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A Reforma Protestante de Martinho Lutero - IFCS

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In justitia tua libera me (Sl 70:2): A <strong>Reforma</strong> <strong>Protestante</strong> <strong>de</strong> <strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong><br />

Patrícia Matos <strong>de</strong> Mello<br />

Mestranda pelo Programa <strong>de</strong> Pós Graduação em História Social<br />

A <strong>Reforma</strong> <strong>Protestante</strong> atualmente é um dos marcos da Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna. Sem dúvida,<br />

os questionamentos levantados pelos diferentes reformadores abalaram os pilares da Igreja<br />

Católica, fazendo-a reunir o Concílio <strong>de</strong> Trento (1545- 1563) para reorganizar suas bases<br />

doutrinais, separando <strong>de</strong> vez as diferentes confissões. Mas será que todos esses projetos<br />

reformadores propunham questões novas ou <strong>de</strong> acordo com o i<strong>de</strong>al mo<strong>de</strong>rno que circulava à<br />

época através do Humanismo, por exemplo? No presente trabalho iremos analisar o corpus<br />

doutrinário da proposta do reformador <strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong> 1 . Antes, porém, faz-se necessária uma<br />

breve contextualização histórica.<br />

Segundo Silvia Patuzzi, o começo do ano <strong>de</strong> 1517 foi marcado por um clima <strong>de</strong><br />

otimismo e esperança, em virtu<strong>de</strong> do término do V Concílio Lateranense que era interpretado<br />

como “real e profundo movimento <strong>de</strong> renovação no mundo cristão e promessa <strong>de</strong> paz<br />

européia”. Diversos humanistas publicavam escritos conclamando a reforma moral e<br />

intelectual do clero até que, “com a eclosão das 95 teses <strong>de</strong> <strong>Lutero</strong> contra as indulgências,<br />

passava-se das esperanças <strong>de</strong> renovação filosófica e moral à disputa teológica”. 2 Além disso,<br />

é sabido que o século XVI, sobretudo no Sacro Império Germânico, foi marcado por um<br />

momento <strong>de</strong> crise e <strong>de</strong> transição do antigo sistema feudal para o sistema capitalista e suscitou<br />

intensos <strong>de</strong>bates religiosos que também propunham diversas formas <strong>de</strong> inserção à esta nova<br />

socieda<strong>de</strong> que surgia, além <strong>de</strong> versar sobre os limites e a forma <strong>de</strong> atuação do po<strong>de</strong>r secular e<br />

do espiritual.<br />

Os humanistas, sendo um dos mais conhecidos Erasmo <strong>de</strong> Roterdã 3 , além <strong>de</strong>, como<br />

dizíamos, <strong>de</strong>sejarem a reforma moral e intelectual do clero, <strong>de</strong>dicavam-se aos estudos <strong>de</strong><br />

Filologia e <strong>de</strong> Filosofia Natural para, por meio <strong>de</strong>stas ferramentas alcançarem a verda<strong>de</strong> do<br />

Texto Sagrado, purificando, <strong>de</strong>sta forma, a religião <strong>de</strong> todos os vícios e práticas enganosas<br />

vigentes até então. O retorno ao cristianismo primitivo e aos pais da fé também era<br />

1 <strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong> nasceu em Eisleben em 10 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1483 e morreu em 18 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1546. Era<br />

teólogo e professor universitário e é o precursor do luteranismo.<br />

2 PATUZZI, Silvia. Humanistas, Príncipes e <strong>Reforma</strong>dores no Renascimento. In: Cavalcante, Berenice (Org).<br />

Mo<strong>de</strong>rnas Tradições: Percursos da cultura Oci<strong>de</strong>ntal (Séculos XV-XVII). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Acess, 2002. p 145 e<br />

146.<br />

3 Erasmo nasceu em 27 <strong>de</strong> Outubro <strong>de</strong> 1466. Foi um gran<strong>de</strong> humanista e teólogo neerlandês. Morreu em 12 <strong>de</strong><br />

Julho <strong>de</strong> 1536.<br />

1


importante, bem como a tradução da Bíblia da língua sagrada (latim) para a língua vulgar (no<br />

nosso caso o alemão) para que o povo tivesse livre acesso à Palavra divina.<br />

Segundo Hil<strong>de</strong> Symoens, Melanchthon 4 teria sido o primeiro a invocar explicitamente<br />

o regresso às fontes como ponto <strong>de</strong> partida para sua reforma <strong>de</strong> estudos nas Universida<strong>de</strong>s<br />

protestantes, <strong>de</strong>ixando transparecer uma preocupação humanística da busca pela verda<strong>de</strong> e a<br />

penetração da Filologia na própria Teologia.<br />

Ele dizia que o objetivo das humanae litterae, nas quais incluía História e Filosofia<br />

Natural, é uma educação filosófica e retórica que é susceptível <strong>de</strong> conduzir o<br />

tratamento eticamente responsável dos negócios públicos e <strong>de</strong> ser igualmente uma<br />

preparação para os estudos teológicos. A Teologia é em parte hebraico e em parte<br />

grego. Deve-se apren<strong>de</strong>r essas línguas estranhas a partir das quais os latinos criaram<br />

suas obras. O estudo dos textos originais revela a superfície brilhante e o valor<br />

intrínseco das palavras e o seu verda<strong>de</strong>iro significado, o que conduz à essência do<br />

assunto; quando 'dirigimos a nossa atenção para as fontes, conseguimos começar a<br />

enten<strong>de</strong>r Cristo 5 .<br />

Com relação ao pensamento <strong>de</strong> <strong>Lutero</strong>, sobretudo entre 1520 e 1525, po<strong>de</strong> ser dividido<br />

em dois gran<strong>de</strong>s esquemas, um relativo à concepção do homem e o outro relativo à doutrina.<br />

Esses esquemas são recorrentes e aperfeiçoados em seus escritos e, ao mesmo tempo que<br />

contrariam e abalam os pilares da fé católica, também fixam um arquétipo <strong>de</strong> homem para a<br />

socieda<strong>de</strong> do Sacro Império. A teologia Luterana <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> três pontos principais, a saber:<br />

sola fi<strong>de</strong>, sola gratia, sola scriptura. Isto significa que o homem era salvo por meio da graça<br />

divina e justificado por meio da fé em Cristo, ambas concedidas por Deus <strong>de</strong>vido a Sua<br />

bonda<strong>de</strong> e misericórdia e não por merecimento ou capacida<strong>de</strong> humana. E as Sagradas<br />

Escrituras constituíam o monopólio a cerca da fé e da conduta cristã, contrariando todas as<br />

tradições católicas.<br />

Já no que tange ao homem, para <strong>Lutero</strong>, ele era marcado pela dualida<strong>de</strong> interior X<br />

exterior, dualida<strong>de</strong> esta relativa ao Reino <strong>de</strong> Deus X reino do mundo, respectivamente. É o<br />

homem interior ou o novo homem quem é salvo pela graça divina e quem é justificado pela fé<br />

em Cristo, em oposição ao homem exterior ou velho homem marcado pela herança adâmica,<br />

portanto, escravo do pecado. No que diz respeito à dualida<strong>de</strong> do homem vemos a clara<br />

consonância com o pensamento do Apóstolo Paulo e <strong>de</strong> Santo Agostinho, o que nos faz<br />

questionar em que medida o “pai da <strong>Reforma</strong> <strong>Protestante</strong>” foi inovador? Como veremos, esse<br />

traço <strong>de</strong> pensamento tardo-medieval que transparece não apenas no arquétipo paulino-<br />

4 Philipp Schwarzerdt ou Philipp Melanchton nasceu em Bretten na Saxônia em 16 <strong>de</strong> Fevereiro <strong>de</strong> 1497. Seu<br />

princpal mestre foi seu tio, o humanista Johannes Reuchlin. Melanchthon foi aluno <strong>de</strong> <strong>Lutero</strong> na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Teologia e tornou-se seu gran<strong>de</strong> colaborador, chegando a assumir a li<strong>de</strong>rança do luteranismo após a morte <strong>de</strong><br />

<strong>Lutero</strong>.<br />

5 SYMOENS, Hil<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rid<strong>de</strong>r. Uma história da Universida<strong>de</strong> na Europa. As Universida<strong>de</strong>s na Europa<br />

Mo<strong>de</strong>rna (1500-1800). Porto: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002. p31<br />

2


agostiniano é extremamente relevante para a concepção política <strong>de</strong> <strong>Lutero</strong>. A fórmula homem<br />

interior X homem exterior é importante, pois regula não apenas o papel da igreja, mas o<br />

próprio papel das autorida<strong>de</strong>s civis.<br />

A idéia central da teologia luterana é a indignida<strong>de</strong> do homem. Essa visão da natureza<br />

humana como sendo corrompida e serva do pecado ia <strong>de</strong> encontro ao pensamento humanista e<br />

à teologia tomista, pois ambos tinham uma percepção otimista da natureza e da razão humana.<br />

Os humanistas valorizavam o homem e exaltavam o uso da razão enquanto que os tomistas<br />

acreditavam que o homem era capaz <strong>de</strong> escolher entre o Bem e o Mal, caso lhes fossem dadas<br />

as condições necessárias para tal escolha. Para <strong>Lutero</strong>, nada <strong>de</strong> bom po<strong>de</strong>ria proce<strong>de</strong>r do<br />

homem <strong>de</strong>vido à herança adâmica. Com a queda <strong>de</strong> Adão, todo homem, por si só, estava<br />

con<strong>de</strong>nado ao pecado e à danação eterna. O homem exterior po<strong>de</strong>ria até praticar boas ações <strong>de</strong><br />

acordo com a lei civil e a moral, tinha liberda<strong>de</strong> nas questões menores da vida como o comer<br />

e o procriar, mas não po<strong>de</strong>ria contribuir em nada para a sua salvação.<br />

Além <strong>de</strong> <strong>de</strong>stacar a concepção <strong>de</strong> homem no pensamento <strong>de</strong> <strong>Lutero</strong>, é importante<br />

também <strong>de</strong>stacar a concepção <strong>de</strong> Deus. O Deus do monge <strong>Lutero</strong> era um Deus que cobrava a<br />

Lei Mosaica; eram um Deus que por ser Onisciente, Onipotente e Onipresente, sabia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

princípio o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> cada alma e punia a injustiça do pecador com a danação eterna; era um<br />

Deus justo por meio da punição. Essa idéia <strong>de</strong> Deus está presente no Antigo Testamento, bem<br />

como a relação entre pecado e sofrimento, sobretudo nos Salmos <strong>de</strong> Davi, nos quais Deus é o<br />

refúgio contra os inimigos e o libertador do peso da iniqüida<strong>de</strong> (Salmos 31:8-10). E é também<br />

nos Salmos que o reformador <strong>Lutero</strong> encontra a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> salvação, não pela<br />

capacida<strong>de</strong> humana, mas pela benevolência divina. Nos Salmos, Deus não é justo por meio da<br />

punição ao <strong>de</strong>svio da Lei Mosaica, Ele é justo por meio da misericórdia, já que se o Senhor<br />

olhasse cada uma das iniqüida<strong>de</strong>s, nenhum homem subsistiria (Salmos130:3). Davi revela<br />

ainda um Deus Onipotente que, segundo a sua misericórdia e benignida<strong>de</strong>, capacita o homem<br />

para adorá-Lo (Salmos 51:10) e que salva pela honra <strong>de</strong> Seu nome e faz justiça pelo Seu<br />

po<strong>de</strong>r (Salmos 54:1). Assim, “rette mich in <strong>de</strong>iner Gerechtigkeit” (livra-me por tua justiça)<br />

transforma-se na fórmula <strong>de</strong> salvação luterana.<br />

Para <strong>Lutero</strong>, a justiça po<strong>de</strong>ria se manifestar <strong>de</strong> diversas formas 6 : 1) a política ou civil<br />

(elaborada pelos imperadores, príncipes, filósofos e tratadistas); 2) a cerimonial (fruto da<br />

tradição e ensinada pelos parentes e mestres); 3) a veterotestamentária (presente nos 10<br />

6 LUTERO, <strong>Martinho</strong>. A commentary on St’s Paul Epistole to the Galatians. Filadélfia:Smith, English & CO.<br />

Miller & Burlock, 1860. p125 a 632. Disponível em:<br />

Acesso em: 04.Abril.2008<br />

3


Mandamentos) e 4) a da fé. Esta última também era chamada <strong>de</strong> justiça passiva, pois só<br />

<strong>de</strong>pendia o trabalho <strong>de</strong> Deus no homem, cuja expressão máxima era o sacrifício <strong>de</strong> Cristo na<br />

Cruz e era aplicada apenas ao novo homem, ao cristão regenerado. A justiça ativa (que<br />

abrange os <strong>de</strong>mais tipos <strong>de</strong> justiça elencados) era voltada para o velho homem, governado<br />

pelas vonta<strong>de</strong>s da carne e do sangue, para o pecador. Embora para <strong>Lutero</strong> a justiça passiva (ou<br />

cristã) fosse mais importante, a justiça ativa também era necessária, pois uma complementaria<br />

a outra, já que simbolizam o plano espiritual e o secular, respectivamente. Vemos presente<br />

neste exemplo a dualida<strong>de</strong> da concepção luterana acerca da natureza humana e como essas<br />

distintas naturezas interagem entre si.<br />

Com base nessa idéia <strong>de</strong> salvação pela justiça divina e na teologia paulina, <strong>Lutero</strong><br />

<strong>de</strong>senvolve os dois principais pontos, já citados, <strong>de</strong> sua doutrina sola fi<strong>de</strong> e sola gratia. A<br />

justificação do homem se dá por meio da fé em Cristo, uma vez que o homem sozinho não<br />

po<strong>de</strong> salvar-se, nem mesmo pela prática <strong>de</strong> boas ações. O homem só po<strong>de</strong> ser salvo por meio<br />

da fé que é dada e alimentada por Deus. Desse modo, a salvação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> exclusivamente da<br />

graça divina e é conferida ao homem como um favor imerecido, na medida em que o homem<br />

nunca <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> pecar, pois sua natureza é corrompida. O homem, então, <strong>de</strong>ve confiar que<br />

Deus irá salvá-lo e ajudá-lo no processo <strong>de</strong> santificação ao longo <strong>de</strong> sua vida. A figura <strong>de</strong><br />

Cristo é fundamental, pois a partir <strong>de</strong> seu sacrifício foi estabelecido o tempo da graça e a<br />

severida<strong>de</strong> da Lei Mosaica <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> prevalecer.<br />

Como conseqüência, se o homem é salvo apenas através da fé, a Igreja como<br />

instituição e mediadora entre Deus e os homens per<strong>de</strong> seu valor. A Igreja seria apenas a<br />

congregação dos fiéis, reunidos em nome <strong>de</strong> Deus. A Ecclesia seria a Gemein<strong>de</strong>. Se a Igreja<br />

não é mais uma instituição, se ela existe apenas no coração dos fiéis e ganha forma quando o<br />

“povo <strong>de</strong> Deus” se reúne, a idéia <strong>de</strong> sacerdócio também per<strong>de</strong> seu valor. Para <strong>Lutero</strong>, o<br />

sacerdócio aplicava-se a todos os fiéis e não havia distinção entre po<strong>de</strong>r espiritual e po<strong>de</strong>r<br />

temporal, pois ambos estavam capacitados para a fé. Isso resulta da noção simples que <strong>Lutero</strong><br />

tem acerca do relacionamento dos homens com Deus: qualquer cristão po<strong>de</strong>ria se relacionar<br />

com Deus sem ter a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intermediários, nem mesmo para a interpretação das<br />

Sagradas Escrituras. A conseqüência política <strong>de</strong>ssa eclesiologia é que <strong>Lutero</strong> luta contra o<br />

po<strong>de</strong>r do papado e ainda coloca no mesmo patamar o po<strong>de</strong>r espiritual e o po<strong>de</strong>r temporal,<br />

reavivando, com isso, conflitos tipicamente medievais.<br />

4


Em seu escrito à Nobreza cristã <strong>de</strong> Nação alemã 7 , <strong>Lutero</strong> aponta a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

uma ampla reforma na Igreja. Todavia, essa reforma estava impossibilitada por aquilo que ele<br />

<strong>de</strong>nominava como sendo três muralhas: 1) a hierarquia eclesiástica, 2) a autorida<strong>de</strong> da Igreja e<br />

3) o monopólio do Papa na convocação dos Concílios. <strong>Lutero</strong> resgata a tensão medieval para<br />

tentar abalar o po<strong>de</strong>rio da Igreja Católica, acusando-a <strong>de</strong> colocar-se acima do po<strong>de</strong>r temporal<br />

para não precisar se submeter a ninguém. Acusa-a também <strong>de</strong> <strong>de</strong>legar somente ao Papa a<br />

interpretação do Texto Sagrado para não ser confrontada em suas tradições e fundamentos e,<br />

da mesma forma, evita os <strong>de</strong>bates <strong>de</strong>legando unicamente ao Papa a conclamação dos<br />

Concílios. Os argumentos <strong>de</strong> <strong>Lutero</strong> para <strong>de</strong>rrubar as três muralhas são: segundo a Bíblia (nas<br />

referências I Pedro 2:9 e Apocalipse 5:10) todos foram chamados reis e sacerdotes e, portanto,<br />

a diferença entre um sacerdote e um leigo, por exemplo, seria <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> ofício no<br />

interior da Igreja e não <strong>de</strong> estamento 8 (como acreditavam os clérigos medievais). Com relação<br />

à interpretação do Texto Sagrado po<strong>de</strong>r ser feita unicamente pelo Papa, <strong>Lutero</strong> rebate citando<br />

a própria Bíblia que diz que o Espírito Santo traria a revelação a todos os fiéis.<br />

Ainda nesse mesmo texto, <strong>Lutero</strong> fixa e valoriza o papel da autorida<strong>de</strong> civil 9 que<br />

<strong>de</strong>veria governar visando o bem da comunida<strong>de</strong>. Nesse sentido, caberia a ela a vocação <strong>de</strong><br />

exercer o po<strong>de</strong>r na terra, utilizando a espada, caso necessário:<br />

o po<strong>de</strong>r secular cristão <strong>de</strong>ve exercer seu ofício livre e <strong>de</strong>simpedidamente, sem<br />

consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> quem está atingindo, seja papa, bispo ou sacerdote. Quem é<br />

culpado, sofra! O que o direito canônico afirmou em contrário é pura petulância e<br />

invenção dos romanos. Pois assim diz São Paulo a todos o cristãos: „Todos ser<br />

humano (creio que isto vale também para o papa) <strong>de</strong>ve estar sujeito à autorida<strong>de</strong>,<br />

porque não é sem motivo que traz a espada; com ela serve a Deus, para o castigo dos<br />

maus e louvor dos bons.‟ [Rm 13:1] Também São Pedro: „Sujeitai-vos a todas as<br />

or<strong>de</strong>nações humanas por causa <strong>de</strong> Deus, que assim o quer‟ [I Pe 2:13,15]. 10<br />

Mas é no texto Da autorida<strong>de</strong> secular 11 que <strong>Lutero</strong> trata melhor do po<strong>de</strong>r dos<br />

príncipes, apontando aquilo que eles não <strong>de</strong>veriam fazer. Para ele, a autorida<strong>de</strong> secular aplica-<br />

se ao homem exterior e pecador. Os cristãos verda<strong>de</strong>iros não precisariam <strong>de</strong> leis que<br />

regulassem suas vidas, pois suas condutas seriam irrepreensíveis, já que possuíam a bonda<strong>de</strong><br />

interior advinda da justificação pela fé e fariam muito além do que a lei <strong>de</strong>termina. No reino<br />

7 LUTERO, <strong>Martinho</strong>. À sereníssima po<strong>de</strong>rosíssima Majesta<strong>de</strong> Imperial e à Nobreza Cristã <strong>de</strong> Nação Alemã. In:<br />

<strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong> – Obras Selecionadas. Volume 2: O programa da <strong>Reforma</strong>. Escritos <strong>de</strong> 1520. São Leopoldo:<br />

Editora Sinodal, 2000.<br />

8 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m .p282<br />

9 “Porque ela é instrumento <strong>de</strong> Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva<br />

a espada: é ministro <strong>de</strong> Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra aquele que pratica o mal.” (Romanos<br />

13:4).<br />

10 Op cit p284<br />

11 LUTERO, <strong>Martinho</strong>. Da autorida<strong>de</strong> Secular. Até que ponto se lhe <strong>de</strong>ve obediência. In: DE BONI, Luís<br />

Alberto. Escritos Seletos <strong>de</strong> <strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong>, Tomás Müntzer e João Calvino. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Vozes,<br />

2000.<br />

5


do mundo, as leis civis eram imprescindíveis, <strong>de</strong>vido ao pecado inerente ao homem. As leis<br />

civis fariam com que os não-cristãos fossem “impedidos exteriormente <strong>de</strong> fazer o mal pela<br />

imposição da lei” 12 . Neste mundo somente os princípios evangélicos não seriam o suficiente,<br />

era necessário lançar mão da violência para punir os maus e garantir a paz exterior. Em<br />

virtu<strong>de</strong> disto, até mesmo os verda<strong>de</strong>iros cristãos <strong>de</strong>veriam se submeter às autorida<strong>de</strong>s civis,<br />

pois apesar <strong>de</strong> não serem do mundo, eles estão no mundo, como se vê no trecho:<br />

para que seja mantida a paz, castigado o pecado e sejam combatidos os maus, o<br />

cristão se submete <strong>de</strong> bom grado ao regime da espada: paga impostos, honra a<br />

autorida<strong>de</strong>, auxilia e faz tudo o que po<strong>de</strong> e é útil para a autorida<strong>de</strong>, a fim <strong>de</strong> que<br />

sejam preservados seu po<strong>de</strong>r, honra e temor, embora não necessite <strong>de</strong> nada disso<br />

para si próprio. 13<br />

Quanto à questão da resistência às autorida<strong>de</strong>s e ao combate ao tiranicismo, <strong>Lutero</strong><br />

afirma que a única forma <strong>de</strong> resistência é a pacífica, pois não se po<strong>de</strong> combater a violência<br />

com violência e insiste que é preciso submeter-se inclusive ao tirano, pois toda a autorida<strong>de</strong> é<br />

instituída por Deus (Romanos 13:1 e 2). A única ressalva feita ao po<strong>de</strong>r secular diz respeito às<br />

questões <strong>de</strong> foro íntimo “pois sobre a alma Deus não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar ninguém governar, a não ser<br />

somente Ele”. Assim, nenhum governante <strong>de</strong>veria impor alguma falsa religião ou que “se<br />

creia na Igreja, nos pais da Igreja, nos concílios, mesmo quando não há palavra <strong>de</strong> Deus”. 14<br />

Os cristãos, então, <strong>de</strong>veriam ser em tudo tolerantes às autorida<strong>de</strong>s e obedientes nos<br />

casos que não estivessem relacionados à fé. Para ilustrar isto, <strong>Lutero</strong> cita um caso que estava<br />

ocorrendo em alguns territórios nos quais seus governantes eram contra a <strong>Reforma</strong> e<br />

or<strong>de</strong>navam que seus súditos entregassem nas repartições a tradução do Novo Testamento que<br />

havia sido publicado em 1522. O cristão <strong>de</strong>veria agir da seguinte forma: ele não <strong>de</strong>veria ir até<br />

a repartição entregar a sua cópia do Novo Testamento em alemão, pois estaria traindo a<br />

Cristo, mas caso algum oficial fosse revistar sua casa e tomasse livros e bens a força, ele não<br />

po<strong>de</strong>ria resistir, pois não é correto um cristão agir com violência contra uma violência, ele<br />

<strong>de</strong>veria sofrer tudo por amor a Cristo 15 .<br />

Uma outra questão que também é tratada nesse texto Da autorida<strong>de</strong> secular merece<br />

<strong>de</strong>staque, pois ela sofrerá mudanças nos textos posteriores. No que diz respeito aos hereges,<br />

<strong>Lutero</strong> afirma que o combate à doutrina falsa é papel da Igreja, já que a única arma a ser<br />

usada neste caso é a palavra <strong>de</strong> Deus. “Se essa [a palavra <strong>de</strong> Deus] não tiver êxito, certamente<br />

12 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m. p88.<br />

13 I<strong>de</strong>m, Ibi<strong>de</strong>m p92.<br />

14 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m p102 e 103.<br />

15 I<strong>de</strong>m. Ibi<strong>de</strong>m p109.<br />

6


o po<strong>de</strong>r secular também não terá, mesmo que inun<strong>de</strong> o mundo com sangue”. 16 E segue<br />

dizendo que<br />

Se há heresia, que seja superada com a palavra <strong>de</strong> Deus, como convém. Se, porém,<br />

<strong>de</strong>sembainhais por <strong>de</strong>mais a espada, cuidai para que não venha alguém e vos man<strong>de</strong><br />

embainha-la, e isso não em nome <strong>de</strong> Deus. 17<br />

Porque <strong>Lutero</strong> precisava escrever tanto sobre a vocação da nobreza à espada, sobre<br />

heresias e sobre a forma <strong>de</strong> governar? O Sacro Império Germânico estava bastante<br />

convulsionado com o surgimento <strong>de</strong> diversos pregadores ambulantes e com as tensões<br />

relativas aos resquícios do mundo feudal. No ano <strong>de</strong> 1523 circulou um manifesto intitulado<br />

Os 12 artigos dos camponeses e <strong>Lutero</strong> os analisa na sua Exortação à Paz. Questionando as<br />

boas intenções daqueles que estavam à frente do movimento, <strong>Lutero</strong> tenta pacificar os ânimos<br />

dos camponeses para evitar uma rebelião. A solução luterana é culpar os príncipes, senhores e<br />

clérigos, pois a rebelião seria fruto dos excessos por eles cometidos ao mesmo tempo em que<br />

questiona o conteúdo dos 12 Artigos. Ele diz:<br />

Em primeiro lugar cabe dizer que <strong>de</strong>vemos agra<strong>de</strong>cer por essa traição sobretudo a<br />

vocês, príncipes e senhores, em especial a vocês bispos cegos e clérigos e monges<br />

loucos (...) Na administração pública vocês outra coisa não fazem do que maltratar e<br />

explorar, para alimentar eu luxo e sua arrogância, até que o pobre homem do povo<br />

não queira nem possa mais agüentar. 18<br />

Com relação aos camponeses, <strong>Lutero</strong> adverte-os dizendo que haveria falsos profetas<br />

entre eles, ensinando doutrina enganosa e pecaminosa, usando o nome <strong>de</strong> Deus em vão.<br />

<strong>Lutero</strong> só dá razão aos camponeses numa única reivindicação que era o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> escolher o<br />

próprio pároco, com a ressalva <strong>de</strong> que, para isto, os camponeses <strong>de</strong>veriam ter condições <strong>de</strong><br />

sustentá-lo. Quanto ao diz.imo, <strong>Lutero</strong> afirma que os camponeses estariam cometendo roubo<br />

caso o retivessem. Com relação à servidão, <strong>Lutero</strong> afirmava ser inerente ao reino secular a<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> entre as pessoas, não sendo a-cristão a manutenção <strong>de</strong>ste regime. E as <strong>de</strong>mais<br />

exigências dos camponeses ele se exime <strong>de</strong> questionar e finaliza dizendo que<br />

em nenhum dos lados há algo <strong>de</strong> cristão, tampouco está em jogo uma causa cristã:<br />

ambos, senhores e camponeses, estão tratando <strong>de</strong> justiça e injustiça profana e secular<br />

e <strong>de</strong> bens temporais. 19<br />

Em 1524, quando ocorre a Guerra dos Camponeses, <strong>Lutero</strong> escreve sua Carta aos<br />

Príncipes 20 combatendo fervorosamente o espírito <strong>de</strong> Allstedt, termo que usa para se referir a<br />

16 I<strong>de</strong>m. Ib<strong>de</strong>m p110.<br />

17 I<strong>de</strong>m. Ib<strong>de</strong>m p112 e 113.<br />

18 LUTERO, <strong>Martinho</strong>. Exortação à Paz – Resposta aos 12 artigos do campesinato da Suábia. In: DE BONI,<br />

Luís Alberto (Org). Escritos Seletos <strong>de</strong> <strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong>, Tomás Müntzer e João Calvino. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Editora Vozes, 2000. p126.<br />

19 I<strong>de</strong>m. Ib<strong>de</strong>m p 148.<br />

20 LUTERO, <strong>Martinho</strong>. Carta aos Príncipes da Saxônia sobre o espírito subversivo. In: DE BONI, Luís Alberto<br />

(Org). Escritos Seletos <strong>de</strong> <strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong>, Tomás Müntzer e João Calvino. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Vozes,<br />

2000.<br />

7


Thomas Müntzer, acusando-o <strong>de</strong> estar sendo usado pelo satã para corromper os camponeses<br />

ao uso da violência já que queriam “resolver a causa pela espada”. Ele então diz:<br />

Altezas, aqui não se po<strong>de</strong> dormir nem per<strong>de</strong>r tempo, pois Deus o exigirá e quererá<br />

ter resposta quanto à negligência na serieda<strong>de</strong> da espada que lhes foi confiada.<br />

Igualmente não seria perdoável perante as pessoas e o mundo que vossas altezas<br />

tolerassem e admitissem punhos subversivos e criminosos. 21<br />

Como a pacificação dos camponeses não foi possível, <strong>Lutero</strong> escreveu Contra as<br />

hordas salteadoras e assassinas dos camponeses colocando-se terminantemente contra eles e<br />

não apenas contra Müntzer, como no escrito anterior. Neste texto <strong>Lutero</strong> classifica a todos<br />

como heréticos e convoca os príncipes a exercerem sua vocação à espada e exterminarem os<br />

maus (camponeses revoltosos). Para <strong>Lutero</strong>, os camponeses estariam cometendo três graves<br />

pecados: 1) rebelião contra a autorida<strong>de</strong> constituída, 2) roubo e saque contra conventos e<br />

castelos e 3) blasfêmia contra Deus por se <strong>de</strong>nominarem cristãos e encobrirem com o<br />

Evangelho seus atos. <strong>Lutero</strong> mais uma vez conclama os príncipes, pois<br />

não cabem paciência e misericórdia; aqui é a hora da espada e da ira, e não da graça.<br />

(...) Pois um príncipe e senhor <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar nesse caso que ele é ministro <strong>de</strong> Deus<br />

e servidor <strong>de</strong> sua ira, que lhe foi confiada a espada par domínio <strong>de</strong> tais patifes e está<br />

pecando diante <strong>de</strong> Deus se não castiga e combate e não <strong>de</strong>sempenha a sua função, na<br />

mesma medida que pecaria aquele que matasse, embora a espada não lhe tivesse<br />

sido confiada. 22<br />

Vemos o <strong>de</strong>senho político <strong>de</strong> <strong>Lutero</strong> nesses textos e como foi possível a aliança com<br />

os príncipes. No entanto, faz-se necessário <strong>de</strong>stacar mais dois pontos do pensamento luterano<br />

que dizem respeito ao po<strong>de</strong>r secular. Para <strong>Lutero</strong>, a nobreza cristã <strong>de</strong> nação alemã <strong>de</strong>veria<br />

exercer a sua vocação, <strong>de</strong>veria tomar o Sacro Império Romano-Germânico das mãos <strong>de</strong> Roma<br />

e governá-lo segundo os <strong>de</strong>sígnios divinos, tornando a Alemanha uma nação gran<strong>de</strong> que não<br />

seria conivente com os pecados do papa.<br />

Embora o papa tenha roubado o Império Romano ou o nome do Império Romano do<br />

imperador legítimo a força e injustamente e o conferido a nós, alemães, é certo que<br />

nisso Deus fez o uso da malda<strong>de</strong> do papa para dar esse império à nação alemã (...)<br />

Não obstante, infelizmente, pagamos preço alto <strong>de</strong>mais por esse império, por causa<br />

da perfídia e malda<strong>de</strong> papal, com incalculável <strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> sangue, supressão<br />

da nossa liberda<strong>de</strong>, perda e roubo <strong>de</strong> todos os nossos bens, principalmente das<br />

igrejas e prebendas, suportando incrível frau<strong>de</strong> e vergonha. Nós temos o título do<br />

império; o papa, entretanto (...) tem tudo o que possuímos (...) Como, pois, o<br />

império nos foi dado pelo <strong>de</strong>sígnio <strong>de</strong> Deus e pelo propósito <strong>de</strong> gente ruim, sem<br />

culpa nossa, não aconselho que se o largue, mas que se o governe <strong>de</strong>vidamente no<br />

temor <strong>de</strong> Deus, enquanto lhe aprouver. 23<br />

21 Op cit p155.<br />

22 LUTERO, <strong>Martinho</strong>. Contra as hordas salteadoras e assassinas dos camponeses. In: DE BONI, Luís Alberto<br />

(Org). Escritos Seletos <strong>de</strong> <strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong>, Tomás Müntzer e João Calvino. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Vozes,<br />

2000. p170<br />

23 LUTERO, <strong>Martinho</strong>. À sereníssima po<strong>de</strong>rosíssima Majesta<strong>de</strong> Imperial e à Nobreza Cristã <strong>de</strong> Nação Alemã. In:<br />

<strong>Martinho</strong> <strong>Lutero</strong> – Obras Selecionadas. Volume 2: O programa da <strong>Reforma</strong>. Escritos <strong>de</strong> 1520. São Leopoldo:<br />

Editora Sinodal, 2000. p305<br />

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O império foi conferido à nação alemã por vonta<strong>de</strong> divina, portanto, caberia a nobreza<br />

governá-lo inteiramente, livrando-o das taxações e sujeições à Roma. O po<strong>de</strong>r jurisdicional da<br />

Igreja é reduzido, cabendo às autorida<strong>de</strong>s seculares todas as formas <strong>de</strong> coerção já que<br />

o papa não <strong>de</strong>ve ter qualquer po<strong>de</strong>r sobre o imperador, senão <strong>de</strong> ungi-lo e coroa-lo<br />

sobre o altar (...) muito menos <strong>de</strong>ve [o imperador] jurar obediência e fiel sujeição ao<br />

papa, conforme o têm exigido <strong>de</strong>scaradamente os papas, como se tivessem direito a<br />

isso. 24<br />

Para finalizarmos, no que diz respeito ao governo, <strong>Lutero</strong> instrui os príncipes a serem<br />

sábios como o foi Salomão. Os príncipes <strong>de</strong>veriam ser mais instruídos do que seus juristas e<br />

serem capazes <strong>de</strong> “dominar o direito com a mesma firmeza com que se conduz a espada” para<br />

saberem como agir em “situações imprevistas”. Para ele, o príncipe <strong>de</strong>veria “proce<strong>de</strong>r com<br />

temor e não confiar nos livros mortos, nem cabeças vivas, mas ater-se somente a Deus, orar<br />

com insistência por entendimento reto (...) para governar seus súditos com sabedoria”, pois<br />

nos casos mais inusitados e imprevistos nenhum papa, jurista ou livro po<strong>de</strong> indicar-lhe a<br />

sentença correta, <strong>de</strong>vendo agir apenas segundo a livre razão, anterior e superior a todas as<br />

coisas. E completa: “o direito escrito <strong>de</strong>veria ficar sujeito à razão, pois surgiu <strong>de</strong>la, que é a<br />

fonte <strong>de</strong> todo o direito. Não se <strong>de</strong>veria (...) aprisionar a razão com letras”. 25<br />

Para <strong>Lutero</strong>, o que estava em questão era a manutenção <strong>de</strong> um mundo que já se<br />

<strong>de</strong>sfazia, a saber o medieval. Ao negar a importância dos juristas e conselheiros, ao anular o<br />

direito à rebelião, ao esvaziar o po<strong>de</strong>r jurisdicional da Igreja e exaltar o po<strong>de</strong>r secular, <strong>Lutero</strong><br />

estava tentando frear o avanço daquilo que chamamos hoje <strong>de</strong> mundo mo<strong>de</strong>rno, com todas as<br />

suas estruturas políticas, sociais e econômicas. A socieda<strong>de</strong> luterana seria totalmente<br />

dominada pelos príncipes e senhores feudais, já que sobre eles ninguém po<strong>de</strong>ria regular, pois<br />

a Igreja estaria a eles submetida e a rebelião, ainda que com motivos justos, era um pecado<br />

gravíssimo.<br />

Em outras palavras,<br />

as <strong>Reforma</strong>s religiosas e o lema paulino <strong>de</strong> que não 'existe po<strong>de</strong>r senão o <strong>de</strong> Deus',<br />

eram apenas a outra face da mesma moeda, a do lento e <strong>de</strong>scontínuo processo <strong>de</strong><br />

secularização da política que começou com o mito humanista da glória, <strong>de</strong>saguando<br />

na experiência das <strong>Reforma</strong>s Religiosas e na constituição do absolutismo. 26<br />

As categorias teológicas e doutrinárias que constituem o corpus <strong>de</strong>ssas diferentes<br />

religiões que surgem no século XVI nos permitem perceber os conflitos sociais que<br />

marcavam o cotidiano das pessoas e as novas propostas políticas que estavam surgindo<br />

naquele tempo no Sacro Império Romano Germânico, num contexto específico, e na Europa,<br />

24<br />

I<strong>de</strong>m. Ib<strong>de</strong>m. p334 e 335.<br />

25<br />

LUTERO, <strong>Martinho</strong>. Da autorida<strong>de</strong> Secular. Op Cit, p123.<br />

26<br />

PATUZZI. Op cit p 172.<br />

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numa perspectiva mais ampla. Esses elementos teológicos e doutrinários po<strong>de</strong>m ser<br />

examinados <strong>de</strong>ssa forma, como o fez Ernst Bloch 27 , uma vez que, apesar da filosofia<br />

humanista e da exaltação da razão, era impossível, naquele momento, se imaginar um mundo<br />

sem Deus.<br />

Com um mundo impregnado por Deus, mas constituido por homens, não po<strong>de</strong>mos<br />

analisar a religião como uma relação entre os fiéis e a entida<strong>de</strong> divina, e sim como uma<br />

relação entre os próprios homens 28 . A <strong>Reforma</strong> <strong>Protestante</strong> não foi um tribunal que julgou e<br />

con<strong>de</strong>nou a Igreja Católica em uma <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> Deus e do puro Evangelho. Foi antes <strong>de</strong> tudo,<br />

uma possibilida<strong>de</strong> criada para se reorganizar o mundo e para reformular a moral que o regia.<br />

27 BLOCH, Ernst. Thomas Müntzer, teólogo <strong>de</strong> la Revolución. Madrid: La balsa <strong>de</strong> la Medusa, 2002.<br />

28 FEBVRE, Lucien. Une question mal posée: les origines <strong>de</strong> la Réforme Française et le problème <strong>de</strong>s causes <strong>de</strong><br />

la Réforme. In Au Coeur Réligieux du XVIe siècle. Paris: École <strong>de</strong>s Hautes Étu<strong>de</strong>s em Sciences Sociales, 1983,<br />

p. 7-95.<br />

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