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O TEATRO LIBERTÁRIO DE SYLVIA ORTHOF - UEM

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O <strong>TEATRO</strong> <strong>LIBERTÁRIO</strong> <strong>DE</strong> <strong>SYLVIA</strong> <strong>ORTHOF</strong><br />

Flor de Maria Silva DUARTE (PG – <strong>UEM</strong>)<br />

REFERÊNCIA:<br />

DUARTE, Flor de Maria Silva. O teatro libertário de<br />

Sylvia Orthof. In: CELLI – COLÓQUIO <strong>DE</strong><br />

ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3,<br />

2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 388-398.<br />

I – INTRODUÇÃO<br />

ISBN: 978-85-99680-05-6<br />

O século XVIII experimentou o desenvolvimento das técnicas de<br />

industrialização que possibilitaram a produção em série da arte literária, dando origem,<br />

assim, à cultura de massas. Essa literatura industrial primava pela banalidade dos temas,<br />

personagens estereotipados e veiculação de comportamentos exemplares. Ao lado desta<br />

industrialização há a ascensão da família burguesa e um novo status concedido à<br />

infância. Neste contexto surge a literatura infantil, como um instrumento educativo para<br />

as novas gerações. Regina Zilberman comenta:<br />

Assim, a emergência deste gênero explica-se historicamente,<br />

na medida em que aconteceu estreitamente ligada a um<br />

contexto social delimitado pela presença da família nuclear<br />

doméstica e particularização da condição pueril enquanto<br />

faixa etária e estado existencial. Por outro lado, tornou-se um<br />

dos instrumentos através do qual a pedagogia almejou atingir<br />

seus objetivos (Zilberman,1982, p. 11-12).<br />

Esta associação com a pedagogia teve conseqüências duradouras e a literatura<br />

infantil sofreu um preconceito que ainda não foi de todo superado. Embora o cenário<br />

atual da literatura infantil tenha um elenco formidável de autores e obras, em alguns<br />

meios, ainda persiste a concepção de que a literatura seria um gênero literário menor.<br />

Sylvia Orthof é um dos nomes mais respeitados na literatura infantil brasileira.<br />

Suas obras contribuíram de forma decisiva para a credibilidade na qualidade dos textos<br />

literários destinados à criança. Sylvia é também um dos maiores nomes do teatro infantil<br />

brasileiro. Foi atriz, diretora, cenógrafa, manipuladora de fantoches e dramaturga,<br />

embora hoje, este seu lado teatral seja menos conhecido.<br />

388


Nesse sentido este trabalho se propõe a levantar alguns elementos da obra teatral<br />

de Sylvia Orthof, a partir da análise do texto Zé Vagão da Roda Fina e Sua Mãe<br />

Leopoldina.<br />

II – A CRIANÇA E A LITERATURA<br />

O momento atual vem aprofundando, na sociedade, a conscientização da<br />

importância de uma atenção aos direitos da criança. O Estatuto da Criança e do<br />

Adolescente é um documento que garante as condições básicas para o pleno<br />

desenvolvimento das crianças e jovens brasileiros. Para Antonio Candido (1995) entre<br />

os direitos inalienáveis do ser humano está o direito à literatura:<br />

Quer percebamos claramente ou não, o caráter de coisa<br />

organizada da obra literária torna-se um fator que nos deixa<br />

mais capazes de ordenar a nossa própria mente e sentimentos;<br />

e em conseqüência, mas capazes de organizar a visão que<br />

temos do mundo(CANDIDO, 1995, 245).<br />

Diante desta afirmativa somos levados a reconhecer que a criança tem o direito<br />

inalienável à literatura. Assim como existem leis e regras especiais para a criança existe<br />

também uma literatura voltada para o público infantil. Mas como definir literatura<br />

infantil? Seria uma literatura destinada a crianças ou uma literatura que interessa a<br />

crianças? Ao discutir esta questão, Magda Soares cita Carlos Drumond de Andrade:<br />

O gênero “literatura infantil” tem, a meu ver, existência<br />

duvidosa. Haverá música infantil? Pintura infantil? A partir<br />

de que ponto uma obra literária deixa de constituir alimento<br />

para o espírito da criança ou do jovem e se dirige ao espírito<br />

do adulto? Qual o bom livro para crianças que não seja lido,<br />

com interesse pelo homem feito? Qual o livro de viagens ou<br />

aventuras, destinado a adultos, que não possa ser dado à<br />

criança, desde que vazado em linguagem simples e isento de<br />

matéria de escândalo? Observados alguns cuidados de<br />

linguagem e decência, a distinção preconceituosa se desfaz.<br />

Será a criança um ser à parte, estranho ao homem, e<br />

reclamando uma literatura também à parte? Ou será a<br />

literatura infantil algo mutilado, de reduzido, de desvitalizado<br />

– porque coisa primária, fabricada na persuasão de que a<br />

imitação da infância é a própria infância? (1940, DRUMOND<br />

<strong>DE</strong> ANDRA<strong>DE</strong>, apud, SOARES, 2003, p. 18)<br />

A literatura voltada para a criança tem, ao longo dos anos, enfrentado um<br />

preconceito histórico. Marisa Lajolo e Regina Zilberman em Literatura Infantil<br />

Brasileira: História e Histórias observam: “Como se a menoridade de seu público a<br />

contagiasse, a literatura infantil costuma ser encarada como produção cultural inferior”<br />

(2003, 11). De fato, os adultos costumam assumir uma posição condescendente para<br />

com a criança e, conseqüentemente, para com a literatura infantil.<br />

Outra questão importante, em relação ao descrédito enfrentado pela literatura<br />

infantil, está relacionada ao seu caráter pedagógico. A literatura infantil foi,<br />

tradicionalmente, um veículo de transmissão de valores e atitudes aprovadas pela<br />

389


sociedade. Era bom o livro que trazia uma mensagem dignificante. Ou ainda o livro que<br />

trouxesse algum ensinamento gramatical ou de conteúdo para outra disciplina. Havia<br />

livros “literários” escritos com o objetivo claro de ensinar geografia ou história. Ainda<br />

hoje é comum encontrarmos educadores que escolhem a obra literária em função dos<br />

ensinamentos contidos na mesma. Assim, a literatura infantil não pode ser “só” boa<br />

literatura, ela tem que ensinar alguma coisa, é preciso que seja útil ao educando. Magda<br />

Soares observa:<br />

É desnecessário apontar a inadequação do uso de poemas<br />

para identificar substantivos comuns ou para encontrar<br />

palavras com determinado tipo de sílaba; a poesia é aqui<br />

pretexto para exercícios de gramática e ortografia, perde-se<br />

inteiramente a interação lúdica, rítmica com os poemas, que<br />

poderia levar as crianças à percepção do poético e ao gosto<br />

pela poesia. (SOARES, 2003, p. 27)<br />

Esta situação, que ainda pode ser encontrada, foi marcante até o “boom” da<br />

literatura infantil/juvenil nos anos 70-80. Segundo a Fundação Nacional do Livro<br />

Infantil e Juvenil (1977, apud Lajolo, Zilberman, 2003), nesta época, os livros infantis<br />

passaram a constituir um próspero segmento no mercado das letras e o autor nacional<br />

ganhou prestígio e espaço.<br />

Para Nelly Novaes Coelho é uma retomada da liberdade criadora iniciada com<br />

Monteiro Lobato.<br />

Desvinculada de quaisquer compromissos pedagógicos (e<br />

mesmo insurgindo-se contra o “direcionismo didático” que<br />

predominara nos anos anteriores), a nova literatura<br />

infantil/juvenil obedece às novas palavras de ordem:<br />

criatividade, consciência da linguagem e consciência crítica<br />

(COELHO, 2000, p. 130).<br />

Neste período surgiram novos autores, com propostas arrojadas e uma<br />

linguagem moderna e questionadora. Autores como Lygia Bojunga Nunes, Fernanda<br />

Lopes de Almeida, João Carlos Marinho, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, entre<br />

outros, trouxeram de volta para as crianças brasileiras o encanto da literatura infantil,<br />

que estava adormecido desde os tempos de Monteiro Lobato. Entre estes novos autores<br />

para crianças, está o nome de Sylvia Orthof.<br />

Da mesma forma que a literatura infantil foi estigmatizada como um gênero<br />

menor, também o teatro infantil sofreu esse preconceito, tendo sido considerado,<br />

durante muito tempo, um teatro de qualidade inferior, já que dirigido para um público<br />

menos exigente. O teatro infantil, assim como a literatura infantil, assumiu uma função<br />

pedagógica e a dramaturgia para crianças era voltada para ensinamentos educativos.<br />

Modificando essa situação, duas autoras se destacaram no cenário dramático<br />

infantil brasileiro criando textos questionadores, que respeitam a criança como um ser<br />

inteligente: Maria Clara Machado e Sylvia Orthof, cuja obra dramática será estudada<br />

neste trabalho.<br />

390


III – A DRAMATURGIA INFANTIL <strong>DE</strong> <strong>SYLVIA</strong> <strong>ORTHOF</strong><br />

Sylvia Orthof nasceu em 1932, no Rio de Janeiro, e esteve sempre ligada à arte.<br />

Estudou arte dramática, mímica, desenho e pintura. Foi atriz de teatro, trabalhou em<br />

televisão e cinema. Em 1975 fundou a Casa de Ensaios de Sylvia Orthof, no Rio de<br />

Janeiro, e passou a escrever e dirigir espetáculos de teatro dedicados à criança. Antes de<br />

se tornar uma consagrada escritora de literatura infantil, Sylvia foi uma escritora e<br />

diretora de teatro.<br />

O teatro de Sylvia Orthof é um teatro de comédia. Segundo Aristóteles “A<br />

comédia tende a apresentar suas personagens como piores que os homens hoje” (apud<br />

GASSNER, 1991, 93). Esta definição continua valendo, pois o ridículo e o deboche<br />

provocam o riso do público de ontem como o de hoje. Os textos de Sylvia Orthof são<br />

marcados pelo humor e pela irreverência. Alice Áurea Penteado Martha observa:<br />

Acreditando que toda tristeza pode ter uma risada dentro, a<br />

escritora se vale, com persistência, dos recursos<br />

desencadeadores do riso para recriar situações absurdas que,<br />

ao provocarem a diversão, permitem, ao mesmo tempo, que<br />

os leitores reflitam sobre a realidade que os circunda<br />

(MARTHA, 2004, p.86).<br />

De fato o teatro infantil de Sylvia Orthof se vale do cômico e do ridículo para<br />

desmontar estereótipos, questionar o mundo dos adultos, a autoridade constituída e as<br />

instituições, inclusive a escola. Segundo Patrice Pavis:<br />

O cômico não se limita ao gênero da comédia: é um<br />

fenômeno que pode ser apreendido por vários ângulos e em<br />

diversos campos. Fenômeno antropológico, responde ao<br />

instinto do jogo, ao gosto do homem pela brincadeira e pelo<br />

riso, à sua capacidade de perceber aspectos insólitos e<br />

ridículos da realidade física e social. Arma social, fornece ao<br />

irônico condições para criticar seu meio, mascarar sua<br />

oposição por um traço espirituoso ou de farsa grotesca.<br />

Gênero dramático, centra a ação em conflitos e peripécias que<br />

demonstram a inventividade e o otimismo humanos perante a<br />

adversidade (PAVIS, 1999, p. 58).<br />

A obra de Sylvia, ao divertir, expõe as fragilidades da autoridade autoritária. A<br />

subversão na literatura é uma prática comum entre os grandes autores. Na obra<br />

Contracorrente, Ana Maria Machado afirma:<br />

Podemos examinar os melhores livros que vêm dos diferentes<br />

países e constataremos que, na maioria das vezes, vamos<br />

encontrar neles alguma forma de subversão, expressando<br />

idéias e emoções que geralmente não se aprovam, fazendo<br />

troça de figuras honradas e pretensões sociais, desafiando os<br />

poderes estabelecidos, desobedecendo às autoridades – ou<br />

apenas mostrando, de modo claro, que as roupas novas do<br />

imperador simplesmente não existem (MACHADO, 1999, p.<br />

52).<br />

391


Nenhuma obra literária é isenta de ideologia. Assim como qualquer conversa<br />

expressa opiniões pessoais, o texto literário traz as opiniões, as idéias, a visão de mundo<br />

do autor. O escritor Alberto Camus lembrava que a obra não deveria estar a serviço de<br />

nada que fosse exterior a suas propriedades estéticas, mas, ao mesmo tempo, ninguém<br />

tem o direito de se omitir quanto às questões sociais e políticas de seu tempo (apud<br />

MACHADO, 1999). Assim, embora o artista não deva ter a ideologia como intenção<br />

principal, ela está sempre presente em sua experiência de vida pessoal e,<br />

conseqüentemente, estará presente em sua obra. Para Ana Maria Machado “Tudo que<br />

faz sentido é ideológico, principalmente quando se usam palavras” (1999,34).<br />

Machado lembra ainda que “a ideologia de um livro também reflete o conjunto<br />

de crenças e opiniões da cultura e da época em que vive um autor” (1999, 35). Cabe<br />

lembrar que vários textos dramáticos de Sylvia Orthof vão dos anos 70 a 79, plena<br />

ditadura militar. Após 80 entramos num momento de reconstrução da democracia<br />

nacional, de reconstrução da cidadania, de reconhecimento e valorização das minorias e<br />

da volta da liberdade de expressão. Como uma pessoa sintonizada com o seu tempo<br />

Sylvia falou de liberdade em vários textos dramáticos: A viagem de um barquinho<br />

(1975), Eu chovo, tu choves, ele chove... (1976), Zé Vagão da Roda Fina e Sua Mãe<br />

Leopoldina (1979) e A Gema do Ovo da Ema (1980). Os textos são ágeis, divertidos e<br />

Sylvia deixa clara a sua ideologia libertária: a liberdade é a protagonista de sua<br />

literatura.<br />

IV – Zé Vagão da Roda Fina e Sua Mãe Leopoldina<br />

O texto Zé Vagão da Roda Fina e Sua Mãe Leopoldina foi encenado<br />

profissionalmente, com direção da própria Sylvia Orthof, em 1980, cumprindo<br />

temporada no Teatro Clara Nunes, no Rio de Janeiro.<br />

O texto conta a história de uma mãe autoritária, um filho preguiçoso e uma<br />

bruxa subversiva e questionadora. Ao nomear as personagens, Sylvia Orthof já indica<br />

traços da personalidade de cada uma. Estação de Trem é uma personagem pouco<br />

atuante, introduz a peça e media alguns conflitos. Locomotiva Leopoldina é a mãe de<br />

ferro. Ridícula em sua vaidade e histérica em seu autoritarismo. Zé Vagão da Roda Fina<br />

é o filho dengoso e preguiçoso, que tenta se rebelar contra as ordens da mãe. Ele detesta<br />

andar nos trilhos. E a Bruxa Jubilosa, uma bruxa diferente, divertida, irreverente, que<br />

defende a alegria de viver.<br />

Em sua primeira fala a Locomotiva Leopoldina já mostra seu potencial cômico:<br />

Minha vida é viajar! Sobe e desce, desce e sobe, pelo<br />

caminho do trem!<br />

Meu nome é Leopoldina locomotiva faceira<br />

sou a senhora primeira, primeira dama do trem!<br />

Pííííííííííí!<br />

Mas minha vida é sofrida, triste sorte triste sina,<br />

vou puxando pelo mundo este meu filho menino<br />

que não quer saber de nada, vive de roda enguiçada:<br />

Zé Vagão da Roda Fina! (p. 6-7)<br />

Sylvia utiliza o recurso da antropomorfização ao fazer da locomotiva uma<br />

personagem e, dessa forma, brinca com o estereótipo do modelo familiar. Quando a<br />

personagem Locomotiva se auto nomeia primeira dama do trem, a autora faz uma piada<br />

com a vaidade da locomotiva, que se compara com a imperatriz que nomeou a primeira<br />

392


estação de trens, a Estação Leopoldina. Outra característica humorística da locomotiva é<br />

que todas as vezes que ela fica nervosa ela apita. Além disso, ela é uma mãe ridícula,<br />

que se diz preocupada porque o filho não faz tudo exatamente como ela quer. Por outro<br />

lado, o filho faz a delícia das crianças ao dar sua réplica:<br />

Mãe... minha roda ta doendo,<br />

a rosca está apertada,<br />

minha junta está cansada,<br />

eu não gosto da estrada...<br />

Puf... puf... pof... pof! (p. 8)<br />

Ele mostra que é preguiçoso e dengoso, encontra desculpas para não andar nos<br />

trilhos, como as crianças dão desculpas para não cumprir suas obrigações mais chatas.<br />

O conflito mãe/filho fica já estabelecido e a simpatia do público recai sobre o<br />

filho vagão, que é criança, o mais fraco e o mais simpático. Eles continuam em disputa<br />

quando a personagem Estação interfere aconselhando um tratamento psicológico com<br />

um especialista analista de sistema ferroviário:<br />

Ih, é um tratamento maravilhoso! Todo feito em sistema<br />

moderno: ele deita o vagão num divã e começa a analisar... é<br />

ótimo! Tem dado muito bom resultado até com pessoas –<br />

“gente”! E a senhora sabe que se vagão já da trabalho...<br />

imagina “gente”.. Porque gente não tem rosca pra apertar... É<br />

tudo sem variedade técnica.. Quem sabe a senhora leva o<br />

vagão ao analista? (p. 9)<br />

Nesta fala Sylvia brinca com as complicações psicológicas dos seres humanos e<br />

até com a psicanálise. E as discussões, sempre divertidas, prosseguem com a mãe dando<br />

ordens e fazendo exigências e o filho a reclamar, enquanto a Estação tenta conciliar as<br />

partes. Até que a locomotiva resolve, por sua própria conta dar vitaminas para o menino<br />

vagão tomar. E o texto segue em sua irreverência:<br />

LOCOMOTIVA – Meu filhinho, espinafre tem muito ferro.<br />

Foi o veterinário de engrenagens metálicas do hospital<br />

siderúrgico que receitou!<br />

ZÉ VAGÃO – Não fala difícil, que eu sou criança!<br />

LOCOMOTIVA – Mas meu filho, minha vida, esperança<br />

minha, as palavras difíceis fazem parte dos remédios... A<br />

gente ouve, lê, já vai acreditando. Veja, eu sou uma mamãe<br />

locomotiva muito prevenida! Viajo sempre levando<br />

remedinhos para qualquer necessidade. Veja! (abre uma<br />

bolsa que leva consigo e tira algumas bulas de remédios)<br />

ZÉ VAGÃO – Mas isso não é remédio... é só papelzinho que<br />

vem dentro das caixas dos remédios...<br />

LOCOMOTIVA – (eufórica) – Pois é, são as partes mais<br />

sensacionais dos remédios! As únicas nas quais eu acredito!<br />

Eu não acredito em remédios, mas acredito em bulas! (p. 15)<br />

393


Neste diálogo Sylvia Orthof discute a medicina, a hipocondria e a automedicação.<br />

A mãe acha que só do nome do remédio ser difícil já ajuda a curar, ela tem<br />

mania de remédio, diz que leva vários na bolsa, ela medica o filho por conta própria e<br />

há ainda o nonsense de dizer que acredita mais em bulas do que em remédio.<br />

E a ação da peça aumenta quando Zé Vagão desmaia, Locomotiva pede socorro<br />

e entra em cena Jubilosa. Pelo nome já se pode depreender que seja uma figura insólita.<br />

Na descrição da personagem a autora diz: “É quase uma bruxa, mas deve ser irônica;<br />

nada tem a ver com maldade, com bruxa antiga de histórias de fadas” (p. 19).<br />

Com a entrada de Jubilosa o conflito entre autoridade/liberdade se torna mais<br />

acirrado e outras questões também fazem o jogo teatral.<br />

JUBILOSA – Precisa de alguma coisa? Posso atrapalhar um<br />

pouquinho? Adoro atrapalhar! Hi! Hi! Hi!<br />

LOCOMOTIVA – Meu filho desmaiou! Acho que dei<br />

remédio demais ou de menos, ou então fui enganada pela<br />

bula! Bula mentirosa, sem-vergonha, cretina!<br />

JUBILOSA – Ele desmaiou, é? Hi! Hi! Hi!<br />

LOCOMOTIVA – Enguiçou, coitadinho. No meio desta<br />

estrada da vida... Sem amigos, sem parentes, sem esperança!<br />

Sem rádio, sem televisão, sem telégrafo, sem ambulância,<br />

sem esperança. Píííííííííí´! (fala em compasso de tango; as<br />

duas dançam frenéticas)<br />

JUBILOSA – Calma, calma! Em momentos de aflição a<br />

gente não deve perder a calma! É o que dizem... Será que a<br />

gente só deve perder a calma em momentos calmos? Nunca<br />

entendi direito essas coisas... (p. 20)<br />

Jubilosa vem mesmo para questionar, para desestabilizar, para subverter e não<br />

perde nenhuma oportunidade. Ela diz que veio para atrapalhar, que adora atrapalhar e a<br />

Locomotiva nem percebe, age normalmente como se a outra tivesse dito que estava ali<br />

para ajudar. Ditos consagrados como “em momentos de aflição não se deve perder a<br />

calma” também são questionados com ironia e perspicácia. E em outro momento da<br />

cena:<br />

LOCOMOTIVA – Meu filho desmaiou e a senhora fica aí<br />

rindo! A senhora está rindo da minha desgraça, é?<br />

JUBILOSA – Eu me divirto com a desgraça dos outros... Sou<br />

sincera, ora! Os outros se divertem, mas fingem que não se<br />

divertem. Eu, me divirto! Hi, hi, hi! (pg. 21)<br />

A personagem vai ao imaginário infantil com sua irreverência. Toda<br />

criança levada faz artes e se diverte com a “desgraça” alheia. Assim,<br />

a autora leva a criança a contextualizar situações hipotéticas. E a cena<br />

continua quando Locomotiva resolve reagir e contra-atacar:<br />

394


LOCOMOTIVA – Engraçado... Estou achando a senhora<br />

com um certo jeito de coisa que não existe... A senhora monta<br />

em vassoura?<br />

JUBILOSA – Aos sábados. Só monto na minha vassoura aos<br />

sábados!<br />

LOCOMOTIVA – Por quê, heim?<br />

JUBILOSA – Porque os sábados são lindos... No dia seguinte<br />

é domingo. Domingo é um dia maravilhoso: não tem trabalho,<br />

nem escola, nem chateação... A gente é dono da vida!<br />

LOCOMOTIVA – (ultraburguesona) – Que horror! A<br />

senhora é contra o trabalho e contra a escola?<br />

JUBILOSA – (dando piruetas) – Vamos mudar a frase para:<br />

eu sou “a favor”. Sou a favor da liberdade de voar na minha<br />

vassoura, sou a favor de deixar os alunos e os professores<br />

passeando... Sou a favor da roda-gigante, dos banhos de<br />

mar... Agora, colégio e trabalho, desculpe a franqueza, mas<br />

conheço prazeres maiores... Sabe, vou confessar um<br />

segredinho: eu sou ligeiramente bruxenta... me divirto à moda<br />

antiga, sei lá... Não entendo direito o que estou querendo<br />

explicar... Sou um pouquinho má, sabe?<br />

LOCOMOTIVA – A senhora é uma bruxa, dessas que não<br />

existem?<br />

JUBILOSA – Sou. Com muita honra.<br />

LOCOMOTIVA – Eu tenho medo de bruxa.<br />

JUBILOSA – Eu também... Por isso não me olho no espelho.<br />

(p. 23)<br />

Este é um dos diálogos fundamentais do texto. Os deveres, a ordem, o trabalho e<br />

a escola são defendidos pela personificação da autoridade, enquanto o prazer e a<br />

diversão estão com a personagem libertária. E a bruxa assume deliberadamente seu<br />

papel transgressor ao se afirmar “a favor” de tudo que vai contra a norma. Segundo<br />

Danzinger:<br />

“... a comédia apresenta caracteristicamente desvios de uma<br />

norma. A norma, no sentido de padrão e modelo para um<br />

grupo, tanto pode ser o comportamento convencional da<br />

sociedade ou um comportamento ideal; e tanto pode<br />

expressar-se através de uma das personagens como estar<br />

apenas implícita na peça” (DANZINGER, 1974, p. 151).<br />

Ainda no mesmo diálogo, discutem abertamente sobre a existência do<br />

maravilhoso. As personagens instigam a imaginação da criança ao concordarem que<br />

395


uxas não existem, mas metem medo, e, ainda por cima, Jubilosa está ali, presente,<br />

para fazer esta afirmação e é uma bruxa que não mete medo.<br />

Mas Jubilosa não é só alegria, tem seus problemas também. Com as dificuldades<br />

da personagem Sylvia faz uma crítica social. A bruxa conta que vem sofrendo<br />

discriminação racial. Que há um movimento querendo impedir que as bruxas apareçam<br />

em peças infantis e que isso a levou ao desemprego. Reclama também dos críticos, diz<br />

que tem recebido acusações inclusive uma tão séria, tão feia que ela não tem nem<br />

coragem de dizer. Diante disso a Locomotiva fica curiosa, tampa os ouvidos do filho e<br />

pede que a outra revele o teor da acusação:<br />

JUBILOSA – Eles disseram, os professores, em congresso:<br />

eram dois mil trezentos e vinte e sete professores de literatura<br />

infantil, eles disseram que eu sou... Posso dizer mesmo?<br />

LOCOMOTIVA – Fala depressa, senão eu me arrependo. Eu<br />

sou uma locomotiva muito vivida, pode falar. Nada mais me<br />

choca, mas fala depressa, senão eu posso perder a coragem de<br />

ouvir... É palavrão, é?<br />

JUBILOSA – Depende do ponto de vista. Eu acho que é.<br />

LOCOMOTIVA – Pííííííí! Já estou nervosa, fala depressa!<br />

JUBILOSA – Um, dois, três: os professores me chamaram<br />

de... “anti-pedagógica”!<br />

LOCOMOTIVA – Francamente, Dona Bruxa Jubilosa, a<br />

senhora deveria respeitar a minha condição. Eu sou uma<br />

senhora de família, ouviu? Oh! Pííííííííí!<br />

Quanto mais indignada fica a locomotiva mais irônica é a cena. Sylvia, mais<br />

uma vez, se utiliza do humor para questionar a instituição estabelecida. As duas<br />

personagens continuam sua disputa, se agridem mutuamente, cansam, cada uma cede<br />

um pouco e acabam fazendo as pazes. A locomotiva segue seu caminho pelos trilhos,<br />

mas Jubilosa sempre volta para provocar, ora disfarçada de burro, ora de jabuticabeira.<br />

O tempo passa e a peça termina com Zé Vagão crescido, pai de família,<br />

reclamando de seus pequenos filhos vagões. E a mãe Locomotiva, bem, a mãe virou<br />

avó. E como toda avó só quer saber de mimar os seus netinhos. Jubilosa volta como<br />

uma linda borboleta:<br />

JUBILOSA – Eu sou o que voa e avoa!<br />

A história é uma só:<br />

toda mãe que é briguenta<br />

vira uma boa vovó.<br />

Todo trilho quando cresce<br />

envelhece<br />

e veste um paletó.<br />

Nesta história sempre igual,<br />

sou a falta de moral.<br />

Sou um pássaro<br />

borboleta,<br />

396


V – CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES FINAIS<br />

vou em círculo,<br />

atmosférico,<br />

no domingo,<br />

tudo é lindo,<br />

faço cócegas<br />

nos meus críticos! (p.56)<br />

Podemos afirmar que, quando Sylvia Orthof dá à Jubilosa a palavra final da<br />

peça, a autora provoca na criança o questionamento dos padrões e dos estereótipos e<br />

assim deixa ao leitor o espaço para seu posicionamento pessoal diante das questões do<br />

mundo. O texto mostra a postura da autora contra o autoritarismo em todos os níveis.<br />

Ao se posicionar pela liberdade das personagens, se posiciona pela liberdade ideológica,<br />

contra o governo ditatorial, contra o autoritarismo dos professores e dos pais.<br />

Se em seus textos Sylvia Orthof levanta uma bandeira ideológica, não o faz<br />

como atividade pedagógica ou formadora, pois não poupa figuras históricas nem<br />

instituições consagradas.<br />

Se Sylvia fala de liberdade, não é com a intenção doutrinadora de quem tem<br />

certezas cristalizadas. Ela traz o tema de forma questionadora e necessária porque este é<br />

um tema do seu tempo, de sua vida, de seu país.<br />

REFERÊNCIAS<br />

CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 3ª ed. Revista e ampliada. São Paulo: Duas<br />

Cidades, 1995.<br />

COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento de vida (série Nova<br />

Consciência). São Paulo: Petrópolis, 2000.<br />

DANZINGER, M. K.; JOHNSON, W. Stacy. Introdução ao estudo crítico da literatura.<br />

São Paulo: EDUSP/Cultrix, 1974.<br />

GASSNER, John. Mestres do Teatro vol. 1. Trad. e org. Alberto Guzik e J. Guinsburg.<br />

São Paulo: Perspectiva, 1991.<br />

LAJOLO, M.arisa, ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira: História e<br />

Histórias. São Paulo: Ática, 2003.<br />

MACHADO, Ana Maria. Contracorrente. Conversas sobre leitura e política. São Paulo:<br />

Ática, 1999.<br />

MARTHA, Alice Áurea Penteado. O tempo, de óculos, requebra numa bengala: Sylvia<br />

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