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ANOTAÇÕES PARA UMA TEORIA DO ESTADO Guillermo O ...

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<strong>ANOTAÇÕES</strong> <strong>PARA</strong> <strong>UMA</strong> <strong>TEORIA</strong> <strong>DO</strong> ESTA<strong>DO</strong><br />

<strong>Guillermo</strong> O’Donnell 1<br />

Primeira seção: Sociedade e Estado ......................................................................................................... 2<br />

1 Algumas definições preliminares ................................................................................................... 2<br />

2 Bases da dominação ..................................................................................................................... 4<br />

3 Aspectos e sujeitos sociais concretos ........................................................................................... 6<br />

4 Organização................................................................................................................................. 11<br />

5 Exterioridade ................................................................................................................................ 16<br />

6 Racionalidade limitada................................................................................................................. 17<br />

7 Contradição.................................................................................................................................. 23<br />

Segunda Seção: As Mediações entre o Estado e a Sociedade............................................................... 26<br />

8 Introdução .................................................................................................................................... 26<br />

9 A Cidadania, fundamento do Estado capitalista. ......................................................................... 29<br />

10 A nação, referencial do Estado.................................................................................................... 31<br />

11 O povo. fundamento e referencial ambíguo do Estado. .............................................................. 34<br />

12 Ocultamento e Ruptura................................................................................................................ 37<br />

Terceira Seção ......................................................................................................................................... 38<br />

13 Algumas conclusões .................................................................................................................... 38<br />

Convém precisar a intenção e os limites deste trabalho. Em primeiro lugar, são anotações para uma<br />

teoria e não uma tentativa de construir tal teoria visto que desenvolvo aqui apenas alguns dos temas<br />

necessários a uma visão suficientemente completa da problemática do Estado capitalista. Em segundo<br />

lugar, estas reflexões não nascem de um interesse genérico são o resultado de um esforço para<br />

entender um tipo de Estado capitalista - a que denominei burocrático autoritário - mediante o estudo do<br />

caso argentino contemporâneo, comparado a experiências latino-americanas similares. Essa tentativa<br />

bem como diversos comentários recebidos a meus trabalhos anteriores, mostraram a necessidade de<br />

repensar a concepção de Estado neles subjacentes. Ficou claro a partir dai que o mais problemático<br />

não é nem o Estado nem a Sociedade, mas a sua conjunção que os une de modo ambíguo e como se<br />

1 Muito deve este trabalho a meus companheiros do CEDES. Foram ademais especialmente importantes os comentários e<br />

anotações que Marcelo Cavarozzi, Oscar Oszlak e Norbert Lechner prepararam sobre a primeira versão do trabalho. Os<br />

trabalhos de Lechner por outro lado, exerceram uma influência especial sobre o presente texto. Quero também registrar a<br />

minha divida intelectual para com Anita Marntzas e o falecido Kalman Silvert que muitas vezes trataram de vencer a minha<br />

desatenção para com o tema da Nação.


verá desorientador em vários sentidos fundamentais. Em terceiro lugar, por ser o Estado burocrático<br />

autoritário um tipo histórico de Estado capitalista necessitei tratar alguns dos temas mais gerais deste<br />

Estado, ao menos aqueles que me permitissem voltar em continuação ao plano mais especifico do<br />

burocrático autoritário. Esta é uma das razoes além das de minhas insuficiências para que estas<br />

páginas sejam nada mais que as anotações anunciadas no titulo. Estas reflexões são pois um momento<br />

na elaboração de instrumentos conceituais para entender melhor não apenas um tipo de Estado mas<br />

ainda - e sobretudo - processos históricos penetrados por lutas que assinalam a implantação os<br />

impactos e o colapso deste Estado. Mas para chegar a isso pareceu me necessário neste trabalho,<br />

começar pelo outro lado, salientando algumas características comuns a todo Estado capitalista para só<br />

no final, esboçar as principais características diferentes de um tipo de Estado que tende a corresponder<br />

à textura de uma sociedade muito diferente dos casos clássicos e mais puramente capitalistas. Nestas<br />

paginas tais diferenças só podem ser assinaladas em suas características mais decisivas, mas também<br />

mais gerais. A exploração detalhada de suas conseqüências, bem como o destaque de contrastes mais<br />

específicos entre diversos casos latino-americanos não cabe neste trabalho. Isto é matéria do estudo<br />

acima mencionado, razão pela qual estas anotações são parciais, também no sentido de que são<br />

interrompidas antes de chegar aquele plano de especificidade histórica. Porém, como instrumento<br />

elaborado precisamente a partir do estudo colocado nesse plano, e com vistas a seu avanço a<br />

esperança é que possam contribuir à junção entre detalhe e teoria de que necessitamos tanto - e não<br />

apenas como pura conveniência do progresso intelectual.<br />

Primeira seção: Sociedade e Estado<br />

1 Algumas definições preliminares 2<br />

Primeiramente, será necessário desenvolver passo a passo uma definição de Estado. Entendo por<br />

Estado o componente especificamente político da dominação numa sociedade territorialmente<br />

delimitada. Por dominação (ou poder) entendo, a capacidade, atual e potencial, de impor regularmente<br />

a vontade sobre outros, inclusive mas não necessariamente contra a sua resistência. Portanto, entendo<br />

o político em sentido próprio ou especifico, como uma parte analítica 3 do fenômeno mais geral da<br />

2 Utilizarei aqui algumas contribuições - clássicas e contemporâneas - e mencionarei debates surgidos em vários contextos.<br />

Sendo um exercício de erudição pedante citar mesmo incompletamente essa enorme bibliografia. Esta razão, e outras mais<br />

conjunturais, me levaram a mencionar apenas as contribuições recentes e pouco acessíveis, que influenciaram diretamente<br />

na minha argumentação.<br />

3 Um ponto crucial destes e outros argumentos posteriores num conjunto determinado, as partes concretas são aquelas que<br />

se podem desagregar do mesmo, sendo ainda captáveis pelos sentidos (por exemplo à perna de uma mesa). Aspectos<br />

analíticos são aqueles que podem ser abstraídos intelectualmente mas que não são passíveis da operação acima (por<br />

exemplo, a forma dessa mesa). Quando falar de aspectos daqui para frente entenda-se que a referência é analítica.<br />

2


dominação, aquela que se encontra apoiada pela supremacia no controle dos meios de coerção física 4<br />

em um território excludente delimitado 5 . Combinando estes critérios, o conceito de Estado resulta<br />

equivalente ao plano do especificamente político e este, por sua vez, é um aspecto do fenômeno mais<br />

amplo da dominação social.<br />

A dominação relacional é uma modalidade de vinculação entre sujeitos sociais. É por definição<br />

assimétrica, já que é uma relação de desigualdade 6 . Esta assimetria surge do controle diferenciado de<br />

certos recursos, graças aos quais é habitualmente possível conseguir o ajuste dos comportamentos, e<br />

das abstenções do dominado à vontade - expressa, tácita ou presumível - do dominante. Não faz<br />

sentido tentar um inventário exaustivo desses recursos, mas é útil distinguir alguns que são muito<br />

importantes para sustentar a dominação. O primeiro é o controle dos meios de coerção física,<br />

mobilizáveis por si mesmos ou por meio de terceiros. Outro é o controle dos recursos econômicos. Um<br />

terceiro é o controle dos recursos de informação no sentido amplo, inclusive de conhecimentos<br />

científicos e tecnológicos.O ultimo que interessa assinalar é o controle ideológico, mediante o qual o<br />

dominado assume como justa e natural a relação assimétrica de que é parte e, portanto, não a entende<br />

nem questiona como dominação.<br />

Esta enunciação, serve para sublinhar alguns pontos que nos permitirão desembocar em temas mais<br />

interessantes. O primeiro deles é que o controle de qualquer desses recursos permite o exercício da<br />

coerção, consistindo em submeter o dominado a severas sanções. O segundo é que o recurso mais<br />

eficiente em termos de manutenção da dominação é o controle ideológico, que implica no<br />

consentimento do dominado a esta relação 7 , por outro lado, a coação é o recurso mais custoso, porque<br />

desnuda explicitamente a dominação e pressupõe que - pelo menos - fracassou o controle ideológico, a<br />

coação é entretanto fundamental, como ultima ratio de suporte à dominação. O terceiro ponto, é que<br />

habitualmente existe uma alta correlação entre o controle desses recursos, é altamente provável que<br />

quem controla os recursos "A" e "B" controle simultaneamente "C" e "D", ou pelo menos tenha nos<br />

4<br />

A seguir usarei indistintamente os termos coação ou coerção física.<br />

5<br />

Outras relações de dominação não incluem este suporte. Nem por isso deixam de sê-Io mas não consistem em dominação<br />

política, de acordo às definições que estou propondo. É claro que embora sejam relações de dominação parecem estas<br />

relações não políticas de dominação. Isto se reflete na linguagem comum e em algumas correntes intelectuais que<br />

consideram relações políticas, por exemplo, às estabelecidas em algumas associações como a família ou um clube. Nestas<br />

pode se fazer política num sentido que ainda não estudamos (o da competição pela conquista de posições desde as quais<br />

seja possível o exercício do poder) mas nelas não se encontra presente o componente especifico da supremacia coercitiva<br />

sobre um território excludente delimitado.<br />

6<br />

Alguns esclarecimentos necessários sugeridos por comentários recebidos à primeira versão deste trabalho. Primeiro nem<br />

toda relação social é uma relação de dominação - aqui privilegio esta última porque o tema que queremos tratar é o Estado<br />

que como veremos é uma esfera especifica da dominação. Segundo uma situação de desigualdade não impede<br />

necessariamente que os sujeitos sociais por ela vinculados possam empreender ações cooperativas, das quais (embora<br />

provavelmente em graus diferentes determinados por sua desigualdade) devêm benefícios ou vantagens a cada qual.<br />

7<br />

Este é o fundamento da virtualidade de severas sanções, emergente do controle ideológico questionar o que é justo, ou<br />

natural numa ordem social dada é pensar o proibido - sofrer a dissonância de sugerir o pecaminoso ou incorrer em<br />

ingratidão, para os que ocupam as posições superiores de uma ordem social justa.<br />

3


primeiros uma base eficaz para estender o âmbito de sua dominação sobre os restantes.<br />

Estes recursos são a base de toda dominação, não apenas política; a característica específica desta é<br />

a supremacia dos meios de coerção física em um território delimitado excludente 8 .<br />

2 Bases da dominação<br />

O controle dos recursos de dominação não está distribuído aleatoriamente. Em cada momento são<br />

muito variados os fatores que determinam o acesso desigual a tais recursos. Não apenas é inútil tentar<br />

um inventário desses fatores, mas além disso tal característica nos faria perder de vista (buscando uma<br />

precisão empírica inútil, no plano em que nos colocamos), que existe um grande diferenciador do<br />

acesso aos recursos de dominação, tanto diretamente como enquanto gerador de situações, que por<br />

sua vez permitem esse acesso.<br />

Esse grande diferenciador é a classe social, ou, mais precisamente, a articulação desigual (e<br />

contraditória) da sociedade em classes sociais. Por classe social entendo, como primeira aproximação,<br />

posições na estrutura social determinada por modalidades comuns de exercício do trabalho, da criação<br />

e apropriação do valor. Veremos que a determinação dessas modalidades não e só econômica, mas<br />

que há outras dimensões, também constituindo-se intrinsecamente - entre elas a que defini como<br />

estatal ou política.<br />

O Estado que nos interessa aqui é o Estado capitalista. A modalidade de apropriação do valor criado<br />

pelo trabalho, constitui as classes fundamentais do capitalismo, através e mediante a relação social<br />

estabelecida por tal criação e apropriação. Os mecanismos e conseqüências mais ostensivos dessa<br />

relação são econômicos. A relação de dominação principal - embora não única - numa sociedade<br />

capitalista é a relação de produção entre capitalista e trabalhador assalariado, mediante a qual é<br />

gerado e apropriado o valor do trabalho. Este é o coração da sociedade civil, seu grande princípio de<br />

ordenação contraditória.<br />

Essa apropriação não é simplesmente uma relação de desigualdade. É um ato de exploração, que<br />

implica também em que seja uma relação inerentemente conflitiva (ou para dizê-lo diferentemente,<br />

contraditória), independentemente de que seja, ou não reconhecida como tal pelos sujeitos sociais.<br />

Este é um dos pontos notáveis do controle ideológico: sua vigência encobre o conflito inerente a certas<br />

relações sociais. Isto sugere que, embora seus planos mais ostensivos sejam econômicos, a relação<br />

que nos ocupa também está impregnada de controle ideológico. Este último, do mesmo modo que o<br />

econômico, constitui essa relação, não como algo que lhe vêm de fora para reforçá-la eventualmente,<br />

8 Convém enfatizar que tanto o elemento de supremacia da coação como o do territorial são necessários para definir a<br />

especificidade do político-estatal. Uma quadrilha de rua e certo tipo de paternidade mantêm e exercem a supremacia dos<br />

meios de coação sobre as pessoas sujeitas á sua órbita de interação, mas tal dominação carece do elemento de<br />

territorialidade excludente. Por outro lado, a dominação política não é coação mais territorialidade.<br />

4


mas como componente que já esta aí, originariamente, contribuindo para concretizar sua vigência.<br />

Veremos que o mesmo pode argumentar-se acerca do político.<br />

Em que sentido as classes sociais são o grande diferenciador do acesso desigual aos recursos de<br />

dominação? Em primeiro lugar, diretamente a posição de classe determina em grande medida por si<br />

mesma essa desigualdade. Mas, ademais dessa posição surgem probabilidades diferenciadas de<br />

alcançar situações (prestígio social, educação, acesso à informação, capacidade para ser "escutado"<br />

socialmente e influir ideologicamente, disponibilidade de recursos para dirigi-los no plano propriamente<br />

político, entre outros), que por sua vez permitem atingir o controle de outros recursos de dominação.<br />

Esta não é, como tampouco as anteriores, uma estipulação definidora. Postula certas causalidades,<br />

hierarquizadas na importância e ordem de sua contribuição, a distribuição diferenciada de recursos de<br />

dominação, para a qual deveria existir, se é correta, apoio empírico razoável. E tal é o caso 9 .<br />

Mas, voltemos ao político propriamente dito. Há relações sociais ostensivamente requeridas por ordens<br />

apoiadas pela supremacia da coação sobre um território, por exemplo, as disposições que regem a<br />

prestação de serviços nas Forças Armadas, ou a sentença de um Juiz. Há outras que aparecem como<br />

relações "privadas", que vinculam os sujeitos sociais sem que assumam o Estado, nem seu poder<br />

coativo. São relações tipicamente contratuais, entendidas como aquelas em que, mediando ou não um<br />

documento escrito, as partes convencionam uma gama de obrigações e direitos. Mas o caráter privado<br />

dessa relação é só uma aparência. Na imensa maioria dos casos, as classes podem recorrer a um<br />

"algo mais" que subjaz à habitual probabilidade de vigência e execução do contrato. Esse plus é o<br />

Estado, cujas instituições podem ser invocadas, com o propósito de que ponham os recursos que<br />

possam mobilizar, e não só a coação, a serviço da vigência de certa interpretação do contrato. São<br />

poucos os contratos em que é necessário acudir a isto. Mas, em todos, a garantia de sua efetivação<br />

resulta da possibilidade de realizar tal invocação, tácita, porém fundamentalmente, já que de outra<br />

maneira a relação contratual não se concretizaria e, se o fizesse, não haveria possibilidade de<br />

demandar o seu cumprimento. Por outro lado, faltando este componente, a única possibilidade de<br />

alcançar a confirmação do contrato seria a coerção que as partes pudessem aplicar diretamente, a "lei<br />

das selvas", antagônica ao entrecruzamento previsível de relações, inerente a toda sociedade, mesmo<br />

a de menor complexidade.<br />

Os contratos costumam pressupor um acordo de vontades livremente adotado por partes que, face à<br />

legislação pertinente à relação, aparecem como iguais; A esta igualdade costuma-se dizer "formal",<br />

porque não obsta que a relação real que vincula os sujeitos chegue a ser extremamente desigual. O<br />

9 Para uma recapitularão da evidência sobre este ponto ver Frank Parkin Class Inequality and Polilical Order. New York,<br />

1971, também J H Westergard, Sociology the Myth of Classlessness ', em Robin Blackburn (org) Ideology in Social Science<br />

Readings in Criticai Social Theory, Fontana Glasgow 1972.<br />

5


caso crucial é o da venda da força de trabalho, ato de igualdade formal que possibilita a apropriação do<br />

valor criado pelo trabalho. Subjaz também a esta relação contratual a garantia implícita pela<br />

possibilidade de invocação ao Estado, no caso de descumprimento, para a efetivação de uma relação<br />

social desigual e contraditória. Esta capacidade de invocação (ou, em outras palavras, essa presença<br />

tácita e subjacente do Estado), e constitutiva da relação, ela não poderia existir - "seria outra coisa" -<br />

sem este componente. E tal papel, não apenas é desempenhado no caso - trivial - em que a invocação<br />

se realiza, mas também, mais permanente e fundamentalmente, em todas as relações dotadas da<br />

possibilidade de realizar tal invocação. Esta, ao tornar-se claro que há recursos de poder<br />

territorialmente delimitados que sustentam a relação sob a ameaça de sanções severas, marca desde<br />

as origens, os limites do que as partes podem decidir (e descumprir), e governa suas expectativas,<br />

acerca da vigência efetiva e das modalidades de execução da relação.<br />

Isto significa que a fiança prestada pelo Estado a certas relações sociais, inclusive as relações de<br />

produção, que são o coração de uma sociedade capitalista e de sua articulação contraditória em<br />

classes sociais, não é uma garantia externa nem a posteriori dessas relações. É parte intrínseca e<br />

constitutiva das mesmas, tanto como outros elementos - econômicos, de informação e controle<br />

ideológico - que são aspectos que só podemos distinguir analiticamente na própria relação. E isto<br />

significa, por sua vez, que as dimensões do Estado, ou do especificamente político, não são - como<br />

tampouco o é "o econômico" - nem uma coisa, instituição ou "estrutura"; são aspectos de uma relação<br />

social.<br />

3 Aspectos e sujeitos sociais concretos<br />

É necessário abordar um ponto que se tem prestado a confusões. É certo que os atores sociais<br />

costumam vivenciar a "intervenção do Estado" como algo exterior e a posterior, incorporado a suas<br />

relações quando algo nelas "falhou". Isto reflete no plano da consciência comum, o que inúmeros<br />

autores sublinharam o capitalismo é o primeiro caso histórico de separação entre a coerção 10<br />

econômica e a extra-econômica. Entre outros, o senhor de escravos e o senhor feudal concentravam<br />

recursos de poder econômico, de informação, coerção física e ideológica. Ao contrário, na sua relação<br />

com o trabalhador, o capitalista não concentra diretamente todos esses recursos. Porém, este contraste<br />

tem sido exagerado e não se traçaram algumas distinções necessárias. Em primeiro lugar, é um erro<br />

deduzir deste contraste que o capitalista só conserva a coerção econômica. Ele costuma exercer<br />

controle ideológico, embora não o monopolize, mesmo quando seu conteúdo e modos de realização<br />

sejam diferentes dos de outras situações históricas. Além disso, possivelmente haja aumentado o seu<br />

10 Por exemplo punições econômicas sob a forma de multa. A ultima ratio da superioridade na coação continua operando<br />

através da possibilidade de que outras sanções revertam a esta esfera, no caso de terem sido ineficazes e primeiras.<br />

6


controle dos recursos de informação, especialmente devido ao fracionamento da situação de trabalho<br />

em que é colocado o trabalhador, com a conseqüente dificuldade para reconstruir o seu significado<br />

social desde tal perspectiva.<br />

No entanto, o que mais interessa destacar é que a característica do capitalismo não é apenas que o<br />

trabalhador esteja destituído dos meios de produção, mas também que o capitalista está destituído dos<br />

meios de coação. Surgem disso várias conseqüências importantes. A separação entre o capitalista e os<br />

meios de coação, não implica que esta esteja ausente da relação social que o vincula ao trabalhador<br />

assalariado. Já vimos que ela é uma presença virtual que costuma entrar em ação quando algo<br />

"falhou". Tal ação é a efetivação da garantia de sua vigência, mediante a mobilização de recursos de<br />

poder que, por sua vez, têm como sustento de ultima instância a supremacia nos meios de coação<br />

sobre um dado território. Este terceiro sujeito social são as instituições estatais. Elas costumam acionar<br />

essa fiança das relações de dominação (inclusive das relações capitalistas de produção), quando o que<br />

é promessa virtual e subjacente às mesmas e invocado para que se efetive. Entramos aqui num<br />

território em que é preciso avançar com cuidado.<br />

Devemos distinguir entre a gênese e as condições de vigência das relações capitalistas de produção 11 .<br />

Nos dois casos podemos encontrar a especificidade da sociedade capitalista, mas de diferentes modos.<br />

Quanto à sua gênese, o vendedor da força de trabalho é livre, não apenas no sentido de que esta<br />

destituída dos meios de produção, mas também no sentido que não é levado a tal relação de forma<br />

coercitiva - no que difere da situação do escravo e do servo. O que leva o trabalhador a tal relação é<br />

uma coerção econômica, resultante de que, carente dos meios de produção, seu único modo de contar<br />

com meios de subsistência é convertendo-se em trabalhador assalariado. Esta coerção econômica é<br />

além disso difusa, nem as instituições estatais obrigam a venda da força de trabalho, nem os<br />

capitalistas podem, por si próprios ou valendo-se dessas instituições, impor tal obrigação a nenhum<br />

sujeito social concreto. A necessidade de fazê-lo, portanto, não aparece imposta por ninguém,<br />

"simplesmente", a sociedade está articulada de tal maneira que o trabalhador carente de meios de<br />

produção não poderia subsistir se não o fizesse.A ausência de coação para vender a força de trabalho<br />

é condição necessária para a aparência (formal) da igualdade entre as partes. Ademais, junto à<br />

coerção econômica difusa, é uma das raízes principais do controle ideológico, derivado da capacidade<br />

de dominação na sociedade capitalista (novamente em contraste com outras experiências históricas,<br />

em que as formas de coerção - econômica e física - são transparentes em si mesmas e no sujeito<br />

social que as aplica).<br />

Neste sentido genético, o econômico e a coerção econômica, são primários às relações capitalistas de<br />

11 Adoto neste ponto as reflexões de Marcelo Cavarozzi sobre uma versão anterior deste trabalho.<br />

7


produção. Mas, por outro lado, uma vez que se vende e compra a força de trabalho, se está celebrando<br />

um contrato que formaliza relações que também estão constitutivamente impregnadas por aspectos<br />

extra-econômicos - inclusive os políticos estatais de que nos ocupamos aqui. A fiança coercitiva da<br />

relação é constitutiva da mesma, isto, junto à necessária 12 destituição do capitalista dos controles<br />

diretos da coação, implica na cisão de um terceiro sujeito social que concentra tais recursos e tem<br />

capacidade para mobilizá-los. Este sujeito não é "todo" o Estado, mas a sua parte que se cristaliza ou<br />

objetiva nas instituições. O ponto fundamental é que, se isto é assim, o Estado - como aspecto dessas<br />

relações e complexo objetivo de instituições - é o fiador de tais relações, e não dos sujeitos sociais que<br />

mediante as mesmas se constituem. Isto significa que, o Estado não apóia diretamente o capitalista<br />

(nem como sujeito concreto nem como classe) mas à relação social que o faz capitalista. Outra<br />

implicação e que o Estado é primariamente coercitivo, no sentido de que não apenas a coerção física é<br />

a ultima ratio daquela fiança, mas também de que a separação entre o capitalista e os meios de coação<br />

é a origem do Estado capitalista e de suas instituições. Esta Primazia (genética) do coercitivo no Estado<br />

é - análoga à primazia, também genética, do econômico nas relações capitalistas de produção, o que<br />

não significa que tais relações sejam puramente econômicas nem que o Estado seja só coação. Que<br />

quer dizer isto?<br />

Em primeiro lugar, se a emergência de um terceiro que põe uma fiança em ultima instância coercitiva,<br />

esta implícita nas relações capitalistas de produção, o Estado já e por isso mesmo um Estado<br />

capitalista, antes de perguntar-se se favorece, ou é instrumentado por esta ou aquela classe ou fração<br />

de classe. Segundo, a objetivação dessa cisão nas instituições estatais implica, também<br />

necessariamente, que estas não sejam, nem atuem como um capitalista concreto, que ao sê-lo ficasse<br />

separado dos recursos coativos controlados por aquelas instituições. As relações capitalistas de<br />

produção pressupõem um terceiro sujeito social que aparece e atua como um não-capitalista, embora<br />

seja a objetivação de um Estado que é por isso mesmo capitalista. Em terceiro lugar, se o Estado é a<br />

garantia das relações de produção, então o é de ambos sujeitos sociais que se constituem como tais<br />

mediante estas relações. O Estado é a garantia do trabalhador assalariado enquanto classe, e não<br />

apenas da burguesia. Isto implica - lógica e praticamente - que em certas circunstâncias o Estado seja<br />

protetor do primeiro frente ao segundo. Mas não como árbitro neutro, e sim para repô-lo como classe<br />

subordinada que deve vender força de trabalho, e, portanto reproduzir a relação social que o Estado<br />

garante.<br />

Na medida em que as instituições estatais são a cristalização dos recursos coercitivos que o capitalista<br />

não controla, aparecem como um não-capitalista que, ademais, não garante às classes vinculadas às<br />

relações de produção senão indiretamente, através do apoio à contínua reposição de capitalistas e<br />

12 Por definição uma sociedade em que não predomina esta destituição não é capitalista<br />

8


trabalhadores assalariados enquanto classes. Isto supõe que o Estado seja a expressão de um<br />

interesse mais geral que o dos sujeitos sociais de cuja relação emana. Mas este interesse não é neutro<br />

ou igualitário, é o da reprodução de uma relação social que articula desigual e contraditoriamente a<br />

sociedade. Isto equivale a dizer que o Estado em seu conjunto - como aspecto e como objetivações - é<br />

uma forma de articulação daqueles sujeitos sociais. Neste sentido, o Estado é uma generalidade (a<br />

particularidade daqueles sujeitos e seus interesses), mas é uma generalidade parcializada (devido ao<br />

viés estrutural da modalidade de articulação entre aqueles sujeitos). O que, por sua vez, implica que o<br />

Estado seja mediação instalada e emanada em uma relação entre sujeitos sociais. Esta é a razão pela<br />

qual o Estado é habitualmente, ademais de coação, uma mediação consensualmente articuladora de<br />

sujeitos sociais. Porém, do Estado como organização do consenso nos ocuparemos na segunda parte.<br />

Recapitulemos. Na gênese das relações capitalistas de produção acha-se uma coerção econômica<br />

difusa que não pode ser imputada nem aos capitalistas concretos nem às instituições estatais; só pode<br />

ser descrita como uma modalidade de articulação geral da sociedade. Por sua vez, na medida em que<br />

se estabelece a relação, nem o capitalista exerce a coação, nem este ou as instituições estatais podem<br />

obrigar coercitivamente à contínua venda da força de trabalho; o trabalhador assalariado está sempre<br />

livre para concluí-la 13 . Finalmente, o Estado aparece como uma objetivação institucional que concentra<br />

o controle de recursos coercitivos em última instância, e como um não-capitalista que apenas garante<br />

as classes através do apoio às relações sociais que as constituem como tais. O caminho percorrido nos<br />

permite acrescentar duas precisões.<br />

A primeira é que, quando falamos de capitalistas e trabalhadores assalariados, não estamos no plano<br />

das relações inter-individuais mas no das classes sociais 14 . Isto permite entender o significado da<br />

primazia genética do econômico nas relações de produção, e do coercitivo no Estado. Este primado é<br />

analítico, não histórico nem concreto, porque em cada momento da sociedade capitalista, como<br />

totalidade imersa num tempo histórico, confluem os dois planos de gênese e de vigência efetiva<br />

daquelas relações e do Estado. De fato, não haveria venda de força de trabalho sem coerção<br />

econômica, mas, por outro lado, não haveria as classes fundamentais do capitalismo (nem, portanto,<br />

sociedade capitalista) se tal venda não estivesse já se efetuando. E, por sua vez, estas relações<br />

vigentes não são apenas econômicas; já vimos que incluem outras dimensões, inclusive a estatal,<br />

como seu aspecto co-constitutivo. Quanto ao Estado capitalista, o é porque emana de uma relação<br />

social que implica a separação entre os meios de coação e os capitalistas; mas, por outro lado, sua<br />

13 Esta é por certo outra diferença fundamental, em comparação com outras experiências históricas. O capitalista também<br />

está livre para finalizar a relação, pois conserva consigo um instrumento fundamental de coação econômica.<br />

14 Cada. trabalhador assalariado pode ter a esperança de deixar de sê-lo. Embora reduzida estatisticamente, a probabilidade<br />

de "mobilidade social ascendente" no capitalismo é outro contraste com as demais experiências históricas; que ajuda - como<br />

expectativa de fuga individual daquela posição de classe a encobrí-lo enquanto dominação. Por outro lado, fora desse nível<br />

individual, o capitalismo pressupõe a existência de uma classe de "livres" compradores e vendedores da força de trabalho.<br />

9


condição de fiador da relação, e não dos sujeitos sociais concretos, faz dele um fenômeno não apenas<br />

coercitivo. Portanto, o respectivo primado genético do econômico e do coercitivo é analítico, e não um<br />

fator histórica ou ontologicamente anterior às outras dimensões co-constitutivas das relações de<br />

produção e do Estado capitalista.<br />

A segunda precisão é que o político em sentido estrito, ou estatal, é um aspecto inerente às relações de<br />

dominação, especialmente às relações capitalistas de produção. Porém, além disso, a efetivação da<br />

sua garantia supõe a emergência de um sujeito concreto, as instituições estatais, que aparecem como<br />

forma não-capitalista, mais geral e exterior aos sujeitos diretos daquelas relações. Na medida, então,<br />

em que a garantia implícita só pode ser efetivada em certas ocasiões, e que a modalidade de<br />

efetivação está originalmente ligada à relação social e só indiretamente ao capitalista como sujeito<br />

social, as instituições estatais aparecem como interesse exterior e mais geral que os das partes diretas<br />

daquela relação.<br />

Podemos agora sistematizar algumas afirmações. Assinalei o propriamente político como um aspecto<br />

co-constitutivo de certas relações sociais, entre elas as relações capitalistas de produção. Assinalei<br />

também que, na medida em que o propriamente político ou estatal pode ser invocado para assegurar<br />

essa relação, mesmo que tal invocação não se realize em cada caso, aquele aspecto contribui uma<br />

fiança crucial para a vigência de tal relação. Essa relação constitui, conjuntamente, ao capitalista e ao<br />

trabalhador assalariado, como classes sociais. Isto, por sua vez, supõe a articulação de um sistema de<br />

dominação social, traduzido no acesso diferenciado a diversos recursos. Além disso, aquela<br />

constituição mútua necessária das classes é a relação social que cria o capital e permite a sua<br />

reprodução dinâmica enquanto processo de acumulação. Isto significa que os planos que acabo de<br />

mencionar são aspectos que se supõem recíproca e necessariamente, das relações sociais que<br />

definem a especificidade de uma sociedade capitalista. Isto por sua vez supõe que um desses<br />

aspectos, o estatal ou propriamente político, é simultaneamente fiança das relações capitalistas de<br />

produção, da articulação de classes de tal sociedade, da diferenciação sistemática do acesso a<br />

recursos do poder (ou sistema de dominação) e da geração e reprodução do capital 15 . Este é o sentido<br />

da afirmação de que o estatal ou propriamente político é originariamente constituinte dessas relações<br />

sociais e que, portanto, é errado buscá-lo "fora" ou "depois" das mesmas relações. Se assim é, decorre<br />

ademais que o Estado não pode senão ser como aquilo que co-constitui: uma relação social<br />

inerentemente contraditória 16 . Voltaremos a este ponto.<br />

15<br />

Quando a seguir referir-me à fiança que o Estado fornece à sociedade qua capitalista, deverá entender-se que aludo a<br />

este conjunto de aspectos.<br />

16<br />

Podemos também expressá-lo do modo seguinte: como emanação analítica de uma relação contraditória das classes,<br />

garantida e - como veremos - organizada com sua contribuição, o Estado capitalista é um dos âmbitos sociais dessa<br />

contradição e, ao mesmo tempo, uma tendência constante para o seu ocultamente.<br />

10


Por outro lado, a mencionada fiança opera num tecido de relações sociais que se desdobra num tempo<br />

histórico. Isto nos conduz a outro corolário: ela existe ao redor, e como parte, da reprodução dinâmica<br />

do conjunto formado pelas relações capitalistas de produção, a estrutura de classes, o sistema de<br />

dominação, e a criação e acumulação de capital. Com o termo "dinâmica" quero indicar dois pontos:<br />

que estas relações se reproduzem cambiantemente no decurso do tempo e que, no que refere à<br />

reprodução do capital, este é um processo de acumulação.<br />

4 Organização<br />

O Estado é um aspecto de certas relações sociais. Esta é sua característica fundamental, de que<br />

dependem seus outros atributos. Já que as relações capitalistas de produção pressupõem que a classe<br />

dominante não possui os recursos de coação, o Estado tende a objetivar-se em instituições<br />

principalmente coercitivas. Nos termos dos sujeitos sociais concretos, a relação entre capitalista e<br />

trabalhador implica a cisão de um terceiro, que são as instituições estatais. Mas o plano do Estado<br />

como aspecto (da sociedade) é fundamental, porque confundir o Estado com essas instituições seria<br />

subsumir um fenômeno mais amplo, naquela parte sua que é concretamente objetivada. A partir desta<br />

confusão, a relação capitalista - trabalhador apareceria como apenas "econômica", enquanto que, como<br />

outra conseqüência da mesma causa, o estatal apareceria intervindo de fora, e só eventualmente ao<br />

interior dessa relação. A cisão que se produz assim entre a sociedade e o Estado, e a externalidade<br />

recíproca a que os condena, é o fundamento principal do mascaramento do Estado como fiador da<br />

dominação na sociedade, e de sua opacidade. Estes são os temas que começaremos a examinar.<br />

Devo agora explicitar algo que permaneceu implícito nas páginas anteriores. Enquanto fiador da<br />

sociedade capitalista, o Estado é o articulador e organizador da sociedade, independente de sua<br />

condição de suporte co-ator da vigência de certas relações de dominação.<br />

Num primeiro sentido, o Estado é, como fiador daquelas relações, o limite negativo das conseqüências<br />

socialmente destrutivas de sua reprodução 16 . Ou seja, a existência do capitalista em competição com<br />

outros capitalistas, sujeitos todos às necessidades da acumulação, supõe que individualmente<br />

tenderiam a uma exploração excessiva (do ponto de vista do encobrimento de sua dominação e da<br />

reprodução da força de trabalho), e além disso, ficariam entregues a uma concorrência também<br />

"excessiva", que eliminaria de sua classe - agonizando assim os antagonismos implícitos na<br />

reprodução do capital - uma boa parte dos capitalistas.<br />

Por outro lado, a competição ao redor da acumulação do capital, determina que o burguês não se<br />

ocupe de decisões e investimentos necessários para a conquista das condições sociais que permitem,<br />

16 Sobre este ponto ver E Altvater, "Rémarques sur quelques problèmes theoriques postes par l’interventionisme etatique ',<br />

em 1.N. Vincent (org) L’Etat, Maspero Pans, 1975 págs 135-170<br />

11


entre outras coisas, a reprodução do sistema de classes, a acumulação e a resolução de certos<br />

problemas "gerais" (tipicamente, as tarefas do Estado liberal na educação, saúde, obras de infraestrutura<br />

física, e ademais, as intervenções diretamente "econômicas" do Estado capitalista moderno).<br />

Estas, diferentemente das anteriores, não são limites negativos à atuação dos capitalistas, mas um<br />

condicionamento do contexto social, de que "alguém" deve ocupar-se 17 .<br />

Observe-se que tanto as interposições de limites negativos, como as intervenções de ajuste social,<br />

aparecem ante os setores como algo externo a suas relações "privadas", o que acontece paralelamente<br />

à aparente exterioridade do Estado vis-à-vis as relações de produção. Além disso, como são decisões<br />

que, em contraste à do capitalista, não costumam orientar-se à conquista do lucro para o agente,<br />

aparecem como expressão de uma racionalidade distinta àquela do capitalista. Em acréscimo, na<br />

medida em que se interpõem como limite negativo ou como condicionante do contexto social, encarnam<br />

uma racionalidade mais geral e neste sentido "superior" à do capitalista individual. Finalmente, a<br />

interposição de limites negativos pode ser vivenciada por certos capitalistas (inclusive por todos eles)<br />

como ação não só externa, mas igualmente hostil, da parte desse "alguém" que a impõe.<br />

Especialmente, uma boa parte dos limites negativos específicos de cada país são resultado de lutas<br />

das classes dominadas, para as quais são experiências de vitória, vivenciadas inversamente pela<br />

burguesia.<br />

Esse "alguém", que se ocupa de tais planos, são as instituições estatais. A existência dessas<br />

instituições e seu peso monótono na sociedade é uma das razões para que o Estado seja<br />

experimentado como exterioridade. Já vimos outras razões, mas chegamos a um ponto que vale a<br />

pena enfatizar. Essa aparência de exterioridade fundamenta-se no mascaramento da dominação, que<br />

subjaz às relações capitalistas de produção, e que determina que o Estado só apareça (como<br />

instituição), quando eventualmente invocado para apoiá-las. Mas, ademais, fundamenta-se em que,<br />

principalmente na sua interposição de limites negativos, as instituições apareçam como encarnação de<br />

uma racionalidade mais geral e não-capitalista. Embora devamos ainda examinar essa modalidade de<br />

atuação, isto nos permite entender porque o Estado tende a aparecer face aos próprios capitalistas,<br />

como uma força exterior e movida por uma racionalidade diversa. A partir de sua condição primordial de<br />

fiador de uma relação, o Estado capitalista não é diretamente o Estado "dos" capitalistas, e nem mesmo<br />

pelas razões que acabo de assinalar, costuma ser vivenciado como tal pelos mesmos. Porém, as<br />

objetivações não são apenas instituições concretizadas em organizações complexas e burocráticas.<br />

Podem ser também formalizações que cristalizam relações sociais típicas. O contrato de compra e<br />

17 Não creio que seja possível estendermo-nos muito mais, ao nível de generalidade em que nos situamos aqui sobre estas<br />

modalidades de intervenção. Por certo, as diferenças entre essas modalidades são de muita importância no estudo de casos<br />

históricos específicos.<br />

12


venda da força de trabalho supõe a igualdade formal das partes, através de um caráter legalmente<br />

tipificado - trabalhador/empregador - que prescinde das condições reais de cada um 18 . O produto dessa<br />

relação é corporificado em mercadorias que circulam pela mediação do dinheiro. A moeda só pode ser<br />

meio de circulação como equivalente genérico das mercadorias. Isto supõe que todo sujeito deva ser<br />

considerado "igual frente à moeda", cuja posse outorga direito e acesso a mercadorias, “apenas”<br />

limitado pela quantidade que dela possua e não por sua posição de classe.<br />

Por outro lado, para ser objeto de intercâmbio, a força de trabalho deve aparecer como uma mercadoria<br />

entre outras, trocadas por moeda, para a qual acudam sujeitos sociais formalmente iguais e livres (ou<br />

seja, não levados coercitivamente ao contrato de trabalho); os quais, por sê-lo, sustentam a validade e<br />

o cumprimento do contrato que celebram.<br />

A igualdade formal do sujeito social frente à moeda, e na relação contratual (inclusive a de venda da<br />

força de trabalho), são exatamente paralelas. O intercâmbio de mercadorias pela mediação do dinheiro<br />

é um momento crucial na circulação do capital. O acordo de vontades, entre sujeitos formalmente<br />

iguais, é um ponto notável do tecido de organização da sociedade capitalista por parte do Estado. Sua<br />

objetivação é o Direito moderno, racional-formal no sentido weberiano, que consagra o sujeito social<br />

como sujeito jurídico, no plano da igualdade correspondente ao plano da circulação do capital. Dinheiro<br />

e direito racional-formal são abstrações reais, no sentido de que, por um lado, derivam de uma relação<br />

social a qual transformam, e de que, por outro lado, são um plano não puramente mítico, que se vincula<br />

contraditoriamente com o anterior 19 .<br />

O direito racional-formal nasceu e expandiu-se juntamente com o capitalismo. Isto expressa uma<br />

relação profunda esse direito é a codificação formalizada da dominação na sociedade capitalista,<br />

mediante a criação do sujeito jurídico, implícito na aparência da vinculação livre e formalmente igual, do<br />

intercâmbio da força de trabalho e, em geral, da circulação de mercadorias.<br />

Como os aspectos restantes que estamos considerando, o direito racional-formal contém ambigüidades<br />

que expressam a sua vinculação contraditória com os níveis profundos da sociedade. Por um lado,<br />

esse direito faz do trabalhador assalariado algo diferente do servo e do escravo um sujeito que, em<br />

certos planos, tem direito igual aos das outras classes - inclusive o de invocar as instituições estatais<br />

18 Isto não implica no desconhecimento da complexidade introduzida por modalidades tais como a negociação coletiva ou<br />

políticas estatais orientadas a proteger os trabalhadores. Essas transferem a esfera da igualdade formal das relações ler<br />

individuais entre trabalhador e capitalista para o conjunto dos mesmos sem alterar o pressuposto de igualdade formal que<br />

sobejais ao intercâmbio da mercadoria - força de trabalho - que assim se coletiviza parcial e distorcidamente sob a lógica<br />

abstraia e formalizante do capital.<br />

19 Ver sobre este ponto a obra de Lúcio Colletti, From Rousseau to Lenin NLB Editions,Londres 1972 págs 231- 236 que<br />

desenvolve este argumento acercada mistificação das mercadorias que na esfera, em que se coloca a economia política<br />

vulgar aparecem tal como verdadeiramente são na superfície aparente da sociedade. Do mesmo modo que a critica do eco<br />

norma política é a teoria que descobre a ligação contraditória dessas aparências com seu substrato a teoria do Estado tem<br />

que ser a critica de sua própria superfície aparente.O paralelismo não e casual um e outro são partes - embora o primeiro<br />

esteja muito mais desenvolvido - de uma teoria critica da sociedade capitalista.<br />

13


para que esses se efetivem. Mas, por outro lado, o sujeito jurídico criado pelo direito racional-formal é a<br />

entidade abstrata - despojada de qualquer atributo que não o de ser tal sujeito formalmente igual - que<br />

contrata, livre e, portanto validamente, a venda de sua força de trabalho. Em acréscimo, o direito<br />

também codifica a dominação, ao consagrar e tornar apoiada, coercitivamente, a propriedade privada;<br />

especialmente a dos meios de produção, apropriados e utilizados em um mercado integrado por tais<br />

sujeitos jurídicos abstratamente iguais. Isto, por sua vez, implica formalizar a articulação da sociedade<br />

de modo a consagrar a destituição do trabalhador dos meios de produção; o qual fica então, sem<br />

necessidade de coação, forçado a vender a sua força de trabalho.<br />

Este direito é a cristalização mais formalizada da contribuição do Estado à sociedade capitalista. Isto,<br />

não apenas porque cria o sujeito social descarnado, implícito nas relações capitalistas e na apropriação<br />

privada dos meios de produção. Mas também porque, como formalização cognoscível, ensina<br />

preventivamente às partes os limites de seus direitos e deveres, diminuindo, portanto, a necessidade de<br />

intervenção ostensiva para invocar em ultima instância a fiança coercitiva do Estado. Graças a isto, tal<br />

intervenção aparece movida não pelos agentes de um sistema de dominação, mas por sujeitos<br />

juridicamente iguais, que apenas se limitam a exigir o cumprimento do que contrataram livremente e na<br />

base de situações abstratamente tipificadas nas normas legais 20 .<br />

Por isso, o direito racional-formal é algo mais que ensino preventivo e caminho regularizado para a<br />

efetivação da garantia do Estado. Ao cristalizar os planos que correspondem à esfera da circulação, e<br />

fazê-los previsíveis como conjuntos de direitos e deveres, o direito é também um tecido organizador da<br />

sociedade e da dominação que articula.<br />

Esta abstração corresponde à emergência e reprodução de uma relação de poder - a que liga o<br />

capitalista ao trabalhador - na qual o pólo dominante desprendeu-se do controle direto dos recursos de<br />

coação. A exploração que se realiza através das relações capitalistas de produção fica então oculta por<br />

uma aparência dupla: a de igualdade (formal), das partes e da livre vontade com que as mesmas<br />

podem ou não entrar em relação. O capitalismo supõe tanto a separação entre o trabalhador e os<br />

meios de produção como a separação entre o capitalismo e os meios de coação. Ambas são<br />

requeridas para que a relação subjacente se transforme numa relação de intercâmbio entre iguais<br />

abstratos, medida pelo equivalente universal que é o dinheiro. É assim que, regulada pelo direito, a<br />

relação pode aparecer como relação apenas econômica: um intercâmbio, como o de outras<br />

mercadorias, intermediado pelo dinheiro.<br />

Já que as relações sociais fundamentais do capitalismo aparecem desligadas de qualquer coação, é<br />

20 Percebe-se ademais, que por isto mesmo o direito aparece como fundamento por um lado, e por outro lado como<br />

mecanismo de reposição, quando ameaça ser alterado de urna certa ordem de uma regularidade socialmente valorizada de<br />

articulação da sociedade. Ver de Norberto Lechner. Poder y Ordem. La Estratégia de Ia Minoria Consistente , (FLACSO<br />

mimeografiado Santiago de Chile, 1977) sobre o peso implícito da ordem garantida pelo Estado.<br />

14


difícil reconhecer nelas o seu aspecto principalmente coercitivo, que é o Estado. Portanto, este, por sua<br />

vez, costuma ser captado naquilo que lhe é derivado e secundário em suas objetivações como direito e<br />

como conjunto de instituições. Estas tendem então a aparecer como plenitude do Estado e, na medida<br />

em que são o momento de objetivação de uma relação social que se perdeu de vista, também como<br />

uma força estranha aos sujeitos sociais movida por uma racionalidade exterior. Aquilo que é<br />

principalmente um aspecto das relações de dominação, fica reduzido a sua superfície objetivada em<br />

instituições. Dito de outro modo, a reificação ou coisificação do Estado capitalista em suas instituições é<br />

a modalidade típica de sua aparência - razão pela qual a crítica deste Estado deve começar por<br />

descobri-lo como aspecto da dominação na sociedade. Do mesmo modo que o dinheiro e a mercadoria,<br />

as instituições estatais são um fetiche. Emanação e ao mesmo tempo ocultação da relação<br />

contraditória subjacente, o fetiche não aparece apenas como poder exterior. Também é um<br />

determinante da consciência comum e sua modalidade de exteriorização tende a reger uma percepção<br />

do mundo social, que é em si mesma uma máscara da realidade subjacente. Não se atinge o capital<br />

partindo do dinheiro, mas das relações de produção. Tampouco se chega ao Estado capitalista partindo<br />

das instituições, mas das relações capitalistas de dominação.<br />

Esta cisão aparente entre sociedade e Estado é outra especificidade do capitalismo que - insistamos -<br />

tem fundamento real na diferenciação de um terceiro sujeito social que presta um suporte<br />

principalmente coativo. Ela supõe uma cisão paralela entre o "privado" e o "público". Os sujeitos da<br />

sociedade civil são as partes "privadas", as instituições estatais são a encarnação do "público". Este é<br />

outro campo em que o direito tem importância fundamental. De fato, nele se situam os sujeitos sociais<br />

como partes privadas, face às instituições estatais. A sociedade civil e os sujeitos que a constituem<br />

ficam assim reduzidos à sua aparência nas relações capitalistas de produção, a agentes que, não<br />

condicionados por nenhuma coação, reproduzem relações de intercâmbio, movidos por uma<br />

racionalidade limitada ao econômico. Por outro lado, as instituições estatais permanecem como<br />

instância superior, mediadora dessas relações. É assim que o sujeito do direito torna-se o mesmo da<br />

superfície aparente da sociedade capitalista à parte "privada” , reduzida à reprodução cotidiana do<br />

fundamentalmente econômico, contraposta à esfera do publico de um Estado fetichizado.<br />

Antes de internar-nos em outros problemas, recapitularemos alguns dos pontos centrais do argumento.<br />

Isto pode ser necessário, porque demasiado freqüentemente a teoria do Estado fica aprisionada à<br />

aparência fetichizada do Estado capitalista. A partir disso, uma série de falsos problemas e disjuntivas<br />

não pode ser superada. A chave central é captar primeiro, o Estado como uma dimensão analítica na<br />

sociedade civil, e só depois (como conseqüência da cisão necessária de um terceiro sujeito social,<br />

manifesta na especificidade daquele aspecto) como um conjunto de objetivações.<br />

15


5 Exterioridade<br />

Que se haja diferenciado o sujeito social que efetiva a fiança coativa (e que, portanto, seja a sua<br />

concreção institucional neste plano, mas apenas nele, externa às partes) não impede que a relação<br />

social esteja constituída conjunta e originariamente por diversos aspectos, entre os quais encontra-se o<br />

estatal ou político em sentido estrito, e a coação física. Estas são questões que devem ser<br />

cuidadosamente diferenciadas. Insistamos então que as relações de dominação - inclusive a que<br />

vincula capitalistas e trabalhadores - não são simplesmente econômicas. São também políticas e,<br />

suposta certa “normalidade”, igualmente ideológica (pelo menos). O plano concreto de objetivação em<br />

sujeitos sociais e institucionais é secundário e derivado (embora tenha importantes efeitos próprios) do<br />

entrecruzamento daqueles aspectos como conjuntamente constitutivos de uma relação social. Isto tem<br />

várias conseqüências. Uma, é que se os sujeitos sociais se constituem mediante e na condição sua de<br />

portadores de relações sociais, as classes não são um fenômeno apenas econômico, porque não o são<br />

tampouco as relações capitalistas de produção que as plasmam enquanto tais. Outra, é que se o<br />

estatal, ou político em sentido estrito, é um aspecto das relações sociais de dominação, a oposição<br />

entre o "privado" e o "publico" ou estatal é falsa. E a - terceira conseqüência - no sentido especifico de<br />

que não apenas o "privado" está impregnado pelo político-estatal, mas também porque ao ser este<br />

constitutivo da sociedade, é parte (analiticamente distinguível) desta ultima. Em outras palavras - e isto,<br />

embora re-expresse reflexões anteriores, é fundamental -, o Estado ou o político não está "fora" da<br />

sociedade, é sua parte intrínseca.<br />

Por outro lado, sabemos que o Estado emana de uma relação social, que supõe a cisão de um terceiro<br />

sujeito social. Vimos também que esse sujeito não e apenas a objetivação da vigência efetiva de fiança<br />

coercitiva subjacente a tais relações. É também organizador da dominação, através dos limites<br />

negativos e do condicionamento do contexto social, deixado aos cuidados das instituições estatais.<br />

Também o é mediante a sua objetivação no direito.<br />

Mas, além disso, o direito é a consagração da exterioridade aparente do Estado, vis-à-vis os sujeitos<br />

sociais. Vimos que as relações capitalistas de produção geram um sujeito (as instituições estatais) que<br />

aparece como um não-capitalista, exterior aos sujeitos diretos das relações capitalistas de produção.<br />

Vimos também que esse terceiro sujeito não é o fiador direto das classes, mas das relações que as<br />

constituem como tais. Esta é a origem da cisão aparente entre o Estado e a sociedade ou, e que é<br />

equivalente, entre o político e o econômico. Esta cisão é aparente, porque é uma emergência do<br />

entrecruzamento inerente do político e do econômico (bem como de outros planos) como aspectos<br />

daquelas relações. Mas também é, a seu modo, real, porque no plano dos sujeitos sociais, concretos,<br />

emerge efetivamente um terceiro que não é nem capitalista nem trabalhador, nem atua com a<br />

racionalidade de ambos. Isto é, por sua vez, o fundamento de que se produza uma transformação, que<br />

16


é a base da ocultação do Estado capitalista enquanto dominação. Em primeiro lugar, trata-se de<br />

subsunção dessas instituições como o "todo" do Estado. Em segundo lugar, trata-se da aparência de<br />

que elas apenas intervêm eventualmente, e sem desvios sistemáticos, sobre as relações sociais.<br />

Quando se deixa de ver o Estado em sua condição primordial de fiador nas (e das) relações sociais de<br />

dominação (especialmente das relações capitalistas de produção), esfuma-se o seu componente coator<br />

e tudo parece dever-se a uma coerção econômica difusa. Ademais, ao apagar-se aquela condição<br />

primordial, os recursos concentrados nas instituições estatais (inclusive a capacidade de coação)<br />

podem aparecer vinculados a um interesse geral e abstrato. Em outras palavras, a venda da força de<br />

trabalho, a quem não dispõe de recursos de coação, supõe o controle destes últimos por um terceiro<br />

sujeito que, como a coação ficou apagada daquela relação, pode então aparecer aplicando-a<br />

neutralmente. A soma destes dois movimentos é uma subtração. A dominação e seu suporte coercitivo<br />

tendem a esfumar-se, tanto da sociedade quanto do Estado. O que permanece é uma "ordem"<br />

juridicamente cristalizada, a que podem apelar todos os sujeitos, livres e iguais, e expostos à coerção<br />

apenas quando tentam violá-la<br />

6 Racionalidade limitada<br />

O Estado capitalista é um fetiche; quando aparece subsumido em suas objetivações é, portanto,<br />

desligado de sua inserção primordial na sociedade. Mas isto não obsta que devamos levar em conta a<br />

imensa importância do que suas instituições fazem ou deixam de fazer. No nível de análise em que se<br />

situam estas páginas, o problema principal é o de se é correto afirmar que essas instituições, momento<br />

de objetivação plena do Estado, expressam desde o seu próprio plano a condição inerentemente<br />

capitalista deste e - se assim é - de que modo o fazem. Este tema prestou-se a demasiados simplismos<br />

e falsos dilemas, de modo que devemos penetrá-lo com cuidado. De início, devemos partir da critica à<br />

pretensão de racionalidade realmente superior, que se costuma postular desde essas instituições.<br />

Margareth Wirth levanta a pergunta pertinente "A tese segundo a qual o Estado deve garantir a<br />

reprodução do capitalismo coloca, em primeiro lugar, a questão sobre como o Estado - de modo diverso<br />

dos capitalistas individuais - poderia conhecer as condições dessa reprodução social. A burocracia do<br />

Estado não "sabe" (do mesmo modo que não o sabem os capitalistas individuais) quais são as medidas<br />

"objetivamente necessárias para a manutenção do sistema nos casos concretos dados" 21 .<br />

Esta afirmação parte de uma realidade colocada ou não no ápice do sistema institucional do Estado, o<br />

ser humano está sujeito a agudas limitações cognitivas, relacionadas com suas próprias carências e<br />

com a multidimensionalidade do mundo social. Isto determina que a sua seja uma "racionalidade<br />

limitada". Ou seja, que não possa realmente buscar nem encontrar soluções ótimas. Sua capacidade<br />

21 Margareth Wirth “Contribution à la Critique de la théorie monopoliste d’Etat em J M Vicent, L Éiat , p 123.<br />

17


de atenção é restrita, a agenda de problemas que pode considerar é estreita, a busca de informação<br />

sofre custos crescentes, os critérios que orientam essa busca são desviados por fatores inconscientes<br />

e por rotinas operacionais, é a informação está longe de fluir livremente 22 . Como conseqüência, o<br />

método típico de tomada de decisões é através do ensaio e erro, baseado no encontro de soluções<br />

sub-ótimas (simplesmente "satisfatórias"), que supõem uma teoria rudimentar das conexões causais<br />

que regem os problemas que se trata de resolver.<br />

Estes dados não são congruentes com a auto-imagem hegeliana do burocrata, coincidente com a de<br />

alguns de seus críticos equivocados. Tampouco indicam alguma fração da burguesia, que "controlaria"<br />

o Estado como instrumento sagazmente colocado a serviço dos seus interesses. Como é possível, no<br />

entanto, responder afirmativamente à pergunta com que iniciamos este capítulo?<br />

O Estado afiança e organiza a reprodução da sociedade capitalista, porque se encontra para isso numa<br />

relação de "cumplicidade estrutural" 23 . O Estado é parte da sociedade, como aspecto seu, inclusive, e<br />

primordialmente, das relações capitalistas de produção. O Estado já é por isso capitalista sem que<br />

sejam necessárias decisões e volições de seus agentes para que chegue a sê-lo. A sociedade<br />

capitalista tende sistemática e habitualmente à sua reprodução enquanto tal. O mesmo acontece com o<br />

Estado; aspecto da mesma sociedade. De que modo o faz? Primeiro, como direito, enquanto<br />

cristalização codificada da igualdade formal e da propriedade privada. Segundo, como presença tácita<br />

de recursos de poder, prontos para entrar em ação caso a relação de dominação que suportam "falhe"<br />

por alguma razão. Terceiro, como um dos ancoradouros para a ideologia da sociedade capitalista, que<br />

se apaga da consciência comum enquanto dominação é exploração. Quarto, porque a cisão verossímil<br />

do Estado como instituição face à sociedade capitalista é, em si mesma, um plano de sua cumplicidade<br />

estrutural, já que reborda a superfície aparente da sociedade capitalista enquanto abstrato socialmente<br />

real - e ao fazê-lo a oculta e se oculta a si mesmo como dominação. Estas razões fazem do Estado<br />

cúmplice estrutural da vigência e reprodução da sociedade capitalista, da qual é, repitamos, aspecto coconstitutivo<br />

24 .<br />

Até onde chegamos com estas reflexões? A que o Estado ou o especificamente político é o mesmo<br />

enfoque com que a sociedade tende a reproduzir-se como capitalista. Este é um problema diferente do<br />

22<br />

As referencias a limitações cognitivas que farei nesta secção baseiam-se principalmente nas investigações de Herbert<br />

Simon e seus colaboradores, conforme, especialmente, James March y Herbert Simon, Organizations N York, 1958 e<br />

Richard Cyert y James March, A Behavioral Theory of the Firm, Prentice Hall Englewood Chffs, 1963. Também são<br />

relevantes embora seja difícil concordar com seus modelos normativos, as conceituações macromentalistas' (p ex , os<br />

trabalhos de Charles Lmdblom The Science of Muddlmg TYhrough' Public Administration Rewew, 19, N ' 2, 1959 e Aaron<br />

Wildavsky, The Politics of Budgetary Proceis, Little, Brown & Co Boston, 1964) e da ' política burocrática" (p ex Grahan<br />

Allison, Essence of Decisions: Explaining the Cuban Missile Crisis Little, Brown & Co , Boston.<br />

23<br />

O conceito é de Claus Offe 'Structural Problems of the capitalist State" em Klaus von Beyme (org), German Political<br />

Studies, Vol l, Sage Publications, Londres, 1974.<br />

24<br />

Este ponto é enfatizado por Margareth Wirth, ' Contribution", op cit<br />

18


que as instituições estatais fazem ou não fazem (mais precisamente, do que fazem ou deixam de fazer<br />

as pessoas com papeis institucionais que lhes permitam "falar" em nome do Estado e mobilizar seus<br />

recursos). Este plano deriva-se do que acabamos de referir, já que só pode ser propriamente entendido<br />

da perspectiva do Estado, como aspecto co-constitutivo da sociedade. No entanto, este é o terreno em<br />

que se costuma situar a discussão da questão que nos propusemos abordar. Portanto, se as nossas<br />

reflexões acerca da fetichização do Estado não estão erradas, não é surpreendente que exista, nesse<br />

plano, descolado de sua realidade subjacente, resposta possível a tal pergunta.<br />

Essas instituições acionam concretamente um viés sistemático para o afiançamento e a reprodução de<br />

sua sociedade capitalista, que já está impresso no Estado de que são as objetivações. Quando e como<br />

atuam? Fundamentalmente, em duas ocasiões uma, enquanto administração burocrática que cumpre<br />

tarefas reutilizadas de organização geral da sociedade, outra, como resposta a situações percebidas<br />

como "crises".<br />

O que fazem essas instituições e como atuam? Comecemos pela administração rotinizada. Esta, junto<br />

com o Direito (com o qual se superpõe em grande parte, na medida em que este participa dessa<br />

rotinização, e por outro lado, porque a maioria de tal administração ocorre através da aplicação de<br />

normas jurídicas), é o tecido habitual e pouco visível das múltiplas decisões diárias de suporte e<br />

organização da sociedade. Esse funcionamento, apesar de eficiências e incongruências, supõe<br />

sistematicamente, em seu conteúdo real e na agregação diária dos impactos daquelas decisões, essa<br />

sociedade em sua articulação de classes e em sua composição por sujeitos jurídicos abstratamente<br />

iguais, capazes de apropriar-se privadamente dos meios de produção, ou seja, enquanto sociedade<br />

capitalista. E, ao pressupô-la, a ratificam tácita porém decisivamente, mediante a miríade de decisões<br />

pelas quais a "Penélope" burocrática re-empreende diariamente um tecido que é a imagem e<br />

semelhança do de ontem (em que cada ontem foi também capitalista). Esta repetição "natural” , como<br />

prolongação óbvia do passado, é, como a rotina do trabalho (da qual nada participa por acaso), uma<br />

das contribuições fundamentais do Estado objetivado na burocracia à reprodução da sociedade<br />

capitalista. A trama de sustentação e organização estatal da sociedade é tecida também por suas<br />

instituições, em rotinas diárias que pressupõem a sociedade enquanto capitalista. Se a compreensão<br />

do aspecto estatal requereu um esforço analítico, a reiteração dessas rotinas é como que um rumor<br />

surdo, de difícil identificação.<br />

Outro plano em que atuam as instituições estatais é enquanto reação (e, ocasionalmente, como<br />

tentativa de prevenção) de "crises" ou "problemas" 25 . Porém, o que é uma crise? Algo que, por alguma<br />

razão, percebe-se que "anda mal", e que alguma instituição estatal encarrega-se de "solucionar" uma<br />

25 Sobre a emergência desenvolvimento e resolução de problemas ou questões sociais ver Oscar Oszlak e <strong>Guillermo</strong><br />

O'Donnell, "Estado y Políticas Publicas en América Latina Sugerencias para su Estudio", CEDES/GE CLACSO, N •<br />

19


greve, um índice "excessivo" de inflação, uma queda da taxa de investimento, ou demandas para que<br />

certos recursos econômicos do Estado sejam alocados ao programa A e não ao B. Mais geralmente,<br />

crises e problemas aparecem politicamente como rupturas da "ordem" e, economicamente, como<br />

obstáculos interpostos à acumulação do capital. Em outras palavras, a determinação do que seja uma<br />

crise não é feita de modo neutro porque as crises são crises da sociedade capitalista.<br />

Crises e problemas definem-se como tais em função de certas concepções básicas acerca do que é,<br />

em contraste, a "normalidade". Assim, por exemplo, a exploração da força de trabalho se oculta como<br />

normalidade, a menos que uma taxa excessiva ameace a reprodução da força de trabalho, ou que, por<br />

qualquer razão, ocasione "desordem". Só então se apresenta à atenção dos sujeitos, e tende a gerar<br />

ações corretivas e/ou coercitivas. Do mesmo modo, a dinâmica da acumulação do capital implica em<br />

que a burguesia continuamente se devore e se recomponha internamente. Mas isto só aparece como<br />

problema quando algum grupo reclama, em condições que lhe permite ser escutado, que se reduzam<br />

tais efeitos e que se apóie esse grupo para que sobreviva como capitalista (ou quando alguns<br />

funcionários tomam a iniciativa de tutelar este ou outro grupo).<br />

Não vale a pena insistir em outros exemplos. O importante é que a própria definição de crise ou<br />

problema pressupõe uma "ordem" (que já identificamos como relação de dominação) é uma<br />

"normalidade" de reprodução do capital (que é uma realidade de exploração sustentada por essa<br />

ordem). Em outras palavras, está implícita uma neutralidade da sociedade enquanto capitalista, que<br />

seria restaurada dinamicamente mediante a "solução" a cada problema. Este é outro plano de<br />

cumplicidade estrutural traduzido, primeiro na rotina de Penélope e, segundo, na recomposição de uma<br />

"normalidade" cujas rupturas surgem das contradições subjacentes, que ajuda a ocultar.<br />

Assinalei que, ao contrário das ilusões dos tecnocratas, o ser humano atende a problemas que se lhe<br />

impõem como tais dentro de um campo de atenção, de disponibilidade de tempo, e de capacidade de<br />

processamento da informação sumamente limitado. A expansão e diferenciação das instituições<br />

estatais, bem como a crescente complexidade do direito, são tentativas de atribuir esses, e outros<br />

recursos escassos, à grande quantidade de problemas colocados pelo desenvolvimento contraditório<br />

da sociedade. Assim como o indivíduo "fatora" os problemas, atendendo-os "um de cada vez",<br />

isolando-os mediante a cláusula do "ceteris paribus", de dimensões alheias ao esquema causal<br />

rudimentar que utiliza 26 , o crescimento e a diferenciação das instituições estatais são o "ceteris paribus"<br />

coletivo dos problemas e das crises. Do mesmo modo, a criação de instâncias de coordenação e<br />

comando são tentativas sempre sub-ótimas de superação de algumas das conseqüências negativas da<br />

dispersão institucional resultante. Este fracionamento é afim ao fracionamento da sociedade. Neste<br />

26 Estas são outras razões levantadas pelos autores já citados na sua demonstração de que a tomada de decisões<br />

corresponde a uma racionalidade limitada e não a ótimos.<br />

20


sentido, o mapa - a distribuição e densidade - das instituições estatais em cada caso histórico é o mapa<br />

das suturas das áreas que as contradições subjacentes romperam em sua superfície. Estas instituições<br />

nem estão aí nem atuam, em função de um grande desígnio de racionalidade, que conheceria melhor<br />

que os capitalistas as condições de sua reprodução. A arquitetura institucional do Estado e de suas<br />

decisões (e não-decisões), é, por um lado, expressão de sua cumplicidade estrutural e, por outro lado,<br />

o resultado contraditório e substantivamente irracional da modalidade também contraditória e<br />

substantivamente irracional, de existência e reprodução de sua sociedade.<br />

As limitações de atenção e de processamento da informação determinam que, para que as instituições<br />

do Estado se dêem conta de um problema, alguém deve colocá-lo "de fora", ou que, de "dentro" das<br />

últimas, alguém o defina como tal. Está muito distante das consciências dos sujeitos sociais e, mais<br />

ainda, da agenda de problemas das instituições estatais, abranger "tudo o que interessa". A capacidade<br />

de colocar um problema ou de definir uma situação como crise, significa poder. Mais precisamente,<br />

supõe contar com recursos consideráveis de dominação. O trabalhador pode exercer coletivamente o<br />

seu poder, por exemplo, para impor severas sanções mediante uma greve - embora isto possa<br />

mobilizar recursos reativos - que canalizem em resposta sanções ainda mais severas. É certo que,<br />

sobre a base do diferenciador de acesso aos recursos, implícito em uma classe dominante, os<br />

capitalistas costumam deter uma capacidade ainda maior de colocar os "seus" problemas, com menor<br />

probabilidade de ocasionar sanções reativas. Da mesma maneira, o controle dos recursos e canais de<br />

informação, bem como a "autoridade" que resulta de um discurso congruente com a normalidade da<br />

sociedade capitalista, permitem levantar privilegiadamente questões e definições das crises.<br />

Igualmente, apenas uma visão grosseiramente instrumentalista do Estado poderia surpreender-se de<br />

que, desde essas mesmas instituições, possa surgir a iniciativa da sua colocação.<br />

Mas, quais são os problemas que entram na agenda da atenção das instituições estatais, em que<br />

sentido são definidos como tais, quem são as partes "autorizadas" para o seu debate, e quais as<br />

modalidades de sua resolução? Isto é o resultado de lutas em que se recolocam contínua e<br />

completamente a importância das bases de dominação que se encontram em jogo. São também<br />

resultado silencioso de outras lutas, suprimidas antes de chegar à consciência dos sujeitos pela<br />

capacidade da dominação social e pela complexidade estrutural do Estado. Por isso, o Estado, como<br />

toda relação social, é uma relação de forças. É por isso também, seu direito e suas instituições, apesar<br />

da aparência de neutralidade que recompõem continuamente, estão entrecruzados pelas lutas e<br />

contradições da sociedade.<br />

Se o Estado - ademais do que assinalei nas seções anteriores - inclui estes planos de cumplicidade<br />

estrutural, e se as crises e problemas que chegam à agenda de suas instituições foram filtradas (não<br />

apenas em números, mas também em caracterização), estes problemas tenderão a aparecer sob a<br />

21


feição de seus efeitos e causas mais imediatas. Por exemplo, esta ou aquela associação de classe<br />

reclama o seu subsidio, sem o qual suas empresas serão deficitárias, há uma greve fabril, uma<br />

localidade exige que uma estrada futura seja projetada nas proximidades. O problema aparece<br />

levantado pelo lado de seus efeitos imediatos, e as causas que o provocam costumam ser entendidas<br />

nas suas conexões mais próximas 27 . Também os conflitos, com suas derrotas e trunfos das classes<br />

dominantes, costumam tecer-se ao redor de um raio limitado e distorcinador de suas causas e<br />

conseqüências. Quase tudo ocorre na superfície da sociedade, a partir da qual -já sabemos - é difícil<br />

chegar às causas subjacentes que, com o ruído de suas manifestações como "crises", impõem-se à<br />

capacidade de atenção dos sujeitos, e não aparecem no que são verdadeiramente os modos<br />

contraditórios de reprodução da sociedade capitalista.<br />

As medidas adotadas podem ou não ser "correias"; podem atenuar ou alimentar o conflito especifico<br />

que se quis resolver ou prevenir; podem ou não ser implementadas, e serem mais ou menos<br />

ostensivamente incongruentes com as que foram adotadas antes, ou com as que adotem outra<br />

instituição estatal. O fracionamento do sistema institucional do Estado e a racionalidade limitada de<br />

seus agentes supõem que estas disjuntivas costumam ocorrer simultaneamente, também, na<br />

agregação do que o conjunto dessas instituições faça ou deixe de fazer.<br />

A cumplicidade estrutural do Estado e a base desigual dos recursos com que cada um consegue fazerse<br />

escutado pelas instituições estatais supõem que muitas decisões estejam orientadas pela intenção<br />

de favorecer esta ou aquela fração ou grupo da burguesia. Porém, como é evidente, esta é uma ponta<br />

do iceberg o determinante é que o tratamento habitual dos problemas (já tratados, por outro lado) em<br />

seu contorno mais superficial e imediato, implica em ratificar a textura da sociedade capitalista Isto,<br />

além da tarefa de Penélope, é o que permite entender porque em meio à cacofonia de incongruências,<br />

erros e acertos sempre parciais e precários, as instituições estatais costumam contribuir à garantia e<br />

organização da reprodução da sociedade enquanto capitalista 28 .<br />

A resposta à pergunta inicial e, pois, que o Estado objetivado nas instituições apóia e organiza a<br />

27 Segundo Margareth Wirth”Cotribution " op cit p 124, ' as deficiências não aparecem como deficiências sociais' mas<br />

particulares não é fácil ver a causa - longínqua ou imediata - desta crise (A) construção linear do encadeamento de causas e<br />

efeitos não permite entender a estrutura contraditória das causas da crise" .Estas observações são confirmadas pelos<br />

estudos empíricos das organizações visa as citações anteriores, às quais devemos acrescentar que tanto a identificação das<br />

causas dos "problemas", como a atribuição das possíveis conseqüências das decisões destinadas a solucioná-los<br />

costumam ser "simplistas" e baseadas em informação 'que é de difícil obtenção e contabilidade duvidosa" (Richard Cyert e<br />

James March A behavioral op cit págs 80-81) Isto reforça a tendência a funcionar num esquema causal rudimentar' inclusive<br />

no que respeita a limitar-se a conexões causais muito próximas ao problema detectado .Para organizações que não<br />

costumam escolher' os seus problemas mas saltar de crise em crise (ibid pág 102, numa coincidência significativa com a<br />

colocação de Margareth Wirth, 'Contribution " op CU) o que supõe que habitualmente apenas se consegue uma<br />

aproximação à superfície dessas crises.<br />

28 Nada mais errado, portanto que o conceito do Estado como entidade monolítica que impede o reconhecimento por um<br />

lado de que suas instituições costumam interiorizar o peso relativo das classes subordinadas mas que por outro lado isto<br />

não apenas não obstaculiza mas e condição de possibilidade para o mosaico de instituições decisões e não decisões em<br />

que se concretiza a cumplicidade estrutural do Estado.<br />

22


eprodução da sociedade capitalista, através do caos aparente de decisões e abstrações, as quais,<br />

enquadradas por uma racionalidade restrita, pressupõem tacitamente, e ratificam praticamente, a<br />

textura profunda dessa sociedade. Nenhuma magia unge os seus agentes com uma nacionalidade<br />

superior. Simplesmente porque o iceberg participa da realidade profunda do mar, tende a navegar -<br />

quase em linha reta e senír o mapa nem sextante - na direção de suas correntes.<br />

Podemos agora conectar o que dissemos recém com o já assinalado acerca da racionalidade nãocapitalista,<br />

que parece orientar as intervenções estatais. É claro que a pretensão de ter uma<br />

racionalidade "superior" é falsa. Mas continua sendo certo que, embora a racionalidade do funcionário<br />

seja tão limitada como a do capitalista, a sua motivação não é imediatamente capitalista, já que não se<br />

orienta continuamente ao lucro per se. Por outro lado, as decisões em que se renova o voto tácito de<br />

fidelidade à sociedade capitalista costumam ocorrer em meio a choques de interesses "particulares".<br />

Estes são os termos concretos em que se colocam, e resolvem, as condições de reprodução da<br />

sociedade. Frente a eles o funcionamento estatal costuma expressar em sua decisão um interesse<br />

"mais geral". Por certo, este interesse não e um interesse verdadeiramente geral. Mas, a<br />

verossimílitude dessa crença (e da que dela decorre, de um Estado acima da sociedade à qual arbitra<br />

imparcial e soberanamente) tem amarração real na maior generalidade da motivação, que ademais não<br />

é imediatamente capitalista, através da qual o funcionário processa o fracionamento da sociedade.<br />

Por outro lado, num plano ainda mais abstrato, a imagem do funcionário como agente do interesse<br />

geral é ratificada pelo nível tácito mais básico que discutimos há pouco apesar de sua racionalidade<br />

limitada, a agregação das decisões e abstenções estatais costuma realmente contribuir ao interesse<br />

geral da reprodução da sociedade capitalista. As instituições estatais completam, assim, sua imposição<br />

face à sociedade. Não apenas são os fetiches da cisão aparente (mas fundamento de características<br />

reais da sociedade) entre Estado e sociedade, ademais, apesar da racionalidade restrita, aparecem por<br />

cima da sociedade. Dela são, agora sim, a organização publica e coercitivamente suportada de uma<br />

superfície que encobre, parcialmente costurada pelas instituições estatais, as rupturas que a constituem<br />

no que é. É assim que o Estado, coisifícado em suas instituições, torna-se máscara da sociedade,<br />

aparência de força externa movida por uma racionalidade superior, a qual se mostra (e se acredita)<br />

encarnação de uma ordem justa, a que serve como árbitro neutro.<br />

7 Contradição<br />

O Estado é inerentemente contraditório. O é porque é primordialmente parte analítica de uma relação<br />

contraditória. Mas isto não é suficiente. O Estado ou o político tem sua própria especificidade, que<br />

permite distinguí-lo como aspecto constitutivo da sociedade global, porque devolve àquela relação uma<br />

contradição própria. O exposto na seção anterior permite-nos iniciar a abordagem deste tema.<br />

A relação capitalista de produção pressupõe a emergência de um terceiro sujeito social. Essa<br />

23


exterioridade, como momento de seu sentido pleno, é o fundamento de sua habitual percepção como<br />

"ator" descolado de tal relação. Isto, por sua vez, é a origem da fetichização das relações estatais. A<br />

qual permite que as relações capitalistas de produção apareçam como não-coercitivas e puramente<br />

econômicas ao mesmo tempo em que a coação das instituições estatais desaparece em seu vínculo<br />

inerente com tais relações. A cisão entre o público e o privado é a condição de possibilidade das<br />

relações capitalistas de produção, porque só assim podem aparecer acordos livres entre sujeitos iguais,<br />

é o suporte coercitivo estatal como não inerente aos mesmos. Mas isto gera a necessidade de<br />

mediações entre o público e o privado, ou entre o Estado e a Sociedade Civil. Como recuperar os<br />

sujeitos da sociedade civil de sua fragmentação e cotidiariedade, de tal modo que, sem descobri-las<br />

enquanto dominação, as instituições estatais possam sustentar-se no argumento verossímil de que<br />

aquilo que fazem ou deixam de fazer está orientado por interesse mais geral que o daquelas partes<br />

"privadas"?<br />

Como legitimar a coação, justificar a coerção inclusive contra as classes dominantes e, definitivamente<br />

fundamentar o dever político de obediência à "ordem" que o Estado garante e organiza? Já vimos que o<br />

fundamento real do poder que exercem as instituições estatais lhes é exterior, emana das relações<br />

capitalistas de produção, como fiança destas. Do mesmo modo, o Estado fetichizado tem que dever<br />

sua legitimação a um fundamento que não seja a sociedade civil - pela razão elementar de que essa<br />

fetichização a reduziu ao privado, como opacidade cotidiana fundamentalmente econômica.<br />

A superação do hiato entre a sociedade civil e o Estado é necessária para que o poder exercido pela<br />

primeira não se revele como tal e, finalmente, como fiança deste àquela dominação. Se as instituições<br />

estatais não pudessem obter habitualmente a obediência dos sujeitos sociais, e não tivessem algum título<br />

geralmente aceito para aplicar a "ultima ratio" da coação, não exerceriam a fiança, da qual são<br />

momentos objetivados. Porém, se essa obediência e título aparecessem fundados na relação que<br />

afiançam, a desnudariam, uma vez que essas instituições não podem aparecer como base de seu<br />

próprio poder, sem abdicar de sua legitimidade mesma, e nem desnudar-se como dominação 29 . O<br />

Estado capitalista tem que aparecer como um fetiche distinto da sociedade civil, mas nem esta nem<br />

aquele poderiam ocultar-se como dominação, se tal cisão não fosse superada através de mediações<br />

que fundamentam o poder estatal fora de suas instituições e da dominação na sociedade. A<br />

contradição do Estado capitalista é ser o hiato e, simultaneamente, necessidade de mediação com a<br />

sociedade civil. Estas mediações que examinaremos na seção seguinte são a expressão ambígua e, em<br />

ultima instância, contraditória de tudo isso.<br />

29 Ou em outras palavras o Estado é uma fenomenal condensação da dominação embora para se-lo verdadeiramente – ou<br />

seja, ale de ser pura coeção, insustentável senão o curtíssimo prazo- é necessário que não apareça como tal, nem em suas<br />

instituições, nem no direito, nem nas relações sociais, das quais emana.<br />

24


Em acréscimo, o fundamento do poder não é necessariamente o seu referencial (o sujeito ou interesse<br />

coletivo a que se supõe sirva). Na verdade, o capitalista enquanto classe é beneficiário imediato da<br />

fiança estatal, já que ela se dirige às relações sociais de produção, e estas por sua vez implicam na<br />

continua reposição de uma classe de capitalistas, que compram força de trabalho a uma classe de<br />

trabalhadores formalmente livres. A classe dominante tampouco costuma aparecer como beneficiária<br />

direta do Estado fetichizado. Tal como na realidade profunda, o beneficiário aqui tem que ser um referente<br />

mais geral que essas classes. No entanto, o enclausuramento no privado e fundamentalmente no<br />

econômico, que tal cisão determina para a sociedade civil, implica que tampouco esta possa ser o<br />

referencial a que se possa imputar a generalidade de interesses a que as instituições estatais parecem<br />

servir.<br />

A única possibilidade de que o poder exercido pelas instituições estatais tenha fundamento e referencial,<br />

é que tal cisão seja superada, mas isto seria a negação da necessária separação entre o Estado e a<br />

sociedade capitalista. A falsidade profunda dessa cisão emerge assim na própria tendência necessária<br />

à sua superação.<br />

Com isto, passamos à segunda seção deste trabalho, em que trataremos das principais mediações<br />

estabelecidas entre o Estado e a sociedade. Ali poderemos encontrar outros componentes do Estado<br />

capitalista que, embora dependam do plano primordial que analisamos nesta secção, também são<br />

indispensáveis para entendê-lo adequadamente. Depois de considerar essas mediações, tentaremos<br />

recuperar alguns aspectos centrais da totalidade resultante do caminho que acabamos de percorrer, e<br />

do qual nos ocuparemos em uma seção seguinte.<br />

No entanto, será necessário um esclarecimento prévio, forçado pela intenção originária destas reflexões.<br />

Os casos históricos que as suscitaram caracterizam-se pela supressão das mediações que<br />

analisaremos a seguir. Ao contrario dos casos "normais", nos quais, através da vigência dessas<br />

mediações o Estado capitalista torna-se também organizador do consenso, naqueles ocorre à<br />

conjunção evidente entre uma dominação de classe e a fiança coercitiva do Estado. Neles, o Estado<br />

capitalista demonstra que é antes capitalista que nacional, popular ou de seus cidadãos. Seu<br />

componente coercitivo, ligado à dominação de classe, é, como tratei de argumentar nesta secção, o<br />

esqueleto estruturado do Estado, evidenciado quando consenso social e legitimação estatal são<br />

sacrificados para salvar a dominação. Emanação de uma relação contraditória, o Estado capitalista é<br />

intrinsecamente essa contradição mesma, inclusive expressando e "retornando", com sua<br />

especificidade própria, as relações de forças cambiantes com que se verifica historicamente. Mas, além<br />

disso, o Estado capitalista é também a tendência necessária a falsa superação - ocultadora - de tal<br />

contradição, com exceção das conjunturas em que se joga a espinha dorsal inegociável, da própria<br />

sobrevivência das relações sociais, das quais se é parte intrínseca. Aqui, para salvar-se, a dominação<br />

25


estatal e social deve correr o risco imenso de desnudar-se como tal - contrafação exata da dureza de<br />

suas vitórias eventuais.<br />

Segunda Seção: As Mediações entre o Estado e a Sociedade<br />

8 Introdução<br />

Sabemos que o Estado é primordialmente um aspecto de certas relações sociais e que as instituições<br />

"públicas" e o Direito são as suas principais objetivações. Já vimos também a verdadeira imbricação do<br />

Estado dá-se com tais relações, e somente através delas com os seus sujeitos sociais. Isto supõe ser o<br />

Estado uma instância mais geral que estes sujeitos, referida a um interesse que, sendo pela<br />

manutenção de tais relações, lhes é também mais geral. Esta característica do Estado é transposta à<br />

sua aparência ante a consciência comum, onde emerge como uma generalidade sistematicamente<br />

voltada a uma relação de dominação, mas como una generalidade indiferenciada e imparcial. Isto é o<br />

que analisaremos a seguir.<br />

A condição do Estado como fiador e organizador da sociedade qua capitalista tende a ser negada pelas<br />

mediações que religam o Estado e a sociedade sob formas que ignoram as clivagens de classe e que<br />

confinam a sociedade ao "privado" e ao fundamentalmente econômico. Tais mediações são instâncias<br />

generalizadoras, postas sobre o fracionamento da sociedade como um bastidor, que oculta traços que<br />

não se devem mostrar no grande cenário político. A competição interburguesa e a desarticulação das<br />

classes subordinadas tendem a gerar sistemas de solidariedade inferiores aos que o Estado não pode<br />

deixar de supor - na medida em que pretende comandar um conjunto populacional territorialmente<br />

delimitado. Seja através da miríade de grupos e coalizões resultantes do fracionamento da sociedade,<br />

ou através de alinhamentos que expressariam as suas clivagens mais profundas, as agrupações<br />

emanadas diretamente da sociedade não podem forjar solidariedades que encampem o conjunto da<br />

população. Ademais, na medida em que os alinhamentos principais se façam ao redor de divisões de<br />

classe, e não estejam envoltos por algum tipo de solidariedade roais geral, a contribuição do Estado à<br />

sociedade qua capitalista estaria manifesto - o que não determina que tal Estado seja inviável mas,<br />

como veremos adiante, reduzindo o controle ideológico e desnudando-o correlativamente, como<br />

coerção.<br />

Todo Estado pressupõe uma comunidade política, no sentido de que esta é condição necessária para<br />

uma dominação consensualmente aceita, sendo sua reconstituição contínua uma das metas<br />

tendenciais das instituições estatais. Por comunidade política refiro-me às solidariedades coletivas<br />

vigentes em grande parte de uma população territorialmente limitada, resultantes da crença de que<br />

26


compartem importantes valores e interesses e de que é possível propor metas comuns imputáveis a<br />

tais valores e interesses. Assim como em seu substrato profundo o Estado é uma instância mais geral<br />

do que os sujeitos;que se constituem pela relação social da qual ele é um aspecto, a ligação do Estado<br />

com a comunidade política é outra forma de generalidade: uma modalidade de articulação dos sujeitos<br />

em um território, sob modalidades que se dão a um nível de generalidade equivalente ao do Estado.<br />

As instituições estatais exercem poder quando apóiam as suas decisões com a capacidade de impor<br />

severas sanções (não apenas coercitivas). Sob que título podem pretender tal capacidade? Ainda mais:<br />

sob que título pode pretender-se que cada sujeito cumpra o dever político de ajuste dos seus<br />

compromissos (inclusive o de obedecer a comandos explícitos) sem que se necessite pôr em<br />

movimento tal capacidade de coerção? Este é, certamente, um dos temas clássicos da teoria política.<br />

Mas não desde sempre, e sim desde que o poder já não pode justificar-se como direito tradicional de<br />

mando, expressão de direitos intangíveis da monarquia, ou braço secular de um poder espiritual<br />

superior. O Estado capitalista é o primeiro Estado que necessita postular o fundamento do seu poder<br />

em algo que lhe é externo. É a partir de dois processos intimamente relacionados - a expansão do<br />

Capitalismo na Europa e a reivindicação burguesa vitoriosa de somente obedecer a um poder formado<br />

consensualmente - que se pôs o problema crucial da obrigação política. Hobbes, Locke e Rousseau<br />

deram-lhe respostas diferentes, mas o resultado prático foi que o seu substrato deve encontrar-se em<br />

que, de alguma maneira, o sujeito aparece formando a vontade à qual ajusta os seus comportamentos<br />

e/ou porque é do seu interesse racional fazê-lo.<br />

Entendo por fundamento do Estado a sustentação de seu controle dos recursos de dominação e de sua<br />

pretensão, apoiada portais recursos, de ser habitualmente obedecido. Entendo por referencial do<br />

Estado os sujeitos e as relações sociais, a cujos interesses de vigência e reprodução o Estado serve. O<br />

Estado capitalista, em sua realidade profunda, não é o seu próprio fundamento e referencial. Ambos lhe<br />

são externos: situam-se ao nível - analítico - da sociedade, fundamento e referencial do Estado. Tal<br />

como já vimos em outros níveis, esta realidade profunda repercute na modalidade da aparição do<br />

Estado ante a consciência comum. De fato, do mesmo modo em que o Estado costuma aparecer<br />

coisificado em instituições, o fundamento de seu direito a mandar e coagir, bem como de sua<br />

expectativa de obediência generalizada, também lhe são externos. Do mesmo modo o "para quem", o<br />

referencial a que tais instituições aparecem servindo, costuma aparecer externo às mesmas.<br />

A possibilidade de aceitação difundida do controle dos recursos de dominação pelas instituições<br />

estatais exige que o fundamento e o referencial dessa capacidade lhes sejam externos. Mas a<br />

sociedade tampouco costuma aparecer como tal fundamento e referencial. Primeiro, porque o seu<br />

fracionamento não chega a gerar solidariedades coletivas ao nível das supostas pelo Estado, que é<br />

uma generalidade abrangente da população de um território. Segundo, porque se a sociedade fosse<br />

27


fundamento e referencial, o Estado apareceria como fiador e organizador da dominação de classe que<br />

ali se exerce, e assim o Estado não encobriria essa dominação e devolveria diretamente à sociedade a<br />

contradição fundamental da qual emana. Esse fundamento e referencial, que não são nem a sociedade<br />

nem o Estado coisificado em suas instituições, são outras modalidades de constituições de sujeitos<br />

coletivos, nas quais costumam fixar-se solidariedades de um nível de generalidade correspondente ao<br />

do Estado. Estas são as mediações entre o Estado e a sociedade que começamos a analisar.<br />

Entendo por fundamento do Estado a sustentação de seu controle dos recursos de dominação e de sua<br />

pretensão, apoiada por tais recursos, de ser habitualmente obedecido. Entendo por referencial do Estado<br />

os sujeitos e as relações sociais, a cujos interesses de vigência e reprodução o Estado serve. O Estado<br />

capitalista, em sua realidade profunda, não é o seu próprio fundamento e referencial. Ambos lhe são<br />

externos: situam-se ao nível – analítico - da sociedade, fundamento e referencial do Estado. Tal como já<br />

vimos em outros níveis, esta realidade profunda repercute na modalidade da aparição do Estado ante a<br />

consciência comum. De fato, do mesmo modo em que o Estado costuma aparecer coisificado em<br />

instituições, o fundamento de seu direito a mandar e coagir, bem como de sua expectativa de<br />

obediência generalizada, também lhe são externos. Do mesmo modo o "para quem", o referencial a que tais<br />

instituições aparecem servindo, costuma aparecer externo às mesmas.<br />

A possibilidade de aceitação difundida do controle dos recursos de dominação pelas instituições estatais<br />

exige que o fundamento e o referencial dessa capacidade lhes sejam externos. Mas a sociedade tampouco<br />

costuma aparecer como tal fundamento e referencial. Primeiro, porque o seu fracionamento não chega a<br />

gerar solidariedades coletivas ao nível das supostas pelo Estado, que é uma generalidade abrangente da<br />

população de um território. Segundo, porque se a sociedade fosse fundamento e referencial, o Estado<br />

apareceria como fiador e organizador da dominação de classe que ali se exerce, e assim o Estado não<br />

encobriria essa dominação e devolveria diretamente à sociedade a contradição fundamental da qual<br />

emana. Esse fundamento e referencial, que não são nem a sociedade nem o Estado coisificado em suas<br />

instituições, são outras modalidades de constituições de sujeitos coletivos, nas quais costumam se fixar<br />

solidariedades de um nível de generalidade correspondente ao do Estado. Estas são as mediações entre o<br />

Estado e a sociedade que começamos a analisar.<br />

Boa parte das atuações das instituições estatais e do que transcorre através da normatividade do Direito,<br />

é o entrelaçamento dessas mediações e, com elas, a organização consensual das articulações da<br />

sociedade. Na medida em que isto se dá, o Estado capitalista é um fator crucial de coesão da sociedade<br />

global 30 ; sua condição de fiança e organização da sociedade qua capitalista completa-se com o consenso<br />

30<br />

Entendo por sociedade global o conjunto formado pela sociedade, Estado e suas mediações, que nos ocupam nesta<br />

seção.<br />

28


na sociedade e seu correlato de legitimação do Estado fetichizado nas instituições. O resultado é um<br />

amplo controle ideológico, com hegemonia, exercício pleno mas encoberto da dominação na sociedade,<br />

apoiado por um Estado que aparece como custódio e epítome de um sentido compartilhado de vida em<br />

comum, suposto como natural e eticamente justo.<br />

Por outro lado, porém, é através dessas mediações que o Estado capitalista devolve à sociedade a sua<br />

própria contradição específica. Indiquei no final da seção anterior que o Estado é tanto cisão aparente<br />

da sociedade como tendência a superá-la. Mais especificamente, a contradição que lhe é própria é que a<br />

sua forma "normal" de repor tais mediações é postulado de igualdade - abstrata e concreta, como veremos<br />

- em seu fundamento e referencial, ao mesmo tempo em que não pode deixar de ser um viés sistemático<br />

para a vigência e reprodução das relações sociais contraditórias das quais emana. Por isso, o Estado<br />

capitalista é uma oscilação permanente entre a hegemonia e o descobrimento de sua verdadeira<br />

imbricação na sociedade.<br />

Outra característica dessas mediações é que se constituem em recuperação da privacidade e<br />

fracionamento do ser-na-sociedade, modalidades de constituição de identidades coletivas. Dessa<br />

maneira, o sujeito social, síntese de uma privacidade despolitizada, regressa ao plano da política e do<br />

público - sob suas formas predeterminadas, em identidades diferentes à de sua realidade primordial, de sujeito<br />

plasmado por relações de dominação na sociedade. Depois de despolitizar a sociedade, isolando-a no<br />

econômico e no privado, o Estado, condensação do político, o recria, parcial e distorcidamente, em seu<br />

entrelaçamento, por mediações que negam a primazia fundante da sociedade. Estas mediações elaboram<br />

identidades que se relacionam com o nível "público", como parte dos fundamentos e referenciais coletivos<br />

do Estado. Operários, empregados e donas de caía podem ser também cidadãos e membros da nação;<br />

ou seja, são postos como algo mais que o que são em sua prática cotidiana, sob modalidades que se<br />

constituem em negação dessa cotidianidade. Do mesmo modo que o Estado, as mediações que nos ocupam<br />

são generalidades; porém generalidades particularizadas, que só podem ser compreendidas a partir do<br />

nível primordial - a sociedade - que negam em sua realidade profunda. 31<br />

9 A Cidadania, fundamento do Estado capitalista.<br />

O Estado capitalista é a primeira forma de dominação política que postula o seu fundamento na<br />

igualdade de todos os sujeitos em seu território. Esses sujeitos são cidadãos e o Estado capitalista é<br />

normalmente um Estado de cidadãos.<br />

O cidadão é aquele que tem direito ao desempenho de atos que resultam na constituição do poder das<br />

31 No nível em que se situa este trabalho só posso ocupar-me das mediações mais gerais e não de outras mais concretas e<br />

historicamente variáveis, como as organizações corporativas ou os partidos políticos. Espero, entretanto, que seja claro,<br />

desde a perspectiva proposta, que o sentido destas últimas depende em boa parte das mais gerais a que me limito aqui.<br />

29


instituições estatais, na eleição dos governantes que podem mobilizar os recursos e reclamar a<br />

obediência da cidadania, e na pretensão de recorrer a procedimentos juridicamente estabelecidos,<br />

para amparar-se de intenções que considerar arbitrárias. Historicamente, a cidadania desenvolveu-se<br />

conjuntamente com o capitalismo, o Estado moderno e o Direito racional - formal. Isto não é casual: o<br />

cidadão corresponde exatamente ao sujeito jurídico capaz de contrair obrigações livres.<br />

O pressuposto desse Direito é a igualdade abstrata dos sujeitos, prescindindo de que sejam<br />

proprietários de algo mais que sua força de trabalho. O capitalismo tem que engendrar o sujeito livre e igual<br />

ante o Direito, o contrato e a moeda, sem o que não poderia existir sua ação seminal: a compra e venda da<br />

força de trabalho e a apropriação do valor. Esta liberdade efetiva (na esfera abstrata em que está posta)<br />

e ilusória (em relação à posição de classe) implica como paralelo seu a igualdade abstrata da cidadania. E<br />

não apenas logicamente: na prática, os esforços para limitar a participação na comunidade política (em<br />

conseqüência na cidadania) aos "proprietários" não demoraram em ser arrasados. Quem deve aparecer<br />

abstratamente igual para contratar tende a aparecer abstratamente igual para constituir o poder político: o<br />

sujeito livre no mercado intermediado pelo capital-dinheiro é a correspondência exata do eleitor. Isto fez do<br />

Estado capitalista o primeiro que deve tender a aparecer fundado em algum nível de igualdade de todos os<br />

sujeitos.<br />

Tal igualdade é um progresso imenso em relação à não participação na comunidade política do escravo<br />

e do servo, bem como às regressões contemporâneas na vigência da cidadania. Por outro lado, no<br />

entanto, como postulação de uma igualdade abstrata que seria o fundamento do Estado, a cidadania é<br />

a negação da dominação na sociedade. A cidadania é a máxima abstração possível ao nível político. Todo<br />

cidadão, independente de sua posição de classe, recorre à formação do poder estatal corporificado no<br />

Direito e nas instituições. Com isto, tal abstração converte-se em fundamento de um poder voltado à<br />

reprodução da sociedade e da dominação de classe que a articula.<br />

Se cada um, enquanto cidadão, aparece constituindo o poder das instituições estatais e resolvendo que<br />

governantes mobilizarão os seus recursos, então o substrato da obrigação política é a co-participação na<br />

formação da vontade manifesta nessas instituições. Isto supõe que a democracia é a forma normal de<br />

organização política da sociedade capitalista. A liberdade do cidadão, no exercício do seu direito de eleição<br />

do governante, pressupõe a existência de opções colocáveis em condições limitadas mas realmente<br />

pluralistas. A mobilização dos recursos de poder pelo Estado pode então se fazer sobre a base de que o<br />

direito a fazê-lo foi conferido por "Iodos" - os cidadãos. Em acréscimo, a competitividade entre partidos<br />

implícita na cidadania e seu corolário de democracia política, permite a articulação de interesses que<br />

embora "filtrados” no sentido mencionado na seção anterior - sustentam uma crença fundamental para a<br />

legitimação das instituições estalais: a de que não há interesses sistematicamente negados por estas. Isto<br />

30


por sua vez é o correlato da crença de que não existe uma classe dominante. 32<br />

A cidadania é o fundamento mais congruente do Estado, tal como aparece na superfície da sociedade<br />

capitalista. O é por ser a modalidade mais abstrata de mediação entre o Estado e a sociedade. Mas, por<br />

isso mesmo, a cidadania não pode ser referencial do Estado. O que fazem e deixam de fazer as instituições<br />

estatais deve referir-se a algum interesse geral (que tem seu substrato real em ser o Estado um interesse<br />

mais geral que o dos sujeitos aos quais contribui a vincular como aspecto de sua relação). Este interesse<br />

não pode ser imputado à entidade abstrata do cidadão - com a exceção limite de continuar a sê-lo. Em outras<br />

palavras, se a condição totalmente desencarnada da cidadania é o que lhe permite ser o fundamento<br />

igualitário do Estado, é também, por outro lado, o que impede imputar-lhe um interesse geral, ao nível<br />

concreto do que fazem ou deixam de fazer as instituições estatais.<br />

Uma das diferenças entre o Estado e o capital é que este aparece no momento totalmente abstrato da<br />

moeda; por sua parte, o Estado corporifica -se em instituições que, embora postulem um fundamento<br />

abstrato, não podem deixar de ser, por ações, omissões e impactos, uma esfera concreta habitualmente<br />

perceptível como tal.<br />

Um sujeito inteiramente desencarnado não pode ser portador de interesses concretos. Por isso a<br />

cidadania, atributo de participação na comunidade política, é criatura da sociedade capitalista, no<br />

mesmo nível em que é posta ante a consciência comum: o da igualdade abstrata pressuposta pela<br />

circulação do capital - porém apenas como fundamento. Isto implica, certamente, a vigência de direitos que<br />

competem aos dominados enquanto cidadãos, inclusive o de organizarem-se politicamente e portanto<br />

"pesarem mais" na sociedade e no interior do aparato estatal; porém, por outro lado, contribui a ratificar a<br />

textura aparente da sociedade capitalista, e portanto a reproduzi-la.<br />

10 A nação, referencial do Estado.<br />

A que interesses, de que grau de generalidade, abrangente da população do território que delimitam,<br />

servem as instituições estatais? Aos da nação. A nação é a curva de solidariedade, que une o "nós"<br />

definido pela participação comum no território delimitado pelo Estado. O Estado demarca uma nação<br />

frente a outras no cenário internacional. Esta demarcação tende a engendrar um "nós" 33 , definido por<br />

contraposição e diferença em relação aos "eles" de tal cenário. Em outras palavras, o Estado tende a ser<br />

32<br />

Ver de Perry Anderson, sobre este ponto, a sua contribuição crucial ao controle ideológico, "The Antinomies of António<br />

Gramsci", New Lefi Review, n.' 100, 1976.<br />

33<br />

Não estou interessado aqui na questão genética de saber se este ou aquele Estado tende a postular a nação, seja<br />

reconhecendo-a em sua pré-existência ou "re-inventando-a'' como postulação quando não existe. Certamente,o grau em<br />

que a nação efetivamente existe tem conseqüências importantes, embora não possamos descer aqui a este nível de<br />

especificidade.<br />

31


co-extensivo com uma nação 34 . Este é, normalmente, um fator de coesão baseado no reconhecimento<br />

deste "nós", como pretensão aceitável de vigência real.<br />

Por sua parte, o Estado, refeito em suas instituições, aparece como um Estado-para-a-nação. E isto com<br />

um significado duplo. Primeiro, como delimitação da nação frente a outros Estados nacionais. Segundo,<br />

para o interior do território, como pretensão, respalda em última análise por sua supremacia coercitiva de<br />

ser o agente privilegiado de custódia, interpretação e conquista dos interesses gerais da nação.<br />

O referencial das instituições estatais, a coletividade a cujos interesses serviriam, não é a sociedade<br />

mas a nação. A invocação dos interesses desta última é o que justifica impor decisões contra a vontade<br />

dos sujeitos, inclusive contra segmentos das classes dominantes, em beneficio da preservação do significado<br />

homogeneizador da nação. Portanto, a impostação do Estado à frente e acima da sociedade completa-se<br />

quando se transpõe ao plano da nação.<br />

É daqui que as instituições estatais pretendem encarnar uma racionalidade que, muito mais que as<br />

condições da sociedade, só os seus agentes poderiam alcançar. Tal racionalidade não poderia pertencer<br />

às "partes" da sociedade que, agora sim, poderá aparecer fragmentada sem contradizer a sua superfície<br />

aparente. Ao contrário, esta fragmentação é condição de possibilidade para que o Estado fetichizado flutue<br />

acima da sociedade ao mesmo tempo em que fala da e à nação.<br />

Esta inserção entre Estado e nação permite entender a postura hegeliana dos agentes estatais. Eles são<br />

mais que custódios do interesse geral da nação; são a sua síntese ativa, porque dificilmente podem<br />

decifrar esse interesse os membros da nação, que são os mesmos sujeitos submetidos à particularização<br />

da sociedade. Vimos que o Estado é a segregação transmutada da sociedade; entendemos agora que<br />

quando o Estado liga-se à nação, a sociedade pode ficar acantonada no "privado" e no econômico. Esta<br />

inversão expropria da sociedade o seu sentido primordial como sociedade global e, portanto, como local<br />

fundante da dominação. Pela mesma razão o político evapora-se da sociedade (como Estado e como luta<br />

pelo controle dos recursos estatais de dominação), para permanecer atado ao plano homogeneizador e<br />

indiferenciado de Estado e nação.<br />

A postulação da nação como coletividade superior aos interesses particularizados da sociedade facilita algo<br />

fundamental: o reconhecimento de desigualdades que continuam evidentes, embora negando-as<br />

naquilo que é mais problemático à reprodução do sistema de dominação: o seu caráter de contradições. A<br />

vigência de solidariedades nacionais que teriam precedência sobre a sociedade é a negação dessas<br />

contradições como tais. Além disso, a conjunção entre Estado e nação sacraliza o que continua<br />

34 A existência e/ou possibilidade de postular de modo verossímil á nação não dependem (embora estes tornem mais ou<br />

menos difícil tal postulação) de uma comunidade de idioma, religião, raça, algum passado comum, ou fatores que alguns se<br />

esforçaram por encontrar. Sobram os exemplos que demonstram que nenhuma dessas é condição necessária nem<br />

suficiente para a emergência da nação.<br />

32


inocultável: as desigualdades e "imperfeições" sociais não resultam da negação sistemática de interesses<br />

(porque os interesses de todos estão incluídos no arco homogeneizador da nação) e são parte do "modo<br />

de ser" da nação, o qual pode em todo caso ser corrigido, mas não negado. Demandas e interesses por<br />

"justificados" que sejam devem ajustar-se a estes parâmetros, uma vez que ao não fazê-lo negar-se-ia a<br />

realidade que prevalece na nação. Cada interesse "privado" deve dar lugar aos interesses coletivos<br />

superiores, derivados do que cada um é na nação. Como poderia prevalecer o interesse de alguma<br />

daquelas "partes" sobre o interesse de todos que é o ser da nação? Mas, certamente a sacralização do<br />

modo histórico de ser da nação costuma constituir-se também na reprodução da sociedade qua capitalista.<br />

Insistamos: as decisões estatais invocam os interesses da nação e os condensam numa simbologia que<br />

as rememora continuamente. Ao flutuar sobre as fissuras da sociedade, e ao negar a sua articulação<br />

contraditória, isto supõe - e portanto ratifica - a sociedade qua capitalista. Assim, a nação ocupa o espaço<br />

deixado vazio pelo acantonamento da sociedade, colocando-se como principal referencial do Estado. Este<br />

aparece, em conseqüência, como um Estado-para-a-nação, e não como um Estado de e para a sociedade. O<br />

Estado é o "resumo oficial", a fachada majestosa da sociedade, quando dela se afasta, reaparecendo como<br />

síntese ativa da nação.<br />

Na medida em que a nação nega as fissuras estruturais da sociedade, torna-se análoga à cidadania. Mas<br />

se esta é uma mediação abstrata, a nação alude inevitavelmente aos atos, omissões e impactos<br />

concretos das instituições estatais. As conseqüências de assumir certa posição em um fórum<br />

internacional, de alocar recursos para minorar uma catástrofe, de subsidiar certas atividades ou de<br />

modificar a regulamentação do trabalho, afetam a sujeitos que são membros da nação. Pelas razões<br />

analisadas, estes dificilmente chegam a uma compreensão cabal das conexões causais e da forma dos<br />

impactos pertinentes. Mas nem por isso tais atividades deixam de ser percebidas em suas conseqüências<br />

importantes para os interesses concretos desses sujeitos.<br />

A cidadania é o fundamento ótimo, embora não possa ser o referencial, porque é uma generalidade<br />

abstrata. A nação, por sua vez, é uma generalidade concreta, o que permite imputar-lhe o interesse<br />

geral que é o referencial do Estado reificado. Dizer que a nação é uma generalidade concreta significa<br />

duas coisas: primeiro, que é uma homogeneização indiferenciada com respeito às clivagens da<br />

sociedade. Segundo, que, apesar disso, o sujeito social ao qual a nação se refere - o membro-da-nação - não<br />

é o sujeito descarnado da cidadania e do Direito racional-formal.<br />

Ser membro da nação é ver-se como integrante de uma identidade coletiva superior às clivagens de<br />

classe. Mas é sustentar também a expectativa de que os seus interesses não serão negados<br />

sistematicamente, e de que se dispõe de um título de beneficiário - concreto e reconhecido - do interesse geral<br />

que as instituições estatais afirmam servir. Ou seja, as conseqüências do que as instituições estatais fazem<br />

ou deixam de fazer pressupõem uma identidade coletiva que, por um lado, continue negando as fissuras<br />

33


da sociedade e que, por outro lado, não seja abstrata. Esta é a maneira de re-expressar a contradição que o<br />

Estado devolve à sociedade: não pode ficar integralmente sub-sumido na igualdade abstrata da cidadania e<br />

deve, ao contrário, aparecer mediatizado por um referencial que é a postulação de uma generalidade<br />

concreta. As instituições estatais são um viés sistemático que deve referir-se a um interesse geral, o qual por<br />

sua vez pressupõe a inexistência deste viés.<br />

O discurso das instituições estatais é, portanto, equalizante e homogeneizador com referência à cidadania<br />

e aos membros da nação, ao mesmo tempo em que a agregação dos impactos de seus atos e<br />

omissões é a negação prática desse discurso. Esta contradição (nem sempre ou necessariamente<br />

óbvia) é conseqüência do fato do Estado não poder ter a sociedade por fundamento ou referencial sob pena<br />

de desnudá-la e desnudar-se enquanto dominação. E de que, por outro lado, o seu fundamento ótimo na<br />

cidadania -porque inteiramente abstrato, - não pode por isso ser o seu referencial. Portanto, se o Estado não<br />

encontra à nação já posta, necessita inventá-la, postulando-a. O Estado capitalista tende a ser o Estado<br />

nacional.<br />

Se o Estado fetichizado é verossímil como Estado-para-a-nação e como Estado de cidadãos 35 , é então,<br />

ademais de coerção, organizador do consenso. Já mencionei que isto é correlato à legitimação das<br />

instituições estatais, e à sua conseqüência - a hegemonia. Mas esta é apenas uma possibilidade que,<br />

ademais, não tem ponto de equilíbrio: apesar das mediações da cidadania e da nação, a sociedade pode<br />

impor os seus próprios sistemas de solidariedade. Inclusive antes disso, o Estado capitalista costuma ligar-se<br />

a uma mediação menos potável que as anteriores: a do povo ou do popular.<br />

11 O povo. fundamento e referencial ambíguo do Estado.<br />

Nesta seção reduziremos o nível de abstração. Ocupar-me-ei do povo ou popular, outra solidariedade<br />

coletiva que costuma mediar entre Estado e sociedade. Conforme as definições que proporei, esta<br />

dimensão costuma estar presente em certo grau em todo Estado capitalista, embora a sua importância<br />

relativa tenha sido sem dúvida maior nos casos latino-americanos a que se dirigem estas reflexões, que<br />

nos capitalismos centrais. Argumentarei mais adiante - desenvolvendo-o em outro trabalho focalizando<br />

diretamente o Estado burocrático-autoritário - que essa maior importância relaciona-se estreitamente à<br />

menor vigência da cidadania como mediação efetiva entre Estado e sociedade. Isto, por sua vez, parece<br />

ser função de uma menor extensão e densidade do capitalismo, que não chegou a aperfeiçoar, como nos<br />

países centrais, o conjunto de aparências abstratas do qual como vimos, a cidadania é um dos<br />

35 A conexão entre os dois níveis resulta de que quem é membro da nação costuma ser, por esse título, cidadão. O sujeito<br />

da comunidade política normalmente postulada pelo Estado capitalista é fundamento (cidadania) e referencial (nação) do<br />

Estado. Ou, o que é equivalente, é respectivamente uma generalidade abstrata e uma generalidade concreta, postas ao<br />

mesmo nível abrangente do Estado e mediando - real embora ocultamente, como vemos - entre este último e o seu<br />

fundamento e referencial profundo: a sociedade.<br />

34


componentes 36 .<br />

De qualquer modo, como o componente popular não deixa de estar presente em todos os casos, creio<br />

que se justifica tratá-lo brevemente nestas páginas.<br />

O membro da nação tem título de participação nas conseqüências das conquistas dos interesses gerais<br />

de uma nação. Essas conseqüências repartem-se, no entanto, de modo evidentemente desigual. Deste<br />

fato costumam emanar demandas de justiça substantivas, pelas quais os cidadãos e membros da<br />

nação, baseados no discurso de igualdade implícito no Estado e sociedade capitalistas, pretendem<br />

minorar tais desigualdades. A postulação indiferenciada do interesse geral da nação é insuficiente para<br />

encobrir as evidências de desigualdades. Isto costuma conduzir à pretensão de que as instituições<br />

estatais atuam em sentido equalizador - isto é, favorecendo ou amparando os relativamente destituídos.<br />

Os pobres, as pessoas comuns, os desprivilegiados são, quando reconhecidos coletivamente como tais, o<br />

povo ou o popular.<br />

De imediato encontramos uma primeira ambigüidade do popular. Por um lado, estabelece um arco de<br />

solidariedades acima das clivagens de classe, na medida em que abarca genericamente aos que se<br />

reconhecem destituídos. Mas, por outro lado, a demanda por justiça substantiva orientada<br />

diferencialmente a beneficiá-los não pode senão exercer-se contra os que são também parte da nação:<br />

os ricos, poderosos, que têm mais e, às vezes, as instituições estatais que parecem excessivamente<br />

orientadas aos interesses destes últimos.<br />

O grau em que uma parte da população se reconhece como povo, assim como a simultaneidade da<br />

vigência da cidadania e da nação, é uma variável que se deve analisar em situações históricas<br />

especificas. Porém, sempre que o popular tem vigência efetiva, torna-se um âmbito de solidariedade<br />

menos abrangente que o da nação. O popular costuma ser território de lutas políticas definidas por seu<br />

conteúdo: o não-popular, o qual reúne, pelo menos, parte das classes dominantes 37 . No seu limite, as<br />

lutas ao redor do popular implicam a pretensão de que seu âmbito é o da "verdadeira" nação, fusão entre o<br />

nacional e o popular: quem se situasse fora desse campo não seria em realidade parte da nação. Ademais,<br />

as suas demandas podem afetar os limites de reprodução da sociedade qua capitalista. Isto pode tocar de<br />

perto (e expor demasiado) as contradições que o Estado capitalista não pode resolver nem assumir como<br />

tais.<br />

O ponto fundamental é que a confrontação do discurso igualitário e imparcial do Estado capitalista com<br />

a evidência de desigualdades - embora não descobertas em suas causas profundas - recoloca<br />

36<br />

Insistem sobre este ponto Norberto Lechner, "La Crisis...", Op. cit. e Marcelo Cavarozzi. num trabalho em andamento<br />

sobre as origens históricas da questão da democracia na América Latina.<br />

37<br />

Ernesto Laclau analisa o popular como terreno principal da luta política ("Para uma Teoria do Populismo", em Teoria da<br />

Ideologia no Pensamento Marxista, Paz e Terra. 1979).<br />

35


continuamente a possibilidade de re-emergência do popular. Esta é a sua segunda ambigüidade. Por um<br />

lado, na medida em que continua reunindo sujeitos sociais por razões diferentes às de sua verdadeira<br />

condição de dominados e explorados na sociedade, torna-se outra linha de ocultamento desta sociedade.<br />

Ademais, na medida em que - dependendo dos contextos e períodos históricos - parte significativa<br />

dessas demandas pode ser absorvida sem explodir os marcos da sociedade qua capitalista, o Estado<br />

pode aparecer como acolhedor do popular. Em acréscimo, o Estado põe-se frente às classes como<br />

fiador e organizador das relações sociais que as constituem como tais, pelo que - como vimos na<br />

primeira seção - torna-se igualmente no custódio das classes subordinadas. Do mesmo modo, com seu<br />

nível fetichizado, o acolhimento - ou a antecipação - pelo Estado das demandas dos relativamente<br />

destituídos, invocadas a partir desta condição, facilita a reprodução destes enquanto classes<br />

subordinadas. Em primeiro lugar, por tornar verossímil a pretensão do Estado de ser um Estado "para todos",<br />

inclusive a de ser um Estado benevolamente orientado, em suas decisões mais notáveis e popularizadas para<br />

os desprivilegiados da nação. Em segundo lugar, promovendo as condições de vida das classes subordinadas<br />

aproximadamente compatíveis, em cada caso histórico com a vigência das relações de produção e com a<br />

acumulação do capital 38 . As instituições estatais podem aparecer assim, em casos próximos ao pólo da<br />

hegemonia, não apenas como síntese ativa da nação mas também como tutores esforçados - embora<br />

cronicamente falidos - de suas classes subordinadas. Porém (e este é o outro termo da ambigüidade) a<br />

tendência para a contínua recolocação de questões de justiça substantiva pré-define ao não-popular como<br />

adversário, e portanto reduz a nação abrangente e homogênea, que é o referencial ideal do Estado.<br />

Ademais, a impossibilidade eventual para satisfazer as demandas levantadas, agregada a respostas que<br />

não podem cerrar o hiato entre o discurso igualitário e as desigualdades observáveis, pode colocar uma<br />

carga "excessiva" para a acumulação do capital. Ainda mais: este pode ser um dos campos da prática<br />

social em que as classes populares descubram-se a si mesmas como tais. Por isso, o popular é<br />

simultaneamente uma cobertura sobre a realidade profunda da sociedade (e em conseqüência, sobre a<br />

do Estado), e ponto possível de trânsito ao seu descobrimento.<br />

Por isso também o popular é uma mediação menos potável para o Estado capitalista, e para a<br />

38 Inclusive violando os pressupostos de igualdade abstrata do Direito racional-formal. Isto ocorre de modo típico na<br />

regulamentação de algumas relações trabalhistas, que supõem a convivência social de alguma tutela estatal sobre os<br />

trabalhadores. Porem", não menos tipicamente, estes distanciamentos dos supostos puros do Direito racional-formal<br />

começam por situar às classes subordinadas como tais, para só tutelar depois as condições de sua reprodução, igualmente<br />

enquanto classes subordinadas. Isto é tudo incluído sob um discurso que nega como contraditória a relação social assim<br />

custodiada. Na verdade, os benefícios que podem derivar-se desta e outras tutelas, e os freqüentes conflitos que provocam<br />

com segmentos das classes dominantes, são um dos principais ancoradouros da crença legitimadora num Estado que não<br />

nega sistematicamente nenhum interesse, e que, ademais, promove a "justiça social" substantiva acima das classes<br />

dominantes. O que espero que seja claro, é certo, embora no sentido limitado de que, conforme o significado profundo do<br />

Estado como fiador e organizador de uma relação social de dominação, ocorre dentro dos limites da reposição das classes<br />

subordinadas enquanto tais.<br />

36


dominação em que se insere, que as demais mediações, da cidadania e da nação. O popular não é a<br />

mediação abstrata da cidadania nem a mediação concreta porém indiferenciada de nação. Os seus<br />

conteúdos são mais concretos que os desta última. Também são menos genéricos, já que o arco que<br />

engloba o povo é mais estreito que o da nação, pretensão de solidariedade abrangente do conjunto da<br />

população. Por outro lado, os conteúdos do popular são mais genéricos e menos concretos que os<br />

deriváveis da posição de classe. Ambiguamente situado entre cidadania e nação por um lado, e classe<br />

por outro, o popular pode ser tanto fundamento como referencial das instituições estatais. O mandato<br />

destas à ordenação e à coerção pode aparecer conferido pelo povo, não apenas (e às vezes não<br />

tanto) 39 pela generalidade abstrata da cidadania. O Estado aparece então como um Estado fundado<br />

principalmente nos relativamente desprivilegiados. Quando esse é o fundamento, tal costuma ser<br />

também o referencial postulado do Estado; suas instituições passam a servir principalmente ao povo, aos<br />

destituídos que necessitam mais do que ninguém do seu cuidado tutelar. No entanto, o Estado capitalista<br />

somente, pode ser realmente 40 um Estado popular em circunstâncias históricas muito especiais e de<br />

breve duração. Esse Estado não pode deixar de ser o que está determinado por sua realidade profunda:<br />

emanação, fiança, e organizador de uma relação de dominação, a qual parcializa estruturalmente<br />

aquilo que os seus momentos objetivados, Direito e instituições, recolocam sobre a sociedade.<br />

12 Ocultamento e Ruptura<br />

Nenhuma sociedade é "puramente" capitalista, embora a sua condição como tal tenda a subordinar suas<br />

outras dimensões. Em particular, a abrangência de uma população delimitada territorialmente, realizada<br />

pelo Estado em nome da nação, costuma incluir, em grau variável, outras clivagens - étnicas, linguísticas,<br />

regionais, religiosas - cuja conexão com as de classe deve ser avaliada cuidadosamente em cada caso. Isto,<br />

além das razões que examinamos nas páginas anteriores, reforça a tendência a ocultar a emergência -como<br />

questão central na consciência dos sujeitos - da sociedade civil (inclusive a do Estado como parte analítica desta)<br />

enquanto nível fundante da realidade social global. Em especial, as mediações examinadas acima costumam<br />

estender uma cobertura integrativa sobre os bastidores estruturalmente desintegrados da sociedade civil,<br />

sustentando o cenário imponente de um Estado fetichizado. Porém já vimos que tais mediações, cada uma a seu<br />

modo, são também a expressão, e modalidade de retorno à sociedade civil, da contradição fundamental<br />

39 Insistindo sobre um ponto anterior, tal ocorreu em certos casos latino-americanos, em períodos precedentes à emergência<br />

do Estado burocrático autoritário. Esta parece ser a norma nos capitalismos tardios e dependentes (em muitos casos com a<br />

complicação adicional de uma forte vigência de solidariedades étnicas e regionais). O capitalismo coexiste neles com outras<br />

formas históricas, e se reproduz de maneira particularmente desigual, com o que a superfície abstrata da sociedade<br />

capitalista (com o seu correlato da cidadania) não chega a incluir o conjunto das relações sociais<br />

40 Ou seja, como postulação verossímil de um fundamento e referencial popular, cujos impulsos sociais agregados não<br />

sejam demasiado inconsistentes com essa postulação. Não é qualquer invocação ao povo que faz do Estado, nos termos<br />

especificados, um Estado popular.<br />

37


da qual emana o Estado, e da contradição derivada que ela, em sua reificação necessária, constitui por sua<br />

conta ao aparecer separado de sua origem.<br />

Por outro lado, cidadania, nação e povo - novamente cada um a seu modo - são por si mesmos<br />

contraditórios, ademais do que já vimos como específico a cada um deles, porque o seu efeito encobridor<br />

não pode existir sem que sejam eles - e contribuam a fazer do Direito e do aparato estatal -âmbitos para<br />

a presença prática das classes subordinadas. Transcendendo o seu fracionamento cotidiano à sociedade civil<br />

em tais âmbitos - embora estejam orientados a encobrir e portanto a reproduzir a "ordem" existente - essas<br />

classes podem reconhecer-se e constituir-se política e ideologicamente como tais. Isto, por sua vez, abre a<br />

possibilidade de que descubram o fundamento de sua condição. A partir daí passamos a um nível de<br />

especificidade que não corresponde a este momento da análise.<br />

Terceira Seção<br />

13 Algumas conclusões<br />

Nas seções precedentes percorremos dois vetores indispensáveis à compreensão do Estado<br />

capitalista. Na primeira seção tratamos do ponto crucial: o Estado como aspecto analítico da sociedade,<br />

particularmente cristalizado no Direito e nas instituições. Ali o entendemos como primordialmente coercitivo.<br />

Porém vimos também que a tendência necessária a fetichização do Estado, e à cisão aparente entre este e a<br />

sociedade, supõe a tendência também necessária à geração de mediações entre esta e aquele. Por isso nos<br />

ocupamos na segunda seção das principais mediações: cidadania, nação e povo. Vimos ali que o Estado<br />

também é, normalmente, a organização do consenso como constitutivo de solidariedades coletivas que<br />

costumam ocultar as rupturas da sociedade, e os vieses sistemáticos do Estado. Disto costuma derivar-se a<br />

legitimação das instituições estatais, que encontram em suas mediações o fundamento e referencial<br />

generalizadamente verossímeis.<br />

Embora seja essa a conseqüência habitual de tais mediações, também o são o modo em que o estatal<br />

expressa a sua contradição própria, que retorna a uma sociedade de cuja contradição fundante ao nível<br />

das relações de produção ele é aspecto co-constitutivo. O Estado capitalista não pode deixar de ser, na<br />

agregação de seus supostos, ao longo do tempo e através da sociedade, um viés reprodutor da sociedade<br />

capitalista, da qual participa em sua realidade profunda. Porém para que tais mediações tenham vigência<br />

efetiva - para que não sejam um discurso sem eco - devem sustentar-se numa ideologia de igualdade:<br />

abstrata no fundamento da cidadania, concreta porém indiferenciada no referente à nação, e<br />

eventualmente mais concreta e menos indiferenciada no âmbito do popular. O correlato é a postulação<br />

do Estado como árbitro e tutor imparcial. Em sua expressão mais atenuada, a contradição aparece como<br />

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perpétua incongruência entre fundamentos e referenciais postulados, por um lado, e a evidência de profundas<br />

desigualdades, por outro lado. Isto não implica necessariamente em que estas sejam entendidas em suas<br />

causas profundas - ou seja, como contradições. Mas a sua evidência, enquanto tais desigualdades, tensiona<br />

duplamente o Estado na insolúvel questão de ser ao mesmo tempo viés estrutural e discurso de igualdade.<br />

Resultam desta tensão, ademais das razões que anotei na primeira seção, avanços e recuos, bem como<br />

ações de correção da desigualdade por parte das instituições estatais. Elas podem ser o ancoradouro para a<br />

legitimação, embora também espaço aberto para o reconhecimento das contradições inerentes à<br />

sociedade capitalista. O que parece evidente - se estas reflexões não são demasiado equivocadas - c que a<br />

segunda possibilidade passa fundamentalmente pelo campo da política e da ideologia' e que. apesar do<br />

peso imponente do Estado fetichizado, o local decisivo de reprodução e possível superação da dominação é<br />

a sociedade.<br />

Finalmente, não há uma necessidade metafísica para a existência das mediações que tratamos aqui.<br />

Porém a sua inexistência ou supressão eventual implicam que, embora o Estado já não devolva então à<br />

sociedade a contradição que acabo de sublinhar, mostra muito mais diretamente a sua inserção na contradição<br />

social fundamental. Então, falha como organizador de consenso, e revela-se em seu componente primordial -<br />

coercitivo e coativo'-'• e em seu significado fundamental de emanação e fiança das relações principais de<br />

dominação na sociedade. Despojado de seus componentes "normais" de mediações e consenso, esse<br />

Estado, "autoritário" em diversas variantes, mostra que é antes Estado capitalista que nacional, popular ou<br />

de cidadãos. No entanto, a face imponente de coerção é seu fracasso como organização de consenso, e<br />

portanto como legitimação de suas instituições e como contribuição à hegemonia na sociedade.<br />

Espero que estas anotações, centradas nos supostos de dominação referidos ao pólo do consenso e do<br />

capitalismo como forma histórica amplamente imposta, tenham aberto caminho às tentativas que se seguirão<br />

para entender, por contraste, casos do Estado capitalista em que tais supostos estão ausentes, ou onde<br />

foram drasticamente suprimidos.<br />

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