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A Presunção de Inocência e a "Lei Seca"

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A <strong>Presunção</strong> <strong>de</strong> <strong>Inocência</strong> e a "<strong>Lei</strong> Seca"<br />

Há dois postulados relevantes, que merecem inaugurar a abordagem sobre a edição da <strong>Lei</strong> 11.705,<br />

<strong>de</strong> 19 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008: a) os fins, por mais positivos que se possam apresentar, não justificam os<br />

meios, quando se tratam <strong>de</strong> direitos e garantias humanas fundamentais; b) no Estado Democrático<br />

<strong>de</strong> Direito, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo. Diante disso, não é <strong>de</strong>mais<br />

concluir que parte da <strong>de</strong>nominada <strong>Lei</strong> Seca é inconstitucional. Não bastasse, a alteração do tipo<br />

penal incriminador do art. 306 da <strong>Lei</strong> 9.503/07, se não for tratada com a cautela merecida, em<br />

homenagem ao princípio da legalida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> trazer sérias conseqüências.<br />

Em primeiro plano, vale relembrar que "ninguém será consi<strong>de</strong>rado culpado até o trânsito em<br />

julgado <strong>de</strong> sentença penal con<strong>de</strong>natória" (art. 5º,LVII, CF); "o preso será informado <strong>de</strong> seus<br />

direitos, entre os quais o <strong>de</strong> permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e <strong>de</strong><br />

advogados" (art. 5º, LXIII, CF); "ninguém será privado da liberda<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> seus bens sem o <strong>de</strong>vido<br />

processo legal" (art. 5º, LIV, CF); "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos<br />

acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla <strong>de</strong>fesa, com os meios e recursos a ela<br />

inerentes" (art. 5º, LV, CF). A <strong>de</strong>corrência natural da conjugação <strong>de</strong>sses princípios e essenciais<br />

garantias individuais é a <strong>de</strong> que ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo<br />

tenetur se <strong>de</strong>tegere). Aliás, esta garantia já foi asseverada e ratificada inúmeras vezes pelo Supremo<br />

Tribunal Fe<strong>de</strong>ral. Se assim é no contexto criminal, com muito mais razão <strong>de</strong>ve ser aplicado e<br />

cumprido nas <strong>de</strong>mais esferas do Direito.<br />

A primitiva redação do art. 277 da <strong>Lei</strong> 9.503/07 era a seguinte: "Todo condutor <strong>de</strong> veículo<br />

automotor, envolvido em aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> trânsito ou que for alvo <strong>de</strong> fiscalização <strong>de</strong> trânsito, sob<br />

suspeita <strong>de</strong> haver excedido os limites previstos no artigo anterior, será submetido a testes <strong>de</strong><br />

alcoolemia, exames clínicos, perícia, ou outro exame que por meios técnicos ou científicos, em<br />

aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado" (grifamos). Os limites<br />

previstos no art. 276 eram <strong>de</strong> seis <strong>de</strong>cigramas <strong>de</strong> álcool por litro <strong>de</strong> sangue.<br />

A doutrina e a jurisprudência foram praticamente unânimes em apontar a inviabilida<strong>de</strong> da<br />

obrigação instituída em lei, que levaria o motorista a, necessariamente, soprar o bafômetro ou a se<br />

submeter a outros exames invasores, tais como a coleta forçada <strong>de</strong> sangue. Seria um modo <strong>de</strong><br />

forçar o indivíduo a produzir prova contra si mesmo. Logo, dada a or<strong>de</strong>m pelo agente do Estado<br />

para que fosse soprado o bafômetro, havendo recusa, não po<strong>de</strong>ria ser o motorista autuado pelo<br />

crime <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobediência, como se aventou à época.<br />

Contornando essa posição, mas, nos limites da constitucionalida<strong>de</strong>, editou-se a <strong>Lei</strong> 11.275/06,<br />

alterando-se a redação do art. 277: "Todo condutor <strong>de</strong> veículo automotor, envolvido em aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />

trânsito ou que for alvo <strong>de</strong> fiscalização <strong>de</strong> trânsito, sob suspeita <strong>de</strong> dirigir sob a influência <strong>de</strong> álcool<br />

será submetido a testes <strong>de</strong> alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios<br />

técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu<br />

estado". No § 2º, inseriu-se: "No caso <strong>de</strong> recusa do condutor à realização dos testes, exames e da<br />

perícia previstos no caput <strong>de</strong>ste artigo, a infração po<strong>de</strong>rá ser caracterizada mediante a obtenção<br />

<strong>de</strong> outras provas em direito admitidas pelo agente <strong>de</strong> trânsito acerca dos notórios sinais <strong>de</strong><br />

embriaguez, excitação ou torpor, resultantes do consumo <strong>de</strong> álcool ou entorpecentes, apresentados<br />

pelo condutor" (grifos nossos). Não mais se fazia referência ao nível <strong>de</strong> seis <strong>de</strong>cigramas <strong>de</strong> álcool<br />

por litro <strong>de</strong> sangue, porém se atingiu o correto status constitucional para lidar com o tema.<br />

Em outros termos, a <strong>Lei</strong> 11.275/06 permitiu a junção da fiscalização com a proteção ao indivíduo.


O condutor <strong>de</strong> veículo automotor não po<strong>de</strong> dirigir sob a influência <strong>de</strong> álcool. Será submetido,<br />

querendo, a testes <strong>de</strong> alcoolemia, como o bafômetro. Recusando-se, o que é patente direito seu, a<br />

prova po<strong>de</strong>rá ser obtida <strong>de</strong> outra forma, como, por exemplo, por testemunhas. Qualquer pessoa, em<br />

sã consciência, consegue <strong>de</strong>tectar alguém embriagado ou sob influência <strong>de</strong> álcool ou entorpecente.<br />

Por outro lado, se o nível <strong>de</strong> ingestão for tão insignificante que ninguém consiga notar, certamente,<br />

nem mesmo se po<strong>de</strong>rá consi<strong>de</strong>rar o condutor dirigindo sob influência <strong>de</strong> álcool. Não se po<strong>de</strong> estar<br />

sob influência <strong>de</strong> algo que ninguém consegue perceber.<br />

Não po<strong>de</strong>ria a polícia trabalhar com aquela redação do Código <strong>de</strong> Trânsito Brasileiro? O que<br />

impediria o trabalho <strong>de</strong> fiscalização? Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que exigiria maior esforço e atenção dos<br />

policiais para <strong>de</strong>tectar a pessoa que dirigisse sob influência do álcool. E, assim sendo, po<strong>de</strong>-se<br />

aduzir ser essa a função dos agentes do Estado: fiscalizar, respeitando os direitos humanos<br />

fundamentais. A união <strong>de</strong>sses dois elementos sempre torna a tarefa mais custosa. Por isso, opta-se,<br />

no Brasil, pelo caminho mais simples: ferir direitos e garantias fundamentais. Tudo é feito para<br />

facilitar a ação dos agentes estatais, com o beneplácito da mídia, que, comprando a idéia,<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia a campanha nacional, pela TV, rádio, jornais e revistas, <strong>de</strong>monstrando as maravilhas<br />

da nova lei e a diminuição dos aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito. Fundando-se em estatísticas conseguidas<br />

rapidamente, sabe-se lá como, já se po<strong>de</strong> dizer que, a partir <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2008 (pouco mais <strong>de</strong> um<br />

mês), estamos todos mais seguros no caótico trânsito brasileiro.<br />

Porém, a <strong>Lei</strong> 11.705/08 não teve cautela alguma em massacrar direitos individuais. Alterou a<br />

redação dos §§ do art. 277 e inseriu as seguintes preciosida<strong>de</strong>s: "§ 2º. A infração prevista no art.<br />

165 [dirigir sob influência <strong>de</strong> álcool] <strong>de</strong>ste Código po<strong>de</strong>rá ser caracterizada pelo agente <strong>de</strong> trânsito<br />

mediante a obtenção <strong>de</strong> outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais <strong>de</strong><br />

embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor" (grifamos); "§ 3º. Serão aplicadas as<br />

penalida<strong>de</strong>s e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 <strong>de</strong>ste Código ao condutor que se<br />

recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput <strong>de</strong>ste artigo". O caput<br />

prevê os testes invasores, como o bafômetro ou a coleta <strong>de</strong> sangue. A penalida<strong>de</strong> para quem dirige<br />

sob a influência <strong>de</strong> álcool, do art. 165 referido, é multa (cinco vezes) cumulada com suspensão do<br />

direito <strong>de</strong> dirigir por doze meses.<br />

Ora, se o § 2º menciona que o agente da fiscalização po<strong>de</strong> obter a caracterização da infração do<br />

art. 165 valendo-se <strong>de</strong> outras provas em direito admitidas, por que inserir o § 3º, que é a obrigação<br />

<strong>de</strong> se auto-acusar? A recusa em soprar o bafômetro enseja a imediata aplicação da sanção<br />

administrativa, ou seja, presume-se culpa, pois o condutor per<strong>de</strong>rá a sua habilitação por um ano e<br />

pagará elevada multa. Eis aí a presunção <strong>de</strong> culpa e o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> produzir prova contra si mesmo. A<br />

<strong>Lei</strong> 11.705/08 foi editada para facilitar o trabalho da fiscalização, sem o menor pudor em<br />

resguardar relevantes direitos e garantias fundamentais. Antes <strong>de</strong>la, o agente <strong>de</strong> trânsito já tinha<br />

condições plenas <strong>de</strong> fiscalizar quem dirigisse embriagado ou sob influência <strong>de</strong> álcool. Entretanto,<br />

po<strong>de</strong>ria ter mais trabalho e haveria <strong>de</strong> agir com maior empenho e treinamento. Mas isso não soou<br />

importante para o Estado. Ao contrário, em qualquer área, mormente da segurança pública, preferese<br />

o caminho mais fácil. Aparelhar os órgãos estatais e treinar o seu pessoal são ativida<strong>de</strong>s muito<br />

mais custosas do que editar uma lei inconstitucional, voltada à socieda<strong>de</strong> brasileira, formada em<br />

gran<strong>de</strong> parte por pessoas leigas e outras tantas analfabetas e ignorantes <strong>de</strong> seus direitos básicos.<br />

Contando, ainda, com o apoio da imprensa, sob o prisma <strong>de</strong> que os fins justificam os meios, está<br />

construída a armação para solapar a garantia da presunção <strong>de</strong> inocência e <strong>de</strong> que ninguém é<br />

obrigado a produzir prova contra si mesmo.<br />

Na parte penal, conseguiu-se a proeza <strong>de</strong> piorar - e muito - a infração penal do art. 306 do Código<br />

<strong>de</strong> Trânsito Brasileiro. Antes, bastaria conduzir veículo automotor na via pública, sob a influência<br />

<strong>de</strong> álcool ou substância <strong>de</strong> efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outrem.<br />

Agora, é preciso conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração <strong>de</strong> álcool


por litro <strong>de</strong> sangue igual ou superior a 6 <strong>de</strong>cigramas... Ora, anteriormente, qualquer prova<br />

testemunhal seria facilmente aceita para <strong>de</strong>monstrar que o condutor dirigia sob influência <strong>de</strong> álcool<br />

(qualquer quantida<strong>de</strong>), causando perigo à segurança viária. A partir da edição da <strong>Lei</strong> 11.705/08,<br />

somente se consegue <strong>de</strong>monstrar que alguém dirige com a precisa e <strong>de</strong>terminada concentração <strong>de</strong><br />

seis <strong>de</strong>cigramas <strong>de</strong> álcool por litro <strong>de</strong> sangue fazendo-se exame pericial. Porém, se ninguém é<br />

obrigado a produzir prova contra si mesmo, como o Estado preten<strong>de</strong> ver aperfeiçoado o novo tipo<br />

penal do art. 306? Qual a justificativa da alteração? A impressão que passa é apertar o cerco no<br />

campo administrativo e garantir a impunida<strong>de</strong> total no cenário penal. Explicamos: se o motorista<br />

ingeriu álcool, não <strong>de</strong>ve soprar o bafômetro para não produzir prova contra si mesmo. Com isso,<br />

per<strong>de</strong> a carteira. Mas, pelo menos, não será criminalmente punido. O Estado consegue o que<br />

almeja: <strong>de</strong>safoga a <strong>de</strong>legacia e o fórum, pois não há processo criminal, mas atinge o cidadão do<br />

mesmo modo, retirando-lhe a habilitação por um ano e fazendo-o pagar polpuda multa.<br />

A situação é grave. Cada um <strong>de</strong>ve estar bem ciente <strong>de</strong> que soprar o tal bafômetro, se ingeriu<br />

alguma bebida, po<strong>de</strong> levá-lo, inadvertidamente, ao cárcere. Afinal, ao soprar o tal aparelho, se o<br />

nível apontado for igual ou superior a 6 <strong>de</strong>cigramas por litro <strong>de</strong> sangue, <strong>de</strong> uma só vez, ele fornece<br />

duas armas ao Estado: per<strong>de</strong> a carteira <strong>de</strong> habilitação, por doze meses, pagando elevada multa e,<br />

pior, sofre processo criminal, contra o qual dificilmente conseguirá <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r-se, pois se fez prova<br />

pericial da embriaguez.<br />

O cidadão <strong>de</strong> bem precisa ser alertado <strong>de</strong> que não se ataca o mal com armas vis. Permitindo-se a<br />

invasão no campo dos direitos e garantias fundamentais, amanhã nada impe<strong>de</strong> que se edite lei (já<br />

houve situação similar, no passado), prevendo que todo réu, valendo do seu direito ao silêncio, será<br />

consi<strong>de</strong>rado culpado. Estaria instituída a confissão obrigatória. Mas, em tese, não haveria<br />

problema, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o índice <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong> diminuísse. E, mais, todos po<strong>de</strong>riam ficar felizes se<br />

os jornais noticiassem que após a <strong>Lei</strong> da Confissão a socieda<strong>de</strong> está mais segura. É sempre<br />

interessante observar que a menor tentativa <strong>de</strong> instituir a censura no País, por qualquer modo,<br />

fomenta o <strong>de</strong>sespero conjunto dos órgãos <strong>de</strong> comunicação e <strong>de</strong> seus empregados. Porém, quando,<br />

no campo jurídico, arranha-se direito fundamental, a mesma reação, infelizmente, não é captada.<br />

Sofredor é o Estado Democrático <strong>de</strong> Direito na eterna luta entre o fraco indivíduo e o forte Estado.<br />

Guilherme <strong>de</strong> Souza Nucci: Juiz <strong>de</strong> Direito;<br />

Livre-Docente em Direito Penal pela PUC/<br />

SP; Doutor e Mestre em Processo Penal<br />

pela PUC/SP. Autor <strong>de</strong> diversas obras<br />

publicadas pela Editora RT.

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