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teatro, educação e transformação social na grécia antiga

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Universidade Estadual de Maringá<br />

08 e 09 de Junho de 2009<br />

TEATRO, EDUCAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA GRÉCIA<br />

ANTIGA: A FUNÇÃO EDUCADORA DO POETA<br />

SOUZA, Paulo Rogério de (UEM)<br />

PEREIRA MELO, José Joaquim (Orientador/UEM)<br />

Este trabalho tem como proposta mostrar como a tragédia foi utilizada pelo homem<br />

grego como forma de instruir o seu povo desde a sua origem no período denomi<strong>na</strong>do<br />

“Arcaico”. As primeiras apresentações deste gênero se deram com as “líricas corais”, ou<br />

seja, a tragédia <strong>na</strong> sua forma inicial. Essas primeiras manifestações trágicas eram<br />

celebrações místicas geradas pelo culto aos deuses – em particular Dioniso – o que<br />

proporcio<strong>na</strong>va uma maior relação desse povo com a sua religião.<br />

As “líricas corais” eram também utilizadas para contar, através dos cantos corais, os<br />

feitos heróicos dos guerreiros gregos e consequentemente, serviam como uma forma de<br />

reforçar o conhecimento que esse povo tinha de sua origem guerreira.<br />

Apesar de ter surgido como uma manifestação utilizada por pequenos grupos para<br />

entreter o povo a tragédia somente passou a ter um caráter de festa popular no período<br />

Clássico (o qual se convencio<strong>na</strong>l datar historicamente entre os séculos VI e V a.C.). As<br />

grandes Dionisíacas – festa popular onde se home<strong>na</strong>geava o deus Dioniso e onde eram<br />

ence<strong>na</strong>das a peças trágicas – tinham o apoio dos gover<strong>na</strong>ntes da pólis grega, que<br />

passaram a patroci<strong>na</strong>r materialmente as sua realização, principalmente custeando as<br />

apresentações.<br />

O interesse dos gover<strong>na</strong>ntes da cidade-Estado em patroci<strong>na</strong>r essas ence<strong>na</strong>ções míticas<br />

justifica o caráter política que a tragédia passou a ter nesse contexto. No entanto, essas<br />

influências não fizeram com que as apresentações trágicas perdessem por completo suas<br />

características primárias: a religiosidade e a distração.<br />

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A própria manutenção do “coro” <strong>na</strong> forma mais acabada da tragédia o século V a.C., foi<br />

um exemplo das características primarias das “líricas corais” que se perpetuaram com o<br />

tempo. Mesmo com a introdução das perso<strong>na</strong>gens interpretadas pelo ator (o<br />

protagonista) e, posteriormente, pelo segundo ator (o deuteragonista) introduzido <strong>na</strong>s<br />

apresentações pelo poeta Ésquilo, e pelo terceiro ator (o tritagonista), utilizado pela<br />

primeira vez por Sófocles –, o coro não perdeu sua função dentro da tragédia que era<br />

anunciar os fatos trágicos e fazer exortações morais aos atos de desvio de conduta do<br />

herói trágico.<br />

Outras funções também eram desempenhadas pelo coro dentro das peças. Esse fazia às<br />

vezes de testemunha de fatos e eventos, outras de confidente do herói, ou ainda se fazia<br />

de conselheiro nos momentos de conflito. Era, segundo Junito de Souza Brandão, o “...<br />

eco da sabedoria popular, traço-de-união entre o público e os atores...” (1992, p. 51); o<br />

elo de ligação entre o mito e homem.<br />

Mas a manutenção dessas funções do “coro” dentro da tragédia no período Clássico<br />

mesmo depois da <strong>transformação</strong> proporcio<strong>na</strong>da pela introdução dos atores não foi algo<br />

casual, mas sim causal. O que acaba por levar a uma conclusão: a de que esse gênero (a<br />

<strong>teatro</strong>) passou a ter outros fins que os até então explicitados: “... o poder de o coro ter<br />

sobrevivido demonstra que a tragédia não se preocupava exclusivamente com a<br />

produção do efeito dramático, mas se propunha atingir outros fins além da mera<br />

distração” (HAUSER, 1990, p. 126).<br />

Esta afirmação é apoiada pelo helenista Werner Jaeger que mostra em sua obra Paidéia<br />

como o coro trágico ocupava, dentro da peça, um papel fundamental no processo de<br />

formação do cidadão que vivia <strong>na</strong> cidade-Estado. Uma formação não ape<strong>na</strong>s de caráter<br />

moral, mas também intelectual. O que acabou ocasio<strong>na</strong>ndo à tragédia ocupar um lugar<br />

de destaque <strong>na</strong> entranhas da pólis grega:<br />

... O coro foi a alta escola <strong>na</strong> Grécia <strong>antiga</strong>, muito antes de existirem<br />

mestres que ensi<strong>na</strong>ssem a poesia. E a sua acção era com certeza bem<br />

mais profunda que a do ensino intelectual. Não é sem razão que a<br />

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didascália coral guarda o seu nome a recordação da escola e do ensino.<br />

Pela sua solenidade e raridade, pela participação do Estado e de todos<br />

os cidadãos, pela gravidade e pelo zelo com que apresentavam e a<br />

atenção prestada durante o ano inteiro ao novo “Coro”, como se dizia,<br />

pelo número de poetas que concorriam para a obtenção do prêmio,<br />

aquelas apresentações chegaram a ser o ponto culmi<strong>na</strong>nte da vida do<br />

Estado (JAEGER, 1979, p. 273)<br />

A influência da tragédia e a importância dada à esse gênero pelos cidadãos da pólis<br />

mostra o porquê desta ter sido incluída pela tirania numa festividade popular, passando<br />

a ser utilizada como “um instrumento de propaganda” (HAUSER, 1990, p. 126) para<br />

aqueles que ocupavam o poder: num primeiro momento os tiranos e posteriormente os<br />

legisladores da pólis democrática.<br />

A importância atribuída a esse gênero artístico pode ser dimensio<strong>na</strong>da quando<br />

vislumbrado pelo zelo <strong>na</strong> sua manutenção e continuidade. Para isso, no período Clássico<br />

os legisladores da pólis instituíram um “fundo especial” onde arrecadavam determi<strong>na</strong>do<br />

montante em dinheiro o qual deveria servir para indenizar os cidadãos mais pobres com<br />

uma quantia suficiente para ressarci-los ao dia – ou dias – de trabalho perdido, para que<br />

esses cidadãos pudessem estar presentes <strong>na</strong> platéia das peças, assistindo as<br />

apresentações:<br />

... a partir de Péricles, ou bem mais tarde, do demagogo Cleofonte, foi<br />

instituído [...] uma subvenção de dois óbolos diários que recebiam os<br />

pobres, a fim de que pudessem assistir aos espetáculos teatrais. [...]<br />

uma autêntica indenização, para que os menos favorecidos pudessem<br />

deixar o trabalho nos dias de festa (BRANDÃO, 1992, p. 116).<br />

Mas, apesar de serem “convocados”, até mesmo a troco de uma “indenização”, os<br />

cidadãos não tinham o “direito” de interferir no processo de criação, nem no desenrolar<br />

das apresentações. “... A entrada gratuita e o pagamento de compensações em dinheiro<br />

pelo tempo gasto no <strong>teatro</strong> [...] constituíam exatamente os fatores que inibiam<br />

inteiramente as massas a exercer qualquer influência nos destinos do <strong>teatro</strong>” (HAUSER,<br />

1990, p. 225). Apesar de estarem inseridas numa festividade popular estes estavam<br />

sujeitos aos interesses dos setores legisladores do poder da cidade-Estado que<br />

mantinham as apresentações.<br />

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Assim, nesse contexto, a tragédia grega passou a ser influenciada pelos cidadãos mais<br />

ricos que a patroci<strong>na</strong>vam, cobrindo as despesas dos espetáculos e custeando os atores:<br />

“... Cidadãos ricos (um para cada poeta) a quem tal tarefa era incumbidos a título de<br />

imposto, eram desig<strong>na</strong>dos para subvencio<strong>na</strong>r os custos da contratação e do vestuário do<br />

coro e dos artistas...” (ROBERT, 1987, p.27), o que acabou por tor<strong>na</strong>r muitas peças<br />

tendenciosas aos interesses dos seus patroci<strong>na</strong>dores.<br />

Os temas não eram discutidos de maneira a questio<strong>na</strong>r os interesses dos gover<strong>na</strong>ntes da<br />

cidade que viabilizavam sua existência, nem criticavam os que fi<strong>na</strong>nciavam suas<br />

apresentações. Tampouco eles abordavam assuntos que fossem de encontro ao sistema<br />

político vigente, que permitia sua realização:<br />

As tragédias são, deste modo, francamente tendenciosas e não<br />

pretendem passar por não serem. Tratam questões da política corrente<br />

e giram em volta de problemas, todos eles direta ou indiretamente<br />

relacio<strong>na</strong>dos com as questões candentes no momento (HAUSER,<br />

1990, p. 128).<br />

Para evitar que algum autor trágico pudesse tender de encontro aos interesses dos seus<br />

patroci<strong>na</strong>dores ou dos setores sociais que viabilizavam suas apresentações, todas as<br />

peças eram previamente submetidas ao crivo de um magistrado escolhido pelos<br />

legisladores da pólis. Esse magistrado tinha com função “estatal” selecio<strong>na</strong>r e escolher<br />

quais delas iriam ser apresentadas <strong>na</strong>s festas dionisíacas: “... Os autores que<br />

participavam dos concursos dramáticos primeiramente submetiam suas peças ao<br />

magistrado encarregado de organizar a festa, que elimi<strong>na</strong>va certo número de<br />

candidatos” (ROBERT, 1987, p. 27).<br />

A atenção dispensada pelos setores domi<strong>na</strong>ntes da sociedade grega no cuidado com a<br />

escolha dos tragediógrafos e das peças que esses iriam ence<strong>na</strong>r <strong>na</strong>s Dionisíacas tinha<br />

com objetivo não ape<strong>na</strong>s uma preocupação com a qualidade artística ou com o sucesso<br />

das festividades e das apresentações. O principal objetivo era certificarem-se de que a<br />

discussões abordadas pelas peças não fossem numa vertente oposta aos seus interesses<br />

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de condução da ordem <strong>social</strong>: “... O arconte admitia nos concursos quem bem lhe<br />

parecesse, sem deixar, contudo, de se aconselhar com os entendidos no assunto, uma<br />

vez que o próprio magistrado tinha interesse pessoal no sucesso de festa...”<br />

(BRANDÃO, 1992, p. 95).<br />

Desta forma pode verificar que, devido ao patrocínio subsidiado para a produção e<br />

dispensado a organização das apresentações, e também pela necessidade de submissão<br />

ao crivo do magistrado <strong>na</strong> análise e aprovação – ou não – das peças a serem ence<strong>na</strong>das,<br />

as apresentações trágicas acabavam por se tor<strong>na</strong>rem submissas a um controle rígido,<br />

tanto religioso quanto político, por parte dos legisladores da pólis e dos setores<br />

domi<strong>na</strong>ntes desta sociedade.<br />

O controle “estatal” fez-se necessário nesse momento, pois a tragédia grega atingira no<br />

período clássico patamares tão elevados que colocaram as apresentações no centro da<br />

vida pública desse povo:<br />

O Estado fomentava estes concursos por meio de prêmios e<br />

representações, para os orientar <strong>na</strong> sua carreira e simultaneamente<br />

estimular. Independentemente da permanência da tradição profissio<strong>na</strong>l<br />

em qualquer arte e principalmente <strong>na</strong> grega, era inevitável que esta<br />

comparação viva, ano após ano, criasse para aquela nova forma de arte<br />

um “controle” espiritual e <strong>social</strong> permanente (JAEGER, 1979, p. 293).<br />

Com toda a interferência dos setores administrativos da pólis, a tragédia passou a expor<br />

uma função política, pois era constantemente usada pelos legisladores das cidades-<br />

Estado, como Clístenes (510-508 a.C.) e Péricles (443-429 a.C.) – entre outros –, como<br />

instrumento de propaganda “estatal”.<br />

Nesta perspectiva, Werner Jaeger afirma que a tragédia grega carregava em si “uma<br />

força educativa” (1979, p. 293) que os líderes da pólis, no século V a.C. acabaram<br />

adotando para ajudar <strong>na</strong> organização das cidades que estavam se estruturando e para a<br />

manutenção do sistema democrático que vigorara como forma de administração <strong>na</strong><br />

maioria das cidades-Estado grega, principalmente <strong>na</strong> cidade de Ate<strong>na</strong>s.<br />

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Essa “força educadora” do <strong>teatro</strong> que descreve Werner Jaeger pode ser vista <strong>na</strong> forma<br />

como a tragédia representava o homem em suas ence<strong>na</strong>ções. Nas peças o grego era<br />

sempre representado com um cidadão com virtudes morais elevadas. Os poetas trágicos<br />

também procuravam mostrar como estes cidadãos deveriam agir dentro da comunidade.<br />

O herói trágico centralizava as atenções no enredo das ence<strong>na</strong>ções. Era o modelo ideal<br />

de homem. Ele carregava no seu caráter as virtudes mais elevadas para o grego:<br />

sabedoria, honestidade, coragem, bondade, honra, lealdade. Era a perso<strong>na</strong>gem que<br />

deveria ser espelho para todos os cidadãos e os legisladores da pólis: um verdadeiro<br />

estereótipo de virtude e de comportamento para manutenção da ordem <strong>social</strong> da sua<br />

cidade.<br />

Por isso, segundo o filósofo grego Aristóteles: “... a tragédia é a imitação de homens<br />

melhores que nós...” (Poética XIII, 1453b 07, 1987, p. 212), homens que deveriam ser<br />

imitados pelos espectadores.<br />

Até mesmo quando o herói trágico era descrito <strong>na</strong>s peças como não tendo atitudes<br />

condizentes com as virtudes elevadas supracitadas, agindo de maneira deliberada com<br />

alguma forma de comportamento que acabava rompendo com a ordem e a harmonia da<br />

sua comunidade – o momento em que se dava o chamado efeito trágico <strong>na</strong> peça –, o<br />

objetivo do poeta era mostrar ao espectador a fragilidade do homem diante da vida:<br />

CORO<br />

Vossa existência, frágeis mortais<br />

é aos meus olhos menos que <strong>na</strong>da.<br />

Felicidade só conheceis<br />

imagi<strong>na</strong>da; vossa ilusão<br />

logo é seguida pelas desdita ... (Édipo Re 1 i, vv. 1393-1397, p 83).<br />

O efeito trágico ocorria quando o herói cometia algum ato – de forma voluntária e<br />

consciente, ou involuntariamente como obra de um Destino predetermi<strong>na</strong>do – que não<br />

1<br />

A peça Édipo Rei é de autoria de Sófocles e <strong>na</strong>rra o mito de Édipo que assume o trono da cidade de<br />

Tebas após matar o pai e casar-se com a própria mãe sem o saber, causando assim a ira dos deuses que<br />

amaldiçoa a cidade de Tebas com uma peste até que os crimes cometido por Édipo fossem espiados.<br />

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estava de acordo com as regras de conduta <strong>social</strong>. Isso fazia com que passasse da<br />

felicidade à dor, da paz à desarmonia, quebrando assim o equilíbrio mantido e/ou<br />

pretendido pelas leis e/ou convenções da comunidade da qual fazia parte como<br />

integrante ou como detentor do poder.<br />

Com isso o herói da tragédia acabava por ter que pagar um castigo por sua desventura<br />

ou por seu crime como forma de purificação. A pe<strong>na</strong> geralmente era o exílio como no<br />

caso de Édipo (<strong>na</strong> peça Édipo Rei), ou a morte como no caso de Ájax (<strong>na</strong> peça<br />

homônima).<br />

O que se pode verificar <strong>na</strong>s peças trágicas é que esse desequilíbrio causado não<br />

acontecia com a total ignorância do herói. A intenção da tragédia era que o efeito<br />

trágico fosse a representação da emancipação do herói, ou do homem da pólis, diante da<br />

crença num destino predetermi<strong>na</strong>do. Sua função era provocar um rompimento com a<br />

crença mítica do herói num destino imposto pelos deuses em favor da vontade do<br />

homem racio<strong>na</strong>l e detentor de suas decisões:<br />

Ao longo do conflito trágico participamos da luta do herói com um<br />

sentimento de admiração e, mais, de estreita fraternidade. Esta<br />

participação, esta alegria, só podem significar uma coisa – uma vez<br />

que somos homens: é que a luta do herói contém, até <strong>na</strong> mortetestemunho,<br />

a promessa de que a ação do herói contribui para nos<br />

libertar do Destino (BONNARD, 1980, p. 159).<br />

Essa característica de libertar o homem das amarras de um destino predetermi<strong>na</strong>do<br />

diferenciava a tragédia dos gêneros poéticos que a antecederam: a poesia épica e a<br />

poesia lírica. A tragédia do período Clássico não apresentava o herói ou o gover<strong>na</strong>nte<br />

como eram apresentados <strong>na</strong>s epopéias e <strong>na</strong>s poesias líricas.<br />

Esses gêneros poéticos anteriores a tragédia mostravam heróis que atribuíam as<br />

responsabilidades de seus atos ao destino predetermi<strong>na</strong>do pela deusa Moira, e por isso<br />

aceitavam suas pe<strong>na</strong>s de maneira submissa, mesmo porque acreditavam que qualquer<br />

interferência huma<strong>na</strong> no destino imposto pelos deuses poderia causar a desordem <strong>na</strong><br />

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sociedade: “As noções de Moira 2 e A<strong>na</strong>nké 3 apresentam o destino humano como<br />

imutável e mostram como algo organizado onde não se pode intervir sob pe<strong>na</strong> de<br />

instalação do caos” (COSTAS & REMÉDIOS, 1988, p. 08).<br />

Em contra partida, o herói da tragédia clássica passou a assumir a responsabilidade por<br />

seus atos e também aceitava os resultados das suas ações de desvio de conduta, mesmo<br />

que as pe<strong>na</strong>s – impostas por outros ou por sua consciência – o levassem à morte, como<br />

acontecia com as perso<strong>na</strong>gens das tragédias <strong>na</strong> maioria das peças.<br />

Um exemplo desse novo modelo de herói que a tragédia apresentava no período<br />

Clássico pode ser verificado <strong>na</strong> peça Ájax 4 . Nesta tragédia é <strong>na</strong>rrado a história mítica do<br />

guerreiro Ájax a qual apresentava o suicídio da perso<strong>na</strong>gem diante dos seus conflitos<br />

pessoais.<br />

O enredo da peça descreve a revolta de Ájax diante da decisão dos chefes gregos de<br />

entregar à Odisseu 5 as armas de Aquiles 6 que fora morto por Páris 7 em combate <strong>na</strong><br />

guerra entre gregos e troianos <strong>na</strong> mitológica Guerra de Tróia descrita por Homero <strong>na</strong><br />

Ilíada. Ájax achava-se no direito de receber os espólios de Aquiles, e diante desta<br />

decisão contrária ao seu desejo, ele decide matar os chefes gregos, entre os quais<br />

estavam Agamêmnon 8 e Menelau 9 , enquanto estes dormiam.<br />

2 Moira era a divindade da mitologia grega que era responsável pelo destino da vida de todo os homens.<br />

3 Conceito grego de necessidade.<br />

4 Ájax é uma peça de Sófocles onde é <strong>na</strong>rrado o mito de mesmo nome. A peça tem início no momento<br />

subseqüente a tentativa do herói de assassi<strong>na</strong>r os chefes aqueus, considerados responsáveis pelo destino<br />

dado às armas de Aquiles. Fato frustrado pela deusa Ate<strong>na</strong> o que acaba por humilhar Ájax que decide<br />

suicidar-se, lançando-se sobre a própria espada. A peça de desenrola <strong>na</strong> reflexão de Ájax sobre seus erros,<br />

até a morte do herói.<br />

5 Odisseu era um dos chefes aqueus <strong>na</strong> guerra de Tróia, rival de Ájax e protagonista da Odisséia de<br />

Homero.<br />

6 Aquiles: considerado o mais valentes dos guerreiros gregos, morto <strong>na</strong> batalha com o inimigo.<br />

7 Paris: filho mais novo de Príamo, rei de Tróia, foi o causador da guerra de Tróia ao raptar Hele<strong>na</strong>,<br />

esposa do Menelau.<br />

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Ao ir em busca concretizar sua empreitada, Ájax acabou sendo privado de sua razão<br />

pela deusa Ate<strong>na</strong>s que vai em defesa dos chefes gregos. Ensandecido pela interferência<br />

da deusa, num ataque de loucura, o herói acaba por extermi<strong>na</strong>r o rebanho de bois e<br />

carneiros que o exército grego havia conquistado <strong>na</strong>s terras teba<strong>na</strong>s, acreditando que<br />

estava realizando seu intento de matar os chefes gregos.<br />

Quando recobra a razão, o protagonista, o próprio Ájax, depara-se com as<br />

conseqüências dos seus atos: “Hoje zombam de mim às gargalhadas!...” (Ájax, vv. 561,<br />

p. 94). Ou melhor, depara-se com “... as conseqüências de seus erros, de sua cegueira”<br />

(ROBERT, 1987, p. 32), e da sua responsabilidade diante do feito:<br />

ÁJAX<br />

Como sou infeliz! Com minhas mãos<br />

por contra mim os gênios vingadores!...<br />

Precipitei-me contra os bois chifrudos<br />

e contra os alvos e belos carneiros,<br />

banhando-me no sangue escuro deles (Ájax, vv. 517-521, p. 94)<br />

Mesmo sofrendo a interferência divi<strong>na</strong> da deusa Ate<strong>na</strong>s o herói não se isentou da sua<br />

culpabilidade diante do seu ato desonroso. Ájax assumiu a imputabilidade do que havia<br />

cometido, não como conseqüência de um destino, mas como resultado de um ato seu.<br />

Dessa forma, ele decretou sua própria sentença de morte, e cometeu suicídio.<br />

Outra exemplo desse novo modelo de herói que carregava essa característica é Édipo. A<br />

perso<strong>na</strong>gem de Édipo, ao assumir a responsabilidade por suas faltas, revelava que o<br />

homem grego não estava mais sujeito a sofrer as pe<strong>na</strong>lidades que, segundo a tradição,<br />

eram impostas pelos deuses, ou determi<strong>na</strong>das pelo destino:<br />

ÉDIPO<br />

... Mas, não quero que me atribuam como crimes<br />

nem esse casamento nem o assassínio<br />

8 Agamêmnon também era um chefe dos aqueus que lutou contra Tróia. Era considera o grego mais sábio<br />

entre todos.<br />

9 Menelau: rei de Esparta e esposo de Hele<strong>na</strong>.<br />

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de um pai, que me lanças ao rosto sem cessar,<br />

insultando-me ainda com rudes ultrajes. (Édipo em Colono 10 , vv.<br />

1143-1146, p. 157).<br />

O que o tragediógrafo queria com suas peças era mostrar ao cidadão que o homem da<br />

pólis, responsável por suas ações e por seus crimes, não devia mais nortear sua vida<br />

numa crença num destino predetermi<strong>na</strong>do, mas deveria submeter-se às leis da cidade.<br />

Leis elaboradas por esse mesmo homem para manter a ordem e para julgar ações e a<br />

responsabilidade dos atos humanos que pudessem vir a pôr em risco a manutenção da<br />

estrutura <strong>social</strong> organizada da cidade-Estado: “... Mas se ele tem a idéia/ de impor-nos<br />

novas leis, tratá-lo-ei de acordo/ com suas próprias leis, e não com quaisquer outra...”<br />

(Édipo em Colono, vv. 1038-1040, p. 154).<br />

Um aspecto novo para o homem da pólis nesse contexto, e que o poeta trágico<br />

apresentou em suas peças foi o conceito de justiça <strong>na</strong> cidade-Estado. O que até então era<br />

responsabilidade dos deuses passou para o plano humano e adquiriu novas abordagens.<br />

No período Arcaico os homens eram julgados por preceitos divinos e conde<strong>na</strong>dos<br />

sumariamente. Já no cotidiano da pólis o homem da cidade-Estado não precisava<br />

assumir as pe<strong>na</strong>lidades que lhe eram impostas sem antes expor sua defesa, como<br />

permitia a própria lei da pólis democrática.<br />

A pretensão do poeta era mostrar que a submissão à crença no destino e as “leis divi<strong>na</strong>s”<br />

perderam completamente sua função <strong>na</strong> pólis e foram substituídas definitivamente pela<br />

racio<strong>na</strong>lidade e pelas “leis escritas”.<br />

Por isso, não incorreria em erro afirmar que, “... a tragédia [...] significa a luta de um<br />

homem contra seu destino” (ROBERT, 1987, p. 32). Era a luta desse homem que<br />

aceitava suas pe<strong>na</strong>s pelos seus erros, mas que questio<strong>na</strong>va as injustiças cometidas à ele.<br />

Ele responderia por seus crimes e ações inconseqüentes, no entanto imporia defesa<br />

contra as acusações que considerassem iníquas e involuntárias.<br />

10<br />

Édipo em Colono é uma peça de Sófocles onde continua sendo <strong>na</strong>rrando a trajetória do mito de Édipo<br />

iniciada com a peça Édipo Rei e <strong>na</strong> qual a história do mito de Édipo tem seu desfecho.<br />

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Nesta perspectiva se verifica que, mesmo apresentando temas míticos como do<br />

guerreiro Ájax ou do rei Édipo, a discussão central da tragédia era sobre a cidade e os<br />

seus cidadãos. O seu interesse não era somente o de <strong>na</strong>rrar os feitos dos heróis míticos<br />

da religião ou das epopéias, mas tinha como objetivo central discutir o homem grego, a<br />

sua sociedade, suas relações sociais e a sua estrutura organizacio<strong>na</strong>l:<br />

... as tragédias refletem as ânsias da cidade-Estado. Os problemas<br />

domésticos das famílias reais têm obviamente uma relevância política.<br />

Por conseguinte, representar histórias heróicas tornou-se (entre outras<br />

coisas) um modo de refletir sobre as implicações políticas de ordem<br />

doméstica (REDFIELD apud. VERNANT, 1994, p. 153).<br />

O objetivo do autor trágico era mostrar como devia agir o homem da cidade. Assim, o<br />

tema mítico <strong>na</strong> tragédia tor<strong>na</strong>ra-se ape<strong>na</strong>s um pretexto dentro da peça para que essa<br />

discussão fosse feita. O herói da tragédia representava o modelo de como devia ser o<br />

homem da pólis, com suas virtudes elevadas, para ser um bom cidadão.<br />

A principal preocupação da trágica era fazer uma discussão que fosse para além de uma<br />

simples abordagem religiosa do mito, ou simplesmente apresentar as desventuras e o<br />

sofrimento do herói trágico, levando o cidadão refletir sobre a necessidade de se manter<br />

a ordem <strong>social</strong> para não prejudicar o bom andamento da cidade. Por isso, mostrava ao<br />

cidadão a necessidade de buscar a prática de atitudes moras elevadas e evitar os vícios e<br />

paixões nocivas ao bem estar coletivo da sua comunidade.<br />

É a partir desta perspectiva que a tragédia grega clássica passa a ser entendida como um<br />

gênero formador do povo grego – função ou intenção educativa que foi posta em prática<br />

no século V a.C. pelos poetas trágicos do período Clássico –, e que ajudou a educar o<br />

cidadão da pólis que deveria viver e organizar a cidade-Estado, e administrar a sua<br />

estrutura baseada no ideal de Democracia.<br />

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REFERÊNCIAS:<br />

Universidade Estadual de Maringá<br />

08 e 09 de Junho de 2009<br />

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1987. (os Pensadores).<br />

BONNARD, André. A civilização grega. São Paulo: Martins Fontes, 1980.<br />

BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: origem e evolução. São Paulo: Ars<br />

Poética, 1992.<br />

COSTA, Lígia M.; REMÉDIOS, Maria L. R. A tragédia: estrutura e história. São<br />

Paulo: Ática, 1988.<br />

HAUSER, Ar<strong>na</strong>ld, História da arte e da literatura. São Paulo: Mestrejou, 1990.<br />

JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Herder, 1979.<br />

ROBERT, Fer<strong>na</strong>nd. A literatura grega. Trad: Gilson César Cardoso de Souza. 1ed.<br />

São Paulo: Martins Fontes, 1987.<br />

REDFIELD, James. O homem e a vida doméstica. In. VERNANT, Jean-Pierre (org.). O<br />

homem grego. Lisboa-Portugal; Editorial Presença, 1994, p. 145-172.<br />

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