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Cartas - Revista Metrópole

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Esporte<br />

Os velhos pegueteiros<br />

Os mais jovens talvez duvidem, mas a Avenida Centenário já foi circuito de corrida<br />

Matheus Santana<br />

O público que se aglomera nas calçadas<br />

e barrancos reclama da demora. Todos estão<br />

ansiosos para ouvir o ronco barulhento dos<br />

motores envenenados. No mesmo instante,<br />

a poucos quilômetros dali, o homem<br />

mais poderoso do estado também não esconde<br />

a irritação. Ele saiu cedo do Palácio<br />

de Ondina, a fim de não se atrasar, mas o<br />

engarrafamento na Ladeira da Barra o pegou<br />

de surpresa. Na Avenida Centenário, a<br />

multidão se empolga. Os 14 pilotos estão<br />

enfileirados no grid de largada e nenhum<br />

deles consegue disfarçar o nervosismo. A<br />

maior preocupação é com a lama na pista. A<br />

chuva fez um estrago grande e é preciso ter<br />

cuidado para evitar derrapagens. Enquanto<br />

isso, o motorista do veículo oficial ouve<br />

calado os gritos do governador, que esbraveja<br />

sem parar. A solenidade é no centro da<br />

cidade e os dois sabem que vai ser impossível<br />

chegar na hora certa. Dada a largada,<br />

Arialdo Pinho, José Luis Bastos e Roberto<br />

Fiúza partem na frente. Após a curva do<br />

Calabar, Arialdo aproveita o menor peso de<br />

seu carro e assume a ponta. Ele mantém a<br />

liderança e vence a disputa atingindo quase<br />

200 km/h no fim da reta do Chame-Chame.<br />

Enquanto a bandeira quadriculada tremula,<br />

o carro do governador não chega sequer aos<br />

20 km/h.<br />

A situação aconteceu há 36 anos, em<br />

outubro de 1972. Foi a última vez que a<br />

Avenida Centenário se transformou em<br />

um circuito de corrida. No dia seguinte, as<br />

competições automobilísticas foram proibidas<br />

em Salvador. Uma sugestão do então<br />

governador Antônio Carlos Magalhães acatada<br />

pelo prefeito Clériston Andrade. Na<br />

época, muitos concordaram com a medida<br />

por considerar que as disputas<br />

representavam riscos, além de<br />

acarretar transtornos àqueles que<br />

moravam nas áreas próximas, uma<br />

vez que o trânsito era modificado<br />

por causa dos eventos, gerando<br />

engarrafamentos como o que tanto<br />

aborreceu ACM.<br />

“O couro comia!”<br />

O empresário e fazendeiro<br />

Carlos Medrado tinha 24 anos<br />

quando chegou em quinto lugar<br />

na competição derradeira de<br />

1972. Ele era um dos bons pilotos<br />

da época e o automobilismo estava<br />

em primeiro lugar na sua lista<br />

de atividades. Medrado passava a<br />

maior parte do tempo dirigindo<br />

automóveis ou trabalhando na<br />

oficina. “A gente construía carro<br />

com dinheiro da mesada. Nós deixávamos<br />

de ir a festas para preparar<br />

motores e fazer ajustes nos veículos”,<br />

conta. Medrado está com<br />

60 anos e guarda em um quarto,<br />

ao lado da garagem de sua casa,<br />

lembranças do tempo em que pisava fundo<br />

no acelerador. São recortes de jornal, capacetes,<br />

luvas, macacões e peças de carros.<br />

Nas fotos, jovens pilotos com costeletas à<br />

Emerson Fittipaldi - o ídolo do momento - e<br />

os automóveis que faziam mais sucesso na<br />

época. “Este Fusca aqui era o meu”, mostra<br />

Mário “Português” hoje é dono de uma oficina na Barros Reis<br />

FOTOS: COPERPHOTO<br />

Medrado cheio de orgulho, “mas também<br />

havia Puma, Karman Ghia, Alfa Romeo,<br />

Simca Tufão e Ford Corcel”.<br />

As provas na Centenário também contribuíram<br />

para domar os “pegueteiros” da<br />

época. Transformados em pilotos de verdade<br />

(com carteirinha e tudo!), as loucuras ao volante<br />

aconteciam apenas nas disputas oficiais.<br />

“Éramos filhinhos de papai, sabe? Corríamos<br />

por prazer e, antes da Centenário, fazíamos<br />

muito ‘pega’ lá na Barra. O couro comia!”,<br />

confessa Medrado. Sempre que passa de carro<br />

pela avenida, a nostalgia pega carona e o<br />

fazendeiro sessentão volta a ser, por alguns<br />

segundos, o destemido piloto do passado. O<br />

impulso inicial é o de acelerar até o limite,<br />

mas a prudência adquirida com a idade dá<br />

um freio no fugaz ímpeto juvenil.<br />

Corações acelerados<br />

Numa tarde de quarta-feira, antigos rivais<br />

se reencontraram para dar uma entrevista.<br />

Não foi fácil reunir tanta gente em um dia de<br />

semana. Antes do papo, eles trocam olhares<br />

e percebem as mudanças. Mário “Português”<br />

está com o cabelo todo branco. Medrado<br />

engordou. Babinho está mais calvo. José Luis<br />

Bastos continua bonitão, mas virou um galã<br />

enrugado. Para sujeitos acostumados com a<br />

velocidade, é um choque perceber como a<br />

vida corre tão depressa. Os dez homens reunidos<br />

no canteiro que divide as duas pistas<br />

da Centenário são ex-mecânicos e ex-pilotos<br />

que aceleravam muito na avenida nas décadas<br />

de 60 e 70.<br />

Não era necessário fazer perguntas. Bastava<br />

ficar quieto e ouvir a conversa - rica<br />

em detalhes - para voltar no tempo, sentir o<br />

cheiro da borracha dos pneus, ouvir os gritos<br />

do público e o som dos motores mais potentes<br />

da cidade. “Era um poste por segundo de<br />

As provas na Avenida Centenário também<br />

contribuíram para domar os “pegueteiros”<br />

daquela época<br />

um lado e o córrego do outro lado. A gente<br />

tinha de andar bem certinho porque senão<br />

batia no poste ou tomava banho no riacho”,<br />

relembra José Luis Bastos.<br />

Os 3.090m do circuito eram percorridos<br />

no sentido contrário ao fluxo de veículos<br />

dos dias normais. “Isso evitava que o pessoal<br />

ficasse treinando durante a semana e fazendo<br />

maluquice”, explica Medrado. Uma das curvas<br />

preferidas da turma era a que fica entre<br />

o Shopping Barra (que só foi construído 15<br />

anos depois) e o final da Rua Celso Torres,<br />

na Graça. “Eu fazia ela quase toda com o pé<br />

lá embaixo”, gaba-se José Luis. Esta mesma<br />

curva é um problema para quem trafega hoje<br />

pela Centenário. A inclinação que favorecia<br />

os pilotos é um desafio para os atuais motoristas.<br />

Muitos derrapam e alguns até já<br />

caíram com seus veículos no córrego central.<br />

A emoção do passado está na contramão da<br />

imperfeição do presente.<br />

O papo entre eles prossegue quase sem<br />

vírgulas. Os assuntos se fundem. Cada<br />

personagem relembra uma boa história e<br />

enquanto uma é contada, outra entra na<br />

pauta sem que a anterior tenha terminado.<br />

As recordações fazem os olhos de Mário<br />

Monteiro ficarem cheios de lágrimas. “Era<br />

lindo”, diz baixinho. Mário nasceu em Portugal,<br />

numa pequena vila chamada Soito, na<br />

Serra da Estrela. Desde menino, era apaixonado<br />

por carros. Veio morar em Salvador aos<br />

18 anos para aprender mecânica com o tio<br />

Manoel Martins Monteiro, dono de uma oficina<br />

na Barroquinha. O tio o ensinou também<br />

a dirigir. Mário foi piloto, mas a grande<br />

<strong>Revista</strong> <strong>Metrópole</strong> - junho de 2008<br />

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