ANÁLISE POÉTICO-MUSICAL DA OBRA “SAMBA EM PRELÚDIO”
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<strong>ANÁLISE</strong> <strong>POÉTICO</strong>-<strong>MUSICAL</strong> <strong>DA</strong> <strong>OBRA</strong> <strong>“SAMBA</strong> <strong>EM</strong> <strong>PRELÚDIO”</strong><br />
Andréia Franciele PEREIRA (UNIPAR)<br />
REFERÊNCIA:<br />
PEREIRA, Andréia Franciele. Análise poéticomusical<br />
da obra “Samba em prelúdio”. In: CELLI –<br />
COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E<br />
LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá,<br />
2009, p. 169-178.<br />
1. INTRODUÇÃO<br />
ISBN: 978-85-99680-05-6<br />
Relevando a importância e o prestígio da obra de Vinícius de Moraes, tanto para<br />
a literatura quanto para a música brasileira, este estudo pretende realizar uma análise do<br />
poema-música “Samba em Prelúdio”, composto pelo poeta brasileiro, em parceira com<br />
Baden Powell, músico renomado internacionalmente. Os aspectos poético, musical e<br />
semântico não são, em geral, examinados como um todo em obras de crítica líteromusical.<br />
Importa, pois, refletir sobre esses tópicos que caracterizam a poesia de Vinícius<br />
de Moraes.<br />
É comum observar-se que o estudo deste tipo de arte seja feito de forma<br />
fragmentada, mesmo sabendo-se que é possível “ambientar musicalmente o ouvinte de<br />
forma a permitir pela sugestão da dinamogenia uma perceptibilidade mais vivida, mais geral,<br />
mais fisiopsíquica do poema” (ANDRADE, 1972: 42). Mas acredita-se que, com a análise<br />
conjunta, seja possível ampliar e aprimorar a interpretação e a compreensão da obra.<br />
Os procedimentos metodológicos desta pesquisa exigem, primeiramente, uma<br />
pesquisa bibliográfica acerca da teoria poética e musical. Dando seqüência ao trabalho,<br />
far-se-á um levantamento analítico dos elementos internos do poema e da música e as<br />
funções e significações destes elementos. Finalmente, estabelecer-se-á uma relação<br />
entre os aspectos poético, musical e semântico, “completando o círculo hermenêutico, ou<br />
interpretativo, que consiste em entender o todo pela parte e a parte pelo todo” (CÂNDIDO,<br />
2004: 29).<br />
Espera-se, ao final, desvelar a relação artística entre a poesia e a música que se<br />
estabelece no poema-música “Samba em Prelúdio” de Vinícius de Moraes e de Baden<br />
Powell. Sugere-se que poesia e música “apesar das qualidades sensíveis específicas,<br />
participam, em suma, da Arte” (<strong>DA</strong>GHLIAN, 1985: 09). E a sua compreensão resultará da<br />
constatação dessa fusão de elementos poéticos e musicais presentes no poema.<br />
169
2. O PO<strong>EM</strong>A<br />
Todo processo artístico possui peculiaridades próprias que o caracterizam como<br />
certo tipo de obra ou outra. Assim sendo, no poema-música Samba em Prelúdio será<br />
analisado, primeiramente, sua estrutura poética, componentes rítmicos e sonoros. Farse-á<br />
uso da publicação encontrada no livro “Literatura Comentada – Vinícius de<br />
Moraes” que declara: “Música de Vinícius de Moraes no ‘Prelúdio’ e de Baden Powell no<br />
‘Samba’” (1980:73/4). Sendo que tal divisão também pode ser constatada no registro da<br />
música feito, a parte de Vinícius e a parte de Baden, em instituições diferentes.<br />
Prelúdio<br />
Eu sem você<br />
Não tenho porque<br />
Porque sem você<br />
Não sei nem chorar<br />
Sou chama sem luz<br />
Jardim sem luar<br />
Luar sem amor<br />
Amor sem se dar.<br />
Eu sem você<br />
Sou só desamor<br />
Um barco sem mar<br />
Um campo sem flor<br />
Tristeza que vai<br />
Tristeza que vem<br />
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.<br />
2.1 RITMO INTENSIVO E MÉTRICO-MELÓDICO<br />
Samba<br />
Ai, que saudade<br />
Que vontade de ver renascer nossa vida<br />
Volta querida (querido)<br />
Os teus braços precisam dos meus.<br />
Meus braços precisam dos teus.<br />
Estou tão sozinho (sozinha)<br />
Tenho os olhos cansados de olhar para o além<br />
Vem ver a vida<br />
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém.<br />
Prelúdio:<br />
Ritmo Intensivo Ritmo Métrico-Melódico<br />
Eu sem você __ __ __ ▼ UUU –—<br />
Não tenho porque __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Por que sem você __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Não sei nem chorar __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
5. Sou chama sem luz __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Jardim sem luar __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Luar sem amor __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Amor sem se dar. __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Eu sem você __ __ __ ▼ UUU –—<br />
10. Sou só desamor __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Um barco sem mar __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Um campo sem flor __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Tristeza que vai __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
Tristeza que vem __ ▼ __ __ ▼ U –—/ UU –—<br />
15. Sem você, meu amor, __ __ ▼ __ ▼ UU –—/ U –—<br />
[eu não sou ninguém]. __ __ ▼ __ ▼ UU –— / U –—<br />
170
Samba:<br />
Ai, que saudade<br />
Ritmo Intensivo<br />
▼ __ __ ▼ __<br />
Que vontade de ver renascer nossa vida __ __ ▼ __ __ ▼ __ __ ▼ ▼ __ ▼ __<br />
Volta querida (querido) ▼ __ __ ▼ __<br />
Os teus braços precisam dos meus. __ __ ▼ __ __ ▼ __ __ ▼<br />
20. Meus braços precisam dos teus. __ ▼ __ __ ▼ __ __ ▼<br />
Estou tão sozinho (sozinha) __ ▼ __ __ ▼ __<br />
Tenho os olhos cansados de olhar __ __ ▼ __ __ ▼ __ __ ▼ ▼ __ __ ▼<br />
[para o além<br />
Vem ver a vida ▼ __ __ ▼ __<br />
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém __ __ ▼ __ ▼ __ __ ▼ __ ▼<br />
Ritmo Métrico Melódico<br />
–—UU /–—U<br />
UU–—/ UU–—/ UU–—/–—U/–— U<br />
–— UU/ –—U<br />
UU–—/ UU–—/ UU–—<br />
U–—/ UU–—/ UU–—<br />
U–—/ UU–—/ U<br />
UU–—/ UU–—/ UU–—/ –—U/ U –—<br />
–— UU/–—U<br />
UU –—/ U –—/ UU –— / U–—<br />
2.1 RESULTADO <strong>DA</strong> <strong>ANÁLISE</strong><br />
O ritmo intensivo, na parte do “Prelúdio”, apresenta a marcação das sílabas<br />
fortes na 2ª e 5ª sílabas poéticas, nos chamados versos pentassílabos ou redondilhas<br />
menores. As exceções são o 1º e 9º versos que são tetrassílabos e possuem acentuação<br />
tônica na 4ª sílaba. E, numa primeira leitura o 15º verso que é decassílabo e apresenta a<br />
marcação tônica na 3ª, 5ª, 8ª e 10ª sílaba.<br />
Mas, ao verificar com atenção, há notoriamente uma ruptura, uma cesura, na 5ª<br />
sílaba criando assim duas redondilhas menores cujo ritmo intensivo é marcado nas 3ª e<br />
5ª sílabas. Sendo os versos, predominantemente, em redondilha menor, o “Prelúdio”<br />
sugere uma aproximação com o trovadorismo Português, pois, “na Idade Média, os poetas<br />
portugueses já o empregavam, nas ‘cantigas de amor e de amigo’” (GOLDSTEIN, 1987: 24).<br />
Já no ‘Samba’ não há regularidade, não há simetria rítmica, pois a marcação de<br />
tonicidade não ocorre nas mesmas sílabas em todos os versos ou mesmo numa maior<br />
parte desses versos. No primeiro verso deste trecho, que corresponde ao 16º do poema,<br />
as sílabas tônicas estão presentes na 1ª e 4ª sílabas, no segundo na 3ª, 6ª, 9ª, 10ª e 12ª,<br />
ficando claro já a inconstância rítmica deste trecho do poema. O que pressupõe o “ritmo<br />
de situação”, aquele que cavalga sem destinos previsíveis.<br />
O ritmo métrico-melódico apresenta células métricas assim distribuídas:<br />
Prelúdio: 2 UUU –— 14 U –— 14 UU –—<br />
171
Samba: 3 –—UU 6 –—U 14 UU–— 5 U–—<br />
A predominância entre os jambos e os anapestos no ‘Prelúdio’ indica a narração<br />
da melancolia e tristeza presentes no eu-poemático. E a presença dos peons quartos<br />
surge para dar mais ênfase a esse sentimento de vazio e pesar deste eu poemático, o qual<br />
está numa situação agônica devido à ausência de um elemento opositor Tu que lhe é<br />
imprescindível. Esse reforço dos peons quartos é notável já que os eles incidem no 1º<br />
verso e se repete no 9º: “Eu sem você”.<br />
No “Samba” a quase paridade entre os pés jambo e troqueu caracteriza um<br />
equilíbrio entre euforia e disforia provocadas pela apresentação dos sentimentos,<br />
marcada pelos anapestos. Como uma espécie de tristeza que brota graças à solidão do eu<br />
poemático e a alegria seguida de esperança tendo visto a iminência de um possível<br />
retorno do Tu após o relato, presença dos pés anapésticos, do sofrimento vivido em<br />
razão de sua ausência.<br />
Para evidenciar tal aspecto tome-se o 2º verso do ‘Samba’: “Que vontade de ver<br />
renascer nossa vida” UU–—/ UU–—/ UU–—/–—U/–— U, presença de anapestos e<br />
troqueus, letra e ritmo indicam a esperança e a alegria da possível reconciliação; e o 9º<br />
verso: “Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”, UU –—/ U –—/ UU –— / U–—,<br />
presença de anapestos e jambos, letra e ritmo relatam a tristeza e o sentimento de<br />
desarmonia pessoal do eu poemático.<br />
Ainda sobre a estrutura do poema, há que se verificarem os processos<br />
reiterativos aqui presentes, como a repetição dos versos “Eu sem você” 1º e 9º no<br />
“Prelúdio”, indicando mais uma vez a influência com o medievalismo português, pois<br />
nas cantigas de amor era freqüente o uso de estribilho ou refrão “visto uma idéia obsessiva<br />
estar empolgando o trovador, a confissão gira em torno dum mesmo núcleo, para cuja expressão<br />
o enamorado não acha palavras muito variadas, tão intenso e maciço é o sofrimento que o<br />
tortura” (MOISÉS, 1999: 21).<br />
Quanto aos versos “Sem você, meu amor, / eu não sou ninguém”, últimos versos<br />
do “Prelúdio” e do “Samba”, também marcam o estilo trovadoresco de poesia como se<br />
percebe na afirmação de Moisés: “O estribilho ou refrão, com que o trovador pode rematar<br />
cada estrofe, diz bem dessa angustiante idéia fixa para a qual ele não encontra expressão<br />
diversa” (MOISÉS, 1999: 21). E também, a repetição de parte do verso, “sem você”,<br />
quatro vezes no ‘Prelúdio’ e uma no ‘Samba’. E a preposição “sem” dez vezes, no<br />
‘Prelúdio’ e uma no ‘Samba’, sugerindo de forma persistente a falta, a privação de algo<br />
necessário.<br />
Pode-se afirmar que é lírico tal poema, já que é através deste tipo de composição<br />
que o poeta exprime com certa paixão seus sentimentos pessoais. Há certos registros<br />
emotivos que marcam essa liricidade, como os pronomes pessoais e possessivos em<br />
primeira pessoa: eu, meu, meus, nossa; verbos indicadores de presentificação: tenho,<br />
sei, sou, vai, vem, precisam, estou; marcas registradoras de juízo de valor: cansados.<br />
Todas essas marcas denotam forte presença do eu-poemático, o qual narra seu estado<br />
anímico com grande carga emotiva.<br />
3. A MÚSICA<br />
A música, “arte de exprimir idéias por meio de sons” (DOURADO, 2004: 214), é<br />
psicologicamente expressiva, sendo que sua expressividade está diretamente associada à<br />
172
dinamogenia 1 . Essa mudança de estado anímico gerado pela música está diretamente<br />
associada ao sujeito ouvinte e ao contexto, como e quando, em que ele está inserido.<br />
Tratando-se aqui apenas da parte instrumental e a melodia vocal, desconsiderando-se a<br />
letra, pois as palavras que a compõe possuem determinados valores que também estão<br />
ligados ao sujeito receptor e como e quando ele recebe esse texto. Desta forma a música<br />
se tornará boa ou ruim, agradável ou desagradável dependendo da situação e do sujeito<br />
que a recebe.<br />
Durante o processo de recepção musical, certos estados dinamogênicos, estados<br />
psicológicos que conduzem a outros que o sujeito receptor possa ter tido uma vez na<br />
vida, fazem com que a interpretação da música se torne fisiopsíquica, ou seja, a<br />
interpretação estará associada ao sujeito e o estado físico e psíquico que a música<br />
provoca ou remete-o à. Estes estados dinamogênicos podem ser induzidos pela<br />
associação dos elementos básicos que compõem a música: o ritmo 2 , a melodia 3 , e a<br />
harmonia 4 .<br />
O que se pretende neste item não é uma análise metódica de música, pois isto<br />
implicaria em um conhecimento profundo de teoria musical, o que não é viável neste<br />
momento, far-se-á desta forma apenas uma análise superficial dos elementos básicos da<br />
música “Samba em Prelúdio”.<br />
Na harmonia encontra-se o modo, ou tonalidade, sobre a qual a música foi<br />
construída. Dois são os modos, jônico e eólio, de Henrique de Glareanus que “foram<br />
considerados os mais adequados à harmonia e passaram a ser conhecidos, do século XVII em<br />
diante, respectivamente como escala maior e escala menor, nas quais a grande maioria da<br />
música se baseia desde então” (CABRAL, 1985: 242).<br />
Verifica-se na partitura 5 de “S.P. 6 ” que a tonalidade da música está em Sol<br />
menor (Gm) o que implica que a base da música foi construída sobre uma escalar<br />
menor, a de Sol menor. Pode-se afirmar, então, que o compositor utilizou tal artifício<br />
para provocar uma ambientação de tristeza e melancolia, pois, “dentro do sistema<br />
harmônico ocidental baseado nas tríades” (JOUR<strong>DA</strong>IN, 1998: 294) tem se a idéia de que<br />
“os acordes construídos com tríades menores soam ‘tristes’” (JOUR<strong>DA</strong>IN, 1998: 294). Isso<br />
porque “as tríades menores são inerentemente cheias de conflitos – ou seja, com violações das<br />
séries de sons harmônicos, tão importantes para o nosso sistema harmônico” (JOUR<strong>DA</strong>IN, p.<br />
394/395, 1998). O mesmo ocorrendo com o modo menor, pois se sabe também que “a<br />
música tocada em modos diferentes soa de maneira diferente” (CABRAL, 1985: 243).<br />
Quanto ao ritmo pode-se afirmar que é feito em compasso binário 2/4 e<br />
altamente sincopado, o qual, segundo Cabral (1985: 333) é o compasso rítmico mais<br />
típico do samba. Sendo a execução das notas e do ritmo pelo instrumento, ou seja, sua<br />
melodia, análoga à melodia vocal, pode-se afirmar que a primeira parte de S.P. é<br />
predominantemente mais melodiosa. Já no “Samba”, a melodia vocal não segue a linha<br />
melódica instrumental e averigua-se, também, uma quantidade maior de pausas e<br />
síncopas, tornando essa parte intensamente mais rítmica.<br />
1<br />
“Exaltação funcional de um órgão, sob o influxo de uma excitação” (LAROUSSE, 1998: 1916).<br />
2<br />
“Aspecto da música que se refere à organização do tempo” (CABRAL, 1985: 320).<br />
3<br />
“De forma genérica, certa seqüência de notas organizada sobre uma estrutura rítmica que encerra algum<br />
sentido musical” (DOURADO, 2004: 200).<br />
4<br />
“Aspecto da música onde se estuda a combinação de notas soando simultaneamente” (Cabral, 1985:<br />
163).<br />
5<br />
A cópia analisada foi fornecida pela regente Tânia Vaz.<br />
6<br />
A partir daqui toda referência feita à música-poema Samba em Prelúdio será grafada assim “S. P.”<br />
173
Como “a melodia aparece raramente sozinha – costuma ser acompanhada de<br />
aglomerados de sons, que lhe constituem uma espécie de ‘vestimenta’” (LACER<strong>DA</strong>, 1966:<br />
77), pode-se afirmar que estes recursos rítmicos, presentes na segunda parte de S.P.,<br />
formam sua “vestimenta”, tornando-o mais próximo ao ritmo cheio de swing do samba.<br />
Estes recursos rítmicos também são fatores que ajudam a determinar que a música<br />
“Samba em Prelúdio” é constituída de duas partes.<br />
Esse rompimento de tema é encontrado no compasso 49, que se inicia com o<br />
acorde de sol menor. A tonalidade e o compasso rítmico continuam iguais, o que muda<br />
é a forma de se executar a música. No “Prelúdio” percebe-se que o instrumento segue<br />
uma tendência mais próxima à música clássica, por se valer de dedilhados e por manter<br />
uma unidade rítmica regular do começo ao fim. Assim, tomando-se o que diz Dourado<br />
sobre prelúdio: “termo que se refere à parte instrumental que antecede uma obra ou<br />
movimento maior, originou-se dos preparativos e aquecimentos feitos pelo músico antes da<br />
execução de uma peça ou de uma apresentação” (2004: 262), poder-se-ia afirmar, então, que<br />
ao manter essa regularidade o compositor estaria remetendo a primeira parte de S.P. a<br />
esse “preparativo” e/ou “aquecimento”, como se fosse um preparativo e/ou aquecimento<br />
para então entrar o “Samba”, bem como faziam os músicos antes.<br />
Tempos depois o prelúdio, como termo musical, seria usado como introdução<br />
para fugas 7 . As fugas atingiriam “seu apogeu com J. S. Bach” (LAROUSSE, 1998: 2589)<br />
e desta forma a relação entre música clássica e a composição de Vinícius de Moraes e<br />
Baden Powell encontra-se mais forte, sabendo-se ainda que a introdução das Bachianas<br />
nº 04 de Heitor Villa Lobos, que possui progressões harmônicas bem trabalhadas, é<br />
vista como a matéria-prima de S.P. 8<br />
4. O TEXTO<br />
Sendo que “a analogia está na base da linguagem poética” (CÂNDIDO, 2004: 106),<br />
podem ser encontradas expressões, com maior intensidade no “Prelúdio”, no texto de<br />
S.P. que marcam esse vínculo de opostos proposto por Cândido como fator de marca<br />
poética de um texto.<br />
Primeiramente o eu-poemático expõe sua negação à própria existência, com<br />
estado anímico de confuso e perda devido a ausência do ser amado, “Eu sem você/ Não<br />
tenho porque”, 1º e 2º verso. Depois continua a mostrar isso usando expressões que não<br />
dizem qual o seu real estado, mas indicam isso, como em: “Sou chama sem luz”, 5º<br />
verso, aqui o eu poemático se diz chama sem luz, ora, pois não há chama sem luz, assim<br />
ele se põe num estado de anulação, não existência perante a falta do ser querido.<br />
O verso 11º, “Um barco sem mar”, também pode se referir a este mesmo estado<br />
sugerido pelo verso 5 somado à condição de inutilidade, pois é útil um barco sem um<br />
mar, sem uma estrada de águas por onde percorrer. E assim se sente o eu-poemático,<br />
inutilizado, pois está sem sua “estrada de águas”.<br />
Sendo os substantivos, como classe gramatical, termos que designam seres e que<br />
também designam a substância, além de poderem ter função de sujeitos (LARROUSE,<br />
1998: 507), os encontrados no “Prelúdio” seguidos de outros substantivos ligados pela<br />
preposição sem, reforçam essa idéia de vazio e ausência, pois o sujeito “chama”<br />
7<br />
Segundo Cabral o prelúdio seria uma “peça instrumental que serve de introdução a uma fuga, suíte ou<br />
serviço religioso” (1985: 300).<br />
8<br />
Nota encontrada no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Heitor_Villa-Lobos.<br />
174
encontra-se “sem luz”, que é na verdade sua essência, aquilo que lhe dá vida, existência,<br />
bem como “Um barco sem mar”.<br />
Pensando o luar, não apenas como a luz emitida pela lua sobre a terra, e sim<br />
como fator que realça uma circunstância romântica, e o jardim não só como um espaço<br />
destinado às flores e plantas, mas sim, como um ambiente propenso a um passeio<br />
amoroso, por exemplo, no verso “Jardim sem luar” intui-se que não há esse passeio. Há<br />
o lugar, o “jardim”, mas o item que provoca a liricidade da situação está ausente “luar”.<br />
Bem como em “Luar sem amor”, pois o luar, simplesmente como tal, sem amor, que<br />
seria a essência para a criação de uma atmosfera romântica, é apenas um acontecimento<br />
natural.<br />
Ainda no “Prelúdio”, a forma como se organizam as palavras, denotam uma<br />
possível preparação, uma elaboração do texto o qual se encontra organizado em<br />
linguagem poética, apresentando rimas e outros marcadores deste tipo de linguagem<br />
como a anáfora, o vocábulo sem aparece dez vezes nesta primeira parte, sempre no meio<br />
do verso. As palavras empregadas são de uso comum, porém, bem organizadas<br />
metricamente e usadas de forma alegórica para dar o devido esmero à obra.<br />
Vê-se aqui também uma aproximação com o trovadorismo português, e as<br />
cantigas de amor e amigo. Primeiramente por esse mesmo cuidado com o uso das<br />
palavras de forma simbólica e com a qualidade da estruturação técnica, além do tema no<br />
qual o sofrimento do eu-poemático, no “Prelúdio” não expresso se masculino ou<br />
feminino, é declarado com veemência, e tal é sua dor, que se sente já anulado, sem vida,<br />
“Sem você, meu amor, eu não sou ninguém”.<br />
Esses sentimentos de angústia e consternação são tanto causados pela ausência<br />
quanto pela dúvida de saber se o ser amado lhe voltará ou não. Ou seja, tematicamente,<br />
em S.P. há uma união entre a cantiga de amor e de amigo, estilos pertencentes à<br />
literatura clássica portuguesa.<br />
Na parte do “Samba” ainda há esse união, visto que, do texto extraído do livro<br />
“Literatura Comentada de Vinícius de Moraes”, no 3º e 6º verso está transcrito tanto<br />
querido quanto querido, e tanto sozinho quanto sozinha, respectivamente. O que indica<br />
que o sofrimento pela ausência é mútuo, tanto que há o verso: os teus braços precisam<br />
dos meus, 4º, o que vem a provar definitivamente essa reciprocidade sentimental e a<br />
união dos tipos de Cantigas, já que a de Amor é aquela em que o eu-poemático<br />
masculino demonstra sua dor por não possuir a mulher amada e diferentemente a<br />
cantiga de amigo é aquela em que o eu-poemático feminino expressa seu sofrimento<br />
devido à ausência do ser amado.<br />
Ainda, sobre essa relação entre o texto moderno S.P. e as cantigas trovadorescas,<br />
poder-se afirmar que é forte a influência das cantigas de amor no “Prelúdio”, ao<br />
lembrar-se que nestas cantigas a “relação submissa entre os seres na cantiga de amor; o ser<br />
amante depende da dama, a qual é o objeto de adoração” 9 era uma constante, assim sendo<br />
verificada tal submissão no trabalho analisado, quando o eu-poemático se coloca tão<br />
inferiorizado em relação ao ser amado que chega a acreditar que não há motivos para<br />
ser sem o seu amor.<br />
Já com as cantigas de amigo, nas quais “há mais realismo na fixação do<br />
relacionamento amoroso” (RODRIGUES, 2003: 38), o “Samba” é o que mais se<br />
aproxima, pois a maior presença de verbos, “termo que engloba as noções de ação”<br />
(LAROUSSE, 1985: 5915), indicam acontecimentos, fatos e atos que acontecera m ou<br />
9 Nota retirada do site: http://universoliterario.vilabol.uol.com.br/trovadorismo.html<br />
175
virão a ser realizados. Além disso, nas cantigas de amigo o tema “aborda as carências<br />
reais amorosas” (RODRIGUES, 2003: 38) e é possível notar essas características nos<br />
versos 4º e 5º, “os teus braços precisam dos meus. /Meus braços precisam dos teus.”, os<br />
quais sugerem o ato do abraço, que é uma ação real que acontece entre casais. O que<br />
vem a realçar mais essa realidade amorosa é a presença mínima de termos abstratos,<br />
apenas saudade, no primeiro verso do “Samba”, afastando, assim, o pensamento<br />
idealizado e platônico encontrado nas cantigas de amor.<br />
Há que se ver também que “em muitas cantigas de amigo a situação de diálogo é<br />
explicitada” (RODRIGUES, 2003: 40). Em S.P. esse diálogo é sugerido na segunda parte<br />
do poema, pois no “Prelúdio” verifica-se que apenas um “eu” que se expõe através de<br />
verbos na primeira pessoa do singular “sou” e pronomes possessivos também me<br />
primeira pessoa do singular “meu”. Já no “Samba” há uma expressiva marca de diálogo,<br />
entendendo-se este no “dialogismo como o espaço interacional entre o eu e o tu ou entre o eu<br />
e o outro, no texto” (BARROS, 1999: 3), verificam-se assim a presença de pronome<br />
possessivo em primeira pessoa do plural “nossa” já indica uma primeira relação<br />
dialógica entre dois sujeitos, o pronome possessivo “teus”, segunda pessoa do singular,<br />
sugere que essa relação dialogal acontece entre um eu e um tu, como é sugerido acima<br />
que se aconteça uma diálogo. Há ainda um verbo no modo imperativo afirmativo,<br />
“vem”, que tem como natureza expressar uma ordem, neste verso soa mais como um<br />
pedido, “Vem ver a vida”, destinado ao “você” do último verso. O que incita, mais uma<br />
vez, um diálogo nesta segunda parte do texto “S.P.”.<br />
5. CONCLUSÃO<br />
Após serem verificados os dados estruturais e temáticos do poema-música<br />
“Samba em Prelúdio”, de Vinícius de Moraes e Baden Powell, foi possível concluir que,<br />
em determinadas obras, como esta há uma relação de significação entre as estruturas<br />
textual, musical e poética. Os artistas utilizam mecanismos estruturais diferentes para<br />
intensificar as idéias principais da obra.<br />
No poema, através da forte presença dos pés anapésticos, é possível observar,<br />
numa primeira leitura do “Prelúdio”, que é feita uma narração sobre os sentimentos do<br />
“eu-poemático” os quais são de tristeza e melancolia, marcados pelos pés jâmbicos,<br />
num total de quatorze jambos e dois peons quartos, que funcionam como se fossem, na<br />
verdade, mais quatro jambos, reforçando ainda mais a sensação agônica ocorrida pela<br />
ausência do ser amado.<br />
No “samba” encontram-se oscilantes os sentimentos de tristeza e alegria, sendo<br />
possível tal afirmação através dos pés jambo e troqueu que marcam, respectivamente,<br />
uma idéia de disforia e euforia e cuja quantidade é quase a mesma entre os dois, seis<br />
troqueus e cinco jambos. Tal oscilação pode ser entendida de tal forma que o “eupoemático”<br />
se encontra num dilema sentimental, pois está triste devido a ausência do<br />
alvo do seu amor e a esperança de um possível restabelecimento de relações após haver<br />
narrado todo seu sofrimento, tanto no “Prelúdio” quanto no “Samba”, e amargura por<br />
não estar mais ao lado de quem, para ele, é a essência de sua vida.<br />
A liricidade do poema pode ser identificada através de certos marcadores como<br />
os elementos encontrados na primeira pessoa, eu, meu, nossa. E esse sentimento de<br />
vazio é muito reforçado pela repetição dos versos Sem você meu amor/ Eu não sou<br />
ninguém, os quais deixam clara a necessidade do “eu-poemático” de ter de volta quem,<br />
para ele, dá sentido à sua existência. Mas o que mais marca a sensação de vazio, perda e<br />
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falta é a repetição da preposição Sem onze vezes, dez no ‘Prelúdio’ e uma no ‘Samba’.<br />
Na parte instrumental, é possível também notar essa separação em duas partes da<br />
obra “S.P.”, das quais a primeira, o “Prelúdio,” assim como termo musical que se refere<br />
à preparação dos músicos antes da execução de uma peça, pode ser visto como uma<br />
preparação para a execução do “Samba”, segunda parte de “S.P.”. Apesar de manterem<br />
o mesmo ritmo, binário 2/4, e a mesma tonalidade, sol menor, é perceptível a separação<br />
dessas duas partes, primeiramente pela forma como é executada a música.<br />
Na primeira parte a execução dedilhada e de ritmo regular marcam uma<br />
aproximação ao estilo erudito de música, e, na segunda, as pausas e a batida forte das<br />
notas tocadas caracterizam essa parte da obra como mais ritmada, mais adaptada ao<br />
ritmo do samba.<br />
O texto traz em suas palavras a analogia como estrutura de significação, onde o<br />
“eu-poemático” se expressa por meio de imagens, expressa sua dor e solidão,<br />
comparando aquilo que lhe é inerente ao que é essencial para outros elementos, como<br />
por exemplo, a luz para uma chama, quinto verso, ou ainda o mar para o barco, décimo<br />
primeiro verso, afinal qual a finalidade da existência de um barco se não há um mar<br />
para se velejar? Desta forma ele tenta mostrar ao ser amado que ele lhe é essencial, que<br />
a significação de sua existência é dependente da outra pessoa.<br />
Assim, entende-se que os recursos utilizados pelos artistas Vinícius de Moraes e<br />
Baden Powell para criarem o texto apontam para um mesmo ponto, no qual o eupoemático<br />
se encontra perdido sem seu amor, e a todo custo, em texto, poesia e música,<br />
tenta recuperá-lo. Para isso cria artifícios poético-musicais que são organizados<br />
previamente, deduzindo-se isto pela perfeição métrica do poema, e a perfeição rítmica e<br />
melódica da música, além das analogias utilizadas, e assim todo este trabalho implicaria<br />
em tempo para criá-los. Desta maneira preparando-se para que quando encontre seu ser<br />
amado saiba exatamente o que dizer para lhe abrandar o coração e retomar o<br />
relacionamento rompido, isto se encontrando na primeira parte intitulada “Prelúdio”.<br />
Depois, no “Samba”, o que se vê nesta parte, é que há um diálogo, implicando<br />
assim, neste encontro tão almejado pelo “eu–poemático” com seu grande amor. E,<br />
devido à emoção do reencontro, aquilo que havia preparado para a reconquista, não é<br />
utilizado, isto se percebe pela desproporção métrica dos versos, não há uniformidade<br />
rítmica e as palavras são de uso comum, sem recursos de linguagem ou palavreado<br />
culto.<br />
O “eu–poemático” se deixa levar pelo ritmo de sua emoção que se alterna em<br />
contente e triste, aquele pela esperança de retomar para si aquilo que lhe é essencial para<br />
viver, seu/sua amado/a, e a tristeza de não o possuir e o medo de não conseguir<br />
reconquistá-lo/a e assim não conseguindo por em prática tudo o que havia preparado no<br />
“Prelúdio”, restando-lhe dizer o que realmente era mais importante e o que<br />
verdadeiramente estava sentindo, que é o verso que encerra tanto a primeira quanto a<br />
segunda parte: “Sem você meu amor eu não sou ninguém”.<br />
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