor<strong>da</strong>gem interessante é a <strong>de</strong> Calvert Watkins, em seu artigo sobre a mh=nij,<br />

publicado no Boletim <strong>da</strong> Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Lingüística <strong>de</strong> Paris, em 1972. Segundo ele, mh=nij “é<br />

uma palavra que carrega em si a noção sacra <strong>de</strong> uma cólera vingativa imanente” (1972, p.<br />

188). Na Ilía<strong>da</strong>, <strong>da</strong>s doze aparições do substantivo mh=nij, (1972, p. 189) quatro são<br />

relaciona<strong>da</strong>s a Aquiles, comprovando a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Chantraine. Watkins aponta, ain<strong>da</strong>, que<br />

em todo o corpus hexamétrico grego arcaico, tal palavra só aparece <strong>de</strong>zenove vezes ao todo<br />

(1972, p. 190).<br />

A CONTRAPARTE DE AQUILES<br />

Uma figura muito liga<strong>da</strong> a Aquiles, na Ilía<strong>da</strong>, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarado inimigo, é Apolo.<br />

Robert Rabel (1990) afirma que Apolo é o mo<strong>de</strong>lo <strong>da</strong> mh=nij <strong>de</strong> Aquiles. Segundo ele, a figura<br />

do herói é uma emulação do <strong>de</strong>us no Canto I, pois vários fatos que ocorrem no Canto I,<br />

principalmente a súplica e a ira, também são vistos, por exemplo, no Canto XIV.<br />

O autor aponta que ambos são inimigos implacáveis, referindo-se à cena <strong>da</strong> luta entre<br />

Aquiles e Heitor, on<strong>de</strong> Atena fica ao lado do grego e Apolo ao lado do troiano. Além disso,<br />

aponta que a ira <strong>de</strong> Aquiles é <strong>de</strong>riva<strong>da</strong> <strong>da</strong>quela <strong>de</strong> Apolo, pois uma é referi<strong>da</strong> após a outra,<br />

como vemos durante todo o Canto I. O início <strong>da</strong> mh=nij <strong>de</strong> Aquiles é justaposto à conclusão<br />

<strong>da</strong>quela do <strong>de</strong>us. Apolo e Aquiles exercitam o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> ira divina, dirigi<strong>da</strong> ao mesmo objeto<br />

(Agamêmnon), e pela mesma causa (o rapto <strong>de</strong> uma mulher).<br />

Joachim Latacz também aponta a intervenção <strong>de</strong> Apolo como algo que impele, interna<br />

e externamente, as causas que levam ao conflito com Aquiles (2001, p. 93). Como Crises,<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 267-273, 2008<br />

268


Aquiles vai an<strong>da</strong>r ao longo <strong>da</strong> praia e pedir a um <strong>de</strong>us vingança contra os aqueus. Nos dois<br />

casos, a pessoa responsável é Agamêmnon (2001, p. 93) e, também nos dois casos, são <strong>de</strong>uses<br />

que interferem por eles: Apolo ouve as preces <strong>de</strong> Crises e o aju<strong>da</strong>, como, mais tar<strong>de</strong>, Tétis<br />

ouve e aju<strong>da</strong> Aquiles.<br />

Segundo o autor, o que torna a idéia <strong>da</strong> mh=nij plausível é a idéia <strong>de</strong> Aquiles não ter<br />

reagido espontaneamente, reprimindo sua espa<strong>da</strong> e a ele mesmo. O insulto foi muito gran<strong>de</strong> e<br />

o insultado não po<strong>de</strong> perdoar-se a si mesmo por ter engolido tamanhas ofensas. O fato <strong>de</strong><br />

Aquiles não matar Agamêmnon é só por obediência a uma força divina: Atena (2001, p. 99-<br />

100). A conseqüência é terrível, pois a mh=nij <strong>de</strong> Aquiles contra Agamêmnon atinge um ponto<br />

maior: a guerra (2001, p. 102).<br />

Aquiles não é só fisicamente maior que o rei; ele compreen<strong>de</strong>, enquanto Agamêmnon<br />

somente pensa em seus próprios interesses. Por outro lado, Aquiles não po<strong>de</strong>ria matar<br />

Agamêmnon. Se o fizesse, apesar <strong>de</strong> ter obtido sua vingança mais rapi<strong>da</strong>mente, ele não teria<br />

satisfação. Agamêmnon <strong>de</strong>ve perceber que está errado e que Aquiles é indispensável para a<br />

expedição (LATACZ , 2001, p. 103). Mas, para que Agamêmnon se dê conta <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong><br />

erro, muitos Aqueus <strong>de</strong>vem morrer.<br />

Segundo Gregory Nagy (1991), cronologicamente, <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>, Apolo tem mh=nij<br />

pelo problema <strong>de</strong> Crises antes <strong>de</strong> Aquiles pelo rapto <strong>de</strong> Brisei<strong>da</strong>. Po<strong>de</strong>mos dizer, então, que os<br />

aqueus sentem a1lgea por causa <strong>de</strong> Apolo antes <strong>de</strong> sentirem por causa <strong>de</strong> Aquiles. A palavra<br />

a1lgea, na linguagem ilidíaca, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>notar dois tipos <strong>de</strong> sofrimentos para os aqueus: 1) a<br />

praga resultante <strong>de</strong> mh=nij <strong>de</strong> Apolo e 2) a situação, na batalha, resultante <strong>da</strong> mÁnij <strong>de</strong><br />

Aquiles.<br />

Examinando a palavra loi&goij nos versos 97 e 456 do Canto I, o autor nos mostra<br />

que a palavra só ocorre em combinação com o verbo a1mun. E, no contexto <strong>de</strong>ssas<br />

combinações, chega-se à conclusão <strong>de</strong> que a situação militar resultante <strong>da</strong> mh=nij <strong>de</strong> Aquiles<br />

pe<strong>de</strong> pela mesma solução, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> narrativa, que a praga resultante <strong>da</strong> mh=nij <strong>de</strong><br />

Apolo (NAGY, 1991, p. 142).<br />

TRADUÇÃO DO TERMO mh=nij NO CONTEXTO ILIÁDICO<br />

Latacz diz que a freqüente tradução do termo mh=nij por “ira” não é suficientemente<br />

abrangente, pois não estamos li<strong>da</strong>ndo com uma emoção inespera<strong>da</strong>, repentina, um “acesso <strong>de</strong><br />

raiva”, mas sim com algo duradouro, amargo, um tumor <strong>de</strong> hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> por causa <strong>de</strong> um<br />

insulto, é a conseqüência <strong>de</strong> uma raiva suprimi<strong>da</strong> (2001, p. 71).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 267-273, 2008<br />

269


Em suas primeiras entra<strong>da</strong>s no Dicionário Houaiss, “obstinação” significa “persistência”,<br />

“apego forte e excessivo às próprias idéias, resoluções e empreendimentos”. Ora, não se po<strong>de</strong><br />

negar que Aquiles é extremamente apegado às suas idéias e resoluções. Temos um claro<br />

exemplo disso no Canto XVIII, quando Aquiles diz:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 267-273, 2008<br />

90 e)pei ou)d' e)me qumo\j a!nwge<br />

zw&ein ou)d' a!ndressi mete/mmenai, ai! ke mh\ !Ektwr<br />

prw=toj e0mw= u(po\ douri/ tupei/j a)po_ qumo_n o9le/ssh,<br />

Patro/kloio d' e!lwra Menoitia/<strong>de</strong>w a0potei/sh.<br />

O ânimo não me permite viver nem estar entre os homens<br />

Se primeiro não <strong>de</strong>struir arrancando o ânimo <strong>de</strong> Heitor golpeado sob<br />

Minha lança, e o punir como vítima<br />

Por Pátroclo Meneci<strong>da</strong>.<br />

Num primeiro momento, Aquiles não volta à batalha enquanto não têm sua vingança<br />

contra Agamêmnon, que “não honrou o melhor dos aqueus” 1 . Tal vingança é a ruína para os<br />

gregos.<br />

Depois <strong>de</strong> conseguir a vingança contra Agamêmnon, garanti<strong>da</strong> por Zeus, Aquiles<br />

renuncia à ira contra o rei e a reverte totalmente para Heitor, que matou seu fi&loj, Pátroclo, e<br />

não renuncia novamente (e totalmente) antes <strong>de</strong> ultrajar o cadáver <strong>de</strong> seu gran<strong>de</strong> inimigo<br />

(como vimos nos versos 90-94 do Canto XVIII).<br />

A OBSTINAÇÃO NA ILÍADA<br />

Vemos no Canto IX <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong> a cena principal <strong>de</strong> Aquiles afastado <strong>da</strong> guerra,<br />

dominado pela mh=nij causa<strong>da</strong> pelas palavras insensatas do rei Agamêmnon, no Canto I. Por<br />

causa <strong>de</strong> tais palavras, o “melhor dos aqueus” 2 está em retiro, junto às naus, afastado do que<br />

mais gosta e sabe fazer: lutar. E é através <strong>de</strong> palavras que o rei tentará reparar seu erro,<br />

enviando uma Embaixa<strong>da</strong> até a cabana do herói, com uma lista <strong>de</strong> muitos bens como<br />

in<strong>de</strong>nização.<br />

1 conforme o próprio herói diz em I, 412: o! t' a@riston 'Axai+w+n ou)<strong>de</strong>/n e!teisen.<br />

2 Cf. nota anterior.<br />

270


A Embaixa<strong>da</strong> não é composta aleatoriamente. Ela é forma<strong>da</strong> por Fênix – que foi tutor<br />

<strong>de</strong> Aquiles e recorre às lembranças <strong>da</strong> infância em Ftia –, por Odisseu – o polumh/tij, que<br />

tem o dom <strong>da</strong>s palavras e <strong>da</strong> persuasão – e por Ájax, guerreiro grego que representa os<br />

companheiros <strong>de</strong> Aquiles na guerra e, assim como Aquiles, é dotado <strong>de</strong> excelência guerreira.<br />

Aquiles não aceita a in<strong>de</strong>nização proposta por Agamêmnon, preferindo persistir no seu<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> vingança – garantido por Zeus – e ver os gregos serem massacrados pelos troianos a<br />

passar por cima <strong>de</strong> seu orgulho ferido e voltar à batalha para aju<strong>da</strong>r os gregos.<br />

O herói continuará afastado e irredutível, sendo corroído pela mh=nij e no Canto XVI<br />

receberá a notícia <strong>da</strong> morte <strong>de</strong> Pátroclo. Nesse exato momento, sua mh=nij tem um novo<br />

<strong>de</strong>stinatário e um novo motivo: Heitor, que acaba <strong>de</strong> matar seu fi&loj. Aquiles continua<br />

afastado até o Canto XVIII, quando <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> renunciar formalmente à mh=nij contra<br />

Agamêmnon e revertê-la (ou substituí-la) pela mh=nij contra Heitor.<br />

Malta afirma que o Canto XVIII “é fun<strong>da</strong>mental na estrutura dramática <strong>da</strong> Ilía<strong>da</strong>,<br />

porque é aquele que traz Aquiles <strong>de</strong> volta, <strong>de</strong>finitivamente, à cena principal do poema: é on<strong>de</strong><br />

precisamente se estabelece sua nova cólera, dirigi<strong>da</strong> agora contra Heitor, em substituição à<br />

dirigi<strong>da</strong> ao senhor <strong>de</strong> homens Agamenon, que será abandona<strong>da</strong>, em público, no Canto XIX”<br />

(2006, p. 241).<br />

Segundo Gregory Nagy, Heitor se tornará parte <strong>de</strong> uma história épica que glorificará<br />

as ações <strong>de</strong> Aquiles. O herói troiano se torna parte <strong>de</strong> um kle&oj (Il., VII, 91), mas este kle&oj<br />

pertencerá ao vencedor: Aquiles.<br />

Quando Aquiles volta para a guerra para matar Heitor, ele finalmente estabelece seu<br />

lugar na guerra pela ação positiva <strong>de</strong> combater. Sua ação negativa <strong>de</strong> se retirar <strong>da</strong> guerra<br />

serviu para mostrar que só ele salvaria os aqueus. Como um substituto, Pátroclo antecipa o<br />

<strong>de</strong>stino épico <strong>de</strong> Aquiles, que era salvar os aqueus e ser morto por uma intervenção <strong>de</strong> Apolo,<br />

seu simultâneo mo<strong>de</strong>lo e inimigo.<br />

CONCLUSÃO<br />

Depois do que foi visto, po<strong>de</strong>mos concluir que, apesar <strong>da</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Latacz, o termo<br />

mh=nij não po<strong>de</strong> ser vertido por “obstinação”. Por outro lado, também não po<strong>de</strong> ser traduzido<br />

só por “ira”. Para ilustrar essa afirmação, trazemos à luz o final do Canto I, entre os versos<br />

488-92:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 267-273, 2008<br />

488 Au0t\ar o( mh/nie parh/menoj w0kupo/roisi<br />

diogenh\j Phlh=oj ui(o/j, po<strong>da</strong>j w(ku\j 'Axilleu/j.<br />

271


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 267-273, 2008<br />

ou!te pot' ei)j a)gorh\n pwle/sketo kudia/neiran<br />

ou!te pot' ei0j to/lemon, a0lla\ fqinu/qeske fi/lon kh= +r<br />

au}qi me/nwn, poqe/eske d' a0u=th/n te pto/lemo/n te.<br />

Mas com a ira o corroendo, junto às velozes naus permanecia<br />

o filho do divino Peleu, Aquiles <strong>de</strong> pés velozes.<br />

Nem freqüentava a ágora que ren<strong>de</strong> glórias<br />

nem ia para a guerra, mas permanecia ali,<br />

com o coração sendo consumido, lamentando-se pelo combate.<br />

Essa “ira que o [estava] corroendo” não po<strong>de</strong> ser trata<strong>da</strong> simplesmente por “ira”.<br />

Seguindo a teoria <strong>de</strong> Latacz, a mh=nij, nesse contexto específico, po<strong>de</strong> ser trata<strong>da</strong> como algo<br />

durativo, que nos faz pensar, por inferência do contexto em que se insere o herói, em alguém<br />

persistente e que tem “apego forte e excessivo às próprias idéias, resoluções e<br />

empreendimentos”, como vimos na <strong>de</strong>finição em português para o termo “obstinação”.<br />

Segundo o autor, “não estamos li<strong>da</strong>ndo com uma emoção repentina, um ‘acesso <strong>de</strong><br />

raiva’, mas com um sentimento duradouro, supurante, uma hostili<strong>da</strong><strong>de</strong> angustiante,<br />

amargura<strong>da</strong>, o efeito <strong>de</strong> uma cólera suprimi<strong>da</strong>” (LATACZ , 2001, p. 71).<br />

Não po<strong>de</strong>mos, portanto, tratar a mh=nij aquiléica como algo simples. Como mostramos,<br />

ela é <strong>de</strong>riva<strong>da</strong> (também cronologicamente) <strong>de</strong> outra, a <strong>de</strong> Apolo, que também não é<br />

simplesmente um acesso <strong>de</strong> raiva.<br />

A visão <strong>de</strong>fendi<strong>da</strong> por Gregory Nagy é convergente à que apresentamos. Além do<br />

apontado por Latacz, Nagy mostra que duas <strong>da</strong>s palavras que se referem à palavra mh=nij, no<br />

caso do Canto I: a1lgea e loi&goij, só po<strong>de</strong>m ser utiliza<strong>da</strong>s para <strong>de</strong>notar algo especificamente<br />

referido a Apolo ou a Aquiles (NAGY, 1991, p. 142).<br />

Por seu lado, o Canto XVIII apresenta a mh=nij direciona<strong>da</strong> a uma personagem<br />

diferente <strong>de</strong> seu objeto primeiro, visto no Canto I: Heitor. No Canto XVIII, somente Aquiles<br />

tem tal sentimento pelo herói troiano, enquanto o <strong>de</strong>us Apolo protege Heitor.<br />

Apolo é inimigo <strong>de</strong> Aquiles. Num avanço maior <strong>de</strong>ssa afirmação, diríamos que Apolo<br />

e Aquiles são contrapartes. Apesar <strong>de</strong> terem o mesmo sentimento por Agamêmnon, os dois<br />

são antagônicos (RABEL, 1990, p. 142; NAGY, 1991, p. 142) e isso fica evi<strong>de</strong>nte quando<br />

Apolo “entrega” Pátroclo à morte pelas mãos <strong>de</strong> Heitor (Il., XVI), assim como quando Paris<br />

mata Aquiles, inspirado por Apolo.<br />

272


Finalmente, po<strong>de</strong>mos dizer que a versão <strong>da</strong> palavra mh=nij é totalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do<br />

contexto no qual está inserido. Porém, acreditamos que ela não po<strong>de</strong> ser verti<strong>da</strong> somente por<br />

“ira”, pois tal palavra não abrange totalmente o sentido que temos em grego. E por isso,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>mos que mh=nij, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do contexto, <strong>de</strong>ve ser traduzi<strong>da</strong> por dois ou mais termos,<br />

que levem à inferência <strong>de</strong> um sentimento <strong>de</strong> caráter duradouro.<br />

Pu<strong>de</strong>mos ver tal afirmação exemplifica<strong>da</strong> no caso dos versos 488-92 do Canto I, on<strong>de</strong><br />

temos a cena clara <strong>de</strong> alguém obstinado, que, mesmo ansiando pelo combate e lamentando<br />

por não estar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, persiste excessivamente em suas idéias, resoluções e<br />

empreendimentos.<br />

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KONSTAN, D. A amiza<strong>de</strong> no mundo clássico. Tradução <strong>de</strong> Márcia Epstein Finker. São<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 267-273, 2008<br />

273


Arqueologia Bíblica e construção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s: notas acerca <strong>da</strong> pesquisa arqueológica<br />

nas chama<strong>da</strong>s terras <strong>da</strong> Bíblia<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

Gabriella Barbosa RODRIGUES<br />

G – IFCH – UNICAMP<br />

gab.rodrigues@gmail.com<br />

É possível dizer que a Arqueologia Bíblica, antes mesmo <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> disciplina<br />

acadêmica, já era permea<strong>da</strong> por discursos <strong>de</strong> caráter i<strong>de</strong>ntitário. Além do aspecto religioso<br />

evi<strong>de</strong>nte, as chama<strong>da</strong>s “terras <strong>da</strong> Bíblia” <strong>de</strong>sempenharam importante papel na construção <strong>de</strong><br />

mitos nacionais <strong>de</strong> origem entre nações “imperialistas” oci<strong>de</strong>ntais emergentes. Neste trabalho,<br />

gostaríamos <strong>de</strong> enfatizar como a cultura material, especialmente a que se relaciona ao texto<br />

bíblico, está liga<strong>da</strong> à constituição <strong>de</strong>ssas i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s religiosas e, também, nacionais. Nessa<br />

mesma linha, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> enfocar os aspectos políticos <strong>da</strong> Arqueologia Bíblica,<br />

consi<strong>de</strong>rando que não são <strong>de</strong>la exclusivos, mas concernem a qualquer trabalho <strong>de</strong><br />

Arqueologia em geral, apenas para ficar <strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> disciplina.<br />

Começaremos, então, com um pouco <strong>da</strong> história <strong>da</strong>s pesquisas arqueológicas<br />

relaciona<strong>da</strong>s à Bíblia. Nasci<strong>da</strong> no âmbito dos estudos bíblicos e, por muito, consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> um<br />

ramo <strong>da</strong>s pesquisas no Oriente Próximo, a Arqueologia Bíblica <strong>de</strong>senvolveu-se, em sua<br />

gênese, com o intuito <strong>de</strong> comprovar por meio <strong>da</strong> cultura material a narrativa bíblica. A Bíblia<br />

seria o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> do trabalho, o qual <strong>de</strong>veria provar a sua veraci<strong>da</strong><strong>de</strong>, tal como ilustrar<br />

o registro bíblico. No entanto, havia mais do que uma motivação religiosa nessas primeiras<br />

expedições: impulsos pecuniários engendraram as primeiras explorações na região,<br />

promovi<strong>da</strong>s por “caçadores <strong>de</strong> tesouros”, cuja função era abastecer coleções particulares.<br />

A primeira escavação científica, propriamente dita, na Palestina só foi acontecer em<br />

1890, promovi<strong>da</strong> pelo inglês William Matthew Flin<strong>de</strong>rs Petrie, em Tell el-Hesi. Ao longo <strong>de</strong><br />

todo o século XIX, as expedições <strong>de</strong> campo, em geral, eram financia<strong>da</strong>s pelas potências<br />

imperiais européias, em favor <strong>de</strong> seus interesses. Na reali<strong>da</strong><strong>de</strong>, eram tantas expedições que<br />

po<strong>de</strong>mos dizer que houve uma “invasão” oci<strong>de</strong>ntal <strong>da</strong> Palestina, como não havia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as<br />

Cruza<strong>da</strong>s; a “diferença” seria que, <strong>de</strong>sta vez, ela tinha caráter “científico” (SILBERMAN,<br />

1982, p.4).<br />

Ter como proprie<strong>da</strong><strong>de</strong> vestígios arqueológicos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s civilizações em museus<br />

nacionais era sinônimo <strong>de</strong> avanço imperialista e prestígio nacional: segundo Silberman, “[...]


a busca pelo passado tornou-se uma empreita<strong>da</strong> patriótica em praticamente to<strong>da</strong> nação<br />

oci<strong>de</strong>ntal européia” 1 (SILBERMAN, 1989, p.1);<br />

Na Grã-Bretanha – como na França, Holan<strong>da</strong>, Dinamarca, Suíça, Suécia e Alemanha – a<br />

re<strong>de</strong>scoberta nacional dos textos e relíquias antigos representou a retoma<strong>da</strong> <strong>de</strong> um<br />

patrimônio hereditário nacional, patrimônio no qual os elementos mais altamente<br />

estimados no presente eram, por isso, realçados no passado. Não importava se os<br />

ancestrais em questão eram os bretões ou os anglo-saxões no Reino Unido, os celtas na<br />

França, os godos na Escandinávia, ou os teutos na Prússia e na Alemanha. O orgulho<br />

pelos ancestrais <strong>de</strong> uma nação é apenas uma outra expressão do orgulho por uma nação<br />

mo<strong>de</strong>rna 2 (Id., ib., p.2).<br />

Nesse contexto, a Bíblia foi vista como “herança espiritual” <strong>da</strong> Europa (SILBERMAN,<br />

1989, p.3) e as peregrinações a “lugares sagrados”, que já existiam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média (s/d,<br />

p.3), juntamente com o antiquarismo promovido por indivíduos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, tornaram-se<br />

uma tarefa nacional (SILBERMAN, 1989, p. 3): “As coleções <strong>de</strong> antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s clássicas e<br />

bíblicas tinham se construído em passos lentos por déca<strong>da</strong>s, eventualmente tornando-se índice<br />

<strong>de</strong> prestígio imperial.” 3 (SILBERMAN, 1989, p. 3). Para Tamima Mourad,<br />

“[...] o uso do passado do Oriente Próximo e <strong>de</strong> suas glórias <strong>de</strong>u a esses mo<strong>de</strong>rnos<br />

impérios o po<strong>de</strong>r que eles precisavam: a propagan<strong>da</strong> para estimular suas economias, que<br />

estavam se industrializando, e para reforçar suas necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> expansão territorial e<br />

colonização; assim eles po<strong>de</strong>riam triunfar como os impérios do passado haviam feito” 4<br />

(s/d, p. 3).<br />

1 “[...] the search for the past had become a patriotic un<strong>de</strong>rtaking in virtually every western European nation”.<br />

2 “In Great Britain – as in France, Holland, Denmark, Switzerland, Swe<strong>de</strong>n, and Germany – the national<br />

rediscovery of ancient relics and texts represented the retaking of a national birthright, a birthright in which the<br />

elements most highly prized in the present were, accordingly stressed in the past. It didn't matter if the ancestors<br />

in question were the Britons or the Anglo-Saxons in the United Kingdom, the Celts in France, the Goths in<br />

Scandinavia, or the Teutons in Prussia and Germany. Pri<strong>de</strong> in one's nation's ancestors was just another<br />

expression of pri<strong>de</strong> in one’s mo<strong>de</strong>rn nation.”<br />

3 “The pace of the collection of classical and biblical antiquities had been building steadily for <strong>de</strong>ca<strong>de</strong>s,<br />

eventually becoming an in<strong>de</strong>x of imperial prestige”.<br />

4 “[…] The use of the Near Eastern past and its glories gave these mo<strong>de</strong>rn empires the power they nee<strong>de</strong>d: the<br />

propagan<strong>da</strong> to boost their industrializing economies, to reinforce their needs of territorial expansion and<br />

colonisation; so that they could triumph; as past empires had done.”<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

275


Dessa forma, ao longo dos séculos XVIII e XIX, os viajantes serviram a seus países<br />

como “coletores <strong>de</strong> informações com fins sócio-políticos e econômicos” 5 (MOURAD, s/d,<br />

p.9). É, em especial, por tudo isso que hoje muitos museus europeus ain<strong>da</strong> estão repletos <strong>de</strong><br />

relíquias, souvenirs <strong>da</strong> região <strong>da</strong> palestina. Ain<strong>da</strong> durante o controle do Império Turco-<br />

Otomano, segundo Mourad, o transporte <strong>de</strong>sse material, para França e Inglaterra, já acontecia,<br />

<strong>de</strong> forma legal ou mesmo por baixo <strong>da</strong>s leis otomanas. O mercado “negro” era consi<strong>de</strong>rado<br />

legítimo no cenário <strong>de</strong> disputa política, no qual se alegava a <strong>de</strong>cadência turco-otomana e a sua<br />

incapaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> gerir “tão valoroso patrimônio”. Dentro <strong>de</strong>ssa disputa entre os países<br />

europeus e o Império Turco-Otomano, as ascen<strong>de</strong>ntes potências imperiais buscavam<br />

estabelecer sua influência na região: na<strong>da</strong> mais estratégico do que a Palestina,<br />

geograficamente privilegia<strong>da</strong> entre Egito e Mesopotâmia:<br />

[...] A busca por antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s bíblicas tornou-se, por isso, um meio sutil <strong>de</strong> penetração e<br />

competição oci<strong>de</strong>ntal numa <strong>da</strong>s áreas mais estratégicas do mundo – praticamente uma<br />

extensão <strong>da</strong> “Questão Oriental” trava<strong>da</strong> no campo <strong>de</strong> batalha do passado. 6<br />

(SILBERMAN, 1982, p.4).<br />

Para evi<strong>de</strong>nciar esse predomínio europeu sobre as pesquisas, citamos a fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong><br />

socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s para controlar e promover suas pesquisas em to<strong>da</strong> a Palestina: a primeira <strong>de</strong>las, em<br />

1865, é o britânico Fundo <strong>de</strong> Exploração <strong>da</strong> Palestina [Palestine Exploration Fund], que<br />

justificava seu interesse na região <strong>da</strong> seguinte forma: “nenhum país <strong>de</strong>veria ser <strong>de</strong> tanto<br />

interesse para nós quanto aquele no qual os documentos <strong>de</strong> nossa fé foram escritos e os<br />

eventos importantes que eles <strong>de</strong>screvem representados” 7 (BROSHI, 1987, p.6); na seqüência<br />

estão a Associação alemã <strong>de</strong> pesquisa na Palestina [Deutscher Verein zur Erforschung<br />

Palästinas], <strong>de</strong> 1877, e a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Oriental Alemã [Deutsch Orientgesellschaft], <strong>de</strong> 1898;<br />

surgiram, na própria ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Jerusalém, a Escola prática <strong>de</strong> estudos bíblicos do Convento<br />

St. Etienne [École pratique d’etu<strong>de</strong>s bibliques du Couvent St. Etienne], em 1892, e o Instituto<br />

Evangélico Alemão <strong>de</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Terra Santa, em 1902. É importante ressaltar que,<br />

5 “[…] Travellers throughout the eighteenth and nineteenth century served their countries as information<br />

gatherers for socio-political and economic purposes.”<br />

6 “[…] The search for Biblical antiquities became, therefore, a subtle means of western penetration and<br />

competition in one of the most strategic areas of the world – a quite extension of the “Eastern Question” waged<br />

on the battlefield of the past.”<br />

7 “no country should be of so much interest to us as than that in which the documents of our faith were written<br />

and the momentous events they <strong>de</strong>scribed enacted.”<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

276


entre os anos <strong>de</strong> 1847 e 1883, a exploração <strong>da</strong> Palestina foi coman<strong>da</strong><strong>da</strong> exclusivamente por<br />

militares, que, a mando <strong>de</strong>ssas socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e <strong>de</strong> seus governos, coletaram informações<br />

geográficas e arqueológicas, e traçaram mapas <strong>da</strong> região (SILBERMAN, 1989, p. 127).<br />

Os Estados Unidos, assim como aconteceu no cenário geopolítico, só <strong>de</strong>spontariam<br />

mais tar<strong>de</strong> como potência quase que hegemônica na Arqueologia Bíblica. Durante esse<br />

período, sua ligação com as terras relaciona<strong>da</strong>s à Bíblia ficava quase que restrita ao<br />

movimento missionário: “como em outro lugar, missionários americanos no Oriente Médio<br />

embarcaram numa busca que combinava ‘mo<strong>de</strong>rnização’ tecnológica e espiritual que eles<br />

esperavam que fosse resultar na transformação milenar <strong>da</strong> região” 8 (SILBERMAN, 1998, p.<br />

179). Os Estados Unidos fun<strong>da</strong>ram a Socie<strong>da</strong><strong>de</strong> Americana <strong>de</strong> Arqueologia Bíblica [American<br />

Society of Biblical Archaeology], em 1870, mas a experiência durou apenas 14 anos, pois<br />

faltavam recursos, fundos e oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s que permitissem o avanço <strong>da</strong>s pesquisas. Dessa<br />

forma, a American Biblical Archaeology, apesar <strong>da</strong> proposta missionária e <strong>de</strong> uma nova<br />

tentativa <strong>de</strong> organização – que foi a fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong>s Escolas Americanas <strong>de</strong> Pesquisas Orientais,<br />

ASOR [American Schools of Oriental Research], em 1900 –, só conseguia existir na medi<strong>da</strong><br />

em que trabalhava com as organizações européias, <strong>de</strong>ntro do jogo <strong>de</strong> interesses do<br />

imperialismo, do qual os norte-americanos ain<strong>da</strong> não faziam parte, pelo menos não com as<br />

mesmas proporções.<br />

Assim, apenas no período entre guerras, as pesquisas norte-americanas começam a<br />

dominar o cenário. O <strong>de</strong>staque fica para William Foxwell Albright, que, na déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1920,<br />

tornou-se presi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> ASOR e entusiasta <strong>de</strong> suas campanhas. Hoje, Albright é consi<strong>de</strong>rado<br />

o “padrinho” <strong>da</strong> disciplina nos Estados Unidos, pois, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> suas contribuições<br />

metodológicas e epistemológicas – que fazem <strong>de</strong> seus trabalhos leitura fun<strong>da</strong>mental para a<br />

Arqueologia Bíblica <strong>de</strong> forma geral –, ele é lembrado por seus conterrâneos por suas atitu<strong>de</strong>s<br />

estimulantes, que teriam impulsionado as pesquisas com um misto <strong>de</strong> energia e imaginação:<br />

“Muito mais significativo para a história <strong>da</strong> disciplina e para o futuro <strong>de</strong>la, entretanto, foi sua<br />

criação <strong>de</strong> um modo inteiramente novo <strong>de</strong> se fazer arqueologia na terra <strong>da</strong> Bíblia, como um<br />

ritual <strong>de</strong> pesquisa religiosa consciente <strong>de</strong> seu caráter 9 ” (SILBERMAN, 1998, p. 182).<br />

Os Estados Unidos mantiveram, então, posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque na disciplina – assim<br />

como se <strong>de</strong>stacavam também como potência política mundial –, até o processo <strong>de</strong> formação<br />

8 “as elsewhere, American missionaries in the Middle East embarked upon a combined quest for technological<br />

and spiritual ‘mo<strong>de</strong>rnization’ that they hope would result in the millenial transformation of the region.”<br />

9 ecumênico “Far more significant for the history of the discipline and for its future, however, was his creation of<br />

an entirely new way to do archaeology in the land of the Bible, as a self-consciously ecumenical ritual of<br />

religious scholarship.”<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

277


do Estado <strong>de</strong> Israel. No entanto, outros países ain<strong>da</strong> continuaram com seus trabalhos, ligados<br />

ao Departamento <strong>de</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>da</strong> Palestina, que estava sob administração britânica.<br />

Entre os anos <strong>de</strong> 1939 e 1949, os trabalhos <strong>de</strong> campo ficaram praticamente<br />

interrompidos por conta <strong>da</strong> tensão política causa<strong>da</strong> pela II Guerra Mundial e, em maior grau,<br />

pelos conflitos árabe-israelenses. O ano <strong>de</strong> 1948 marca, segundo Amihai Mazar, o início <strong>de</strong><br />

uma nova fase para as pesquisas arqueológicas na Palestina: para começar, chega ao fim o<br />

Man<strong>da</strong>to Britânico na Palestina um dia antes <strong>da</strong> criação do Estado Mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Israel, em 15<br />

<strong>de</strong> maio; além disso, a ASOR <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser a força institucional dominante, na medi<strong>da</strong> em que<br />

os pesquisadores locais começam a controlar as escavações. De fato, na Jordânia, alguns<br />

trabalhos até continuam a acontecer sob o encargo <strong>de</strong> expedições estrangeiras, e isso só mu<strong>da</strong><br />

após a Guerra dos Seis Dias, quando arqueólogos jor<strong>da</strong>nianos juntam-se aos estrangeiros num<br />

sistema <strong>de</strong> parceria. Por outro lado, em Israel, há, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, condições para o controle<br />

dos trabalhos pelos israelenses, pois arqueólogos locais já estavam treinados, na medi<strong>da</strong> em<br />

que haviam trabalhado nas expedições estrangeiras, em especial, nas norte-americanas; além<br />

disso, surgem órgãos institucionais locais e internacionais preocupados com a influência <strong>de</strong><br />

organizações internacionais na preservação arqueológica e com o <strong>de</strong>senvolvimento do turismo<br />

(SILBERMAN, 1998, p. 176).<br />

Com isso, também o enfoque <strong>da</strong> disciplina mudou, pois a ênfase tradicional no texto<br />

bíblico manti<strong>da</strong> pela ASOR começou a ser substituí<strong>da</strong> por uma preocupação <strong>de</strong> caráter<br />

antropológico e histórico mais geral (SILBERMAN, 1998, p. 176):<br />

O foco <strong>de</strong> seus membros não estava mais fixado apenas em sítios bíblicos. Escavações,<br />

pesquisas e estudos <strong>de</strong>talhados <strong>de</strong> tecnologia antiga, agricultura e <strong>de</strong>senvolvimento eram<br />

apenas ocasionalmente usados para ilustrar ou eluci<strong>da</strong>r passagens específicas no texto<br />

bíblico (um objetivo repeti<strong>da</strong>mente enfatizado como central para a American Biblical<br />

Archaeology [...]. 10 (SILBERMAN, 1998, p. 176)<br />

Além disso, Silberman <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que, com a arqueologia mo<strong>de</strong>rna, a tradicional<br />

veneração aos templos e lugares sagrados alterou-se, ain<strong>da</strong> que superficialmente. Algumas<br />

interpretações já praticamente canônicas foram questiona<strong>da</strong>s “[...] pelos achados <strong>de</strong> uma nova<br />

on<strong>da</strong> <strong>de</strong> pesquisadores céticos <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> América, os quais mapearam e <strong>de</strong>screveram a<br />

10 “The focus of its members was no longer fixed only on biblical sites. Excavations, surveys and <strong>de</strong>tailed studies<br />

of ancient technology, agriculture and environment were only occasionally used to illustrate or eluci<strong>da</strong>te specific<br />

passages in the biblical text (a goal repeatedly emphasised as central to American Biblical Archaeology […].”<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

278


paisagem bíblica em termos arqueológicos mo<strong>de</strong>rnos” 11 (SILBERMAN, 1989, p. 6). Como<br />

exemplo disso, po<strong>de</strong>mos citar a correspondência, muitas vezes forçosa, <strong>de</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas<br />

com lugares bíblicos, porque havia, nas palavras do autor, um abismo entre as <strong>de</strong>scrições<br />

antigas e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna (SILBERMAN, 1991, p. 76). Dessa forma, a Bíblia começou a<br />

po<strong>de</strong>r ser entendi<strong>da</strong> não como o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> <strong>da</strong>s pesquisas, mas sim como uma “parte <strong>da</strong><br />

rica herança cultural <strong>da</strong>s várias socie<strong>da</strong><strong>de</strong>s antigas do Oriente Médio” (SILBERMAN, 1989, p.<br />

7).<br />

Sendo assim, os vestígios arqueológicos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ser apenas um elemento para<br />

enten<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> civilização oci<strong>de</strong>ntal, mas se tornam símbolos nacionais<br />

oficiais na mo<strong>de</strong>rni<strong>da</strong><strong>de</strong>; isso, no entanto, não é particulari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> Arqueologia Bíblica, mas<br />

sim um fenômeno <strong>da</strong> arqueologia mundial (SILBERMAN 1989, p. 7).<br />

O envolvimento crescentemente significativo dos arqueólogos locais sugere a<br />

valorização <strong>de</strong> uma relação pessoal com o material <strong>de</strong>senterrado: para esses pesquisadores, os<br />

vestígios materiais <strong>da</strong>s culturas antigas <strong>de</strong> seus países representam muito mais do que gran<strong>de</strong>s<br />

estágios do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> civilização oci<strong>de</strong>ntal, pois simbolizam episódios <strong>de</strong> sua<br />

história nacional (SILBERMAN, 1998, p. 8). Além disso, como um exercício <strong>de</strong> soberania<br />

nacional, as autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s locais procuram ca<strong>da</strong> vez mais controlar as escavações no Oriente<br />

Próximo (SILBERMAN, 1998, p. 8).<br />

Segundo El-Haj, as primeiras escavações arqueológicas organiza<strong>da</strong>s pelo governo<br />

israelense teriam explicitado seu empenho em trazer à tona elementos que simbolizassem a<br />

mais antiga presença ju<strong>da</strong>ica na região. Se pensarmos que a escolha <strong>de</strong> um sítio arqueológico<br />

é sempre um ato político, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> a pesquisa ser liga<strong>da</strong> a um Estado ou não, a<br />

afirmação <strong>de</strong> El-Haj torna-se plausível, na medi<strong>da</strong> em que essas escavações aconteceram na<br />

chama<strong>da</strong> “Ci<strong>da</strong><strong>de</strong> Velha” <strong>de</strong> Jerusalém, logo após a Guerra dos Seis Dias, quando o governo<br />

israelense adquiriu controle sobre a região. Para a autora, havia, por parte do governo <strong>de</strong><br />

Israel, a intenção <strong>de</strong> transformar <strong>de</strong>finitivamente a Esplana<strong>da</strong> <strong>da</strong>s Mesquitas muçulmana no<br />

Monte do Templo ju<strong>de</strong>u.<br />

Particularmente no caso israelense, o passado é usado não só como forma <strong>de</strong><br />

comprovar o direito à terra; foi preciso, também, após a fun<strong>da</strong>ção do Estado, construir uma<br />

nacionali<strong>da</strong><strong>de</strong> comum a ju<strong>de</strong>us vindos <strong>de</strong> diferentes partes do mundo, muitos dos quais nem<br />

falavam o Hebraico, sua nova língua nacional. Para isso, sítios como os do “quarteirão<br />

ju<strong>da</strong>ico” e Massa<strong>da</strong> foram extensamente escavados, e arqueólogos, como Benjamin Mazar,<br />

11 “[...] by the findings of a new wave of skeptical scholars from Europe and America, who mapped and<br />

<strong>de</strong>scribed the biblical landscape in mo<strong>de</strong>rn archaeological terms.”<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

279


Nahman Avigad e, mais tar<strong>de</strong>, Yigael Yadin, foram consi<strong>de</strong>rados fun<strong>da</strong>mentais na formação<br />

do imaginário colonial israelense (EL-HAJ, 1998, p. 168).<br />

É possível encontrar, ao longo <strong>da</strong>s pesquisas históricas e arqueológicas do Oriente<br />

Próximo, diversos exemplos como esse, tanto em benefício <strong>de</strong> ju<strong>de</strong>us como também a favor<br />

<strong>de</strong> muçulmanos e cristãos. No entanto, a literatura a esse respeito sugere que a história <strong>da</strong><br />

Antiga Palestina foi “silencia<strong>da</strong>” no “discurso dos estudos bíblicos” – ou, como cunhou<br />

Edward Said, “discurso orientalista” –, a não ser no que dizia respeito ao Antigo Israel (Cf.,<br />

<strong>de</strong>ntre outros, WHITELAM, 1997; JONES, 1994; EL-HAJ 1998). O termo “silenciar” é<br />

empregado, em especial, por Keith Whitelam em seu livro A invenção do Antigo Israel: o<br />

silenciamento <strong>da</strong> história <strong>da</strong> Palestina. Isso não significaria, entretanto, que essas histórias<br />

<strong>de</strong>vessem ser separa<strong>da</strong>s, pois, para o autor, a história <strong>de</strong> Israel e do ju<strong>da</strong>ísmo do Segundo<br />

Templo fazem parte <strong>de</strong>ssa história <strong>da</strong> Palestina, mas não po<strong>de</strong>m continuar a dominá-la,<br />

“silenciando virtualmente todos os outros aspectos <strong>da</strong> história <strong>da</strong> região, <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong> do Bronze<br />

Antigo até o Período Romano” (WHITELAM, 1997, p. 5) 12 . As pesquisas ju<strong>da</strong>ico-cristãs<br />

ain<strong>da</strong> são as que predominam; por outro lado, as dirigi<strong>da</strong>s por grupos muçulmanos seguem a<br />

mesma premissa: preocupam-se apenas com os períodos relacionados à história do Islã.<br />

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2005.<br />

12 “This means that Israelite history and second Temple Ju<strong>da</strong>ism , the domain of biblical studies until very<br />

recently, form part of this Palestinian history , whereas Israelite history, un<strong>de</strong>r the influence of biblical studies,<br />

has dominates the Palestinian landscape to such an extent that it has silenced virtually all other aspects of the<br />

history of the region from the Late /bronze Age to the Roman period.”<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

280


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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 274-281, 2008<br />

281


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

Scriptores Artis Metricae: Prosódia e Plano <strong>de</strong> Expressão<br />

Daiane Graziele SCHIAVINATO<br />

G (PIBIC) – FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

<strong>da</strong>iagraziele@yahoo.com.br<br />

A comunicação humana só se dá a partir <strong>da</strong> elaboração <strong>de</strong> um discurso i<strong>de</strong>ntificável<br />

pelo interlocutor, o que se permite afirmar que, se a forma <strong>de</strong> representação <strong>de</strong>sse discurso<br />

utiliza<strong>da</strong> pelo emissor, não for totalmente compreendi<strong>da</strong> po<strong>de</strong>-se ter uma per<strong>da</strong> ou alteração<br />

do sentido <strong>de</strong>sse discurso, pondo em risco a eficácia <strong>da</strong> comunicação.<br />

Para Gayo (1987), referindo-se a Todorov, o discurso, atos <strong>de</strong> fala que se organizam<br />

em gêneros, constitui-se <strong>de</strong> enunciados que pressupõem em si mesmos, para sua plena<br />

interpretação, as frases que se enunciam bem como a enunciação por si própria (que<br />

compreen<strong>de</strong> um contexto <strong>da</strong> enunciação: um emissor, um interlocutor, um tempo, um lugar,<br />

um discurso prece<strong>de</strong>nte ou seguinte), ou seja, além <strong>de</strong> nos remeter às idéias presentes na<br />

enunciação do discurso <strong>de</strong>codifica<strong>da</strong>s pela inteligência, a boa interpretação <strong>da</strong> mensagem para<br />

se chegar à formulação mental <strong>de</strong>ssas idéias será também <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> pela relação que se<br />

estabelece entre emissor/forma <strong>de</strong> representação/ ouvinte.<br />

Diante <strong>de</strong> um texto literário, o modo <strong>de</strong> expressão se materializa a partir <strong>de</strong><br />

componentes lingüísticos como o nível <strong>de</strong> linguagem, as formas (verso ou prosa), as figuras, o<br />

ritmo, a métrica e tudo o que se encontra necessário para a sua boa formulação. Esse modo <strong>de</strong><br />

expressão conta com a sensibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ouvinte, não somente para instruí-lo, mas, a partir <strong>de</strong><br />

valores estéticos, para <strong>de</strong>leitá-lo consi<strong>de</strong>rando a capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação <strong>da</strong> mensagem. O<br />

enunciador i<strong>de</strong>ntificará um perfeito discurso e uma plena comunicação com a sua forma mais<br />

essencial, que <strong>de</strong>verá manter em harmonia todos os aparatos que envolvem esse discurso,<br />

além <strong>da</strong> forma <strong>de</strong> sua enunciação e o ato <strong>de</strong> se enunciar, para que se possa alcançar ca<strong>da</strong> vez<br />

mais o seu correspon<strong>de</strong>nte no plano i<strong>de</strong>al.<br />

Os gêneros do discurso “[...] são codificações <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s discursivas que regulam<br />

a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> atos <strong>de</strong> fala <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>” (GAYO, 1987. p. 267), assim,<br />

para que a formulação siga a <strong>de</strong>terminação dos códigos <strong>da</strong>s proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s discursivas<br />

necessariamente há <strong>de</strong> se ter uma reflexão entre o tema e o modo <strong>de</strong> expressão, ou seja, uma<br />

i<strong>de</strong>ntificação do conteúdo com a forma, sendo que a <strong>de</strong>codificação <strong>da</strong> forma <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá<br />

estritamente do significado elegido por uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> acordo com sua


cultura, i<strong>de</strong>ologias e necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>s, constituí<strong>da</strong>s por elementos que permeiam o cotidiano<br />

social, como a religião, política, memória coletiva, etc.<br />

Dessa forma, o estudo do plano <strong>de</strong> expressão do discurso, no presente caso, do<br />

discurso poético, é imprescindível para a integral captação <strong>da</strong> mensagem. No âmbito <strong>da</strong>s<br />

letras clássicas, esse trabalho se torna mais complexo já que a imensa distância temporal que<br />

separa a antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> dos dias <strong>de</strong> hoje eliminou os falantes e consequentemente <strong>de</strong>sapareceram<br />

certas características típicas dos sons e <strong>da</strong>s expressões sonoras pertencentes a ca<strong>da</strong> povo<br />

antigo. Através <strong>de</strong> estudos filológicos conseguiu-se reconstituir uma orali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> língua latina<br />

a partir <strong>de</strong> suas próprias obras, principalmente as técnicas ou <strong>de</strong>scritivas. Tais textos trazem<br />

regras e leis históricas sobre o sistema fônico no qual se expressa a língua, tratando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />

<strong>de</strong>terminação <strong>da</strong>s quanti<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> duração que uma vogal po<strong>de</strong> ter numa palavra,<br />

classificando-a por longas e breves e <strong>de</strong>terminando a sílaba longa equivalendo ao dobro <strong>da</strong><br />

breve, diversamente do sistema <strong>de</strong> tonici<strong>da</strong><strong>de</strong> que se expressa nas línguas neolatinas, até a<br />

disposição <strong>de</strong>ssas longas e breves num discurso, neste caso o poético, e o efeito causado pela<br />

interação <strong>de</strong>sses sons <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse discurso.<br />

O projeto que se segue então apresentará algumas idéias sobre forma poética presentes<br />

no Liber Tertius, o último livro <strong>de</strong> um tratado <strong>de</strong> métrica <strong>de</strong> Mário Victorino. Ele apresenta<br />

uma varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> metros formadores <strong>de</strong> ritmos, <strong>de</strong>rivados como que a partir <strong>da</strong>s mesmas<br />

fontes para inumeráveis categorias [ex is<strong>de</strong>m velut fontibus <strong>de</strong>rivata ad inumerabiles<br />

metrorum species], sem inventar ex nihilo novas mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> metros e ritmos, mas<br />

levando em consi<strong>de</strong>ração que tanto o uso <strong>de</strong> uma língua, quanto o exemplo dos poetas é que<br />

<strong>de</strong>terminam uma norma vigente:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

Et quamuis non queant omnia ob immensam sui copiam comprehendi,<br />

utpote cum sint innumerabiles figurae compositionum, seu quas prisca aetas<br />

<strong>de</strong>did, seu quas sequens aemula imitatione excogitando produxit tamen ex his<br />

quae aut frequens usus celebrat aut potior auctoritas recicipiendo<br />

commen<strong>da</strong>t, prout potero, [...]<br />

E, embora tudo isso não possa ser expresso por sua imensa<br />

variabili<strong>da</strong><strong>de</strong>, visto que existem inumeráveis figuras <strong>de</strong> construção, ou que a<br />

i<strong>da</strong><strong>de</strong> antiga nos legou, ou que a seguinte inventando com uma imitação<br />

rivalizante, entretanto, tudo o que tiver sido <strong>de</strong>scoberto e que, ou o uso<br />

freqüente emprega, ou um melhor exemplo recomen<strong>da</strong>, que seja adotado tanto<br />

quanto eu pu<strong>de</strong>r. (VICTORINUS, p. 100) 1<br />

1 To<strong>da</strong>s as traduções do Vitorino são <strong>de</strong> Daiane Schiavinato e João Batista Toledo Prado.<br />

283


A <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> Vitorino preten<strong>de</strong> ser inovadora, na medi<strong>da</strong> em que trata <strong>de</strong> metros<br />

compostos, os quais aparentemente não representam uma estrutura rígi<strong>da</strong> e tradicional, sendo<br />

que, a partir <strong>de</strong> sínteses e análises, <strong>de</strong>scobrem-se os metros interconectados e mistos<br />

(coniunctis inter se et mixtis) também i<strong>de</strong>ntificados nos gran<strong>de</strong>s poetas:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

[...] sollicita inuestigatione comprehensa <strong>de</strong>promam: quo subin<strong>de</strong> ea<br />

quae fallunt apud poetas, metra praeceptis disciplinae instruendis facilius<br />

intellegantur, qua metrorum origine exorta, qua specie figurata aut situ<br />

temporum digesta aut copulatione conexa vi<strong>de</strong>antur.<br />

[...] revelarei com uma investigação cui<strong>da</strong>dosa para que,<br />

imediatamente após isso, por meio do ensino dos preceitos que regem esse<br />

conhecimento, sejam compreendidos mais facilmente nos poetas aqueles<br />

metros que nos enganam, bem como <strong>de</strong> que metros originais surgiram, com<br />

que ornatos foram formados, quer pareçam ter sido repartidos em tal fração <strong>de</strong><br />

tempos, quer reunidos em qual combinação. (VICTORINUS, p. 100)<br />

Assim, especifica-se os metros uniformes:<br />

Figurantur enim generalibus modis duobus, quantitatis et quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

specialibus autem octo. Nam quantitas immutabit metrum aut per adiectinem<br />

aut per diminuitionem,; qualitas autem per translationem, permixtonem,<br />

transfigurationem, diuisionem, unitatem, compositionem, et ex heroo qui<strong>de</strong>m<br />

per adiectationem syllabae fiet ita [...]<br />

São formados, <strong>de</strong> fato, por meio <strong>de</strong> dois outros métodos genéricos, o<br />

<strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>de</strong> oito específicos, o <strong>da</strong> quali<strong>da</strong><strong>de</strong>. A quali<strong>da</strong><strong>de</strong> transformará<br />

o metro ora por adição, ora por subtração, a quali<strong>da</strong><strong>de</strong> por outro lado, por<br />

transposição, mistura, transformação, divisão, união, composição, e o que é<br />

melhor, criado até por adição <strong>da</strong>s sílabas heróicas[...] (VICTORINUS, p. 101)<br />

Mário Vitorino nos dá exemplos <strong>de</strong>ssas duas variantes <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> metros<br />

multiformes:<br />

“Musae mi Pieri<strong>de</strong>s Clariusque adsistat Apollo”:<br />

mi enim syllaba <strong>de</strong>tracta erit hexameter. per <strong>de</strong>minutionem autem syllabae<br />

octauae siue nonae ex trimetro iambico sic,<br />

“beatus ille qui procul messibus”.<br />

per translationem uero uerborum ex heroo sic, instimulata choris qualis<br />

socrus excutit ulnas: fiet tetrametrus trochaicus ita,<br />

“in choris stimulata qualis socrus ulnas excutit”.<br />

per diuisionem autem, si proceleumaticum in anapaesticum metrum<br />

diui<strong>de</strong>ndo sic percutias,<br />

“id agite peragite celeriter”.<br />

per unitatem uero, cum pariambus duplex iungitur,<br />

“agite iam agite cito modo mea”,<br />

et fit proceleumaticus. per transfigurationem quoque, cum herous figuram<br />

trimetri accipit, uelut<br />

“Albani muris Albam Longam cinxerunt”:<br />

284


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

hic enim si per dipodias percutiatur, fiet trimetrus. sed et per mixtionem, cum<br />

diuersae bases miscentur, ut puta choriambica et iambica, ueluti<br />

“Lydia, dic precor libens, un<strong>de</strong> uelis reuerti”.<br />

per compositionem autem, si ex heroo dimetro, cui syllaba adiecta in<br />

nouissimo erit, quod penthemimeres uocatur, quod est tale,<br />

“arboribusque comae”,<br />

adiecto dimetro iambico fiat metrum tale,<br />

“arboribusque comae, ut prisca gens mortalium”,<br />

quale est in epodo Horatii,<br />

“scribere uersiculos amore percussum graui”.<br />

Mūsāe/ mī/ Pīĕrĭ/dēs Clărĭ/ūsquē ad/sīstăt Ă/pōllō 2 :<br />

(Este verso) será, <strong>de</strong> fato, um hexâmetro com a sílaba “mi” corta<strong>da</strong>. Seja por<br />

diminuição <strong>da</strong> oitava sílaba ou <strong>da</strong> nona a partir <strong>de</strong> um trímetro iâmbico, assim,<br />

bĕā/tŭs ī/llĕ quī/ prŏcūl/ mē/ssĭbūs 3 .<br />

Mas por translação <strong>de</strong> termos a partir <strong>de</strong> um heróico, assim,<br />

īnstĭmŭ/lātă chŏ/rīs quā/līs sŏcrŭs/ ēxcŭtĭt/ūlnās 4 :<br />

Produz-se, <strong>de</strong>ste modo, o tetrâmetro trocaico.<br />

īn chŏ/rīs stĭmŭ/lātă/quālīs/ sŏcrŭs/ ūlnās/ ēxcŭtĭt/ 5 .<br />

Mas também, por divisão, se cortares um proceleusmático, ao dividires um<br />

verso anapéstico, assim:<br />

ĭd ăgĭtĕ/ pĕrăgĭtĕ/ cĕlĕrĭtĕr 6 .<br />

Por união, <strong>de</strong> fato, quando um duplo segrega, por exemplo um pariambo<br />

ăgĭtĕ iăm a/gĭtĕ cĭtŏ/ mŏdŏ/ mĕă 7 ,<br />

E produz-se um proceleusmático. Por transfiguração, igualmente, quando um<br />

heróico recebe a forma <strong>de</strong> trímetro, como por exemplo:<br />

Ālbānī mū/rīs Ālbām Lōn/gām cīnxērūnt 8 :<br />

Este, <strong>de</strong> fato, se for dividido por dipodias, tornar-se-á um trímetro. Mas<br />

também, se fazem por mistura, quando diversas bases são mistura<strong>da</strong>s, como<br />

em metros coriâmbicos e iâmbicos puros, como por exemplo em:<br />

Lŷdĭă/, dīc prĕcōr/ lĭbēns/, ūndĕ vĕlīs/ rĕvēr/tī 9 .<br />

Por composição, por outro lado, se <strong>de</strong> um dímetro heróico, ao qual uma sílaba<br />

tiver sido adiciona<strong>da</strong> na extremi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que é chamado penthemímera, é algo<br />

semelhante a isto:<br />

ārbŏrĭ/būsquĕ cŏ/māe 10 ,<br />

com o acréscimo <strong>de</strong> um dímetro iâmbico produz-se um metro assim:<br />

2 As Musas Piéri<strong>de</strong>s e o mais claro Apolo me aju<strong>de</strong>m.<br />

3 beatus ille qui procul negotis.( (Hor. Epodos, II , 1), “ feliz aquele que distante dos negócios”.<br />

4 “Estimulado pelos coros tal como a sogra agita seus braços”.<br />

5 “Estimula<strong>da</strong> nos coros tal como a sogra agita seus braços”.<br />

6 “Fazei isto e terminai rapi<strong>da</strong>mente”.<br />

7 “Vamos já. Vamos <strong>de</strong>pressa, oh minha”.<br />

8 “Os Albanos cingiram Alba Longa com muralhas”.<br />

9 “Lídia, dize, eu suplico,<strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>,<strong>de</strong> on<strong>de</strong> queiras ser reverti<strong>da</strong>”.<br />

10 “e as copas nas árvores”.<br />

285


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

ārbŏrĭ/būsquĕ cŏ/māe ūt/ prīscă/ gēns mōr/tālĭ/ŭm 11 ,<br />

tal qual se encontra no Epodo <strong>de</strong> Horácio,<br />

scrībĕrĕ vēr/sĭcū/lōs ă/mōrĕ /pērcū/ssūm grã/vī. 12<br />

Depois <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver as combinações possíveis para a formação dos metros<br />

multiformes, Mario Vitorino ain<strong>da</strong> exemplifica as relações harmônicas entre esses metros,<br />

<strong>de</strong>monstrando as diversas maneiras em que po<strong>de</strong>m se acoplar uns com os outros,<br />

classificando, a partir <strong>de</strong>ssas afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s métricas, outras disposições métricas:<br />

Demonstratis igitur exemplis temptabimus proce<strong>de</strong>nte lectione, in<br />

quantum potuerimus, omnia huius generis sive simplicia sive immixta, quae in<br />

usum aut Graeci aut Latini receperunt, subin<strong>de</strong> pro<strong>de</strong>re, si prius ea a quibus<br />

initium sumendum est docuerimus [dicemus igitur <strong>de</strong> metris per συµπάθειαν et<br />

άντιπάθειαν inter se coniunctis].<br />

Dicemus igitur <strong>de</strong> mixtis ac mutua conexione sociatis metrorum<br />

generibus, quorum bifariam ratio dispergitur. Namque alia consentanea et<br />

veluti cognata inter se ratione iungitur, alia ex dissi<strong>de</strong>nti ac contraria, quae<br />

Graeci χατά συµπάθειαυ χαί άυτιπάθειαυ appellant. Erunt ergo per<br />

συµπάθειαυ, id est per consentaneum adfectum, mixtae inter se iambicae bases<br />

choriambicas et antispasticis. Nam quotiens copulantur sub quacumque se<strong>de</strong>,<br />

vi<strong>de</strong>as veluti ex una ea<strong>de</strong>mque specie id compositum metrum stare et quasi<br />

uniforme, quod monoi<strong>de</strong>s Graeci dicunt, proce<strong>de</strong>re. A<strong>da</strong>eque et trochaicae<br />

bases ionicis pari consensione sociantur, cum epiplocarum, quas amplexiones<br />

metrorum diximus, mutua inter se successione variantur. Et quamvis non<br />

solum trochaeum et solutionem eius tribrachyn, sed et spon<strong>de</strong>um cum suis<br />

solutionibus. Id est <strong>da</strong>ctylum et anapaestum, admittant, tamen uniformia<br />

metra sentiuntur, cum ex similibus et familiaribus pedibus sit ista coniunctio.<br />

Similiter <strong>da</strong>ctylicis anapaestica incidunt, ut “arma virumque cano”.<br />

Etenim adiectis duabus brevibus, ut supra ostendimus, fiet<br />

anapaesticum per συµπαθειαν sic, ‘a<strong>de</strong>s arma virumque cano’ qua<br />

vicissitudine et ex trochaicis iambica et ex anapaesticis <strong>da</strong>ctylica metras inter<br />

se formantur. Per αυτιπαθειαν vero, id est per contrarium adfectum seu<br />

passionem, iunguntur ea quorum inter se contrariae species haud facile<br />

copulantur. Est enim coniunctionis genus nimis scabrum atque asperum, ut<br />

sunt ionica αποµειξονοζ cum iambicis vel <strong>da</strong>ctylica cum trochaicis semper<br />

dissententia inter se atque abhorrentia,<br />

Uma vez <strong>de</strong>monstrados esses exemplos, procuraremos, pois, na lição<br />

seguinte, o quanto pu<strong>de</strong>rmos, produzir imediatamente todos (os metros) <strong>de</strong>sse<br />

tipo, seja os mais simples seja os compostos, que ou os Gregos ou os Latinos<br />

receberam pelo uso, ain<strong>da</strong> mais se ensinarmos que o início <strong>de</strong>ve ser<br />

empreendido a partir <strong>de</strong>les [falaremos, então, sobre os metros que se uniram<br />

por simpatia e por antipatia 13 ]<br />

11<br />

arboribusque comae (Hor. Carmina, IV, 7, 2), “e as copas nas árvores”; ut prisca gens mortalium (Hor.<br />

Epodos, II , 2), como a antiga raça dos mortais.<br />

12 (Hor. Epodos, XI , 2), “escrever versinhos atingido por um doloroso amor”.<br />

13<br />

Os termos simpatia e antipatia, em domínio métrico, <strong>de</strong>notam uma relação rítmica respectivamente concor<strong>de</strong><br />

ou oposta entre as partes <strong>de</strong> um verso.<br />

286


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

Falaremos agora dos (metros) mistos e dos tipos <strong>de</strong> metros associados<br />

em mútua conexão, cuja disposição se distribui <strong>de</strong> duas maneiras. Uns, pois,<br />

se acoplam entre si <strong>de</strong> acordo com uma relação <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação e como que<br />

aparenta<strong>da</strong>; já outros, <strong>de</strong> acordo com uma relação contrária, a partir <strong>de</strong><br />

(metros) <strong>de</strong>ssemelhantes, o que os gregos chamam <strong>de</strong> (relação) por simpatia e<br />

por antipatia.<br />

Logo, os que existirão por simpatia, isto é, por uma disposição <strong>de</strong><br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>, são as bases iâmbicas em que se mesclam entre si coriâmbicos<br />

com antipásticos (-uu-/u--u). De fato, to<strong>da</strong>s as vezes que se unem sobre<br />

qualquer se<strong>de</strong> [métrica], compreen<strong>da</strong>-se que esse metro aparece composto<br />

como que a partir <strong>de</strong> uma única e mesma espécie, e como que uniforme, o que<br />

os gregos chamavam “monói<strong>de</strong>s’. Do mesmo modo, as bases trocaicas (- u)<br />

associam-se às bases jônicas (uu--), pela mesma conformi<strong>da</strong><strong>de</strong>, enquanto as<br />

<strong>da</strong>s epíploces [combinações <strong>de</strong> várias espécies <strong>de</strong> metros] as quais chamamos<br />

enlace dos metros, diversificam-se entre si por mútua sucessão, ain<strong>da</strong> que, não<br />

somente o troqueu (- u) e sua disposição em tríbraco (uuu), mas também o<br />

espon<strong>de</strong>u (- -) com suas próprias <strong>de</strong>composições, isto é, o dátilo (- uu) e o<br />

anapesto (uu -), o admitam, embora sejam percebidos com metros<br />

homogêneos, quando houver essa associação a partir <strong>de</strong> pés semelhantes com<br />

aqueles com os quais existe familiari<strong>da</strong><strong>de</strong>. Paralelamente aos dátilos, suce<strong>de</strong>m<br />

os anapésticos, como em ārmă uĭrūmquĕ cănō [armas canto e o varão].<br />

Efetivamente com a adição <strong>de</strong> duas breves, como mostramos acima,<br />

produz-se um anapéstico por simpatia, <strong>de</strong>ssa forma: ădĕs ārmă uĭrūmquĕ<br />

cănō, “estás aqui, eu canto a arma e o varão”. Por meio <strong>de</strong>ssa alteração,<br />

formam-se, entre si, metros iâmbicos dos trocaicos, e metros <strong>da</strong>tílicos dos<br />

anapésticos. Por antipatia ain<strong>da</strong>, isto é, por uma inclinação ou paixão<br />

contrárias, juntam-se entre si aquelas espécies contrárias <strong>de</strong> metros [que] não<br />

se ligam muito facilmente. Há, ain<strong>da</strong>, uma espécie <strong>de</strong> ligação excessivamente<br />

mal poli<strong>da</strong> e dissonante, como são os [metros] jônicos APOMEIXONOS<br />

[combinados] com os iâmbicos ou os <strong>da</strong>tílicos com os trocaicos, sempre<br />

divergindo e se opondo entre si. (i<strong>de</strong>m, p. 102).<br />

A idéia <strong>da</strong> simpatia é muito produtiva na medi<strong>da</strong> em que explica as possíveis<br />

alternâncias entre espon<strong>de</strong>us, dátilos e troqueus <strong>de</strong>ntro do hexâmetro. Sabe-se que o<br />

hexâmetro <strong>da</strong>tílico é um metro <strong>de</strong> seis pés, sendo que os quatro primeiros pés po<strong>de</strong>m se<br />

constituir <strong>de</strong> dátilos e <strong>de</strong> espon<strong>de</strong>us, por equivalerem a uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> <strong>de</strong> quatro<br />

tempos. Porém, no quinto pé necessariamente há <strong>de</strong> se ter um dátilo e no sexto pé, verifica-se<br />

a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> um troqueu ou espon<strong>de</strong>u. Assim temos:<br />

- uu - uu - uu - uu - uu - u (hexêmetro <strong>de</strong> pés <strong>da</strong>tílicos)<br />

- - - - - - - - - uu - - (hexâmetro <strong>de</strong> pés espon<strong>da</strong>icos)<br />

Isso é um <strong>da</strong>do que po<strong>de</strong> ser facilmente encontrado numa gramática ou <strong>de</strong> num manual<br />

<strong>de</strong> métrica, entretanto, a interessante leitura <strong>de</strong> Vitorino explica essa relação que a gramática<br />

em geral traz como arbitrária, pois essa idéia <strong>da</strong>s afini<strong>da</strong><strong>de</strong>s métricas nos faz ver além do que<br />

os manuais mo<strong>de</strong>rnos apresentam.<br />

287


O autor reflete sobre essa relação entre a equivalência <strong>da</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> duração <strong>da</strong>s<br />

sílabas através <strong>de</strong> uma visão dinâmica dos metros, por exemplo, quando ele insere a<strong>de</strong>s antes<br />

do primeiro verso <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> compondo um outro metro. Esse expediente <strong>de</strong>via ser usado no<br />

ensino <strong>de</strong> métrica <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, ou seja, po<strong>de</strong>-se a partir <strong>de</strong> um texto escrito em um<br />

<strong>de</strong>terminado metro <strong>de</strong>rivá-lo em outros metros, ou tomar um pé ou um fragmento <strong>de</strong> pé <strong>de</strong> um<br />

poema e lançá-lo em outro. Compara-se, para exemplificar, o que ocorre neste dístico <strong>de</strong><br />

Ovídio em que arma uirumque, que na Enei<strong>da</strong>, <strong>de</strong> Virgílio está situado nos dois primeiros pés<br />

do hexâmetro, é colocado no segundo hemistíquio <strong>de</strong> um pentâmentro:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

et tamen ille tuae felix Aeneidos auctor<br />

cōntŭlĭt/ īn Tўrĭ/ōs/ ārmă vĭ/rūmquĕ tŏros,<br />

e contudo aquele autor feliz <strong>da</strong> tua Enei<strong>da</strong><br />

juntou as armas e o varão aos leitos tírios.<br />

(OVIDIUS, Tristia, II, 1, 533-534)<br />

O gracejo nestes versos <strong>de</strong> Ovídio causa um efeito belíssimo, pois se visualiza a<br />

i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> as armas e o varão (arma uirumque) juntos aos leitos tírios (in Tyrios toros)<br />

também na posição do primeiro sintagma <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ste, compondo, <strong>de</strong> modo expressivo, o<br />

mesmo pé <strong>da</strong>tílico “rūmquĕ tŏ”.<br />

Esse mesmo arma uirumque, <strong>de</strong> Virgílio, aparece também no segundo hemistíquio <strong>de</strong><br />

um epigrama <strong>de</strong> Marcial, sendo que aqui, o verso apresenta o fragmento vīrŭm configurando<br />

um troqueu.<br />

Prōtĭnŭs/ Ītălĭ/ām cōn/cēpĭt ĕt/ ārmă vĭ/rūmquĕ,<br />

Em segui<strong>da</strong> ele criou a Itália, as armas e o varão<br />

(MARTIALIS, Epigrammata, VIII, 55, 19)<br />

A escansão dos versos latinos, para os estudiosos <strong>da</strong> área torna-se <strong>de</strong> fun<strong>da</strong>mental<br />

importância não somente por causa <strong>da</strong> prosódia, apesar <strong>de</strong> esta ser essencial à plena apreensão<br />

do todo significado expresso no poema, mas também, para a o entendimento do próprio<br />

conteúdo do texto, já que, na língua latina, um mesmo morfema po<strong>de</strong> marcar várias funções<br />

sintáticas, e uma possível i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>sses casos, uma vez que o contexto não possibilite<br />

uma concreta interpretação, há <strong>de</strong> ser consegui<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> escansão dos versos para uma<br />

tradução correta.<br />

É <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância, então, o trabalho que ora se erige já que se quer propiciar a<br />

divulgação <strong>da</strong>s concepções e <strong>de</strong>scrições métricas dos próprios manuais legados <strong>da</strong><br />

Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, como este <strong>de</strong> Mário Vitorino, o que propicia o conhecimento <strong>de</strong> metros<br />

288


aparentemente irregulares, mas que, em ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, são também expressões culturais observa<strong>da</strong>s<br />

nos maiores poetas latinos, como por exemplo, o metro, hen<strong>de</strong>cassílabo falécio, formado pela<br />

combinação <strong>de</strong> um espon<strong>de</strong>u, um dátilo seguido <strong>de</strong> três troqueus, utilizado por Catulo, no<br />

poema á Lésbia.<br />

Referências Bibliográficas<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

Vīuā/mūs, mĕă/ Lēsbĭ/ā, atque_ă/mēmŭs,<br />

Rūmō/rēsquĕ sĕ/nūm sĕ/uērĭ/ōrŭm<br />

Ōmnēs/ūnĭŭs / āestĭ/mēmŭs/ āssĭs. 14<br />

(CATULLUS, Carmina, V, 1-3)<br />

CART, A. e outros. Gramática latina. Trad. Maria Evangelina V. N. Soeiro. São Paulo:<br />

TAQ/EDUSP, 1986.<br />

CATULLE. Poésies. Texte établi et traduit par Georges Lafaye. Paris: Les Belles Lettres, 1974.<br />

CRUSIUS, F. Iniciación en la métrica latina. Versión y a<strong>da</strong>ptación <strong>de</strong> Á. Ro<strong>da</strong>. Prólogo <strong>de</strong><br />

J. Echave-Sustaeta. Barcelona: Bosch, 1951.<br />

FARIA, E. Gramática superior <strong>da</strong> língua latina. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Acadêmica, 1958.<br />

GLARE, P. G. W. (Ed./Org.). Oxford latin dictionary. 4. reimpr. Oxford: Claredon Press,<br />

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GUERREIRA, A. R. “Retórica e Literatura Latina”. In: MOROCHO GAYO, G. (Org.).<br />

Estudios <strong>de</strong> drama e retórica en la Grecia y Roma. León: Universi<strong>da</strong>d <strong>de</strong> León,<br />

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KEIL, H. (KEILII, H). Grammatici Latini: Scriptores Artis Metricae. Leipzig: Georg Olms<br />

Verlagsbuchhandlung, 1961, v. 6.<br />

MARTIALIS. Epigrammaton Libri. Ed. W. Heraeus; J. Borovskij. Leipzig: Teubner, 1976-<br />

1982.<br />

NOUGARET, L. Traité <strong>de</strong> métrique latine classique. Paris: Klincksieck, 1948.<br />

14 “Vivamos, minha Lésbia, para amar,/ que a zanga <strong>de</strong>sses velhos rabugentos/ não vale mais do que um tostão<br />

furado.” (Trad. Prof. Dr. Márcio Thamos. Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciencias e Letras – Departamento <strong>de</strong> Linguística-<br />

UNESP- Araraquara).<br />

289


OVIDIUS, Naso Publius. Tristia. Ed. G. Luck, 1967, v. 1.<br />

SARAIVA, F. R. S. Novíssimo dicionário latino-português. 10. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Garnier,<br />

1993.<br />

TEIXEIRA, F. D. Os Fragmenta <strong>de</strong> Césio Basso: leitura crítica e tradução anota<strong>da</strong>.<br />

Araraquara: Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e Letras – UNESP- FCLAr, 2005 (dissertação <strong>de</strong><br />

mestrado – programa <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Literários).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 282-290, 2008<br />

290


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008<br />

Defesa <strong>de</strong> Helena, <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Fedra<br />

Prof. Dr. Fernando Crespim Zorrer <strong>da</strong> SILVA<br />

UFRGS<br />

zorrer@uol.com.br<br />

Na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica, há dois textos que se <strong>de</strong>dicam a refletir sobre uma mulher<br />

que ama ou que se apaixona por um homem, e que se arrisca por ele; <strong>de</strong> certo modo, aqui, a<br />

mulher comete uma transgressão. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, está-se referindo especificamente à obra do<br />

filósofo sofista Górgias (1993), intitula<strong>da</strong> Elogio <strong>de</strong> Helena, e à peça Hipólito 1 , do<br />

dramaturgo Eurípi<strong>de</strong>s (1995c). Neste caso, preten<strong>de</strong>-se discutir os motivos pelos quais Helena<br />

acompanhou Páris a Tróia; no outro, Fedra, a madrasta que se apaixona pelo enteado,<br />

Hipólito, filho <strong>de</strong> Teseu. Po<strong>de</strong>r-se-á, inclusive, averiguar os pontos <strong>de</strong> contato que ambos os<br />

textos, <strong>de</strong> antemão, já <strong>de</strong>monstram possuir. É preciso que se ressalte que Górgias segue a<br />

versão tradicional do mito <strong>de</strong> Helena, diferentemente <strong>de</strong> outros escritores que afirmaram que<br />

essa heroína não teria ido até Tróia (GAGARIN, 2002, p. 17). Para empreen<strong>de</strong>r tal tarefa, é<br />

necessário ain<strong>da</strong> apresentar ain<strong>da</strong> algumas informações relevantes.<br />

Ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>ssas obras pertence a um gênero distinto do conhecimento humano bem<br />

como possui particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s intrínsecas. Em ambos os textos, o mito é objeto <strong>de</strong> reflexão. Na<br />

tragédia <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s, é apresentado o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>da</strong> paixão <strong>de</strong> Fedra até o seu término.<br />

No caso do texto <strong>de</strong> Górgias, há uma reflexão <strong>de</strong> um ato já consumado; além disso, o filósofo<br />

trata <strong>da</strong>s possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s que levaram a personagem Helena a sair <strong>de</strong> sua casa e ir com Páris a<br />

Tróia. Helena concretiza o seu amor ao ter acompanhado Páris até Tróia como é observado,<br />

por exemplo, na Ilía<strong>da</strong>, ao passo que Fedra não se aproxima do ente amado, nem dirige-lhe<br />

uma palavra ou toca-lhe o corpo. Helena não morre, pelo menos, é o que a tradição transmitiu,<br />

conforme os relatos do próprio Eurípi<strong>de</strong>s nas peças Helena 2 , Troianas 3 , Andrômaca e<br />

Orestes; em <strong>Home</strong>ro, tal idéia é encontra<strong>da</strong> nos poemas épicos Ilía<strong>da</strong> e Odisséia. No caso <strong>de</strong><br />

Fedra, essa personagem se suici<strong>da</strong> com uma cor<strong>da</strong> no pescoço, ao acreditar que não tinha<br />

meios <strong>de</strong> se salvar, uma vez que Hipólito fora informado do <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong> rainha através <strong>da</strong> aia.<br />

1 To<strong>da</strong>s as traduções <strong>da</strong> tragédia Hipólito são <strong>de</strong> minha autoria.<br />

2 Também po<strong>de</strong> ser aumenta<strong>da</strong> essa lista conforme Hécuba, ver os versos 265-266; 943-952. No drama satírico<br />

Ciclope, versos 179-187, Helena é critica<strong>da</strong>, pois é aquela que aprecia a troca <strong>de</strong> esposo; Polifemo também a<br />

julga malvadíssima, v. 281-282.<br />

3 Há um <strong>de</strong>bate entre Hécuba e Helena na qual essa tenta se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>da</strong>s acusações <strong>de</strong> ser um indivíduo<br />

mesquinho. Helena teria chegado a Tróia não porque amava Páris, mas sim pelo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> obter riquezas,<br />

conforme v. 990 ss.


Neste contexto, Helena é acusa<strong>da</strong> <strong>de</strong> ser o motivo <strong>de</strong> uma guerra que matou muitos<br />

homens. É importante recor<strong>da</strong>r nesse momento a imagem apresenta<strong>da</strong> por Aristófanes em<br />

relação à Fedra e à Estenobéia, pois essas heroínas foram critica<strong>da</strong>s na comédia As rãs,<br />

conforme os versos 1043-1044. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, a tragédia Hipólito constitui em uma reescrita <strong>de</strong><br />

uma primeira abor<strong>da</strong>gem do mito por parte <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s. O motivo foi <strong>de</strong>vido ao modo pelo<br />

qual o dramaturgo a compôs, pois o público a repudiou. Talvez uma refina<strong>da</strong> referência<br />

<strong>de</strong>sses fatos possa ser observa<strong>da</strong> no verso 407, já que Fedra reconhecia que o seu ato, isto é, o<br />

<strong>de</strong>sejo adúltero seria objeto <strong>de</strong> ódio por todos (KOVACS, 1980, p.291). Além disso, as<br />

heroínas, Fedra e Helena, igualmente são casa<strong>da</strong>s com reis famosos e são figuras<br />

emblemáticas do mundo grego. Quanto aos amantes, ain<strong>da</strong> que Páris, filho <strong>de</strong> Príamo, seja um<br />

hóspe<strong>de</strong> quando visitava o palácio <strong>de</strong> Menelau, constitui-se aquele em um homem proibido,<br />

um ser que, <strong>de</strong> modo algum, Helena po<strong>de</strong>ria tê-lo tocado. Já Hipólito é o enteado <strong>de</strong> Fedra,<br />

um homem que, a rigor, não po<strong>de</strong> ser alvo amoroso pela madrasta. Em ambos os casos, os<br />

homens pa<strong>de</strong>cem por esse envolvimento amoroso. Páris não tem a mesma sorte que a sua<br />

parceira, porque ele perece na guerra <strong>de</strong> Tróia. Já Hipólito morre, <strong>de</strong> maneira ain<strong>da</strong> mais<br />

dramática, em um aci<strong>de</strong>nte no qual é perseguido por um touro e o seu corpo é lançado contra<br />

as rochas junto ao mar.<br />

Ca<strong>da</strong> um dos escritores, Eurípi<strong>de</strong>s e Górgias, não consi<strong>de</strong>ra a paixão como algo que<br />

<strong>de</strong>va ser simplesmente evitado, criticado, como é sugerido posteriormente, por exemplo, por<br />

Sêneca que censurou a conduta <strong>da</strong> rainha na sua peça Fedra. Górgias assume explicitamente,<br />

no início <strong>de</strong> seu texto, que refutará aqueles que <strong>de</strong>trataram Helena, preten<strong>de</strong> libertá-la <strong>da</strong> má<br />

reputação que lhe foi outorga<strong>da</strong> (§ 2). No caso <strong>de</strong> Hipólito, a questão é mais complexa,<br />

porque não há uma afirmação taxativa a respeito do ato amoroso <strong>da</strong> rainha, mas sim é exposta<br />

a situação <strong>de</strong>ssa personagem, <strong>da</strong> sua reali<strong>da</strong><strong>de</strong> psíquica, <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong><strong>de</strong> do ato <strong>de</strong> uma mulher<br />

que ousa amar o enteado. No caso <strong>da</strong> esposa <strong>de</strong> Teseu, tudo não passa <strong>da</strong>s especulações <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>sejo que não é consumado, <strong>de</strong> um adultério que não ocorre efetivamente, que unicamente<br />

permanece no plano dos pensamentos e <strong>de</strong> um mal-entendido perpetuado por uma serva, tudo<br />

isso pertence ao universo do proibido, isto é, a personagem não po<strong>de</strong>ria pensar em qualquer<br />

outro homem. Eurípi<strong>de</strong>s consegue, pois, ressaltar as características <strong>da</strong> culpa feminina, não<br />

envolvendo um casal <strong>de</strong> amantes, no sentido romântico do termo, contudo acentua que o<br />

intento amoroso <strong>da</strong> rainha carrega todos os constrangimentos e punições psíquicas bem como,<br />

uma vez que está em um estado psíquico periclitante (não come há três dias e, <strong>de</strong> um<br />

momento para outro, tem <strong>de</strong>lírios), isso tudo contribui para que realize escolhas erra<strong>da</strong>s em<br />

momentos <strong>de</strong>cisivos e que possa contribuir na morte <strong>de</strong> um indivíduo.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008<br />

292


Agora no plano <strong>da</strong> beleza física, quando o assunto é a <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong>s duas heroínas,<br />

Górgias enfatiza que a <strong>de</strong> Helena é divina e, por causa <strong>de</strong>sse aspecto, atraiu muitos homens<br />

que tinham genealogia, dinheiro, sabedoria e coragem (§ 4). Na sua argumentação, o filósofo<br />

aponta que Helena utilizou o seu corpo e não o escon<strong>de</strong>u. Esse pensador salienta que não<br />

tratará dos motivos pelos quais alguém <strong>de</strong>cidiu saciar o seu <strong>de</strong>sejo amoroso, raptando-a e<br />

carregando-a para Tróia, além <strong>de</strong> explicar as causas pelas quais a i<strong>da</strong> <strong>de</strong> Helena a Tróia<br />

consistiu em algo natural (§ 5). Agora sobre o corpo <strong>de</strong> Fedra, o texto trágico não fornece<br />

mais <strong>de</strong>talhes a não ser, no prólogo, em que o dramaturgo valoriza a juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Fedra, ao<br />

apontar que ela se apaixona pelo enteado (LATTIMORE, 1962, p. 7). Neste sentido, há<br />

poucas referências <strong>de</strong> Fedra a Hipólito, com exceção <strong>de</strong> uma na qual <strong>de</strong>sconfia <strong>de</strong> sua própria<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, “Quem quer que este seja, o filho <strong>da</strong> amazona ...”, “o3stij poq’ ou[to/j e0sq’, o9<br />

th=j 0Amazo/noj ...”. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, essa tragédia trata mais do sofrimento e <strong>da</strong>s especulações <strong>da</strong><br />

paixão amorosa e não <strong>de</strong>screve o objeto amado; <strong>de</strong>ssa forma, não há uma <strong>de</strong>scrição concreta<br />

dos seres que estão envolvidos no intento amoroso.<br />

Na seqüência do texto do filósofo, esse apresenta os motivos pelos quais sugere que a<br />

i<strong>da</strong> <strong>de</strong> Helena a Tróia po<strong>de</strong> ter ocorrido pelos ditames do Destino (Tuxh/), por resoluções dos<br />

<strong>de</strong>uses, por <strong>de</strong>cretos <strong>da</strong> Necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> ('Ana/gkhj), por ter sido leva<strong>da</strong> à força ou por ter sido<br />

seduzi<strong>da</strong> pelo discurso ou por Eros (§ 6), explicando, na seqüência, ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>sses aspectos.<br />

Realmente esse texto <strong>de</strong> Górgias é o fun<strong>da</strong>dor <strong>de</strong> muitas discussões que giravam em torno <strong>da</strong><br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> e do <strong>de</strong>terminismo (KENNY, 2004, p. 31). Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, essas seis possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s,<br />

que são menciona<strong>da</strong>s pelo filósofo, po<strong>de</strong>m ser dividi<strong>da</strong>s em dois grupos: o primeiro, abarca o<br />

agenciamento dos <strong>de</strong>uses ou <strong>de</strong> uma enti<strong>da</strong><strong>de</strong> acima <strong>de</strong>les nas ações dos homens, como é o<br />

caso <strong>da</strong>s primeiras três possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e mais a referência, em particular, ao <strong>de</strong>us Eros; o<br />

segundo, simplesmente envolve o ato individual <strong>de</strong> um mortal sem que esse esteja<br />

acompanhado <strong>de</strong> um <strong>de</strong>us, como é o caso do discurso e <strong>da</strong> força. Esse é o esquema que<br />

explicaria as ações nas quais Helena é objeto <strong>de</strong> investigação a respeito do seu modo <strong>de</strong> agir.<br />

No texto <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s, algumas personagens procuram <strong>da</strong>r esclarecimentos sobre o<br />

motivo <strong>de</strong> os mortais agirem <strong>de</strong> um <strong>de</strong>terminado modo ou <strong>de</strong> outro. É significativo o<br />

argumento <strong>da</strong> nutriz <strong>de</strong> Fedra que tenta convencer a sua senhora para não resistir ao ímpeto e<br />

à força <strong>de</strong> Afrodite, visto que a rainha está amando <strong>de</strong>vido à interferência <strong>de</strong>ssa divin<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Além disso, a serva emprega uma questão retórica ao in<strong>da</strong>gar se Fedra não estaria cometendo<br />

hybris em querer ser mais forte que os <strong>de</strong>uses, v. 473-475. Nesse sentido, observa-se o quanto<br />

ela é pretensiosa a respeito dos <strong>de</strong>sígnios dos imortais; em contraparti<strong>da</strong>, a esposa <strong>de</strong> Teseu<br />

<strong>de</strong>veria cometer o adultério. É importante ressaltar que, no prólogo <strong>de</strong>ssa tragédia, o servo <strong>de</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008<br />

293


Hipólito <strong>de</strong>clara a respeito <strong>de</strong> Afrodite que “É preciso que os <strong>de</strong>uses sejam mais sábios que os<br />

mortais”, “sofw/terouj ga\r xrh\ brotw=n ei]nai qeou/j”, v. 120; com efeito, há a aceitação<br />

dos atos dos <strong>de</strong>uses como melhores e como mais a<strong>de</strong>quados que os dos mortais e ain<strong>da</strong> mais<br />

se essa <strong>de</strong>claração for compara<strong>da</strong> com o texto <strong>de</strong> Górgias que igualmente salienta: “A<br />

divin<strong>da</strong><strong>de</strong> é mais po<strong>de</strong>rosa que o homem, tanto na força como na sabedoria e em tudo o<br />

mais”, “qeo\j d’ a0nqrw/pou krei=sson kai\ bi/ai kai\ sofi/ai kai\ toi=j a1lloij”, (§ 6).<br />

Uma <strong>da</strong>s conclusões finais do texto <strong>de</strong> Górgias, que, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, já é menciona<strong>da</strong> no<br />

início, e que o filósofo repete ao longo <strong>de</strong> suas explicações, é que não há motivos para se<br />

acusar Helena. Se fosse transposta a argumentação que o filósofo propôs para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a<br />

esposa <strong>de</strong> Menelau, para a tragédia <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s, também se po<strong>de</strong>ria assinalar que Fedra não<br />

teve culpa em <strong>de</strong>sejar Hipólito, ain<strong>da</strong> mais pelo fato <strong>de</strong> que, no prólogo, Afrodite assume<br />

como sendo a responsável pela paixão <strong>de</strong> Fedra, quando proclama “Fedra, viu-o e ficou<br />

possuí<strong>da</strong> em seu coração, / pelos meus <strong>de</strong>sígnios, por uma terrível paixão”, “i0dou=sa Fai/dra<br />

kardi/an kate/sxeto / e1rwti <strong>de</strong>inw=i toi=j e0moi=j bouleu/masin”, v. 28-29. Tal idéia po<strong>de</strong> ser<br />

ain<strong>da</strong> reforça<strong>da</strong> quando Hipólito sugere que Cípris interfere no <strong>de</strong>sejo <strong>da</strong>s mulheres, ao acusá-<br />

la que “A vilania, Cípris produz mais nas sábias”, “to\ ga\r kakou=rgon ma=llon e0nti/ktei<br />

Ku/prij / e0n tai=j sofai=sin”, v. 642-643. Nesse caso, to<strong>da</strong>s essas especulações partem do<br />

seguinte pressuposto: que a <strong>de</strong>usa Afrodite é responsável pelos atos que na peça se<br />

<strong>de</strong>senvolvem. Tanto é ver<strong>da</strong><strong>de</strong> que, no êxodo <strong>da</strong> tragédia, a <strong>de</strong>usa Ártemis comenta que, em<br />

relação ao ato <strong>de</strong> Teseu que contribuiu na morte <strong>de</strong> seu próprio filho, Hipólito, “Sem querer o<br />

mataste, e aos homens / é natural que errem se os <strong>de</strong>uses assim o or<strong>de</strong>nam”, “a1kwn ga\r<br />

w1lesa/j nin, a0nqrw/poisi <strong>de</strong>\ / qew=n dido/ntwn ei0ko\j e0camarta/nein”, v. 1433-1434. Na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que está aqui mais uma vez em questão é o po<strong>de</strong>r divino que intervém no agir dos<br />

mortais; também é importante esclarecer que essas afirmações aqui realiza<strong>da</strong>s apóiam a<br />

perspectiva teórica que consi<strong>de</strong>ra as divin<strong>da</strong><strong>de</strong>s não como forças psíquicas, conforme outros<br />

helenistas <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m em suas teorias.<br />

Uma vez que já foi abor<strong>da</strong><strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> intervenção divina no texto <strong>de</strong><br />

Górgias, são examinados, a seguir, os agenciamentos humanos. Nesse caso, o filósofo sofista<br />

sugere a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> do ato <strong>de</strong> Helena em seguir Páris ter sido cometido pela intervenção<br />

dos seguintes fatores: a força, o discurso e o amor; além disso, no final <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um dos<br />

raciocínios e <strong>da</strong>s especulações apresenta<strong>da</strong>s, Górgias <strong>de</strong>scarta a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> que Helena<br />

tenha alguma culpa.<br />

Como foi já afirmado anteriormente, Helena acompanhou Páris, porém Fedra não<br />

realizou qualquer tipo <strong>de</strong> aproximação. No caso <strong>de</strong> Helena, Górgias <strong>de</strong>clara que se foi um<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008<br />

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árbaro que a raptou pela força (bi/ai) — esse é o primeiro motivo, — a sair <strong>de</strong> sua casa,<br />

ain<strong>da</strong> assim, po<strong>de</strong>-se retirar a culpa <strong>de</strong> Helena (§ 7). A aia <strong>de</strong> Fedra igualmente comenta que<br />

os escritos dos antigos mencionam que Zeus <strong>de</strong>sejou Sêmele, e Aurora raptou Céfalos, v. 453-<br />

456. Neste caso, dois mortais sofrem algum tipo <strong>de</strong> violência por parte dos <strong>de</strong>uses,<br />

ressaltando que os primeiros <strong>de</strong>vem obe<strong>de</strong>cer aos imortais e que a rainha necessita fazer<br />

aquilo que a divin<strong>da</strong><strong>de</strong> man<strong>da</strong>. O coro <strong>de</strong>ssa peça, formado pelas mulheres <strong>de</strong> Trezena,<br />

ressalta o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Afrodite, v. 530-532, que é aju<strong>da</strong>do por Eros, além <strong>de</strong> mencionar o mito <strong>da</strong><br />

poldra Ecália (Íole) que foi <strong>da</strong><strong>da</strong> por Cípris a Héracles, quando Íole não aceitava esse tipo <strong>de</strong><br />

relação amorosa, v. 545-554.<br />

Além disso, observa-se um caso interessante: po<strong>de</strong>-se sugerir como um ato <strong>de</strong><br />

violência, a seguinte circunstância, e consi<strong>de</strong>rá-la do ponto <strong>de</strong> vista contrário. Neste sentido,<br />

Fedra persua<strong>de</strong> Teseu, seu esposo, que Hipólito havia a ultrajado sexualmente, empregando<br />

<strong>da</strong> força (bi/ai), conforme o verso 668. Além disso, Górgias salienta que se <strong>de</strong>ve ter pie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>quela que sofreu <strong>da</strong> violência, isto é, <strong>de</strong> Helena; Teseu se compa<strong>de</strong>ce do sofrimento <strong>de</strong> sua<br />

esposa, acredita em tudo que essa relatou, sofre pela dor <strong>da</strong> esposa, embora não tenha<br />

<strong>de</strong>rramado uma única lágrima a respeito disso.<br />

O segundo motivo arrolado por Górgias consiste no emprego do discurso cujo tópico é<br />

o mais extenso <strong>de</strong> todos (§ 8-14). Neste sentido, o discurso age como um senhor soberano,<br />

que po<strong>de</strong> afastar o medo, <strong>de</strong>ter a dor, produzir a alegria e fortificar a compaixão (§ 8). Na<br />

ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, essa capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> do discurso <strong>de</strong> permitir que as pessoas se movam por sua<br />

interferência sobre uma <strong>de</strong>termina<strong>da</strong> audiência faz parte dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> Retórica<br />

(KASTELY, 2004, p. 222). Deste modo, se Páris empregou o discurso e persuadiu Helena, <strong>de</strong><br />

modo algum ela teria culpa, pois esse po<strong>de</strong>r é invencível. Trata-se, <strong>de</strong>ste modo, <strong>da</strong> supremacia<br />

do rigor <strong>da</strong> Retórica, pois não importa os méritos dos argumentos, visto que se registra, neste<br />

contexto específico, que o pathos é superior ao logos (Id. Ib.).<br />

Górgias também afirma que há uma relação idêntica entre a força <strong>da</strong> qual dispõe o<br />

discurso e disposição do espírito; <strong>da</strong> mesma maneira, isso ocorre entre o medicamento e a<br />

saú<strong>de</strong> do corpo (§ 14). Os medicamentos expulsam certos humores, e os discursos po<strong>de</strong>m<br />

inquietar, encantar, atemorizar, proporcionar a coragem, bem como enfeitiçar o espírito. Aqui,<br />

observa-se a presença <strong>da</strong>s drogas e do discurso que seduz; ain<strong>da</strong>, a idéia <strong>de</strong> se retirar os<br />

humores aproxima-se <strong>de</strong> Hipócrates. É importante referir, além disso, que Górgias<br />

acompanhava o seu irmão que era médico; <strong>de</strong> fato, o sofista compreendia o paralelismo que<br />

havia entre duas ciências, uma que se referia à alma e a outra ao corpo, isto é, reconhecia a<br />

comparação que havia entre a Medicina e a Retórica (ROMILLY, 1973, p. 162). Na tragédia<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008<br />

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<strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s, há um jogo <strong>de</strong> palavras que a serva emprega quando se refere aos filtros que<br />

po<strong>de</strong>riam suavizar a paixão <strong>da</strong> rainha. A aia, com tal atitu<strong>de</strong>, dispõe <strong>de</strong> um mecanismo a fim<br />

<strong>de</strong> ganhar tempo e <strong>de</strong> fazer o pedido amoroso diretamente a Hipólito, sem que Fedra<br />

<strong>de</strong>scobrisse a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira intenção <strong>da</strong> serva. Em compensação, a nutriz faz o oposto: os filtros<br />

que ela menciona representam as palavras com as quais tentará convencer Hipólito a amar<br />

Fedra. Além disso, a serva empregou a sua influência sobre a sua senhora, isto é, a nutriz<br />

comporta-se como mãe <strong>de</strong> Fedra.<br />

O último argumento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa sustentado pelo filósofo assinala que Eros foi o<br />

responsável por tudo (§ 15-19). Através <strong>de</strong>ssa concepção, a mente é afeta<strong>da</strong> em seu<br />

comportamento. Além disso, Górgias apresenta exemplos nos quais a visão contempla<br />

aspectos que geram temor no homem, como o <strong>de</strong>leite, no caso dos pintores que pintam o<br />

corpo com a perfeição <strong>da</strong>s obras que trazem o prazer aos sentidos. Górgias introduz tais<br />

explicações antes que passe à análise do comportamento <strong>de</strong> Helena quando in<strong>da</strong>ga o que há <strong>de</strong><br />

errado quando o olhar <strong>de</strong> Helena afeiçoou-se ao corpo <strong>de</strong> Alexandre e aquele conduziu à<br />

mente a luta <strong>de</strong> Eros (§ 19). Agora no prólogo <strong>da</strong> peça <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s, pronunciado por<br />

Afrodite, Fedra é menciona<strong>da</strong> como aquela que viu Hipólito e que se apaixonou por ele. Uma<br />

<strong>da</strong>s explicações para essa paixão que surge através do olhar <strong>de</strong> um objeto (sem admitir Cípris<br />

como a responsável direta <strong>da</strong> paixão <strong>da</strong> rainha) é que a natureza humana, a parte instintiva,<br />

fez com que a heroína agisse <strong>de</strong>ssa forma. Nesse caso, o início <strong>da</strong> paixão ocorre <strong>de</strong>vido à<br />

percepção do olhar que justamente é consi<strong>de</strong>rado o sentido mais importante, tanto em Platão 4<br />

como também em Aristóteles 5 . Já nos versos 525-526, o coro <strong>de</strong>clara, ao invocar Eros, que<br />

esse <strong>de</strong>stila o <strong>de</strong>sejo sobre os olhos; assim, mais uma vez, o texto dramático ressalta o po<strong>de</strong>r<br />

<strong>de</strong>sse sentido. Na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, po<strong>de</strong>m-se apontar, aqui, diversos exemplos na cultura grega que<br />

<strong>de</strong>monstram que o olhar é perigoso: Orfeu per<strong>de</strong> Eurídice; Narciso consegue per<strong>de</strong>r a si<br />

mesmo; Édipo torna-se cego para enxergar aquilo que antes não conseguia ver; Perseu<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se <strong>da</strong> Medusa que o obriga a olhar para ela (CHAUI, 1988, pp. 31-63, p. 33).<br />

O texto <strong>de</strong> Górgias finaliza com a explicação <strong>de</strong> sua escrita, pois o discurso serviu para<br />

livrar Helena <strong>da</strong> ignomínia, tentou acabar com a injustiça, com a falta <strong>de</strong> informação e com a<br />

ignorância que imperava a respeito <strong>de</strong> Helena. Também teve como objetivo elogiar a<br />

personagem cita<strong>da</strong> — ao final do texto, Górgias <strong>de</strong>clara que a sua escrita provocou-lhe<br />

4<br />

Conforme o diálogo Fedro, 250b, <strong>de</strong> Platão, a “visão”, “o1yij”, é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> a percepção mais agu<strong>da</strong> que há<br />

no corpo humano.<br />

5 Ver a Metafísica, 980 a, quando Aristóteles consi<strong>de</strong>ra a visão como o melhor dos sentidos.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008<br />

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divertimento. O drama <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s não termina do mesmo modo, porém na sua parte final<br />

são sugeri<strong>da</strong>s dúvi<strong>da</strong>s sobre os atos dos personagens. Ártemis questiona, inclusive, os atos <strong>de</strong><br />

Fedra, reforça o gran<strong>de</strong> erro <strong>de</strong> Teseu, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r Hipólito; entretanto, institui-lhe um<br />

ritual que talvez seja um ato irônico, quando as mulheres, antes <strong>de</strong> se casarem, cortariam os<br />

cabelos por esse personagem, mas isso é estranho, tendo em vista que Hipólito fez severas<br />

críticas às mulheres no <strong>de</strong>correr <strong>da</strong> tragédia.<br />

Uma <strong>da</strong>s perguntas que <strong>de</strong>ve ser realiza<strong>da</strong> agora é se Fedra e Helena são realmente<br />

passivas em seus atos. Depen<strong>de</strong>ndo <strong>da</strong> maneira e <strong>da</strong> orientação que for adota<strong>da</strong> na<br />

interpretação, isso po<strong>de</strong> ser algo afirmativo como negativo. Fedra não teve como suprimir a<br />

sua paixão; na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o texto revela que ela procurou diversos mecanismos como a razão, o<br />

silêncio e o suicídio a fim <strong>de</strong> eliminar o seu intento amoroso. Helena, <strong>de</strong> certo modo, é<br />

protegi<strong>da</strong> pelos <strong>de</strong>uses, como o próprio Górgias assinala no início do seu texto, ela é filha <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>uses (§ 3). É interessante também registrar que, na tragédia Orestes, do próprio Eurípi<strong>de</strong>s,<br />

no momento no qual Helena seria morta, essa personagem é salva por uma divin<strong>da</strong><strong>de</strong>, e essa<br />

façanha não ocorre em Hipólito. Deste modo, a esposa <strong>de</strong> Menelau po<strong>de</strong> passar praticamente<br />

<strong>de</strong>z anos ao lado <strong>de</strong> Páris e <strong>de</strong>pois, sem maiores problemas, retornar à sua casa com o seu<br />

marido.<br />

De certa forma, há um impasse que <strong>de</strong>ve ser resolvido. Como po<strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s acusar<br />

Helena, conforme ocorreu em outras peças, e não fazer o mesmo com Fedra <strong>de</strong> maneira tão<br />

evi<strong>de</strong>nte? Em ambos os textos aqui analisados, a situação <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s personagens é<br />

distinta. Górgias protege Helena, ao passo que Eurípi<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ixa explícitas as tensões interiores<br />

<strong>da</strong> rainha. Além disso, a intenção <strong>de</strong> Górgias é revela<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> sua obra, isto é,<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r Helena; no entanto, esse propósito não é similar ao <strong>de</strong> Eurípi<strong>de</strong>s que procura<br />

explorar uma situação dramática e encaminhá-la até os seus últimos limites.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 291-298, 2008<br />

298


Lingüística, Poética e Cultura: <strong>Estudos</strong> do Enunciado Latino (Virgílio, VI Bucólica)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 299-304, 2008<br />

Helena Maria Boschi <strong>da</strong> SILVA<br />

G – FCLAr – UNESP<br />

Prof. Dr. Márcio THAMOS<br />

FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

helenaboschi@gmail.com<br />

O trabalho apresentado faz parte do projeto “Lingüística, poética e cultura: estudos do<br />

enunciado latino”, que se vincula a um método que preten<strong>de</strong> renovar o ensino-aprendizagem<br />

<strong>da</strong> língua latina e <strong>da</strong> cultura que ela expressa, <strong>de</strong>senvolvido pelos professores <strong>da</strong> área <strong>de</strong><br />

Latim do Departamento <strong>de</strong> Lingüística <strong>da</strong> UNESP-FCL/CAr.<br />

Chamamos a esse método renovador por trazer consigo idéias até hoje praticamente<br />

ignora<strong>da</strong>s na área <strong>de</strong> estudos clássicos: o reconhecimento do latim como língua materna dos<br />

antigos romanos, língua essa que um dia foi fala<strong>da</strong> por real necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação,<br />

transmiti<strong>da</strong> <strong>de</strong> pais para filhos, e não simplesmente cultiva<strong>da</strong> como símbolo <strong>de</strong> erudição ou<br />

como um código <strong>de</strong> comunicação artificial.<br />

Este estudo está fun<strong>da</strong>mentado nas idéias do professor Alceu Dias Lima, cuja síntese<br />

se apresenta em sua obra Uma estranha língua? (1995). Procuramos também apoio teórico<br />

em estudiosos <strong>da</strong> língua como Saussure, para o entendimento do porquê do estudo sincrônico<br />

<strong>da</strong> língua (que, especialmente no caso <strong>da</strong>s línguas antigas é tradicionalmente diacrônico), dos<br />

conceitos <strong>de</strong> língua/fala (necessários para a compreensão <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do uso dos<br />

enunciados legítimos para se chegar ao sistema e do porquê <strong>de</strong> o latim ser uma língua em<br />

sincronia fecha<strong>da</strong>) e <strong>de</strong> valor (que nos permitiu compreen<strong>de</strong>r melhor a ocorrência dos casos<br />

latinos nos enunciados e a relação <strong>de</strong> oposição entre eles). Recorremos ain<strong>da</strong> a idéias <strong>de</strong><br />

Hjelmslev para melhor compreensão <strong>de</strong> conceitos fun<strong>da</strong>mentais como os <strong>de</strong> forma e<br />

substância, e a <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s reflexões <strong>de</strong> Benveniste, que afirmam a relação intrínseca entre<br />

linguagem e cultura.<br />

É justamente do fato <strong>de</strong> os romanos terem utilizado sua língua materna para registrar e<br />

perpetuar sua cultura que advém a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r o latim autêntico, escrito pelos<br />

falantes nativos. Como afirma Benveniste, “língua e socie<strong>da</strong><strong>de</strong> não se concebem uma sem a<br />

outra”, e “pela língua o homem assimila a cultura, a perpetua ou a transforma” (1976, p. 31-<br />

32). Sendo assim, torna-se imprescindível para um trabalho sério acerca <strong>da</strong> cultura dos antigos


omanos a utilização <strong>de</strong> textos legítimos <strong>da</strong> época, e portanto registros autênticos <strong>de</strong><br />

construções realmente utiliza<strong>da</strong>s pelos falantes.<br />

Aproveitando a afirmação <strong>de</strong> Benveniste, queremos chamar a atenção para outro ponto<br />

enfatizado durante todo o estudo: se a perpetuação <strong>da</strong> cultura latina ain<strong>da</strong> se dá através do<br />

latim dos registros textuais, seria a<strong>de</strong>quado chamá-lo “língua morta”? A esse respeito, po<strong>de</strong>mse<br />

resgatar conceitos saussurianos para <strong>de</strong>fini-la como uma língua em “sincronia fecha<strong>da</strong>”<br />

(LIMA & THAMOS, 2005), ou seja, uma língua que não é mais atualiza<strong>da</strong> pela fala, <strong>de</strong>vido ao<br />

fato <strong>de</strong> não existirem mais falantes naturais <strong>de</strong>sse idioma. Saussure afirma que<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 299-304, 2008<br />

para a massa falante, ele [o aspecto sincrônico] constitui a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira e única<br />

reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Também a constitui para o lingüista: se esse se coloca na<br />

perspectiva diacrônica, não é mais a língua o que percebe, mas uma série <strong>de</strong><br />

acontecimentos que a modificam. ([19--], p. 106)<br />

Sendo assim, chamar o latim <strong>de</strong> língua morta é, do ponto <strong>de</strong> vista lingüístico, um erro,<br />

uma vez que parte do ponto <strong>de</strong> vista diacrônico (uma língua que era fala<strong>da</strong>, e atualmente não é<br />

mais), e “um preconceito que cria dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>snecessárias à sua abor<strong>da</strong>gem, pela idéia <strong>de</strong><br />

‘estagnação fúnebre’ que carrega” (THAMOS, 1994, p.2).<br />

Além do estudo lingüístico necessário para o embasamento teórico, esse estudo visou<br />

à compreensão do idioma latino em seu componente léxico e morfossintático, ou seja, à<br />

aquisição <strong>da</strong> competência receptiva <strong>da</strong> língua, procurando, contudo, não negligenciar os<br />

efeitos <strong>da</strong> linguagem conotativa em seu papel fun<strong>da</strong>mental no engendramento do sentido<br />

poético.<br />

Escolhemos como texto a ser trabalhado a VI Bucólica, que se configura como<br />

representante legítimo <strong>da</strong> cultura romana por ter sido escrito por Virgílio, poeta do século I<br />

a.C. (consi<strong>de</strong>rado o século <strong>de</strong> ouro <strong>da</strong> literatura latina) que foi, antes <strong>de</strong> tudo, um falante<br />

natural do latim. As Bucólicas são compostas por <strong>de</strong>z poemas <strong>de</strong> diferentes temas, porém<br />

tendo em comum o ambiente pastoril.<br />

Após analisar os enunciados, procuramos enten<strong>de</strong>r certos recursos poéticos utilizados<br />

por Virgílio na construção dos versos e apreen<strong>de</strong>r-lhes o significado <strong>de</strong> acordo com as<br />

referências culturais inerentes ao texto. De forma concisa, procuramos estu<strong>da</strong>r o texto <strong>de</strong><br />

Virgílio em sua dimensão lingüística, poética e cultural, com a <strong>de</strong>vi<strong>da</strong> atenção que um texto<br />

literário reclama.<br />

Devido à dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> inicial encontra<strong>da</strong> no aprendizado do latim (por tratar-se <strong>de</strong> uma<br />

língua <strong>de</strong>clinatória cujos textos remanescentes são, em geral, <strong>de</strong> caráter literário, e portanto<br />

estilisticamente bastante trabalhados), fez-se necessária a adoção <strong>de</strong> um método a<strong>de</strong>quado<br />

300


para iniciar o estudo. A partir do córpus escolhido, selecionamos frases-exemplo para<br />

<strong>de</strong>monstrar um processo progressivo <strong>de</strong> tradução – dos elementos essenciais <strong>da</strong> oração aos<br />

termos acessórios – que possibilita uma compreensão controla<strong>da</strong> <strong>da</strong> frase, tanto sintática<br />

(ficando claros os casos utilizados e a estrutura) quanto semanticamente (pois apenas <strong>de</strong>pois<br />

<strong>de</strong> reconheci<strong>da</strong> a função <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> termo, torna-se possível a apreensão do sentido).<br />

Para exemplificar, reproduzimos aqui um pequeno trecho <strong>da</strong> VI Bucólica (hex. 27-28):<br />

Temos então:<br />

Verbo 2ª.p.sing.<br />

Pret. Imp. Subj.<br />

ui<strong>de</strong>res<br />

Subst.<br />

Masc.<br />

Acus. Pl.<br />

Subst. Fem.<br />

Acus. Pl.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 299-304, 2008<br />

Tum uero in numerum Faunosque ferasque ui<strong>de</strong>res<br />

lu<strong>de</strong>re, tum rigi<strong>da</strong>s motare cacumina quercus.<br />

Análise Morfossintática<br />

Verbo 2ª.p.sing.<br />

Pret. Imp. Subj.<br />

Faunosque ferasque ui<strong>de</strong>res<br />

Subst.<br />

Masc.<br />

Acus. Pl.<br />

Subst. Fem.<br />

Acus. Pl.<br />

Verbo<br />

2ª.p.sing.<br />

Pret. Imp.<br />

Subj.<br />

Verbo no<br />

infinitivo<br />

Faunosque ferasque ui<strong>de</strong>res lu<strong>de</strong>re<br />

Prep Acus.sg<br />

Subst.<br />

Masc.<br />

Acus. Pl.<br />

Subst.<br />

Fem.<br />

Acus. Pl.<br />

Verbo 2ª.p.sing.<br />

Pret. Imp. Subj.<br />

(VIRGILE, 1956, p. 53)<br />

Verbo no<br />

infinitivo<br />

in numerum Faunosque ferasque ui<strong>de</strong>res lu<strong>de</strong>re<br />

Adv. Adv. Prep Acus.sg<br />

Subst.<br />

Masc.<br />

Acus. pl.<br />

Subst.<br />

Fem.<br />

Acus.<br />

pl.<br />

Verbo<br />

2ª.p.sing.<br />

Pret.<br />

Imp.<br />

Subj.<br />

Verbo<br />

no inf.<br />

Termos <strong>da</strong><br />

oração<br />

VERBO <strong>da</strong><br />

Oração<br />

Principal<br />

+ Objeto<br />

direto <strong>da</strong><br />

oração<br />

principal<br />

+ Oração<br />

subordina<strong>da</strong><br />

infinitiva<br />

+ Locução<br />

adverbial <strong>de</strong><br />

modo <strong>da</strong><br />

Oração<br />

Principal<br />

+ Advérbios<br />

<strong>da</strong> oração<br />

principal<br />

301


Tum uero in numerum Faunosque ferasque ui<strong>de</strong>res lu<strong>de</strong>re<br />

Na segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> frase, seguindo o mesmo processo progressivo <strong>de</strong> tradução,<br />

obtemos:<br />

Verbo no infinitivo<br />

motare<br />

Verbo no<br />

infinitivo<br />

Subst. Fem.<br />

Acus. Pl.<br />

motare quercus<br />

Adj. / fem.<br />

Acus. Pl.<br />

Verbo no<br />

infinitivo<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 299-304, 2008<br />

Análise Morfossintática<br />

Subst. Fem.<br />

Acus. Pl.<br />

rigi<strong>da</strong>s motare quercus<br />

Adj. / fem.<br />

Acus. Pl.<br />

Verbo no<br />

infinitivo<br />

Subst. Neutro<br />

Acus. Pl.<br />

Subst. Fem.<br />

Acus. Pl.<br />

rigi<strong>da</strong>s motare cacumina quercus<br />

Adv<br />

Adj. / fem.<br />

Acus. Pl.<br />

Verbo no<br />

infinitivo<br />

Subst.<br />

Neutro<br />

Acus. Pl.<br />

Subst. Fem.<br />

Acus. Pl.<br />

Tum rigi<strong>da</strong>s motare cacumina quercus<br />

Termos <strong>da</strong><br />

oração<br />

VERBO <strong>da</strong><br />

Oração<br />

Subordina<strong>da</strong><br />

+ Sujeito <strong>da</strong><br />

Oração<br />

Subordina<strong>da</strong><br />

+ Adjunto<br />

adnominal<br />

do sujeito <strong>da</strong><br />

oração<br />

subordina<strong>da</strong><br />

+ O. D. <strong>da</strong><br />

Oração<br />

Subordina<strong>da</strong><br />

+ Advérbio<br />

<strong>de</strong> tempo <strong>da</strong><br />

Oração<br />

Subordina<strong>da</strong><br />

Po<strong>de</strong>mos observar nessa frase (que é, também, uma oração subordina<strong>da</strong> substantiva<br />

objetiva direta reduzi<strong>da</strong> <strong>de</strong> infinitivo, completando o verbo ui<strong>de</strong>res <strong>da</strong> oração principal) dois<br />

termos que, se tomados isola<strong>da</strong>mente, po<strong>de</strong>riam estar tanto no caso acusativo quanto no<br />

nominativo plural: cacumina (que, por ser neutro, manifesta-se com a mesma terminação em<br />

ambos os casos) e quercus (substantivo <strong>de</strong> tema em -u-, também com a mesma terminação em<br />

ambos os casos). O que <strong>de</strong>termina sintaticamente quercus como acusativo, e portanto<br />

302


complemento do verbo <strong>da</strong> oração principal, é o adjetivo que o acompanha, que por ser <strong>de</strong><br />

tema em -a- está inequivocamente no acusativo plural: rigi<strong>da</strong>s.<br />

Saussure afirma ser a língua “um sistema em que todos os termos são solidários e o<br />

valor <strong>de</strong> um resulta tão-somente <strong>da</strong> presença simultânea <strong>de</strong> outros” ([19--], p. 133);<br />

verificamos, assim, nesse exemplo o princípio saussuriano <strong>de</strong> valor: quercus está no acusativo<br />

pela relação que sua <strong>de</strong>sinência engendra no interior <strong>da</strong> oração, estabelecendo um contraste<br />

com os <strong>de</strong>mais nomes e com o verbo.<br />

Em nossa tradução <strong>de</strong> estudo, compreendi<strong>da</strong> a análise morfossintática, po<strong>de</strong>mos<br />

enten<strong>de</strong>r: “E naquele tempo ain<strong>da</strong> tu verias em gran<strong>de</strong> número tanto faunos quanto feras a<br />

brincar, então [verias] os rígidos carvalhos agitar as copas”.<br />

Percebemos aqui a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do conhecimento <strong>da</strong> cultura que perpassa a fala <strong>de</strong><br />

Virgílio. Sileno (um velho sátiro, sábio e beberrão, que criara Baco), amarrado por dois<br />

rapazes, está contando as origens do mundo e, assim, enca<strong>de</strong>ia em seu canto uma sucessão <strong>de</strong><br />

tradicionais mitos greco-romanos. Nesse trecho, cita os Faunos, criaturas mitológicas com<br />

chifres e corpo <strong>de</strong> bo<strong>de</strong> <strong>da</strong> cintura para baixo.<br />

O trabalho seguiu-se <strong>de</strong>ssa maneira em to<strong>da</strong> a extensão do poema, e teve como<br />

produto final uma “tradução <strong>de</strong> estudo” <strong>da</strong> VI Bucólica, que fornece o subsídio básico para a<br />

leitura do original (convertendo-se assim em material instrucional <strong>da</strong> área). Essa tradução<br />

procura reproduzir o conteúdo do poema, juntamente com as <strong>de</strong>vi<strong>da</strong>s notas <strong>de</strong> cultura.<br />

Para concluir, enfatizamos a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> do estudo dos textos latinos ser feito <strong>de</strong><br />

forma a possibilitar a compreensão <strong>da</strong>s dimensões lingüística, poética e cultural dos mesmos,<br />

conjuntamente com a consciência <strong>da</strong>s questões que envolvem o estudo <strong>de</strong> um texto antigo e a<br />

preparação teórica necessária para entendê-las. O estudo do latim precisa ser tranformado, no<br />

sentido <strong>de</strong> se <strong>de</strong>smistificar a idéia senso-comum <strong>de</strong> erudição tradicionalista, muitas vezes<br />

liga<strong>da</strong> à Igreja, e retornar à sua ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira origem: o registro <strong>da</strong> cultura autêntica <strong>da</strong><br />

civilização romana através <strong>de</strong> sua língua. Citando Benveniste:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 299-304, 2008<br />

a cultura <strong>de</strong>fine-se como um conjunto muito complexo <strong>de</strong> representações,<br />

organiza<strong>da</strong>s por um código <strong>de</strong> relações e <strong>de</strong> valores: tradições, religião, leis,<br />

política, ética, artes, tudo isso <strong>de</strong> que o homem on<strong>de</strong> quer que nasça, será<br />

impregnado no mais fundo <strong>da</strong> sua consciência, e que dirigirá o seu<br />

comportamento em to<strong>da</strong>s as formas <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que é senão um<br />

universo <strong>de</strong> símbolos integrados numa estrutura específica e que a<br />

linguagem manifesta e transmite? Pela língua o homem assimila a cultura, a<br />

perpetua ou a transforma. (1976, p. 31-32)<br />

303


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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 299-304, 2008<br />

304


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 305-314, 2008<br />

Plutarco e Heródoto: a permanência dos discursos<br />

Maria Apareci<strong>da</strong> <strong>de</strong> Oliveira SILVA<br />

Doutora em História Social – FFLCH – USP<br />

madsilva@usp.br<br />

A proposta interdisciplinar <strong>de</strong> nosso projeto pauta-se na necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> releitura <strong>da</strong>s<br />

fontes antigas, em especial sob a perspectiva brasileira, distancia<strong>da</strong> <strong>da</strong> tradição e <strong>de</strong> valores<br />

caros aos europeus, cuja tendência é <strong>de</strong> unificar o mundo romano. Assim, a cultura romana<br />

representaria um amálgama <strong>de</strong> tradições romanas e gregas, com características e feições <strong>da</strong><br />

Grécia clássica, teoria cujo autor mais expressivo é Paul Veyne. Por tal motivo, as análises<br />

dos especialistas revelam uma escrita que reflete sua <strong>de</strong>pendência <strong>da</strong> política e <strong>da</strong> economia<br />

romanas. Centrar a argumentação somente nas questões políticas e militares é colocar no<br />

ostracismo o significativo passado grego, do qual Plutarco se pronunciava her<strong>de</strong>iro, apagando<br />

a força e a resistência cultural <strong>de</strong> um povo <strong>de</strong>sagregado pela sua história <strong>de</strong> guerras intestinas<br />

e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s conquistas extraterritoriais.<br />

Como Bhabha nos esclarece, a construção <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> é submeti<strong>da</strong> a um processo <strong>de</strong><br />

alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>. E, refletindo sobre o processo colonialista europeu, o autor pon<strong>de</strong>ra: “não é o Eu<br />

colonialista nem o Outro colonizado, mas a perturbadora distância entre os dois que constitui<br />

a figura <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong> colonial” (BHABHA, 1998, p.76). Portanto, a questão <strong>da</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />

não é a afirmação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> pré-concebi<strong>da</strong>; trata-se <strong>da</strong> produção <strong>de</strong> uma imagem<br />

i<strong>de</strong>ntitária em concomitância com a transformação também do sujeito quando internaliza seu<br />

construto. Assim, percebemos que o controle cultural hegemônico do Império não é total; ao<br />

contrário <strong>de</strong> como nos acostumamos a ler em livros e artigos anteriores à déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> noventa,<br />

notamos que a cultura 1 dita dominante trava constantes embates com culturas residuais e<br />

emergentes.<br />

Conforme pu<strong>de</strong>mos apurar em nossa pesquisa <strong>de</strong> doutorado, o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio <strong>de</strong><br />

Plutarco é o <strong>de</strong> relacionar-se com o po<strong>de</strong>r político romano sem que sua i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> grega seja<br />

comprometi<strong>da</strong> pela sua <strong>de</strong>pendência política e econômica do Império. Na<strong>da</strong> mais significativo<br />

do que sua <strong>de</strong>claração, na biografia <strong>de</strong> Demóstenes 2 , <strong>de</strong> que não conhece profun<strong>da</strong>mente a<br />

1 Pautamos-nos no conceito <strong>de</strong> Clifford Geertz, antropólogo conhecido por seu estudo etnográfico sobre a cultura<br />

javanesa, no qual atribui ao sistema <strong>de</strong> significação, ou seja, ao conjunto <strong>de</strong> relações arbitrárias entre grupos<br />

variáveis a importância do símbolo na compreensão do conceito <strong>de</strong> cultura. Tal sistema é composto pela<br />

interação entre os indivíduos e <strong>de</strong>stes com a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, o que a condiciona ao contexto histórico <strong>da</strong><br />

organização social. Ver GEERTZ, 1997.<br />

2 Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Demóstenes, II, 2-3.


língua latina; assertiva na qual; a nosso ver, exibe a força <strong>de</strong> sua língua no Império. Plutarco<br />

mostra sua fórmula para a resistência grega no Império: ain<strong>da</strong> que os romanos e seu<br />

invencível exército cerceassem os territórios e a política interna dos gregos, revelam-se<br />

incapazes <strong>de</strong> controlar e até mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir a tradicional cultura grega.<br />

Contudo, é precipitado pensar os gregos como um grupo cultural diferenciado dos<br />

<strong>de</strong>mais, visto que outros povos também exerceram influência nas <strong>de</strong>cisões toma<strong>da</strong>s pelo<br />

imperador. Convém lembrar, como observou Nippel, que colocar os gregos em posição<br />

privilegia<strong>da</strong> no Império Romano, diferenciá-los dos orientais e dos selvagens, é reproduzir o<br />

pensamento dos historiadores do século XIX, período no qual os seguidores <strong>de</strong> Clio estavam<br />

voltados para a formação <strong>de</strong> uma “cultura científica nacional”, isto é, para o fortalecimento do<br />

neonato conceito <strong>de</strong> Estado-Nação, o que torna imperativo aos pesquisadores subseqüentes a<br />

realização <strong>de</strong> continua<strong>da</strong>s análises e <strong>de</strong> sistemáticas revisões <strong>de</strong>ssas teorias (NIPPEL, 1996,<br />

p.196).<br />

Em que pesem as acerta<strong>da</strong>s conclusões <strong>de</strong> Nippel, trabalhos recentes reforçam as<br />

assertivas <strong>de</strong> Barrow sobre a formação <strong>da</strong> civilização greco-romana, como o livro <strong>de</strong> Veyne,<br />

L’Empire Gréco-romain, em que o autor nos retrata a total integração cultural entre gregos e<br />

romanos, que culmina na constituição <strong>de</strong> uma nova civilização: a greco-romana (VEYNE,<br />

2005, p.5 e passim). Não se trata <strong>de</strong> uma conclusão <strong>de</strong>sconheci<strong>da</strong>, pois po<strong>de</strong>mos encontrá-la<br />

já em sua introdução redigi<strong>da</strong> para uma obra que obteve gran<strong>de</strong> circulação em nosso país: A<br />

História <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Priva<strong>da</strong>. Portanto, aquilo que o autor nos traz <strong>de</strong> novo em seu livro é o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa idéia ao longo <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> quinhentas páginas, pois, na introdução em<br />

epígrafe, Veyne nos fala <strong>de</strong> romanos que se tornaram gregos, ou melhor, <strong>de</strong> uma Roma<br />

transforma<strong>da</strong> em Grécia (1992, p.15).<br />

Há ain<strong>da</strong> outras interpretações no sentido <strong>de</strong> ser a escrita plutarquiana uma espécie <strong>de</strong><br />

arca em que o autor coloca todos os elementos caros à cultura grega na tentativa <strong>de</strong> salvá-los<br />

do dilúvio <strong>da</strong> romanização. Em um estudo sobre as biografias romanas <strong>de</strong> Plutarco, Scadigli<br />

também i<strong>de</strong>ntificou o uso plutarquiano do expediente <strong>da</strong> sobreposição temporal dos fatos para<br />

a exaltação dos valores gregos (1979, p.10 e passim). Tais <strong>de</strong>scompassos cronológicos<br />

também são interpretados por Frazier como artifícios para a difusão <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> história <strong>da</strong><br />

pólis gregas 3 , conclusão semelhante à que chegou Heftner em sua leitura <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Pompeu<br />

(1995, p. 8).<br />

3 Para a questão <strong>da</strong> pólis como centro <strong>da</strong> argumentação plutarquiana, ver FRAZIER., 1993, p.66. Outro estudo<br />

interessante sobre o conceito <strong>de</strong> pólis no pensamento plutarquiano é <strong>de</strong> HALFMANN, 2002.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 305-314, 2008<br />

306


O uso <strong>da</strong> cultura como instrumento <strong>de</strong> dominação é tema central do estudo <strong>de</strong> Preston<br />

sobre a política romana na Grécia Oriental 4 . A autora cita o exemplo do imperador Adriano,<br />

cujo incentivo às ativi<strong>da</strong><strong>de</strong>s culturais e às edificações na Grécia espelhariam o filo-helenismo<br />

tradicional <strong>da</strong> política romana. O interesse dos romanos em absorver a cultura grega ocorre,<br />

segundo Preston, em conformi<strong>da</strong><strong>de</strong> com sua política <strong>de</strong> apropriação <strong>de</strong> capital cultural (2001,<br />

p.86-89) 5 . Nessa política, Plutarco seria mais um membro <strong>da</strong> elite arrebanhado pelo Império<br />

que exerceria a dupla função <strong>de</strong> governante e <strong>de</strong> governado, com liber<strong>da</strong><strong>de</strong> para divulgar sua<br />

cultura literária. A autora <strong>de</strong>staca o movimento <strong>de</strong> preservação e <strong>de</strong> reafirmação <strong>da</strong> cultura<br />

grega em Plutarco nas Vi<strong>da</strong>s Paralelas, postulando pelo convívio <strong>de</strong> culturas distintas que se<br />

entrelaçam (PRESTON, 2001, 91-96).<br />

O verso <strong>de</strong> Horácio: “Graecia capta ferum uictorem cepit et artes intulit agresti<br />

Latio” 6 atravessou várias déca<strong>da</strong>s atuando como testemunho para aqueles pesquisadores<br />

convencidos <strong>de</strong> que a cultura grega sobrepôs-se à romana. Em suas interpretações <strong>da</strong><br />

convivência <strong>de</strong> gregos e romanos, o encontro entre esses povos seria uma espécie <strong>de</strong><br />

simbiose, em que gregos oferecem suas artes ao mundo romano e este oferece suas armas;<br />

leia-se, proteção ao mundo grego. Então a tradição artística e cultural grega seria a chave para<br />

a entra<strong>da</strong> no mundo romano, pois, em virtu<strong>de</strong> <strong>da</strong> superiori<strong>da</strong><strong>de</strong> cultural dos gregos, os<br />

romanos aproximavam-se <strong>de</strong>les com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r a ser grego.<br />

A convivência <strong>de</strong> Plutarco com diversos imperadores romanos também mereceu a<br />

atenção do pesquisador Gallo, uma vez que Plutarco percorreu sua vi<strong>da</strong> sob o regime político<br />

dos Césares 7 . Em sua <strong>de</strong>scrição <strong>da</strong> interação plutarquiana com os imperadores, Gallo infere<br />

que sua proximi<strong>da</strong><strong>de</strong> com o po<strong>de</strong>r o converteu em um indivíduo que compartilhava <strong>da</strong><br />

4 À época <strong>de</strong> Plutarco, a chama<strong>da</strong> Grécia Oci<strong>de</strong>ntal quase não figurava no quadro político romano. Os gregos do<br />

oriente conheciam a riqueza e com isso a participação na política do Império. Apesar disso, em termos <strong>de</strong><br />

construções e <strong>de</strong> festivais culturais, a Grécia oci<strong>de</strong>ntal abrigou inúmeros festivais e recebeu vários monumentos<br />

e edifícios no período imperial. O imperador Adriano <strong>de</strong>staca-se dos <strong>de</strong>mais não somente pela quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

obras e <strong>de</strong> eventos culturais, mas pela diversi<strong>da</strong><strong>de</strong> dos locais. Ain<strong>da</strong> hoje po<strong>de</strong>mos ver nas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Atenas,<br />

Esparta, Corinto e outras sítios arqueológicos <strong>da</strong>tados do período <strong>de</strong> Adriano, com aquedutos, ágoras, termas e<br />

teatros, por exemplo.<br />

5 É níti<strong>da</strong> a ascendência <strong>de</strong> Pierre Bourdieu na linha <strong>de</strong> raciocínio <strong>da</strong> autora no que tange à questão do capital<br />

social e <strong>de</strong> sua atuação nos campos. Ver os estudos <strong>de</strong> BOURDIEU, 1974.<br />

6 Epístolas, II, 1, vv. 156-157.<br />

7 GALLO (2001, p.297) assim <strong>de</strong>screve as fases <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Plutarco: “A vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Plutarco transcorreu sob os<br />

Césares: Nero e os três imperadores nos sucessivos e convulsivos anos <strong>de</strong> 68 e 69 durante o período <strong>de</strong> sua<br />

educação e formação; os Flávios em sua maturi<strong>da</strong><strong>de</strong>; Nerva, Trajano e Adriano em sua velhice” (tradução <strong>da</strong><br />

autora).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 305-314, 2008<br />

307


i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> uma elite romana culta e refina<strong>da</strong>, produto <strong>de</strong> uma koiné greco-romana. Por esse<br />

motivo, Plutarco pensava na composição cultural do Império em três categorias: bárbaros,<br />

gregos e romanos (GALLO, 2001, p.299). No entanto, o autor reconhece que Plutarco teceu<br />

críticas a práticas políticas e culturais dos romanos, em particular à preferência dos romanos<br />

pelos espetáculos dos gladiadores. Na leitura <strong>de</strong> Gallo, tais colocações são <strong>de</strong>stina<strong>da</strong>s aos<br />

membros não abastados e cultos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana, pois Plutarco conduz seus<br />

companheiros para o caminho <strong>de</strong> sua integração à cultura romana, apoiando a chama<strong>da</strong><br />

“romani<strong>da</strong><strong>de</strong>”, não apenas para conformar-se ao po<strong>de</strong>r imperial, mas também para sentir-se<br />

parte integrante <strong>de</strong>sse povo 8 .<br />

Alguns estudiosos sustentam que a hegemonia militar romana na Grécia inviabilizava<br />

qualquer esboço <strong>de</strong> reação contra o Império, tendo os gregos a opção única <strong>de</strong> conformaremse<br />

aos projetos do imperador, <strong>da</strong><strong>da</strong> a impossibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> recuperação <strong>da</strong> autonomia política <strong>de</strong><br />

suas ci<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Para ilustrar tal proposição, Durán aponta, nos escritos plutarquianos, renúncia e<br />

resignação diante <strong>da</strong> dominação romana, expressas em suas <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> acontecimentos, nos<br />

quais se configuravam os erros que levaram a Grécia a seu ocaso. A autora acrescenta que<br />

Plutarco estava ciente <strong>de</strong> sua condição e procurava <strong>de</strong>sfrutar algo <strong>de</strong>ssa situação, promovendo<br />

assim a Pax Romana e suas vantagens para os gregos, como a ausência <strong>de</strong> guerras e a<br />

liber<strong>da</strong><strong>de</strong> para a gerência <strong>de</strong> seus próprios bens 9 .<br />

Contudo, vemos que, ao longo <strong>de</strong> sua extensa obra, Plutarco espelha seu sentimento <strong>de</strong><br />

pertença à cultura grega, rebatendo estigmas alimentados contra os gregos à sua época,<br />

<strong>de</strong>monstrando a força e a contribuição <strong>de</strong> sua tradição cultural na formação do Império. Um<br />

exemplo disso é que a Guerra <strong>de</strong> Tróia quase não encontra acolhi<strong>da</strong> em seus relatos, o que<br />

revela sua preocupação com o discurso <strong>de</strong> sua época, pois sabemos que a Enei<strong>da</strong>, <strong>de</strong> Virgílio,<br />

traz <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong>preciativas do caráter dos dânaos, tratados como gregos, questionando suas<br />

ações, em particular as <strong>de</strong> Odisseu, conhecido pelos romanos como Ulisses. Selecionamos<br />

duas passagens para exemplificar nossa afirmação; na primeira, quando Dido recebe Enéias<br />

em seu palácio, a rainha pergunta-lhe:<br />

Hóspe<strong>de</strong> – fala-lhe – conta-nos tudo por or<strong>de</strong>m, do início,<br />

as artimanhas dos dânaos, <strong>de</strong>sditas dos teus companheiros,<br />

8<br />

O autor refere-se a Plutarco como um lí<strong>de</strong>r intelectual dos gregos dotado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> prestígio junto a sua<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> (GALLO, 2001, p.304).<br />

9 Em seu enten<strong>de</strong>r, os intelectuais e também políticos gregos <strong>de</strong>pendiam <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong><strong>de</strong>s imperiais, uma vez que<br />

estavam em posição subalterna <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa relação. Ver DURAN LÓPEZ, 2004, p.37-38.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 305-314, 2008<br />

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este vagar sem <strong>de</strong>scanso nem termo por mais <strong>de</strong> sete anos<br />

em to<strong>da</strong> a terra infinita, nas on<strong>da</strong>s inquietas, por tudo<br />

(Enei<strong>da</strong>, I, vv. 752-755).<br />

A segun<strong>da</strong> passagem refere-se a uns trechos <strong>da</strong> resposta <strong>da</strong><strong>da</strong> por Enéias a Dido:<br />

Talvez já tenhas ouvido falar do alto nome, <strong>da</strong> fama<br />

<strong>de</strong> Palame<strong>de</strong>s, nascido <strong>de</strong> Belo, que os próprios aquivos<br />

à morte infame votaram, levados por falsos indícios<br />

por ser contrário – eis o crime! – a esta guerra infeliz <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo.<br />

A esse guerreiro entregou-me meu pai, muito jovem, por sermos<br />

aparentados, a fim <strong>de</strong> a<strong>de</strong>strar-me no ofício <strong>da</strong>s armas.<br />

Enquanto vivo ele esteve e gozou <strong>de</strong> bom crédito junto<br />

dos governantes, alguma vantagem do seu gran<strong>de</strong> nome<br />

me aproveitava. Porém, quando a inveja <strong>de</strong> Ulisses, o falso<br />

só o que é notório vos digo – o tirou do convívio dos homens<br />

principiou para mim esta vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> prantos e luto<br />

[...]<br />

Com sangue, ó dânaos, <strong>de</strong> vítima nobre aplacastes os ventos<br />

para ir a Tróia; com sangue outra vez obtereis o retorno:<br />

precisareis imolar um dos gregos <strong>da</strong>s vossas fileiras<br />

(Enei<strong>da</strong>, II, vv. 81-91 e 115-117) 10 .<br />

Conforme o relatado por Virgílio, por meio <strong>da</strong>s palavras <strong>de</strong> Enéias, os gregos<br />

aparecem como impiedosos e dissimulados, capazes <strong>de</strong> qualquer ação para atingir seus<br />

objetivos. Como sua obra é amplamente divulga<strong>da</strong> no Império, po<strong>de</strong>mos imaginar o impacto<br />

<strong>de</strong>ssas palavras no julgamento que os romanos faziam dos gregos.<br />

Não por acaso, no segundo capítulo <strong>da</strong> biografia <strong>de</strong> Címon, Plutarco constrói um<br />

símile entre a pintura e a escrita biográfica. Ele exorta os pintores a serem equilibrados na<br />

distribuição <strong>da</strong>s cores <strong>de</strong> um retrato, além <strong>de</strong> estarem alertas para não serem infiéis ao<br />

mo<strong>de</strong>lo, acentuando as imperfeições <strong>de</strong> seu retratado 11 . Vemos claramente o quanto Plutarco,<br />

embasado em sua erudição <strong>da</strong> cultura grega, pensa seu passado em constante diálogo com o<br />

presente. O quase esquecimento <strong>de</strong> Plutarco dos acontecimentos ocorridos em Tróia traduz<br />

10 Passagens extraí<strong>da</strong>s <strong>de</strong> VERGÍLIO, 1983.<br />

11 Vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> Címon, II, 3-5.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 305-314, 2008<br />

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seu intento <strong>de</strong> reconstruir um passado grego a partir somente <strong>de</strong> Teseu e <strong>de</strong> Héracles. Talvez<br />

Plutarco queira contrapor-se a Tucídi<strong>de</strong>s e sua teoria <strong>de</strong> que a riqueza vin<strong>da</strong> <strong>de</strong> Tróia<br />

incentivou o crescimento <strong>da</strong> Grécia, ao mesmo tempo em que rebate a versão romana do<br />

conflito, dissemina<strong>da</strong> por Virgílio, uma vez que apresenta a narrativa homérica como uma<br />

obra <strong>de</strong> referência para o aprendizado <strong>da</strong> virtu<strong>de</strong> 12 .<br />

Nesse sentido, Plutarco contrapõe-se também à narrativa <strong>de</strong> Heródoto com a<br />

preocupação <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os gregos dos estigmas <strong>de</strong> sua época. Não por acaso, já na escolha<br />

do título <strong>de</strong> seu tratado Plutarco revela a intenção <strong>de</strong> seu escrito; como nos lembra Pearson, o<br />

significado <strong>da</strong> palavra kakoētheía, em oposição ao termo euētheía, remete-nos a diversos<br />

aspectos negativos, não somente a respeito do conteúdo <strong>de</strong> sua narrativa, mas também <strong>da</strong><br />

personali<strong>da</strong><strong>de</strong>, do caráter <strong>de</strong> Heródoto 13 . É mais significativo ain<strong>da</strong> o fato <strong>de</strong> Plutarco nomear<br />

o historiador <strong>de</strong> Halicarnasso <strong>de</strong> filobárbaro, uma vez que estabelece a simpatia herodotiana<br />

pelo bárbaro, um artifício retórico para <strong>de</strong>sautorizar sua narrativa sobre os gregos 14 .<br />

E será a interpretação herodotiana sobre os egípcios que merecerá acirra<strong>da</strong>s críticas <strong>de</strong><br />

Plutarco. O beócio <strong>de</strong>staca a maledicência <strong>de</strong> Heródoto ao atribuir origem egípcia aos <strong>de</strong>uses<br />

gregos Dioniso e Deméter, e ao dizer que Héracles foi um <strong>de</strong>us cultuado no Egito antes <strong>de</strong> sêlo<br />

na Grécia, conforme lemos neste excerto:<br />

Ain<strong>da</strong> diz que os gregos tinham tomado dos egípcios as procissões e festas e o culto dos<br />

doze <strong>de</strong>uses; Melampo havia tomado dos egípcios também o nome <strong>de</strong> Dioniso e o ensinou<br />

ao <strong>de</strong>mais gregos; os mistérios e os ritos sacros <strong>de</strong> Deméter teriam sido trazidos do Egito<br />

pelas filhas <strong>de</strong> Dânao. [...] diz que o Héracles egípcio <strong>de</strong>scen<strong>de</strong> <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> geração dos<br />

<strong>de</strong>uses. (857C-D) 15<br />

A nosso ver, ao <strong>de</strong>nominar a narrativa herodotiana <strong>de</strong> maliciosa, Plutarco atribui aos<br />

gregos um lugar <strong>de</strong>stacado na história romana, dissociando-os dos <strong>de</strong>mais povos do Império,<br />

12 Embora Plutarco não confie nos registros históricos dos poetas gregos, como Maria Cannatà Fera <strong>de</strong>monstra,<br />

em Como escutar os poetas, 29A, ele aconselha os jovens a atentarem para o caráter dos heróis <strong>de</strong>scritos pelos<br />

poetas, em particular <strong>Home</strong>ro. Ver FERA, 1999, p.37.<br />

13 Ver a introdução <strong>de</strong> Lionel Person em PLUTARCH, 1970, p.2. Semelhante foi a conclusão <strong>de</strong> INGLESE,<br />

2003, p.222: “Nell’operetta, in cui una sezione introduttiva <strong>de</strong>dicata alla <strong>de</strong>finizione di una casistica generale<br />

<strong>de</strong>lla malignità storiografica è seguita <strong>da</strong> una sorta di ‘commento <strong>de</strong>nigratorio selettivo’ a Herodoto”.<br />

14 Em seu estudo sobre Heródoto, Hartog relata que “nas Histórias, os citas são um outro povo privilegiado: eles<br />

são, <strong>de</strong>pois dos egípcios, o povo ao qual Heródoto consagra a exposição mais longa <strong>de</strong> seu livro” (1999, p.45).<br />

15 As traduções dos excertos plutarquianos foram realiza<strong>da</strong>s pela autora.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 305-314, 2008<br />

310


dos bárbaros, como notamos no trecho em tela. O tratado plutarquiano em epígrafe está<br />

voltado para a <strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong> imagens negativas dos gregos no Império, como a ausência<br />

<strong>de</strong> uma cultura própria, <strong>de</strong>vedora dos bárbaros.<br />

A estreita relação entre a linguagem e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong> suscita diversas discussões, uma vez<br />

que, segundo Duarte Júnior, a linguagem é um sistema simbólico através do qual as coisas do<br />

mundo são representa<strong>da</strong>s e pelo qual o mundo é or<strong>de</strong>nado e recebe significação; embora<br />

vivamos num ambiente físico, ele é fun<strong>da</strong>mentalmente simbólico, isto é, criado pelos<br />

significados que a palavra atribui ao mundo. Portanto, é fun<strong>da</strong>mental que se discuta a questão<br />

<strong>da</strong> interpretação, uma vez que os sentidos, atribuídos pelo homem ao mundo por meio <strong>da</strong><br />

linguagem, não po<strong>de</strong>m ser unívocos e nem tampouco universais (DUARTE JR., 2004, p. 18).<br />

Daí a importância <strong>de</strong> analisar o discurso produzido pelos autores do período grecoromano,<br />

para que se compreen<strong>da</strong> a relação entre dominante-dominado, a qual, uma vez<br />

estabeleci<strong>da</strong>, impe<strong>de</strong> que essas fontes revelem a totali<strong>da</strong><strong>de</strong> dos fatos, ocorrendo o que<br />

Foucault <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> processo <strong>de</strong> exclusão e <strong>de</strong> interdição <strong>da</strong>quilo que não po<strong>de</strong> ser dito.<br />

Desta maneira, a linguagem atua como mediadora necessária entre o sujeito e a reali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

sociopolítica e, assim sendo, é consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> como parte <strong>da</strong> retórica <strong>da</strong> dominação, bem como<br />

<strong>da</strong> retórica do oprimido como forma <strong>de</strong> resistência (FOUCAULT, 2000, p.9).<br />

Tais características discursivas passam <strong>de</strong>spercebi<strong>da</strong>s por métodos que se baseiam nos<br />

pressupostos <strong>da</strong> uni<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária, estabelecidos sob a lógica <strong>de</strong> um sujeito, ou melhor, <strong>de</strong><br />

um indivíduo racional, fun<strong>da</strong>do a partir <strong>da</strong> idéia humanista, segundo a qual ca<strong>da</strong> um tem seu<br />

potencial próprio, capaz <strong>de</strong> se tornar automotivado e autodirecionado. Esses elementos<br />

permeiam o sujeito do Iluminismo, um “sujeito centrado, unificado e dotado <strong>da</strong>s capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> razão, <strong>de</strong> consciência e <strong>de</strong> ação”, o que Hall <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> um ser “coerente com seu eu”<br />

(2004, p.10-13), o qual elimina as contradições e os conflitos constituintes <strong>de</strong> suas várias<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s.<br />

A metodologia para i<strong>de</strong>ntificar o embate i<strong>de</strong>ntitário <strong>de</strong> Plutarco, expresso em sua<br />

narrativa, faz-se possível pelo processo que Cardoso nos ensina <strong>de</strong> visualizar o relato ou a<br />

narrativa como uma forma <strong>de</strong> comportamento humano, “um comportamento mimético<br />

(imitativo) e representativo, a serviço <strong>da</strong> comunicação <strong>de</strong> mensagens entre seres humanos”<br />

(CARDOSO, 1997, p.10). À vista disso, o relato plutarquiano converte-se em veículo para o<br />

entendimento <strong>de</strong> conflitos culturais-i<strong>de</strong>ntitários presentes nas relações entre gregos e romanos<br />

à época imperial. Lembramos o afirmado por Funari: “heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>, flui<strong>de</strong>z e plurali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 305-314, 2008<br />

311


são conceitos que procuram explicar, <strong>de</strong> maneira menos limita<strong>da</strong>, a varie<strong>da</strong><strong>de</strong> na vi<strong>da</strong> social<br />

romana” (2005, p.319) 16 .<br />

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Talita Inácio dos Santos SILVA<br />

G – IFCH – UNICAMP<br />

talitaiss@yahoo.com.br<br />

Parece-me mais frutífero retornar ao sentido original do termo latino cultura,<br />

propriamente o ato <strong>de</strong> cultivar (colere) que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cedo, significou o cultivo <strong>de</strong><br />

plantas, mas também a produção humana em geral, material e espiritual.<br />

Portanto,[...] cultura é tudo que resulta do trabalho e <strong>da</strong> elaboração humanos. Sob o<br />

termo cultura, inclui-se o sistema <strong>de</strong> meios e mecanismos elaborados<br />

extrabiologicamente, graças aos quais se motiva, orienta, coor<strong>de</strong>na, realiza e garante<br />

a ativi<strong>da</strong><strong>de</strong> do homem. (FUNARI, 1989, p.12-13).<br />

O sentido do termo cultura, <strong>de</strong>finido por Funari, aponta para uma abor<strong>da</strong>gem histórica<br />

chama<strong>da</strong> história cultural. Segundo Roger Chartier, é necessário que nela se pense como<br />

“análise do trabalho <strong>de</strong> representação, isto é, <strong>da</strong>s classificações e <strong>da</strong>s exclusões que<br />

constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceituais próprias <strong>de</strong> um<br />

tempo ou <strong>de</strong> um espaço” (1990, p. 27). Ele concebe as estruturas do mundo social não como<br />

categorias intelectuais e psicológicas, mas como sendo historicamente construí<strong>da</strong>s pelas<br />

práticas articula<strong>da</strong>s (políticas, sociais, discursivas) construtoras <strong>de</strong> suas figuras. Essas<br />

<strong>de</strong>marcações constituem o objeto <strong>de</strong> uma história cultural leva<strong>da</strong> a repensar completamente,<br />

segundo Chartier, a relação tradicionalmente postula<strong>da</strong> entre o social, i<strong>de</strong>ntificado como um<br />

bem real, existindo por si próprio, e as representações, supostas como refletindo ou <strong>de</strong>le se<br />

<strong>de</strong>sviando.<br />

Chartier <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> ain<strong>da</strong> que a história <strong>de</strong>va ser entendi<strong>da</strong> como o estudo dos processos<br />

com os quais se constrói um sentido. Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as<br />

obras <strong>de</strong> um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificar – dirige-se às práticas que, plural e contraditoriamente, dão significado ao mundo.<br />

Daí a caracterização <strong>da</strong>s práticas discursivas como produtoras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>namento, <strong>de</strong> afirmação,<br />

<strong>de</strong> distância, <strong>de</strong> divisões; <strong>da</strong>í o reconhecimento <strong>da</strong>s práticas <strong>de</strong> apropriação cultural como<br />

formas diferencia<strong>da</strong>s <strong>de</strong> interpretação.<br />

Os estudos culturais privilegiam as tão controverti<strong>da</strong>s “mentali<strong>da</strong><strong>de</strong>s”, as<br />

representações e análises <strong>de</strong> seus símbolos e imagens, além <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Segundo Hall, as<br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s são historicamente construí<strong>da</strong>s. Para ele,<br />

[...] a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> é, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, algo formado ao longo do tempo através <strong>de</strong> processos<br />

inconscientes, mais do que algo inato à consciência, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento. Há sempre algo<br />

“imaginário” ou fantasiado sobre essa uni<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ela permanece sempre incompleta, está


sempre “em processo” , sempre “sendo forma<strong>da</strong>”.[...] Assim, ao invés <strong>de</strong> falarmos <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> como algo concluído, <strong>de</strong>veríamos falar em i<strong>de</strong>ntificação, e vê-la como um<br />

processo em an<strong>da</strong>mento. A i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> surge não tanto <strong>da</strong> plenitu<strong>de</strong> <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> já<br />

presente <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> nós enquanto indivíduos, mas <strong>da</strong> insuficiência <strong>de</strong> totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, que é<br />

“preenchi<strong>da</strong>” a partir do que nos é exterior, pelas formas como imaginamos sermos vistos<br />

por outros. Psicanaliticamente, a razão pela qual buscamos continuamente a “i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>”,<br />

construindo biografias que amarram as diferentes partes <strong>de</strong> nossos divididos “selves” em<br />

uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong>, é a <strong>de</strong> recapturar esse prazer fantasioso <strong>de</strong> plenitu<strong>de</strong> (2003, p. 30).<br />

Tão importante quanto o conceito <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Hall para esse trabalho é o <strong>de</strong><br />

gênero <strong>de</strong>senvolvido por Joan Scott, sendo ele uma categoria útil para análise histórica. Após<br />

tecer consi<strong>de</strong>rações sobre como os sexos e a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> foram trabalhados ou ignorados ao<br />

longo <strong>da</strong> historiografia, Scott traça sua própria <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> gênero. O núcleo essencial <strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>finição repousa sobre a relação fun<strong>da</strong>mental entre duas proposições: o gênero é um<br />

elemento constitutivo <strong>de</strong> relações sociais fun<strong>da</strong><strong>da</strong>s sobre as diferenças percebi<strong>da</strong>s entre os<br />

sexos e o gênero e um primeiro modo <strong>de</strong> <strong>da</strong>r significação às relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r (SCOTT,<br />

1990). Segundo a autora, os atores e as ações históricas não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>terminados senão<br />

concretamente, situados no tempo e no espaço, nem a história po<strong>de</strong> ser escrita sem o<br />

reconhecimento <strong>de</strong> que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo categorias vazias e<br />

transbor<strong>da</strong>ntes, pois quando aparecem fixa<strong>da</strong>s recebem, apesar <strong>de</strong> tudo, <strong>de</strong>finições alterna<strong>da</strong>s,<br />

nega<strong>da</strong>s ou reprimi<strong>da</strong>s.<br />

Por sua vez, a pesquisa embasa-se no método <strong>de</strong> inversão <strong>de</strong> pressupostos em História<br />

<strong>da</strong> Sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, elaborado por Foucault, que não tinha uma teoria fixa ou uma posição<br />

imutável em relação às quais to<strong>da</strong>s as coisas podiam ser medi<strong>da</strong>s. Ao consi<strong>de</strong>rar a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

como uma “experiência historicamente singular”, e não como uma constante, Foucault viu-se<br />

diante do <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> reconstruir, por meio <strong>de</strong> sucessivos discursos, os vestígios <strong>de</strong> uma “longa<br />

tradição cristã” her<strong>da</strong><strong>da</strong> nos séculos XIX e XX. Sua busca dos começos e <strong>da</strong>s diferenças<br />

levou-o <strong>de</strong> volta aos gregos, que são, também, o ponto <strong>de</strong> parti<strong>da</strong> <strong>da</strong> pesquisa. Foucault<br />

enfatizou que a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e a promessa <strong>de</strong> satisfação do “eu” não são liberações, mas, ao<br />

contrário, opressões <strong>de</strong> uma tradição cristã. O próprio sexo, distinto <strong>de</strong> sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, tornou-se<br />

um produto do discurso, não “a coisa em si”. Essa análise é, segundo O’Brian (2001), uma<br />

assombrosa inversão que tem por objetivo realçar, por meio <strong>da</strong>s diferenças, a transformação<br />

dos discursos.<br />

O corpo e a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> parecem estar no centro <strong>da</strong> preocupação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã<br />

<strong>de</strong> Corinto a quem Paulo dirige as cartas que constam no Novo Testamento. Assuntos a isso<br />

relacionados são tratados abertamente ao longo <strong>da</strong> carta, como no caso <strong>da</strong> repreensão ao<br />

homem que vivia com a mulher do seu pai (I Cor 5. 1), às recomen<strong>da</strong>ções contra a fornicação<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008<br />

316


(I Cor 6,12-18; I Cor 7,1 e I Cor 10,7), a respeito do casamento e <strong>de</strong>veres conjugais (I Cor 7)<br />

e, ain<strong>da</strong>, sobre as pessoas virgens (I Cor 7, 25-37).<br />

A análise <strong>da</strong>s Cartas Paulinas em questão encontra a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> imposta pelo caráter<br />

ambíguo <strong>de</strong> Paulo com relação às orientações relativas ao casamento e ao papel <strong>da</strong> mulher: ao<br />

mesmo tempo em que sugere aos membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã <strong>de</strong> Corinto que melhor seria<br />

não tocar em mulher, recomen<strong>da</strong> que ca<strong>da</strong> homem tenha a sua mulher e ca<strong>da</strong> mulher tenha o<br />

seu marido para evitar a fornicação (I Cor 7, 1-2), e ain<strong>da</strong> que um não se recuse ao outro para<br />

não ser tentado por Satanás por causa <strong>da</strong> abstinência (I Cor 7, 5). Mais adiante, Paulo orienta<br />

que os solteiros permaneçam solteiros, os casados permaneçam casados, as viúvas não tornem<br />

a casar (I Cor 7, 8-10): os remetentes parecem estar sendo direcionados à outra tarefa mais<br />

urgente que os relacionamentos. Uma pessoa casa<strong>da</strong> estaria dividi<strong>da</strong> entre as coisas do Senhor<br />

e as coisas <strong>de</strong>ste mundo ao preocupar-se com seu cônjuge (I Cor 7,32-34), além <strong>de</strong> enfrentar<br />

tribulações, frutos do relacionamento conjugal, do qual Paulo gostaria que os membros <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã <strong>de</strong> Corinto fossem poupados (I Cor 7, 28).<br />

Ain<strong>da</strong> com relação às pessoas virgens: as palavras <strong>de</strong> Paulo vão ao sentido <strong>de</strong> um<br />

conselho, uma vez que não têm nenhuma orientação divina a respeito do assunto (I Cor 7, 25).<br />

Neste caso, como homem que se julga digno <strong>de</strong> confiança, consi<strong>de</strong>ra essa condição boa por<br />

conta <strong>da</strong>s angústias do seu presente. Porém, permanece a máxima: Irmãos, ca<strong>da</strong> um<br />

permaneça diante <strong>de</strong> Deus na condição em que se encontravam quando foi chamado. (I Cor<br />

7, 24). Com esta mensagem, Paulo parece querer colocar as questões sexuais em segundo<br />

plano em função <strong>de</strong> questões mais importantes que não ficam claras.<br />

Desejam-se investigar as interações entre as diferentes culturas (ju<strong>da</strong>ica, helênica e a<br />

cristã nascente) <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã <strong>de</strong> Corinto, umas <strong>da</strong>s referências <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> nos<br />

assuntos relacionados a corpo e sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Por se tratar <strong>de</strong>ssa comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, são <strong>de</strong> extrema importância o estudo <strong>de</strong> Paulo e suas<br />

cartas a ela encaminha<strong>da</strong>s. Paulo preocupa-se com o fato <strong>de</strong> que estejam bem <strong>de</strong>finidos os<br />

limites <strong>de</strong> comportamento dos pertencentes <strong>de</strong> seu movimento. No caso <strong>de</strong> Corinto, uma<br />

ci<strong>da</strong><strong>de</strong> portuária grega, as diferenças entre ricos e pobres, senhores e escravos, homens e<br />

mulheres havia explodido sob a forma <strong>de</strong> antagonismos entre os vários lares que compunha a<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> (BROWN, 1990, p. 54), que, segundo as palavras do autor, era uma mixórdia<br />

sociológica. As questões leva<strong>da</strong>s a Paulo parecem trazer <strong>da</strong> parte dos membros <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã <strong>de</strong> Corinto o <strong>de</strong>sejo em diferenciar-se dos <strong>de</strong>mais gregos não convertidos<br />

por meio <strong>da</strong>s práticas sexuais, como po<strong>de</strong>mos observar por Brown:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008<br />

317


Estavam dispostos a <strong>de</strong>sfazer os esteios elementares <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> convencional.<br />

Renunciariam ao casamento. Alguns se separariam <strong>da</strong>s esposas pagãs, outros se<br />

comprometeriam com a abstinência perpétua <strong>de</strong> relações sexuais. Os filhos em<br />

crescimento, por cujo casamento eles eram responsáveis, permaneceriam virgens<br />

(BROWN, 1990, p. 54).<br />

A partir <strong>da</strong> leitura do trecho acima, po<strong>de</strong>-se afirmar que tanto Paulo quanto esses<br />

gregos <strong>de</strong> Corinto estavam interessados em marcar a i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>sse movimento pela<br />

negação. O importante seria não ser confundido com pagãos por meio <strong>da</strong>s práticas sexuais,<br />

pelos banquetes com carnes sacrificiais (I Cor 10,18) ou pela procura <strong>de</strong> tribunal pagão para<br />

resolver assuntos entre crentes (I Cor 6,4): como comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>veriam viver<br />

diferencia<strong>da</strong>mente dos gregos e do que representava sua religião. No campo sexual, a<br />

diferenciação ganha importância uma vez que uma <strong>da</strong>s marcas <strong>da</strong> religião grega em Corinto<br />

eram a prostituição sagra<strong>da</strong> e a conglomeração <strong>de</strong> seitas mistéricas orientais (DUNN, 2003, p.<br />

223-289), e os pertencentes à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Paulo não <strong>de</strong>veriam se misturar a tais práticas.<br />

A seguir, o trecho <strong>de</strong> I Corinto mostra como Paulo apropria-se <strong>de</strong> um trecho do Gênesis que<br />

trata <strong>da</strong> união entre homem e mulher para justificar a não união entre o crente <strong>de</strong> sua<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> e a prostituta:<br />

Não sabíeis que os vossos corpos são membros <strong>de</strong> Cristo? Tomarei então os membros <strong>de</strong><br />

Cristo para fazê-los membros <strong>de</strong> uma prostituta? Por certo, não! Não sabíeis que aquele<br />

que se une a uma prostituta constitui com ela um só corpo? Pois está dito: Serão os dois<br />

uma só carne (I Cor 6, 15-16).<br />

Da mesma forma como a questão sexual foi importante na <strong>de</strong>finição <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> paulina <strong>de</strong> Corinto, em algum momento <strong>da</strong> história a questão <strong>da</strong> virgin<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

sobre a qual Paulo orientou a título <strong>de</strong> conselho, ganhou gran<strong>de</strong> dimensão. Intenta-se estu<strong>da</strong>r<br />

as questões políticas, religiosas, sociais e morais envolvi<strong>da</strong>s nesse processo, assim como as<br />

implicações <strong>da</strong> cristalização <strong>da</strong> condição <strong>da</strong> virgin<strong>da</strong><strong>de</strong> como i<strong>de</strong>al à comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> cristã.<br />

A problemática surge <strong>da</strong> ausência <strong>de</strong> referências às questões relaciona<strong>da</strong>s à<br />

sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> nas palavras atribuí<strong>da</strong>s a Jesus nos evangelhos 1 , apontando para a irrelevância <strong>da</strong><br />

questão, frente à importância que ganhou na história do Cristianismo. A partir disso, preten<strong>de</strong>se<br />

investigar as bases dos conselhos paulinos em relação ao corpo, à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> e às relações<br />

<strong>de</strong> gênero, integrados às práticas sexuais <strong>da</strong>s culturas que interagiam em Corinto.<br />

Esta pesquisa, que se encontra no início <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento, tem o intuito <strong>de</strong><br />

discutir quais eram os tipos <strong>de</strong> interação cultural entre os primeiros cristãos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

1 Sobre o tema cf.: CHEVITARESE, A. L., CORNELLI, G., SELVATICI, M. (2006), CROSSAN, J.D. (1994) e<br />

CHEVITARESE, A. L. & CORNELLI, G. (2003).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008<br />

318


Corinto no que diz respeito à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> a ponto <strong>de</strong> atrair a atenção <strong>de</strong> Paulo em forma <strong>de</strong><br />

uma carta específica, e como as questões <strong>de</strong> corpo, gênero e sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> relacionam-se com a<br />

formação <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> do cristão primitivo. Reconhece-se que os termos e noções com o<br />

qual se preten<strong>de</strong> trabalhar estão carregados <strong>de</strong> sentidos mo<strong>de</strong>rnos. Será, portanto, necessário o<br />

estudo atento <strong>da</strong>s Cartas <strong>de</strong> Paulo aos Coríntios em seu original grego visando à<br />

<strong>de</strong>sconstrução <strong>de</strong> preconceitos ou pré-noções que po<strong>de</strong>riam fazer <strong>de</strong> minha leitura apenas uma<br />

nova reapropriação do passado com os sentidos e intenções mo<strong>de</strong>rnos.<br />

Utilizar-se-ão trabalhos acadêmicos na linha histórica, antropológica, sociológica e<br />

teológica, além <strong>de</strong> fontes <strong>de</strong> cultura material sobre Corinto. Nesse sentido, o trabalho torna-se<br />

relevante por questionar a noção <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s estanques do cristão primitivo, do ju<strong>de</strong>u, do<br />

grego em função <strong>de</strong> uma interação e flui<strong>de</strong>z <strong>da</strong>s i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s, além <strong>de</strong> buscar, <strong>de</strong> modo<br />

relacional, enten<strong>de</strong>r os papéis <strong>de</strong> masculino e feminino histórica e culturalmente <strong>de</strong>finidos na<br />

comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Corinto em relação à sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong>, tanto por meio <strong>de</strong> fontes literárias quanto<br />

materiais.<br />

A partir <strong>da</strong> problemática que envolve a sexuali<strong>da</strong><strong>de</strong> na comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Corinto, esta<br />

pesquisa envolve-se na análise dos primórdios <strong>da</strong> Igreja, em especial, a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> Paulina<br />

<strong>de</strong> Corinto, durante o período do primeiro século, quando se orienta e posteriormente<br />

consoli<strong>da</strong>-se uma legislação sexual cristã. Com isso, preten<strong>de</strong>-se discutir as apropriações do<br />

passado para legitimação <strong>de</strong> uma regra, <strong>da</strong>ndo seqüência à pesquisa, que conta com o apoio <strong>da</strong><br />

FAPESP, como Iniciação Científica, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> junho <strong>de</strong>ste ano. Partindo <strong>de</strong>ssa premissa, a<br />

pesquisa centraliza-se em duas questões principais: primeiramente, a discussão acerca dos<br />

termos gregos presentes na Carta <strong>de</strong> Paulo às comuni<strong>da</strong><strong>de</strong>s cristãs <strong>de</strong> Corinto e as relações e<br />

significados frente às práticas sexuais dos membros <strong>de</strong>sta comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> e às culturas ju<strong>da</strong>ica e<br />

grega em interação constante; em segundo, trata-se do estudo <strong>da</strong> cultura material referente a<br />

Corinto do primeiro século, buscando relações com as fontes literárias. A<strong>de</strong>mais, os contatos<br />

com o Prof. Pedro Paulo Funari e com a doutoran<strong>da</strong> e bolsista <strong>da</strong> FAPESP Roberta<br />

Alexandrina <strong>da</strong> Silva, assim como as aulas do pós-doutorando Paulo Nogueira, foram <strong>de</strong><br />

suma importância no <strong>de</strong>senvolvimento e na reflexão epistemológica <strong>de</strong> pressupostos teóricos<br />

referentes à temática <strong>da</strong> pesquisa.<br />

Referências Bibliográficas:<br />

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Editora Paulus, 1985.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008<br />

319


CHARTIER, R. A História Cultural entre práticas e representações. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro/Lisboa, Bertrand/Difel, 1990.<br />

CHEVITARESE, A. L. & CORNELLI, G. Ju<strong>da</strong>ísmo, Cristianismo, Helenismo: Ensaios<br />

sobre Interações Culturais no Mediterrâneo Antigo. Itu: Editora Ottoni, 2003.<br />

FUNARI, P. P. A. Cultura Popular na Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica. São Paulo: Editora Contexto,<br />

1989.<br />

CROSSAN, J. D. O Jesus Histórico: a vi<strong>da</strong> <strong>de</strong> um camponês ju<strong>de</strong>u no mediterrâneo.<br />

Tradução <strong>de</strong> An<strong>de</strong> Cardoso. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago, 1994.<br />

FUNARI, P. P. A., FEITOSA, L. C. & SILVA, G. J. (orgs). Amor, Desejo e Po<strong>de</strong>r na<br />

Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>: Relações <strong>de</strong> Gênero e Representações do Feminino. Campinas/SP:<br />

Editora <strong>da</strong> Unicamp, 2003.<br />

HALL, S. A Questão <strong>da</strong> I<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> Cultural. 3ª ed. Campinas: IFCH/UNICAMP, nº18,<br />

2003. Coleção Textos Didáticos.<br />

JENKINS, K. A História Repensa<strong>da</strong>. São Paulo: Contexto, 2001<br />

O’BRIAN, P. A História <strong>da</strong> Cultura <strong>de</strong> Michel Foucault In: HUNT, Lynn. A Nova História<br />

Cultural. São Paulo: Martins Fontes, 2001.<br />

SCOTT, J. Gênero: Uma Categoria útil <strong>de</strong> Análise Histórica. In: Revista <strong>da</strong> Educação e<br />

Reali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Porto Alegre, 15(2): 5-22, jul/<strong>de</strong>z, 1990.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 315-320, 2008<br />

320


A Poética e a Métrica Clássicas: um estudo do hexâmetro latino por Mário Vitorino<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 321-329, 2008<br />

Vivian Carneiro Leão SIMÕES<br />

G (PIBIC) – FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

vivi_carneiroleao@hotmail.com<br />

INTRODUÇÃO<br />

O estudo empreendido na presente pesquisa centra esforços na tradução do texto Artis<br />

grammaticae Libri III (“Os três livros <strong>da</strong> arte ou <strong>da</strong> técnica gramatical”) do autor Mario<br />

Vitorino [280 d.C. 360 d.C.]. Nascido e educado na África; produziu em Roma uma vasta<br />

obra que se divi<strong>de</strong> em trabalhos <strong>de</strong> gramática, filosofia e teologia. Sua obra sobre a métrica<br />

clássica latina se encontra na compilação intitula<strong>da</strong> Scriptores Artis Metricae que faz parte<br />

dos Grammatici Latini, <strong>de</strong> Heinrich Keil. Essa tradução é um trabalho inédito, pois não foi<br />

ain<strong>da</strong> empreendi<strong>da</strong>, em sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>, em nenhum outro idioma mo<strong>de</strong>rno.<br />

As mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>s técnicas <strong>de</strong> composição artística, em se tratando <strong>de</strong> poemas, tinham,<br />

em geral, como perspectiva, a concepção <strong>da</strong> fala em ato, como recitação, <strong>da</strong>í o interesse em<br />

discutir e normatizar os efeitos <strong>de</strong> sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> na produção dos discursos, por meio <strong>de</strong><br />

expedientes regrados e catalogados em manuais, como o <strong>de</strong> Mário Vitorino.<br />

Dessa forma, as artes metricae, em geral, constituem textos <strong>de</strong> viés técnico, (como o<br />

<strong>de</strong> Vitorino) que se preocupam com a organização fonológica do plano do discurso produzido<br />

no âmbito <strong>da</strong> poesia.<br />

O excerto utilizado como córpus do presente trabalho, o Liber Secundus dos Artis<br />

grammaticae Libri III, trata especialmente <strong>da</strong>s “Nove Espécies <strong>de</strong> Protótipos <strong>de</strong> pés<br />

métricos”. Nele, Vitorino diz que a numerosa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> metros <strong>da</strong> lírica latina se<br />

<strong>de</strong>senvolveu a partir <strong>de</strong> nove pés primitivos. Sobre seu trabalho com ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s espécies,<br />

Vitorino nos revela que os pés e os metros se formam através <strong>de</strong> combinações <strong>de</strong>sses nove<br />

protótipos. O tópico inicial é sobre o pé <strong>da</strong>tílico e, por conseguinte, seu emprego na formação<br />

do hexâmetro heróico, pois o autor avalia que este verso seja o princípio <strong>de</strong> todos os metros.<br />

A partir do tratamento que Vitorino dá ao pé <strong>da</strong>tílico, será possível investigar: 1) a<br />

noção <strong>de</strong> Vitorino sobre a formação dos pés métricos por união e separação, i.e. por<br />

combinações, o que nos faz compreen<strong>de</strong>r um pouco mais sobre a musicali<strong>da</strong><strong>de</strong> implícita no<br />

verso latino, e 2) alguns juízos <strong>de</strong> valor sobre o verso heróico, como por exemplo, qual seria,<br />

pelo conceito do gramático, a constituição <strong>de</strong> um verso épico pulchriorem (“mais belo”).


OBJETIVOS<br />

O objetivo principal <strong>de</strong>sta pesquisa é oferecer o que será, até on<strong>de</strong> se pô<strong>de</strong> apurar, a<br />

única tradução vernácula <strong>de</strong> um repertório <strong>de</strong> textos antigos que versam sobre Poética e<br />

Métrica Clássicas latinas, no presente caso, um recorte <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> Mário Vitorino.<br />

É preciso insistir também em que tal objetivo se coaduna com outro objetivo mais<br />

amplo, qual seja, o estudo <strong>da</strong>s noções <strong>de</strong> métrica <strong>de</strong> poemas latinos. A vaga noção que temos<br />

<strong>da</strong>s sílabas longas e breves que compõem a métrica latina é matéria prima <strong>de</strong> manuais <strong>de</strong><br />

métrica como os <strong>de</strong> Mário Vitorino, traduzi-los e estudá-los significa <strong>de</strong>ixar vir à luz<br />

concepções e conceitos que nortearam a produção poética, sobretudo lírica, dos latinos. Muito<br />

embora seja a métrica a orientar e <strong>de</strong>terminar boa parte dos comportamentos estilísticos<br />

observados nos poemas, esta dimensão não tem sido privilegia<strong>da</strong> mo<strong>de</strong>rnamente pelos<br />

pesquisadores <strong>da</strong> cultura greco-romana.<br />

Ao relegar a métrica a um plano inferior, <strong>de</strong>ixamos <strong>de</strong> estu<strong>da</strong>r os efeitos <strong>de</strong> expressão<br />

a cuja apreensão só se chega por meio <strong>de</strong> análise do plano <strong>da</strong> expressão poética. A esses<br />

meios <strong>de</strong> análise po<strong>de</strong>r-se-ia chamar poética <strong>da</strong> expressão ou, ain<strong>da</strong>, métrica estilística.<br />

Assim, ao propor uma tradução do texto do Liber Secundus <strong>da</strong> obra Marii Victorinii<br />

Artis Grammaticae Libri Tres, compreen<strong>de</strong>mos que o propósito não é somente transpor para o<br />

vernáculo um texto <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas sim, permitir que se amplie o repertório <strong>de</strong> textos<br />

que versam sobre Poética e Métrica Clássicas latinas. Concluí<strong>da</strong> a pesquisa, este texto estará<br />

acessível para participar e colaborar com suas doutrinas em estudos e reflexões acerca <strong>da</strong><br />

métrica dos antigos gramáticos latinos, sua evolução, suas <strong>de</strong>finições, conceitos, métodos e<br />

objetos privilegiados.<br />

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA<br />

Os manuais mo<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> métrica, produzidos com base na doutrina métrica <strong>da</strong><br />

antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>, procuraram catalogar as regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s percebi<strong>da</strong>s na poesia clássica e formular<br />

as normas <strong>de</strong> sua ocorrência nos versos, ou seja, proce<strong>de</strong>ram à investigação <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

harmonia encontra<strong>da</strong>s – os metros – e trataram <strong>de</strong> estabelecer as leis que governariam seu<br />

emprego e os efeitos produzidos por eles, mas sempre com base no fenômeno sonoro <strong>de</strong> uma<br />

língua antiga – no caso, o grego ou o latim – que não pô<strong>de</strong> fazer chegar aos pósteros qualquer<br />

testemunho seguro <strong>da</strong> maneira pela qual seus fonemas eram articulados.<br />

Por essa razão é que se fez necessário um novo enfoque teórico que, tanto quanto<br />

possível, prescindisse do <strong>da</strong>do fonético hoje perdido, para investir no valor fonológico <strong>da</strong>s<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 321-329, 2008<br />

322


oposições em jogo na matriz prosódica do verso, enquanto procura i<strong>de</strong>ntificar e <strong>de</strong>screver<br />

satisfatoriamente os movimentos convergentes do plano <strong>de</strong> conteúdo para o <strong>de</strong> expressão e<br />

vice-versa (homologias formais).<br />

Tentativas como essas têm sido leva<strong>da</strong>s a efeito nos dias presentes, por pesquisadores<br />

como, por exemplo, CRUCIUS (1951), DANGEL (2001), LAVARENNE (1968), LIMA<br />

(1992, 1995a, 1995b, 1995c, 1996), LUQUE MORENO (1987) e PRADO (1997).<br />

METODOLOGIA<br />

A respeito do método empregado na tradução, consi<strong>de</strong>rou-se, primeiramente, a<br />

composição do córpus, que é <strong>de</strong> natureza técnica, perfazendo uma clara oposição <strong>de</strong>stes aos<br />

textos literários.<br />

No trabalho tradutório do texto <strong>de</strong> Mário Vitorino o esforço buscou-se atingir o tanto<br />

quanto possível o paralelismo frástico, uma vez que se acredita ser necessário um cotejo interlingüístico<br />

latino-português. Assim, à tradução pratica<strong>da</strong> po<strong>de</strong>r-se-ia chamar <strong>de</strong> ad sensum,<br />

privilegiando antes o sentido que a mera transposição palavra por palavra, o que representaria<br />

uma tarefa praticamente impossível em se tratando <strong>de</strong> sistemas lingüísticos tão diversos.<br />

Também em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sta eleição, mas, especialmente, por tratar-se <strong>de</strong> textos que<br />

contém inúmeros termos especializados, pertencentes aos domínios <strong>da</strong>s línguas greco-latinas,<br />

<strong>de</strong>dicou-se especial atenção à busca <strong>de</strong> termos vernáculos a<strong>de</strong>quados para traduzi-los ou,<br />

quando impossível, à a<strong>da</strong>ptação e explicação, em nota, <strong>de</strong> seu significado e função.<br />

Se fez necessária uma investigação inicial que acrescentasse informações sobre o autor<br />

em questão e a matéria a ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong>. Apresenta-se, então, o resultado <strong>de</strong>sta pesquisa<br />

bibliográfica que além do texto latino <strong>de</strong> que se ocupou a pesquisa, utilizou-se <strong>de</strong> obras<br />

especializa<strong>da</strong>s em poética clássica e em métrica latinas, além <strong>de</strong> dicionários <strong>de</strong> latim e,<br />

dicionários <strong>de</strong> termos e temas específicos.<br />

RESULTADOS<br />

Os resultados expostos não correspon<strong>de</strong>m somente à tradução do córpus, mas,<br />

representam o resultado <strong>de</strong> uma breve pesquisa sobre a biografia do autor e uma apreciação<br />

bastante pormenoriza<strong>da</strong> dos julgamentos e conceitos apontados por Vitorino em sua obra. São<br />

propostos também os primeiros passos <strong>de</strong> uma análise comparativa entre manuais mo<strong>de</strong>rnos<br />

<strong>de</strong> métrica e os apontamentos <strong>de</strong>ste autor do quarto século romano, que está, temporalmente,<br />

muito mais próximo do período clássico <strong>da</strong> produção literária latina.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 321-329, 2008<br />

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A tradução do Liber Secundus <strong>de</strong> Mário Vitorino, assim como as traduções <strong>da</strong>s outras<br />

partes <strong>da</strong> obra do mesmo autor e <strong>de</strong> outros postulados <strong>de</strong> doutrinas métricas <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

vêm preencher uma lacuna existente entre tais textos e os estudos mo<strong>de</strong>rnos, que, em geral,<br />

privilegiam análises <strong>de</strong> cunho retórico e literário tratando com <strong>de</strong>sdém as questões métricas.<br />

O que se obtém como resultado é um córpus <strong>de</strong> autores antigos que trabalharam com questões<br />

<strong>de</strong> escrita, fonética, fonologia, e métrica, sobretudo do latim, sendo traduzidos para o<br />

vernáculo, até on<strong>de</strong> se pô<strong>de</strong> constatar, pela primeira vez.<br />

DISCUSSÕES<br />

O advento <strong>da</strong>s recitationes em Roma, leituras públicas <strong>de</strong> peças <strong>de</strong> oratória e <strong>de</strong><br />

poemas <strong>de</strong> caráter elevado, é um dos fatores que evi<strong>de</strong>nciama importância dos sons<br />

articulados <strong>da</strong> fala para o efeito estético do discurso.<br />

No entanto, existe também o fator do som e <strong>da</strong> pronúncia do latim, que, <strong>da</strong><strong>da</strong> a fortuna<br />

e situação histórica do idioma, só se po<strong>de</strong>, hoje, estu<strong>da</strong>r e <strong>de</strong>screver <strong>de</strong> maneira<br />

metalingüística, recorrendo-se aos textos remanescentes <strong>de</strong> autores antigos que falaram sobre<br />

esse assunto, como se vê, por exemplo, em Cícero, Orator, III, XI, 40:<br />

Para falar um bom latim, não basta cui<strong>da</strong>rmos apenas seja <strong>de</strong> dizer aquelas expressões<br />

que ninguém, com justiça, repreen<strong>de</strong>ria, seja <strong>de</strong> respeitá-las quanto aos casos, tempos,<br />

gêneros e número, <strong>de</strong> modo que na<strong>da</strong>, conflitante, fique confuso ou com sentido<br />

contraditório, mas é preciso também modular a pronúncia, a respiração e o próprio som<br />

<strong>da</strong> voz.<br />

Mesmo sabendo que Cícero, no excerto acima, se refere à oratória, matéria <strong>de</strong> seu<br />

interesse, é possível dizer que a citação se aplica facilmente à poesia. Como diz Mário<br />

Vitorino, autor com o qual se está trabalhando nessa pesquisa:<br />

Non numquam haec observatio praetermittitur. Sed qui fuerint eius modi versus, neque<br />

sonum neque gratiam habebunt et prosae orationi similes audientur.<br />

Sempre se <strong>de</strong>ixa passar essa observação: mas os versos que forem <strong>de</strong>sse modo [que<br />

terminassem em anapestos], nem som, nem graça teriam e seriam ouvidos como o<br />

discurso <strong>da</strong> prosa. 1<br />

É possível entrever que o estudo <strong>da</strong> métrica propicia uma dimensão inédita <strong>da</strong> poesia<br />

antiga, porque po<strong>de</strong> fazer enxergar efeitos <strong>de</strong> expressão não privilegiados nem abor<strong>da</strong>dos, em<br />

geral, por muitos dos estudos mo<strong>de</strong>rnos. A isso, ou seja, uma forma <strong>de</strong> estudo dos poemas que<br />

1 Mário Vitorino, Liber Secundus dos Artis grammaticae Libri III, p. 70. Todos excertos <strong>de</strong> Vitorino aqui citados<br />

foram traduzidos pela pesquisadora iniciante e revistos pelo orientador <strong>da</strong> pesquisa.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 321-329, 2008<br />

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privilegia uma leitura <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> organização do plano <strong>da</strong> expressão poética, i. e., a esses<br />

métodos <strong>de</strong> análise, po<strong>de</strong>r-se-ia <strong>da</strong>r o nome <strong>de</strong> poética <strong>da</strong> expressão ou métrica estilística.<br />

O texto do “Segundo Livro” dos “Três Livros <strong>de</strong> Mário Vitorino sobre a Arte<br />

Gramatical” trata especialmente <strong>da</strong>s “Nove Espécies <strong>de</strong> Protótipos <strong>de</strong> pés métricos”. Vitorino<br />

diz que a numerosa varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> metros <strong>da</strong> lírica latina se <strong>de</strong>senvolveu a partir <strong>de</strong> nove pés<br />

primitivos.<br />

Un<strong>de</strong> nunc ad novem prototypa, id est, e quorum fonte atque origine <strong>de</strong>rivata<br />

innumerabilis metrorum profluit copia, stilum nostri operis convertam, <strong>de</strong> quorum<br />

disciplina et praeceptis et ratione omni, qua inter se congruunt sive dissentiunt, textus<br />

huius secundi voluminis singula quaeque reserans expplicabit.<br />

Deste ponto agora voltarei o nosso trabalho para os nove protótipos, isto é, [espécies<br />

primitivas <strong>de</strong> todos os metros], <strong>de</strong> cuja fonte e origem <strong>de</strong>rivou uma quanti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

inumerável <strong>de</strong> metros. Sobre o ensino, os preceitos e a proporção completa dos metros,<br />

por meio <strong>da</strong> qual eles se reúnem ou se separam, falará o texto <strong>de</strong>ste segundo volume,<br />

revelando uma coisa <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> vez. 2<br />

Os nove protótipos a que Vitorino se refere, nas palavras do próprio autor:<br />

(...) sunt haec, e quis metra <strong>da</strong>ctylicum, <strong>de</strong>hinc anapaesticum, post iambicum et<br />

trochaicum et choriambicum et antipasticum, ionicum άπό µείονος (apo mêionos)<br />

ionicum άπό έλάσσονος (apó elássonos) et paeonicum.<br />

são aqueles <strong>de</strong>ntre os quais o primeiro é o <strong>da</strong>tílico ( − ˘ ˘ ), <strong>de</strong>pois o anapéstico ( ˘ ˘ − ),<br />

em segui<strong>da</strong> o iâmbico ( ˘ − ), o trocaico ( − ˘ ), o choriâmbico ( − ˘ ˘ − ), o antispástico ( ˘<br />

− − ˘ ), o jônico maior (− − ˘ ˘ ), o jônico menor ( ˘ ˘ − − ) e o peônico ( − ˘ ˘ ˘ │˘ − ˘ ˘ │<br />

˘ ˘ − ˘ │˘ ˘ ˘ − ). 3<br />

e ain<strong>da</strong> admite a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se julgar o proceleusmático ( ˘ ˘ ˘ ˘ ) como uma décima<br />

espécie. Assim Vitorino segue sua explanação sobre os protótipos <strong>de</strong> pés métricos <strong>da</strong> lírica<br />

latina tratando <strong>de</strong>talha<strong>da</strong>mente a sua origem, seu <strong>de</strong>senvolvimento, sua composição e<br />

<strong>de</strong>rivação, i.e. quais metros tais pés originaram.<br />

Ao tratar do pé <strong>da</strong>tílico, nosso objeto principal no recorte que se fez necessário para a<br />

presente apresentação, Vitorino nos revela peculiari<strong>da</strong><strong>de</strong>s que abarcam a construção do metro<br />

mais importante <strong>da</strong> métrica latina, o hexâmetro heróico. Um dos curiosos comentários que o<br />

autor faz sobre o metro <strong>da</strong>tílico é o juízo <strong>de</strong> baixa quali<strong>da</strong><strong>de</strong> que exibe aquele em que<br />

coinci<strong>da</strong>m a fronteira entre os pés com o final <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> palavra dos versos. E cita os exemplos:<br />

Pythĭĕ,| Dēlĭĕ,| tē cŏlŏ,| prōspǐcĕ | vōtăquĕ | fīrmă. 4<br />

2 Mário Vitorino, Liber Secundus dos Artis grammaticae Libri III, p. 69.<br />

3Mário Vitorino, Liber Secundus dos Artis grammaticae Libri III, p. 69 - 70.<br />

4<br />

Anonymi Epici et Lyrici, serioris aetatis versus. Frag. 50, 1 (Trad. Ó Pítio, ó Délio, eu te cultuo: vê meus votos<br />

e assegura-os).<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 321-329, 2008<br />

ou então, <strong>de</strong>sta forma, muito melhor:<br />

āt rē|gīnă gră|vī iām|dūdūm| sāucǐă| cūră 5 .<br />

Do mesmo modo, afirma o autor, é preciso cui<strong>da</strong>r para que o terceiro pé não <strong>de</strong>limite<br />

uma palavra, e que o verso se divi<strong>da</strong> a partir <strong>de</strong>le, como em:<br />

cūi nōn | dīctŭs Hў|lās || pŭĕr | ēt Lā|tōnĭă| Dēlŏs. 6<br />

O autor consi<strong>de</strong>ra tão <strong>de</strong>feituosos os versos citados há pouco quanto os que usam<br />

apenas um pé durante o verso todo; muito mais belos seriam se mesclassem os pés.<br />

Heroi versus vitiosi habentur qui ex solis <strong>da</strong>ctylis vel qui ex solis spon<strong>de</strong>is constant, quia<br />

in talibus aut gravis tarditas aut velocitas nimia vitiosa est. Insignes autem in metris sunt<br />

aut <strong>da</strong>ctylici, id est cum quinque <strong>da</strong>ctyli ultimo spon<strong>de</strong>o clauduntur, ut<br />

panditur interea domus omnipotentis Olympi;<br />

Aqueles versos heróicos que constam somente <strong>de</strong> dátilos ou somente <strong>de</strong> espon<strong>de</strong>us, são<br />

consi<strong>de</strong>rados <strong>de</strong>feituosos porque, em tais versos, ou há uma pesa<strong>da</strong> lentidão, ou há uma<br />

rapi<strong>de</strong>z por <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>sagradável. Por outro lado, os [versos] <strong>da</strong>tílicos são os mais<br />

importantes <strong>de</strong>ntre os metros, isto é, quando cinco dátilos são encerrados com um<br />

espon<strong>de</strong>u final, como 7<br />

[pāndĭtŭr | īntĕrĕ|ā dŏmŭs | ōmnĭpŏ|tēntĭs Ŏ|lympī;] 8,<br />

uma opção para a mistura entre dátilos e espon<strong>de</strong>us é o verso espondiazonte, que consiste em<br />

colocar um espon<strong>de</strong>u na 5ª e na 6ª regiões do verso. Como no exemlo citado:<br />

cōrnŭă | vēlā|tārūm ob|vērtĭmŭs | āntē|mnārūm 9 .<br />

Outra questão relevante, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>da</strong> tradução leva<strong>da</strong> a cabo até o presente<br />

momento, foi que, ao trabalhar mo<strong>de</strong>rnamente com a métrica clássica, parte-se <strong>da</strong> vaga noção<br />

mo<strong>de</strong>rna do que teriam sido as sílabas breves e longas dos gregos e romanos, e, a partir <strong>da</strong>í,<br />

<strong>de</strong>termina-se a formação dos pés métricos.<br />

Algo diferentemente <strong>de</strong>ssa forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver os pés métricos, Vitorino apresenta-os<br />

não como sendo a simples combinação entre breves e longas, mas como variação <strong>de</strong> outros<br />

5 Vergilius Maro, Publius, Aeneis, Livro IV, 1 (Trad. Mas já a rainha fatiga<strong>da</strong> por uma grave preocupação).<br />

6<br />

Vergilius Maro, Publius, Georgicon, Livro III, 6 (Trad. A quem não é chamado menino Hilas e a Delos<br />

Latônia).<br />

7 Mário Vitorino, Liber Secundus dos Artis grammaticae Libri III, p. 69.<br />

8 Vergilius Maro, Publius, Aeneis, Livro X, 1. (Trad. Do Olimpo omnipotente os paços se abrem – Enei<strong>da</strong>/ <strong>de</strong><br />

Virgílio; traduzi<strong>da</strong> por José Victorino Barreto Feio, José Maria <strong>da</strong> Costa e Silva; Organiza<strong>da</strong> por Paulo Sérgio <strong>de</strong><br />

Vasconcellos. São Paulo : Martins Fontes, 2004, pág. 307 ).<br />

9 Vergilius Maro, Publius, Aeneis, Livro III, 549 (Trad. viramos ao contrário as pontas dos mastros <strong>da</strong>s velas).<br />

326


pés. O hexâmetro <strong>da</strong>tílico, por exemplo, consta <strong>de</strong> espon<strong>de</strong>u, <strong>de</strong> troqueu e do próprio dátilo.<br />

Ele tem seis “lugares” [pés]. Admite também três formas <strong>de</strong> pés, as quais os gregos chamam<br />

podiká schêmata, “formas <strong>de</strong> pés”. Do hexâmetro <strong>da</strong>tílico, pois, nascem os metros: difílio ou<br />

querílio, o logaédico ou o arquebuleu, o eólico ou sáfico.<br />

Entre um espon<strong>de</strong>u e um dátilo, subsistirá uma mesma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, numa idêntica<br />

medi<strong>da</strong> <strong>de</strong> tempos, tanto na ársis como também na tésis 10 . Estes conceitos (ársis e tésis<br />

relaciona a intensi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> pronuncia dos pés métricos, a tésis correspon<strong>de</strong> ao tempo mais<br />

forte, a ársis ao mais tênue . Por meio <strong>de</strong>les, por união e separação, há uma mútua produção<br />

<strong>de</strong> pés, e, <strong>de</strong> maneira natural, indiferentemente <strong>de</strong> qualquer que seja a posição, do modo como<br />

foi operado o processo <strong>de</strong> escansão, esses versos são obtidos ao menos até o quarto pé: o<br />

quinto freqüentemente, como convém a um verso heróico, <strong>de</strong>ve ser um dátilo.<br />

Ain<strong>da</strong> sobre o verso épico, Vitorino testemunha uma conten<strong>da</strong> entre os gramáticos <strong>de</strong><br />

sua época acerca do pé final do verso heróico, se troqueu ou espon<strong>de</strong>u: o troqueu, como<br />

coinci<strong>de</strong> tão somente em número <strong>de</strong> sílabas com o espon<strong>de</strong>u, está sempre localizado na parte<br />

extrema do verso heróico. Apesar <strong>de</strong> serem equivalentes, se colocados na parte extrema do<br />

verso, acredita-se que se faria um verso épico mais belo se ele fosse encerrado com o<br />

abaixamento <strong>da</strong> voz; isso correspon<strong>de</strong> a um troqueu na posição final.<br />

CONCLUSÕES<br />

Concluí<strong>da</strong> essa primeira fase <strong>da</strong> tradução dos livros <strong>da</strong> Ars Grammatica <strong>de</strong> Mário<br />

Vitorino — no presente caso, o Livro Segundo– fica patente a importância <strong>da</strong> arte métrica<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> clássica, bem como o interesse em normatizar os fatores relativos à<br />

sonori<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong>s palavras e à produção dos discursos, qualquer que fosse a mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> texto<br />

em que se investiram as técnicas artísticas <strong>de</strong> composição; fosse ele concebido para uma<br />

leitura pública ou fosse <strong>de</strong>stinado à uma leitura priva<strong>da</strong>, o fato é que era sempre concebido<br />

enquanto fala, recitação.<br />

Em razão <strong>de</strong> experimentar <strong>de</strong> modo empírico a cadência, a harmonia, o ritmo <strong>da</strong> fala<br />

tecnicamente trabalha<strong>da</strong> dos versos, à métrica clássica era natural a pon<strong>de</strong>ração sobre os sons<br />

articulados <strong>da</strong> fala e suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s fônicas. Assim os manuais mo<strong>de</strong>rnos, produzidos com<br />

10 Ca<strong>da</strong> um dos pés métricos se dividia em duas partes, iguais ou <strong>de</strong>siguais em suas durações, mas com<br />

intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s diferentes, organizando-se em dois subgrupos que eram visivelmente batidos por movimentos dos<br />

pés ou <strong>da</strong>s mãos: a tesis, que correspondia ao pé no chão ou à mão abaixa<strong>da</strong>, e a arsis, pé ou mão levantados. Os<br />

pés podiam começar quer pela arsis, quer pela tesis. A relação entre a duração dos dois subgrupos classifica o<br />

gênero dos diferentes pés, segundo Mário Vitorino.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 321-329, 2008<br />

327


ase na doutrina métrica <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>, procuraram catalogar as regulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s percebi<strong>da</strong>s na<br />

poesia clássica e formular as normas <strong>de</strong> sua ocorrência nos versos, ou seja, proce<strong>de</strong>ram à<br />

investigação <strong>da</strong>s medi<strong>da</strong>s <strong>de</strong> harmonia encontra<strong>da</strong>s – os metros – e trataram <strong>de</strong> estabelecer as<br />

leis que governariam seu emprego e os efeitos produzidos por eles, mas sempre com base no<br />

fenômeno sonoro <strong>de</strong> uma língua antiga.<br />

Esse córpus que se concebe lenta e gra<strong>da</strong>tivamente, uma vez constituído, permitirá<br />

várias formas <strong>de</strong> análise dos <strong>da</strong>dos lá contidos, trazendo, quem sabe, uma nova perspectiva<br />

para os estudos <strong>de</strong> poética <strong>de</strong> expressão e métrica estilística.<br />

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<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 321-329, 2008<br />

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O <strong>de</strong>cassílabo camoniano como mo<strong>de</strong>lo métrico para uma tradução <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong><br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

Prof. Dr. Márcio THAMOS<br />

FCLAr – UNESP<br />

Grupo LINCEU – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> Clássica / UNESP<br />

marciothamos@uol.com.br<br />

A tradução é i<strong>de</strong>almente a expressão <strong>de</strong> uma leitura. E, uma vez que certa equivalência<br />

estilística é o mínimo que se po<strong>de</strong> exigir <strong>de</strong> uma tradução, a consciência <strong>de</strong> fatos expressivos<br />

observados no texto original contribui diretamente para a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> uma realização<br />

vernácula em que aquela <strong>de</strong>sejável equivalência se verifique num grau ca<strong>da</strong> vez mais próximo<br />

do i<strong>de</strong>al.<br />

Conforme adverte João Batista Toledo Prado, nas traduções <strong>de</strong> poemas latinos para o<br />

vernáculo, o leitor <strong>de</strong>verá estar atento a que<br />

o texto em língua materna dê conta <strong>de</strong> produzir as equivalências rítmicas e<br />

os isomorfismos <strong>de</strong> conteúdo e expressão, presentes no poema latino, sem o<br />

que não existe poema em latim, sem o que não existirá tradução <strong>de</strong> poema<br />

latino para o português. (1997, p. 250)<br />

Ain<strong>da</strong> que reconheça <strong>de</strong> bom grado a justeza do preceito, o tradutor trabalha nos<br />

limites <strong>de</strong> seu talento próprio: entre o vislumbre <strong>de</strong> possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s e a realização <strong>de</strong> uma<br />

escolha, nem sempre o espírito se contenta. A resignação consciente é uma estratégia que se<br />

apren<strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> continuar.<br />

Nas reflexões acerca do Homo Lu<strong>de</strong>ns, Johan Huizinga faz notar que<br />

To<strong>da</strong> civilização só muito lentamente vai abandonando a forma<br />

poética como principal método <strong>de</strong> expressão <strong>da</strong>s coisas importantes para a<br />

vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> social. A poesia sempre antece<strong>de</strong> a prosa; para a<br />

expressão <strong>de</strong> coisas solenes ou sagra<strong>da</strong>s, a poesia é o único veículo<br />

a<strong>de</strong>quado. (1996, p. 142).


Essa observação po<strong>de</strong> ser confirma<strong>da</strong> por vários exemplos <strong>da</strong> história literária. No que<br />

diz respeito às literaturas latina e portuguesa, a Enei<strong>da</strong> e Os Lusía<strong>da</strong>s representam<br />

respectivamente mo<strong>de</strong>los acabados do emprego <strong>da</strong> poesia na expressão dos valores mais<br />

sublimes <strong>de</strong> uma socie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ressalte-se que Virgílio adotou o hexâmetro <strong>da</strong>tílico como<br />

padrão métrico <strong>de</strong> sua obra e que Camões fez do <strong>de</strong>cassílabo o mol<strong>de</strong> <strong>de</strong> composição <strong>da</strong> sua.<br />

Nos dois casos, a escolha do metro parece corroborar estilisticamente a gran<strong>de</strong>za do tema<br />

cantado.<br />

O verso latino é formado por uma seqüência <strong>de</strong> sílabas longas, indica<strong>da</strong>s, nos<br />

exercícios <strong>de</strong> escansão, pelo macro ( ¯ ) e breves, indica<strong>da</strong>s pela braquia ( ˘ ). Uma longa<br />

equivale metricamente a duas breves. Agrupa<strong>da</strong>s em uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s rítmicas, as sílabas compõem<br />

os pés métricos. O hexâmetro <strong>da</strong>tílico é um verso composto por seis pés <strong>de</strong> quatro tempos<br />

ca<strong>da</strong> (uma sílaba breve correspon<strong>de</strong>ndo a um tempo e uma longa, a dois). Os quatro primeiros<br />

pés são <strong>da</strong>tílicos ou espon<strong>da</strong>icos, isto é, uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s compostas pela seqüência <strong>de</strong> uma sílaba<br />

longa e duas breves ou <strong>de</strong> duas sílabas longas. O quinto pé, que caracteriza o verso, é<br />

necessariamente um dátilo ( ¯ ˘ ˘ ), e o último, um espon<strong>de</strong>u ( ¯ ¯ ) ou, uma espécie <strong>de</strong> pé<br />

quebrado, um troqueu ( ¯ ˘ ) 1 . Completa esse esquema métrico a cesura, indica<strong>da</strong> pela barra<br />

dupla (║), uma espécie <strong>de</strong> corte semântico que estabelece o equilíbrio rítmico-sintático do<br />

verso, fixa<strong>da</strong> com freqüência após a primeira sílaba do terceiro ou do quarto pé (embora<br />

possam ocorrer cesuras em outros pontos do hexâmetro). A título <strong>de</strong> exemplo, veja-se a<br />

escansão do verso inicial <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>:<br />

Ārmă uĭ|rūmquĕ că|nō,║Trō|iāe quī| prīmŭs ăb| ōrīs<br />

[Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris]<br />

1 A última sílaba do verso teria, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, sua duração neutraliza<strong>da</strong> pela pausa final, <strong>da</strong>í a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ser<br />

longa, no caso do espon<strong>de</strong>u, ou breve, no caso do troqueu, sem que isso represente variação formal do mo<strong>de</strong>lo<br />

rítmico <strong>de</strong> vinte e quatro tempos.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

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O <strong>de</strong>cassílabo português é um verso <strong>de</strong> <strong>de</strong>z sílabas poéticas que recebe um acento<br />

prosódico regular na sexta. A este costuma-se chamar heróico. Quando ocasionalmente o<br />

acento não ocorre na sexta sílaba, exigem-se acentos na quarta e na oitava. Essa variação<br />

tradicional do <strong>de</strong>cassílabo recebe quase sempre a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> sáfico. Nota-se assim a<br />

preocupação métrica <strong>de</strong> garantir o equilíbrio rítmico i<strong>de</strong>al do verso: o acento regular do<br />

heróico se <strong>de</strong>sdobra, no caso do sáfico, numa distribuição acentual equivalente em torno <strong>da</strong><br />

sexta sílaba, ancorando-se na referência eqüidistante <strong>da</strong>s sílabas pares mais próximas. Como<br />

exemplo, observem-se os seguintes versos <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>s estrofes finais d’Os Lusía<strong>da</strong>s (X, 153),<br />

em que um <strong>de</strong>cassílabo sáfico se insinua entre a marcante regulari<strong>da</strong><strong>de</strong> dos heróicos:<br />

A disciplina militar prestante<br />

Não se apren<strong>de</strong>, Senhor, na fantasia,<br />

Sonhando, imaginando ou estu<strong>da</strong>ndo,<br />

Senão vendo, tratando e pelejando.<br />

É impossível não pensar n’Os Lusía<strong>da</strong>s, obra que fun<strong>da</strong> magnificamente a tradição<br />

épica do português, como referência mo<strong>de</strong>lar para uma tradução <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>. Por isso, numa<br />

tradução do Canto I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong> 2 , os hexâmetros virgilianos foram transpostos em <strong>de</strong>cassílabos<br />

mais ou menos à maneira <strong>de</strong> Camões, vale dizer, quase sempre em versos com acento<br />

característico na sexta sílaba (heróico), e mais esporadicamente em versos com acentos<br />

característicos na quarta e na oitava (sáfico). Procurou-se ain<strong>da</strong> atentar para a particulari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> não serem normalmente acentua<strong>da</strong>s a sétima e a nona sílabas em ca<strong>da</strong> verso. Esse recurso<br />

parece garantir ao <strong>de</strong>cassílabo camoniano uma cadência final própria, certa regulari<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

rítmica que lembra a invariabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do hexâmetro a partir do quinto pé.<br />

A melhor <strong>de</strong>sculpa para não intentar a oitava rima é alegar que não têm rima nem<br />

formam estrofes os versos <strong>de</strong> Virgílio (ain<strong>da</strong> que boa, não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser uma <strong>de</strong>sculpa). Um<br />

2 Cf. Márcio Thamos (2007).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

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argumento menos contestável – e, realmente, <strong>de</strong> autori<strong>da</strong><strong>de</strong>! – é lembrar que ninguém menos<br />

do que Bocage escolheu o “<strong>de</strong>cassílabo branco” para traduzir tanto os hexâmetros <strong>da</strong> V<br />

Égloga <strong>de</strong> Virgílio quanto os <strong>da</strong>s Metamorfoses <strong>de</strong> Ovídio 3 .<br />

Nas traduções <strong>de</strong> Bocage, bem como na experiência <strong>de</strong> tradução do Canto I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>,<br />

a dispari<strong>da</strong><strong>de</strong> numérica <strong>de</strong> versos não <strong>de</strong>ve induzir ninguém a uma conclusão precipita<strong>da</strong><br />

quanto ao po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> síntese expressiva <strong>da</strong>s línguas (são sempre mais <strong>de</strong>cassílabos do que<br />

hexâmetros): <strong>de</strong>ve-se antes notar que, se o texto em português é mais “comprido”, o texto em<br />

latim também é mais “largo”.<br />

Quanto às notas que acompanham a tradução, sendo inevitavelmente numerosas,<br />

procurou-se garantir que fossem tanto quanto possível sucintas, suprindo não mais do que a<br />

necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> básica <strong>de</strong> referência exigi<strong>da</strong> pelo contexto. Elas são os respingos que indicam o<br />

necessário mergulho do tradutor nas águas cau<strong>da</strong>losas <strong>da</strong> cultura antiga, mas não <strong>de</strong>vem<br />

espantar <strong>da</strong> beira o leitor que se assentou a fim <strong>de</strong> fruir tranqüilamente o frescor <strong>da</strong> poesia.<br />

Referências bibliográficas<br />

BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. Obras <strong>de</strong> Bocage. Porto: Lello & Irmão, 1968.<br />

CAMÕES, Luís <strong>de</strong>. Os Lusía<strong>da</strong>s. In: _____. Obra completa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar,<br />

2003, p. 8-264.<br />

HUIZINGA, Johan. Homo lu<strong>de</strong>ns: o jogo como elemento <strong>da</strong> cultura. 4 a ed. Trad. João Paulo<br />

Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1996.<br />

OVÍDIO. Metamorfoses. Trad. M. M. B. du Bocage (Introd. João Angelo Oliva Neto). São<br />

Paulo: Hedra, 2007.<br />

PRADO, João Batista Toledo. Canto e encanto, o charme <strong>da</strong> poesia latina: contribuição para<br />

uma poética <strong>da</strong> expressivi<strong>da</strong><strong>de</strong> em língua latina. 272 f. Tese (Doutorado em Letras).<br />

Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São<br />

Paulo, 1997.<br />

3 Cf. Bocage (1968) e Ovídio (2007).<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

333


THAMOS, Márcio. As armas e o varão: leitura e tradução do canto I <strong>da</strong> Enei<strong>da</strong>. 318 f. Tese<br />

(Doutorado em Letras). Facul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências e Letras, Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista,<br />

Araraquara, 2007.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 330-334, 2008<br />

334


Diferentes posturas em relação ao estrangeiro no Império Romano tardio: uma análise<br />

<strong>de</strong> Amiano Marcelino e <strong>da</strong> historiografia do período (século IV e V d.C.)<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

Ana Carolina <strong>de</strong> Carvalho VIOTTI<br />

G (FAPESP) – FHDSS Franca – UNESP<br />

carol_viotti@hotmail.com<br />

Uma imagem recorrente dos estrangeiros, tanto no Império Romano quanto em<br />

algumas outras civilizações <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> que <strong>de</strong>frontaram com elementos oriundos <strong>de</strong><br />

locais que não seu território, é a <strong>da</strong> hostili<strong>da</strong><strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> incorporados nas mais diversas<br />

instâncias <strong>de</strong> organização <strong>da</strong> socie<strong>da</strong><strong>de</strong> romana, estas pessoas são apresenta<strong>da</strong>s, na maior<br />

parte <strong>da</strong>s vezes, como inimigos que <strong>de</strong>veriam ser combatidos, invasores, salteadores,<br />

corruptos, usurpadores, enfim, diversas po<strong>de</strong>riam ser as <strong>de</strong>nominações adota<strong>da</strong>s, embutindolhes<br />

uma carga negativa. Dentro <strong>da</strong>s muralhas do Império, referimo-nos, especificamente, aos<br />

chamados bárbaros.<br />

A <strong>de</strong>speito disso, é possível encontrar a <strong>de</strong>nominação “o bárbaro”, que interpretamos<br />

e nomeamos como estrangeiro, a fim <strong>de</strong> evitar qualquer assimilação pejorativa referente ao<br />

termo, associado e incorporado às instituições imperiais, em diversos momentos e <strong>de</strong><br />

diferentes maneiras. Atentemo-nos a algumas possibili<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> incorporação <strong>de</strong>stes. Libertos<br />

ou cativos, são organizados no território, mesmo que com cautela, a fim <strong>de</strong> repovoar ou<br />

cultivar <strong>de</strong>termina<strong>da</strong>s áreas on<strong>de</strong> a mão <strong>de</strong> obra era escassa e, seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, assim como<br />

os dos romanos <strong>de</strong> nascimento, <strong>de</strong>vem prestar serviço militar (CALAN, 2007, p.3-6). Ferris<br />

(2003, p. 168) <strong>de</strong>stacará, também, que esses filhos <strong>de</strong> bárbaros nascidos em Roma po<strong>de</strong>riam<br />

adquirir o status <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dão, através do serviço nas auxilia romanas, acrescentando que um<br />

povo <strong>de</strong>rrotado pelos romanos nem sempre caracterizava pessoas <strong>de</strong>spreza<strong>da</strong>s, <strong>de</strong>ixa<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

lado. Nesse sentido, i<strong>de</strong>ntificamos duas posturas avessas sobre o elemento estrangeiro: uma,<br />

recorrente, que <strong>de</strong>screve o forasteiro – e porque não um imigrante – como aquele que <strong>de</strong>ve ser<br />

combatido, associando-os às investi<strong>da</strong>s que diversos grupos realizaram contra as fronteiras<br />

romanas, e outra, que recebe pouca ênfase, mas é <strong>de</strong>veras presente, que é o “aproveitamento”<br />

<strong>de</strong>sses homens <strong>de</strong>ntro do Império, seja compondo o braço armado na <strong>de</strong>fesa contra outros<br />

bárbaros, seja no povoamento <strong>de</strong> regiões conquista<strong>da</strong>s, seja na manutenção e expansão<br />

agrícola.<br />

O papel dúbio do estrangeiro, que ora ataca, ora protege, não nos parece<br />

completamente distinto nas documentações ou mesmo na historiografia, especialmente a<br />

produzi<strong>da</strong> até meados <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> <strong>de</strong> 1990. Encontramos o papel <strong>de</strong> rival dos romanos com


maior freqüência sendo aquele que po<strong>de</strong> também lutar ao seu lado, quadro que vai tomando<br />

nova feição com as exposições <strong>de</strong> Wolfgang Liebeschuetz (1990) 1 , Heater (1999) e Hugh<br />

(1996), especialmente. O estrangeiro compunha a arma<strong>da</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as alterações <strong>de</strong>sta <strong>de</strong> milícia<br />

citadina em exército profissional. Seu trabalho fora introduzido <strong>de</strong> forma eventual ou em<br />

serviço regular ao longo dos séculos <strong>de</strong> existência do aparato militar regular e, como o próprio<br />

Liebeschuetz nos aponta, pautado, <strong>de</strong>ntre outros escritos, no documento Notitia Dignitatum 2 ,<br />

que num <strong>de</strong>terminado período a <strong>de</strong>fesa do Império estaria tão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sses homens<br />

oriundos <strong>de</strong> além-Roma que seriam eles os responsáveis por garantir a manutenção e<br />

resistência <strong>da</strong>s fronteiras, <strong>de</strong> forma muito mais intensa que os ci<strong>da</strong>dãos que compunham as<br />

milícias.<br />

Miles já observara a ausência <strong>de</strong> uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária que po<strong>de</strong>ríamos nomear<br />

como arquétipo <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> tardia, visto que esta estaria em constante fluxo e movimento<br />

− <strong>de</strong>vido ao gran<strong>de</strong> volume <strong>de</strong> acontecimentos e transformações do período (1999, p.5) − <strong>da</strong><br />

mesma forma que não haveria uma única cultura na qual essas plurais i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s pu<strong>de</strong>ssem<br />

ser enquadra<strong>da</strong>s. Tanto i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> quanto cultura são elementos produzidos nas narrativas,<br />

necessários para que a comuni<strong>da</strong><strong>de</strong> à qual se pertença possa ser imagina<strong>da</strong>, para que os<br />

homens possam i<strong>de</strong>ntificar-se com seus conci<strong>da</strong>dãos, para que possa haver a idéia <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dão,<br />

<strong>de</strong> pátria, <strong>de</strong> fato. A cultura funciona como um elemento homogeneizador, e concentra em si<br />

uma <strong>da</strong>s formas <strong>de</strong> produzir, consumir e regular as i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Uma cultura multilateral<br />

produz mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação igualmente plurais.<br />

Coroado pela historiografia sobre o tema como ‘o outro’ por excelência no mundo<br />

romano, o estrangeiro, “bárbaro”, será i<strong>de</strong>ntificado como o contraponto <strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> e <strong>da</strong><br />

cultura romanas, apesar <strong>de</strong> nelas influírem <strong>de</strong> inegável maneira. É notável nos relatos<br />

contemporâneos ao período que tivemos acesso, do qual <strong>de</strong>stacamos os <strong>de</strong> Amiano<br />

Marcelino 3 , Zózimo 4 e Vegécio 5 , suas impressões acerca dos eventos e personagens que<br />

1 LIEBESCHUETZ, W. The end of the Roman army in the western empire. In : RICH, John and SHIPLEY,<br />

Graham. War and society in the Roman world. London, New York: Routledge, 1993.<br />

2 O Notitia Dignitatum consiste numa lista cujo conteúdo refere-se às uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s militares <strong>de</strong> ambas as partes do<br />

Império. Apesar <strong>de</strong>, recentemente, autores como Hugh Elton afirmarem que seu teor contenha cerca <strong>de</strong> 25% a<br />

menos <strong>da</strong> proporção real <strong>de</strong> bárbaros, continua válido e significante em diversos níveis.<br />

3 AMMIANUS MARCELLINUS. Res Gestae. With an English translation by John C. Rolfe. Cambridge,<br />

Massachusetts: Harvard University Press; London: William Heinemann LTD, 1982.<br />

4<br />

ZÓSIMO. Nueva Historia. Indroducción, traducción y notas <strong>de</strong> José Maria Can<strong>da</strong>u Morón. Madri: Ed. Gredos,<br />

1992.<br />

5 VEGÉCIO. A arte militar. São Paulo: Ed. Paumape, 1995.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

336


compunham seu cotidiano e transformavam-no. A tradução <strong>da</strong>s diferenças entre essas duas<br />

categorias <strong>de</strong> povos, se for apropria<strong>da</strong> tal terminologia, em esquemas <strong>de</strong> inversão: a<br />

transcrição do outro como o antipróprio. A imagem construí<strong>da</strong> 6 a seu respeito fora <strong>de</strong> extrema<br />

importância na edificação <strong>da</strong> história militar romana tardia, já que nenhuma i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> po<strong>de</strong><br />

existir sem uma série <strong>de</strong> oposições ou negativas.<br />

Cumpre ressaltar que não i<strong>de</strong>ntificamos em nenhum dos relatos analisados qualquer<br />

menção sobre estarem presenciando um momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>clínio ou que<strong>da</strong> do Império Romano,<br />

forma com que o período fora tratado por gran<strong>de</strong> parte dos historiadores classicistas, mas sim<br />

um momento <strong>de</strong> tensão e dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s que, aos seus olhos, seriam sana<strong>da</strong>s se as medi<strong>da</strong>s por<br />

eles julga<strong>da</strong>s corretas fossem toma<strong>da</strong>s. Esse é o foco do trabalho <strong>de</strong> Flávio Renato Vegécio,<br />

que, na escrita <strong>de</strong> um tratado militar, buscou reunir os conhecimentos <strong>de</strong> diversos<br />

especialistas e manuais marciais, agrupando as técnicas, táticas, forma <strong>de</strong> recrutamento,<br />

exercícios, logística, enfim, to<strong>da</strong> gama <strong>de</strong> assuntos que se referem ao funcionamento do<br />

exército, e, sobretudo, no que <strong>de</strong>limitava como seu bom funcionamento – que po<strong>de</strong>ria ser<br />

retomado com as observações <strong>da</strong> tradição militar romana. Seu objetivo remonta ao<br />

reavivamento do passado, dos costumes militares, <strong>da</strong> tradição, aspecto último que<br />

i<strong>de</strong>ntificamos, também, nos escritos <strong>de</strong> Amiano Marcelino. Nesse sentido, não é errado inferir<br />

que, vendo as sucessivas <strong>de</strong>rrotas e, como aponta na segun<strong>da</strong> passagem <strong>de</strong>staca<strong>da</strong>, os gran<strong>de</strong>s<br />

problemas enfrentados pela instituição que fora a <strong>de</strong> respeito e força máxima romana, a<br />

responsável por ter subtraído os <strong>de</strong>mais povos por sua capaci<strong>da</strong><strong>de</strong> bélica, aquela que<br />

proporcionara o equilíbrio e a estabili<strong>da</strong><strong>de</strong> entre os romanos, seus contemporâneos revivessem<br />

os tempos áureos <strong>de</strong> conquistas e expansão para que fossem exemplos nos tempos <strong>de</strong> reveses<br />

e per<strong>da</strong>s. Na tentativa <strong>de</strong> valorizar os ci<strong>da</strong>dãos que compunham o Império, Vegécio encerra<br />

seu capítulo sobre recrutamento <strong>de</strong> forma categórica: “é mais útil e louvável instruir nas<br />

armas sol<strong>da</strong>dos próprios que recorrer a mercenários estrangeiros”. O interessante é notar que,<br />

apesar <strong>de</strong> to<strong>da</strong> essa elevação do ser romano, não dispensa o ser bárbaro, ain<strong>da</strong> que relegando a<br />

esse um papel inferior: “mas até essas tropas [as bárbaras], se aprimora<strong>da</strong>s com exercícios<br />

vigorosos, diversificados e quase que quotidianos, revelar-se-ão <strong>de</strong> não escasso proveito<br />

(1995, II, II)”.<br />

6 Ao afirmar que a imagem do bárbaro fora construí<strong>da</strong>, consi<strong>de</strong>ra-se a questão <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r inseri<strong>da</strong> na problemática<br />

<strong>da</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong>, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> representar, <strong>de</strong> legar a posteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong> se afirmar diante <strong>de</strong> seu tempo. Os bárbaros<br />

foram “barbarizados” pelos romanos que sobre eles discorreram, assim como foram pelos gregos e mais tar<strong>de</strong><br />

serão os índios pelos europeus, num jogo <strong>de</strong> imagem e po<strong>de</strong>r constante. Os relatos que temos acesso nos<br />

apresentam uma <strong>da</strong>s diversas faces <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s que preencheram o mundo <strong>de</strong> conflito e alianças entre romanos<br />

e bárbaros. Ao vislumbramos a ótica romana, é imprescindível consi<strong>de</strong>rar que o que nela contém ilustra a<br />

percepção <strong>de</strong>sses homens sobre os outros, e não uma transposição do que era vivido para suas obras.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

337


O ingresso <strong>de</strong> estrangeiros em massa no Exército fora justificado por muitos, no qual<br />

Vegécio, Amiano e Zózimo po<strong>de</strong>m ser incluídos, como alternativa a uma crise <strong>de</strong> natali<strong>da</strong><strong>de</strong>,<br />

em que jovens romanos seriam matéria escassa para ingressar as fileiras arma<strong>da</strong>s. Com a<br />

redução do contingente puro, <strong>da</strong>queles que se enquadravam na categoria <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dãos, não<br />

restava alternativa aos coman<strong>da</strong>ntes além <strong>de</strong> agrupar aos seus <strong>de</strong>stacamentos elementos <strong>de</strong><br />

além-Roma, reunidos por acordos, vonta<strong>de</strong> própria ou como cativos. Contudo, Vegécio nos<br />

revela que, mais que a quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> homens, sua quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong>veria ser observa<strong>da</strong>, o que<br />

<strong>de</strong>cidiria as batalhas seria o valor e não o número <strong>de</strong> sol<strong>da</strong>dos.<br />

Zózimo nos apresenta contribuições interessantes sobre as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Exército.<br />

A fun<strong>da</strong>mentação <strong>de</strong> seu argumento <strong>de</strong> que o Império passava por dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s não é<br />

primeiramente militar, mas sim política e religiosa. Este autor, <strong>de</strong> instrução pagã, remonta os<br />

problemas romanos no <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> uma tradição, <strong>da</strong> tradição religiosa <strong>de</strong> culto aos <strong>de</strong>uses do<br />

Capitólio; o estopim, a seu ver, para todos os problemas enfrentados pelos Imperadores. Seu<br />

objetivo não é reconstruir a história <strong>de</strong> Roma pelo viés militar, na leitura <strong>de</strong> sua narrativa<br />

observamos a proeminência <strong>de</strong> assuntos <strong>de</strong> cunho político, a motivação para legar à<br />

posteri<strong>da</strong><strong>de</strong> uma Nova História <strong>de</strong> Roma, como intitula o relato, é mostrar as nuanças,<br />

evoluções, digressões e modificações nas estruturas políticas, que incidiram diretamente nos<br />

<strong>de</strong>mais pilares <strong>de</strong> sustentação do Império, como o Exército. Visto que pensamos que muitas<br />

<strong>da</strong>s ações políticas adquirem cunho religioso, e vice-versa, é possível assinalar em Zózimo<br />

essa dupla preocupação, esse interesse aliado ao receio do que as atitu<strong>de</strong>s dos dois âmbitos<br />

po<strong>de</strong>riam gerar ao Império. Suas críticas diretas à a<strong>de</strong>são ao cristianismo ocorrem em diversos<br />

momentos, e seu julgamento à profissão <strong>de</strong>ssa fé aparece mesmo em citações sobre os<br />

Imperadores, como notamos em sua exposição do cristianismo pregado por Valentiniano. É<br />

certo que esse imperador, em especial, fora alvejado por críticas diversas, mas cabe ressaltar<br />

sua observação, que aponta o <strong>de</strong>scumprimento dos <strong>de</strong>veres do mesmo <strong>de</strong>vido à crença no<br />

Cristo:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

Valentiniano nutria um especial ressentimento pelo filósofo Máximo, pois<br />

recor<strong>da</strong>va <strong>de</strong> cetra acusação dirigi<strong>da</strong> contra ele precisamente por Máximo<br />

nos tempos <strong>de</strong> Juliano, segundo o qual ele havia faltado, em razão <strong>de</strong> sua fé<br />

cristã, aos preceitos divinos (ZÓSIMO, 1992, IV, 2, 2).<br />

Outros imperadores cristãos não passam ilesos sob seus olhos, que vê no abandono<br />

do paganismo o <strong>de</strong>svio do caminho correto, quando menciona o recebimento do título <strong>de</strong><br />

pontífice, concedido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as origens aos estadistas:<br />

338


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

[...] todos os <strong>de</strong>mais soberanos receberam tal honra e se serviram <strong>de</strong> tal<br />

título com a melhor <strong>da</strong>s disposições, incluindo, quando lhe calhou a sorte do<br />

trono, Constantino – apesar <strong>de</strong> que no que se referia às coisas divinas se<br />

havia separado do caminho reto, elegendo a fé cristã – e <strong>de</strong>pois, todos os<br />

<strong>de</strong>mais, ininterruptamente, até Valentiniano e Valente. Quando [...]<br />

apresentaram o costume a Graciano, este repudiou o que lhe era solicitado,<br />

pensando que tal vestimenta não era lícita a um cristão. E contam que, ao<br />

ser <strong>de</strong>volvi<strong>da</strong> a vestimenta aos sacerdotes, o que entre eles ocupava o<br />

primeiro lugar disse: “se o imperador não quer receber o título <strong>de</strong> pontífice,<br />

muito rapi<strong>da</strong>mente se advirá um pontífice máximo (ZÓSIMO, IV, 36, 4-<br />

5, grifo meu)”.<br />

Não é <strong>de</strong> causar espanto que sejam esses últimos imperadores nomeados, que<br />

encerram a tradição pagã, Valentiniano e Valente, os mais responsabilizados por Zózimo<br />

pelas crises e instabili<strong>da</strong><strong>de</strong> que presencia em seu tempo. Aqueles <strong>de</strong>tentores <strong>da</strong>s ações<br />

políticas, afastados <strong>da</strong>s orientações religiosas que julgavam a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>s e imprescindíveis para<br />

o sucesso <strong>da</strong>s campanhas, só po<strong>de</strong>riam guiar Roma para a beira <strong>de</strong> um abismo, o qual, como<br />

forma <strong>de</strong> evitar a que<strong>da</strong>, precisara agregar ao seu seio membros outrora renegados como<br />

escória sem função.<br />

A agregação dos estrangeiros é cita<strong>da</strong> com naturali<strong>da</strong><strong>de</strong> pelo autor que, <strong>de</strong> forma<br />

mais suave que os <strong>de</strong>mais consultados, crê que a heterogenei<strong>da</strong><strong>de</strong>, ain<strong>da</strong> que prejudicial a<br />

longo prazo, po<strong>de</strong>ria ser uma válvula <strong>de</strong> escape para a normalização <strong>da</strong>s condições do<br />

Império. O gran<strong>de</strong> risco <strong>de</strong> manter uni<strong>da</strong><strong>de</strong>s bárbaras aloja<strong>da</strong>s nas tropas eram as revoltas,<br />

que, alia<strong>da</strong>s a <strong>de</strong>serções massivas <strong>de</strong> romanos, transformavam períodos <strong>de</strong> paz em caos.<br />

Um fator que expan<strong>de</strong> a dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão dos eventos acerca do<br />

estrangeiro na obra <strong>de</strong> Amiano é a carência <strong>de</strong> distinção que faz entre aqueles que são ou não<br />

agregados ao Império, os que o compõe como aliados ou que o rebatem como inimigos. A<br />

distinção foi feita, em geral, na nomeação ou na falta <strong>de</strong>la em suas assertivas: notou-se que<br />

quando trata <strong>da</strong>queles combatidos, especialmente os <strong>de</strong>rrotados ou inimigos <strong>de</strong>clarados <strong>de</strong><br />

Roma, especifica sua origem – Alamanos, Saxões, Burgúndios, etc. – enquanto que os<br />

internos ao Império são <strong>de</strong>stacados como outros tipos, aqueles homens, outros bárbaros.<br />

A citação <strong>de</strong> Amiano Marcelino no início <strong>de</strong>sta reflexão parece dispensar outros<br />

comentários sobre sua postura acerca <strong>de</strong> suas concepções do estrangeiro, propondo que estas<br />

se encerrariam na idéia <strong>de</strong> que aqueles seriam bons enquanto mortos. Contudo, com a leitura<br />

<strong>de</strong> sua obra, i<strong>de</strong>ntificamos menções à presença estrangeira com naturali<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Depois disso, com cui<strong>da</strong>dosa diligência e tropas <strong>de</strong> vários tipos, uma<br />

campanha mais séria que a comum fora prepara<strong>da</strong> contra os Alamanos,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a segurança pública imperiosamente necessitava disto [...] O<br />

imperador dividiu seu exército e avançou na formação <strong>de</strong> quadrado com ele<br />

339


<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

mesmo ao centro e seus generais [...] Então, guiado pelo homem que<br />

conhecia a estra<strong>da</strong>, eles pela primeira vez marcharam vagarosamente [...]<br />

(AMMIANUS MARCELLINUS, 1982, XXVII, 10, 5-7).<br />

Neste pequeno excerto i<strong>de</strong>ntificamos apontamentos importantes, já que menciona a<br />

formação <strong>da</strong> tropa com vários tipos – tipos <strong>de</strong> homens, já que diferentes formações, como<br />

alae, cohorts, legiões, cavalaria, entre outras, são <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s como diferentes<br />

<strong>de</strong>stacamentos, ou diferentes composições – além <strong>de</strong> indicar que um <strong>de</strong> seus membros<br />

conhecia a estra<strong>da</strong> do território inimigo, revelando sua origem externa. Apesar <strong>da</strong><br />

i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> elementos não romanos, a formação adota<strong>da</strong> para o ataque foi a <strong>de</strong> quadrado,<br />

o tradicional ataque romano, que englobou também estrangeiros, homogeneizando a ação <strong>de</strong><br />

um exército <strong>de</strong>sigual. Nenhum historiador nega a força do relato <strong>de</strong> Amiano, embora, como<br />

aponta M. Kulikowski, tenha recebido mais créditos do que julga merecido, pois afirma que o<br />

conhecimento <strong>de</strong>clarado por ele transcen<strong>de</strong>ria o possível em seu tempo (2007. p. 124).<br />

O número preciso <strong>de</strong> estrangeiros que a<strong>de</strong>ntraram o Império é estimado por muitos<br />

historiadores, diversos estudos numéricos foram realizados, com base nos relatos e nas listas<br />

<strong>de</strong> controle militares, como o Notitia, mas reservam aos <strong>da</strong>dos uma lacuna imensurável, visto<br />

que, como aponta o mesmo Liebeschuetz, era bastante usual que bárbaros, como os germanos,<br />

latinizassem seus nomes, não sendo exagero consi<strong>de</strong>rar que os indicadores que temos acesso<br />

estejam mais para uma <strong>de</strong>svalorização que um excesso.<br />

Enten<strong>de</strong>mos, pois, após as consi<strong>de</strong>rações apresenta<strong>da</strong>s, que o papel do estrangeiro,<br />

dúbio por certo, é expresso nas fontes, ain<strong>da</strong> que com suas particulari<strong>da</strong><strong>de</strong>s e intensi<strong>da</strong><strong>de</strong>s<br />

distintas, com um <strong>de</strong>terminado padrão <strong>de</strong> projeção do “outro” como seu anti-tipo, como<br />

alguém que pertence ao seu ambiente, mas que nunca integra-se completamente a ele, aos<br />

olhos <strong>da</strong>queles. O bárbaro acaba latinizado nas narrativas, sendo traduzido para o<br />

entendimento romano a partir do saber compartilhado pelos mesmos, configurando um<br />

processo <strong>de</strong> retórica <strong>da</strong> alteri<strong>da</strong><strong>de</strong>, como pontua Hartog (1999) em sua reflexão sobre<br />

Heródoto. O próprio papel do narrador espelha uma forma <strong>de</strong> saber compartilhado, no qual<br />

enquadra qualquer bárbaro, qualquer “outro”, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> categorias previamente elabora<strong>da</strong>s e<br />

concebi<strong>da</strong>s como ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iras em seu universo; imbui ver<strong>da</strong><strong>de</strong>s e comportamentos naqueles<br />

segundo as impressões que o próprio autor carrega, vê com seus olhos as atitu<strong>de</strong>s do outro e<br />

julga-se capaz (e o efetivamente faz) <strong>de</strong> enquadrar as reações e ações <strong>da</strong>queles que não<br />

compartilham <strong>de</strong> suas expectativas – ao menos não em suas visões – nos padrões por eles<br />

conhecidos.<br />

340


Imagine-se apreciando um relato oposto, uma outra visão <strong>da</strong> situação presente entre<br />

romanos e bárbaros, os escritos <strong>de</strong> um estrangeiro. Quem possui o po<strong>de</strong>r <strong>da</strong> palavra – e este<br />

caracteriza um dos maiores que se po<strong>de</strong>ria agregar, visto que a imagem lega<strong>da</strong> nos escritos é o<br />

acesso dos povos e gerações futuras a esse passado, que po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>lineado com as curvas<br />

<strong>de</strong>seja<strong>da</strong>s por seu genitor. Os romanos buscavam justificar as dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s encontra<strong>da</strong>s no<br />

presente com os elementos que não eram recorrentes no passado conhecido e relatado por<br />

seus ancestrais, aqueles que foram coroados com o estigma <strong>de</strong> empecilhos, continuariam<br />

como antes, ain<strong>da</strong> que, como exposto, fossem responsáveis por vitórias, expansões, <strong>de</strong>cisões<br />

cruciais. Gibbon satisfaz parte <strong>de</strong> nossa curiosi<strong>da</strong><strong>de</strong> emergi<strong>da</strong> pela incitação acima, com o<br />

fragmento do relato <strong>de</strong> um historiador gótico não i<strong>de</strong>ntificado, numa investi<strong>da</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong><br />

apenas como mal-sucedi<strong>da</strong> aos olhos dos romanos:<br />

Referências bibliográficas:<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

[...] aquele dia do triunfo pôs fim ao sofrimento dos bárbaros e a segurança<br />

dos romanos, a partir <strong>de</strong> então, os godos, renunciando à precária condição<br />

<strong>de</strong> forasteiros e exilados, assumiram a <strong>de</strong> ci<strong>da</strong>dãos e senhores, reclamaram<br />

domínio absoluto sobre os donos <strong>de</strong> terras e mantiveram por direito próprio<br />

as províncias setentrionais limita<strong>da</strong>s pelos Danúbio (2005, p.445).<br />

AMMIANUS MARCELLINUS. Res Gestae. With an English translation by John C. Rolfe.<br />

Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press; London: William Heinemann<br />

LTD, 1982.<br />

CARLAN, Cláudio Umpierre. O mundo romano no século IV: <strong>de</strong>cadência ou<br />

reestruturação. Revista <strong>de</strong> História e <strong>Estudos</strong> Culturais Fênix, vol.4, 2007.<br />

FERRIS, I. M. Enemies of Rome. Barbarians through romans eyes. Great Britain: Sutton<br />

Publishing Limited, 2003.<br />

HARTOG, F. O espelho <strong>de</strong> Heródoto. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999.<br />

HEATHER, Peter. The barbarian in late antiquity: Image, reality and transformation. In:<br />

MILES, R. Constructing i<strong>de</strong>ntities in late antiquity. London, New York: Routledge, 1999.<br />

______________ The fall of the Roman Empire: a new history of Rome and the<br />

Barbarians. Oxford: Oxford University Press, 2006.<br />

HUGH, Elton. Frontiers of the roman empire. London: Batsford, 1996.<br />

___________ Warfare in Roman Europe, AD 350-425. Oxford : Clarendon Press; New<br />

York : Oxford University Press, 1996.<br />

341


KULIKOWSKY, M. Rome's Gothic Wars. New York: Cambridge University Press, 2007.<br />

LIEBESCHUETZ, W. Barbarians and bishops: army, church and State in the age of<br />

Arcadius and Chrysostom. New York: Oxford University, 1990.<br />

____________ The end of the Roman army in the western empire. In : RICH, John and<br />

SHIPLEY, Graham. War and society in the Roman world. London, New York:<br />

Routledge, 1993.<br />

MILES, R. Constructing i<strong>de</strong>ntities in late antiquity. London, New York: Routledge, 1999.<br />

VEGÉCIO. A arte militar. São Paulo: Ed. Paumape, 1995.<br />

ZÓSIMO. Nueva Historia. Indroducción, traducción y notas <strong>de</strong> José Maria Can<strong>da</strong>u Morón.<br />

Madri: Ed. Gredos, 1992.<br />

<strong>Anais</strong> <strong>XXIII</strong> SEC, Araraquara, p. 335-342, 2008<br />

342


Aline Taís CARA 49<br />

Aluysio FAVARO 74<br />

Ana Carolina VIOTTI 335<br />

André Costa LOPES 158<br />

Aparecido Gomes LEAL 128<br />

Bruna Campos GONÇALVES 95<br />

Brunno V. G. VIEIRA 07<br />

Carlos E. M. <strong>de</strong> MORAES 103<br />

Caroline Evangelista LOPES 165<br />

Cláudia <strong>de</strong> Fátima MONTESINI 194<br />

Cláudia P. BINATO 74<br />

Daiane Graziele SCHIAVINATO 282<br />

Eliane QUINELATO 251<br />

Elias Santos do PARAIZO JR. 214<br />

Fernando Crespim Zorrer <strong>da</strong> SILVA 291<br />

Flávia MARQUETTI 183<br />

Gabriela Barbosa RODRIGUES 274<br />

Giovanna LONGO 150<br />

Guilherme W. MORAES 204<br />

Helena Maria Boschi <strong>da</strong> SILVA 299<br />

Heloiza B. GRANJEIRO 103<br />

Jandyra Gonçalves FIGUEIREDO 90<br />

Joseane PREZOTTO 241<br />

Luana <strong>de</strong> CONTO 60<br />

Luciano César Garcia PINTO 228<br />

Í n d i c e d e a u t o r e s<br />

343


Márcio THAMOS 84, 299, 330<br />

Maria Apareci<strong>da</strong> <strong>de</strong> Oliveira SILVA 305<br />

Maria Berna<strong>de</strong>te ROCHA 260<br />

Maria Lúcia CARDOSO 260<br />

Marina Chiara LEGROSKI 139<br />

Natália Ferreira <strong>de</strong> CAMPOS 42<br />

Natália Frazão JOSÉ 119<br />

Pedro IPIRANGA JR. 110<br />

Priscila BUSE 36<br />

Priscila Maria Mendonça MACHADO 176<br />

Rafael <strong>de</strong> C. M. BRUNHARA 27<br />

Rita ROCHA 267<br />

Rosana Cristina Zanelatto SANTOS 68<br />

Ta<strong>de</strong>u ANDRADE 13<br />

Talita Inácio dos Santos SILVA 315<br />

Thalita Morato FERREIRA 84<br />

Thiago José <strong>da</strong> CRUZ 68<br />

Vinícius Ferreira BARTH 21<br />

Vivian Carneiro Leão SIMÕES 321<br />

344


A B R E V I A T U R A S<br />

G – graduando<br />

PG – Pós-graduando<br />

Instituições<br />

UEL – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Londrina<br />

UEM – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Maringá<br />

UFMS – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Mato Grosso do Sul<br />

UFPR – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Paraná<br />

UFRGS – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio Gran<strong>de</strong> do Sul<br />

UFMG – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais<br />

UNESP – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Estadual Paulista<br />

UFRJ - Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

UNICAMP – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Campinas<br />

USP – Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo<br />

Grupos e Núcleos <strong>de</strong> Pesquisa<br />

Grupo Linceu – Visões <strong>da</strong> Antigui<strong>da</strong><strong>de</strong> (UNESP)<br />

NEE – Núcleo <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Estratégicos (UNICAMP)<br />

NEAM – Núcleo <strong>de</strong> <strong>Estudos</strong> Antigos e Medievais (UNESP)<br />

Agências <strong>de</strong> fomento<br />

CAPES – Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Aperfeiçoamento e Pesquisa em Ensino Superior<br />

FAPESP – Fun<strong>da</strong>ção <strong>de</strong> Amparo à Pesquisa do Estado <strong>de</strong> São Paulo<br />

CNPq – Conselho Nacional <strong>de</strong> Pesquisa<br />

PIBIC – Programa Institucional <strong>de</strong> Bolsas <strong>de</strong> Iniciação Científica<br />

345

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