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PROPRIEDADES SEMÂNTICO-PRAGMÁTICAS COMO ... - GELNE

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<strong>PROPRIEDADES</strong> <strong>SEMÂNTICO</strong>-<strong>PRAGMÁTICAS</strong> <strong>COMO</strong> INDÍCIOS DO<br />

PAPEL DESEMPENHADO PELO VERBO “IR” NA PERÍFRASE [V1 (E) V2]<br />

Introdução<br />

Josele Julião Laurentino (UFRN/PIBIC)<br />

josele-laurentino@hotmail.com.br<br />

Verbos a exemplo de IR, PEGAR, CHEGAR, VIR e VIRAR, quando<br />

empregados na perífrase [V1 (E) V2] no português brasileiro contemporâneo, exercem,<br />

na posição de V1, função gramatical, apresentando-se como uma espécie de verbo<br />

auxiliar. Dessa forma, eles perdem seu caráter de palavra plena significadora de<br />

movimento, e passam a desempenhar uma função diferente junto ao segundo verbo<br />

(V2), que, por sua vez, funciona como verbo principal: V1 recebe as mesmas marcas de<br />

modo, tempo, aspecto, número e pessoa de V2, mas não seleciona argumentos. A<br />

conjunção E pode ou não entremear essa construção.<br />

Fundamentados no referencial teórico do funcionalismo linguístico norteamericano,<br />

neste trabalho, focalizamos o verbo IR como nosso objeto de estudo com o<br />

objetivo de analisar propriedades semântico-pragmáticas que nos levem a caracterizar e<br />

a definir a função que ele desempenha na perífrase supracitada. Para tanto, coletamos<br />

dados de fala nos corpora Discurso & Gramática correspondentes às cidades de Natal<br />

(RN) e do Rio de Janeiro (RJ) (cf. FURTADO DA CUNHA, 1998; VOTRE;<br />

OLIVEIRA, 1995). A título de ilustração, vejamos alguns exemplos do fenômeno aqui<br />

focalizado:<br />

(1) Todo mundo votou no Tancredo. O Tancredo vai e morre, aí fica o Sarney<br />

pra bagunçar toda a economia. (R., Rio de Janeiro)<br />

(2) Desde um dia que eu vim pra cá de bermuda curta, ela foi mandou eu<br />

embora. (V., Rio de Janeiro)<br />

(3) Aí eu sei quando eu cheguei, aí ele foi e disse: “Rose, olha, eu não dormi<br />

ontem à noite”. (R., Natal)<br />

(4) Aí o pessoal vai e tira. Aí o professor tem que pegar uma carteira que o<br />

aluno tá sentado, uma carteira que esteja vaga. (G., Natal)<br />

O verbo IR chegou a se tornar essa espécie de verbo auxiliar por meio do<br />

processo de mudança linguística chamado de gramaticalização. Nesse processo, itens<br />

lexicais, isto é, palavras plenas de significado (nomes e verbos), ganham função<br />

gramatical – exercida por palavras que têm significado funcionais: preposições,<br />

conjunções, demonstrativos, verbos auxiliares etc. De acordo com o funcionalismo, a<br />

gramática é “um organismo maleável, que se adapta às necessidades cognitivas e<br />

comunicativas dos falantes” (FURTADO DA CUNHA, 2008, p. 164). Logo, a cada dia<br />

emergem na língua novas estruturas para exercerem uma função existente e, vice-versa,<br />

novas funções emergem para uma estrutura existente.<br />

É fato que a língua sofre pressão do uso que se faz dela nas práticas sociais.<br />

Sobre isso, Tavares (2012, p. 5) afirma que:<br />

para tentar chegar a um mútuo entendimento, os indivíduos<br />

envolvidos em uma situação de interação precisam negociar e adaptar<br />

formas linguísticas para diferentes funções. Em razão dessas<br />

adaptações, é possível que surja uma estratégia linguística inovadora


para a realização de uma dada função gramatical. Se tal estratégia<br />

passar a ser repetidamente utilizada por vários indivíduos na indicação<br />

dessa função, pode acabar se tornando parte da gramática da língua.<br />

O uso do verbo IR sob enfoque é um fato característico da oralidade informal.<br />

Quando aparece na escrita, o faz em gêneros textuais que retratam diretamente a fala<br />

cotidiana, como as tirinhas, por exemplo, e naqueles marcados pelo estilo informal, que<br />

se distanciam da norma-padrão. Isso faz com que esse uso do verbo IR não seja<br />

abordado na maioria dos livros didáticos e das gramáticas, assim como dificilmente é<br />

estudado nos níveis básicos de ensino, já que se privilegiam, na escola, as construções<br />

previstas pela gramática normativa. Assim, a perífrase em questão é usada<br />

corriqueiramente, mas pouco se tem consciência do que ela realmente significa.<br />

No entanto, esse fenômeno tem despertado a atenção de muitos estudiosos da<br />

língua, e variadas são as propostas de interpretação a respeito dele. Por exemplo,<br />

Bechara (2004), apoiando-se no que diz Coseriu (1977), defende que a função exercida<br />

por verbos como IR na construção [V1 (E) V2] na posição de V1 é a de aspectualizador<br />

global, ou seja, serve para indicar que o evento expresso por V2 não é processual, mas<br />

indivisível e pontual. Sobre o verbo nessa função, o autor diz o seguinte: “para acentuar<br />

a globalidade, acompanha-se de todas as significações ‘enfáticas’ do modo de falar,<br />

como ‘de fato’, ‘com efeito’, ‘rápido’, ‘inesperado’, ‘surpreendente’, ‘terminantemente’,<br />

pois pode ocorrer a determinação expressa como ‘não-cursiva’ ou ainda como ‘nãoparcializante’,<br />

como ‘redundante’” (BECHARA, 2004, p. 217).<br />

Dutra (2003), diferentemente, aponta que PEGAR, em [PEGAR (E) V2], tratase<br />

de uma forma “desverbalizada” com a função discursiva de realçar eventos na<br />

sequência narrativa. Segundo ela, em casos como “o menino pegou e pegou três peras<br />

na cestinha”, o primeiro verbo “traduz um movimento de um fato para outro,<br />

salientando o evento a seguir como decorrente de outro(s) no desenrolar da narrativa”<br />

(op. cit., p. 98).<br />

Rodrigues (2005) atribui a verbos como IR, PEGAR e CHEGAR, na perífrase<br />

em estudo, chamada por ela de CFF (construção do tipo foi fez), a função discursivopragmática<br />

de dramatizar ou enfatizar a ação expressa pelo segundo verbo, dando<br />

destaque, portanto, ao trecho do texto em que a construção se apresenta. A autora opõese<br />

a ideia de que esses verbos, na posição de V1, sejam auxiliares, visto que fogem do<br />

padrão de auxiliarização do português brasileiro. Ela diz ainda que “as CFFs não<br />

possuem uma função gramatical explicita como as construções com verbos auxiliares”.<br />

Tavares (2005), a exemplo de Bechara (2004), admite que o verbo IR na<br />

construção [IR (E) V2] funciona como um verbo auxiliar aspectualizador global, e que,<br />

por isso, exprime nuanças de sentidos referentes à pontualidade e/ou à repentinidade<br />

e/ou à surpresa. Dessa forma, pode trazer também a ideia de ênfase e de realce para a<br />

ação denotada por V2, como defendem Dutra (2003) e Rodrigues (2005). Além do<br />

mais, reconhece a possibilidade de tal verbo indicar avaliações de frustração, lamento,<br />

espanto, irritação ou crítica, bem como, em alguns contextos, aportar para uma tomada<br />

de iniciativa, geralmente súbita, por parte do sujeito agente da perífrase em relação ao<br />

evento expresso por V2.<br />

Com base nos resultados por nós obtidos, descrevemos, na seção 1,<br />

propriedades semântico-pragmáticas da construção [IR (E) V2], o que nos permite<br />

analisar com mais profundidade, na seção 2, a validade das propostas elencadas acima,<br />

visto que os grupos de fatores que organizamos para aplicar aos dados testam traços<br />

semântico-pragmáticos que vem sendo apresentados, na literatura da área, como típicos<br />

da construção em tela.


Construções semelhantes a que focalizamos nesta pesquisa também ocorrem<br />

em outras línguas, a exemplo do espanhol e do inglês, constituindo-se sempre um<br />

desafio de categorização devido à complexidade semântica que carregam. Acreditamos<br />

que, com este estudo, estamos contribuindo para o deciframento desse fenômeno<br />

linguístico, ampliando assim as noções acerca de seu comportamento e alimentando<br />

investigações posteriores.<br />

1. Propriedades do verbo IR na construção [IR (E) V1]<br />

O primeiro passo de nossa análise foi a coleta de dados de fala nos corpora<br />

Discurso & Gramática correspondentes às cidades de Natal (RN) e do Rio de Janeiro<br />

(RJ). Coletamos um total de 63 dados da construção em estudo. Depois disso, partimos<br />

para a codificação desses dados quanto a cinco propriedades semântico-pragmáticas,<br />

quais sejam: (a) pontualidade do evento referido pela construção [IR (E) V2]; (b)<br />

subtaneidade do evento referido pela construção [IR (E) V2]; (c) previsibilidade do<br />

evento referido pela construção [IR (E) V2]; (d) tomada de iniciativa à ação por parte do<br />

sujeito da construção [IR (E) V2]; (e) natureza da avaliação do falante relativamente ao<br />

evento referido pela construção [IR (E) V2]. Após, efetuamos o tratamento quantitativo<br />

dos dados para a obtenção de frequências e porcentagens, organizando os resultados<br />

obtidos em cinco tabelas. A seguir, apresentamos e descrevemos tais resultados.<br />

Tabela 1: Distribuição da perífrase [IR (E) V2] quanto à pontualidade<br />

PONTUALIDADE Freq. %<br />

Pontual 41 65<br />

Não pontual 22 35<br />

TOTAL 63 100<br />

No que tange à pontualidade, 41 (65%) dos dados nos revelam que a ação<br />

expressa por V2 é de aspecto pontual e 22 (35%) dos dados que a ação é de aspecto não<br />

pontual. Vejamos dois exemplos:<br />

(5) Pontual: Mas depois com a repreensão da mãe... ele foi pegou a criança...<br />

botou nos ombros e levou a criança. (Natal, informante G.)<br />

(6) Não pontual: Depois de alguns minutos ele estava pronto. Você vai tira a<br />

água e bota o molho. (Rio de Janeiro, informante P.)<br />

Tabela 2: Distribuição da perífrase [IR (E) V2] quanto à subtaneidade<br />

SUBTANEIDADE Freq. %<br />

Súbito 9 14<br />

Não súbito 54 86<br />

TOTAL 63 100<br />

Quanto à subtaneidade, notamos que, em 9 (14%) dos dados, V2 tem caráter<br />

súbito, e que, em 54 (86%) dos dados, V2 tem caráter não súbito. Vejamos dois<br />

exemplos:


(7) Súbito: Um dia eu estava andando de bicicleta lá em casa, aí um garoto<br />

foi me fechou com a bicicleta, aí eu fui dei de cara no muro. (Rio de Janeiro,<br />

informante A.)<br />

(8) Não súbito: Porque ela não conhecia o garoto, não sabia que ele era tão<br />

falso, aí ela foi me contou assim. (Rio de Janeiro, informante P. F.)<br />

Tabela 3: Distribuição da perífrase [IR (E) V2] quanto à previsibilidade<br />

PREVISIBILIDADE Freq. %<br />

Previsível/esperado 9 14<br />

Imprevisível 8 13<br />

Possível 46 73<br />

TOTAL 63 100<br />

Relativamente à previsibilidade, temos que, em 9 (14%) dos dados, o evento<br />

denotado por V2 é previsível, em 46 (73%) dos dados o evento é possível e em 8 (13%)<br />

dos dados o evento é imprevisível. Vejamos três exemplos:<br />

(9) Previsível/esperado: Era aqueles que tinha que colocar uma ficha, aí você<br />

botava a música que queria, né? E a noviça chegou, olhou, aí foi e colocou uma<br />

música. (Natal, informante S.)<br />

(10) Imprevisível: Eu e minha mãe fomos comprar uma roupa igual aquela,<br />

mas quando cheguei na loja era a última roupa e a moça foi e comprou. (Rio de<br />

Janeiro, informante A. M.)<br />

(11) Possível: Estava cortando o cabelo dele, e ele estava sentado, né? Daqui<br />

a pouco, o barbeiro foi e se levantou, e entrou numa salinha. (Rio de Janeiro,<br />

informante R.)<br />

Tabela 4: Distribuição da perífrase [IR (E) V2] quanto à iniciativa<br />

INICIATIVA Freq. %<br />

Com tomada de iniciativa 57 90<br />

Sem tomada de iniciativa 6 10<br />

TOTAL 63 100<br />

No âmbito da tomada de iniciativa, ocorreram 57 (90%) dos dados indicando<br />

que houve tomada de iniciativa por parte do sujeito da perífrase e 6 (10%) dos dados<br />

indicando que não houve tomada de iniciativa por parte desse sujeito. Vejamos dois<br />

exemplos:<br />

(12) Com tomada de iniciativa: Aí chegou em casa, e ela foi contou essa<br />

história toda pra mim e pra minha mãe. (Rio de Janeiro, informante N.)<br />

(13) Sem tomada de iniciativa: Aí ele casou com essa mulher, ele casou não,<br />

se ajuntou, aí foi teve um filho dele. (Rio de Janeiro, informante A. M.)


Tabela 5: Distribuição da perífrase [IR (E) V2] quanto à avaliação<br />

AVALIAÇÃO Freq. %<br />

Sem avaliação 42 67<br />

Contraexpectativa positiva 4 6<br />

Contraexpectativa negativa 17 27<br />

TOTAL 63 100<br />

Quanto à avaliação feita pelo falante no que diz respeito ao evento denotado<br />

por V2, 4 (6%) dos dados apontam para uma contraexpectativa positiva com relação a<br />

esse evento, 17 (27%) dos dados apontam para uma contraexpectativa negativa e 42<br />

(67%) dos dados para uma avaliação neutra. Vejamos três exemplos:<br />

(14) Sem avaliação: Limpa a galinha, aí vai bota lá o tempero lá nela, bota<br />

alho, bota sal, bota vinagre. (Rio de Janeiro, A. C.)<br />

(15) Contraexpectativa positiva: O jovem não está tão interessado a estudo,<br />

aí fica, aí pronto, aí eu fui me diverti, saí, conheci lugares bonitos. (Natal, informante<br />

L.)<br />

(16) Contraexpectativa negativa: Todo mundo votou no Tancredo. O<br />

Tancredo vai e morre, aí fica o Sarney pra bagunçar toda a economia. (Rio de Janeiro,<br />

informante R.)<br />

Com base nesses resultados, na próxima seção: (a) descrevemos o<br />

funcionamento da perífrase [IR (E) V2] do ponto de vista semântico-pragmático; (b)<br />

discutimos as propostas feitas pela literatura da área apresentadas na introdução; e, por<br />

fim, (c) procuramos definir a função que a perífrase em questão exerce no português<br />

brasileiro contemporâneo.<br />

2. A função do verbo IR na construção [IR (E) V2]<br />

Para todos os aspectos relacionados a cada uma das propriedades semânticopragmáticas<br />

analisadas neste trabalho, conforme se pode constatar nas tabelas expostas<br />

na seção 1, há ocorrência de dados exemplificadores. Percebemos, então, que em muitos<br />

casos V1 aponta para o aspecto pontual, para o caráter súbito e para a indicação de<br />

tomada de iniciativa por parte do sujeito de V2, mas não em todos; pode mostrar<br />

previsibilidade no evento expresso pelo segundo verbo, mas também imprevisibilidade<br />

e traço de possibilidade; o usuário da língua, quando emprega essa perífrase, pode<br />

avaliar a ação de V2 numa contraexpectativa positiva, numa contraexpectativa negativa,<br />

ou não fazer avaliação alguma. Os resultados que alcançamos mostram, portanto, que o<br />

verbo IR na perífrase [IR (E) V2] apresenta uma gama de traços semântico-pragmáticos,<br />

os quais podem aparecer simultaneamente ou não, o que evidencia a sua grande<br />

complexidade.<br />

Relacionando nossos resultados com as propostas apresentadas anteriormente,<br />

concordamos com Bechara (2004) que IR, na referida perífrase, funciona como um<br />

verbo auxiliar aspectualizador global, podendo assim indiciar traços de repentinidade,<br />

subtaneidade e surpresa. E aliamo-nos também a Tavares (2005) que, além de<br />

igualmente defender essa proposta, diz que um verbo nessa função pode indicar


avaliações de lamento, frustração e crítica, bem como tomada de iniciativa por parte do<br />

sujeito da perífrase.<br />

Todavia, obtivemos, quanto à pontualidade, conforme a Tabela 1, uma<br />

quantidade considerável de dados (35%) em que o evento denotado por V2 não é<br />

pontual, e em todos esses dados notamos que o tempo verbal é o presente. Quando IR,<br />

na construção [IR (E) V2], sinaliza o caráter pontual de V2, a perífrase se apresenta no<br />

tempo pretérito perfeito. Isso testifica o que diz Tavares (2005), ao falar do verbo na<br />

função de aspectualizador global: “ao codificar nuanças semântico-pragmáticas ligadas<br />

ao caráter pontual, repentino, inesperado de um evento, acrescenta traços de<br />

perfectividade ao verbo principal da perífrase em questão ou então os intensifica, no<br />

caso de V2 já os manifestar através de seu significado lexical”. No entanto, por causa<br />

dos casos de não pontualidade, não podemos dizer que IR indica aspecto global em<br />

todas as ocorrências da construção em estudo.<br />

Rodrigues (2005) defende que V1, na construção em análise, tem a função<br />

discursivo-pragmática de enfatizar e dramatizar o evento expresso pelo segundo verbo,<br />

e Dutra (2003) propõe que V1 realça eventos na sequência narrativa. Acreditamos que<br />

essas funções, sugeridas pelas duas autoras, podem estar relacionadas às indicações que<br />

IR aponta muitas vezes relativamente a avaliações negativas ou positivas por parte do<br />

sujeito agente de V2, referentes à ação expressa por este verbo, assim como ao caráter<br />

pontual. E, tendo em vista que os dados analisados, como nem sempre V1 indica<br />

pontualidade ou alguma avaliação por parte do sujeito de V2, não é coerente dizermos<br />

que a dramatização e o realce de eventos possam ser funções absolutas de IR na<br />

perífrase aqui estudada.<br />

Como dar conta dos casos em que não há indicação de aspecto global? Temos<br />

por hipótese que tais casos indicam avanços no processo de gramaticalização de IR, no<br />

sentido de que esse verbo pode estar passando por extensão funcional e, assim,<br />

recebendo usos cada vez mais distantes, em termos semântico-pragmáticos, de sua fonte<br />

lexical.<br />

Qual é essa fonte lexical? Segundo Tavares (2005), trata-se do verbo IR lexical<br />

significando deslocamento físico – “pôr-se na direção (de), dirigir-se a” (como em<br />

“Ana foi para a biblioteca”) em contextos em que se poderia inferir o caráter pontual,<br />

repentino e/ou surpreendente do deslocamento. Esses significados, com o avanço do<br />

processo de gramaticalização, passaram a ser mais convencionalmente relacionados ao<br />

significado de IR, que se tornou, então, um indicador de aspecto global.<br />

Contudo, os contextos de interação naturalmente continuam exercendo pressão<br />

aos usos dados a IR como aspectualizador global. Assim, é provável que novas<br />

possibilidades de emprego para esse verbo tenham surgido a partir desses usos, o que<br />

poderia explicar a taxa de 35% de uso de IR com V2 não pontual – contexto, a<br />

princípio, incompatível com a indicação de aspecto global.<br />

A título de exemplo, entre novos empregos cuja possibilidade identificamos na<br />

amostra de dados, apontamos uma espécie de sequenciação de eventos que parece ser<br />

pontual mesmo que os verbos estejam no presente do indicativo, tempo verbal não<br />

pontual. Esse tipo de sequenciação parece predominar em gêneros da esfera<br />

procedimental, quando o falante lista as ações necessárias para a concretização de um<br />

procedimento, e em gêneros da esfera narrativa, quando o falante apresenta uma série de<br />

discursos diretos em sequência. Vejamos, a seguir, um exemplo de sequenciação de<br />

etapas em um relato de procedimentos, em que cada evento parece ser apresentado<br />

como um ponto delimitado no desenvolvimento do procedimento relatado:


(17) Procuro fazer a unha. A primeira coisa que eu fa- que eu pego- é tirar-<br />

pegar na acetona e tirar o esmalte que está dentro dela, dentro de- está na unha, esmalte<br />

velho fica sempre um pedacinho. Aí eu vou pego o sabão, coloco na água, no<br />

potezinho, a água está no pote. Aí eu mexo, faz aquelas borbulhinhas assim. Eu vou e<br />

coloco os dedos, aí fica um tempo, deixa de molho. Aí quando a minha cutícula já está<br />

bem mole, eu vou pego o alicate, que está amolado, tiro a cutícula, bem tirada, sabe?<br />

(Rio de Janeiro)<br />

A gramaticalização é um processo contínuo: as formas gramaticais emergem<br />

em situações de interação bastante específicas e são pouco a pouco disseminadas para<br />

um maior número de contextos de uso. Quanto maior o número de contextos em que<br />

uma forma for empregada, mais rotinizada na gramática da língua ela estará, mas<br />

também maiores serão as oportunidades para que essa forma passe por extensões<br />

funcionais, podendo, assim, vir a adquirir novas funções gramaticais. De acordo com os<br />

resultados que obtivemos, esse pode ser o caso do verbo IR indicador de aspecto global<br />

no português brasileiro, embora apenas novos estudos – especialmente aqueles que<br />

combinem amostras de diferentes épocas da língua – poderão trazer indícios mais<br />

precisos a respeito de possíveis extensões funcionais sofridas pelo verbo em questão.<br />

Conclusão<br />

Neste trabalho, buscamos compreender melhor a função que o verbo IR<br />

desempenha na construção [IR (E) V2], fenômeno linguístico que tem inquietado<br />

muitos estudiosos da língua devido a sua complexidade. Analisamos, então, 63 dados<br />

dessa construção coletados nos corpora Discurso & Gramática de Natal (RN) e do Rio<br />

de Janeiro (RJ), considerando cinco propriedades semântico-pragmáticas, já apontadas<br />

por autores como Bechara (2004), Rodrigues (2005) e Tavares (2005). Foram elas:<br />

pontualidade, subtaneidade, previsibilidade, tomada de iniciativa e avaliação.<br />

Com base nos resultados obtidos, defendemos que a função mais comum do<br />

verbo IR na perífrase [IR (E) V2] é a expressão de aspecto global, com a indicação de<br />

traços como pontualidade, repentinidade, subtaneidade e surpresa, além de poder trazer<br />

avaliações de lamento, frustração e crítica, bem como ressaltar a tomada de iniciativa<br />

por parte do sujeito da perífrase.<br />

Todavia, 35% dos dados não aparecem em contexto de pontualidade (ou seja,<br />

não aparecem com V2 no pretérito perfeito), fenômeno para o qual levantamos a<br />

possibilidade de estar em progresso um avanço no processo de gramaticalização de IR,<br />

que pode estar tendo seu uso ampliado para novas funções, como a sequenciação de<br />

eventos em relatos de procedimentos e a sequenciação de discursos diretos em<br />

narrativas. Em ambos os casos, o evento denotado por V2 parece adquirir uma matiz de<br />

pontualidade mesmo que o verbo esteja no presente do indicativo.<br />

A possibilidade de estar havendo um processo de extensão funcional<br />

envolvendo o verbo IR necessita de novos estudos para ser confirmada, com a obtenção<br />

de um maior número de dados, inclusive provenientes de sincronias passadas. A<br />

próxima etapa para a investigação da perífrase [IR (E) V2] no português brasileiro deve<br />

ser, portanto, voltada para a análise do desenvolvimento diacrônico do processo de<br />

gramaticalização do verbo IR como aspectualizador global. Pesquisas desse tipo<br />

poderão trazer indícios de possíveis extensões funcionais sofridas pelo verbo em<br />

questão, fenômeno que parece estar subjacente aos resultados por nós obtidos.<br />

Além disso, podem ser realizados estudos que abranjam: (a) corpora de fala e<br />

escrita de outras capitais do Nordeste e do Sudeste; (b) corpora de fala e escrita de


outras regiões do país, o que permitirá obter um quadro mais completo acerca da<br />

gramaticalização do verbo IR como aspectualizador global no português brasileiro<br />

contemporâneo, ressaltando-se semelhanças e diferenças relativas ao comportamento<br />

semântico-pragmático característico desse uso do verbo IR em diferentes comunidades<br />

de fala e de escrita.<br />

Também podem ser realizados estudos que considerem grupos de fatores<br />

sociais, como gênero, idade e escolaridade, o que possibilitará averiguar se existem<br />

condicionamentos de natureza social sobre o uso do verbo IR como aspectualizador<br />

global. Podem ser realizados, ainda, estudos comparativos acerca do comportamento da<br />

aspectualização global no português brasileiro e no português europeu, em que também<br />

ocorre a perífrase [IR (E) V2]. Trata-se, pois, de um campo bastante frutífero para a<br />

realização de novas pesquisas.<br />

Referências bibliográficas<br />

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2004.<br />

p. 209-221.<br />

COSERIU, Eugenio. “Tomo y me voy”: um problema de sintaxis comparada europea.<br />

In: Estudios de linguística románica. Madri: Guedos, 1977. p. 79-151.<br />

DUTRA, Rosália. O falante gramático: introdução à prática do estudo e ensino do<br />

português. Campinas: Mercado das Letras, 2003. p. 94-107.<br />

FURTADO DA CUNHA, Maria Angélica. Funcionalismo. In: MARTELOTTA, Mário<br />

Eduardo. (Org.). Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2008. p. 157-176.<br />

______ Corpus Discurso & Gramática. Natal: EDUFRN, 1998.<br />

RODRIGUES, Angélica T. C. As construções do tipo ‘foi fez’. Manuscrito. 2005.<br />

TAVARES, Maria Alice. A gramaticalização dos verbos IR, CHEGAR e PEGAR como<br />

aspectualizadores globais. 2012. (em preparação)<br />

_____ Gramaticalização: o caso da indicação de aspecto global através da construção<br />

[V1auxiliar (PEGAR, CHEGAR, IR, etc) (E) + V2principal]. Projeto de pesquisa.<br />

Manuscrito. 2005.<br />

VOTRE, Sebastião; OLIVEIRA, Mariângela Rios (Coords.). A língua falada e escrita<br />

na cidade do Rio de Janeiro. Manuscrito. 1995.

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