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Parte 1 - Tribunal Regional Federal da 4ª Região

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

ESCOLA DA MAGISTRATURA DO<br />

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA <strong>4ª</strong> REGIÃO<br />

Direção<br />

Desembargador <strong>Federal</strong> Paulo Afonso Brum Vaz<br />

Conselho<br />

Desembargador <strong>Federal</strong> Victor Luiz dos Santos Laus<br />

Desembargador <strong>Federal</strong> Joel Ilan Paciornik<br />

Coordenador Científico do Módulo de Direito Penal 2008<br />

Juiz <strong>Federal</strong> José Paulo Baltazar Júnior<br />

Assessoria<br />

Isabel Cristina Lima Selau<br />

__________________________________________<br />

CADERNO DE DIREITO PENAL - 2008<br />

Organização – Divisão de Ensino<br />

Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling<br />

Revisão – Divisão de Ensino<br />

Maria de Fátima de Goes Lanziotti<br />

Capa e Editoração – Divisão de Editoração e Artes<br />

Alberto Pietro Bigatti<br />

Artur Felipe Temes<br />

Erico <strong>da</strong> Silva Ferreira<br />

Rodrigo Meine<br />

Apoio<br />

Seção de Reprografia e Encadernação<br />

Contatos:<br />

E-mail: emagis@trf4.gov.br<br />

Assessoria: (51) 3213-3040<br />

Divisão de Ensino: (51) 3213-3041, 3213-3045<br />

Divisão de Editoração e Artes: (51) 3213-3046<br />

www.trf4.gov.br/emagis<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

Apresentação<br />

O Currículo Permanente criado pela Escola <strong>da</strong> Magistratura do <strong>Tribunal</strong><br />

<strong>Regional</strong> <strong>Federal</strong> <strong>da</strong> <strong>4ª</strong> <strong>Região</strong> - EMAGIS - é um curso realizado em encontros mensais,<br />

voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes federais substitutos <strong>da</strong> <strong>4ª</strong> <strong>Região</strong>,<br />

que atende ao disposto na Emen<strong>da</strong> Constitucional nº 45/2004. Tem por objetivo, entre<br />

outros, propiciar aos magistrados, além de uma atualização nas matérias enfoca<strong>da</strong>s,<br />

melhor instrumentali<strong>da</strong>de para condução e solução <strong>da</strong>s questões referentes aos casos<br />

concretos de sua jurisdição.<br />

O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto desta<br />

Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender às necessi<strong>da</strong>des<br />

dos participantes.<br />

O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como artigos,<br />

jurisprudência seleciona<strong>da</strong> e estudos de ilustres doutrinadores brasileiros e estrangeiros<br />

compilados pela EMAGIS e destina-se aos magistrados <strong>da</strong> <strong>4ª</strong> <strong>Região</strong>, bem como a<br />

pesquisadores e público interessado em geral.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

COMO CITAR ESTA OBRA:<br />

RAMOS, João Gualberto Garcez. Audiência no processo penal. Porto Alegre: TRF – <strong>4ª</strong><br />

<strong>Região</strong>, 2008 (Currículo Permanente. Caderno de Direito Penal: módulo 4)<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

ÍNDICE<br />

Audiência no processo penal<br />

Ministrante: João Gualberto Garcez Ramos<br />

Ficha Técnica.............................................................................................................................. 02<br />

Apresentação.............................................................................................................................. 03<br />

Introdução................................................................................................................................... 09<br />

<strong>Parte</strong> 1 – Evolução histórica <strong>da</strong> audiência processual penal...................................................... 11<br />

Capítulo 1 – Evolução histórica <strong>da</strong> audiência processual penal......................................... 15<br />

Seção A – A audiência processual penal primitiva...................................................... 15<br />

§ 1º Comuni<strong>da</strong>des primitivas............................................................................ 15<br />

§ 2º Egito.......................................................................................................... 18<br />

Seção B – A audiência processual penal greco-romana............................................. 24<br />

§ 1º Grécia....................................................................................................... 24<br />

§ 2º Roma....................................................................................................... 29<br />

Seção C – A audiência processual penal bárbara....................................................... 37<br />

Seção D – A audiência processual penal e os “sistemas”........................................... 48<br />

§ 1º Sistema inquisitório (audiência canônica)................................................. 48<br />

a) o processo canônico.................................................................................. 48<br />

b) o processo inquisitório............................................................................... 54<br />

c) a audiência inquisitória.............................................................................. 56<br />

1. publici<strong>da</strong>de............................................................................................. 56<br />

2. contraditório........................................................................................... 57<br />

3. orali<strong>da</strong>de................................................................................................ 58<br />

4. imediação............................................................................................... 58<br />

5. concentração.......................................................................................... 59<br />

§ 2º Sistema acusatório (audiência inglesa).................................................... 60<br />

a) o sistema inglês......................................................................................... 60<br />

1. esclarecimentos iniciais......................................................................... 60<br />

2. a questão do método............................................................................. 60<br />

3. evolução rumo ao adversary system..................................................... 62<br />

4. o trial by jury inglês................................................................................ 66<br />

b) a evolução estadunidense......................................................................... 70<br />

c) a audiência acusatória............................................................................... 72<br />

1. publici<strong>da</strong>de............................................................................................. 72<br />

2. contraditório........................................................................................... 72<br />

3. orali<strong>da</strong>de................................................................................................ 75<br />

4. imediação.............................................................................................. 75<br />

5. concentração.......................................................................................... 76<br />

Capítulo 2 – A evolução histórica no Brasil......................................................................... 77<br />

Seção A – Nas Ordenações do Reino de Portugal...................................................... 77<br />

§ 1º As Ordenações Afonsinas........................................................................ 77<br />

§ 2º As Ordenações Manuelinas...................................................................... 79<br />

§ 3º As Ordenações Filipinas........................................................................... 80<br />

Seção B – No Código do Processo Criminal de Primeira Instância............................ 84<br />

§ 1º A sistemática original................................................................................ 84<br />

§ 2º As reformas de 1841 e 1871..................................................................... 87<br />

Seção C – Nos códigos estaduais............................................................................... 90<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

<strong>Parte</strong> 2 – Princípios e regras <strong>da</strong> audiência processual penal..................................................... 91<br />

Capítulo 1 – A ativi<strong>da</strong>de administrativa na audiência processual penal............................. 104<br />

Seção A – Conceitos.................................................................................................... 104<br />

Seção B – Caracteres.................................................................................................. 109<br />

§ 1º Natureza jurídica....................................................................................... 109<br />

§ 2º A ativi<strong>da</strong>de administrativa e os “sistemas”................................................ 112<br />

a) sistema inquisitório.................................................................................... 112<br />

b) sistema acusatório..................................................................................... 113<br />

§ 3º Princípios e regras.................................................................................... 114<br />

a) publici<strong>da</strong>de................................................................................................ 114<br />

b) presidenciali<strong>da</strong>de....................................................................................... 115<br />

c) orali<strong>da</strong>de.................................................................................................... 115<br />

§ 4º Ritualismo................................................................................................. 116<br />

a) no inquérito policial.................................................................................... 116<br />

b) nos procedimentos comuns...................................................................... 118<br />

c) no procedimento especial do júri............................................................... 119<br />

Seção C – Fun<strong>da</strong>mento político................................................................................... 121<br />

Capítulo 2 – A ativi<strong>da</strong>de instrutória na audiência processual penal.................................... 126<br />

Seção A – A ativi<strong>da</strong>de instrutória stricto sensu............................................................ 126<br />

§ 1º Conceitos.................................................................................................. 126<br />

§ 2º Caracteres................................................................................................ 130<br />

a) a ativi<strong>da</strong>de instrutória e os “sistemas”....................................................... 130<br />

1. sistema inquisitório................................................................................. 130<br />

2. sistema acusatório................................................................................. 131<br />

b) princípios e regras..................................................................................... 132<br />

1. publici<strong>da</strong>de............................................................................................. 132<br />

2. orali<strong>da</strong>de................................................................................................ 135<br />

3. imediação.............................................................................................. 136<br />

4. contraditório........................................................................................... 139<br />

c) ritualismo................................................................................................... 140<br />

1. no inquérito policial................................................................................ 140<br />

2. nos procedimentos comuns................................................................... 141<br />

3. no procedimento especial do júri.......................................................... 146<br />

§ 3º - Fun<strong>da</strong>mento político............................................................................... 149<br />

a) a questão do fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> prova testemunhal......................... 149<br />

b) o fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória em audiência..................... 153<br />

Seção B – O interrogatório (ativi<strong>da</strong>de instrutória lato sensu)....................................... 157<br />

§ 1º Conceitos.................................................................................................. 157<br />

§ 2º Caracteres................................................................................................ 159<br />

a) o interrogatório e os “sistemas”................................................................ 159<br />

1. sistema inquisitório................................................................................. 159<br />

2. sistema acusatório................................................................................. 163<br />

b) princípios e regras..................................................................................... 166<br />

1. publici<strong>da</strong>de............................................................................................. 166<br />

2. orali<strong>da</strong>de e imediação............................................................................ 166<br />

3. contraditório e presidenciali<strong>da</strong>de........................................................... 168<br />

c) ritualismo................................................................................................... 168<br />

1. no inquérito policial................................................................................ 168<br />

2. nos procedimentos comuns................................................................... 169<br />

3. no procedimento especial do júri........................................................... 171<br />

§ 3º Natureza jurídica....................................................................................... 173<br />

a) na doutrina................................................................................................. 173<br />

b) o direito ao silêncio.................................................................................... 175<br />

c) solução...................................................................................................... 176<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

Capítulo 3 – A ativi<strong>da</strong>de crítica na audiência processual penal.......................................... 177<br />

Seção A – Conceitos.................................................................................................... 177<br />

Seção B – Caracteres................................................................................................. 180<br />

§ 1º A ativi<strong>da</strong>de crítica e os “sistemas”............................................................ 180<br />

a) sistema inquisitório.................................................................................... 180<br />

b) sistema acusatório..................................................................................... 181<br />

§ 2º Princípios e regras.................................................................................... 181<br />

a) publici<strong>da</strong>de................................................................................................ 181<br />

b) orali<strong>da</strong>de.................................................................................................... 182<br />

c) imediação.................................................................................................. 183<br />

d) contraditório............................................................................................... 183<br />

§ 3º A ativi<strong>da</strong>de crítica e as partes técnicas.................................................... 183<br />

a) Ministério Público..................................................................................... 183<br />

b) assistente do Ministério Público................................................................ 186<br />

c) autor técnico privado................................................................................. 188<br />

d) defensor técnico........................................................................................ 190<br />

§ 4º Riscos de uma publicização excessiva <strong>da</strong>s partes técnicas..................... 192<br />

§ 5º Ritualismo................................................................................................. 196<br />

a) no inquérito policial.................................................................................... 196<br />

b) nos procedimentos comuns...................................................................... 196<br />

c) no procedimento especial do júri............................................................... 199<br />

Seção C – Fun<strong>da</strong>mento Político.................................................................................. 203<br />

Capítulo 4 – A ativi<strong>da</strong>de decisória na audiência processual penal..................................... 209<br />

Seção A – Conceitos.................................................................................................... 209<br />

Seção B – Caracteres................................................................................................. 213<br />

§ 1º A ativi<strong>da</strong>de decisória e os “sistemas”....................................................... 213<br />

a) sistema inquisitório.................................................................................... 213<br />

b) sistema acusatório..................................................................................... 214<br />

§ 2º Princípios e regras.................................................................................... 214<br />

a) concentração............................................................................................. 214<br />

b) publici<strong>da</strong>de e orali<strong>da</strong>de.............................................................................. 215<br />

c) contraditório.............................................................................................. 216<br />

d) a questão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de física do juiz....................................................... 219<br />

§ 3º Ritualismo................................................................................................. 220<br />

a) no inquérito policial.................................................................................... 220<br />

b) nos procedimentos comuns...................................................................... 221<br />

c) no procedimento especial do júri............................................................... 222<br />

Seção C – Fun<strong>da</strong>mento Político.................................................................................. 224<br />

Referências Bibliográficas.......................................................................................................... 226<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

Audiência Processual Penal<br />

Introdução<br />

João Gualberto Garcez Ramos<br />

O convite para participar do “Currículo Permanente – Módulo IV – Direito Penal Edição<br />

2008” <strong>da</strong> Escola <strong>da</strong> Magistratura do TRF <strong>da</strong> <strong>4ª</strong> <strong>Região</strong> (EMAGIS) veio acompanhado do<br />

tema previamente determinado: “Audiência no processo penal”.<br />

A lembrança de meu nome foi certamente uma gentileza imereci<strong>da</strong> dos<br />

organizadores, especialmente do desembargador federal Paulo Afonso Brum Vaz.<br />

Percebo a influência, outrossim, dos juízes federais Fernando Quadros <strong>da</strong> Silva e Marcelo<br />

Malucelli, amigos de longa <strong>da</strong>ta. Sou sumamente agradecido a todos quantos têm algo a<br />

ver com isso.<br />

Numa entrevista, certa feita, o compositor Chico Buarque disse que suas melhores<br />

composições resultaram de encomen<strong>da</strong>s de alguém. Disse que sempre que tinha um<br />

tema predeterminado nas mãos, <strong>da</strong>do não por ele, mas pelo diretor de um filme ou de<br />

uma peça teatral, por exemplo, conseguia compor melhor. Talvez porque a aparente falta<br />

de liber<strong>da</strong>de quanto ao tema era amplamente supera<strong>da</strong> pela vertigem diante do desafio<br />

de compor algo novo, em cima de um tema <strong>da</strong>do por outra pessoa. Foi assim, de fato,<br />

com a maior parte <strong>da</strong>s obras-primas cria<strong>da</strong>s por esse grande compositor. Não sou Chico<br />

Buarque, não chego nem perto, na ver<strong>da</strong>de, mas isso de receber um tema de outrem e<br />

desenvolver algo em cima é, de fato, um desafio instigante e gratificante.<br />

No caso, o tema <strong>da</strong> “audiência processual penal” é próximo a mim, porque foi o objeto<br />

de minha pesquisa de mestrado, <strong>da</strong> primeira metade <strong>da</strong> déca<strong>da</strong> de noventa do século<br />

passado.<br />

Contudo, o tema <strong>da</strong> audiência – que nasceu justamente de meu trabalho junto à<br />

Justiça <strong>Federal</strong> de 1ª Instância – já havia ficado para trás, aprovado por banca na<br />

Universi<strong>da</strong>de <strong>Federal</strong> do Paraná e publicado pela Editora Del Rey, de Belo Horizonte.<br />

Minhas atuais preocupações, que derivaram desse tema inicial, estão hoje mais volta<strong>da</strong>s<br />

para o estudo do processo penal norte-americano, especialmente relacionado com os<br />

seus princípios constitucionais.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

Mas foi muito interessante retornar ao tema inicial que, certamente, propiciará um<br />

produtivo debate com o qualificado público do módulo permanente <strong>da</strong> EMAGIS. Além<br />

disso, o resultado desse debate será a base para uma segun<strong>da</strong> edição do livro “Audiência<br />

Processual Penal”, o que me trás ain<strong>da</strong> mais responsabili<strong>da</strong>de.<br />

To<strong>da</strong> introdução é, fun<strong>da</strong>mentalmente, um pedido de desculpas disfarçado. Prefiro<br />

assumi-lo. Confesso a autoria de to<strong>da</strong>s as debili<strong>da</strong>des do presente estudo. Elas serão<br />

resolvi<strong>da</strong>s, espero, com o an<strong>da</strong>r do curso.<br />

Conto com os leitores e críticos.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

<strong>Parte</strong> 1<br />

Evolução histórica <strong>da</strong> audiência processual penal<br />

O estudo <strong>da</strong> evolução histórica do processo penal, conforme o título dá a entender,<br />

será feito sob o prisma <strong>da</strong> audiência processual penal.<br />

Com o estudo <strong>da</strong> evolução histórica desse preciso objeto, estu<strong>da</strong>r-se-á, quase<br />

inevitavelmente, a evolução histórica de todo o processo penal.<br />

Diversas foram as civilizações que precederam a I<strong>da</strong>de Contemporânea e é evidente<br />

que em to<strong>da</strong>s elas praticou-se alguma forma de processo destinado a fun<strong>da</strong>mentar a<br />

punição de autores de infrações penais. Em outras palavras, to<strong>da</strong>s as civilizações, antigas<br />

e modernas, tiveram ordenamentos jurídico-penais e processuais penais, ca<strong>da</strong> qual com<br />

suas características. Estudá-los todos seria, pois, impossível e mesmo inútil, <strong>da</strong>do que<br />

alguns sistemas não tiveram qualquer conseqüência na evolução posterior.<br />

A opção metodológica do presente estudo foi, portanto, escolher determinados<br />

exemplos históricos que tivessem tido relevância como etapas no desenvolvimento do<br />

processo penal. São eles as comuni<strong>da</strong>des primitivas, o Egito, a Grécia, Roma, e as<br />

socie<strong>da</strong>des bárbaras.<br />

O início se dá pela audiência processual penal primitiva, <strong>da</strong> qual dois exemplos<br />

históricos são extraídos: a audiência nas socie<strong>da</strong>des primitivas propriamente ditas e a<br />

audiência no Egito antigo.<br />

A cisão foi necessária na medi<strong>da</strong> em que o Egito antigo experimentou,<br />

induvidosamente, um “salto qualitativo” em relação às outras socie<strong>da</strong>des que lhe foram<br />

contemporâneas. Enquanto as comuni<strong>da</strong>des primitivas viviam sem uma organização, ou<br />

com uma organização débil, o Egito já era um Estado forte e centralizado. Seu processo<br />

penal, por essa razão, já apresentava, então, características significativamente<br />

avança<strong>da</strong>s.<br />

Apesar do comparativo atraso <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des primitivas em relação ao Egito antigo,<br />

é perfeitamente possível concluir que a audiência processual penal recebeu importantes<br />

contribuições de ca<strong>da</strong> um desses modelos.<br />

A audiência processual penal na Grécia e em Roma também é estu<strong>da</strong><strong>da</strong>. Tanto<br />

aquela quanto esta são exemplos de socie<strong>da</strong>des organiza<strong>da</strong>s em Estado. Ca<strong>da</strong> qual à<br />

sua maneira, dão uma contribuição efetiva ao desenvolvimento <strong>da</strong>s regras de estrutura e<br />

dinamização <strong>da</strong> audiência processual penal.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

As invasões bárbaras, que dissolveram paulatina e inexoravelmente o império<br />

romano, trouxeram consigo novas práticas processuais penais e novos rituais de<br />

justiçamento. Essencial fixar ca<strong>da</strong> um desses rituais e suas características que ficaram<br />

para a evolução do instituto.<br />

Por último, será feito um estudo <strong>da</strong> audiência processual penal e os chamados<br />

“sistemas”.<br />

O termo “sistemas” referir-se-á aos sistemas inquisitório e acusatório em suas<br />

formulações puras, tais como concebidos no processo canônico e no processo penal<br />

inglês.<br />

Essa opção metodológica, porém, não goza de unanimi<strong>da</strong>de dentro <strong>da</strong> doutrina<br />

processual penal. Autores há, como JOSÉ FREDERICO MARQUES, que imputam a certa visão<br />

histórica de institutos do processo penal a culpa por imprecisões científicas. É o que se<br />

percebe, niti<strong>da</strong>mente, no seguinte trecho, em que o ilustre processualista trata dos<br />

“sistemas”: “O sistema acusatório e o inquisitivo são apresentados, geralmente, com<br />

outros princípios e regras gerais que lhes não são absolutamente inerentes, em virtude <strong>da</strong><br />

confusão origina<strong>da</strong> do estudo de ambos os sistemas em suas formas históricas.<br />

Conceitos basilares do sistema acusatório são apenas os seguintes: a) separação entre<br />

os órgãos <strong>da</strong> acusação, defesa e julgamento, instaurando-se assim um processo de<br />

partes; b) liber<strong>da</strong>de de defesa e igual<strong>da</strong>de de posição <strong>da</strong>s partes; c) a regra do<br />

contraditório; d) livre apresentação <strong>da</strong>s provas pelas partes; e) regra do impulso<br />

processual autônomo, ou ativação inicial <strong>da</strong> causa pelos interessados. No sistema<br />

inquisitivo, ao contrário, são essas as regras capitais: a) concentração <strong>da</strong>s funções<br />

processuais no órgão judiciário, de forma a tornar este o acusador principal e também juiz<br />

<strong>da</strong> própria acusação; b) restrição dos direitos <strong>da</strong> defesa, com o encargo ao juiz de suprir a<br />

ativi<strong>da</strong>de do réu, conforme o princípio de CARPSOVIO, de que judex supplere debet<br />

defensiones rei ex officio; c) supressão ao juiz, do dever ‘de reunir, por sua própria<br />

ativi<strong>da</strong>de, o material do litígio’; e) impulso processual ex officio”. 1<br />

A advertência acima, contudo, não pode ser leva<strong>da</strong> com o rigor sugerido, ao ponto de<br />

redun<strong>da</strong>r, ela mesma, numa imprecisão científica.<br />

Ao contrário do que sustenta JOSÉ FREDERICO MARQUES, o ver<strong>da</strong>deiro e mais útil<br />

estudo dos “sistemas” é o histórico. Apenas a partir <strong>da</strong> visão retrospectiva de ca<strong>da</strong> uma<br />

1<br />

MARQUES, José Frederico. “Do processo penal acusatório”, em MARQUES, José Frederico.<br />

Estudos…, p. 23.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

<strong>da</strong>s duas mais importantes manifestações do processo penal condenatório é que se<br />

poderá identificar ca<strong>da</strong> um dos seus caracteres. O processo penal que não apresente<br />

to<strong>da</strong>s as características de um “sistema” não poderá, sem a prévia renúncia à precisão<br />

dos conceitos, ser qualificado como tal.<br />

Além disso, com a identificação dos caracteres de ca<strong>da</strong> “sistema” será possível a<br />

construção de um modelo novo, que aproveite os aspectos positivos de ca<strong>da</strong> um,<br />

rejeitando ou minimizando os negativos.<br />

Dúvi<strong>da</strong>s não há mais, na doutrina, de que, na atuali<strong>da</strong>de, não há um processo penal<br />

“puro”. Ain<strong>da</strong> assim, não será feita uma análise mais detalha<strong>da</strong> do impropriamente<br />

denominado “sistema misto”, ou “sistema reformado”. É que ele não apresenta, senão<br />

formalmente, as características de um ver<strong>da</strong>deiro sistema. Foi, em reali<strong>da</strong>de, o produto <strong>da</strong><br />

fusão dos outros dois. Com maior proprie<strong>da</strong>de poder-se-ia concluir que se trata de mais<br />

uma forma de administrar a justiça criminal que aproveitou elementos dos “sistemas”<br />

acusatório e inquisitório. FRANCO CORDERO resume-o assim: “nasceu o processo assim<br />

chamado misto: demora<strong>da</strong>s instruções em um perfeito estilo inquisitório, autos volumosos,<br />

debates falados, com muita leitura e algum gesto (...). O êxito satisfaz os devotos <strong>da</strong><br />

‘Ordonnance’: os debates são uma suportável contraparti<strong>da</strong> à restauração instrutória;<br />

pecado que existam ain<strong>da</strong> júris. Sob o plano técnico esse código parece algo medíocre.<br />

(...) Em suma, parece muito acertado do ponto de vista reacionário”. 2<br />

No presente estudo reservar-se-á a denominação “sistema” àquela “estrutura externa”<br />

do processo penal 3 que possua uma coerência intrínseca, quali<strong>da</strong>de que somente<br />

aqueles dois apresentam.<br />

Por outro lado, não é possível, por to<strong>da</strong>s essas razões, renunciar a uma precisão dos<br />

termos. Um determinado ordenamento jurídico-processual penal atual somente poderá<br />

ser considerado acusatório se apresentar, rigorosamente, as características de sua matriz<br />

histórica. Se a ele faltar somente uma <strong>da</strong>s características, será necessário obter uma<br />

denominação que prestigie esse rigor metodológico. Embora em tese seja diferente<br />

<strong>da</strong>quela matriz, é “praticamente” acusatório.<br />

Assim, a referência será doravante feita <strong>da</strong> seguinte maneira: sistema inquisitório<br />

2<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 67. Trecho original: “è nato il processo cosiddetto misto: lunghe<br />

istruzioni in perfetto stile inquisitorio, fascicoli gonfi, dibattimenti parlati, con molte letture e qualche gesto<br />

(...). L’esito soddisfa i devoti all’Ordonnance: i débats sono una sopportabile contropartita alla restaurazione<br />

istruttoria; peccato che esistano ancora giurie. Sul piano tecnico questo codice appare alquanto mediocre.<br />

(...) Insomma, appare molto riuscito <strong>da</strong>l punto di vista reazionario”.<br />

3<br />

Cf. FLORIAN, Eugenio. Elementos…, p. 64.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

puro, que significará o sistema formal e materialmente inquisitório, isto é, o sistema<br />

processual penal sem partes, secreto, tal como começou a surgir a partir do IV Concílio<br />

de Latrão, em 1215; sistema acusatório puro, que significará o próprio adversary system<br />

inglês; sistema predominantemente inquisitório ou predominantemente acusatório, que<br />

será o indevi<strong>da</strong>mente chamado “sistema misto”, no qual predominem quaisquer <strong>da</strong>s<br />

características dos sistemas puros, que serão, à medi<strong>da</strong> em que o estudo avance,<br />

expostas.<br />

Após essa visão, que se poderia denominar de histórico-sistemática, será feito um<br />

estudo <strong>da</strong> evolução <strong>da</strong> audiência processual penal no Brasil.<br />

Tal é necessário porque, embora essa evolução tenha com algumas variações<br />

obedecido aos padrões determinados pelos “sistemas”, é preciso situá-la historicamente.<br />

O estudo dela revelará algumas peculiari<strong>da</strong>des que podem ser úteis ao estudo do instituto<br />

<strong>da</strong> audiência processual penal e à sua visão prospectiva.<br />

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Capítulo 1<br />

Evolução histórica <strong>da</strong> audiência processual penal<br />

Seção A<br />

A audiência processual penal primitiva<br />

§ 1º Comuni<strong>da</strong>des primitivas<br />

Os historiadores sustentam que a fragili<strong>da</strong>de do ser humano foi, de certo modo, a<br />

mais decisiva <strong>da</strong>s alavancas que o impulsionou no sentido do progresso e <strong>da</strong> civilização.<br />

Ao contrário dos outros animais, o homem não possuía peles grossas, garras afia<strong>da</strong>s ou<br />

asas que o tornassem apto, por si só, a viver plenamente integrado à natureza. Por isso,<br />

devia usar de criativi<strong>da</strong>de, a fim de industrializar, de modificar os objetos naturais que lhe<br />

permitiriam sobreviver num mundo hostil. 4<br />

A utilização <strong>da</strong> criativi<strong>da</strong>de estimulou-lhe a sensibili<strong>da</strong>de e o raciocínio, permitindo que<br />

criasse cultura. A escrita e a linguagem foram as primeiras e mais relevantes<br />

manifestações dessa cultura nascente. O direito nasceu pouco depois, com o aumento <strong>da</strong><br />

complexi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s relações entre os homens.<br />

Está claro, outrossim, que o nascimento do direito ocorreu de forma por demais lenta,<br />

sendo produto, em ver<strong>da</strong>de, do aperfeiçoamento paulatino de certas regras de<br />

convivência.<br />

ANÍBAL BRUNO ensina que uma <strong>da</strong>s características <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des primitivas foi a<br />

ausência de uma figura, singular ou coletiva, que exercesse a autori<strong>da</strong>de comunal. 5<br />

Dessa característica, ain<strong>da</strong> conforme ANÍBAL BRUNO, resultava que a observância <strong>da</strong>s<br />

regras de convivência, nas comuni<strong>da</strong>des primitivas, estava a depender do costume e do<br />

temor religioso ou místico, principalmente. 6<br />

A prática de condutas contrárias a essa convivência, entre os povos primitivos, deve<br />

ser logicamente admiti<strong>da</strong> como ocorrente. Se haviam violações, posto que raras, a<br />

característica de inexistir órgão diretivo <strong>da</strong>s comuni<strong>da</strong>des primitivas possui ain<strong>da</strong> mais<br />

uma particulari<strong>da</strong>de, interessante para o estudo do desenvolvimento histórico do Direito<br />

Processual Penal: a punição a essas práticas não se verificava pela atuação de uma<br />

autori<strong>da</strong>de, senão pela do todo ou de parte do grupo social. O que se conhece hoje por<br />

4<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 58.<br />

5<br />

BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 54.<br />

6 BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 54.<br />

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juiz não existia entre os povos primitivos, ao menos em regra.<br />

A primeira <strong>da</strong>s práticas punitivas, segundo ANÍBAL BRUNO, antes mesmo <strong>da</strong> vingança<br />

de sangue, foi a per<strong>da</strong> <strong>da</strong> paz. 7 Trata-se <strong>da</strong> expulsão do violador dessas regras do seio<br />

do grupo, que <strong>da</strong>ntes o protegia. Fun<strong>da</strong>-se no perigo que a conduta desse homem<br />

representava para o grupo enquanto agressão às enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong> natureza, divinas para<br />

esses povos: era a violação do tabu. A expulsão demonstrava aos deuses que o grupo<br />

não concor<strong>da</strong>va com aquela violação, colocando-se ao lado <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong> natureza.<br />

A expulsão é algo que acontecia por obra de todo o grupo, sem a ocorrência de<br />

cerimônia especial para esse mister. O cerimonial, em ver<strong>da</strong>de, tem outra função,<br />

conforme descreve ANÍBAL BRUNO: “Daí os ritos mágicos numerosos e prolongados que se<br />

praticam em diversas tribos primárias, para preservá-las <strong>da</strong> cólera divina, sempre que<br />

ocorre um homicídio e não se chega a descobrir e punir o seu autor. É para aplacar essa<br />

cólera que se aplica a esse autor, em muitas delas, o sacrifício, como sanção de natureza<br />

sacral”. 8<br />

Historicamente, é só depois dessa etapa do desenvolvimento <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des que<br />

surgiu a vingança de sangue, como subproduto <strong>da</strong> divisão <strong>da</strong>quela socie<strong>da</strong>de primitiva<br />

em grupos sociais.<br />

A prática de condutas indesejáveis passou, então e paulatinamente, a ser vista como<br />

agressão ao grupo ao qual pertencia o eventual ofendido. A resposta de sangue era<br />

dirigi<strong>da</strong> desde o grupo do ofendido até o grupo do agressor, visando a ele ou a qualquer<br />

outro membro desse grupo. 9 Outra característica dessa resposta foi ser desmedi<strong>da</strong>,<br />

quase sempre muito maior do que o mal praticado. 10<br />

O aperfeiçoamento desse sistema veio com dois instrumentos de limitação do poder<br />

punitivo, a lei de talião e a composição entre os grupos envolvidos em práticas de crimes.<br />

A lei de talião, conforme é sabido, veio estabelecer um critério de simetria entre o mal<br />

praticado e a resposta ao seu autor.<br />

A composição, por seu turno, nasceu <strong>da</strong> aceitação de que o mal físico praticado<br />

poderia, convindo ao grupo ofendido, ser compensado por algum valor econômico e, com<br />

7<br />

BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 56-57.<br />

8<br />

BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 57.<br />

9<br />

BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 57-58.<br />

10<br />

Cf. Livro do Gênesis, 4, 23-24: “Lamec disse às suas mulheres:/‘A<strong>da</strong> e Sela, ouvi minha<br />

voz,/mulheres de Lamec, escutai minha palavra:/Eu matei um homem por uma feri<strong>da</strong>,/ uma criança por uma<br />

contusão./ É que Caim é vingado sete vezes,/ mas Lamec, setenta e sete vezes’”.<br />

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isso, substituir a resposta física e preservar os grupos de ensandeci<strong>da</strong> guerra e<br />

destruição.<br />

Tratam-se de dois aperfeiçoamentos que visaram à preservação dos grupos sociais<br />

envolvidos.<br />

Nisso, o que é de interesse para o Direito Processual Penal é que essa limitação <strong>da</strong><br />

vingança entre os grupos, através do regramento <strong>da</strong>s práticas punitivas, revela o<br />

paulatino nascimento <strong>da</strong> figura <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de.<br />

São sábios que exercem a função de fiscalizar a observância dessas novas regras:<br />

são os juízes <strong>da</strong>queles tempos. É o que demonstram alguns dos textos bíblicos do<br />

Pentateuco, ou Tora (Lei) por exemplo, de presumível autoria de MOISÉS, 11 e as práticas<br />

atuais de composição. 12<br />

Nesses casos, os textos bíblicos e os “códigos” antigos – na ver<strong>da</strong>de textos esparsos,<br />

encontrados em caracteres cuneiformes – eram, mais que regras de convivência,<br />

conselhos desses autores aos homens encarregados de administrar a justiça. No caso<br />

específico dos hebreus, conselho de Iahweh: “Quem ferir um compatriota, desfigurando-o,<br />

como ele fez assim, assim se lhe fará: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente.<br />

O <strong>da</strong>no que se causa a alguém, assim também se sofrerá: quem matar um animal deverá<br />

<strong>da</strong>r compensação por ele, e quem matar um homem deve morrer. A sentença será entre<br />

vós a mesma, quer se trate de um natural ou de um estrangeiro, pois eu sou Iahweh<br />

vosso Deus”. 13<br />

A existência dessas regras escritas e <strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des, suas destinatárias, revela um<br />

aperfeiçoamento <strong>da</strong>s práticas punitivas.<br />

Não há ain<strong>da</strong>, entre os povos primitivos, um bem desenvolvido cerimonial de<br />

justiçamento. 14 O cerimonial que se verifica é, a rigor, de apascentamento <strong>da</strong>s enti<strong>da</strong>des<br />

divinas.<br />

Os aspectos importantes dessa fase são o paulatino regramento <strong>da</strong>s práticas<br />

punitivas, inclusive <strong>da</strong>s regras relativas à produção de provas, bem como o surgimento <strong>da</strong><br />

11 Cf. Livros do Êxodo, 21, 12-14 e 23-25; Levítico, 24, 17-22 e Deuteronômio, 19, 21.<br />

12 Cf. BATTAGLINI, Giulio. Direito…, p. 8. Nesse texto, o autor italiano traz o exemplo atual de dois<br />

países, Etiópia e Somália, em que a composição ain<strong>da</strong> é uma prática comum. Acerca <strong>da</strong> Somália, ensina:<br />

“A cabila do assassino que desejar a paz envia, através de intermediários, aos chefes do grupo adversário,<br />

donativo que consiste geralmente em gado. A aceitação <strong>da</strong> oferta importa na extinção <strong>da</strong> questão, pelo<br />

pagamento do preço do sangue derramado”.<br />

13 Livro do Levítico, 24, 17-22 [sem grifo no original].<br />

14 Cf., sobre as práticas punitivas entre os povos indígenas brasileiros, no mesmo sentido do texto,<br />

BATISTA, Nilo. “Práticas penais no direito indígena”, em RDPen, n. 31 (jan-jun/1981), p. 75-86.<br />

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figura que será, posteriormente, o centro do cerimonial <strong>da</strong> distribuição de justiça: o juiz.<br />

No Egito antigo, essas características revelar-se-ão mais perfeitamente estrutura<strong>da</strong>s.<br />

§ 2º Egito<br />

Conforme se acentuou anteriormente e é, em ver<strong>da</strong>de, evidente e lógico, ca<strong>da</strong> povo e<br />

ca<strong>da</strong> região, nos tempos primitivos, antes ou durante o nascimento <strong>da</strong> escrita e <strong>da</strong><br />

linguagem, tiveram características próprias no que se refere ao seu desenvolvimento<br />

histórico.<br />

Relativamente aos demais povos <strong>da</strong> época, o egípcio experimentava, naquele<br />

momento, um ver<strong>da</strong>deiro salto de quali<strong>da</strong>de em seu desenvolvimento. Isso porque<br />

representa, na história, o primeiro exemplo de Estado efetivamente estruturado. E, mais<br />

que isso, de Estado predominantemente centralizado e despótico. 15<br />

Outras duas características preponderantes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de egípcia são sua religião e o<br />

avanço que lograram obter no campo do conhecimento e uso de práticas científicas<br />

empíricas. 16<br />

Essas características se combinaram dialeticamente na estruturação <strong>da</strong>s práticas<br />

egípcias de administração <strong>da</strong> justiça.<br />

Um exemplo dessa combinação dialética entre religião e matemática, por exemplo, é<br />

a referência ao Maât que, sendo o objetivo dos reis do Egito antigo, representa o<br />

equilíbrio. 17 Essa combinação influencia o processo <strong>da</strong> época, gerando um ver<strong>da</strong>deiro<br />

princípio, quase com o sentido como o vemos no presente. O Maât corresponde ao ideal<br />

<strong>da</strong>s partes saírem plena e igualmente satisfeitas do tribunal. Como tal, era um objetivo a<br />

ser perseguido e atingido pelos julgadores. Para os egípcios antigos, Maât é sinônimo de<br />

ver<strong>da</strong>de, ordem e justiça. 18<br />

É importante também ressaltar que o antigo Egito experimentou fases bastante<br />

diferencia<strong>da</strong>s no que se refere à sua caracterização como Estado.<br />

No período denominado pré-dinástico (entre 4.000 e 3.000 a.C.), o Estado egípcio<br />

formou-se. Isso se deu com a unificação política e territorial do Alto e Baixo Egito. Em que<br />

15<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 93.<br />

16<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 102-106.<br />

17<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 53.<br />

18 GILISSEN, John. Introdução…, p. 53.<br />

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pese sua incipiência como Estado, já é possível encontrar, nessa época, segundo os<br />

historiadores, um grande número de funcionários públicos, denominados de escribas. 19- 20<br />

No período dinástico se podem identificar duas fases: uma anterior e outra posterior à<br />

invasão e dominação do Egito pelos hicsos, povo originário <strong>da</strong> Ásia.<br />

Na fase anterior, situa<strong>da</strong> entre os anos de 3.000 e 1.750 a. C., continuou se<br />

desenvolvendo, sem rompimentos, a estrutura estatal egípcia, apenas nascente no<br />

período pré-dinástico.<br />

Posteriormente à expulsão dos hicsos, ocorri<strong>da</strong> por volta do ano de 1.750 a. C., o<br />

Estado egípcio transformou-se: enquanto na fase anterior à invasão era centralizado e<br />

despótico, com um fundo predominantemente teocrático – os reis eram reis-deuses – no<br />

período mais importante <strong>da</strong> fase posterior, denominado de Novo Império, que vigorou<br />

entre os anos de 1.580 e 1.085 a. C., todos os documentos jurídicos e históricos<br />

demonstram que o Estado egípcio voltou-se, sim, para a consoli<strong>da</strong>ção de seu poder, mas<br />

agora voltado para a realização do bem comum. 21<br />

Está claro que se tratava do bem comum dos estamentos mais envolvidos no<br />

processo político, pois a massa camponesa continuava em situação opressiva,<br />

principalmente por causa <strong>da</strong> carga tributária, mais pesa<strong>da</strong> nessa fase. 22<br />

No dizer de ANTONIO TRUYOL Y SERRA, é a fase de formação de um ver<strong>da</strong>deiro<br />

socialismo de Estado. 23 A rigor, ain<strong>da</strong> segundo os historiadores, esse socialismo de<br />

Estado nasceu no período do Médio Império, antes, portanto, <strong>da</strong> invasão dos hicsos, mas<br />

aprofundou-se, tomando conta inclusive <strong>da</strong> filosofia egípcia, após a expulsão desse povo<br />

asiático.<br />

Por derradeiro, na fase de decadência do Estado egípcio (entre 1.080 e 525 a.C.)<br />

percebe-se uma influência ca<strong>da</strong> vez maior dos povos vizinhos e mais poderosos,<br />

sobretudo gregos e romanos.<br />

Essas digressões históricas servem para demonstrar que as preocupações<br />

19<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 96.<br />

20<br />

Cf. GILISSEN, John. Introdução…, p. 54. Segundo esse autor, no antigo império egípcio, havia o<br />

serviço público de chancelaria, junto aos tribunais, destinado à documentação dos atos e ao registro civil em<br />

geral.<br />

21<br />

SERRA, António Truyol y. História…, p. 21-22.<br />

22<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 100.<br />

23<br />

SERRA, António Truyol y. História…, p. 22.<br />

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normativas com a distribuição <strong>da</strong> justiça se intensificaram após a fase do Novo Império,<br />

com a visão <strong>da</strong> justiça como serviço público. Anteriormente, a caracterização do Faraó<br />

como grande provedor dispensava esse tipo de preocupação: ele era a justiça.<br />

Já no período do Médio Império encontram-se documentos contendo conselhos aos<br />

julgadores, como a “Instrução do Faraó ao Vizir”, <strong>da</strong> XII Dinastia (entre 1.900 e 1.785<br />

a.C.), encontra<strong>da</strong> nos túmulos do Vizir Rekmara e sua família e que orienta os julgadores<br />

na direção <strong>da</strong> realização do princípio do Maât: “Atenta em que se espera o exercício <strong>da</strong><br />

Justiça na maneira de ser de um vizir. Atenta em o que é a lei justa, segundo o deus (Râ).<br />

Atenta no que se diz do escriba do vizir: ‘Escriba de Maât (a Justiça)’ é (o seu nome). A<br />

sala onde dás audiência, é a sala <strong>da</strong>s Duas Justiças, em que se julga: e quem distribui a<br />

Justiça perante os homens é o Vizir”. 24<br />

E prossegue, em outra tradução: “Quando vier um requerente do Alto ou do Baixo<br />

Egito (...) vê bem que tudo se faça conforme com a lei (...). Atende aquele que conheces<br />

como aquele que não conheces, o que vem pessoalmente junto de ti, como o que está<br />

longe <strong>da</strong> tua casa (...). Não despeças ninguém sem ter ouvido a sua palavra. Quando um<br />

requerente estiver junto de ti, queixando-se, não rejeites com uma palavra o que te disser,<br />

mas, se tiveres de negar-lhes o que pede, faz com que veja por que razão o negas”. 25<br />

Eis aí, portanto, o perfil dos julgadores egípcios: atuavam orientados fortemente por<br />

princípios que eram mais filosóficos que propriamente jurídicos. Esses princípios, ao<br />

menos formalmente, voltavam-se para a efetiva distribuição de justiça.<br />

Essa preocupação com a justiça eqüitativa fez, por exemplo, com que no Egito antigo<br />

o ordenamento jurídico-penal fosse menos rigoroso do que o de outras civilizações<br />

contemporâneas: nele não há notícia, por exemplo, de pena de morte. 26<br />

A justiça – já foi visto – era estatal e centraliza<strong>da</strong>. Os juízes faziam parte <strong>da</strong> classe<br />

sacerdotal e eram nomeados pelo Faraó e seus delegados na função de administrar<br />

justiça. 27 A escolha, porém, era eticamente orienta<strong>da</strong>: recaía, usualmente, sobre os mais<br />

respeitáveis e inteligentes homens. 28<br />

Quanto ao aspecto externo do processo, segundo JORGE ALBERTO ROMEIRO, era ele<br />

24<br />

MORET, Alexandre. Le Nil et la civilisation égyptienne, Paris, 1937, p. 331-332 apud GILISSEN,<br />

John. Introdução…, p. 56-57.<br />

25<br />

SERRA, António Truyol y. História…, p. 22.<br />

26<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 55.<br />

27<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 7-8.<br />

28<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.<br />

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predominantemente acusatório, sendo que em casos muito graves essa acusação era<br />

obrigatória mesmo para os que não eram ofendidos pelos crimes. 29<br />

No antigo Egito, diferentemente do que ocorria com os povos primitivos, já é possível<br />

encontrar um extremamente elaborado e solene cerimonial de justiçamento.<br />

O julgador egípcio tinha, segundo FRANÇOIS VIGOUROUX, citado por JOÃO MENDES DE<br />

ALMEIDA JÚNIOR, mania de escrever. 30 Mais do que isso, “os egípcios professavam uma<br />

crença no poder criador <strong>da</strong> palavra e, por extensão, <strong>da</strong>s imagens, dos gestos e dos<br />

símbolos em geral, que se articulava com a possibili<strong>da</strong>de de coagir os deuses e o<br />

cosmos; ou seja, com a magia. Ptah, deus de mênfis, numa <strong>da</strong>s versões do mito <strong>da</strong><br />

criação do mundo, gerou deuses simplesmente pronunciando os respectivos nomes. (...).<br />

A extensão de tal princípio a outros sistemas de signos abria o caminho a formas varia<strong>da</strong>s<br />

de ações mágicas. Se a palavra, o gesto, a escrita, a imagem etc. geram a reali<strong>da</strong>de,<br />

podia-se agir sobre esta através de fórmulas verbais, gesticulação ritual, textos,<br />

desenhos... (...). Se um <strong>da</strong>do rito exigia o sacrifício de um hipopótamo – ação bastante<br />

incômo<strong>da</strong> e complica<strong>da</strong> – quebrar a estatueta de um hipopótamo magicamente<br />

consagra<strong>da</strong> surtiria o mesmo efeito”. 31<br />

Daí porque a audiência do Egito antigo era caracteriza<strong>da</strong>, primeiramente, pela<br />

ausência <strong>da</strong> palavra dita em voz alta.<br />

Além disso, havia, de fato, uma certa mania de escrever. Contudo, essa atitude deve<br />

ser convenientemente entendi<strong>da</strong>, através do entendimento <strong>da</strong> simbologia egípcia: a<br />

escrita não tinha a função de registro ou de comunicação de atos, como hoje, mas a<br />

função de simbolizar os acontecimentos e transformá-los, magicamente.<br />

O cerimonial de distribuição de justiça do antigo Egito era, portanto, apenas<br />

externamente marcado pela escritura. Internamente, porém, tratava-se de um cerimonial<br />

simbólico e mágico, porque marcado por grande soleni<strong>da</strong>de e por gestuais de<br />

representação e de transformação <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de, tanto no tribunal supremo 32 quanto<br />

perante os juízos ordinários, que eram formados por colegiados de trinta juízes 33 e por<br />

29<br />

ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 39.<br />

30<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.<br />

31<br />

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito…, p. 85-89 [sem grifo no original].<br />

32 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.<br />

33 ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 39.<br />

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órgãos singulares, estes reservados aos casos de crimes menores. 34<br />

JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR escreve que “o tribunal supremo não buscava<br />

prestígio na luta oral <strong>da</strong> acusação e <strong>da</strong> defesa e nas emoções <strong>da</strong> eloqüência; mas, nem<br />

por isso havia ali o segredo <strong>da</strong> instrução. Era uma publici<strong>da</strong>de mu<strong>da</strong> e solene, diz (...) DU<br />

BOYS; e, como o sinal característico do egípcio era, na frase de VIGOUROUX, a mania de<br />

escrever, tudo ali era escrito, a acusação, a contestação, a réplica, a tréplica, as<br />

confissões e os depoimentos. O julgamento, esse sim, era secreto; e o presidente do<br />

tribunal, depois de toma<strong>da</strong> a deliberação no segredo do santuário, nem assim rompia o<br />

mutismo solene: limitava-se a tocar com a estatueta <strong>da</strong> justiça, suspensa a seu pescoço,<br />

a pessoa do vencedor e, em segui<strong>da</strong>, no meio de um silêncio glacial, mais terrível ain<strong>da</strong><br />

se havia um condenado, era este preso pelos oficiais de justiça e levado ao suplício que a<br />

lei determinava para o crime de que era acusado”. 35<br />

Esse silêncio não corresponde, simetricamente, a uma ausência <strong>da</strong> palavra dita. Ao<br />

revés, deve ser entendido no contexto <strong>da</strong> filosofia egípcia de crença no poder criador dos<br />

gestos e símbolos. A justiça se fazia por obra deles.<br />

No período de decadência do Estado egípcio, foi sendo ca<strong>da</strong> vez maior a influência<br />

dos gregos e romanos, principalmente no processo que, embora continuasse<br />

basicamente o mesmo – procedimento escrito e decisão secreta e simbólica – foi<br />

paulatinamente perdendo o simbolismo característico e se transformando, sob a influência<br />

<strong>da</strong>s outras culturas então hegemônicas, num processo racional.<br />

Diante <strong>da</strong>s particulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> antiga filosofia egípcia, certamente não é <strong>da</strong>do concluir<br />

que o seu processo penal era escrito, ao menos com o sentido que essa palavra possui<br />

hoje; nem, tampouco, que as palavras eventualmente proferi<strong>da</strong>s em suas cerimônias<br />

tinham função exatamente igual à que as palavras desempenham nas audiências do<br />

processo penal contemporâneo. 36<br />

Mais do que escrito, o processo penal egípcio era simbólico, gestual, talvez o único<br />

exemplo dessa espécie de processo na história <strong>da</strong>s civilizações organiza<strong>da</strong>s em Estado.<br />

Por tal razão, é assaz arriscado analisar o processo penal do antigo Egito com<br />

quaisquer dos conceitos atuais. A um só tempo, não é lícito dizer que sua audiência<br />

respeitava, nem que desrespeitava, por exemplo, os princípios <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de e imediação.<br />

34 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.<br />

35 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8; cf., também, ROMEIRO, Jorge Alberto. Da<br />

ação…, p. 39 [sem grifo no original].<br />

36 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8-9.<br />

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Não é possível dizer que negasse a orali<strong>da</strong>de e afirmasse a escritura, ou que<br />

desrespeitasse a imediação, impondo a intermediação do juiz com as provas: o processo<br />

penal do antigo Egito simplesmente desconheceu esses princípios, porque era mágico. 37<br />

Quanto ao princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR ensina que o<br />

processo penal do Egito antigo conheceu uma instrução, posto que escrita, sendo a<br />

audiência de julgamento secreta. Não há notícias sobre o princípio <strong>da</strong> concentração.<br />

Assim, resumindo, a importância do conhecimento do processo penal do antigo Egito<br />

se justifica por dois fatos principais. O primeiro deles se refere à existência, reconheci<strong>da</strong> e<br />

positiva<strong>da</strong> pelo Estado egípcio, de ver<strong>da</strong>deiros princípios a orientarem o trabalho dos<br />

julgadores; tratam-se <strong>da</strong> visão <strong>da</strong> justiça como um importante serviço público, em sua<br />

melhor acepção e do Maât (equilíbrio <strong>da</strong>s decisões). O segundo desses fatos é a<br />

estruturação de um ver<strong>da</strong>deiro cerimonial de justiçamento, com características próprias e<br />

ideologicamente afina<strong>da</strong>s com a filosofia egípcia.<br />

Contudo, é preciso deixar claro que esse cerimonial não deixou traços no processo<br />

penal ulterior, <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des organiza<strong>da</strong>s em Estado. A simbologia e a magia <strong>da</strong><br />

audiência processual penal do antigo Egito são únicas. 38<br />

37 Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 9. Segundo esse autor, um exemplo<br />

freqüentemente apontado pela doutrina processual penal de procedimento penal oral no antigo Egito, o<br />

julgamento dos mortos, não pode ser considerado de natureza processual penal. Esse ritual, que se<br />

realizava às margens do lago Moeris, tinha natureza política e moral: com ele, os antigos egípcios<br />

tencionavam examinar a conduta dos reis e administradores no dia de seus funerais.<br />

38 O processo penal, no extremo oriente, tinha outras características, orienta<strong>da</strong>s por filosofia to<strong>da</strong><br />

própria, conforme se percebe do texto de um documento chinês antigo, denominado TCHOUANG<br />

TSOTCHOUEN, item 10, transcrito por GILISSEN: “Nas causas judiciárias, pequenas e grandes, se não se<br />

puder estabelecer a evidência, é necessário decidir sempre segundo as circunstâncias”. Segundo esse<br />

mesmo autor, a interpretação desse dispositivo também é clássica: “Segundo a interpretação do Tch’ouents’ieou<br />

deve-se son<strong>da</strong>r os corações (as intenções) para estabelecer os crimes (Etienne BALAZS, Traité<br />

juridique du’Souei Chou, Leidem, 1954)” (GILISSEN, John. Introdução…, p. 115).<br />

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Seção B<br />

A audiência processual penal greco-romana<br />

§ 1º Grécia<br />

Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, as características principais do processo penal<br />

em Atenas foram a participação popular tanto no exercício <strong>da</strong> acusação, como no <strong>da</strong><br />

jurisdição, bem como as audiências orais e públicas. 39<br />

Quatro eram, conforme JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, os tribunais criminais: a<br />

Assembléia do Povo, o Areópago, e os tribunais dos Efetas e os dos Heliastas. 40<br />

Hierarquicamente, o mais graduado desses tribunais era a “Assembléia do Povo”<br />

(Ekklêsía), convoca<strong>da</strong> ordinariamente dez vezes por ano com competência a mais<br />

diversa. 41 No caso criminal, sua competência se referia aos crimes políticos mais<br />

graves. 42 . Da<strong>da</strong> a gravi<strong>da</strong>de dos crimes que julgava, o acusado, após a manifestação do<br />

Conselho dos Quinhentos, 43 era levado diante <strong>da</strong> Assembléia do Povo por um arconte e<br />

não tinha qualquer garantia de cunho processual ou material. 44<br />

Em tese, todo o povo de Atenas era juiz na Assembléia do Povo, excluídos os<br />

menores de dezoito anos, os não registrados no demos de origem, os escravos, as<br />

mulheres e os estrangeiros. 45<br />

A idéia de uma multidão incalculável é, entretanto, afasta<strong>da</strong> por GUSTAVE GLOTZ, para<br />

quem “era sempre uma fração do povo a que se apresentava. Pode-se avaliar em cerca<br />

de 42 mil o número de ci<strong>da</strong>dão em 431. A Pnice jamais poderia ter abrigado semelhante<br />

multidão e, no entanto, ela era amplamente suficiente. Em tempo de guerra, a maior parte<br />

dos adultos estava afasta<strong>da</strong> de Atenas (...). Em tempo de paz, os campônios (...)<br />

recuavam (...) diante de uma viagem por vezes longa e dispendiosa; os lenhadores de<br />

Arcanas permaneciam nas matas do Monte Parnes, e os comerciantes dos povoados<br />

distantes não abandonavam as suas lojinhas, salvo em ocasiões importantes; os<br />

39<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 15.<br />

40<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 13.<br />

41<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 129.<br />

42<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 15 e ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O<br />

processo…, p. 13.<br />

43<br />

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 34.<br />

44<br />

PLUTARCO, Vi<strong>da</strong>s Paralelas apud MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 16.<br />

45<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 196.<br />

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habitantes do litoral não renunciavam de bom grado a uma ou duas jorna<strong>da</strong>s de pesca.<br />

Quando aos ricos, não gostavam de ser incomo<strong>da</strong>dos. Os cavaleiros hesitavam em deixar<br />

as suas casas de campo de Colono para se misturar à multidão. Mesmo aqueles que<br />

viviam na ci<strong>da</strong>de nem sempre estavam dispostos a suportar o tédio de uma longa sessão<br />

(...). Certas resoluções tinham de ser toma<strong>da</strong>s pelo que impropriamente se chamava de “o<br />

povo completo” (ho dêmos plêthúôn); na reali<strong>da</strong>de, em tais casos, o quorum era de seis<br />

mil votos”. 46<br />

As sessões <strong>da</strong> Assembléia do Povo começavam pela manhã, sendo sinalizado seu<br />

início através do hasteamento de uma bandeira na colina <strong>da</strong> Pnice, local <strong>da</strong> reunião. As<br />

deliberações deviam se encerrar até o fim do dia; um caso mais complexo justificava a<br />

declaração de seu estado de permanência, durante o qual nenhuma outra discussão se<br />

podia iniciar. 47<br />

Com características de tribunal ordinário, apresentava-se o Areópago, ou Conselho de<br />

Anciãos, qualificado como o mais antigo e famoso dos tribunais atenienses. 48<br />

Foi estabelecido antes de Sólon, com caráter aristocrático, que aos poucos se foi<br />

atenuando, 49 bem como com competência para os crimes graves, como o homicídio<br />

premeditado, tentativa de homicídio que resulta em lesões corporais, de incêndio de casa<br />

habita<strong>da</strong> e de envenenamento. 50 Seus juízes eram os arcontes, em número variado mas<br />

não superior a 51 51 e seu procedimento introduziu algo muito importante e que tornar-seia,<br />

com o passar dos anos, característica comum, embora inconsciente, <strong>da</strong> disciplina <strong>da</strong>s<br />

audiências processuais penais que se seguiram às gregas.<br />

Trata-se do recurso cênico, utilizado conscientemente pelo aparelho judiciário<br />

ateniense. No caso específico do Areópago, esse recurso consubstanciou-se na dedução<br />

solene e teatral <strong>da</strong> acusação e na realização de sessões noturnas.<br />

Quanto ao primeiro exemplo, segundo ENRICO PESSINA, o autor sentava-se numa<br />

cadeira, denomina<strong>da</strong> cadeira do ultraje, diante do acusado, este sentado na cadeira <strong>da</strong><br />

inocência. Olhando para o acusado, o acusador proferia um juramento solene, “escurando<br />

46<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 128.<br />

47<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 130.<br />

48<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 13.<br />

49<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 192.<br />

50<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 192.<br />

51 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 13.<br />

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as Eumênides (fúrias infernais)”.<br />

52-53 Nesses exemplos, porém, o recurso fora consciente, pois as sessões noturnas, sob<br />

luz que não a do Sol, visavam a evitar, por parte dos participantes dos julgamentos, o uso<br />

<strong>da</strong> oratória vazia e <strong>da</strong> mistificação, bem como procuravam mascarar as expressões dos<br />

julgadores diante do desenrolar <strong>da</strong> instrução.<br />

54-55 Prossegue JORGE ALBERTO ROMEIRO, na descrição de outros recursos cênicos<br />

utilizados pelos atenienses nas sessões de julgamento do Areópago: “eram defesos no<br />

debate, que era público, oral e contraditório, os ornamentos e artifícios <strong>da</strong> retórica. A<br />

severi<strong>da</strong>de, o comedimento, a frieza mesmo, eram impostos aos litigantes na discussão<br />

<strong>da</strong> causa. Insulado, por meio de uma cor<strong>da</strong>, <strong>da</strong> assistência e guar<strong>da</strong>ndo desta a distância<br />

necessária para melhor impressioná-la, refletindo o triste palor do luar, o Areópago era<br />

envolvido, aos olhos de quem o visse, em uma grande névoa de mistério”. 56<br />

Esses recursos cênicos de controle <strong>da</strong> oratória, não há dúvi<strong>da</strong> que tinham um<br />

endereço certo: evitar a “perniciosa” retórica dos sofistas.<br />

Dos tribunais dos Efetas, constituídos também por 51 juízes e de competência<br />

jurisdicional imediatamente inferior ao Areópago, os três principais eram os seguintes: o<br />

Palládion, o Delphínion e o Phreattús. O Palládion era competente no caso de homicídio<br />

involuntário, de instigação ao homicídio, se a vítima é um ci<strong>da</strong>dão e de “assassinato”,<br />

voluntário ou não, de um meteco, estrangeiro ou escravo. 57 O Delphínion julgava, entre<br />

outros, os crimes cometidos na guerra ou durante práticas desportivas. O Phreattús,<br />

situado no litoral, era competente para julgar os crimes de homicídio premeditado<br />

praticado pelos anteriormente banidos do território ático.<br />

52<br />

PESSINA, Enrico. Storia delle leggi sul procedimento penale, Nápolis: 1912 apud ROMEIRO, Jorge<br />

Alberto. Da ação…, p. 47.<br />

53<br />

Cf. GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 194, que descreve a soleni<strong>da</strong>de diferentemente: “No Areópago,<br />

as partes punham-se de pé sobre dois blocos de rocha, a pedra <strong>da</strong> injúria (líthos húbreos) e a pedra <strong>da</strong><br />

implacabili<strong>da</strong>de (líthos anaiadeías) (...). Ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s partes tinha o direito de falar duas vezes. (...) Ao<br />

descer <strong>da</strong> colina de Ares, o absolvido penetrava na gruta <strong>da</strong>s Eumênides para pacificar as deusas e<br />

agradecer-lhes, com um sacrifício, o favor recebido (...)”.<br />

54<br />

ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 47.<br />

55<br />

Cf., em BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 430: “Na Grécia, houve tempo em que<br />

os oradores não podiam usar de exórdios, digressões, nem perorações para mover os juízes: aquele que<br />

quisesse indispô-los ou enternecer, seria logo chamado à ordem; a Justiça repele a paixão e a fraqueza.<br />

Sua máxima era: ‘Quod justum putant mansuet doceant, et docentem audiant’. ‘Quod si ab his aberrat<br />

adrem a magistratu reducatur’: ‘Plato de legibus’”.<br />

56<br />

ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 48.<br />

57 GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 192.<br />

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Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, esses tribunais não se mantiveram por muito<br />

tempo: a evolução <strong>da</strong> democracia escravista ateniense foi aos poucos lhes diminuindo a<br />

importância. 58<br />

Competente para crimes menores, suas audiências processuais penais foram<br />

caracterizados por cerimonial singelo, se comparado com as do Areópago, embora não<br />

prescindissem <strong>da</strong> soleni<strong>da</strong>de: “ A ação tem início com uma cerimônia dramática: os<br />

parentes acercam-se de onde está o morto e plantam uma lança no outeiro sepulcral: é a<br />

declaração de guerra. Ela provoca uma proclamação do rei (a prórrêsis) proibindo ao réu<br />

os lugares sagrados e mesmo o acesso à ágora, até o dia do julgamento (...): é a<br />

excomunhão. Faz-se o sumário de culpa em três sessões de contestação (prodikasíai)<br />

celebra<strong>da</strong>s em intervalos de um mês (...). É a céu aberto que se passa o julgamento, para<br />

que os juízes e o acusador escapem do contágio <strong>da</strong> impureza do réu (...). Nesse dia, o rei<br />

retira a coroa <strong>da</strong> cabeça (...). Antes de todos os debates, oferece-se um sacrifício, durante<br />

o qual se imolam um bode, um porco e um touro; diante do altar, as duas partes prestam<br />

solenemente um juramento declaratório sobre os fatos <strong>da</strong> causa”. 59<br />

Por fim, o <strong>Tribunal</strong> dos Heliastas, com competência residual, caracterizou-se pelo<br />

vário, mas sempre exagerado número de juízes, 60-61 escolhidos anualmente por sorteio<br />

dentre os ci<strong>da</strong>dãos atenienses e atendendo, como todos os outros tribunais de Atenas o<br />

fizeram com menor intensi<strong>da</strong>de, à medi<strong>da</strong> em que se aprofun<strong>da</strong>va a democracia<br />

escravista, ao princípio timocrático: a participação como juiz estava condiciona<strong>da</strong> à classe<br />

social, que por sua vez era determina<strong>da</strong> pela fortuna do pretendente.<br />

Suas sessões se verificavam em praça pública e ao Sol, por isso seu nome. 62 Suas<br />

audiências eram presidi<strong>da</strong>s pela orali<strong>da</strong>de, publici<strong>da</strong>de, imediação e concentração e, por<br />

oposição ao Areópago, admitiam o uso <strong>da</strong> retórica por parte <strong>da</strong>s partes e de seus<br />

representantes. Descreve-as GUSTAVE GLOTZ: “Chega, enfim, o dia <strong>da</strong> audiência. Cerca o<br />

tribunal uma paliça<strong>da</strong> interrompi<strong>da</strong> por uma porta de grades. (...) A sessão tem início de<br />

manhã bem cedo. (...) Tudo tem início, como se passa também na Assembléia, com um<br />

sacrifício e uma prece. (...) Concede-se, sucessivamente, a palavra ao autor e ao réu. (...)<br />

58<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 16.<br />

59<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 193-194.<br />

60<br />

HÉLIE, Faustin. Traité de l’instruction criminelle, Paris: 1845, v. 1, p. 21 apud ROMEIRO, Jorge<br />

Alberto. Da ação…, p. 48.<br />

61<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 196.<br />

62 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 14.<br />

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O julgamento (...) deve encerrar-se no próprio dia (...). É preciso, por conseguinte, an<strong>da</strong>r<br />

depressa. (...) O tempo é controlado por uma clepsidra (...). Nos processos públicos em<br />

que se avaliam as sentenças, divide-se o dia de trabalho em três sessões, sendo uma<br />

reserva<strong>da</strong> à acusação, outra, ao réu, e a terceira aos juízes. Até cerca de 390, as<br />

testemunhas devem fazer oralmente os seus depoimentos; depois disso, os depoimentos<br />

são redigidos, com antecipação, e recitados pelo escrivão. (...) Enquanto duravam os<br />

debates, os juízes desempenhavam o papel de jurados mudos e passivos. (...) Votavam<br />

sem prévia deliberação, e o segredo do voto garantia a liber<strong>da</strong>de com que era <strong>da</strong>do. (...)<br />

Depois de 390 (...) ca<strong>da</strong> jurado recebia dois jetons de bronze, um inteiriço, para a<br />

absolvição, o outro furado, para a condenação; atirava o que devia valer numa urna de<br />

bronze (kúrios amphoreús) e o outro, como contraprova, numa urna de madeira (ákuros<br />

amphoreús) (...). O arauto proclamava os resultados do escrutínio, e o presidente<br />

pronunciava a decisão, obti<strong>da</strong> mediante maioria simples”. 63<br />

JULIO FABBRINI MIRABETE, a propósito, assinala que em todos os tribunais atenienses,<br />

após a instrução, os juízes votavam sem deliberação prévia, sendo que o empate era<br />

considerado a favor do acusado. 64<br />

É lícito, outrossim, registrar que o sistema judicial ateniense foi estruturado, em<br />

grande parte, pela feição política vigente. A existência de grandes tribunais, nos quais os<br />

mesmos personagens que definiam os destinos políticos e militares de Atenas julgavam<br />

seus pares, é comprovação cabal disso.<br />

Assim, é perfeitamente razoável afirmar-se que Atenas moldou seu sistema judicial a<br />

partir de um explícito ponto de vista constitucional e é, talvez, o primeiro exemplo histórico<br />

desse tipo de interação, ao menos de uma interação conscientemente realiza<strong>da</strong>.<br />

Reconhecendo essa feição popular, HEINRICH AHRENS, contudo, adverte que a morte<br />

de Sócrates e as perseguições empreendi<strong>da</strong>s contra Alcibíades, Pitágoras, Diógenes etc.<br />

sugerem alguma falta de retidão na aplicação do Ordenamento jurídico-penal por parte<br />

dos tribunais atenienses, ain<strong>da</strong> que caracterizados por ampla participação popular. 65<br />

Exemplo: a partir de Clístenes, no Século VI a.C., evoluindo até o apogeu com<br />

Péricles, por princípio constitucional, os tribunais atenienses haviam de funcionar como<br />

simulacros <strong>da</strong> própria socie<strong>da</strong>de, com efetiva participação popular. Como princípio de<br />

63<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de…, p. 200-203.<br />

64<br />

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 34.<br />

65<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 112, nota 223.<br />

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constituição <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de-Estado, a democracia escravista ateniense havia de presidir a<br />

estruturação e funcionamento dos tribunais.<br />

É o que escreve ANTONIO TRUYOL Y SERRA, ao se referir à teoria <strong>da</strong> democracia de<br />

Péricles e Protágoras: “núcleo dessa concepção é a participação de todos os ci<strong>da</strong>dãos na<br />

vi<strong>da</strong> política, chama<strong>da</strong> a criar neles um sentido de responsabili<strong>da</strong>de e uma livre aceitação<br />

<strong>da</strong> subordinação de todos às exigências do bem comum. A igual<strong>da</strong>de de oportuni<strong>da</strong>des<br />

deve substituir os privilégios hereditários. No discurso de Péricles, há sobretudo uma fé<br />

otimista no valor social <strong>da</strong> livre discussão e <strong>da</strong> espontanei<strong>da</strong>de individual”. 66<br />

Assim, portanto, e resumindo, as mais relevantes contribuições, dentre tantas, do<br />

processo penal ateniense, no âmbito <strong>da</strong> audiência, foram a explícita utilização de recursos<br />

cênicos na estruturação <strong>da</strong>s sessões dos tribunais e, à medi<strong>da</strong> em que se desenvolvia a<br />

democracia ateniense, a interação entre a constituição política do Estado e a estruturação<br />

e funcionamento <strong>da</strong> máquina judicial.<br />

§ 2º Roma<br />

Citando GUGLIELMO SABATINI, ao mesmo tempo em que contesta essa versão, HÉLIO<br />

TORNAGHI registra a existência de uma len<strong>da</strong> segundo a qual três senadores romanos<br />

foram à Grécia especialmente para conhecerem o processo grego e transpô-lo para<br />

Roma. 67<br />

Seja como for, a ver<strong>da</strong>de é que o processo penal grego, ao menos no início do<br />

processo penal romano, foi uma influência forte.<br />

As dificul<strong>da</strong>des em estu<strong>da</strong>r o processo penal romano são por demais conheci<strong>da</strong>s. Vão<br />

desde as fontes, jamais abun<strong>da</strong>ntes e poucas vezes perfeitamente confiáveis, até a<br />

característica de que o processo penal romano existiu quase sempre em fusão com o<br />

respectivo ordenamento jurídico-penal. 68 Essa dificul<strong>da</strong>de é a mesma no que se relaciona<br />

com o processo penal grego e egípcio.<br />

Assim, a ver<strong>da</strong>de, conforme afirma ALBERTO BURDESE, é que a evolução do processo<br />

penal romano determinou e conformou o desenvolvimento do respectivo ordenamento<br />

66<br />

SERRA, António Truyol y. História…, p. 103.<br />

67<br />

TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 3, p. 469-470. A obra de GUGLIELMO SABATINI cita<strong>da</strong> por<br />

TORNAGHI é “Teoria <strong>da</strong>s provas no direito judiciário penal” (Teoria delle prove nel diritto giudiziario penale,<br />

1900-1915).<br />

68<br />

TUCCI, Rogério Lauria. Lineamentos…, p. 11.<br />

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jurídico-penal. 69<br />

ALBERTO BURDESE, que define o processo penal romano como o conjunto de atos<br />

desenvolvidos pelos órgãos públicos ou sob o seu controle para a imposição de pena<br />

criminal, 70 ensina que sua evolução partiu de uma função religiosa, a de restabelecer a<br />

pax deorum. 71 Essa fase, dos primitivos monarcas de origem etrusca que governaram<br />

Roma, até a Lei <strong>da</strong>s XII Tábuas, corresponde, com maior sofisticação, embora, às<br />

práticas punitivas primitivas.<br />

HEINRICH AHRENS aponta como sinal dessa sofisticação uma mais níti<strong>da</strong> separação<br />

entre as esferas estatal e individual do que a de povos contemporâneos dos romanos. A<br />

intervenção do Estado se limitava a crimes 72 de traição (proditio) resistência violenta às<br />

autori<strong>da</strong>des (perduellio) homicídio atroz (parricidium) incêndio, falso testemunho e ceifa, à<br />

noite, de campos consagrados ao sustento dos deuses e do povo, todos esses, crimes<br />

punidos com a morte. 73<br />

Há, porém, já na Lei <strong>da</strong>s XII Tábuas, algumas normas respeitantes ao processo e<br />

outras à audiência judicial. 74<br />

Nessa fase, é fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> persecução a coërcitio, defini<strong>da</strong> como o poder<br />

discricionário dos magistrados de cominar e aplicar sanções de caráter criminal. 75<br />

Por essa razão e baseado em THEODOR MOMMSEN, ROGÉRIO LAURIA TUCCI anota que o<br />

momento mais importante dessas práticas processuais inicia<strong>da</strong>s pelo próprio magistrado,<br />

69 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241.<br />

70 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

71 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

72 Cf., a diferenciação romana entre delito público e delito privado em ALVES, José Carlos Moreira.<br />

Direito…, p. 265 (texto e nota n. 1.471): “Delito público é a violação de norma jurídica que o Estado<br />

considera de relevante importância social. Assim, por exemplo, são delitos públicos a perduellio (atentado<br />

contra a segurança do Estado), o parricidium (assassínio de homem livre). O Estado punia os autores dos<br />

delitos públicos com poena publica (pena pública), imposta por Tribunais especiais (como as Quaestiones<br />

Perpetuae), e que consistia na morte, ou na imposição de castigos corporais, ou em multa que revertia em<br />

benefício do Estado [segundo se verifica dos textos, os jurisconsultos clássicos, em geral (e não,<br />

invariavelmente ...) designavam o delito público com termo crimen, e o delito privado, com os vocábulos<br />

delictum e maleficium (este, empregado mais raramente)]”.<br />

73 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 134.<br />

74 Da 1 a Tábua: “IV – Que um rico somente respon<strong>da</strong> por um rico; por um proletário respon<strong>da</strong> quem<br />

quiser. V – Se as partes transigirem, que a deman<strong>da</strong> seja assim regula<strong>da</strong>. VI – Não havendo acordo, que o<br />

magistrado conheça <strong>da</strong> causa antes do meio-dia, no comício ou no foro, depois <strong>da</strong> discussão entre os<br />

litigantes. VII – Passado o meio dia, que o magistrado se pronuncie perante as partes presentes. VII –<br />

Depois do sol posto, nenhum ato mais de processo” (Lei <strong>da</strong>s XII Tábuas, sem referências, apud<br />

ALTAVILLA, Jayme de. A origem…, p. 22).<br />

75 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

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através <strong>da</strong> cognitio, 76 vinha a ser a audiência de interrogatório. 77<br />

É o seguinte o trecho em que THEODOR MOMMSEN disserta sobre o assunto: “A lei não<br />

assinalava nenhuma forma fixa nem para a abertura do juízo, nem, tampouco, para sua<br />

terminação. O magistrado podia sobrestar e abandonar a causa em todo momento, e em<br />

todo momento também podia renová-la; a cognição não consentia, por sua própria<br />

natureza, que se desse uma absolvição tal que impedisse abrir novamente o mesmo<br />

processo. O interrogatório do inculpado, interrogatório que já não se conhece no juízo<br />

penal de época posterior, deve ter constituído o ponto central do procedimento primitivo,<br />

porquanto nenhum interrogado podia negar-se a contestar o magistrado que o<br />

interrogava”. 78<br />

No mesmo sentido escreve ALFREDO VELEZ MARICONDE: “Não se conservaram traços<br />

do procedimento imperante nessa época, embora pareça lógico admitir que se caracteriza<br />

pela ausência de to<strong>da</strong> forma legal ou invariável, capaz de por limites à arbitrarie<strong>da</strong>de do<br />

julgador, que ao mesmo tempo tinha a suma do poder: a in<strong>da</strong>gatória constitui a alma do<br />

processo, e a defesa se exerce na medi<strong>da</strong> em que o magistrado tem por bem concedê-<br />

la”. 79<br />

Essa parece ser a primeira contribuição efetiva do processo penal romano à<br />

estruturação <strong>da</strong> audiência tal como se a conhece hoje. É nele que se caracteriza com<br />

nitidez e autori<strong>da</strong>de incontrastável, ao menos no seio do processo, a figura do juiz, que<br />

nas práticas punitivas primitivas apenas surgira.<br />

O magistrado romano dessa fase encarna o imperium do Estado e nisso está to<strong>da</strong> sua<br />

importância. Diferentemente do que ocorria na Grécia, a autori<strong>da</strong>de estatal está, nessa<br />

fase do processo penal romano, encarna<strong>da</strong> numa pessoa. Conforme se viu acima, por<br />

injunções constitucionais, a autori<strong>da</strong>de judiciária grega era uma assembléia, uma<br />

76<br />

TUCCI, Rogério Lauria. Lineamentos…, p. 109.<br />

77<br />

TUCCI, Rogério Lauria. Lineamentos…, p. 114.<br />

78<br />

MOMMSEN, Theodor. Derecho…, p. 224. Trecho original: “La Ley no señalaba ninguna forma fija ni<br />

para la apertura del juicio, ni en rigor tampoco para su terminación. El magistrado podía sobreseer y<br />

abandonar la causa en todo momento, y en todo momento también podía renovarla; la cognición no<br />

consentía, por su propia naturaleza, que se diese una absolución tal, que impidiera abrir de nuevo el mismo<br />

proceso. El interrogatorio del inculpado, interrogatorio que ya no se conoce en el juicio penal de época<br />

posterior, debió constituír el punto central del procedimiento primitivo, por cuanto ningún interrogado podía<br />

negarse a contestar al magistrado que le preguntaba”.<br />

79<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 24-25. Trecho original: “No se han conservado trazas del<br />

procedimiento imperante en esta época, si bien parece lógico admitir que se caracteriza por la ausencia de<br />

to<strong>da</strong> forma legal o invariable, capaz de poner límites a la arbitrarie<strong>da</strong>d del juzgador, que al mismo tiempo<br />

tenía la suma del poder: la in<strong>da</strong>gatoria constituye el alma del proceso, y la defensa se ejerce en la medi<strong>da</strong><br />

que el magistrado tiene a bien concederla”.<br />

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Currículo<br />

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socie<strong>da</strong>de, menor embora, que to<strong>da</strong> a socie<strong>da</strong>de em que se inseria. Esse poder, portanto,<br />

estava dissolvido entre muitos homens e não reunido nas mãos de um só. Em Roma ele<br />

será concentrado, paulatinamente com maior intensi<strong>da</strong>de, nas mãos de somente um<br />

indivíduo.<br />

Paralelamente a essa espécie de procedimento, em que a discricionarie<strong>da</strong>de do<br />

magistrado era a nota marcante, desenvolvia-se um processo comicial, diante de uma<br />

assembléia de ci<strong>da</strong>dãos, nos moldes <strong>da</strong> equivalente grega. 80 A diferença é que essa<br />

assembléia se reunia após uma espécie de recurso por parte do acusado, a provocatio ad<br />

populum. 81 É aqui que os romanistas identificam um marcante teor publicístico <strong>da</strong><br />

evolução do processo penal, visto que, naquele momento de sua evolução, o processo<br />

civil era per legis actiones, 82- 83 arcaica forma de deduzir os pedidos em juízo.<br />

THEODOR MOMMSEN, porém, observa que não foi precisamente no momento em que<br />

passou a existir um procedimento comicial que os poderes de coërcitio do magistrado<br />

romano foram efetivamente limitados. Ain<strong>da</strong> que tivesse de atuar em conjunto com os<br />

Comícios, o juiz permanecia com poderes ilimitados. Somente com a anquisito, fruto <strong>da</strong><br />

evolução <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de romana, surgiram limitações. É o que ensina o importante<br />

historiador alemão: “teve uma importância grande no desenvolvimento do procedimento<br />

penal a circunstância de que para fazer possível uma decisão a respeito dos ci<strong>da</strong>dãos,<br />

era preciso <strong>da</strong>r, não só a sentença, senão também os fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> mesma, as provas<br />

<strong>da</strong> culpabili<strong>da</strong>de do condenado; pelo que, <strong>da</strong>do e depois <strong>da</strong> inquisição que sem<br />

formali<strong>da</strong>des legais havia levado a cabo o magistrado, se fazia uso de um procedimento<br />

penal preparatório, chamado anquisitio, no qual estava fixamente determina<strong>da</strong> a citação e<br />

fixamente determinados os prazos, e onde se admitia, além <strong>da</strong> autodefesa, a defesa por<br />

meio de terceira pessoa. (...) Não pode caber dúvi<strong>da</strong> alguma de que se o direito romano<br />

80 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

81 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 35.<br />

82 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

83 Cf. a conceituação acerca do procedimento civil romano denominado per legis actiones em ALVES,<br />

José Carlos Moreira. Direito…, p. 261-262: “O mais antigo dos sistemas do processo civil romano é o <strong>da</strong>s<br />

ações <strong>da</strong> lei (legis actiones) (...). Julgava-se (...) que ela (refere-se à denominação) decorria ou do fato de<br />

as legis actiones se originarem <strong>da</strong> lei, ou, então, <strong>da</strong> circunstância de elas se conformarem com as palavras<br />

<strong>da</strong> lei. (...) O processo <strong>da</strong>s ações <strong>da</strong> lei é todo oral, quer diante do magistrado (in iure), quer diante do juiz<br />

popular (apud iudicem). Caracteriza-se, principalmente, pela rigidez do formalismo a ser observado pelos<br />

litigantes, a ponto de alguém – o exemplo é de GAIO (Inst. IV, 11) – perder a deman<strong>da</strong> pelo fato de haver<br />

empregado em juízo a palavra uites (videira), ao invés do termo arbor (árvore), como preceituava a Lei <strong>da</strong>s<br />

XII Tábuas com relação à actio de arboribus succisis (ação relativa às árvores corta<strong>da</strong>s), e isso apesar de,<br />

no caso concreto, as árvores abati<strong>da</strong>s terem sido justamente videiras”.<br />

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Currículo<br />

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chegou a construir em geral um procedimento penal regulado pela lei, as bases para esse<br />

procedimento as deixou a anquisição”. 84<br />

Tanto a audiência processual penal desenvolvi<strong>da</strong> perante assembléia, essência desse<br />

processo comicial, quanto o interrogatório do magistrado romano com o acusado de<br />

crime, na primeira fase, parece lícito supor que se desenvolviam oralmente, com o contato<br />

imediato do julgador com a prova. Tudo nos moldes <strong>da</strong>s audiências processuais penais<br />

<strong>da</strong> Grécia durante o mesmo período, excluído o caso especial do processo perante o<br />

Areópago, em que as audiências tinham características cênicas especiais, conforme visto.<br />

Essa conclusão se fun<strong>da</strong>, em primeiro lugar, na fase de desenvolvimento do Estado<br />

romano, nesse tempo ain<strong>da</strong> incipiente; em segundo, na filiação comum entre os<br />

processos grego e romano.<br />

J. M. OTHON SIDOU ensina que a orali<strong>da</strong>de era a tônica do processo romano, ao menos<br />

durante o período republicano, afirmando que diversas características permitem<br />

considerá-lo como tal. Assim, o livre convencimento, a imediação, a identi<strong>da</strong>de, o<br />

desenvolvimento dos atos processuais só em audiência, sem escrito, a irrecorribili<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s decisões interlocutórias, com a concentração dos autos, a coisa julga<strong>da</strong> somente em<br />

relação à sentença final etc. 85 Outros autores acrescentam a liber<strong>da</strong>de de meios de<br />

prova, 86 o contraditório, 87 bem como a clara separação entre a fase instrutória e a fase<br />

decisória, aquela perante o juiz e esta perante uma assembléia, 88 como outros sinais<br />

desse predomínio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de no processo penal romano durante o período republicano.<br />

No Século IV a. C., destaca-se <strong>da</strong>s assembléias comiciais um júri extraordinário<br />

84<br />

MOMMSEN, Theodor. Derecho…, p. 225-226. Trecho original: “tuvo una importancia grande en el<br />

desarrollo del procedimiento penal la circunstancia de que para hacer posible una decisión respecto de los<br />

ciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos, era preciso <strong>da</strong>r, no solo la sentencia, sino también los fun<strong>da</strong>mentos de la misma, las pruebas<br />

de la culpabili<strong>da</strong>d del condenado; por lo que, al <strong>da</strong>do y después de la inquisición que sin formali<strong>da</strong>des<br />

legales había llevado a cabo el magistrado, se hacía uso de un procedimiento preparatorio, llamado<br />

anquisitio, en el cual estaba fijamente determina<strong>da</strong> la citación y fijamente determinados los plazos, y en<br />

onde se admitía, además de la autodefensa, la defensa por medio de tercera persona. (...) No puede caber<br />

du<strong>da</strong> alguna de que si el derecho romano llegó a construír en general un procedimiento penal regulado por<br />

la ley, las bases para este procedimiento las echó la anquisición”.<br />

85<br />

SIDOU, J. M. Othon. A vocação…, p. 133.<br />

86 GILISSEN, John. Introdução…, p. 714.<br />

87<br />

Cf., em GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini. Liber<strong>da</strong>des…, p. 30: “O processo era dominado pelo<br />

contraditório; a prova dos fatos competia às partes, sem que o juiz tomasse qualquer iniciativa; se o réu se<br />

confessava culpado, era condenado sem mais in<strong>da</strong>gações. A publici<strong>da</strong>de e a orali<strong>da</strong>de imperavam, nesta<br />

fase”.<br />

88<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 150-151.<br />

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destinado à repressão de crimes que atentassem contra o interesse coletivo. 89 Essa é a<br />

base do futuro sistema de juízes ordinários permanentes e pertence a uma fase<br />

denomina<strong>da</strong> quaestiones perpetuae.<br />

Esse sistema, regulado pela Lex Iulia iudiciorum publicorum, de Augusto,<br />

freqüentemente classificado como acusatório, pois a iniciativa do processo penal ficava ao<br />

encargo de particulares, estabelecia uma base à finali<strong>da</strong>de de repressão regular <strong>da</strong><br />

criminali<strong>da</strong>de. 90 Sua audiência era predominantemente pública, oral, com contato direto<br />

entre o órgão julgador e as provas, e desenvolvia-se perante um colegiado de juízes<br />

regulares. 91<br />

Conforme dito, a finali<strong>da</strong>de precípua <strong>da</strong> fase <strong>da</strong>s quaestiones perpetuae era propiciar<br />

uma repressão regular <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de. Com o tempo, a iniciativa meramente priva<strong>da</strong><br />

dos crimes, denomina<strong>da</strong> accusatio, mostrou-se um desserviço à repressão tal como<br />

espera<strong>da</strong>. 92 Por isso, a fase imediatamente posterior, a <strong>da</strong> ordo iudiciorum publicorum,<br />

manteve as mesmas características anteriores, inclusive com relação à audiência,<br />

excetuando a iniciativa do processo, que já não era mais do ci<strong>da</strong>dão.<br />

A cognitio extra ordinem – última fase do desenvolvimento do processo penal romano<br />

– se caracterizou pela dominação do processo pelo magistrado e pela predominância <strong>da</strong>s<br />

formas escritas, mostrando a direção do processo inquisitivo. 93 A discricionarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

primeira fase e a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas <strong>da</strong>s fases <strong>da</strong>s quaestiones perpetuae e ordo<br />

iudiciorum publicorum foram substituí<strong>da</strong>s por uma praxe ca<strong>da</strong> vez mais vinculante e<br />

estritamente regra<strong>da</strong> por disposições imperiais. 94<br />

89<br />

BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

90<br />

BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

91<br />

BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

92<br />

Cf., em GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini. Liber<strong>da</strong>des…, p. 30-31: “A acusação tornou-se, na reali<strong>da</strong>de,<br />

fonte de graves injustiças, principalmente quando se dispôs que um quarto <strong>da</strong> multa paga pelo condenado<br />

fosse atribuí<strong>da</strong> ao acusador. (...). A produção de provas, confia<strong>da</strong> à parciali<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes, não oferecia<br />

garantias suficientes para o imputador que não dispusesse de meios (...). Foi assim necessário, de um lado,<br />

pôr cabo à corri<strong>da</strong> às acusações e, de outro lado, fazer sentir com maior peso a autori<strong>da</strong>de do Estado. As<br />

sanções fixa<strong>da</strong>s contra o acusador de má-fé (...) tornaram-se mais severas (...). Esse sistema (...) continha<br />

(...) sério defeito: a cominação de sanções tão graves a cargo do acusador fez com que as acusações<br />

diminuíssem, e não apenas as infun<strong>da</strong><strong>da</strong>s (...). Tal circunstância (levou) o Estado a intervir ex officio,<br />

inicialmente naqueles casos particulares em que mais evidente se demonstrava o interesse público e,<br />

gra<strong>da</strong>tivamente, de maneira geral, pela instituição de funcionários públicos, encarregados de promover a<br />

persecução penal (...). Foi assim que se organizou uma polícia oficial, fortemente centraliza<strong>da</strong>, com funções<br />

tipicamente judiciárias, enquanto o espírito policial do povo foi desaparecendo (...). O sistema acusatório<br />

puro entrava em crise (...)”.<br />

93<br />

BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

94 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.<br />

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A respeito do funcionamento dos tribunais romanos, sobretudo no que respeita às<br />

suas audiências e ao comportamento dos advogados, juízes e acusados, JÉROME<br />

CARCOPINO tece interessantes considerações: “Uma preciosa indicação de Marcial revela<br />

que nos dias fastos os tribunais ordinários atuavam sem cessar desde o amanhecer até o<br />

final <strong>da</strong> quarta hora (...), o que à primeira vista limita as audiências a três de nossas horas<br />

no inverno e as prolonga por cinco horas segui<strong>da</strong>s no verão. (...). Na época de Marcial era<br />

comum o advogado de uma <strong>da</strong>s partes reclamar e obter dos juízes pelo menos seis<br />

clepsidras só para si (...). Como podemos deduzir de uma passagem de Plínio, o Jovem,<br />

que ca<strong>da</strong> uma dessas clepsidras – cuja igual<strong>da</strong>de de fluxo postula a relação com o<br />

horário dos equinócios – devia escoar-se em cerca de vinte de nossos minutos, resulta de<br />

tal hábito que uma só defesa preenchia mais ou menos o tempo de uma sessão no<br />

inverno e que pelo menos outra sessão, com a réplica e o desfile <strong>da</strong>s testemunhas, era<br />

indispensável para concluir-se o processo. (...) Durante (...) todo o tempo para os<br />

processos criminais, a Urbs se consumia com a febre judiciária que se apoderava não só<br />

dos litigantes ou dos acusados, mas também de seus advogados e <strong>da</strong> multidão de<br />

curiosos imobilizados durante horas à volta dos tribunais, pela avidez do escân<strong>da</strong>lo ou<br />

pelo gosto <strong>da</strong>s controvérsias oratórias. Tais audiências não eram uma sinecura para<br />

ninguém. Exauriam a todos: litigantes e testemunhas, juízes e advogados, sem contar os<br />

espectadores. (...). Numa e noutra eventuali<strong>da</strong>de, magistrados e público se apinhavam, e<br />

era numa atmosfera sufocante que se desenrolavam os debates. Para cúmulo do<br />

infortúnio, a acústica era lamentável, o que obrigava os advogados a redobrar os<br />

esforços, os juízes a redobrar a atenção, os espectadores a redobrar a paciência. Muitas<br />

vezes a voz tonitruante de um dos defensores, enchendo o vasto saguão, encobria as<br />

controvérsias <strong>da</strong>s outras seções; (...). Ademais, para aumentar a cacofonia, intervinha o<br />

entusiasmo estipendiado <strong>da</strong> claque, que, à imitação de Larcius Licinus, advogados<br />

impudentes se habituavam a levar aos processos que desejavam ganhar; com tal prática<br />

(...) pretendiam tanto impressionar o júri como servir à própria reputação”. 95<br />

O aspecto relevante do desenvolvimento do processo penal romano, no que toca à<br />

audiência processual penal, é precisamente o sentido e a direção desse desenvolvimento.<br />

Mais especificamente, o que esse desenvolvimento tinha de “premonitório”, por assim<br />

dizer.<br />

Explique-se: a evolução do processo penal romano foi no sentido <strong>da</strong><br />

95 CARCOPINO, Jérome. Roma…, p. 223-226.<br />

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profissionalização dos órgãos judiciários e <strong>da</strong> positivação <strong>da</strong>s praxes procedimentais,<br />

tendo essas medi<strong>da</strong>s o escopo de instrumentalizarem uma regular repressão <strong>da</strong><br />

criminali<strong>da</strong>de. Como sub-produto dessa profissionalização e regramento, o processo<br />

penal caminhou na direção <strong>da</strong> inquisitivi<strong>da</strong>de. A inquisitivi<strong>da</strong>de, por sua vez, trouxe um<br />

ca<strong>da</strong> vez mais profundo desinteresse pela audiência processual penal, especialmente<br />

pela audiência de julgamento. Nascia o processo ver<strong>da</strong>deiramente escrito.<br />

Essa direção do processo penal romano foi premonitória. Interrompi<strong>da</strong> pelas invasões,<br />

repetiu-se, depois, como tragédia.<br />

Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, essa tragédia somente não ocorreu entre os<br />

romanos <strong>da</strong>do que possuíam “um secreto espírito de humani<strong>da</strong>de e de prudência”, que<br />

preservou a pessoa do acusado <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira barbárie que tanto tempo depois ocorreria. 96<br />

96 MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 22.<br />

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Seção C<br />

A audiência processual penal bárbara<br />

A fragmentação do império romano se deu aos poucos, conforme é sabido, através<br />

<strong>da</strong>s diversas invasões bárbaras. Da mesma maneira, o processo penal romano foi sendo<br />

tomado pelas práticas punitivas dos invasores, que o foram paulatinamente<br />

descaracterizando.<br />

A influência principal <strong>da</strong>s novas práticas punitivas verificou-se, conforme é notório, no<br />

terreno <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória. Enquanto no processo penal romano as provas<br />

obedeciam a um princípio de racionali<strong>da</strong>de – ao menos racionali<strong>da</strong>de conforme se a<br />

entende hoje – as provas bárbaras eram caracteriza<strong>da</strong>s, comparativamente com as<br />

provas romanas, por certa dose de irracionali<strong>da</strong>de.<br />

Contudo e antes de prosseguir, é preciso fazer um esclarecimento. Está claro que a<br />

influência <strong>da</strong>s práticas punitivas bárbaras foi no sentido de uma certa irracionalização <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de probatória. Essa direção, porém, deve ser justamente compreendi<strong>da</strong>.<br />

Em primeiro lugar, irracionalização corresponde, aqui, à própria visão romana,<br />

claramente pejorativa, dos invasores como bárbaros. Por tal razão, deve ser<br />

compreendi<strong>da</strong> cum granum salis.<br />

Assim, as provas irracionais tinham como base dois valores de grande importância: a<br />

igual<strong>da</strong>de formal entre as partes e a resposta divina, de determinação do resultado <strong>da</strong><br />

prova. Aliás, era <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de formal garanti<strong>da</strong> entre as partes que nascia a possibili<strong>da</strong>de<br />

de prestação do favor divino. Esta é, decerto, a mais relevante característica <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal bárbara.<br />

É justa, nesse particular, a observação de MICHEL FOUCAULT: “O ordálio que submetia<br />

o acusado a uma prova, o duelo no qual se confrontavam acusado e acusador ou seus<br />

representantes, não eram uma maneira grosseira e irracional de ‘detectar’ a ver<strong>da</strong>de e de<br />

saber o que realmente tinha acontecido quanto à questão em litígio. Eram uma maneira<br />

de decidir de que lado Deus colocava naquele momento o suplemento de sorte ou de<br />

força que <strong>da</strong>va a vitória a um dos adversários. O êxito, se tivesse sido conquistado<br />

conforme o regulamento, indicava em proveito de quem devia ser feita a liqui<strong>da</strong>ção do<br />

litígio. E a posição do juiz não era a de um pesquisador tentando descobrir uma ver<strong>da</strong>de<br />

oculta e restituí-la na sua forma exata, devia sim organizar a sua produção, autentificar as<br />

formas rituais na qual tinha sido suscita<strong>da</strong>. A ver<strong>da</strong>de era o efeito produzido pela<br />

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determinação ritual do vencedor”. 97<br />

Em segundo lugar, é preciso sublinhar que essa relativa irracionali<strong>da</strong>de dos povos<br />

bárbaros é o resultado histórico <strong>da</strong> influência dos gregos e de sua filosofia. Com efeito,<br />

quando se iniciaram as “invasões bárbaras”, os povos invasores já viviam uma cultura<br />

fortemente influencia<strong>da</strong> pelos gregos, que nas suas terras, navegando pelos mares do<br />

norte, penetraram.<br />

Antes dessa influência, os bárbaros viviam um ordenamento jurídico-penal<br />

caracterizado por uma muito própria racionali<strong>da</strong>de e influenciado pela moral.<br />

Segundo HEINRICH AHRENS, entre os germânicos, por exemplo, em seus primeiros<br />

tempos, tiveram relevo as assembléias deliberatórias, presidi<strong>da</strong>s pelos príncipes e pelo rei<br />

e que decidiam racionalmente. 98 No ordenamento jurídico-penal haviam os crimes<br />

cometidos diretamente contra a comuni<strong>da</strong>de (proditores ou transfugae) os que revelavam<br />

a mal<strong>da</strong>de de um membro só (ignavi, imbelles, corpore infames) e os que produziam <strong>da</strong>no<br />

a uma só pessoa. Enquanto os primeiros admitiam uma composição pecuniária, os<br />

segundos eram punidos até com a morte. Aqueles, isto é, os crimes que afetavam a<br />

ordem pública, admitiam a venganza, ou talião (rache) e a pena mais grave, a per<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

paz. Os parentes não eram compelidos a tomar parte na vingança de sangue, salvo em casos<br />

especiais, como o homicídio, em que os parentes do morto eram obrigados, para se<br />

conservarem moralmente dignos, a vingar o morto com sangue ou com uma composição,<br />

juridicamente taxa<strong>da</strong>. 99-100 Essas assembléias, aliás, eram marca<strong>da</strong>s pela racionali<strong>da</strong>de –<br />

orienta<strong>da</strong> pelo princípio moral – e pela objetivi<strong>da</strong>de, tal como hoje seria concebi<strong>da</strong>. 101<br />

Essa relevância do aspecto moral, de respeito pela palavra empenha<strong>da</strong> pelo homem,<br />

é destaca<strong>da</strong> por ANTONIO PERTILE: “quando alguém afirmava um fato em juízo, sua<br />

97<br />

FOUCAULT, Michel. “A casa dos loucos”, em Microfísica…, p. 114.<br />

98<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.<br />

99<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.<br />

100<br />

Cf. PRADO, Luiz Regis. Multa…, p. 32-34: “A composição judicial (...) distinguia três espécies<br />

principais: a) Wergeld (...) – composição paga ao ofendido ou ao seu grupo familiar (Sippe), a título de<br />

reparação pecuniária (indenização do <strong>da</strong>no); (...) preço do homem (...) (Manngeld/MannBusse), devido<br />

como pagamento do sangue (...) (Blutgeld); tarifa de carne humana (Nonnulli dicunt homagium pretium esse<br />

hominis interempti). (...) b) Busse – corresponde à soma (preço) que o delinqüente pagava à vítima ou à sua<br />

família, pela compra do direito de vingança (Racherecht); por ela, aquele se libertava <strong>da</strong> vingança. (...) Era o<br />

preço <strong>da</strong> composição <strong>da</strong> Fai<strong>da</strong>. (...) c) Friedgeld, Friedsgeld, Brüche, Wette, (dinheiro <strong>da</strong> paz ou preço <strong>da</strong><br />

proteção) – na forma latina medieval fredum ou fredus (...) – consistia no pagamento feito ao chefe tribal, ao<br />

tribunal, ao soberano ou ao Estado, como preço <strong>da</strong> paz. (...) Era devido por violação <strong>da</strong> paz (ordem pública)<br />

ou pela intervenção conciliatória do Estado, garantidora de protetção contra a vingança do ofendido. (...)”<br />

101<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.<br />

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asserção se tinha por veraz, de modo que não se a podia destruir com outra contrária ou<br />

com argumentos humanos, senão só recorrendo a uma ordem superior e fazendo intervir<br />

direta ou indiretamente a divin<strong>da</strong>de: isto é, por um sistema de provas morais ou<br />

aparentes, cujo resultado resolvia sem mais a questão, e que tinha preferência sobre to<strong>da</strong><br />

outra espécie de provas”. 102<br />

Com a influência dos gregos, a racionali<strong>da</strong>de com base moral dos germânicos foi<br />

sendo paulatinamente substituí<strong>da</strong> pela transferência, para enti<strong>da</strong>des divinas, que<br />

protegeriam os homens, <strong>da</strong>s decisões em casos de conflitos. 103<br />

Tanto isso é ver<strong>da</strong>deiro que, segundo JOHN GILISSEN, nas legesbarbaorum,<br />

influencia<strong>da</strong>s, de certa maneira, pela filosofia grega, o processo penal, que se desenvolvia<br />

acusatório, através de uma queixa (chrane calcium) pronuncia<strong>da</strong> pelo ofendido ou um seu<br />

sucessor, após a admissão <strong>da</strong> acusação, previa uma ativi<strong>da</strong>de instrutória racional,<br />

basea<strong>da</strong> na prova testemunhal. Somente se essa prova fosse impossível, por inexistirem<br />

testemunhas, por exemplo, é que o processo tomava uma outra direção. Nesse caso, o<br />

acusado tinha duas opções para salvar-se <strong>da</strong> acusação: o pagamento de um preço<br />

tabelado pelas leges barbaorum (sendo a Lex Salica a mais antiga delas) dependendo do<br />

caso, 104 ou a execução de um ordálio. 105 Está clara, aqui, a solução de compromisso<br />

entre uma prática penal puramente bárbara e outra influencia<strong>da</strong> pela idéia <strong>da</strong> proteção<br />

divina aos justos.<br />

Feitos esses esclarecimentos, é possível seguir adiante.<br />

A descaracterização do processo penal romano, no sentido de uma certa<br />

irracionali<strong>da</strong>de religiosamente orienta<strong>da</strong>, deveu-se, em grande parte, à estruturação <strong>da</strong><br />

102<br />

PERTILE, Antonio. Storia del diritto italiano, 2ª ed., Turim: 1900, p. 319 apud MARICONDE, Alfredo<br />

Velez. Estudios…, p. 53. Trecho original: “cuando alguien afirmaba un hecho en juicio, su aserción se tenía<br />

por veraz, de modo que no se la podía destruir con otra contraria o com argumentos humanos, sino sólo<br />

recurriendo a un orden superior e y haciendo intervenir directa o indirectamente a la divin<strong>da</strong>d: esto es, por<br />

un sistema de pruebas morales o aparentes, cuyo resultado resolvía sin más la question, y que tenía<br />

preferencia sobre to<strong>da</strong> otra especie de pruebas”.<br />

103<br />

MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vi<strong>da</strong> do Direito”, em Estudos…, p. 158-188.<br />

104<br />

Cf., em ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 44-45, explicação acerca de ca<strong>da</strong> um<br />

dos “preços” (gelde) entre os visigodos: “Os crimes contra o indivíduo, – se afetavam a pessoa, eram<br />

punidos pelo wehrgeld (composição ou dinheiro de proteção); – se afetavam a proprie<strong>da</strong>de, eram punidos<br />

pelo widrigeld (compensação ou dinheiro de retorno). O wehrgeld era a soma em dinheiro ou multa <strong>da</strong><br />

reparação <strong>da</strong> ofensa; o widrigeld era a soma em dinheiro ou multa <strong>da</strong> reparação <strong>da</strong> ofensa; o widrigeld era a<br />

soma em dinheiro para indenização dos prejuízos e <strong>da</strong>nos, além <strong>da</strong> restituição <strong>da</strong> coisa, sempre que<br />

possível fosse. No wehrgeld, a soma era calcula<strong>da</strong>, não só pela lesão corporal, como pela quali<strong>da</strong>de do<br />

ofendido. O culpado que não pagasse o wehrgeld ou o widrigeld era excluído <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de (bannum) e o<br />

ofendido podia declarar-lhe o duelo (fai<strong>da</strong>, guerra) visto que o culpado, que não se livrava por esse<br />

pagamento, era considerado perturbador <strong>da</strong> paz pública (fre<strong>da</strong>)”.<br />

105<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 178-179.<br />

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justiça entre os bárbaros. Os graus de civilização dos povos envolvidos eram<br />

profun<strong>da</strong>mente diversos, conforme se sabe.<br />

A sofisticação <strong>da</strong> civilização romana se refletia no seu processo penal. A última fase<br />

de desenvolvimento do processo penal romano foi a <strong>da</strong> cognitio extra ordinem,<br />

caracteriza<strong>da</strong> por um processo de cunho inquisitório, altamente regulado, e dominado por<br />

uma magistratura profissional, afastado o caráter popular <strong>da</strong> justiça. Conforme se viu<br />

acima, esse paulatino afastamento se deu com o escopo de realizar uma melhor<br />

repressão <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de. 106<br />

Ao contrário, a justiça entre os bárbaros estava ain<strong>da</strong> num estágio inferior. Ela ain<strong>da</strong><br />

tinha, entre os germânicos, um nítido caráter popular, pois era administra<strong>da</strong>, conforme<br />

ALFREDO VELEZ MARICONDE, por uma assembléia de homens livres, denomina<strong>da</strong><br />

conventus, mallus, mallum ou placitum e cujo presidente era o príncipe ou chefe <strong>da</strong><br />

tribo. 107<br />

Essa feição popular <strong>da</strong> justiça bárbara teve como conseqüência imediata uma<br />

ina<strong>da</strong>ptação dos juízes bárbaros às rígi<strong>da</strong>s regras processuais penais dos romanos.<br />

Segundo HEINRICH AHRENS, com a recepção do Direito Romano, o processo<br />

germânico continuou formalmente como era <strong>da</strong>ntes, isto é, com a direção do processo por<br />

um juiz e a participação popular, 108 tal como o processo penal romano durante a<br />

República. 109<br />

Em seus primeiros tempos, ain<strong>da</strong> segundo esse autor, o tribunal era formado pela<br />

assembléia cantonal, coman<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo prínceps.<br />

PAUL OURLIAC observa que essa assembléia não pronunciava, a rigor, a sentença:<br />

confirmava-a, aclamando-a, ou infirmava-a, murmurando sua inconformi<strong>da</strong>de; 110<br />

GREGÓRIO DE TOURS, conforme PAUL OURLIAC, dá exemplos desse procedimento<br />

decisório. 111<br />

Entre os francos, presidia-a um centenarius ou tunginus (Hunne) que funcionava junto<br />

a um mallus – <strong>da</strong>í Malberg, que significa “lugar de tribunal” – formado por centenas de<br />

homens, dentre eles somente sete sentados, reunidos estes na quali<strong>da</strong>de de homens de<br />

106 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246 e nota n. 89.<br />

107 MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 51.<br />

108 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

109 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 162.<br />

110 OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

111 OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

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direito que <strong>da</strong>vam a sentença. Esses homens, que eram os únicos autorizados a<br />

pronunciarem sentença (legemdicere) eram denominados rachinburgen ou consilium<br />

ferentes. 112 Nessa época, criaram-se as figuras do conde e seu auxiliar, denominado<br />

vicarius, que percorriam o país atuando ao lado do centenarius local. 113 Mais tarde, conde<br />

e vicarius substituíram a figura do centenarius, como forma de se aumentar a autori<strong>da</strong>de e<br />

força do poder central. Esse aumento do poder do conde e do vicarius, com o tempo,<br />

serviu para arrefecer o caráter popular <strong>da</strong> justiça entre os francos. 114<br />

Com o passar do tempo, essa organização também se foi sofisticando, embora por<br />

caminhos diferentes dos trilhados pelos romanos: a evolução do processo penal bárbaro<br />

também foi no sentido <strong>da</strong> profissionalização <strong>da</strong> justiça, embora se mantivesse a<br />

participação popular, dividido seu poder com outros funcionários reais. 115<br />

O importante é que a organização predominantemente popular <strong>da</strong> justiça entre os<br />

bárbaros, por ina<strong>da</strong>ptação às regras romanas relativas à prova, acabou por derrogá-las. É<br />

que às assembléias cantonais germânicas o sistema racional e regrado de provas dos<br />

romanos parecia a um só tempo frágil e complicado e gerava, aos seus olhos, decisões<br />

pouco naturais. Por essa razão, segundo PAUL OURLIAC, os germânicos passaram a<br />

apelar para os juízos de Deus, inicialmente formados pelos juramentos purgatórios e<br />

pelas ordálias ou, no masculino, ordálios, 116 palavras que, segundo JOHN GILISSEN,<br />

derivam do alemão urteil, que significa decisão, sentença. 117 O apelo às divin<strong>da</strong>des,<br />

essência dessas provas, é clara influência grega.<br />

Segundo HEINRICH AHRENS, desde a fase primitiva, quando as práticas punitivas de<br />

outros povos ain<strong>da</strong> se encontravam em estágio anterior de desenvolvimento, os<br />

germânicos já praticavam a composição. Essa prática se limitava aos crimes que<br />

causavam <strong>da</strong>no a uma só pessoa, pois os que afetavam a comuni<strong>da</strong>de e os que<br />

revelavam mal<strong>da</strong>de de seu autor, podiam ser punidos com a pena de talião ou a morte,<br />

dependendo <strong>da</strong> gravi<strong>da</strong>de do mal praticado. 118 Essa distinção entre crimes públicos e<br />

privados, que incluía mais uma categoria, a dos crimes que indiciavam mal<strong>da</strong>de de seu<br />

112 Cf. AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334 e OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

113<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

114<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

115<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

116<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

117<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.<br />

118<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.<br />

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autor, sugere, segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, que houve influência do ordenamento<br />

jurídico-penal romano no respectivo ordenamento bárbaro ain<strong>da</strong> antes <strong>da</strong>s invasões. 119<br />

Essa composição, conforme HEINRICH AHRENS, era decidi<strong>da</strong> em uma audiência<br />

marca<strong>da</strong> pela objetivi<strong>da</strong>de. 120 Essa objetivi<strong>da</strong>de, entre outras conseqüências,<br />

determinava que a confissão do acusado evitasse qualquer forma de instrução: era prova<br />

plena de culpabili<strong>da</strong>de. 121<br />

Seja como for, está claro que a audiência processual penal dos germânicos era<br />

caracteriza<strong>da</strong> pela objetivi<strong>da</strong>de, simplici<strong>da</strong>de e ampla participação popular, que aos<br />

poucos se foi restringido no sentido <strong>da</strong> participação indireta, por representantes, cujos<br />

primeiros exemplos são, conforme visto, os rachinburgen ou consilium ferentes,<br />

destacados dos demais por que podiam deliberar sentados, tendo em vista sua<br />

respeitabili<strong>da</strong>de e, além disso, um maior conhecimento <strong>da</strong>s regras jurídicas e <strong>da</strong><br />

tradição. 122<br />

Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE e também conforme já visto, a outra<br />

característica <strong>da</strong> audiência processual penal entre os germânicos, por influência grega,<br />

era a prévia colocação <strong>da</strong> causa <strong>da</strong> justiça sob a proteção <strong>da</strong>s divin<strong>da</strong>des. 123<br />

Tal colocação, ain<strong>da</strong> segundo esse autor, é comprova<strong>da</strong> pela existência de dois<br />

procedimentos entre os germânicos: o ordinário e o extraordinário. 124 Este último, <strong>da</strong>do<br />

que se aplicava aos criminosos apanhados infraganti, prescindia <strong>da</strong> proteção e juízo <strong>da</strong>s<br />

divin<strong>da</strong>des. A razão disso é clara: as evidências surgi<strong>da</strong>s do flagrante eram suficientes<br />

para <strong>da</strong>rem a certeza <strong>da</strong> culpa do criminoso. Já no procedimento ordinário, em que os<br />

juízes eram privados <strong>da</strong> evidência do flagrante, seria melhor que se apoiassem em juízos<br />

divinos.<br />

A invocação <strong>da</strong> proteção divina se verificava através de cerimônias religiosas<br />

realiza<strong>da</strong>s no início de ca<strong>da</strong> audiência. 125<br />

A queixa do ofendido não era exatamente no sentido atual: ao invés de pleitear à<br />

119<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 51-52.<br />

120<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.<br />

121<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 178-179. GILISSEN descreve esse procedimento de forma<br />

diversa, já vista.<br />

122<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

123<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.<br />

124<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.<br />

125<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.<br />

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assembléia cantonal o reconhecimento de seu direito, seja a punir ou a ver punido seu<br />

ofensor, seja à indenização pelos <strong>da</strong>nos, o autor visava antes a cessação <strong>da</strong> injustiça que<br />

lhe infligia o ofensor, que tinha o ônus de demonstrar sua inocência, <strong>da</strong> mesma maneira<br />

que o ofendido tinha o de demonstrar que estava sendo vítima de injustiça. 126<br />

Desse ônus de provar-se inocente, de livrar-se <strong>da</strong>s acusações, o requerido se liberava<br />

seja através de juramentos purgatórios, seja através de juízos de Deus ou ordálios. 127 A<br />

essa atitude dos bárbaros perante a justiça foi <strong>da</strong><strong>da</strong> a denominação de “Sistema <strong>da</strong>s<br />

Provas Irracionais”, que vigorou desde a derroca<strong>da</strong> do Império Romano até os Séculos XII<br />

e XIII, quando foi condenado pela Igreja. JOHN GILISSEN observa que exemplos desse<br />

sistema puderam ser encontrados na Inglaterra e na Rússia até fins do Século XIX,<br />

embora seja certo que ele entrou em crise a partir do Século XIII. 128<br />

O juramento purgatório, segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, baseia-se na crença de<br />

que Deus, por saber do passado, tem condições e interesse de punir quem jura em<br />

falso. 129 Por isso, ao jurar, o acusado invocava para si a vingança de Deus, no caso de<br />

estar a mentir. 130<br />

Em casos mais graves, era necessário, para a vali<strong>da</strong>de do ato, que a parte se fizesse<br />

acompanhar por outras pessoas, de notória idonei<strong>da</strong>de, que juntamente com ela juravam:<br />

eram os “cojurantes” ou “compurgantes”. Já há exemplos de juramentos purgatórios na<br />

Bíblia, 131 mas eles se tornaram mais freqüentes entre os bárbaros, sendo notório o<br />

exemplo, citado por GREGÓRIO DE TOURS, de Fredegun<strong>da</strong>, que para livrar-se <strong>da</strong> acusação<br />

de adultério precisou jurar sua inocência com três bispos e trezentos nobres como<br />

“cojurantes”, somente assim satisfazendo seu marido. 132<br />

Além <strong>da</strong> realização <strong>da</strong>s maldições que o “jurante” imprecava contra si, de resto não<br />

verificável, quem jurava em falso sofria, segundo as leges barbaorum, punições diversas.<br />

Tinha, por exemplo, suas mãos decepa<strong>da</strong>s. 133<br />

Não é preciso salientar que os juramentos purgatórios, como quaisquer dessas<br />

126<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.<br />

127<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 53.<br />

128<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.<br />

129<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 53.<br />

130<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 53.<br />

131<br />

Livro dos Números, 5, 11-31.<br />

132<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

133<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

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provas, deviam realizar-se em audiência solene e pública, com obediência de estritas<br />

formali<strong>da</strong>des, para que seu juramento tivesse valor jurídico. Assim, além dos casos em<br />

que eram necessários os compurgantes e confirmando o caráter religioso dessa prova,<br />

era uma formali<strong>da</strong>de muito comum o juramento sobre relíquias de santos. 134<br />

Um exemplo dessas normas é o seguinte trecho de um juramento de calúnia do Foral<br />

do Freixo, de 1.152, transcrito por JOHN GILISSEN: “Quem intentar uma ação dessas<br />

(homicídio por traição) jure com três parentes dos mais próximos que tiver na vila em<br />

como não o deman<strong>da</strong> por qualquer outra malquerença mas que o acusado matou ou feriu<br />

o seu parente por feri<strong>da</strong> de onde veio a morrer; e se não tiver parentes, jure com três<br />

vizinhos. E se não fizer este juramento, o acusado não terá que responder (...) Quem ferir<br />

o seu vizinho com pedra ou com pau pague vinte morabitinos se (o autor e conjuradores)<br />

firmarem e se não firmarem, jure (o acusado) com cinco vizinhos (que está inocente)”. 135<br />

Segundo JOHN GILISSEN, essa espécie de prova, após cair em desuso no processo<br />

penal, manteve-se ain<strong>da</strong> no processo civil na forma de juramento litisdecisório. 136<br />

Quanto aos ordálios, o prestigiamento divino é pedido e verificado de maneira mais<br />

direta. Baseavam-se na crença na proteção de Deus aos justos e no desamparo aos<br />

injustos. De fato, consta <strong>da</strong> Primeira Epístola de São Pedro (cap. 3, v. 16: “sejam<br />

confundidos aqueles que ultrajam o vosso bom comportamento em Cristo”. Dois eram os<br />

tipos de ordálios: os unilaterais e os bilaterais. Ambos interessam ao tema <strong>da</strong> audiência<br />

porque se verificavam durante uma cerimônia especificamente convoca<strong>da</strong> para tal fim, na<br />

qual a igual<strong>da</strong>de formal <strong>da</strong>s partes era de vital importância para a vali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prova.<br />

Segundo JOHN GILISSEN, eram exemplos de ordálios unilaterais a prova do ferro em<br />

brasa, <strong>da</strong> água fervente, <strong>da</strong> água corrente, do cadáver etc. 137 As provas do ferro em<br />

brasa e <strong>da</strong> água fervente eram semelhantes: no caso do ferro em brasa, devia o réu<br />

segurar, com as mãos nuas, um objeto de ferro em brasa e <strong>da</strong>r nove passos segurando-o;<br />

<strong>da</strong> mesma maneira com a água fervente: deveria mergulhar uma <strong>da</strong>s mãos num pote<br />

cheio dela e assim permanecer, por certo tempo. Nos dois casos, se dentro de três dias<br />

134<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

135<br />

SEM AUTOR, Coleção de textos de direito português, I, Foraes, Coimbra, 1914, 70, apud<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 722-723. Trecho original: “Et qui istam uocem (aleiuoso traidor)<br />

deman<strong>da</strong>uerint primum iuret cum III parentes los magis circa qui in tota la uila fuerint qui lonon deman<strong>da</strong> por<br />

outra malquerencia mais que matador en fridor foi de seo parente onde morreo, et si parentes non habuent<br />

cum III uicinos. Et si istum non iurar nom respondeat illi (...) Qui ferir sua uicino cum petra antcum fuste<br />

pectet XX mo si firmarem et si iuret cum V uicinos”.<br />

136<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.<br />

137 GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.<br />

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os ferimentos decorrentes <strong>da</strong>s queimaduras permanecessem com aspecto ruim, era<br />

considerado culpado. 138<br />

A prova <strong>da</strong> água corrente, conforme atesta JOHN GILISSEN, já era pratica<strong>da</strong> entre os<br />

povos primitivos e baseava-se na crença de que o rio recusaria o impuro, man<strong>da</strong>ndo-o à<br />

tona e aceitaria o puro, tragando-o para o seu fundo. 139 Nos mais antigos “códigos”<br />

cuneiformes, como o de “Ur-Namur” (2.040 a.C.), o de “Esnunna” (1.930 a.C.) e o de<br />

“Hamurabi” (1.694 a.C.), já eram descritos os ordálios <strong>da</strong> água corrente.<br />

Assim, consta no de “Ur-Namur: “Se um ci<strong>da</strong>dão acusa um outro ci<strong>da</strong>dão de feitiçaria<br />

e o leva perante o Deus rio [e se] o Deus rio o declara puro, aquele que o levou”; 140 e no<br />

de “Hamurabi”: “Se alguém imputou a um homem atos de feitiçaria, mas se ele não pôde<br />

convencê-lo disso, aquele a quem foram imputa<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des de feitiçaria, irá ao Rio;<br />

mergulhará no Rio. Se o Rio o dominar, o acusador ficará com a sua casa. Se este<br />

homem for purificado pelo Rio, e se sair são e salvo, aquele que lhe tinha imputado atos<br />

de feitiçaria será morto; aquele que mergulhou no Rio ficará com a casa do seu<br />

acusador”. 141<br />

Na prova do cadáver (em alemão: bahuprobe) o réu deveria tocar um cadáver<br />

(provavelmente com arma branca) sem que ele sangrasse. 142<br />

Essas provas mantiveram-se, tanto na Alemanha quanto na Suíça, até o Século XVI.<br />

Os exemplos mais célebres de ordálios bilaterais eram o iudicium crucis e o duelo<br />

judicial.<br />

No iudicium crucis, ou “julgamento <strong>da</strong> cruz”, surgido na época carolíngia, as partes<br />

eram leva<strong>da</strong>s frente à frente e, numa cerimônia especial, faziam suas alegações e<br />

levantavam os braços, detendo-os em posição de cruz, isto é, ambos horizontais em<br />

relação ao chão. Nessa posição deviam permanecer até que algum dos dois se cansasse<br />

e deixasse cair os braços antes do outro, sendo considerado o perdedor. 143<br />

O ordálio mais comum, entretanto, era o duelo judiciário. Nele, também realizado num<br />

cerimônia especial, em que o favor divino era invocado solenemente, as partes,<br />

138<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

139<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 35-36.<br />

140<br />

SZLECHTER, E. “Le code de Ur-Namu”, em Revue d’assyriologie, n. 19 (1955), p. 169-177 apud<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 64.<br />

141<br />

FINET, A. Le code de Hammurapi: Introduction, traduction e annotations. Paris, 1973, apud<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 65.<br />

142<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.<br />

143 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.<br />

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pessoalmente ou representa<strong>da</strong>s por “campeões”, duelavam até que surgisse um<br />

vencedor. 144<br />

Há diversas definições acerca dos duelos ou combates judiciários, como a de PEDRO<br />

SÁNCHEZ, transcrita por L. CABRAL DE MONCADA: “Duelo é uma batalha singular de duas<br />

pessoas, que se faz para que se expresse o juízo de Deus, que declare a ver<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>quele que tem justa causa com a vitória”. 145<br />

O que tem relevo nessa espécie de juízo de Deus, previsto em diversas <strong>da</strong>s antigas<br />

legislações – como forais do “Freixo” (1.152), de “Urros” (1.182) e “Santa Cruz” (1.225),<br />

todos de Portugal – é que eram essenciais, para a vali<strong>da</strong>de do duelo, que ele fosse<br />

cercado de formali<strong>da</strong>des, dirigi<strong>da</strong>s para que as partes tivessem pari<strong>da</strong>de em armas, o que<br />

permitiria, aos circunstantes, a certeza de que a vitória de um ou de outro dos<br />

contendores se deu por obra de Deus. Ain<strong>da</strong> segundo L. CABRAL DE MONCADA, as leis<br />

dispunham acerca <strong>da</strong>s circunstâncias de tempo, lugar, modo de produção dessa prova,<br />

bem como seus efeitos. 146 Primeiramente regulava-o a tradição antiga; depois, a lei<br />

passou a ser sua fonte exclusiva.<br />

Importante, destarte, que o duelo se realizasse em audiência previamente<br />

determina<strong>da</strong> para tal fim, assegura<strong>da</strong> a igual<strong>da</strong>de entre as partes.<br />

Segundo JOHN GILISSEN, esse ordálio sobreviveu até os Séculos XIV e XV. 147 Com<br />

características de procedimento apto apenas a demonstrar nobreza e caráter, o duelo<br />

permaneceu, ain<strong>da</strong> segundo JOHN GILISSEN, até os Séculos XIX e XX.<br />

148-149 Conforme se percebe com nitidez, o chamado “Sistema <strong>da</strong>s Provas Irracionais”, posto<br />

tenha subvertido a organização <strong>da</strong>s provas tal como pratica<strong>da</strong> entre os romanos,<br />

manteve, mutatis et mutandis, a estrutura <strong>da</strong> audiência que vigia em Roma durante a fase<br />

republicana. Entre os bárbaros, portanto, a audiência continuava a ser pública,<br />

144 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.<br />

145<br />

SÁNCHEZ, Pedro. Historia moral y philosophica. Toledo: 1590, apud MONCADA, L. Cabral de. “O<br />

duelo na vi<strong>da</strong> do direito”, em Estudos…, p. 129, nota 1. Trecho original: “Duelo es una batalla singular de<br />

dos personas, que se hace para que se espresa el juicio de Dios, que declare la ver<strong>da</strong>d de aquel que tien<br />

justa causa com la victoria”.<br />

146<br />

MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vi<strong>da</strong> do direito”, em Estudos…, p. 134-135.<br />

147 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.<br />

148 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.<br />

149 Cf., ain<strong>da</strong>, MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vi<strong>da</strong> do direito”, em Estudos…, p. 158-159.<br />

Segundo esse autor, o procedimento do duelo era estritamente regulado, inclusive com fases perfeitamente<br />

delimita<strong>da</strong>s. Assim, a primeira era do repto, ou reto, ou recto particular perante o rei; três dias eram<br />

concedidos ao desafiante para que refletisse e reconsiderasse o caso; após, era citado o desafiado,<br />

ocorrendo o duelo propriamente dito perante o rei e doze cavalheiros.<br />

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contraditória, oral e caracteriza<strong>da</strong> pelo contato direto entre o órgão judiciário e as provas.<br />

Essas características, entretanto, iriam modificar-se a partir <strong>da</strong> paulatina influência do<br />

Direito Canônico.<br />

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Seção D<br />

A audiência processual penal e os “sistemas”<br />

§ 1º Sistema inquisitório (audiência canônica)<br />

a) o processo canônico<br />

O processo canônico representou, conforme dito, um relativo retorno ao sistema<br />

vigente em Roma, na fase imperial, denominado cognitio extra ordinem. 150 Mais do que<br />

um retorno, porém, significou o efetivo aperfeiçoamento do sistema inquisitório.<br />

O processo <strong>da</strong>s jurisdições eclesiásticas, leciona JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR,<br />

principiou não se afastando muito do processo vigente entre os bárbaros. 151 Assim,<br />

baseava-se em acusação, sua instrução admitia, ao menos em seu início, as provas<br />

irracionais, sendo que as audiências eram caracteriza<strong>da</strong>s pela orali<strong>da</strong>de. Contudo, já se<br />

entremostrava uma preferência do processo canônico pelas formas escritas: Accusatorum<br />

personae nunquam recipiantur sine scripto. 152<br />

No seu início, como dito, o processo canônico admitia os ordálios (purgatio vulgaris)<br />

como a prova <strong>da</strong> água fervente e do ferro em brasa. Contudo, e baseado no princípio de<br />

que Ecclesia abhorret sanguinem, o Papa Estevão V, durante o Século IX, através de um<br />

decreto, proibiu-os. 153<br />

Do clássico de HEINRICH KRAMER e JAMES SPRENGER sobre a persecução penal <strong>da</strong><br />

bruxaria, extraem-se os seguintes trechos sobre os ordálios: “tais provas são ilícitas por<br />

duas razões. Em primeiro lugar, porque o seu propósito é o de julgar coisas ocultas cujo<br />

julgamento só cabe a Deus. Em segundo lugar, por não haver uma autori<strong>da</strong>de Divina para<br />

tais provas, e nem serem elas sanciona<strong>da</strong>s nos escritos dos Santos Padres. (...) Há,<br />

to<strong>da</strong>via, uma diferença entre um duelo e o ordálio pelo ferro em brasa ou por água<br />

fervendo. O duelo se afigura mais humanamente razoável – por serem os combatentes de<br />

força e de habili<strong>da</strong>de semelhante – do que a prova pelo ferro em brasa. Pois embora o<br />

propósito de ambos seja o de descobrir alguma coisa oculta através de um ato humano,<br />

no caso do ordálio pelo ferro em brasa busca-se um efeito miraculoso, o que não<br />

150<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 79.<br />

151<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 64.<br />

152<br />

Decreto de Graciano, Causa II, quaest 8, cap. I, apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O<br />

processo…, p. 64.<br />

153<br />

Decreto de Graciano, Causa II, quaest 5, cap. XX, apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O<br />

processo…, p. 65.<br />

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acontece no caso de um duelo, em que o máximo que pode acontecer é a morte de um<br />

ou de ambos os combatentes. Portanto, a prova do ferro incandescente é absolutamente<br />

ilícita; não obstante o duelo não o seja no mesmo grau”. 154<br />

Os juramentos purgatórios, sobretudo com acompanhamento de compurgadores,<br />

eram mais facilmente admitidos, 155 embora a Igreja já então possuísse, doutrinariamente,<br />

motivos mais do que sólidos para condená-los. 156 Isso sem considerar o fato, anotado por<br />

HEINRICH AHRENS, de que esses juramentos, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as modificações <strong>da</strong>s condições morais<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, iam se tornando ca<strong>da</strong> vez mais suspeitos e insuficientes. 157<br />

A abjuração dos ordálios veio no contexto de uma retoma<strong>da</strong> do racionalismo dentro do<br />

processo. Esse racionalismo, que fazia fun<strong>da</strong>r-se a sentença na certeza moral de autoria<br />

e culpabili<strong>da</strong>de, era necessário para o combate, então encetado pela Igreja, às chama<strong>da</strong>s<br />

“doutrinas heréticas”. Essa certeza seria <strong>da</strong><strong>da</strong> no seio, precisamente, do processo<br />

inquisitório: <strong>da</strong> mesma maneira do ocorrido em Roma, o sistema <strong>da</strong> investigação<br />

renasceu para garantir uma repressão regular a certo tipo de criminali<strong>da</strong>de.<br />

O primeiro passo no sentido <strong>da</strong> violenta repressão que ameaçava o poder <strong>da</strong> Igreja,<br />

foi a equiparação <strong>da</strong>s manifestações heréticas ao crime de lesa-majestade, necessária<br />

para justificar a violenta reação. Há, nessa fase, uma luta pelo poder, sur<strong>da</strong>mente trava<strong>da</strong><br />

entre clérigos, nobres e o rei. 158<br />

A cronologia do nascimento do sistema inquisitório é precisamente traça<strong>da</strong> por<br />

JACINTO N. DE MIRANDA COUTINHO: “Entre liberais e conservadores (não fosse isto não<br />

haveria um Concílio em Latrão, em 1215), a Igreja optou pela morte, na esteira <strong>da</strong> Bula<br />

Vergentis in senium, do Papa Inocêncio III (1199) (...), a qual prepara o campo <strong>da</strong><br />

repressão canônica com a equiparação <strong>da</strong>s “heresias” aos crimes de lesa-majestade. (…)<br />

O Concílio faz a sua opção (o pano de fundo era a manutenção do poder); e o novo<br />

sistema paulatinamente assume sua facha<strong>da</strong>, para consoli<strong>da</strong>r-se com a Bula Ad<br />

extirpan<strong>da</strong>, de Inocêncio IV, em 1252”. 159<br />

154<br />

KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 446.<br />

155<br />

Decreto de Graciano, Causa II, quaest 5, cap. XX, apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O<br />

processo…, p. 65.<br />

156<br />

Cf., no Livro do Êxodo, 20, 7, trecho do Decálogo: “Não pronunciarás em vão o nome de Iahweh teu<br />

Deus, porque Iahweh não deixará impune aquele que pronunciar em vão o seu nome”.<br />

157<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

158<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 81.<br />

159<br />

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miran<strong>da</strong>. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.<br />

3-56.<br />

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Currículo<br />

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Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, a evolução segue, ain<strong>da</strong>, até o Papa Bonifácio<br />

VII, que sofistica a organização <strong>da</strong> justiça eclesiástica. 160<br />

No Século XIII, período de consoli<strong>da</strong>ção do processo inquisitório, surge, como<br />

principal instrumento para repressão <strong>da</strong>s “heresias”, dos “sortilégios” (magias) e <strong>da</strong>s<br />

“adivinhações” – to<strong>da</strong>s práticas que ameaçavam o poder <strong>da</strong> Igreja – o <strong>Tribunal</strong> <strong>da</strong><br />

Inquisição, ou <strong>Tribunal</strong> do Santo Ofício, 161 sob o pontificado de Gregório IX. De acordo<br />

com ALFREDO VELEZ MARICONDE, esse tribunal surgiu, efetivamente, como forma de<br />

unificar a repressão à “heresia” lato sensu, repressão essa que, até então, era realiza<strong>da</strong><br />

pelos bispos, quando visitavam suas paróquias. 162<br />

Tendo sempre como pano de fundo a luta entre os reis, os nobres e os clérigos, a<br />

jurisdição eclesiástica experimentou, nessa fase, grande expansão. É mister explicá-la<br />

convenientemente.<br />

Segundo PAUL OURLIAC, desde sempre a Igreja exerceu duas espécies de jurisdição:<br />

uma espiritual (denomina<strong>da</strong> “essencial” ou “a clavibus”, porque nasci<strong>da</strong> do poder <strong>da</strong>s<br />

chaves entregues a São Pedro) e uma temporal. 163 Esta última tem, ain<strong>da</strong> segundo esse<br />

autor, grande importância, pois reflete uma tendência expansionista <strong>da</strong> jurisdição<br />

eclesiástica que vem desde antes do Edito de Milão. 164 Essa jurisdição – sempre civil –<br />

era exerci<strong>da</strong> ou por uma assembléia de fiéis ou pelo bispo. Durante o reinado do<br />

imperador romano Constantino, os bispos tiveram o privilégio de serem julgados por um<br />

sínodo ou pelo próprio imperador. Nos Concílios dos Séculos V e VI, se foi determinando<br />

que os clérigos não haveriam de ser julgados por tribunais seculares. 165 A culminância<br />

desse processo, segundo PAUL OURLIAC, verificou-se no Concílio de Paris, em 614, aceito<br />

pelo rei de França Clotário II, em edito famoso. 166 No caso criminal, se se trata de crime<br />

de clérigo, porém sem gravi<strong>da</strong>de, era ele julgado pelo conde. No caso de crime capital, o<br />

julgamento <strong>da</strong>r-se-ia pelo bispo. Em tratando-se de crime de um sacerdote ou diácono, o<br />

julgamento seria pelo bispo; se do bispo, por um sínodo. 167<br />

160<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 81.<br />

161<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 82.<br />

162<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 82.<br />

163<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.<br />

164<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.<br />

165<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.<br />

166<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.<br />

167<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.<br />

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Currículo<br />

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São interessantes as técnicas jurídicas de que se valeram os sábios <strong>da</strong> Igreja para<br />

justificar essa expansão. A primeira delas foi determinar-se a competência <strong>da</strong> jurisdição<br />

eclesiástica através de dois critérios; ora era estabeleci<strong>da</strong> ratione personae, ora era fixa<strong>da</strong><br />

ratione materiae.<br />

Esse movimento hegemônico é descrito por ALFREDO VELEZ MARICONDE: “Do foro<br />

eclesiástico gozavam desde então os clérigos, se bem que se limitava às faltas e delitos<br />

leves; posteriormente se estendeu a to<strong>da</strong>s as infrações, ao mesmo tempo em que os<br />

tonsurados, os cruzados e outras pessoas eram incluídos entre aqueles, a fim de que<br />

gozassem do privilégio jurisdicional. E sem ter em conta os fatos de significação<br />

puramente espiritual, o foro surgia quando se afetavam os interesses <strong>da</strong> fé, qualquer que<br />

fosse o infrator. Delitos exclusivamente eclesiásticos eram a heresia e a simonia,<br />

enquanto o sacrilégio, a usura, o rapto, o adultério e outros constituíam mixti fori, o que<br />

explica os inumeráveis conflitos jurisdicionais que ocorriam. (...) Durante a expansão <strong>da</strong><br />

justiça eclesiástica se recorre a diversos subterfúgios, seja para outorgar o título de<br />

clérigo a quem não o era, seja para reconhecer em muitos delitos um ataque direto aos<br />

interesses <strong>da</strong> Igreja”. 168<br />

É importante, por outro lado, deixar claro que essa expansão, decerto por algum<br />

fenômeno similar ao <strong>da</strong> “inércia”, foi também estimula<strong>da</strong> por uma tendência, de certo<br />

modo, natural ou, antes, não-coarcta<strong>da</strong>.<br />

Conforme a lição de PAUL OURLIAC, embora a Igreja tivesse utilizado técnicas jurídicoprocessuais<br />

de forte matiz retórico para atrair para a competência <strong>da</strong> jurisdição<br />

eclesiástica os casos envolvendo os órfãos, viúvas (miserabiles personae), os libertos <strong>da</strong><br />

Igreja, servos de monastérios e hospitais etc., 169 como um ver<strong>da</strong>deiro privilegium fori,<br />

muitas vezes era espontaneamente preferi<strong>da</strong> pelas partes, porque mais racional e menos<br />

árdua que a secular, que impunha os ordálios, bem como mais barata e dota<strong>da</strong> de juízes<br />

168<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 82. Trecho original: “Del fuero eclesiástico gozaban<br />

desde antaño los clérigos, si bien se limitaba a las faltas y delitos leves; posteriormente se extendió a to<strong>da</strong>s<br />

las infracciones, al mismo tiempo que los tonsurados, los cruzados y otras personas eran incluídos entre<br />

aquéllos, a fin de que gozaran del privilegio jurisdiccional. Y sin tener en cuenta los hechos de significación<br />

puramente espiritual, el fuero surgía quando se afectaban los interesses de la fe, cualquiera que fuese el<br />

infractor. Delitos exclusivamente eclesiásticos eran la herejía y la simonía, mientras el sacrilegio, la usura,<br />

el rapto, el adulterio y otros constituían mixti fori, lo que explica los innumerables conflictos jurisdiccionales<br />

que se planteaban. Durante la expansión de la justicia eclesiástica se recurre a diversos subterfugios, sea<br />

para otorgar el título de clérigo a quien no lo era, sea para reconocer en muchos delitos un ataque directo a<br />

los intereses de la Iglesia”.<br />

169<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.<br />

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que pareciam mais inteligentes e imparciais do que os <strong>da</strong> jurisdição secular. 170<br />

A outra característica saliente do processo canônico foi o tabelamento <strong>da</strong>s provas,<br />

vigente no período compreendido entre os séculos XII e XVIII. Assim, a audiência<br />

canônica se desenvolvia em função do atendimento <strong>da</strong>s tabelas de provas.<br />

Esse tabelamento, que se convencionou denominar de “sistema romano-canônico de<br />

provas legais” tinha, segundo JOHN GILISSEN, a característica básica de sua graduação,<br />

oriun<strong>da</strong> do método escolástico, de acordo com a intensi<strong>da</strong>de de certeza moral que<br />

ministravam ao julgador.<br />

171-172 Assim, a tabela era forma<strong>da</strong> <strong>da</strong>s seguintes categorias de prova, diferentes quanto à<br />

sua intensi<strong>da</strong>de: probationes plenae, probationes semiplenae e iudicia; acima <strong>da</strong> probatio<br />

plena e a partir do Século XIII, há somente o notorium, que é uma criação canônica,<br />

inexistente em Roma. 173<br />

Quanto a este último, dividiram-no, os canonistas, em notorium facti, notorium iuris e<br />

notorium praesumptionis. Quanto ao primeiro, define-se-o como o que é evidente aos<br />

olhos do mundo: publice coram omnibus. Segundo JOHN GILISSEN, trata-se do fato<br />

permanente (notorium facti permanentis) como um monumento conhecido ou isolado<br />

(semel notorium, sempe rnotorium) de que são exemplos os crimes praticados em<br />

audiência e o flagrante: notorium factim omentanei. 174 Há, ain<strong>da</strong>, o notorium iuris,<br />

manifestado na autori<strong>da</strong>de do caso julgado – que em Roma era relativa – e na confissão<br />

em juízo (confessio projudicatu); ambas ve<strong>da</strong>vam a contra-prova e o recurso 175 . Por fim,<br />

havia o notorium praesumptionis, de dois tipos: as presunções iuris et de iure e as<br />

presunções iuris tantum. Aquelas eram um notorium propriamente dito e estas equivaliam<br />

às probationes plenae, desconstituíveis por uma probatio plena equivalente. 176<br />

Faziam probationes plenae o duplo testemunho, porque testisunis, testis nullus e o ato<br />

escrito por instrumento público (instrumentum publicum) de que eram exemplos os atos<br />

notariais, os atos judiciais e os autenticados por selo ou sinal. Em caso de conflito entre o<br />

170<br />

OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.<br />

171<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.<br />

172<br />

Cf., sobre o tema, FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36.<br />

173<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.<br />

174<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.<br />

175<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718. Segundo esse autor, a “indivisibili<strong>da</strong>de” dos efeitos do<br />

notorium iuris é uma teoria atribuí<strong>da</strong> à escola de Orleães, do Século XIII.<br />

176<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.<br />

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testemunho e o ato escrito, de princípio prevalecia o testemunho (témoins passent lettres)<br />

mas essa regra foi, posteriormente, inverti<strong>da</strong>. 177<br />

Quanto às probationes semiplenae, configuravam-nas, entre outros, o testemunho<br />

isolado (unus testis) os documentos particulares (cartae domesticae) a fuga e a fama que,<br />

entretanto, não chega a ser notorie<strong>da</strong>de. A probatio semiplena, por exemplo, era<br />

fun<strong>da</strong>mento para medi<strong>da</strong>s cautelares e duas probationes semiplenae equivaliam a uma<br />

probatio plena. 178<br />

Vinham, finalmente, os iudicia, representados pela inimizade com a vítima, pelo<br />

empunhar uma espa<strong>da</strong> nua, pela ameaça, pelos boatos e rumores etc. Embora a menos<br />

gradua<strong>da</strong> <strong>da</strong>s provas (valiam de um quarto a um oitavo <strong>da</strong> probatio plena) autorizava a<br />

tortura (quaestio) uma vez ocorrente (iudicium ad torturam). 179<br />

A confissão enseja<strong>da</strong> pela tortura, conforme registrado acima, configurava notorium<br />

iuris, desde que em juízo (longe, portanto, do aparelho de tormento) e confirma<strong>da</strong> mais de<br />

uma vez, ficando claro, para o confessor, que a volta atrás na confissão impunha novo<br />

tormento, até um limite máximo, em geral de três vezes.<br />

O regramento <strong>da</strong> confissão no processo inquisitório é <strong>da</strong>do por HEINRICH KRAMER e<br />

JAMES SPRENGER: “se nem as ameaças nem as promessas a levam a confessar a<br />

ver<strong>da</strong>de, então os oficiais devem prosseguir com a sentença, e a bruxa deverá ser<br />

examina<strong>da</strong>, não de alguma forma nova ou estranha, mas <strong>da</strong> maneira habitual, com pouca<br />

ou com muita violência, de acordo com a natureza dos crimes cometidos. E enquanto<br />

estiver sendo interroga<strong>da</strong> a respeito de ca<strong>da</strong> um dos pontos, que seja submeti<strong>da</strong> à tortura<br />

com a devi<strong>da</strong> freqüência, começando-se com os meios mais brandos; o Juiz não deve se<br />

apressar em usar dos meios mais violentos. E enquanto isso é feito, que o Notário a tudo<br />

anote: de que modo é tortura<strong>da</strong>, quais as perguntas feitas e quais as respostas obti<strong>da</strong>s. E<br />

notar que, se confessar sob tortura, deverá ser então leva<strong>da</strong> para outro local e interroga<strong>da</strong><br />

novamente, para que não confesse tão-somente sob a pressão <strong>da</strong> tortura. Se após a<br />

devi<strong>da</strong> sessão de tortura a acusa<strong>da</strong> se recusar a confessar a ver<strong>da</strong>de, caberá ao Juiz<br />

colocar diante dela outros aparelhos de tortura e dizer-lhe que terá de suportá-los se não<br />

confessar. Se então não for induzi<strong>da</strong> pelo terror a confessar, a tortura deverá prosseguir<br />

no segundo ou no terceiro dia, mas não naquele mesmo momento, salvo se houver boas<br />

177<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.<br />

178<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.<br />

179<br />

GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.<br />

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indicações de seu provável êxito”. 180<br />

Com o tempo, passou-se a exigir, para que a confissão importasse em condenação,<br />

que fosse confirma<strong>da</strong> por alguma probatio semiplena ou por um iudicium. 181<br />

b) o processo inquisitório<br />

O processo canônico, conforme visto, genuinamente inquisitório, não possuía partes,<br />

no sentido jurídico do termo. O “herege”, “inimigo”, “paciente”, ou como se pudesse<br />

denominá-lo, não era sujeito de direitos dentro do processo, mas sim um objeto sobre o<br />

qual trabalhava o inquisidor.<br />

Em seu aspecto dinâmico, o processo canônico caracterizava-se por investir-se e<br />

utilizar-se o inquisidor do poder-dever de, voluntariosamente, buscar as provas para<br />

fun<strong>da</strong>mentar sua sentença.<br />

Não é essencial à inquisitorie<strong>da</strong>de, to<strong>da</strong>via, a ausência de partes.<br />

Com efeito, é perfeitamente possível estruturar um processo penal de cunho<br />

marca<strong>da</strong>mente inquisitório, mas formalmente dotado de partes. A respeito, exemplar o<br />

seguinte trecho de JACINTO N. DE MIRANDA COUTINHO: “Estabelece-se, assim, uma<br />

característica de extrema importância a demarcar o sistema, enquanto puro, ou seja, a<br />

inexistência de partes, no sentido que hoje emprestamos ao termo. Não obstante o vigor<br />

com que conduz e orienta o discurso de alguns, às vezes usa<strong>da</strong> como ponto de parti<strong>da</strong> ou<br />

mesmo como fator único de distinção, trata-se de elemento distintivo secundário, até<br />

porque pode-se ter um processo inquisitório e partes (...), como sucedia no ancien régime,<br />

com as Ordonnance Criminelle (1670), de Luís XIV”. 182<br />

O que é mais importante no processo inquisitório, sobretudo no que destacou-se do<br />

processo propriamente canônico, é a questão <strong>da</strong> administração do “patrimônio”<br />

probatório. 183 Essa administração, ou gestão <strong>da</strong> prova, era de competência exclusiva, ou<br />

180<br />

KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 433.<br />

181<br />

FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36-38.<br />

182<br />

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miran<strong>da</strong>. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.<br />

3-56.<br />

183<br />

Cf. a lição precisa de ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Processo…, p. 119-120: “O poder<br />

inquisitório do juiz é amplo ain<strong>da</strong> quando às partes é <strong>da</strong>do requerer a instauração do procedimento,<br />

definitivo ou preliminar. Permanece quando lhes é possível instruir o juízo por meio de alegações e<br />

produção de meios de prova. Restringe-se, quando o juiz é obrigado a atender a tais pedidos de produção<br />

de provas por outro motivo que não seja a demonstração <strong>da</strong> existência do crime e <strong>da</strong> autoria; ou quando o<br />

juiz é obrigado a instaurar procedimento sempre que requerido pelo autor. Diminui, ain<strong>da</strong> mais, quando o<br />

juiz não pode ter iniciativa para proceder; e anula-se, definitivamente, se o juiz não pode senão julgar<br />

segundo o alegado e provado pelas partes. Este é o tipo processual acusatório puro”.<br />

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quase exclusiva, do juiz. É o que ocorria, como visto, nas cita<strong>da</strong>s Ordonnance Criminelle,<br />

de 1670, com um fun<strong>da</strong>mento político específico. Segundo MICHEL FOUCAULT, “o<br />

magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas, de esconder ao acusado a<br />

natureza <strong>da</strong> causa, de interrogá-lo de maneira capciosa, de usar insinuações. (...) Ele<br />

constituía, sozinho e com pleno poder, uma ver<strong>da</strong>de com a qual investia o acusado (...). A<br />

forma secreta e escrita do processo confere com o princípio de que em matéria criminal o<br />

estabelecimento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de era para o soberano e seus juízes um direito absoluto e um<br />

poder exclusivo”. 184<br />

Quanto às influências do novo sistema, pode-se dizer que enquanto a influência<br />

bárbara sobre o processo penal romano foi no sentido de desintegração para um sistema<br />

híbrido, a influência do processo canônico sobre esse produto híbrido foi no sentido<br />

exatamente contrário, isto é, de reorganização <strong>da</strong>s normas e princípios mais ou menos<br />

como vigentes em Roma, sobretudo na sua última fase, a <strong>da</strong> cognitio extra ordinem.<br />

Assim, por exemplo, L. CABRAL DE MONCADA observa que o duelo judicial não vicejou<br />

em Portugal senão entre os plebeus, sendo praticamente esquecido pelo <strong>Tribunal</strong> <strong>da</strong><br />

Corte. A razão desse desprezo é que o processo praticado no referido tribunal era de<br />

feitio romano-canônico, baseado em provas lógico-racionais. 185<br />

Assim, a primeira atitude do processo canônico relativamente ao processo bárbaro foi<br />

no sentido de condenar as provas irracionais.<br />

To<strong>da</strong>via, a influência do processo canônico não se verificou somente nesse terreno.<br />

HEINRICH AHRENS observa que a doutrina dos práticos, influencia<strong>da</strong> pelo Direito Canônico,<br />

definia cinco tipos de procedimentos entre os germânicos, a saber: por acusação (ora<br />

priva<strong>da</strong>, ora oficial) por denúncia, por inquisição, por purgação (a fim de restabelecer a<br />

boa fama – leumundes – através dos Inzichtoder Beizicht processes) e em virtude de más<br />

ações intencionais. 186 HEINRICH AHRENS soma a esses os procedimentos nos tribunais de<br />

Wehm, de origem pouco conheci<strong>da</strong>, que deliberava secretamente e que chegou a ter mil<br />

integrantes, extremamente temido e que, após sua abolição no Século XIV, transformou-<br />

se em associação secreta, bem como, finalmente, os procedimentos penais por atos de<br />

feitiçaria, que no início impunham pena arbitrariamente e, depois, por volta do ano 1.230,<br />

184 FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36 [sem grifo no original].<br />

185 MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vi<strong>da</strong> do direito”, em Estudos…, p. 158-188.<br />

186 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

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passaram a impor a morte pelo fogo. 187<br />

A Constitutio Criminalis Carolina (CCC) inclusive, é caracteriza<strong>da</strong> como uma tentativa,<br />

ocorri<strong>da</strong> durante o reinado de Carlos V, em 1.532, de harmonizar o processo germânico<br />

com as regras dos direitos canônico e romano, <strong>da</strong>ndo-lhe uni<strong>da</strong>de.<br />

188-189 Diversas outras legislações foram profun<strong>da</strong>mente influencia<strong>da</strong>s pelo sistema<br />

inquisitório. Entre elas as Ordenações do Reino de Portugal, cujo estudo será feito<br />

adiante.<br />

c) a audiência inquisitória<br />

Com essas informações, já é possível traçar as características básicas <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal inquisitória. Para tanto, é preciso invocar alguns dos princípios<br />

processuais modernos, a fim de verificar quais deles encontram abrigo no sistema<br />

inquisitório.<br />

1. publici<strong>da</strong>de<br />

A primeira <strong>da</strong>s características do processo inquisitório foi a eliminação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de,<br />

ou sua restrição a níveis comparáveis ao segredo. Com isso, sobretudo a audiência de<br />

julgamento, mas também, em menor grau, embora, a ou as audiências de instrução,<br />

tornaram-se, paulatinamente, algo de dispensável. A ausência de publici<strong>da</strong>de tornou a<br />

audiência processual penal incômo<strong>da</strong>.<br />

Contudo, não seria correto afirmar-se que, no processo penal inquisitório, a audiência<br />

processual penal tivesse perdido completamente sua importância. Na ver<strong>da</strong>de, muitas <strong>da</strong>s<br />

principais nuances do processo penal inquisitório eram defini<strong>da</strong>s justamente em alguma<br />

audiência processual penal, posto que não de julgamento.<br />

A característica mais saliente <strong>da</strong> audiência processual penal inquisitória é, como visto,<br />

a ausência ou suma restrição <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de. Essa característica, aliás, é o que possibilita<br />

a desenvoltura do inquisidor na pesquisa <strong>da</strong>s provas de que necessita.<br />

Entretanto, essa anulação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de – que depois tornou-se a pedra de toque do<br />

187<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

188<br />

AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.<br />

189<br />

Cf. COLOMER, Juan-Luis Gomes. El proceso…, p. 29-38. Segundo esse autor, são características<br />

do processo <strong>da</strong> CCC: recusa ao processo acusatório, prova legal, procedimento escrito e secreto, juízes e<br />

escabinos leigos, persecução oficial, processo inquisitivo, absolvição de instância, condenação por prova<br />

indiciária e jurisdição suprema do rei, entre outras.<br />

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sistema inquisitório – em seu princípio era apenas tolera<strong>da</strong>, em caráter excepcional,<br />

conforme afirma ALFREDO VELEZ MARICONDE. 190<br />

Contudo, transformou-se ela no “ambiente” ideal para o desenvolvimento do processo<br />

de tipo inquisitório. Sem publici<strong>da</strong>de, a ativi<strong>da</strong>de do inquisidor poderia se tornar muito<br />

mais eficiente, possibilitando-lhe dedicar-se melhor ao afã de chegar à ver<strong>da</strong>de. Essa<br />

ausência de publici<strong>da</strong>de, outrossim, era travesti<strong>da</strong> em ausência de soleni<strong>da</strong>de, em<br />

cândi<strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de na tramitação do processo penal. É o que se percebe niti<strong>da</strong>mente<br />

nas recomen<strong>da</strong>ções de NICOLAS EYMERICH – “Vamos esclarecer logo que, nas questões<br />

de fé, o procedimento deve ser sumário, simples, sem complicações e tumultos, nem<br />

ostentação de advogados e juízes. Não se pode mostrar os autos de acusação ao<br />

acusado nem discuti-los. Não se admitem pedidos de adiamento, nem coisas do<br />

gênero” 191 – e de HEINRICH KRAMER e JAMES SPRENGER – “No que tange ao método para<br />

proceder ao julgamento de bruxas em causas de fé, cumpre observar primeiro: são<br />

causas a serem conduzi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> maneira mais simples e mais sumária, sem os argumentos<br />

e as contenções dos advogados de defesa”. 192<br />

2. contraditório<br />

Não resta dúvi<strong>da</strong>s de que o contraditório foi o princípio mais ferido pela audiência<br />

processual penal inquisitória.<br />

E está claro que deveria ser assim, até porque o processo penal inquisitório se fun<strong>da</strong><br />

numa situação de ampla vantagem que o juiz leva sobre a pessoa do imputado.<br />

Juridicamente, inclusive, o processo penal inquisitório puro não prevê a existência de<br />

partes, senão a titulariza<strong>da</strong> pelo próprio inquisidor. O processo penal de matiz inquisitória,<br />

por sua vez, prevê partes, mas o imputado, que naquele processo era mero objeto de<br />

investigação, neste aparece como parte em sentido formal, posto que em situação de<br />

clara inferiori<strong>da</strong>de.<br />

Além disso, é possível dizer que há uma clara interpenetração dos princípios, <strong>da</strong>í a<br />

ocorrência de certa dificul<strong>da</strong>de em separar ca<strong>da</strong> qual. O segredo, por exemplo, é algo que<br />

também prejudica, sobremaneira, o exercício de algum contraditório eficaz.<br />

190<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 100.<br />

191<br />

EYMERICH, Nicolau. Manual…, p. 110.<br />

192<br />

KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 406.<br />

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3. orali<strong>da</strong>de<br />

A tendência do processo penal inquisitório é, claramente, a escritura. A audiência<br />

processual penal inquisitória, em linha de conseqüência, embora se desenvolva<br />

oralmente, não é marca<strong>da</strong> por qualquer respeito ao princípio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, entendido este<br />

como o desenvolvimento dos atos principais <strong>da</strong> audiência processual penal através <strong>da</strong><br />

palavra fala<strong>da</strong>.<br />

Em outras palavras: embora a comunicação <strong>da</strong>s partes na “reunião” que se<br />

estabelece na audiência se dê através <strong>da</strong> palavra fala<strong>da</strong>, nenhuma decisão efetivamente<br />

importante que decorra dessa reunião se processa e exsurge através desse instrumento.<br />

Qualquer decisão ou ato processual importante é sempre e sempre escrito.<br />

A aceitação <strong>da</strong> forma oral na comunicação, aliás, decorre de imperiosa necessi<strong>da</strong>de<br />

prática. As testemunhas de antanho – é fácil imaginar – muitas vezes não eram<br />

alfabetiza<strong>da</strong>s, razão pela qual estaria inviabiliza<strong>da</strong> qualquer comunicação por escrito.<br />

Assim, não é lícito se considerar a comunicação oral, presente na ativi<strong>da</strong>de instrutória<br />

do mais puro processo inquisitório, como manifestação de respeito à orali<strong>da</strong>de.<br />

A preferência é claramente por uma decisão escrita, que interrompe e viola qualquer<br />

possibili<strong>da</strong>de de respeito à orali<strong>da</strong>de.<br />

4. imediação<br />

Quanto à prova produzi<strong>da</strong> na audiência processual penal inquisitória pura, valem as<br />

mesmas considerações feitas quanto à orali<strong>da</strong>de: não é possível negar-se imediação. De<br />

fato, uma vez ouvi<strong>da</strong>s testemunhas ou produzi<strong>da</strong>s outras provas durante a audiência de<br />

instrução, na<strong>da</strong> autoriza a concluir que o juiz estivesse fisicamente afastado delas. Havia,<br />

pois, ao menos formalmente, imediação.<br />

To<strong>da</strong>via, o desrespeito ao princípio <strong>da</strong> imediação manifesta-se por outra via. O<br />

seguinte trecho de MICHEL FOUCAULT, em parte já transcrito, esclarece o assunto: “Ele<br />

constituía, sozinho e com pleno poder, uma ver<strong>da</strong>de com a qual investia o acusado; e<br />

essa ver<strong>da</strong>de, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos;<br />

para ele, esses documentos sozinhos comprovavam; só encontravam o acusado uma vez<br />

para interrogá-lo antes de <strong>da</strong>r a sentença”. 193<br />

De fato, na audiência processual penal inquisitória, e nos diversos momentos secretos<br />

desse processo penal, o trabalho mental do juiz estará orientado não só pelas provas que<br />

193 FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36 [sem grifo no original].<br />

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ele mesmo colher, mas também pelas provas que produzirem para ele – com o mesmo<br />

escopo de conseguir evidências para a condenação. Dentre ambas, o juiz escolherá as<br />

que considerar mais aptas a fun<strong>da</strong>mentarem seu entendimento.<br />

5. concentração<br />

A bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, diga-se que, no que se refere à audiência processual penal de<br />

matiz inquisitória, não é ver<strong>da</strong>deiramente importante definir se ela é ou não concentra<strong>da</strong> –<br />

poderá ser ou não, de acordo com o entendimento do seu presidente, que decidirá<br />

baseado nas características do caso concreto. O que tem efetiva relevância é captar o<br />

ritmo desse momento processual penal.<br />

Há, aqui, uma interessantíssima diversi<strong>da</strong>de. Numa primeira aproximação, poderia<br />

parecer incongruência, ou contradição; mas não é. Trata-se do que se poderia denominar<br />

de uma maliciosa utilização do tempo.<br />

De um lado, o processo penal inquisitório há de ser célere, o quanto possível,<br />

garanti<strong>da</strong> essa celeri<strong>da</strong>de pela ausência de publici<strong>da</strong>de, contraditório e pela<br />

disponibili<strong>da</strong>de que tem o inquisidor sobre a pessoa do imputado. De outro, justamente no<br />

momento processual <strong>da</strong> audiência, o tempo como que “pára”, ou “passa a correr<br />

lentamente”, sem compromisso com aquela celeri<strong>da</strong>de anterior.<br />

De acordo com as instruções de HEINRICH KRAMER e JAMES SPRENGER, “o Juiz não<br />

deve se apressar em submeter a bruxa a exame, embora deva prestar atenção a certos<br />

sinais importantes. Não deve se apressar pela seguinte razão: a menos que Deus,<br />

através de um santo Anjo, obrigue o demônio a não auxiliar a bruxa, ela se mostrará tão<br />

insensível às dores <strong>da</strong> tortura que logo será dilacera<strong>da</strong> membro a membro sem confessar<br />

a menor parcela <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de. (...) se então ela começar a contar a ver<strong>da</strong>de, que o Juiz não<br />

adie por qualquer motivo ouvir-lhe a confissão, mesmo no meio <strong>da</strong> noite, mas que<br />

continue ao extremo de sua capaci<strong>da</strong>de. Se for durante o dia, que cuide para protelar o<br />

almoço ou jantar e que persista até que ela tenha revelado a ver<strong>da</strong>de, ao menos em<br />

linhas gerais. Pois se verifica em geral que retornarão à sua obstinação depois de<br />

adiamentos e interrupções e não revelarão a ver<strong>da</strong>de que começaram a confessar,<br />

mu<strong>da</strong>ndo de idéia a respeito”. 194<br />

Não resta dúvi<strong>da</strong> que a anulação <strong>da</strong> celeri<strong>da</strong>de, no preciso momento <strong>da</strong> audiência, é<br />

maliciosamente instrumentaliza<strong>da</strong>. O tempo, na audiência processual penal inquisitória, é<br />

194 KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 429 e 442.<br />

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indeterminável.<br />

Em termos juridicamente mais inteligíveis, é possível afirmar que a conclusão <strong>da</strong><br />

audiência processual penal inquisitória – sobretudo a de instrução, representa<strong>da</strong> pelo<br />

interrogatório – está submeti<strong>da</strong> a uma condição resolutiva, sabi<strong>da</strong> pelo inquisidor e pelo<br />

imputado: que este confesse o crime. A partir desse momento, a audiência já pode se<br />

encerrar. Se ele não ocorrer, a audiência se estenderá até quando for preciso.<br />

§ 2º Sistema acusatório (audiência inglesa)<br />

a) o sistema inglês<br />

1. esclarecimentos iniciais<br />

Segundo RENÉ DAVID, a common law consiste em um conjunto sistêmico de normas,<br />

paulatinamente criado na Inglaterra, a partir <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de dos Tribunais Reais de Justiça,<br />

após a conquista norman<strong>da</strong>. 195<br />

Embora essa “família” como quer RENÉ DAVID, abranja hoje outros países, cujo<br />

ordenamento jurídico é claramente influenciado pelo ordenamento jurídico inglês, é<br />

conveniente que o estudo de qualquer instituto jurídico <strong>da</strong> common law, ain<strong>da</strong> que não<br />

exclusivamente inglês, parta do estudo deste. 196 É o que acontece, basicamente, com o<br />

sistema processual penal acusatório que, embora não seja sequer genuinamente inglês,<br />

ou exclusivo do common law – o processo anterior ao nascimento do sistema inquisitório<br />

era, basicamente, e por exclusão, acusatório – precisa ser estu<strong>da</strong>do a partir <strong>da</strong>s<br />

características que teve na Inglaterra.<br />

2. a questão do método<br />

Duas são as características fun<strong>da</strong>ntes do direito inglês e, por conseguinte, do<br />

common law. A primeira delas é a questão do método.<br />

No direito inglês, o método de conhecimento não é dedutivo, mas indutivo, ou<br />

empírico, cuja significação é desnecessário explicitar.<br />

Há duas frases que definem muito perfeitamente o método inglês de desenvolvimento<br />

de seu sistema jurídico, de constante aprendizagem com os fatos sociais, a fim de se<br />

chegar a regras positivas.<br />

A primeira delas, já clássica, é de autoria de OLIVER WENDELL HOLMES, JR.: “a vi<strong>da</strong> do<br />

195<br />

DAVID, René. Os grandes…, p. 327.<br />

196<br />

DAVID, René. Os grandes…, p. 327. Cf. preocupação semelhante em RÁO, Vicente. O Direito…, p.<br />

101-113.<br />

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direito não foi a lógica; foi a experiência”. 197<br />

A segun<strong>da</strong> frase é de FREDERIC W. MAITLAND, historiador do direito inglês: “seguir<br />

tropeçando à nossa mo<strong>da</strong> empírica e, enfim, enganando-nos, chegar à sabedoria”. 198<br />

Esse método empírico enformou o próprio pensamento jurídico inglês, avesso à<br />

formação de grandes sistemas de idéias, mas atento à evolução natural dos<br />

acontecimentos históricos. 199 A partir <strong>da</strong>í é que o sistema jurídico inglês começou a se<br />

afastar do sistema continental. É como descreve RENÉ DAVID: “O jurista do continente<br />

europeu vê no direito os princípios, ou o próprio princípio, <strong>da</strong> ordem social. Procura defini-<br />

lo, melhorá-lo, sob o ângulo destes princípios: estabelece o princípio <strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des<br />

políticas, o dos direitos sociais, o <strong>da</strong> inviolabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> proprie<strong>da</strong>de e dos contratos, e<br />

abandona aos práticos o cui<strong>da</strong>do de pôr a funcionar – ou de deixar desprovidos de<br />

sanção – estes princípios. O jurista inglês, herdeiro dos práticos, desconfia <strong>da</strong>quilo que<br />

ele considera, muito naturalmente, como fórmulas ocas: que vale a afirmação dum direito<br />

ou dum princípio, se na prática não existe um meio de o pôr a funcionar? To<strong>da</strong> a atenção<br />

dos juristas ingleses se voltou, durante séculos, para o processo: só lentamente se volta<br />

para as regras de fundo do direito”. 200<br />

O papel <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des, nisso, foi interessante. Antes de mais na<strong>da</strong>, porque essas<br />

enti<strong>da</strong>des de ensino superior não formavam, como formam as universi<strong>da</strong>des de hoje, os<br />

juristas: a maioria dos antigos juristas ingleses sequer estu<strong>da</strong>ram alguma vez em<br />

universi<strong>da</strong>de, até porque Oxford só teve um curso jurídico a partir de 1758 e Cambridge<br />

197 HOLMES Jr., Oliver Wendell. O Direito…, p. 29.<br />

198 MAITLAND, Frederic William, apud RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 18-27. Trecho original:<br />

“Stumbling forward in our empirical fashion, blundering into wisdom”.<br />

199<br />

Cf. precisa observação em DAVID, René. Os grandes…, p. 381: “Os direitos <strong>da</strong> família romanogermânica<br />

constituem conjuntos coerentes, ‘sistemas fechados’, em que to<strong>da</strong> a espécie de questões pode e<br />

deve, pelo menos em teoria, ser resolvi<strong>da</strong> pela ‘interpretação’ duma regra jurídica existente. O direito inglês<br />

é, pelo contrário, um ‘sistema aberto’; comporta uma técnica que permite resolver to<strong>da</strong> a espécie de<br />

questões, mas não comporta regras de fundo <strong>da</strong>s quais é permitido, em to<strong>da</strong>s as circunstâncias, fazer<br />

aplicação. A técnica do direito inglês não é uma técnica de interpretação <strong>da</strong>s regras jurídicas; consiste,<br />

partindo <strong>da</strong>s legal rules, que desde logo foram destaca<strong>da</strong>s, em descobrir qual a legal rule, talvez nova, que<br />

deverá ser aplica<strong>da</strong> em espécie; esta tentativa é conduzi<strong>da</strong>, mantendo-se muito perto dos fatos de ca<strong>da</strong><br />

espécie, e considerando com cui<strong>da</strong>do as razões que existem para distinguir a situação que hoje se<br />

apresenta <strong>da</strong>s que foram apresenta<strong>da</strong>s no passado. A uma nova situação corresponde, deve corresponder<br />

segundo o jurista inglês, uma nova regra. A função do juiz é a de administrar a justiça. Não é sua função<br />

formular, em termos gerais, regras que ultrapassem, pelo seu alcance, o litígio a ele submetido. A<br />

concepção inglesa de legal rule, mais estreita do que a nossa concepção de regra jurídica, encontra a sua<br />

explicação histórica no fato <strong>da</strong> common law se ter formado por obra de juízes; ela está intimamente liga<strong>da</strong> à<br />

técnica <strong>da</strong>s distinctions que, por oposição à <strong>da</strong> interpretação, continua a ser o método do direito inglês”.<br />

200<br />

DAVID, René. Os grandes…, p. 376.<br />

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mais tarde, em 1800. 201 Além disso, muito pouco se estudou do direito romano nessas<br />

universi<strong>da</strong>des, ao contrário do que ocorreu nas universi<strong>da</strong>des continentais.<br />

3. evolução rumo ao adversary system 202<br />

Outra característica fun<strong>da</strong>nte do sistema <strong>da</strong> common law foi a ausência de<br />

rompimentos bruscos na sua linha de desenvolvimento histórico, bem como, ao longo <strong>da</strong><br />

história, um constante aprendizado de convivência política.<br />

Segundo GUSTAV RADBRUCH, a I<strong>da</strong>de Média, na Inglaterra, não foi sucedi<strong>da</strong> pela I<strong>da</strong>de<br />

Moderna através de um rompimento. Houve uma continui<strong>da</strong>de, mesmo no terreno do<br />

pensamento.<br />

203-204 A história do direito inglês começa no ano de 1.066, quando o Duque <strong>da</strong> Normandia,<br />

Guilherme, cognominado “O Conquistador”, vence Haroldo de Wessex, em Hastings,<br />

conquistando a ilha <strong>da</strong> Inglaterra. Essa conquista norman<strong>da</strong> se traduz, conforme RENÉ<br />

DAVID, em “um acontecimento capital na história do direito inglês, porque traz para (a)<br />

Inglaterra, com uma ocupação estrangeira, um poder forte, centralizado, rico duma<br />

experiência administrativa posta à prova no ducado <strong>da</strong> Normandia. Com a conquista pelos<br />

normandos, a época tribal desaparece; o feu<strong>da</strong>lismo instala-se na Inglaterra”. 205<br />

Ain<strong>da</strong> segundo RENÉ DAVID, o feu<strong>da</strong>lismo inglês é diferente do que se instalou no<br />

continente europeu. Ao distribuir as terras dos vencidos entre seus aliados, o<br />

conquistador, já, então, o rei GUILHERME I (1027-1087; reinado: 1066-1087), evitou <strong>da</strong>r<br />

grande quanti<strong>da</strong>de delas a apenas um de seus vassalos, a fim de prevenir-se contra<br />

futura ameaça ao seu poder. 206-207 Além disso, impôs aos nobres exclusivo dever de<br />

fideli<strong>da</strong>de ao rei, obtido sob juramento, proibiu guerras priva<strong>da</strong>s e criou a figura do sheriff,<br />

201<br />

DAVID, René. Os grandes…, p. 376.<br />

202<br />

Cf. CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555. Da expressão, consagra<strong>da</strong> para designar o processo<br />

acusatório puro, tal como praticado na Inglaterra, há variantes, como adversarial ou adversariness.<br />

203<br />

RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 13-18.<br />

204<br />

Os exemplos mais significativos dessa ausência de rompimentos, de acordo com RADBRUCH, são as<br />

universi<strong>da</strong>des inglesas, como Oxford e Cambridge, que, mais do que quaisquer outras universi<strong>da</strong>des,<br />

correspondem ao modelo medieval. Cf. RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 13-18.<br />

205<br />

DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.<br />

206 DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.<br />

207 Cf., também, ALVARENGA, Francisco Jacques Moreira de, AQUINO, Rubim Santos Leão de,<br />

FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. Histórias…, p. 44.<br />

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funcionário real que controlava os shires (con<strong>da</strong>dos). 208 Através dessas medi<strong>da</strong>s, o<br />

monarca inglês permaneceu como o maior senhor feu<strong>da</strong>l <strong>da</strong> Inglaterra e com condições<br />

materiais de policiar a maior parte do território inglês, o que lhe garantiu o exercício de<br />

grande autori<strong>da</strong>de. 209<br />

Por essa razão e porque a ação do conquistador foi politicamente orienta<strong>da</strong>, seus<br />

súditos normandos entraram na Inglaterra e assumiram, desde logo, uma organização e<br />

disciplina que RENÉ DAVID compara às equivalentes militares. 210<br />

No princípio desse desenvolvimento, três ordens de normas são aplica<strong>da</strong>s: as normas<br />

locais, as normas comuns a to<strong>da</strong> a ilha e as normas eclesiásticas.<br />

As normas locais são aplica<strong>da</strong>s por assembléias de homens livres, denomina<strong>da</strong>s<br />

“Cortes do con<strong>da</strong>do” (County Courts) ou “Cortes <strong>da</strong> centena” (Hundred Courts, sendo a<br />

“centena” uma uni<strong>da</strong>de política resultante <strong>da</strong> divisão de um con<strong>da</strong>do), cujo método de<br />

comprovação ou instrução, conforme RENÉ DAVID, “não tem qualquer pretensão de ser<br />

racional”. 211<br />

As normas comuns a to<strong>da</strong> Inglaterra são aplica<strong>da</strong>s pelos Tribunais Reais de Justiça,<br />

que em questões criminais julgam causas que ponham em risco a paz do reino. 212<br />

Finalmente, as normas eclesiásticas são aplica<strong>da</strong>s pelos tribunais eclesiásticos.<br />

Há, ain<strong>da</strong>, menos poderosa do que a equivalente do continente, uma justiça senhorial.<br />

Conforme se percebe, nesse momento do desenvolvimento do direito inglês há um<br />

quadro de disputa pelo poder, semelhante ao que ocorreu no continente. Contudo, alguns<br />

fatores vão determinar que o desenrolar dessa disputa, aliás, inevitável, tenha, na<br />

Inglaterra, um aspecto peculiar.<br />

O primeiro desses fatores foi a forma natural com que se impuseram os Tribunais<br />

Reais de Justiça. Efetivamente, o processo nessas cortes parecerá às partes mais<br />

moderno, porque racional, do que o processo desenvolvido perante as County Courts ou<br />

Hundred Courts. No continente, como visto, essa preferência recaiu sobre o processo<br />

canônico.<br />

208 AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 427.<br />

209 ALVARENGA, Francisco Jacques Moreira de, AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize<br />

de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. Histórias…, p. 44.<br />

210 DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.<br />

211 DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.<br />

212 DAVID, René. Os grandes…, p. 335.<br />

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Além disso, os Tribunais Reais de Justiça eram os únicos que tinham reais condições<br />

de fazerem valer, coativamente, suas decisões. “Por outro lado, só o rei, com a Igreja,<br />

pode obrigar os seus súditos a prestar juramento; os Tribunais Reais puderam, por esse<br />

fato, modernizar o seu processo e submeter o julgamento dos litígios a um júri (...)<br />

enquanto que as outras jurisdições estavam condena<strong>da</strong>s a conservar um sistema arcaico<br />

de provas”. 213<br />

Some-se a essa natural imposição, por méritos, a pouca força dos nobres e de sua<br />

justiça. RENÉ DAVID acrescenta a esses fatores a ação politicamente sábia dos Tribunais<br />

Reais diante dos nobres ingleses quando, negando-se a conhecer causas de<br />

competência interna dos feudos, de competência <strong>da</strong> justiça senhorial, evitavam ferir<br />

suscetibili<strong>da</strong>des. 214<br />

Esse desenvolvimento, orientado pelo cui<strong>da</strong>do de evitar arestas entre as diversas<br />

esferas do poder, fez nascer, na Inglaterra, um costume de convivência política, senão<br />

pacífica, ao menos incruenta, entre os diversos estamentos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, que valeria<br />

para o enfrentamento de futuras crises, que não tar<strong>da</strong>riam a ocorrer. 215<br />

Uma <strong>da</strong>s primeiras crises e, decerto, a mais grave desse período, foi a ocorri<strong>da</strong> com o<br />

rei inglês JOÃO I (1167-1216; reinado 1199-1216) dito “Sem-Terra” (Lackland), <strong>da</strong> dinastia<br />

dos plantagenetas, filho de HENRIQUE II (1133-1189; reinado: 1154-1189) e irmão mais<br />

novo de RICARDO I (1157-1199; reinado: 1189-1199), dito “Coração de Leão” (Coeur de<br />

Lion ou Lion-Hearted).<br />

Essa crise teve diversas causas. Uma se relaciona com as contradições internas dos<br />

plantagenetas. De origem norman<strong>da</strong>, os membros dessa dinastia possuíam feudos que<br />

abrangiam a metade do território francês. 216 Essa condição os colocava em contraditória<br />

213<br />

DAVID, René. Os grandes…, p. 335-336.<br />

214<br />

DAVID, René. Os grandes…, p. 335-336.<br />

215<br />

Cf., MACHADO, Luiz Alberto. “O princípio constitucional <strong>da</strong> isonomia jurídica e o direito criminal e<br />

processual criminal”, em Estudos-Manoel Pedro Pimentel (1992), p. 239-240: “Nós vivemos duas reali<strong>da</strong>des<br />

jurídicas ocidentais: uma, a do direito comum, de origem anglo-saxã. Tome-se a Inglaterra, construí<strong>da</strong> por<br />

vários povos, o anglo, o saxão, o celta, o povo antigo, o normando, o romano. Como a maioria dos povos<br />

estava sempre domina<strong>da</strong> por algum outro, fez-se um pacto de poder em que ficou assentado que o povo<br />

dizia o direito material, já que ele sofreria a sua aplicação. Então, o direito material comum foi estabelecido<br />

pelos usos e costumes do povo, aquilo que o povo entendeu como direito é o Direito material;<br />

sofistica<strong>da</strong>mente, no Direito continental-europeu, Del Vecchio chamou de consciência coletiva de<br />

necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> norma. Mas como o poder dominante deveria aplicar esse direito material, o poder<br />

dominante dizia o direito processual. Estabeleceu-se o equilíbrio: o costume do povo fixou o direito material;<br />

o poder dominante, respeitados limites, o direito material”.<br />

216<br />

AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl<br />

Campos. História…, p. 429.<br />

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condição: por direito de conquista, eram os soberanos <strong>da</strong> Inglaterra; por direito de<br />

proprie<strong>da</strong>de, eram vassalos dos reis franceses. Além disso, os enormes interesses<br />

territoriais que tinham na França faziam-nos envolverem-se constantemente em guerras<br />

com os soberanos <strong>da</strong>queles países.<br />

A outra causa se relaciona com as constantes aventuras de seu irmão Ricardo<br />

Coração de Leão, ou Ricardo I, que foi coroado e praticamente não reinou,<br />

permanecendo longo tempo na Terceira Cruza<strong>da</strong> e em constantes guerras contra a<br />

França, a fim de defender dos ataques inimigos os feudos dos plantagenetas nesse país.<br />

Essas guerras levaram a grandes gastos, causadores <strong>da</strong> elevação dos impostos sobre os<br />

nobres ingleses, o que fez crescer o descontentamento desses nobres. A longa ausência<br />

do monarca, outrossim, fortaleceu-os.<br />

Em 1.199 João Sem-Terra ascendeu ao trono. Envolveu-se em uma guerra contra<br />

Felipe Augusto, rei <strong>da</strong> França, perdeu-a e viu aumentar ain<strong>da</strong> mais o descontentamento<br />

dos nobres.<br />

Um conflito político com a Igreja – deixou de reconhecer o Bispo de Canterbury – fez<br />

com que fosse excomungado pelo Papa Inocêncio III, o que o colocou em posição de<br />

extrema fragili<strong>da</strong>de diante dos nobres, que dela se aproveitaram para tirar proveito<br />

político. Nesse momento é que se mostra a “disciplina militar” a que RENÉ DAVID fizera<br />

referência; ao invés de algum desses nobres procurar um proveito pessoal dessa<br />

fragili<strong>da</strong>de, o conjunto dos nobres procurou-o. O instrumento dessa vantagem foi a<br />

imposição de limites jurídicos ao poder do soberano inglês, o que fizeram através <strong>da</strong><br />

Magna Charta Libertarum, de 1215.<br />

Para os referidos nobres, o conteúdo mais importante desse diploma é o<br />

estabelecimento de limites jurídicos à ativi<strong>da</strong>de impositiva do rei inglês, <strong>da</strong>do que<br />

consideravam extremamente pesa<strong>da</strong> a carga tributária <strong>da</strong> época.<br />

Contudo, outro dos seus dispositivos trouxe importante conquista para a ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia.<br />

Trata-se do seu item 39: “Nenhum homem livre será tocado, ou aprisionado, ou<br />

despojado, ou colocado fora <strong>da</strong> lei, ou exilado, ou de qualquer modo destruído, nem nós<br />

iremos contra ele, nem permitiremos que alguém o faça, exceto pelo julgamento legal de<br />

seus pares, ou pela lei <strong>da</strong> terra”. 217<br />

217 Trecho original, em latim: “Nullus liber homo capiatur vel imprisonetur aut disseisietur de libere<br />

tenemento sua vel libertatibus, vel liberis consuetudinibus suis, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo<br />

destruatur, nec super eo ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium parium suorum, vel per<br />

legem terrae”. Trecho original, em inglês: “No free man shall be taken, or imprisoned, or disseised, or<br />

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Outro conflito, ocorrido entre o rei inglês HENRIQUE III (1207-1272; reinado: 1216-1272)<br />

e os nobres, fez com que nascesse o Parlamento inglês, logo dividido em duas casas,<br />

uma reserva<strong>da</strong> para os nobres e outra para os comuns.<br />

Está claro que essas conquistas não tiveram uma história isenta de recuos. Em seus<br />

primórdios, a atuação do parlamento inglês, imposta a HENRIQUE III pelos nobres, não foi<br />

contínua, sendo ele convocado somente quando assim o desejava o rei. Somente a partir<br />

do ano de 1.295, durante o reinado de EDUARDO I (1239-1307; reinado: 1272-1307), é que<br />

passou a ser permanente. 218<br />

Contudo, “no constante conflito entre as forças, entre os barões e o rei, parece ter<br />

levado vantagem o povo, até assumir a consciência de ser o efetivo detentor do poder,<br />

pelo menos para efeito de não ter violado o seu espaço de intimi<strong>da</strong>de, com uma cultura<br />

de respeito à ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia”. 219<br />

Ao lado dessa evolução <strong>da</strong>s instituições políticas inglesas, evoluía uma forma de<br />

processo que tornou-se, talvez, a face mais saliente do processo acusatório inglês. Trata-<br />

se do trial by jury.<br />

4. o trial by jury inglês<br />

ADA PELLEGRINI GRINOVER observa que a melhor doutrina não considera a frase “by the<br />

legal judgement of his peers” como constitutiva <strong>da</strong> primeira manifestação do trial by jury 220<br />

inglês.<br />

Com efeito, o trial by jury não é uma instituição genuinamente inglesa e nem,<br />

tampouco, foi constituído a partir de normas jurídicas como a Magna Charta Libertarum.<br />

O júri nasceu, segundo FREDERIC W. MAITLAND, “mais francês que inglês, mais real<br />

que popular, mais o signo do subjugo que o distintivo <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de”. 221<br />

Sua história 222 é, porém e rigorosamente, um bom exemplo de como, novamente<br />

outlawed, or exiled, or in any way destroyed, nor will we go upon him, nor will we send upon him, except by<br />

the legal judgement of his peers or by the law of the land”.<br />

218<br />

ROMANO, Santi. Princípios…, p. 282.<br />

219<br />

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miran<strong>da</strong>. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.<br />

3-56.<br />

220<br />

GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini. Garantia…, p. 24.<br />

221<br />

MAITLAND, Frederic William, apud RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 18-27.<br />

222<br />

Cf., em HOLMES, Oliver Wendell. O Direito…, p. 331-332 história um tanto diversa acerca <strong>da</strong> origem<br />

do júri inglês. Segundo esse autor, no Código de Henrique II as ações propostas por proprietários de terras<br />

deviam ser julga<strong>da</strong>s por um assize que, conforme o modelo francês, era um órgão judiciário formado por<br />

jurados que decidiam os casos, murmurando aprovação ou desaprovação. No caso dos não-proprietários<br />

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Currículo<br />

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recor<strong>da</strong>ndo FREDERIC W. MAITLAND, mas agora para parafraseá-lo, os ingleses seguiam<br />

tropeçando à sua maneira para, enfim, chegar à sabedoria.<br />

Na época de formação <strong>da</strong> common law quatro eram, basicamente, os órgãos dotados<br />

de jurisdição: a justiça local, de caráter costumeiro, a justiça senhorial, de competência<br />

basicamente reduzi<strong>da</strong> aos problemas interna corporis dos feudos, a justiça eclesiástica<br />

que, por não lograr o desenvolvimento ocorrido no continente permaneceu com<br />

competência reduzi<strong>da</strong> aos problemas do espírito e a justiça real.<br />

No princípio, os conquistadores preferiram manter a estrutura <strong>da</strong> justiça tal como<br />

estava configura<strong>da</strong>. Assim, a justiça local, forma<strong>da</strong> a partir de assembléias de homens<br />

livres, como ocorria com os demais povos “bárbaros”, era o foro natural dos ingleses.<br />

Seguiu sendo a justiça comum, por assim dizer.<br />

A justiça dos tribunais de Westminster permaneceu, nesse tempo e até 1875, ao<br />

menos teoricamente, uma justiça de exceção. 223 Para obter dela um pronunciamento, que<br />

tinha caráter de privilégio, o interessado precisava obter um writ do Chancellor. No<br />

princípio, a concessão ou não do writ ficava submeti<strong>da</strong> à decisão dessa autori<strong>da</strong>de real,<br />

que examinava se havia ou não motivo para concedê-la. Com o tempo, fixou-se o<br />

entendimento de que em alguns casos o writ era concedido sem qualquer exame.<br />

Ao lado desses órgãos, permaneceram funcionando as assembléias de homens livres,<br />

praticando uma justiça basea<strong>da</strong> nos costumes. Além de não estarem próximos de to<strong>da</strong>s<br />

as locali<strong>da</strong>des inglesas, a prestação jurisdicional dos Tribunais de Westminster era de<br />

difícil acesso, por causa <strong>da</strong> exigência de writ. Entretanto, a justiça que distribuíam parecia<br />

mais razoável e moderna às partes. Por tais razões – e porque a coroa inglesa disputava<br />

o poder com as comuni<strong>da</strong>des locais – o rei <strong>da</strong> Inglaterra preferiu “cooptar” ou mesmo<br />

submeter essa justiça local aos padrões racionais <strong>da</strong> justiça real. Tratava-se, sem dúvi<strong>da</strong>,<br />

de uma forma de subjugo.<br />

Para tanto, passou a enviar delegados do rei, com a função de presidirem eles os<br />

julgamentos que essas assembléias de homens livres iriam fazer: aproveitou,<br />

modificando-o um tanto, o modelo francês, depois abandonado, de julgamento por alguns<br />

dos pares mais notáveis, os rachimbourgs. 224<br />

de terra que propusessem ações quaisquer, a competência era <strong>da</strong> jurata, um conselho convocado para<br />

decidir apenas as questões fáticas do caso. Posteriormente o assize foi absorvido pela jurata. Segundo<br />

HOLMES, esta última é a origem ver<strong>da</strong>deira do júri inglês.<br />

223 DAVID, René. Os grandes…, p. 336.<br />

224 Cf., sobre o assunto, com detalhes, OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.<br />

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O aproveitamento desse modelo, que na França também incluía um funcionário do rei,<br />

o vicarius, tem uma razão de ordem prática: a dificul<strong>da</strong>de, ou mesmo desinteresse, de<br />

to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de manifestar-se em ca<strong>da</strong> julgamento.<br />

Os delegados do rei <strong>da</strong> Inglaterra chegavam a uma locali<strong>da</strong>de e logo se punham a<br />

ouvir as reclamações e as notícias de crimes. Como na<strong>da</strong> sabiam, limitavam-se a<br />

administrar a ativi<strong>da</strong>de popular de indiciamento, em primeiro lugar, e de julgamento,<br />

posteriormente.<br />

O órgão popular encarregado, por assim dizer, de indiciar os acusados <strong>da</strong> prática de<br />

crime, era o grand jury, formado por 21 ci<strong>da</strong>dãos. Esse grand jury devia decidir “se este é,<br />

prima facie, um caso” (wether there is a prima facie case), isto é, se a acusação tinha<br />

sustentação, se era “um documento legítimo” (a true bill). 225<br />

O órgão encarregado do julgamento propriamente dito era o petty jury, formado por<br />

doze membros <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, preferentemente arrebanhados dentre os que tinham<br />

conhecimento dos acontecimentos.<br />

A partir <strong>da</strong>í, o petty jury decidia o caso com base nos conhecimentos de seus<br />

integrantes acerca do caso; afinal, seus membros, moradores do local, sabiam o que, em<br />

reali<strong>da</strong>de, ocorrera.<br />

Rigorosamente, isso não aconteceu desde o início. A princípio, produziam-se provas<br />

diante do petty jury, especificamente os juízos de Deus, prática que se tornou impossível<br />

a partir do ano de 1.219, quando a Igreja, <strong>da</strong>do o IV Concílio de Latrão, ocorrido quatro<br />

anos antes, passou a se recusar a colaborar. 226 Com a impossibili<strong>da</strong>de de se realizarem<br />

os ordálios, os membros do petty jury passaram a decidir com base em seus próprios<br />

conhecimentos acerca <strong>da</strong> causa.<br />

Somente muito tempo depois, no Século V, o petty jury passou a decidir com base em<br />

provas produzi<strong>da</strong>s racionalmente diante de si. Mesmo nesse caso, porém, a modificação<br />

teve uma clara razão de ser: com o aumento <strong>da</strong>s populações dos diversos vilarejos, já<br />

não era possível aos julgadores saber do que ocorrera em ca<strong>da</strong> lugar.<br />

Outra particulari<strong>da</strong>de que mostra como a evolução do processo inglês é lenta, mas<br />

profun<strong>da</strong>mente integra<strong>da</strong> com a reali<strong>da</strong>de social, é a questão <strong>da</strong> obrigatorie<strong>da</strong>de do<br />

acusado de se submeter ao júri.<br />

A rigor, durante muito tempo, o suspeito <strong>da</strong> prática de um crime podia, no princípio <strong>da</strong><br />

225 RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.<br />

226 RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.<br />

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história do trial by jury, ao invés de a ele ser submetido, valer-se de “conjuradores”, ou<br />

“compurgantes”, que com ele juravam inocência. Essa prática, porém, diante do<br />

movimento de paulatina racionalização do procedimento inglês, não se firmou. 227<br />

Passaram, então, a existir duas possibili<strong>da</strong>des ao suspeito. Ele podia confessar logo<br />

seu crime, evitando ser julgado ou pedir o seu “descargo” pelo petty jury, cujos membros<br />

funcionariam como sua prova. Contudo, se omitisse quaisquer dessas atitudes,<br />

impossibilitando à justiça julgá-lo ou aplicar-lhe, desde logo, uma sanção, o suspeito era<br />

submetido à peine forte et dure: 228 fechado numa sala escura, com as costas nuas sobre<br />

o chão de pedra, era colocado sobre o seu peito um grande peso de ferro, devendo<br />

passar a pão e água (três nacos de pão ruim num dia, três goles de água para<strong>da</strong> no<br />

outro). 229<br />

GUSTAV RADBRUCH comenta que, na grande maioria dos casos, os suspeitos tomavam<br />

logo uma dessas atitudes. Apenas num caso, ocorrido em 1.658, o suspeito, com o<br />

sugestivo sobrenome de Strangeways (ironicamente, traduzido como “estranhos<br />

caminhos”), decerto para evitar que seus filhos perdessem o direito a sua herança, que<br />

era uma <strong>da</strong>s penas acessórias, permaneceu omisso até morrer. 230 A lei <strong>da</strong> peine forte et<br />

dure vigorou até 1.772, quando foi revoga<strong>da</strong> 231 e substituí<strong>da</strong> por uma lei que dispunha<br />

implicar em confissão tácita a inércia do acusado. 232<br />

Em 1933 suprimiu-se o grand jury. 233<br />

Hoje, na Inglaterra, de acordo com o registro de TERENCE INGMAN, o trial by jury, que é<br />

praticado na “Corte <strong>da</strong> Coroa” (Crown Court) 234 tem as seguintes características: os<br />

jurados devem ter entre dezoito e setenta anos, ser eleitores e residentes no Reino Unido<br />

e Territórios (Channel Islands e Isle of Man) por cinco anos, no mínimo, desde os treze<br />

anos e, segundo a regulamentação do Juries Act, de 1974, podem ser desqualificados<br />

227<br />

RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.<br />

228<br />

Cf. RABASA, Oscar. El Derecho…, p. 116. Segundo esse autor, a expressão traduz-se por: “Tortura<br />

forte e dura”. A rigor, porém, não é correto dizer-se que se tratava de uma ver<strong>da</strong>deira “tortura”, aplica<strong>da</strong><br />

para obter a ver<strong>da</strong>de.<br />

229<br />

RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.<br />

230<br />

RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.<br />

231<br />

RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.<br />

232<br />

Cf. RABASA, Oscar. El Derecho…, p. 116.<br />

233<br />

RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.<br />

234<br />

Cf., acerca <strong>da</strong> organização judiciária inglesa, INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.<br />

Informações úteis encontram-se também em DAVID, René. Os grandes…, p. 386-395.<br />

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para o serviço do júri caso presos, condenados ou se cometerem inconfidência, ao se<br />

comunicarem com algum acusado. 235 Podem se escusar do serviço do júri se exercerem<br />

ativi<strong>da</strong>de que os impeça de prestá-lo (caso <strong>da</strong>s enfermeiras, sol<strong>da</strong>dos etc.) ou caso<br />

apresentem uma good reason, como ser pessoa envolvi<strong>da</strong> com o caso em julgamento, ter<br />

problemas de consciência com a instituição do júri etc. 236 A seleção para um determinado<br />

conselho de sentença é precedi<strong>da</strong> de um interrogatório que os advogados fazem dos<br />

jurados, a fim de recusá-los. Outrora, havia liber<strong>da</strong>de nesse interrogatório. Hoje, <strong>da</strong>do um<br />

caso de crime político ocorrido em 1972, envolvendo a Angry Brigade, os advogados só<br />

podem fazer perguntas liga<strong>da</strong>s ao crime a ser julgado e em tese, devendo excluir<br />

perguntas acerca de convicção política, amizade ou parentesco com policiais <strong>da</strong> Irlan<strong>da</strong><br />

do Norte etc. 237<br />

Hoje, segundo TERENCE INGMAN, os jurados ingleses são juízes de fato e de direito:<br />

devem decidir baseados no que viram e ouviram, no que sabem de direito e nas lições<br />

jurídicas que o juiz lhes ministrar, sem a necessi<strong>da</strong>de de fun<strong>da</strong>mentarem os seus<br />

veredictos. 238 Não há recurso contra o “veredicto de inocente”, ou “veredicto de não-<br />

culpado” (notguilt veredict) pronunciado na “Corte <strong>da</strong> Coroa” (Crown Court).<br />

Como não há júris nas “cortes dos magistrados” (magistrates’ courts), que respondem<br />

por 97 (noventa e sete) por cento dos casos criminais, apenas três por cento deles<br />

podem, em tese, ser julgados pelo júri. 239 Na prática, porém, apenas 0,8 (oito décimos)<br />

por cento dos casos são, efetivamente, julgados pelo júri, porque 72 (setenta e dois) por<br />

cento dos indiciados que poderiam ser julgados, “declaram-se culpados (plead guilties), e<br />

evitam o julgamento (trial). 240<br />

b) a evolução estadunidense<br />

A origem do trial by jury norte-americano é a mesma do trial by jury inglês. Contudo,<br />

as respectivas evoluções separaram-nos profun<strong>da</strong>mente. O trial by jury norte-americano é<br />

considerado hoje um privilégio, que pode ser recusado pelo acusado. Assim,<br />

diferentemente do que acontece com o imputado na Inglaterra, que só evita o júri – nos<br />

235<br />

INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.<br />

236<br />

INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.<br />

237<br />

INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.<br />

238<br />

INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.<br />

239<br />

INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.<br />

240<br />

INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.<br />

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casos de competência <strong>da</strong> Crown Court, evidentemente – se declarar-se culpado, nos<br />

Estados Unidos também pode fazê-lo renunciando ao privilégio de ser julgado por seus<br />

pares.<br />

A causa principal dessa separação tem ligação com a disciplina legal <strong>da</strong>s respectivas<br />

instituições. O trial by jury inglês é considerado um direito fun<strong>da</strong>mental 241 , pois é tratado<br />

no item 39 <strong>da</strong> Magna Charta Libertarum e, principalmente, no art. IV <strong>da</strong> Petition of Rights.<br />

Contudo, é juridicamente mais maleável que o equivalente norte-americano <strong>da</strong><strong>da</strong> a<br />

ausência de rigidez <strong>da</strong> Constituição inglesa. Pode ser restringido ou ampliado, de acordo<br />

com a vontade manifesta<strong>da</strong> em leis ordinárias pelo Parlamento inglês.<br />

Nos Estados Unidos, ao revés, a instituição do júri se encontra positiva<strong>da</strong> na<br />

Constituição, que é rígi<strong>da</strong>. Daí porque sua evolução haveria de ser, quase<br />

necessariamente, diferente <strong>da</strong> do trial by jury inglês.<br />

Está claro que o júri norte-americano partiu do modelo inglês, “abandonando-o depois.<br />

Na Constituição norte-americana, segundo a lição de EDWARD S. CORWIN, baseado, nesse<br />

aspecto, na jurisprudência <strong>da</strong> Suprema Corte, o júri não é um direito fun<strong>da</strong>mental, mas<br />

apenas, tecnicamente, um privilégio <strong>da</strong>s pessoas acusa<strong>da</strong>s, ‘que dele podem desistir, se<br />

quiserem’. Essa transformação do perfil constitucional do júri deu-se, ain<strong>da</strong> segundo o<br />

grande constitucionalista estadunidense, <strong>da</strong><strong>da</strong> à paulatina reelaboração, por parte <strong>da</strong><br />

Suprema Corte dos Estados Unidos, <strong>da</strong> noção do due process of law, que passou a ser<br />

forma<strong>da</strong>, entre outros, pelos direitos do acusado de (a) conhecer o teor <strong>da</strong> acusação e do<br />

nome de seu defensor (b) de não se auto-incriminar (c) de não ser forçado a confessar (d)<br />

de não ser submetido a buscas e apreensões sem motivação justa (e) de não ser<br />

condenado com base em falso testemunho (f) de estar presente ao julgamento final (g) de<br />

ser julgado publicamente e (h) por tribunal imparcial. Nessa perspectiva, o julgamento<br />

popular deixou de ser, na visão <strong>da</strong> Suprema Corte dos Estados Unidos, durante o<br />

denominado ‘Governo dos Juízes’ (1895-1937) um direito fun<strong>da</strong>mental. (...) Enten<strong>da</strong>-se<br />

que a Suprema Corte norte-americana assim agiu porque, lá, existe uma norma<br />

constitucional que determina que todos os crimes, salvo nos casos de impeachment,<br />

serão julgados pelo júri. Como o processo de alteração constitucional norte-americano é<br />

por demais árduo e não há condições econômicas e políticas de submeter ao júri todos os<br />

casos criminais, a opção <strong>da</strong> Suprema Corte norte-americana foi tratá-lo como um<br />

privilégio dos acusados, que podem dele abrir mão, o que, de certa maneira, foi<br />

241 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários…, p. 602.<br />

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estabelecido em troca de um aperfeiçoamento <strong>da</strong> cláusula do due process of law. Essa<br />

opção preservou a justiça penal norte-americana que, caso contrário, seria virtualmente<br />

inadministrável”. 242<br />

c) a audiência acusatória<br />

1. publici<strong>da</strong>de<br />

A característica externa mais saliente <strong>da</strong> audiência processual penal acusatória, até<br />

em oposição à correspondente inquisitória, é a sua publici<strong>da</strong>de.<br />

Com efeito, é inerente ao sistema acusatório executarem-se os atos orais do processo<br />

num momento cercado, usualmente, de ampla publici<strong>da</strong>de.<br />

A razão de ser dessa publici<strong>da</strong>de é clara e tem origem no próprio sistema acusatório<br />

inglês. Como os casos eram de conhecimento de todo o povo, que o levava aos<br />

delegados do rei, não havia razão porque cercar o julgamento propriamente dito de<br />

qualquer espécie de nuvem de mistério.<br />

O sistema acusatório, portanto, conservou o princípio como essencial.<br />

Induvidosamente, tem caráter político relevante. Duas são as suas acepções: “as<br />

audiências dos tribunais são públicas, devendo por tal entender-se não apenas (...) que<br />

qualquer ci<strong>da</strong>dão tem direito a assistir ao (e a ouvir o) desenrolar <strong>da</strong> audiência de<br />

julgamento, mas também que são admissíveis os relatos públicos <strong>da</strong>quela audiência”. 243<br />

2. contraditório<br />

Outra característica bastante evidente <strong>da</strong> audiência processual penal acusatória é a<br />

absoluta contraditorie<strong>da</strong>de de seus atos.<br />

Enquanto a publici<strong>da</strong>de é a característica externa mais saliente <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal acusatória, o contraditório é a sua característica dinâmica mais<br />

relevante.<br />

Perceba-se que, ain<strong>da</strong> hoje, o processo penal inglês tem um caráter privado, de<br />

disputa entre partes; é por isso também denominado adversary system.<br />

Assim concebido, como uma disputa entre duas partes sob a vigilância e o controle do<br />

242<br />

RAMOS, João Gualberto Garcez. “O Júri como instrumento de efetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reforma penal”, em<br />

JBC, n. 33 (1994), p. 47-48 e em RT, n. 699 (jan/1994), p. 283-284.<br />

243<br />

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 221.<br />

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juiz, 244 o contraditório do sistema acusatório puro tem um outro aspecto relevante: o <strong>da</strong><br />

garantia de absoluta igual<strong>da</strong>de, ou pari<strong>da</strong>de em armas, entre ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s partes.<br />

Essa é uma <strong>da</strong>s razões que justificam a inexistência de um Ministério Público na<br />

Inglaterra, pois “o estatuto reconhecido ao Ministério Público parece-lhes, por outro lado,<br />

que destrói a igual<strong>da</strong>de que é necessário assegurar em matéria penal entre a acusação e<br />

o acusado”. 245<br />

O sistema norte-americano conta com um Ministério Público, conforme é sabido.<br />

Entretanto, o tema do contraditório pleno, ou <strong>da</strong> absoluta pari<strong>da</strong>de em armas, em alguns<br />

dos estados norte-americanos, nos Estados Unidos, tem uma abor<strong>da</strong>gem diferente.<br />

No processo penal desses estados, cujo exemplo mais importante é a Califórnia, o<br />

contraditório é garantido pelo juiz, entre Ministério Público e acusado, de uma maneira<br />

mais abrangente sob o aspecto dinâmico. A pari<strong>da</strong>de de armas há de ser garanti<strong>da</strong><br />

mesmo na fase pré-processual, ocasião em que as partes têm o dever jurídico de mostrar<br />

umas às outras as provas que possuem. É o que se denomina pre-trial discovery.<br />

Um acórdão <strong>da</strong> Suprema Corte <strong>da</strong> Califórnia explica os fun<strong>da</strong>mentos dessa solução:<br />

“a acusação deve revelar as suas provas à defesa, a fim de assegurar ao imputado um<br />

contraditório real. O segredo sobre as provas que venham a ser coligi<strong>da</strong>s rende um<br />

contraditório aleatório, e a socie<strong>da</strong>de é interessa<strong>da</strong> demais na justa definição do processo<br />

penal para permitir que a defesa seja apanha<strong>da</strong> de surpresa”. 246<br />

Esse entendimento jurisprudencial, conforme dito, não está consagrado em todos os<br />

estados norte-americanos. LÊDA BOECHAT RODRIGUES, entretanto, descreve outra decisão<br />

<strong>da</strong> Suprema Corte norte-americana, 247 ocorri<strong>da</strong> em três de junho de 1957, que estendeu<br />

o princípio aos processos criminais federais: “afirmou a Corte que quando o Governo<br />

244 Cf. observação em RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 27-30, no sentido de que, nos registros<br />

dos processos penais condenatórios, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, ca<strong>da</strong> caso é registrado<br />

com a expressão latina versus abrevia<strong>da</strong> (“v.”, ou “vs.”) entre a denominação de ca<strong>da</strong> parte; exemplo: Rex<br />

v. Smith etc., lembrando um duelo entre as partes envolvi<strong>da</strong>s, ain<strong>da</strong> que alguma delas seja o próprio rei ou<br />

rainha ou, no caso dos Estados Unidos, um dos estados ou a própria administração federal.<br />

245 DAVID, René. Os grandes…, p. 395.<br />

246<br />

Cash v. Superior Court, 53 Cal. 2d 72 (1959) apud SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, nota<br />

33, p. 86. A tradução foi feita livremente <strong>da</strong> tradução do acórdão californiano para o italiano, provavelmente<br />

por SCAPARONE. Trecho original: “l’accusa deve rivelare le sue prova alla difesa per assicurare all’imputato<br />

un dibattimento leale. Il segreto sulle prove che verrano adotte rende il dibattimento aleatório, e la società è<br />

troppo interessata alla giusta definizione del processo penale per poter tollerare che la difesa venga colta di<br />

sorpresa”.<br />

247<br />

Jencks v. United States, 353 U.S. 657 (1957) apud RODRIGUES, Lê<strong>da</strong> Boechat. A Corte<br />

Suprema…, p. 305-306. A autora anota que o re<strong>da</strong>tor <strong>da</strong> decisão foi o justice Willian Brennan Jr.;<br />

concor<strong>da</strong>ram com suas considerações os justices Harold H. Burton e John Marshall Harlan; opinou em<br />

sentido contrário o justice Tom Clark.<br />

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processa alguém criminalmente tem o dever de assegurar-lhe justiça e não pode negar à<br />

defesa vista dos depoimentos em que se baseou a acusação. Não basta alegar razões de<br />

segurança nacional contrárias à comunicação desses elementos à defesa, ou o caráter<br />

confidencial dos relatórios (no caso, tratava-se de informes orais e escritos de agentes<br />

pagos pelo F.B.I. para obterem <strong>da</strong>dos relativos ao Partido Comunista), ou o interesse<br />

público, ou, ain<strong>da</strong>, outros motivos, para eximir o Governo dessa obrigação. Este terá de<br />

decidir, por conseguinte, “se o prejuízo público decorrente do fato de deixar o crime<br />

impunido é maior que o advindo <strong>da</strong> possível divulgação de segredos de Estado e de<br />

outras informações confidenciais em sua posse”. Tal responsabili<strong>da</strong>de pertence ao<br />

Governo e não pode ser desloca<strong>da</strong> para os tribunais; se este resolve descumprir ordem<br />

judicial e se recusa a exibir documentação essencial à defesa do acusado, a ação criminal<br />

deve ser julga<strong>da</strong> improcedente”. 248<br />

Nesse particular, o que tem, efetivamente importância, é uma regra, ou princípio,<br />

firmado por tribunais ingleses acerca do contraditório. Estabelecido esse princípio também<br />

pelos tribunais norte-americanos, as diversas soluções dependerão do ritmo <strong>da</strong> evolução,<br />

ou involução, do entendimento jurisprudencial a respeito.<br />

Como to<strong>da</strong>s as regras <strong>da</strong> common law, foi ela o resultado de uma evolução. Nesse<br />

caso, relaciona-se com o entendimento acerca do caráter de disputa do processo penal<br />

acusatório, base do seu conceito de contraditório.<br />

Segundo METELLO SCAPARONE, alguns autores anglo-americanos, cujos nomes não<br />

declina, explicam a questão em conexão com certo entendimento do processo penal<br />

como uma ver<strong>da</strong>deira disputa esportiva. Tal entendimento, explícito ou não, foi agrupado<br />

dentro de uma teoria curiosamente denomina<strong>da</strong> “sporting theory of the common law”: “Em<br />

um processo penal no qual (...) ‘a vitória deveria vir para o contendor que usasse de<br />

astúcia, força e habili<strong>da</strong>de, era lógico que qualquer <strong>da</strong>s partes pudesse ter as suas provas<br />

em segredo até o último instante, para assim poderem usá-las nos debates de forma a<br />

obter um maior rendimento”. 249<br />

Contudo, a evolução do processo penal inglês fez com que se abandonasse essa<br />

visão, extremamente ári<strong>da</strong>, e se passasse a “ver no processo penal não tanto um “jogo<br />

248<br />

RODRIGUES, Lê<strong>da</strong> Boechat. A Corte Suprema…, p. 305-306.<br />

249<br />

SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 81. Trecho original: “In un processo nel quale (...) “la<br />

vittoria sarebbe dovutta arridere al contendente che fosse prevalso in astuzia, forza e abilità”, era logico che<br />

ciascuna delle parti potesse tenere le sue prove segrete fino all’ultimo, così <strong>da</strong> poterle usare al dibattimento<br />

in modo di ottenerne il maggiore rendimento”.<br />

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Currículo<br />

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esportivo” entre as partes, mas um instrumento para definir a ver<strong>da</strong>de”. 250<br />

Assim, os tribunais ingleses definiram uma regra diversa acerca do contraditório, que<br />

deve ser considera<strong>da</strong> como outro dos seus mais relevantes aspectos, no presente: “o<br />

advogado que aceita sustentar as razões <strong>da</strong> acusação num processo, não deve<br />

considerar-se o tutor dos interesses de uma parte, mas deve fazer todo esforço para que<br />

a justiça, seja como for, triunfe”. 251<br />

3. orali<strong>da</strong>de<br />

Acerca <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, o mais provável é que ela tenha sido a tônica do processo<br />

acusatório desde o seu princípio. Na ver<strong>da</strong>de, trata-se de um sistema que se imporia de<br />

maneira natural, <strong>da</strong>do que o processo acusatório nasceu <strong>da</strong>s práticas de justiça dos<br />

vilarejos ingleses, pratica<strong>da</strong>s pelos próprios vilões. Da mesma maneira com as formas<br />

acusatórias de processo existentes no período republicano de Roma, na Grécia ou<br />

mesmo entre os bárbaros, já mais próximos dos ingleses.<br />

Com efeito, tratava-se <strong>da</strong> mais razoável forma de comunicação numa audiência com<br />

caráter popular como a acusatória.<br />

A orali<strong>da</strong>de do sistema acusatório puro, é possível dizê-lo, fez com que adquirisse<br />

natural destaque a fase crítica <strong>da</strong> audiência de julgamento, isto é, os debates.<br />

Em primeiro lugar, impôs que esses debates se realizassem oralmente, como uma<br />

discussão entre as partes técnicas – órgão do Ministério Público, assistente do Ministério<br />

Público, defensor técnico e advogado do querelante – sob os olhos do conselho de<br />

sentença. Por outro, educou-as na condução desses debates, conforme registra JOSÉ<br />

ANTONIO PIMENTA BUENO: “Os advogados ingleses aplicam todo o cui<strong>da</strong>do no exame <strong>da</strong>s<br />

provas e na clareza dos debates, evitando divagações, e o vício <strong>da</strong>s declamações: sua<br />

eloqüência forense é por isso mesmo vigorosa e original”. 252<br />

4. imediação<br />

Quanto à imediação na audiência processual penal no sistema acusatório, é lícito<br />

afirmar que ela somente passou a existir, com to<strong>da</strong>s as suas características, a partir do<br />

250<br />

SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 81. Trecho original: “vedere nel processo penale non<br />

tanto un “gioco sportivo” fra le parti quanto piuttosto uno strumento per accertare la verità”.<br />

251<br />

SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 81. Trecho original: “l’avvocato che accetta di<br />

sostenere le ragioni dell’accusa nel dibattimento non deve considerarsi il tuttore degli interessi di una parte,<br />

ma deve fare ogni sforzo perché la giustizia comunque trionfi”.<br />

252<br />

BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 430.<br />

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Currículo<br />

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momento em que o petty jury se transformou de júri de prova que era, em órgão judiciário<br />

encarregado de ouvir a produção oral de provas. Isso ocorreu apenas muitos anos depois<br />

<strong>da</strong> “invenção” do júri.<br />

Até então é possível afirmar que na audiência processual penal havia imediação, na<br />

medi<strong>da</strong> em que a decisão era precedi<strong>da</strong> de alguma espécie de diálogo oral e, portanto,<br />

direto, entre as partes e o órgão julgador. Mais do que isso, como no início do processo<br />

acusatório havia a produção de provas irracionais, não há porque se acreditar na<br />

ausência de certa imediati<strong>da</strong>de. Contudo, nesse caso, como o que importava nas provas<br />

irracionais era efetivamente o seu resultado, mais do que sua produção, qualquer<br />

imediati<strong>da</strong>de era apenas um elemento acidental.<br />

Entretanto, se o entendimento for no sentido veramente científico, isto é, de que a<br />

imediação é, sobretudo, o contato direto entre o órgão julgador e as provas, no sentido de<br />

que ele presencia-lhes a produção, a fim de poder analisar-lhes o resultado, a conclusão<br />

só pode ser no sentido de que, quanto a esse atributo, a audiência processual penal<br />

acusatória somente veio a adquiri-lo a partir do momento em que se começou a, nela,<br />

produzir-se prova oral.<br />

5. concentração<br />

O processo acusatório introduziu, por assim dizer, o princípio <strong>da</strong> concentração.<br />

Fê-lo, contudo, de maneira natural, sem preocupações de outra ordem, como hoje se<br />

tem em relação a esse princípio. Dessa maneira, é razoável pensar-se no princípio <strong>da</strong><br />

concentração como algo presente no processo e na audiência processual penal<br />

acusatórios. Contudo, é também sustentável afirmar-se que o respeito a ele dependia <strong>da</strong>s<br />

conveniências políticas e circunstanciais de ca<strong>da</strong> caso.<br />

É dizer: na<strong>da</strong> obriga a pensar que o princípio <strong>da</strong> concentração é algo inerente ao<br />

processo penal acusatório desde o seu nascimento. A concentração ou não entre as<br />

audiências de instrução e julgamento ou – situação modelar – a realização <strong>da</strong> instrução e<br />

julgamento num só momento, dependiam, a princípio – como dependem até hoje, <strong>da</strong><br />

conveniência de ca<strong>da</strong> caso, <strong>da</strong> urgência em decidir ou mesmo de outros motivos<br />

subalternos, que não cabe enumerar.<br />

O que é bastante lícito afirmar é que a concentração se justifica, tem uma razão de<br />

ser, no processo penal acusatório. A audiência processual penal acusatória que obedece<br />

o princípio <strong>da</strong> concentração é um formidável instrumento na busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de material.<br />

Não é possível dizer que seja um instrumento perfeito, mas é formidável.<br />

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Currículo<br />

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Capítulo 2<br />

A evolução histórica no Brasil<br />

Seção A<br />

Nas Ordenações do Reino de Portugal<br />

§ 1º As Ordenações Afonsinas<br />

Nasci<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de compilação dos antigos “forais” e leis –<br />

especialmente a Lei <strong>da</strong>s Sete Parti<strong>da</strong>s – do reino de Portugal, 253 as Ordenações<br />

Afonsinas não tiveram, praticamente, influência direta sobre o Brasil, na medi<strong>da</strong> em que<br />

vigoraram entre os anos de 1.446 e 1.521.<br />

ANÍBAL BRUNO chega ao ponto de afirmar que as Ordenações Afonsinas só têm<br />

relevância para o Brasil pelo que contribuíram para a formação <strong>da</strong>s Manuelinas. 254<br />

Contudo, talvez seja de interesse fixar-lhes algumas <strong>da</strong>s linhas básicas.<br />

Talvez como imitação <strong>da</strong>s “Decretais” do Papa Gregório IX – afirma JOÃO MENDES DE<br />

ALMEIDA JÚNIOR – as Ordenações Afonsinas foram dividi<strong>da</strong>s em cinco livros. 255<br />

O livro primeiro disciplinava o regime jurídico dos órgãos de administração <strong>da</strong> justiça,<br />

o livro segundo, as leis “relativas à jurisdição, pessoas e bens <strong>da</strong> Igreja, a jurisdição e<br />

privilégios dos donatários, os direitos reais e sua arreca<strong>da</strong>ção”, 256 o livro terceiro, as<br />

normas do processo civil, o livro quarto, as normas de Direito Civil e o livro quinto, as<br />

normas penais e processuais penais. 257<br />

JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR descreve com precisão as iniqui<strong>da</strong>des do livro quinto<br />

dessas Ordenações Afonsinas: “Os defeitos dos Códigos Criminais <strong>da</strong> meia i<strong>da</strong>de se<br />

acham neste de mistura com as disposições de Direito Romano e Canônico. O legislador<br />

não teve em vista tanto os fins <strong>da</strong>s penas, e a sua proporção com o delito, como conter os<br />

homens por meio do terror e do sangue. O crime de feitiçaria e encantos, o trato ilícito do<br />

Cristão com Judia ou Moura, e o furto do valor de marco de prata, são igualmente punidos<br />

com pena de morte. O crime de lesa-majestade foi adotado com todo o odioso <strong>da</strong>s leis<br />

imperiais, assim enquanto à quali<strong>da</strong>de do crime, como enquanto ao modo de o processar.<br />

253<br />

THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 67.<br />

254<br />

BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 158.<br />

255<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 103.<br />

256<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 104.<br />

257<br />

Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 103.<br />

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Na imposição <strong>da</strong>s penas reconhece-se a desigual<strong>da</strong>de do sistema feu<strong>da</strong>l: aos nobres<br />

impõem-se sempre penas menores do que aos plebeus. (...) Para coibir o arbítrio dos<br />

juízes, foram declarados subsidiários o Direito Romano e o Direito Canônico. Este, o<br />

Canônico, devia ser aplicado nos casos que envolvessem pecado; e aquele, nos outros<br />

(...) Na falta destes, e como em terceiro grau, foram man<strong>da</strong><strong>da</strong>s seguir as glosas e<br />

opiniões de Accursio; e depois deste as de Bartolo, no conflito destes, ou absoluta falta de<br />

textos, devia o Juiz consultar o governo”. 258<br />

Especificamente com relação ao processo penal, o entendimento predominante, ao<br />

tempo <strong>da</strong>s Ordenações Afonsinas, é de que se tratava de matéria relativa ao pecado,<br />

razão pela qual, segundo JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, nessa matéria se recorria<br />

amiúde às regras do processo canônico. 259<br />

JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, aliás, descreve as fases do processo criminal<br />

ordinário previsto nas Ordenações Afonsinas: “1º Três modos de proceder: a acusação, a<br />

denúncia, a inquirição. A acusação inscrevia-se pelo auto de querela; a denúncia não se<br />

inscrevia, pois era o meio de delação secreta e <strong>da</strong> súplica dos fracos; à inquirição, em<br />

regra, procedia-se ex officio. 2º Lavrado o auto de querela, com as formali<strong>da</strong>des do<br />

juramento e nomeação de duas ou três testemunhas, ou feita a denúncia, ou encerra<strong>da</strong> a<br />

inquirição, tinha lugar a citação; 3º Seguia-se o interrogatório do réu, em que este podia<br />

negar ou confessar o crime e exigir que as testemunhas <strong>da</strong> devassa se tornassem<br />

judiciais, isto é, que fossem repergunta<strong>da</strong>s perante o Juiz em sua presença: era isto a<br />

recollectio ou recollatio e a confrontatio. 4º Termina<strong>da</strong>s as inquirições, <strong>da</strong>va-se ao réu<br />

termo para defesa, ou como diziam os canonistas – ad allegandum quidquid vult ne<br />

condemnetur, et ad omnes suas defensiones facien<strong>da</strong>s”. 260<br />

As características do processo penal, seja ele iniciado por acusação – pelo chamado<br />

auto de querela – ou por ato do juiz ordinário – nos casos de denúncia ou inquirição –<br />

eram fortemente marca<strong>da</strong>s pelo processo inquisitório, de cujas linhas gerais guar<strong>da</strong><br />

importante influência. 261<br />

Assim, a audiência processual penal prevista nas Ordenações Afonsinas se insere na<br />

258<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 104-105.<br />

259<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 105.<br />

260<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 106.<br />

261<br />

Cf., acerca do exagerado formalismo e do predomínio <strong>da</strong> escritura no processo penal e mesmo na<br />

audiência processual penal previstos nas Ordenações Afonsinas, ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O<br />

processo…, p. 107-110.<br />

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Currículo<br />

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classificação de um processo de matiz inquisitória: podia dispor de partes, no sentido<br />

formal, mas o predomínio no jogo de forças do processo era claramente do juiz.<br />

“Unânimes são os autores em exaltar as quali<strong>da</strong>des do Código Afonsino – naturalmente<br />

levando em conta o pioneirismo <strong>da</strong> obra e a época em que surgiu. (...). Claro, ain<strong>da</strong><br />

contempla grande número de infrações religiosas, cominando-lhes castigos atrozes, (...)<br />

presta excessivo tributo às formali<strong>da</strong>des, (...) não cui<strong>da</strong> de proporcionar as penas aos<br />

delitos, concebendo-as, exclusivamente, como meio de intimi<strong>da</strong>r os homens através do<br />

terror e do sangue. Impossível, porém, fosse de outro modo: distantes estavam os albores<br />

do Direito Penal científico”. 262<br />

§ 2º As Ordenações Manuelinas<br />

Segundo AUGUSTO F. G. THOMPSON, as Ordenações Manuelinas nasceram a partir <strong>da</strong><br />

intenção do rei de Portugal, Dom Manuel, cognominado “O Venturoso”, de se fortalecer<br />

diante <strong>da</strong>s justiças senhorial e eclesiástica. 263 Segundo JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR,<br />

quando D. Manuel começou a reinar, já encontrou a justiça real predominando fortemente<br />

sobre to<strong>da</strong>s as outras. Contudo, pretendeu fortalecê-la ain<strong>da</strong> mais, multiplicando “o<br />

número de juízes de fora, de tal modo que, em Portugal, já não era comum a existência<br />

de juízes ordinários, ou antes, a jurisdição dos juízes ordinários já estava, quase por to<strong>da</strong><br />

a parte do reino, a cargo de juízes de fóra”. 264<br />

Feita às pressas, por comissões de juristas, que se sucederam, às Ordenações<br />

Manuelinas, último ato de D. Manuel durante sua vi<strong>da</strong>, não se podem dirigir os elogios<br />

feitos às anteriores, 265 embora JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR deixe consignado que<br />

suas “alterações, principalmente no que diz respeito ao processo criminal, são muito<br />

importantes”. 266<br />

A jurisdição dos mouros e judeus, existente nas Ordenações Afonsinas, é excluí<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s Manuelinas, 267 que também introduzem a figura do Promotor de Justiça, 268 órgão<br />

262<br />

THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 72.<br />

263<br />

THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 73.<br />

264<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 116.<br />

265<br />

Cf. THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 74.<br />

266<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 115.<br />

267<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 115.<br />

268<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 115.<br />

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encarregado de requerer as causas de interesse <strong>da</strong> justiça pública. 269 O processo penal,<br />

ca<strong>da</strong> vez mais, passou a adquirir os contornos do processo penal romano, <strong>da</strong> fase de<br />

decadência (cognitio extra ordinem) e do processo canônico. 270<br />

Pouca importância tiveram, no Brasil, as Ordenações Manuelinas, (...) embora, formalmente,<br />

estivessem vigorando na época <strong>da</strong>s capitanias hereditárias. Abun<strong>da</strong>vam as determinações reais<br />

especialmente decreta<strong>da</strong>s para a nova colônia, as quais, alia<strong>da</strong>s às cartas de doação, com força<br />

semelhante à dos forais, abacinavam as regras do Código unitário. (...) O arbítrio dos donatários, na<br />

prática, é que estatuía o Direito empregado e, como ca<strong>da</strong> um tinha um critério próprio, era<br />

extremamente caótico o regime jurídico <strong>da</strong> América. 271<br />

Impressionou JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, 272 nas Ordenações Manuelinas, a<br />

obrigatorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> apelação <strong>da</strong>s sentenças definitivas (se as partes não o fizessem,<br />

fazia-o o juiz) e, principalmente, a existência de apelação voluntária <strong>da</strong>s interlocutórias<br />

irreparáveis, como, no exemplo de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, “se o juiz julgasse<br />

meter o preso a tormento”. 273<br />

Quanto ao mais, interessam efetivamente, para a evolução <strong>da</strong> audiência processual<br />

penal no Brasil, as Ordenações Filipinas.<br />

§ 3º As Ordenações Filipinas<br />

JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI descreve os antecedentes e circunstâncias históricos que<br />

levaram à promulgação <strong>da</strong>s Ordenações Filipinas:<br />

A morte de D. João III, em 1.557, fez com que o Cardeal D. Henrique assumisse, na quali<strong>da</strong>de de<br />

Regente, o poder, pois D. Sebastião, o herdeiro do trono, contava com apenas três anos de i<strong>da</strong>de. D.<br />

Sebastião, ao atingir a i<strong>da</strong>de de catorze anos, (...) assumiu o trono com plenos poderes. Muito jovem e<br />

despreparado para as funções de Chefe de Estado, ao que se associa uma personali<strong>da</strong>de mórbi<strong>da</strong> e<br />

sonhadora, o jovem rei atirou-se à aventura de tomar o Marrocos aos mouros, sem que dispusesse de<br />

recursos para tal empreita<strong>da</strong> bélica. Na Batalha de Alcácer-Quibir, o jovem soberano encontrou a<br />

morte. Assumiu o trono (...) o Cardeal D. Henrique, que possuía discutíveis quali<strong>da</strong>des de governante<br />

(...). Sua morte possibilitou a Felipe II, de Espanha, empolgar, por herança, o trono lusitano. Em 1.581,<br />

era sagrado Rei de Portugal, com o título de Felipe I.<br />

Felipe I (II, de Espanha) mandou refundir as Ordenações. (...).<br />

(...)<br />

As Ordenações Filipinas só foram promulga<strong>da</strong>s no reinado de D. Felipe II (III, de Espanha), entrando<br />

269<br />

Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 116.<br />

270<br />

Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 117.<br />

271<br />

THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 76.<br />

272<br />

PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 60.<br />

273<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 117.<br />

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em vigor por lei de 11 de janeiro de 1.603. 274<br />

O processo penal, nas Ordenações Filipinas, é tratado a partir do título 117 (cento e<br />

dezessete). A seu respeito, afirma JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR: “na consoli<strong>da</strong>ção<br />

houve precipitações tais, que deram em resultado muitas obscuri<strong>da</strong>des”. 275<br />

No caso, as obscuri<strong>da</strong>des dizem com regras <strong>da</strong>s Ordenações Filipinas referentes ao<br />

início do processo penal, sobretudo no que respeita ao ato de <strong>da</strong>r ou tirar querelas, 276<br />

conforme dito, extremamente aferrado a formali<strong>da</strong>des.<br />

No que toca ao caráter do processo penal, dois aspectos revelam, com clareza solar,<br />

o caráter inquisitorial <strong>da</strong>s Ordenações Filipinas.<br />

O primeiro deles está nos cinco títulos que abrem o Livro V: “Dos Hereges e<br />

Apostatas” (Título I) “Dos que arrenegão, ou blasfemão de Deos, ou dos Santos” (Título II)<br />

“Dos Feiticeiros” (Título III) “Dos que benzem cães, ou bichos sem autori<strong>da</strong>de d’El Rey, ou<br />

dos Prelados” (Título IV) e “Dos que fazem vigilias em Igrejas, ou vódos fóra dellas”<br />

(Título V).<br />

O segundo aspecto, que demonstra claramente a predisposição dessa legislação ao<br />

policiamento <strong>da</strong> população e à repressão <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de em geral, relaciona-se às<br />

chama<strong>da</strong>s devassas.<br />

Havia devassas gerais e devassas especiais: as gerais, sobre delitos incertos, eram tira<strong>da</strong>s<br />

anualmente, quando os juízes principiavam a servir os seus cargos, e também eram gerais as<br />

chama<strong>da</strong>s janeirinhas, que, em relação a alguns crimes, se tiravam em Janeiro de ca<strong>da</strong> ano; as<br />

especiais supõem a existência do delito de que é só incerto o delinqüente. (...) Em regra, as<br />

testemunhas pergunta<strong>da</strong>s na devassa não podiam exceder de trinta. 277<br />

Nas devassas, o juiz competente ouvia testemunhas acerca do comportamento <strong>da</strong>s<br />

pessoas integrantes de determina<strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de, a fim de saber <strong>da</strong> eventual prática de<br />

crimes, tendo em vista o caráter religioso <strong>da</strong>s ordenações Filipinas, calcula-se o quanto as<br />

devassas gerais serviram como instrumento de opressão e intolerância religiosa.<br />

As devassas, certamente, <strong>da</strong>do que fortaleceram os poderes dos juízes de fora e de<br />

seus delegados, prepararam o terreno, ain<strong>da</strong> que remotamente, para o inquérito policial,<br />

que veio a ser adotado no Código de Processo Penal de 1941.<br />

Entretanto, o trecho de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR referente às devassas,<br />

274<br />

PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 62.<br />

275<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 121.<br />

276<br />

Cf. detalhes a respeito e comparação <strong>da</strong>s regras <strong>da</strong>s Ordenações Manuelinas e Filipina em<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 121-126.<br />

277<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 126 [sem grifo no original].<br />

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Currículo<br />

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mostra-se atual e poderia ser transcrito sem modificações e integrar uma crítica ao<br />

inquérito policial, que ao tempo <strong>da</strong>s Ordenações nem “sonhava” em ser concebido: “As<br />

devassas, sendo inquirições feitas sem citação <strong>da</strong> parte, não eram considera<strong>da</strong>s<br />

inquirições judiciais, para o efeito do julgamento, sem que as testemunhas fossem<br />

repergunta<strong>da</strong>s e as testemunhas dos sumários <strong>da</strong>s querelas do mesmo modo. Mas, para<br />

efeito de prisão preventiva, assim como nos casos em que se não procedia<br />

ordinariamente, não havia necessi<strong>da</strong>de dessa reiteração”. 278<br />

As devassas eram, sem necessi<strong>da</strong>de alguma de retoques, ver<strong>da</strong>deiros panópticos, no<br />

modelo descrito por MICHEL FOUCAULT, servindo de instrumentos para opressão social:<br />

O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia<br />

uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vaza<strong>da</strong> de largas janelas que se abrem sobre a<br />

face interna do anel; a construção periférica é dividi<strong>da</strong> em celas, ca<strong>da</strong> uma atravessando to<strong>da</strong> a<br />

espessura <strong>da</strong> construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas <strong>da</strong><br />

torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então<br />

colocar um vigia na torre central, e em ca<strong>da</strong> cela trancar um louco, um doente, um condenado, um<br />

operário ou um escolar.<br />

(...) Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem<br />

cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta <strong>da</strong> torre central de onde é espionado. Inverificável:<br />

o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-<br />

lo. 279<br />

Quanto à audiência processual penal e ao processo penal, o modelo então vigente era<br />

o inquisitório, com to<strong>da</strong>s as características já menciona<strong>da</strong>s.<br />

Dois eram os procedimentos: o ordinário 280 e o sumário. 281<br />

Em qualquer dos dois procedimentos – mesmo no sumário, mais célere por natureza<br />

– a formali<strong>da</strong>de e a soleni<strong>da</strong>de eram havi<strong>da</strong>s em alta conta, com tendência flagrante à<br />

278<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 127 [sem grifo no original].<br />

279<br />

FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 177-178.<br />

280<br />

Cf., o iter do procedimento ordinário <strong>da</strong>s Ordenações Filipinas em ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes<br />

de. O processo…, p. 129: “No processo ordinário era guar<strong>da</strong><strong>da</strong> a ordem solene do juízo com citação, libelo,<br />

exceções, como atos preparatórios, com contestação, contrarie<strong>da</strong>de, réplica, tréplica, provas, publicação,<br />

alegações <strong>da</strong> defesa e sentença, como atos médios; com embargos, apelação, agravo e execução, como<br />

atos últimos ou posteriores, segundo a classificação dos praxistas do tempo”.<br />

281<br />

Cf., o iter do procedimento sumário <strong>da</strong>s Ordenações Filipinas em ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes<br />

de. O processo…, p. 129: “O processo sumário tinha lugar nos crimes leves (...) nas injúrias verbais<br />

sentencia<strong>da</strong>s em câmara e nas cauções ou termos de não ofender e bem viver; e também tinha lugar nos<br />

casos mais graves, isto é, nos casos de pena de morte que se processavam nas Relações. Nestes últimos<br />

nem mesmo era necessária a citação <strong>da</strong> parte, nem que as testemunhas se tornassem judiciais, admitindose<br />

apenas a defesa em termo breve; nos primeiros não se guar<strong>da</strong>vam as soleni<strong>da</strong>des, mas se seguia a<br />

ordem natural do juízo, com citação e defesa e recursos, posto que em termo leve. (...) Os recursos<br />

ordinários eram, além dos embargos, a apelação e o agravo; o recurso extraordinário era a revista por<br />

graça ou concessão régia”.<br />

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Currículo<br />

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escritura. A tortura, a fim de obter a confissão do imputado, era de uso corrente. Há aqui<br />

um jogo de palavras: a lei <strong>da</strong> época determinava que a tortura só fosse ordena<strong>da</strong> nos<br />

casos mais graves e aplica<strong>da</strong> somente após conhecimento e julgamento de apelação do<br />

imputado; 282 como as Ordenações Filipinas puniam com severi<strong>da</strong>de infrações morais e<br />

religiosas, a tortura era um instrumento usado em flagrante desproporção aos crimes cuja<br />

comprovação pretendia facilitar.<br />

Conceitualmente, os termos tortura e tormento, conforme JOÃO MENDES DE ALMEIDA<br />

JÚNIOR, não querem dizer exatamente a mesma coisa: “Os tormentos eram perguntas<br />

judiciais feitas ao réu de crimes graves, a fim de compeli-lo a dizer a ver<strong>da</strong>de por meio de<br />

tratos do corpo. Ao próprio trato chama-se também tortura; e esta expressão é a mais<br />

vulgar”. 283<br />

Finalmente, é precisa e exemplar a crítica coloca<strong>da</strong> por JOÃO MENDES DE ALMEIDA<br />

JÚNIOR com relação ao uso que se fez, naquele período, <strong>da</strong> tortura:<br />

A esquissa ou inquérito e o processo secreto desenvolveram, pois, o uso <strong>da</strong> tortura, em conseqüência<br />

dos preconceitos que levaram a jurisprudência a formular, como regra essencial, a necessi<strong>da</strong>de de<br />

confissão do acusado. O juiz, habituado a fun<strong>da</strong>r to<strong>da</strong> a instrução nas contínuas perguntas ao réu,<br />

buscava todos os meios de extorquir essa confissão, ostentando uma habili<strong>da</strong>de sem escrúpulo, quer<br />

para a sugestão, quer para as cila<strong>da</strong>s, quer para o cansaço do interrogado; e, se ain<strong>da</strong> assim na<strong>da</strong><br />

conseguisse, recorria às ameaças e depois aos tormentos. 284<br />

Tais são, em linhas gerais, as características do processo penal e, particularmente, <strong>da</strong><br />

audiência processual penal previstos nas Ordenações Filipinas. Como vigoraram por mais<br />

de duzentos anos no Brasil, contribuíram no enformar a mente dos que obravam com a<br />

justiça penal. Esse costume de “fazer inquisição”, de certa maneira até hoje visível,<br />

mostrar-se-á muito mais claro quando se estu<strong>da</strong>r o processo penal do Império do Brasil e<br />

a tentativa, ocorri<strong>da</strong> nesse período, de adotar um modelo acusatório puro.<br />

282<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 131.<br />

283<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 130.<br />

284<br />

ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 131.<br />

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Currículo<br />

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Seção B<br />

No Código do Processo Criminal de Primeira Instância<br />

§ 1º A sistemática original<br />

O Código do Processo Criminal de Primeira Instância – Lei de 29 de novembro de<br />

1832 – que vigorou durante boa parte do período imperial brasileiro, insere-se na<br />

circunstância histórica <strong>da</strong> independência do Brasil. Apesar de uma certa “inclinação<br />

autoritária” de Dom Pedro I 285 – afinal, ele dissolveu a Assembléia Constituinte em 1823<br />

e, ao outorgá-la, em 1824, fez com que a Constituição previsse um amplo e incontrastável<br />

“Poder Moderador” – esse código reflete algumas <strong>da</strong>s concepções liberais desse<br />

monarca.<br />

Por conta dessas concepções, Dom Pedro I pretendeu – não há como negá-lo – <strong>da</strong>r<br />

ao país uma legislação penal liberal e avança<strong>da</strong>, inspira<strong>da</strong> no que de melhor havia no<br />

mundo de então. Tão inspira<strong>da</strong> foi essa tarefa, que seus executores acabaram por<br />

conceber soluções penais originais e <strong>da</strong>s mais interessantes, de que é saliente exemplo o<br />

“dia-multa”. 286<br />

No caso do processo penal, Dom Pedro I encarregou o Senador Alves Branco de<br />

preparar um anteprojeto de Código. Andou bem o dito parlamentar, ao praticamente na<strong>da</strong><br />

aproveitar <strong>da</strong>s Ordenações, 287 buscando inspiração no sistema acusatório inglês, bem<br />

como no sistema reformado francês, 288 para realizar um processo penal com ambas as<br />

características: “O nosso Código do Processo Criminal, consagrando o sistema misto,<br />

subordinou a formação <strong>da</strong> culpa mais ao processo inquisitório do que ao acusatório,<br />

deixando ao plenário <strong>da</strong> acusação, defesa, provas e julgamento, to<strong>da</strong> a amplitude do<br />

processo acusatório”. 289<br />

Conforme a gravi<strong>da</strong>de do delito, o processo penal condenatório era ordinário ou<br />

285<br />

ALENCAR, Francisco, RAMALHO, Lúcia Carpi e RIBEIRO, Marcus Venício Toledo. História…, p.<br />

100.<br />

286<br />

Cf. PRADO, Luiz Regis. Multa…, p. 44: “sem dúvi<strong>da</strong>, o Estatuto Penal de 1830 foi extremamente<br />

original em inúmeras matérias e, dentre elas, convém pôr em evidência, como exemplo claro, o esboço,<br />

pela vez primeira, do sistema de dias-multa para a pena pecuniária, que, a bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de histórica,<br />

deveria chamar-se também sistema brasileiro”.<br />

287<br />

Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 226.<br />

288 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 12.<br />

289 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 226.<br />

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sumário; conforme a quali<strong>da</strong>de de seu autor, comum ou especial. 290<br />

Quanto ao procedimento ordinário, também denominado “comum do júri”, 291 era<br />

dividido em duas fases – juízo de acusação e juízo <strong>da</strong> causa. Seu iter, na lição de JOSÉ<br />

ANTONIO PIMENTA BUENO, era o seguinte:<br />

1º (...) desde que há crime, ele trata de assegurar-se <strong>da</strong> existência do delito, e de reconhecer quem<br />

seja seu autor e cúmplices (...): é o processo de formação <strong>da</strong> culpa (...).<br />

2º Forma<strong>da</strong> a culpa, ele determina que o libelo (...) seja formulado; que todos os esclarecimentos ou<br />

meios de convicção e defesa sejam coligidos; e que se expeçam as providências necessárias para<br />

constituir o tribunal; são os preparativos dos debates e do exame.<br />

3º Finalmente, man<strong>da</strong> desenvolver perante o tribunal a acusação já formula<strong>da</strong>, contestá-la e debatê-la<br />

solenemente, analisar o valor <strong>da</strong>s provas e <strong>da</strong>s circunstâncias agravantes ou atenuantes dos fatos; (...);<br />

esse é propriamente o processo <strong>da</strong> acusação.<br />

4º Segue-se o ato do julgamento ou a sentença, os recursos dela, ou a execução. 292<br />

Está clara a influência do processo penal acusatório inglês, inclusive pela existência<br />

de um grand jury, previsto nos seus arts. 242 a 253. Esse grand jury, legalmente<br />

denominado de “1º Conselho de Jurados”, ou “Júri de Acusação”, foi extinto pelo art. 54<br />

<strong>da</strong> Lei n. 261, de três de dezembro de 1841.<br />

O dito processo de formação <strong>da</strong> culpa, então também denominado sumário de culpa –<br />

aspecto que lhe dá caráter misto, na visão de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR – era<br />

presidido por um juiz que investigava a prática do crime, coligindo elementos de prova<br />

que autorizassem a remessa do caso ao seu juiz natural, o júri de sentença.<br />

Segundo JOSÉ ANTONIO PIMENTA BUENO, duas sub-fases compunham essa fase de<br />

formação <strong>da</strong> culpa: a primeira delas englobava as medi<strong>da</strong>s de investigação, indiciamento<br />

e cautelares instrutórias, isto é, de conservação <strong>da</strong>s provas colhi<strong>da</strong>s; a segun<strong>da</strong>, judicial<br />

“por sua natureza”, prolongava-se até a pronúncia. 293<br />

No princípio <strong>da</strong> fase de formação <strong>da</strong> culpa, conforme dito, tratava o juiz de investigar,<br />

de colher provas do caso. A preocupação central, nessa fase, como se percebe do exame<br />

dos arts. 134 a 149 do referido Código, era estabelecer e resguar<strong>da</strong>r o corpo de delito,<br />

através de auto próprio. É o que determinava o seu art. 134: “Formar-se-á auto de corpo<br />

290<br />

Cf. BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 212.<br />

291<br />

Cf. definição do referido procedimento ordinário em BUENO, José Antonio Pimenta.<br />

Apontamentos…, p. 266: “O processo criminal ordinário é o complexo dos termos e fórmulas solenes que a<br />

lei em sua sabedoria tem criado e prescrito para a direção e marcha do juízo criminal em relação aos delitos<br />

graves. É o modo, a ordem legítima de descobrir e seguir tais crimes, de reconhecê-los, de comprová-los e<br />

de julgá-los mediante os meios amplos ou trâmites ordinários e protetores que o direito haja determinado”.<br />

292<br />

BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 267.<br />

293 BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 268.<br />

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de delito, quando este deixa vestígios que podem ser ocularmente examinados; não<br />

existindo porém vestígios, formar-se-á o dito auto por duas testemunhas que deponham<br />

<strong>da</strong> existência do fato, e suas circunstâncias”.<br />

Trata-se de ver<strong>da</strong>deira medi<strong>da</strong> cautelar instrutória, semelhante a que se verifica hoje,<br />

no auto de prisão em flagrante e, em menor grau, em todo o inquérito policial. A diferença<br />

fun<strong>da</strong>mental é que a formação do corpo de delito, nesse caso, era de competência de<br />

órgão judiciário. 294 Presidia essa ativi<strong>da</strong>de cautelar o princípio inquisitório, inclusive na<br />

oitiva <strong>da</strong>s testemunhas e do imputado.<br />

Quanto às testemunhas, no sistema do Código do Processo Criminal de Primeira<br />

Instância, segundo GALDINO SIQUEIRA, guar<strong>da</strong>m elas as mesmas características <strong>da</strong>s<br />

testemunhas no Código de Processo Penal de 1941 como, por exemplo, a de deporem<br />

apenas acerca dos fatos. 295<br />

Uma diferença importante, porém, afasta-as <strong>da</strong>s testemunhas do sistema atual: no<br />

Código do Processo Criminal de Primeira Instância não predominava, como no de 1941, o<br />

princípio <strong>da</strong> presidenciali<strong>da</strong>de, pois as testemunhas somente eram inquiri<strong>da</strong>s pelo juiz na<br />

fase de formação <strong>da</strong> culpa e nos processos ditos “policiais”, de procedimento sumário.<br />

Era o que dispunham os seus arts. 114-227.<br />

No procedimento ordinário o juiz está afastado <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> prova, tarefa deferi<strong>da</strong><br />

às partes. Era o que determinavam os arts. 262 – “As testemunhas do acusador serão<br />

introduzi<strong>da</strong>s na sala <strong>da</strong> sessão, e jurarão sobre os artigos, sendo primeiro inquiri<strong>da</strong>s pelo<br />

acusador, ou seu Advogado, ou Procurador, e depois pelo réu, seu Advogado, ou<br />

Procurador” – e 264 do Código do Processo Criminal de Primeira Instância – “As<br />

testemunhas do réu serão introduzi<strong>da</strong>s, e jurarão sobre os artigos, sendo inquiri<strong>da</strong>s<br />

primeiro pelo Advogado do réu, e depois pelo do acusador, ou autor”.<br />

Já o interrogatório do imputado, seja ele realizado durante a fase de formação <strong>da</strong><br />

culpa, seja realizado no plenário do júri, era sempre baseado no princípio <strong>da</strong><br />

presidenciali<strong>da</strong>de. Contudo, acerca <strong>da</strong> sua natureza jurídica, JOSÉ ANTONIO PIMENTA<br />

BUENO conclui diferentemente em relação a ca<strong>da</strong> um dos interrogatórios: quanto ao<br />

interrogatório <strong>da</strong> fase de formação <strong>da</strong> culpa, conclui ter as características de meio de<br />

defesa e de meio de prova (em suas palavras, “meio de reconhecer a ver<strong>da</strong>de”); 296<br />

294 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 12.<br />

295 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 207.<br />

296 BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 357.<br />

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quanto ao realizado no plenário do júri, chega a resultado diverso: “O interrogatório tem<br />

pois caráter de um meio de defesa: mediante ele pode o acusado expor antecedentes que<br />

justifiquem ou atenuem o crime, opor exceções contra as testemunhas, e indicar fatos ou<br />

provas que estabeleçam sua inocência. Então ele é o próprio advogado de si mesmo, é a<br />

natureza que pugna pela conservação de sua liber<strong>da</strong>de e vi<strong>da</strong>, que fala perante juízes<br />

que observam seus gestos e suas emoções”. 297<br />

Um último aspecto relevante do Código do Processo Criminal de Primeira Instância é<br />

o destaque que nele assumiam os debates orais, tal como se verifica hoje, no<br />

procedimento especial do júri. A rigor, é um efeito normal do processo penal de matiz<br />

acusatória.<br />

No procedimento ordinário do Código do Processo Criminal de Primeira Instância,<br />

contudo, a ordem dos debates orais é diversa <strong>da</strong> que é atualmente prevista para o<br />

procedimento especial do júri. Segundo o seu art. 261, o acusador deduz sua acusação<br />

desde logo, antes <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória <strong>da</strong> sessão de instrução e julgamento. A essa<br />

acusação, segundo o art. 262, segue-se a oitiva <strong>da</strong>s testemunhas de acusação, sempre<br />

inquiri<strong>da</strong>s pelas partes técnicas.<br />

Após a inquirição <strong>da</strong>s testemunhas de acusação, a defesa é produzi<strong>da</strong>, segundo<br />

prevê o art. 263. É depois dessa defesa que, de acordo com o art. 264, as partes técnicas<br />

inquirem as testemunhas arrola<strong>da</strong>s pelo acusado.<br />

Após a inquirição <strong>da</strong>s testemunhas de defesa, vem a fase conclusiva <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

crítica, de réplica e tréplica, previstas no art. 265. 298 Nessa fase conclusiva, ain<strong>da</strong><br />

segundo o art. 265, as partes técnicas “poderão requerer a repergunta de alguma, ou de<br />

algumas testemunhas já inquiri<strong>da</strong>s; ou a inquirição de mais duas de novo para pleno<br />

conhecimento de algum, ou alguns artigos, ou pontos contestados, ou para provar<br />

algumas testemunhas quali<strong>da</strong>des que as constituem indignas de fé”.<br />

Por fim, o art. 266 autorizava o deferimento de alguma outra diligência relevante,<br />

antes <strong>da</strong> fase propriamente decisória do referido procedimento ordinário.<br />

§ 2º As reformas de 1841 e 1871<br />

A previsão, nas Ordenações Filipinas, de um sistema de devassas titularizado por<br />

297<br />

BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 423.<br />

298<br />

No procedimento especial do júri do Código de Processo Penal vigente, conforme se sabe e ver-seá<br />

adiante, com maiores detalhes, as provas são produzi<strong>da</strong>s antes dos debates orais, aos quais se segue a<br />

fase conclusiva <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> sessão de instrução e julgamento desse procedimento especial.<br />

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órgãos judiciais com atribuições policiais – ver<strong>da</strong>deiro panóptico, de onde era possível<br />

exercer um controle férreo sobre a população – acostumou as autori<strong>da</strong>des brasileiras – e,<br />

por que não dizer? a própria população – ao policiamento e à inquisição. Como esse<br />

controle era exercido sobre as cama<strong>da</strong>s menos favoreci<strong>da</strong>s <strong>da</strong> população e não sobre os<br />

mais abastados, os conservadores nele “faziam gosto” como, decerto, era usado falar<br />

naqueles tempos.<br />

Assim, não tardou a iniciar-se uma campanha conservadora contra o espírito liberal do<br />

Código do Processo Criminal de Primeira Instância.<br />

A primeira reação conservadora foi, provavelmente, de arrependimento, no caso, do<br />

próprio Senador Alves Branco. Segundo JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, já na sessão de<br />

nove de setembro de 1835 do Senado <strong>Federal</strong>, esse parlamentar advogava uma reforma<br />

no Código, apresentando, inclusive, um projeto nesse sentido e “apontando nessa<br />

ocasião, a necessi<strong>da</strong>de de dissociação <strong>da</strong>s funções judiciárias e policiais, que estavam<br />

entregues aos juízes municipais e aos juízes de paz, para que as mesmas fossem<br />

entregues ao chefe de polícia, por si e pelos seus delegados, que deveriam, com<br />

exclusivi<strong>da</strong>de, proceder à formação <strong>da</strong> culpa”. 299<br />

Esse projeto de reforma, ain<strong>da</strong> segundo JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, não foi<br />

examinado conclusivamente, uma vez que, na prática e nas atenções e na preferência<br />

dos conservadores, outro tomou-lhe o lugar. Tratou-se do projeto de reforma elaborado<br />

pelo Senador Bernardo Pereira de Vasconcellos que, embora combatido ferrenhamente<br />

pelos liberais, foi aprovado e entrou em vigor através <strong>da</strong> Lei n. 261/1841, detalha<strong>da</strong> pelo<br />

Regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842. 300<br />

Ambos os diplomas, no dizer de JOSÉ FREDERICO MARQUES, significaram uma “reação<br />

monárquico-conservadora, tendente a criar, através de um aparelhamento policial<br />

altamente centralizado, meios de repressão fortes e eficazes contra a desordem reinante<br />

no país, desde a época <strong>da</strong> regência”. 301<br />

Com efeito, ambos os diplomas restabeleceram o sistema de controle social através<br />

<strong>da</strong> organização policial que, se já não possuía o instrumento <strong>da</strong>s devassas, tinha atraí<strong>da</strong><br />

para si, na pessoa do Chefe de Polícia e de seus delegados, boa parte <strong>da</strong> competência<br />

dos juízes de paz (Lei n. 261/1841, art. 4º, § 1º) e, principalmente, a de “vigiar e<br />

299 PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 135.<br />

300 PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 135-136.<br />

301 MARQUES, José Frederico. “Evolução histórica do processo penal”, em Investigações, n. 7<br />

(jul/1949), p. 115.<br />

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providenciar, na forma <strong>da</strong>s leis, sobre tudo que pertence à prevenção dos delitos e<br />

manutenção <strong>da</strong> segurança e tranqüili<strong>da</strong>de pública” (Lei n. 261/1841, art. 4º, § 4º).<br />

Quanto à reforma de 1871, implementa<strong>da</strong> por mais de uma lei, sendo a principal delas<br />

a Lei n. 2.033, de vinte de setembro de 1871 – e por tal razão, de complexo exame, nos<br />

limites deste esboço – trouxe ela um recuo nos objetivos autoritários <strong>da</strong> reforma de 1841.<br />

Mais do que isso, melhorou a estrutura e o mecanismo do aparelhamento judiciário então<br />

existente, deitando raízes para o processo penal do primeiro período republicano, de<br />

competência, conforme se sabe, de ca<strong>da</strong> um dos estados-membros. Segundo JOSÉ<br />

HENRIQUE PIERANGELLI, inclusive, alguns estados preferiram permanecer com o sistema<br />

processual penal estabelecido pela dita reforma, ou implementaram reformas de pouca<br />

monta. 302<br />

302 PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 151.<br />

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Seção C<br />

Nos códigos estaduais<br />

Segundo JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, a maioria dos códigos de processo penal<br />

estaduais mantiveram, com algumas poucas mu<strong>da</strong>nças, a sistemática do Código do<br />

Processo Criminal de Primeira Instância, após as reformas de 1841 e 1871.<br />

Essa razão, alia<strong>da</strong> ao excessivo número de diplomas legais e a varie<strong>da</strong>de de<br />

características, não aconselham uma exposição pormenoriza<strong>da</strong>.<br />

Fique claro, entretanto, que, nesses códigos, a sistemática processual permaneceu a<br />

mesma, quer dizer: uma lei processual penal básica orienta<strong>da</strong> no sentido do sistema<br />

acusatório, com as reformas conservadoras que se lhes impuseram em 1841 e 1871.<br />

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<strong>Parte</strong> 2<br />

Princípios e regras <strong>da</strong> audiência processual penal<br />

O processo penal brasileiro é predominantemente escrito; excessivamente escrito.<br />

Isso pode ser comprovado até por um exame perfunctório do sistema de procedimentos<br />

do Código de Processo Penal. O procedimento estrutural, a base, por assim dizer,<br />

denominado processo comum pelo legislador, é largamente dominado pela escritura.<br />

Sua caracterização como procedimento principal vem desde a nomenclatura, mas vai<br />

além. Segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES, que o chama de procedimento ordinário pleno,<br />

denominação consagra<strong>da</strong> pelo uso, essa quali<strong>da</strong>de decorre de outros elementos:<br />

“Chama-se tal procedimento de ordinário pleno, como o denominavam os antigos<br />

praxistas, porquanto nele se observam todos os atos, termos e formali<strong>da</strong>des que na<br />

doutrina do processo comum eram tidos como adequados para uma ampla discussão <strong>da</strong>s<br />

lides de mais destacado vulto e importância”. “A ‘maior amplitude <strong>da</strong> discussão’ e a ‘maior<br />

dilação dos prazos’”, conclui o eminente professor paulista, “constituem os traços<br />

fun<strong>da</strong>mentais dessa forma de procedimento”. 303<br />

A aplicação desse procedimento se verifica para a persecução de infrações penais<br />

graves do ordenamento jurídico-penal, qualificáveis como tais pela natureza <strong>da</strong> pena<br />

privativa de liber<strong>da</strong>de comina<strong>da</strong>. É ain<strong>da</strong> JOSÉ FREDERICO MARQUES que leciona: “O<br />

procedimento ordinário pleno, que o Cód. de Processo Penal disciplina sob o nomen juris<br />

de processo comum, é aquele geralmente aplicável às causas penais em que vem<br />

pedi<strong>da</strong>, na peça acusatória, a pena de reclusão”. 304<br />

Tendo em vista que o legislador penal brasileiro foi ver<strong>da</strong>deiramente pródigo na<br />

cominação de penas privativas de liber<strong>da</strong>de a condutas criminosas – e, dentre estas, com<br />

especial relevo, a pena de reclusão – o procedimento escrito acabou por ser a base do<br />

processo penal brasileiro. Daí porque se justifica a afirmação inicial de que o processo<br />

penal brasileiro é dominado pelo princípio <strong>da</strong> escritura.<br />

Dentro do procedimento ordinário pleno, por linha de conseqüência, não há espaço<br />

normativo de relevo para a audiência processual penal, resolvendo-se por escrito to<strong>da</strong>s as<br />

questões relevantes surgi<strong>da</strong>s durante a tramitação do processo.<br />

303 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 116.<br />

304 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 116.<br />

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Isso leva a uma constatação bastante simples: a audiência processual penal não é<br />

elemento principal <strong>da</strong> estrutura do processo penal brasileiro vigente.<br />

Contudo, a tendência moderna do processo, seja ele penal ou não, é de <strong>da</strong>r maior<br />

consideração à audiência, como instrumento de solução de conflitos – caso do processo<br />

civil – ou de solução de causas penais – caso do processo penal.<br />

Assim, o presente trabalho se coloca diante de uma tarefa que é encerra um<br />

paradoxo: estu<strong>da</strong>r algo que outrora fora desconsiderado pelo legislador ordinário, mas<br />

que, obedecendo-se as tendências evolutivas <strong>da</strong> ciência processual, deve ser resgatado.<br />

Algo que, sob o prisma <strong>da</strong> legislação processual penal vigente, não tem foro de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,<br />

mas cuja reabilitação é reclama<strong>da</strong> pelos mais importantes princípios <strong>da</strong> moderna ciência<br />

processual penal, no que se refere ao estudo do procedimento.<br />

Por tais razões, o exame dos princípios e regras <strong>da</strong>s audiências do processo penal<br />

brasileiro não se limitará ao estudo de determina<strong>da</strong>s audiências previstas pelo Código de<br />

Processo Penal e legislação complementar e tampouco terá preocupação exegética.<br />

Através do exame dos sistemas processuais e <strong>da</strong> estruturação dessas audiências,<br />

também abrangerá outras que paulatinamente se impõem por força <strong>da</strong> praxe forense. O<br />

objetivo remoto é o de elaborar um ver<strong>da</strong>deiro “modelo” de audiência processual penal.<br />

A premissa metodológica é a de que, no processo penal, a audiência é, via de regra,<br />

senão o melhor, ao menos um formidável instrumento a serviço <strong>da</strong> busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

material. Isso ocorre porque, através <strong>da</strong> audiência, atendem-se melhor a princípios<br />

processuais como a publici<strong>da</strong>de, orali<strong>da</strong>de, imediação, contraditório e concentração. E<br />

esses princípios colaboram para a prolatação de uma decisão mais próxima <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de.<br />

Há, aqui, porém, uma questão conceitual prévia que, como tal, exige solução<br />

imediata, antes de se prosseguir. Trata-se <strong>da</strong> tarefa de conceituar a audiência.<br />

São clássicas as definições de audiência de JOAQUIM JOSÉ CAETANO PEREIRA E SOUSA<br />

– “chama-se audiência o lugar em que os juízes ouvem as partes por si ou por seus<br />

advogados, ou procuradores. Neste lugar é que as causas devem prosseguir os seus<br />

termos, sendo regulado pelos juízes que a ela presidem. Decidem-se em audiência as<br />

questões de fácil expedição” 305 – e de GALDINO SIQUEIRA – “audiência é o lugar público,<br />

onde o juiz está, em dia e hora determina<strong>da</strong>s, para publicar as suas sentenças, ouvir as<br />

partes ou seus advogados, decidir sobre os requerimentos e questões de fácil e pronta<br />

305 SOUSA, José Joaquim Caetano Pereira e. Primeiras linhas sobre o processo civil, 1863, t. 4, p. 20,<br />

n. 969 apud MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 89.<br />

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solução, tudo na conformi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Ord. L. III, t. XIX e mais regimentos”. 306<br />

Essas definições, que prestigiam o aspecto espacial em detrimento do temporal,<br />

merecem por isso mesmo reparo. Quem o faz é ain<strong>da</strong> JOSÉ FREDERICO MARQUES: “Mais<br />

acertado se nos afigura, porém, falar em momento processual, como o faz COSTA<br />

CARVALHO, ou ato processual complexo, como o faz PONTES DE MIRANDA, uma vez que<br />

não mais se realizam as antigas audiências ordinárias que existiam outrora para a prática<br />

de determinados atos processuais (...). Depois de promulgado o Cód. de Proc. Civil, as<br />

antigas audiências ordinárias deixaram de existir. Aquele diploma deu nova estruturação<br />

às audiências, transformando-as em ato culminante do procedimento de primeiro grau.<br />

Desapareci<strong>da</strong>s, por inúteis, as audiências semanais e ordinárias que em ca<strong>da</strong> juízo se<br />

efetuavam, – é, hoje, a audiência ato especial de ca<strong>da</strong> processo, que se distingue dos<br />

demais atos processuais pelo seu caráter de ato complexo que se apresenta como<br />

‘envolvente de outros atos por sua duração e extensão no espaço’. (...) Desnecessárias<br />

são por isso, na justiça criminal as audiências ordinárias”. 307<br />

Entretanto, como que acatando, nas suas essências, as definições que pretendeu<br />

criticar, JOSÉ FREDERICO MARQUES arrola, como tais entendi<strong>da</strong>s pelo Código de Processo<br />

Penal, apenas as seguintes audiências: “Em todo o Cód. de Proc. Penal, só se prevê a<br />

prática em audiência: a) <strong>da</strong> instrução e julgamento dos procedimentos sumários (art. 538);<br />

b) instrução e julgamento do procedimento de aplicação de medi<strong>da</strong> de segurança por fato<br />

não criminoso (art. 554); c) leitura de sentença que suspende condicionalmente a<br />

execução <strong>da</strong> pena (arts. 703 e 705)”. 308<br />

To<strong>da</strong>via, percebe-se tratar-se de um rol que corresponde a uma conceituação estrita<br />

de audiência. Tal conceito deixa sem explicação a prática de diversos outros atos<br />

processuais que são, inegavelmente, realizados em “momentos processuais” e, portanto,<br />

em audiências.<br />

Nesse mesmo equívoco incide EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, ao afirmar que “por<br />

necessi<strong>da</strong>de do rápido an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong>s ações penais, reclama<strong>da</strong> por economia do<br />

processo, a orientação de dispensar, para a efetuação <strong>da</strong> generali<strong>da</strong>de dos atos judiciais,<br />

a realização de audiências, que hão-de, obrigatoriamente, revestir-se de certas<br />

formali<strong>da</strong>des, é, rigorosamente, correspondente à tendência anti-formalista do processo,<br />

306<br />

SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 303.<br />

307<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 90.<br />

308<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 90.<br />

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na sua caracterização mais moderna e mais adianta<strong>da</strong>. Assim é que, no seu curso<br />

normal, o processo criminal, seja ante o juiz singular, seja perante colégios judiciários, se<br />

desenvolve, segui<strong>da</strong>mente, numa série de atos (interrogatório, inquirições, acareações,<br />

exame pericial, diligências outras), que são simplesmente tomados por termo,<br />

consignados em assenta<strong>da</strong>s ou certificados nos autos, sem necessi<strong>da</strong>de de realização<br />

em audiências dos juízos, ou nas sessões dos tribunais”. 309<br />

Há, portanto, que se ampliar o rol de audiências, considerando que outros atos<br />

processuais penais – praticados em momento próprio, cuja característica central é a de<br />

ser dominado pela palavra fala<strong>da</strong> – são também praticados em ver<strong>da</strong>deiras e próprias<br />

audiências processuais penais.<br />

Para tanto, é mister precisar a noção moderna de audiência processual penal. Nesse<br />

passo, os conceitos de audiências ordinárias, extraordinárias e especiais devem ser<br />

rigorosamente compreendidos.<br />

Fique claro que, embora o art. 791 do CPP as preveja, não há mais, na prática<br />

forense brasileira, as chama<strong>da</strong>s audiências ordinárias e extraordinárias. É de GALDINO<br />

SIQUEIRA um conceito preciso dessas audiências fora de época: “Audiência ordinária é a<br />

que os juízes são obrigados a fazer, pelo menos uma vez por semana, em lugar, dia e<br />

hora determinados estavelmente. (...) Audiência extraordinária é a feita para o<br />

prosseguimento do processo”. 310<br />

A essas audiências – mas especialmente a audiência ordinária – correspondem hoje<br />

as sessões de tribunais de apelação e superiores, nas quais os ministros,<br />

desembargadores e juízes se reúnem, periodicamente, a fim de julgarem os processos<br />

que lhes são submetidos, bem como as sessões do <strong>Tribunal</strong> do Júri.<br />

Contudo, a audiência processual penal usualmente pratica<strong>da</strong> no foro criminal, em<br />

primeiro grau de jurisdição, não corresponde nem a essa audiência dita ordinária, nem à<br />

extraordinária, seu complemento.<br />

Essa audiência – objeto de análise fun<strong>da</strong>mental do presente trabalho – corresponde a<br />

outro conceito que também pode ser retirado <strong>da</strong> doutrina processual penal brasileira<br />

anterior ao Código de Processo Penal vigente. Malgrado isso, serve à conceituação<br />

309<br />

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 8, n. 1.605, p. 490.<br />

310<br />

SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 305. Cf. que, na primeira definição, GALDINO SIQUEIRA faz menção<br />

aos arts. 58 <strong>da</strong> Lei de 29 de novembro de 1832 (Código do Processo Criminal de Primeira Instância) e 193<br />

do Regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842; na segun<strong>da</strong> definição, faz menção ao art. 48, § 5º, do<br />

Decreto n. 4.824, de 22 de novembro de 1871.<br />

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moderna <strong>da</strong> audiência processual penal. Trata-se do conceito de audiência especial.<br />

GALDINO SIQUEIRA o fornece: “Audiência especial é a que é feita para determinado ato,<br />

como por exemplo a que é feita em diligência de vistoria, etc.” 311<br />

Esse conceito, modernamente – embora a previsão de audiências ordinárias e<br />

extraordinárias continue constando do Código de Processo Penal – tornou-se<br />

hegemônico, à exceção <strong>da</strong>s sessões de tribunais, ver<strong>da</strong>deiras mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des de audiências<br />

ordinárias.<br />

Neste passo, um conceito analítico de audiência processual penal é factível. Assim, é<br />

ela o momento processual penal em que as partes se reúnem, de regra intima<strong>da</strong> se sob a<br />

presidência do juiz criminal, para a prática de atos processuais penais.<br />

A par de prestigiar o aspecto temporal do objeto em estudo, põe em relevo a atuação<br />

de atores processuais – partes, em sentido amplo – a administração do juiz criminal e o<br />

seu escopo, que vem a ser a prática de atos jurídicos relevantes sob o prisma processual<br />

penal.<br />

Há, porém, uma outra acepção do vocábulo audiência, encontra<strong>da</strong> amiúde na doutrina<br />

processual penal. JORGE FIGUEIREDO DIAS refere-se a essa acepção quando trata do que<br />

denomina princípio ou direito de audiência. Define-o como a “oportuni<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> a<br />

todo o participante processual de influir, através de sua audição pelo tribunal, no decurso<br />

do processo”. 312<br />

Tal acepção, isto é, <strong>da</strong> audiência como um direito material, 313 não coincide com a dela<br />

como momento processual. Com ela não colide; apenas não se confunde.<br />

Assim, é perfeitamente possível atender-se ao princípio <strong>da</strong> audiência referido por<br />

JORGE FIGUEIREDO DIAS através <strong>da</strong> escritura: o acusado é ouvido pelo juiz – “influi no<br />

decurso do processo” – indiretamente, através de seu defensor técnico e por escrito. É o<br />

que ocorre na hipótese do art. 514 do CPP. Essa regra, ao determinar ao juiz que, no<br />

caso dos crimes funcionais afiançáveis, autue a denúncia e ordene a notificação do<br />

acusado (rectius: do denunciado) servidor público, para responder por escrito, no prazo<br />

de quinze dias, é uma manifestação <strong>da</strong> escritura no processo penal condenatório.<br />

Outros dois exemplos de um direito de audiência não exercitável – ao menos<br />

311 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 305.<br />

312 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 153.<br />

313 Cf. o conceito de audiência como direito material – e não especificamente como momento<br />

processual – em ALVIM, Rui Carlos Machado. “O direito de audiência na execução penal: uma tentativa de<br />

sua apreensão”, em RT, n. 636 (out/1988), p. 257-266.<br />

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obrigatoriamente – em momento processual, colhem-se na Lei n. 7.210, de onze de julho<br />

de 1984, denomina<strong>da</strong> Lei de Execução Penal. A decisão acerca <strong>da</strong> execução <strong>da</strong> pena na<br />

forma regressiva é toma<strong>da</strong> pelo juiz, diz o § 2º do art. 118 dessa Lei, após a oitiva do<br />

condenado. Da mesma forma no caso de revogação do livramento condicional, por força<br />

do art. 143 do mesmo diploma.<br />

Em qualquer desses dois dispositivos citados, não há, efetivamente, regra jurídica que<br />

imponha a reunião entre juiz e condenado, em momento processual próprio. As<br />

explicações que entender cabíveis o condenado pode dá-las através de seu procurador,<br />

ou pessoalmente, se possuir capaci<strong>da</strong>de postulatória, por escrito. A efetivação de uma<br />

reunião entre juiz e condenado é optativa.<br />

Seja como for, é possível afirmar que a realização de audiência processual penal, em<br />

qualquer dos dois casos – resposta preliminar do denunciado servidor público e oitiva<br />

prévia do condenado, pelo juiz <strong>da</strong> execução – atenderia melhor aos objetivos colimados<br />

pela norma.<br />

Com efeito, não seria indefensável sustentar-se que esse tipo de audição indireta, em<br />

casos que depen<strong>da</strong>m de certa dose de consideração subjetiva do juiz, é incompleto ou<br />

defeituoso. Por força <strong>da</strong> imediação, a oitiva direta do interessado pelo juiz, em momento<br />

processual próprio, talvez impressionasse este melhor e mais fidedignamente.<br />

Além disso, a força criadora <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de – e essa afirmação se pretende comprovar<br />

no presente estudo – permitiria que aflorassem soluções originais e mais proveitosas à<br />

administração <strong>da</strong> justiça criminal.<br />

Não estão calcados em outra razão a denomina<strong>da</strong> preliminary hearing, diante do<br />

grand jury, no processo penal estadunidense, bem como a udienza preliminare do novo<br />

processo penal italiano (Códice de procedura penale, art. 401).<br />

No caso estadunidense, é possível conferir a importância dessa audiência preliminar<br />

pelo seguinte trecho de SUBIN-MIRSKY-WEINSTEIN: “Existindo questionamento ao mesmo<br />

tempo jurídico e de fato no procedimento anterior ao julgamento a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes<br />

envolverá sempre um requerimento no sentido <strong>da</strong> realização de uma audiência tendente a<br />

resolver o aspecto fático <strong>da</strong> questão. A admissibili<strong>da</strong>de de uma audiência depende de<br />

alguns requisitos: em primeiro lugar, o autor terá de antecipar as provas <strong>da</strong> culpa de<br />

alguém, isto é, provar, com base nos elementos dos autos, que tem um causa (a prima<br />

facie case). Falhar nessa tarefa resulta em sumário arquivamento do processo. Em<br />

segundo lugar, o defendente deve discutir alguns ou todos os fatos afirmados por quem<br />

move o procedimento. Se o defendente não discuti-los, os fatos serão <strong>da</strong>dos como<br />

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estando estabelecidos e, por conseguinte, nenhuma audiência será cabível. Assumindo<br />

que o questionamento sobre os fatos está corretamente elaborado, uma audiência será<br />

cabível. Ela pode ser vista como uma espécie de audiência de julgamento sendo que sua<br />

questão de fundo não é a culpa ou a inocência do defendente, mas outros problemas<br />

preliminares, usualmente a admissibili<strong>da</strong>de ou supressão de peças de evidência”. 314<br />

Quanto à udienza preliminare do novo processo penal italiano, ALBERTO MACCHIA<br />

salienta seu caráter de garantia deferi<strong>da</strong> ao imputado, na medi<strong>da</strong> em que, através dela,<br />

defere-se a ele o direito de conhecer e discutir, ao menos preliminarmente, todos os<br />

elementos de convicção colhidos por quem conduz as investigações (“in<strong>da</strong>gini<br />

preliminari”). É a realização, no moderno processo penal italiano, do que os juristas<br />

estadunidenses denominam de discovery.<br />

ALBERTO MACCHIA prossegue: “À função de garantia que a audiência preliminar é<br />

chama<strong>da</strong> a desenvolver, como direito do imputado ao qual pode, to<strong>da</strong>via (...) renunciar,<br />

vem conjugar-se uma outra: vale dizer, aquela de controle <strong>da</strong> base sobre a qual a<br />

acusação vem formula<strong>da</strong> e, portanto, sobre o correlativo ‘bom exercício’ <strong>da</strong> ação penal.<br />

Acerca deste perfil é lícito dizer que a audiência preliminar desenvolve uma função de<br />

filtro, mas se trata de um filtro de fato singular, porque a peculiari<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fase na qual se<br />

encontra inserido, processual, sim, mas certamente não de cognição plena, impôs<br />

particulares regras processuais que permitem realizar-se o controle pelo juiz no sentido de<br />

manter a instrução circunscrita a uma acusação não-aventureira”. 315<br />

É preciso, porém, retomar o objeto do presente estudo; refere-se ele – repita-se ain<strong>da</strong><br />

uma vez – ao momento processual penal em que as partes se reúnem, de regra intima<strong>da</strong>s<br />

314<br />

SUBIN, Harry I., MIRSKY, Chester L. e WEINSTEIN, Ian S. The Criminal…, p. 260. Trecho original:<br />

“Where there a mixed question of law and fact in a pretrial motion, the relief requested will always include a<br />

request for a hearing to resolve the factual issue. Whether a hearing will be granted depends upon several<br />

things: first, the movant will have to meet the burden of going forward, i.e., make out a prima facie case on<br />

the moving papers. Failure to do that will result in summary denial of the motion. Second, the respondent<br />

must dispute some or all of the facts asserted. If the respondent does not do that, the facts will be deemed to<br />

have been established, and therefore no hearing will be required. Assuming that a factual dispute is properly<br />

framed, a hearing will be held. It can be looked upon as a kind of trial, with the issue not being the guilt or<br />

innocence of the defen<strong>da</strong>nt, but some preliminary issue, usually the admissibility or suppression of a piece of<br />

evidence”.<br />

315<br />

MACCHIA, Alberto. “Udienza preliminare”, em Contributi…, p. 39. Trecho original: “Alla funzione di<br />

garanzia che l’udienza preliminare è chiamata a svolgere, come diritto dell’imputato al quale può tuttavia (...)<br />

rinunciare, viene a coniugarsene un’altra: vale a dire quella di controllo sulla fon<strong>da</strong>tezza della doman<strong>da</strong> di<br />

giudizio che viene formulata e, quindi, sul correlativo “buon” esercizio dell’azione penale. Sotto questo profilo<br />

si è soliti dire che l’udienza preliminare svolge una funzione di filtro, ma si tratta di un filtro affatto singolare,<br />

perché la peculiarità della fase in cui si trova inserito, processuale se ma certo non di cognizione piena, ha<br />

imposto particolari regole di giudizio che permettono di configurare il controlo del giudice in termini<br />

grossomodo riconducibili ad una verifica circoscritta alla imputazione non azzar<strong>da</strong>ta”.<br />

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e sob a presidência do juiz criminal, para a prática de atos processuais penais.<br />

Com base nessa conceituação, a conclusão forçosa é de que, contrariamente ao que<br />

ensina JOSÉ FREDERICO MARQUES, há mais audiências dentro do Código de Processo<br />

Penal.<br />

É possível tentar um pequeno rol delas.<br />

Assim, <strong>da</strong>s que se realizam sob a presidência de juiz singular, tem-se: a) audiência<br />

judicial de interrogatório do acusado (CPP, arts. 185-196 e 394); b) audiência judicial de<br />

toma<strong>da</strong> por termo de confissão feita fora de interrogatório (CPP, art. 199); c) audiência<br />

judicial de oitiva do ofendido (CPP, arts. 201 e 396); d) audiência judicial de oitiva de<br />

testemunhas (CPP, arts. 202-225 e 396); e) audiência judicial de reconhecimento de<br />

pessoas e coisas (CPP, arts. 226-228); f) audiência judicial de acareação (CPP, arts.<br />

229-230); g) audiência judicial de tentativa de reconciliação <strong>da</strong>s partes nos crimes de<br />

calúnia e injúria, de competência de juiz singular (CPP, arts. 520-522); h) audiência de<br />

instrução e julgamento do procedimento sumário em sentido estrito (CPP, arts. 539 e<br />

538); i) audiência admonitória <strong>da</strong>s condições <strong>da</strong> suspensão condicional <strong>da</strong> pena (CPP,<br />

arts. 703 e 705). 316<br />

As sessões de tribunais são uma espécie de audiência. Sendo uma causa de<br />

natureza penal o seu objeto, são ver<strong>da</strong>deiras audiências processuais penais, sejam elas<br />

realiza<strong>da</strong>s para a apreciação de recursos, sejam para a instrução oral (CPP, art. 616).<br />

Indo mais adiante, são também audiências as seguintes, presidi<strong>da</strong>s pela autori<strong>da</strong>de<br />

policial no curso de inquérito policial: j) audiência de oitiva de ofendido pela autori<strong>da</strong>de<br />

policial (CPP, art. 616); l) audiência de oitiva de indiciado pela autori<strong>da</strong>de policial (CPP,<br />

art. 6º, inciso V); m) audiência de colheita de depoimentos pela autori<strong>da</strong>de policial (CPP,<br />

art. 6º, inciso III); n) audiência de “reprodução simula<strong>da</strong> dos fatos” pela autori<strong>da</strong>de policial<br />

(CPP, art. 7º); o) audiência de acareação (CPP, art. 6º, inciso VI); p) audiência de<br />

reconhecimento de pessoas e coisas (CPP, art. 7º, inciso VI). No caso dessas audiências<br />

policiais, porém, o que se vê são ver<strong>da</strong>deiros simulacros <strong>da</strong>s respectivas audiências<br />

judiciais. Somente algumas particulari<strong>da</strong>des as distinguem.<br />

A legislação complementar acrescentou diversas outras audiências.<br />

316 Apenas por amor ao registro, tinham-se ain<strong>da</strong> as seguintes audiências, que hoje se têm por<br />

revoga<strong>da</strong>s: audiência de qualificação do réu e oitiva de testemunhas, no processo sumário <strong>da</strong>s<br />

contravenções (CPP, art. 533); audiência de lavratura de auto de prisão em flagrante, no processo sumário<br />

<strong>da</strong>s contravenções (CPP, art. 535); audiência de interrogatório do réu, no processo sumário <strong>da</strong>s<br />

contravenções (CPP, art. 536); audiência de instrução e julgamento, no processo sumário <strong>da</strong>s<br />

contravenções (CPP, art. 538); audiência de instrução e julgamento do procedimento de aplicação de<br />

medi<strong>da</strong> de segurança por fato não criminoso (CPP, art. 554).<br />

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Assim, a Lei n. 1.508, de dezenove de dezembro de 1951, que dispõe sobre os<br />

procedimentos para apuração e julgamento <strong>da</strong>s contravenções penais, prevê, no seu art.<br />

3º, uma audiência de instrução e julgamento. Por força do art. 36 <strong>da</strong> Lei n. 4.771, de<br />

quinze de setembro de 1965 (Código Florestal) essa mesma audiência aplica-se aos<br />

processos relativos às contravenções nele tipifica<strong>da</strong>s.<br />

A Lei n. 4.737, de quinze de julho de 1965 (Código Eleitoral) prevê uma audiência<br />

para o depoimento pessoal do acusado (art. 359), e audiência ou audiências para a oitiva<br />

<strong>da</strong>s testemunhas de acusação e defesa (art. 360).<br />

A Lei n. 4.898, de nove de dezembro de 1965 (abuso de autori<strong>da</strong>de) prevê uma<br />

audiência de instrução e julgamento (arts. 17, § 1º, 19 e 21-26).<br />

A Lei n. 5.250, de nove de fevereiro de 1967 (Lei de Imprensa) prevê uma audiência<br />

de instrução e julgamento (art. 45).<br />

A Lei n. 6.815, de dezenove de agosto de 1980 (Lei de Estrangeiros) disciplina uma<br />

audiência de interrogatório de extraditando (art. 85).<br />

A Lei n. 7.210, de onze de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), prevê as seguintes<br />

audiências: audiência de leitura <strong>da</strong>s modificações <strong>da</strong>s condições do livramento<br />

condicional (LEP, art. 144) e audiência admonitória <strong>da</strong>s condições <strong>da</strong> suspensão<br />

condicional <strong>da</strong> pena (LEP, art. 166) essa última, aliás, também regula<strong>da</strong> pelo art. 703 do<br />

CPP.<br />

É também audiência a “cerimônia do livramento condicional”, regula<strong>da</strong> pelos arts. 723<br />

do CPP e 137 <strong>da</strong> LEP.<br />

A Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que prevê um procedimento orientado<br />

“pelos critérios <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, informali<strong>da</strong>de, economia processual e celeri<strong>da</strong>de” (art. 62),<br />

prevê inúmeras audiências, a saber: a) audiência preliminar (art. 69-76); b) audiência<br />

inicial do procedimento sumariíssimo (art. 77); c) audiência de instrução e julgamento do<br />

procedimento sumariíssimo (art. 79-81).<br />

A Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, que define os tipos penais referentes à<br />

produção e ao tráfico de drogas, e também define o procedimento penal a eles relativo,<br />

prevê,no seu art. 56, uma audiência de instrução e julgamento.<br />

O rol é apenas exemplificativo.<br />

Não se incluem na categoria de audiência processual penal quaisquer <strong>da</strong>s audiências<br />

realiza<strong>da</strong>s com base na Lei n. 1.079, de dez de abril de 1950, que define os crimes de<br />

responsabili<strong>da</strong>de e regula o respectivo processo de julgamento. Isso porque nessa lei não<br />

se trata nem de matéria penal, nem, conseqüentemente, de matéria processual penal,<br />

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mas de matéria política, conforme lecionam PAULO BROSSARD 317 e JOSÉ FREDERICO<br />

MARQUES. 318 O mesmo se diga <strong>da</strong>s audiências disciplina<strong>da</strong>s pelo Decreto-lei n. 201, de 27<br />

de fevereiro de 1967, mormente <strong>da</strong>quelas relaciona<strong>da</strong>s ao processo de cassação do<br />

man<strong>da</strong>to de prefeito municipal.<br />

A par dessas audiências, cujo rol não é, nem de longe, exaustivo, há outras impostas<br />

pela praxe forense, como, por exemplo, as de instrução e julgamento realiza<strong>da</strong>s no<br />

procedimento ordinário pleno.<br />

Não há incompatibili<strong>da</strong>de ontológica entre a audiência processual penal e qualquer<br />

<strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des processuais possíveis, desde a postulação propriamente dita até a<br />

ativi<strong>da</strong>de devolutiva. To<strong>da</strong>via, a experiência demonstra que algumas ativi<strong>da</strong>des são mais<br />

comumente realiza<strong>da</strong>s durante audiência processual penal do que as outras.<br />

JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, ao tratar do tema para o processo civil, prefere<br />

analisar as ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> audiência partindo <strong>da</strong> figura do juiz. Assim, identifica sete<br />

funções que essa autori<strong>da</strong>de desempenha na audiência processual civil: as inerentes ao<br />

seu poder de polícia, as relativas à tentativa de conciliação, quando esta for prevista, as<br />

instrutórias, as relaciona<strong>da</strong>s com a presidência dos debates orais, as estritamente<br />

decisórias e as de documentação dos atos praticados. 319<br />

A lição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA é também váli<strong>da</strong> para o processo penal.<br />

Contudo, o presente estudo parte de um ponto diverso, não centrando a análise na figura<br />

do juiz, mas <strong>da</strong>ndo relevo à ativi<strong>da</strong>de ou função mesma que se pode desenvolver durante<br />

a audiência, por parte de quaisquer dos seus atores. Assim, na audiência processual<br />

penal se podem verificar as seguintes ativi<strong>da</strong>des ou serem exerci<strong>da</strong>s as seguintes<br />

funções: a) postulatória; b) instrutória; c) crítica; d) decisória; e) administrativa; f)<br />

devolutiva 320 e g) de documentação.<br />

No presente estudo preferiu-se destacar quatro dessas ativi<strong>da</strong>des ou funções:<br />

instrutória, crítica, decisória e administrativa.<br />

A exclusão <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des ou funções postulatória e devolutiva deve-se ao fato de que<br />

elas não se constituem em regra do procedimento mas, antes, em exceção. Sendo assim,<br />

317<br />

BROSSARD, Paulo. O impeachment…, p. 70-74.<br />

318<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 327-328.<br />

319<br />

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo…, p. 113-114.<br />

320<br />

Cf. CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 1, p. 101-191. Esse autor denomina a ativi<strong>da</strong>de<br />

devolutiva – de impugnação <strong>da</strong> sentença para reexame por outro órgão jurisdicional – de ativi<strong>da</strong>de “crítica”.<br />

É preferível, entretanto, a denominação aqui proposta, que leva em consideração os efeitos jurídicos <strong>da</strong><br />

impugnação, de devolver o conhecimento do caso a outro órgão jurisdicional.<br />

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não se justifica uma análise específica.<br />

A ativi<strong>da</strong>de postulatória, que consiste na dedução <strong>da</strong> pretensão condenatória em<br />

juízo, no sistema processual penal brasileiro faz-se geralmente por escrito. Uma<br />

digressão: a referência a uma pretensão condenatória e não a uma pretensão punitiva,<br />

como consta em diversos manuais clássicos, é proposital. É tecnicamente mais correto<br />

bipartir-se o que a doutrina processual penal tradicional denomina impropriamente de<br />

pretensão punitiva em pretensão condenatória e pretensão executória. Isso porque só<br />

com o condenar-se não se pune, propriamente. Esse fim somente é atingido pelo<br />

condenação e execução <strong>da</strong> pena condenatória. Daí porque não é correto falar-se numa<br />

pretensão punitiva, que prescreve antes <strong>da</strong> condenação. O que prescreve, na ver<strong>da</strong>de, é<br />

a pretensão condenatória. Isola<strong>da</strong>mente considera<strong>da</strong>, a pretensão punitiva é, em<br />

ver<strong>da</strong>de, uma categoria pré-jurídica.<br />

Quanto à ativi<strong>da</strong>de devolutiva, inclusive, há certa corrente jurisprudencial que entende<br />

ser ela inváli<strong>da</strong> quando exerci<strong>da</strong> em audiência, <strong>da</strong><strong>da</strong> a ausência <strong>da</strong> formali<strong>da</strong>de do termo,<br />

pois o recorrente, à to<strong>da</strong> evidência recorre verbalmente e seu inconformismo passa a<br />

constar apenas <strong>da</strong> ata de julgamento. 321 Outra corrente, mais acerta<strong>da</strong> e numerosa, no<br />

STF 322 e no STJ, 323 admite-a, até porque a exigência absoluta de termo de recurso é um<br />

formalismo vazio; feitas as evidentes ressalvas de que a ata <strong>da</strong> audiência deve ser<br />

assina<strong>da</strong> pelo recorrente 324 e de que, no caso de decisão proferi<strong>da</strong> oralmente – grava<strong>da</strong><br />

por processo de estenotipia, por exemplo – o termo inicial para recurso somente se inicia<br />

<strong>da</strong> <strong>da</strong>ta <strong>da</strong> transcrição, 325 isso, evidentemente, porque somente a partir desse instante a<br />

parte tem pleno e detalhado conhecimento acerca <strong>da</strong> decisão. Esteja com qualquer <strong>da</strong>s<br />

321 Habeas corpus n. 46.944-PR – STF – 1ª Turma – Rel. Ministro Aliomar Baleeiro – julgado em<br />

17.jun.69 – ordem concedi<strong>da</strong> – votação unânime – RTJ, n. 52, p. 162.<br />

322<br />

Recurso de habeas corpus n. 49.625-GO – STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Antonio Neder – julgado<br />

em 24.abr.72 – improvido – votação unânime – RTJ, n. 61, p. 638; Habeas corpus n. 60.449-RJ – STF – 1ª<br />

Turma – Rel. Ministro Oscar Corrêa – julgado em 14.dez.82 – ordem nega<strong>da</strong> – votação unânime – DJU,<br />

Seç. 1 (25.fev.1983) – RT n. 574 (ago/1983), p. 462-463; Recurso extraordinário criminal n. 114.513-PB –<br />

STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Carlos Madeira – julgado em 10.mai.88 – não conhecido – votação unânime<br />

– RTJ n. 130, p. 1.186.<br />

323<br />

Recurso especial n. 19.465-0-PE – STJ – 6ª Turma – Rel. Ministro Luiz Vicente Cernichiaro –<br />

julgado em 30.jun.92 – provido – votação unânime – DJU, Seç. 1, (3.ago.1992) – RT n. 692 (jun/1993), p.<br />

335.<br />

324<br />

Apelação criminal n. 17.306-8-Curitiba – TJPR – 2ª Câmara Criminal – Rel. Desembargador Lima<br />

Lopes – julga<strong>da</strong> em 14.mai.92 – não-conheci<strong>da</strong> – votação unânime – RT n. 695 (set/1993), p. 373.<br />

325<br />

Habeas corpus n. 66.734-1-SP – STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Carlos Madeira – julgado em<br />

18.nov.88 – ordem concedi<strong>da</strong> para que o tribunal a quo aprecie o mérito do recurso – votação unânime –<br />

DJU, Seç. 1 (10.fev.89) – RT n. 649 (nov/1989), p. 352.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

correntes a solução correta, a ativi<strong>da</strong>de devolutiva <strong>da</strong> audiência processual penal, por seu<br />

caráter residual, não justificaria uma análise pormenoriza<strong>da</strong>.<br />

Quanto à ativi<strong>da</strong>de de documentação, é ela instrumental de to<strong>da</strong>s as outras, na<br />

medi<strong>da</strong> em que, até enquanto administra a audiência, o juiz pode sentir a necessi<strong>da</strong>de de<br />

documentar alguma deliberação sua. Da mesma maneira enquanto instrui o processo,<br />

recebe a crítica <strong>da</strong>s partes técnicas e decide. A administração <strong>da</strong> audiência envolve,<br />

enfim, a documentação dos atos nela praticados. Isso porque, evidentemente, não há<br />

método de documentação que seja completamente isento de defeitos e que não reclame,<br />

vez por outra, a intervenção do juiz, para corrigi-los.<br />

Há, na atitude de selecionar quatro <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s na audiência, uma<br />

conveniência didática e uma estratégica, por assim dizer.<br />

objeto.<br />

A primeira é óbvia: facilitar o estudo <strong>da</strong> audiência processual penal, delimitando-lhe o<br />

A conveniência estratégica está liga<strong>da</strong> ao estudo <strong>da</strong> audiência e do procedimento, no<br />

processo penal, com o objetivo de encontrar um referencial para a crítica do próprio<br />

processo penal. Neste passo, o estudo dos sistemas processuais penais – acusatório e<br />

inquisitório – desempenha papel relevante.<br />

É o que se procurará implementar no estudo <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s em<br />

audiência.<br />

A questão topográfica, por assim dizer, de disposição <strong>da</strong>s matérias no trabalho, é algo<br />

que não tem importância transcendental. Porém, cumpre justificar a ordenação <strong>da</strong><br />

matéria.<br />

Assim, o critério dessa ordenação, antes de mais na<strong>da</strong>, é cronológico. Abre-se a<br />

análise <strong>da</strong> audiência pela ativi<strong>da</strong>de administrativa. Isso se justifica porque ela, ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa, é a primeira que se manifesta, permeando todo o momento processual até<br />

o seu final.<br />

Também se justifica o estudo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória logo após o <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa. Coordenando os trabalhos <strong>da</strong> audiência, a preocupação mais imediata do<br />

juiz é com desenvolver ativi<strong>da</strong>de instrutória. Tão grande é essa preocupação que se vê<br />

amiúde na doutrina a utilização do termo instrução criminal como sinônimo de processo<br />

penal condenatório.<br />

To<strong>da</strong>via, pelos problemas particulares que suscita, preferiu-se separar a ativi<strong>da</strong>de<br />

instrutória propriamente dita, de colheita de provas, <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória lato sensu,<br />

forma<strong>da</strong> no procedimento pelo interrogatório do acusado. Nesse ato processual, situado<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

em momentos diversos, o juiz se instrui, mas não necessariamente recolhe material<br />

probatório. Daí a razão pela qual se preferiu cindir a análise <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória em<br />

lato sensu e stricto sensu, referindo-se aquela ao interrogatório e esta à colheita de<br />

provas propriamente dita.<br />

O exame <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> audiência sucede o <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória também<br />

por razões cronológicas, embora aquela não suce<strong>da</strong>, necessariamente, esta.<br />

Nos processos penais de perfil acusatório, a ativi<strong>da</strong>de crítica permeia,<br />

ver<strong>da</strong>deiramente, a ativi<strong>da</strong>de instrutória. É o que ocorre no sistema <strong>da</strong> direct-cross-re-<br />

examination, em que a parte técnica alega enquanto inquire. Esse motivo, porém, não é<br />

suficiente para inverter-se a ordem natural, até porque a ativi<strong>da</strong>de crítica tende a atuar por<br />

sobre o material probatório, produzido ou não em audiência.<br />

Por fim, analisar-se-á a ativi<strong>da</strong>de decisória <strong>da</strong> audiência processual penal, como<br />

coroamento de to<strong>da</strong>s as outras. É ela que, induvidosamente, constitui-se na síntese real<br />

de to<strong>da</strong> a dinâmica <strong>da</strong> audiência, coroando o respeito a to<strong>da</strong>s as regras e princípios<br />

aplicáveis a esse momento processual.<br />

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Currículo<br />

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Capítulo 1<br />

A ativi<strong>da</strong>de administrativa na audiência processual penal<br />

Seção A<br />

Conceitos<br />

Boa parte <strong>da</strong> doutrina processual penal, ao enfrentar o tema dos poderes do juiz que<br />

não apresentem característica instrutória ou decisória, a mais <strong>da</strong>s vezes influencia<strong>da</strong> pelo<br />

art. 251 do CPP, limita-se a analisar-lhes os poderes-deveres disciplinares e os poderesdeveres<br />

de cui<strong>da</strong>do para com a regulari<strong>da</strong>de do processo penal.<br />

A fim de exemplificar, é o que se percebe em HÉLIO TORNAGHI que, ao se referir ao<br />

dever de impor o que é Direito em ca<strong>da</strong> caso, afirma que “para chegar a esse fim o juiz<br />

provê à regulari<strong>da</strong>de do processo, mantém a ordem no curso dos respectivos atos e usa<br />

<strong>da</strong> força pública, se necessário”. 326<br />

O magistério de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO também apresenta essa mesma<br />

característica: “Incumbe (...) ao magistrado: a) prover à regulari<strong>da</strong>de do processo<br />

(ativi<strong>da</strong>de de natureza processual); b) manter a ordem no curso dos respectivos atos,<br />

podendo, inclusive, requisitar a força pública (ativi<strong>da</strong>de de natureza administrativa)”. 327<br />

De igual maneira, a análise <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa na audiência processual penal<br />

brasileira vem correntemente associa<strong>da</strong> à ativi<strong>da</strong>de estritamente instrutória, como se<br />

percebe “nas entrelinhas” <strong>da</strong> lição de EDUARDO ESPÍNOLA FILHO: “Não se limita (...) ao<br />

pronunciamento <strong>da</strong> decisão a função do juiz no processo, mas toma uma atitude de<br />

direção ativa, desde quando a queixa ou denúncia lhe é apresenta<strong>da</strong> até passar em<br />

julgado a sentença (...). To<strong>da</strong> a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes é submeti<strong>da</strong> à apreciação e<br />

controla<strong>da</strong> pelo juiz (...). E, ain<strong>da</strong> nesse ponto, a sua função vai além <strong>da</strong> fiscalização <strong>da</strong><br />

ação desenvolvi<strong>da</strong> pelas partes; se lhe é nega<strong>da</strong>, e muito bem (...) a facul<strong>da</strong>de de<br />

proceder ex-officio, instaurando a ação penal (...) é-lhe faculta<strong>da</strong> a maior liber<strong>da</strong>de de<br />

iniciativa, na promoção de todos os meios de prova, aptos a fornecerem um<br />

esclarecimento completo e perfeito <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de”. 328<br />

É possível desde já concluir, provisoriamente, que a análise <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa na audiência processual penal padece desses dois vícios: de um lado, a<br />

doutrina salienta demasia<strong>da</strong>mente os aspectos propriamente disciplinares e de cui<strong>da</strong>do<br />

326<br />

TORNAGHI, Hélio. A relação…, p. 141.<br />

327<br />

TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 2, p. 432.<br />

328 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 3, n. 534, p. 236.<br />

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com a regulari<strong>da</strong>de do processo por parte do juiz criminal; de outro, confunde-a com a sua<br />

ativi<strong>da</strong>de investigatória.<br />

O menor dos vícios, diga-se a bem <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, é o primeiro. O segundo é mais grave<br />

porque confunde conceitos. A ativi<strong>da</strong>de investigatória do juiz não configura ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa, mas sim instrutória, sendo precisamente esse um dos aspectos mais<br />

relevantes do processo penal brasileiro que, na<strong>da</strong> obstante seja formalmente acusatório,<br />

tem predominante cunho inquisitório. É o que se denomina, impropriamente, de “sistema<br />

misto”. 329 Por tal razão, a ativi<strong>da</strong>de instrutória supletiva do juiz, ou “princípio <strong>da</strong><br />

investigação”, como quer JORGE FIGUEIREDO DIAS, 330 deve ser estu<strong>da</strong><strong>da</strong> dentro <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de instrutória lato sensu <strong>da</strong> audiência processual penal.<br />

O primeiro vício, conforme dito, faz crer que a ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz, na<br />

audiência processual penal, é basicamente disciplinar, formado por poderes-deveres<br />

estabelecidos em um sentido puramente negativo, de coação, de limitação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong>s partes, a fim de garantir a ordem e a paz dos trabalhos realizados, bem como<br />

poderes-deveres de ordem estritamente processual, de cui<strong>da</strong>do com a ocorrência de<br />

nuli<strong>da</strong>des que impossibilitem a prolatação de sentença de mérito eficaz. Não é.<br />

A esse respeito, é exemplar a lição de JOSÉ ALBERTO DOS REIS que, a par de registrar<br />

o aspecto puramente disciplinar <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz, deixa antever alguma<br />

coisa de positiva, de construtiva nessa ativi<strong>da</strong>de: “os poderes de disciplina do juiz visam<br />

coordenar e inspecionar a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes, estimulando-a quando deficiente, e<br />

reprimindo-a quando excessiva”. 331<br />

De fato, uma grande parte <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal<br />

diz com a manutenção <strong>da</strong> ordem e com a regulari<strong>da</strong>de do processo. Contudo, para JOSÉ<br />

ALBERTO DOS REIS, a ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal há de ter algo<br />

de positivo; há de ter algo de construtivo.<br />

Assim, prefere-se definir a ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal<br />

329<br />

Cf. a elegante definição do impropriamente denominado “sistema misto“ em ALMEIDA, Joaquim<br />

Canuto Mendes de. Processo…, p. 118: “Os tipos mistos são aqueles em que a forma acusatória não<br />

absorve a inquisitorie<strong>da</strong>de judicial; ou aqueles que, desdobrados em fases, as contém de tipos diferentes”.<br />

330<br />

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 148: “(...) com o ‘princípio <strong>da</strong> investigação’ pretende-se<br />

traduzir antes o poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para<br />

além <strong>da</strong>s contribuições <strong>da</strong> acusação ou <strong>da</strong> defesa, o ‘facto’ sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as<br />

bases necessárias à sua decisão. (...) pode-se também designá-lo corretamente por princípio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

material”.<br />

331<br />

REIS, José Alberto dos. Comentários ao Código de Processo Civil português, 1946, v. 3, p. 12, apud<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 13.<br />

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como sendo a função desenvolvi<strong>da</strong> pelo juiz de preparação e direção dos trabalhos<br />

desenvolvidos na audiência processual penal; engloba ela a manutenção <strong>da</strong> ordem, a<br />

adequação <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de ao caso, a fomentação <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas<br />

(de molde a propiciar uma decisão justa) e, por fim, a documentação dos atos processuais<br />

penais praticados, afim de permitir reexame por outro órgão jurisdicional. Os aspectos<br />

jurídicos e políticos desse conceito serão retomados adiante.<br />

Alguns conceitos relevantes também devem ser fixados desde já, a fim de uma melhor<br />

compreensão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa desenvolvi<strong>da</strong> na audiência processual penal.<br />

A primeira noção é a de agente político. Segundo HELY LOPES MEIRELLES, “agentes<br />

políticos são os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em<br />

cargos, funções, man<strong>da</strong>tos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou<br />

delegação para o exercício de atribuições constitucionais. Esses agentes atuam com<br />

plena liber<strong>da</strong>de funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e<br />

responsabili<strong>da</strong>des próprias, estabeleci<strong>da</strong>s na Constituição e em leis especiais. Não são<br />

funcionários públicos em sentido estrito, nem se sujeitam ao regime estatutário comum.<br />

Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase judiciais,<br />

elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com<br />

independência nos assuntos de sua competência”. 332<br />

Ain<strong>da</strong> segundo HELY LOPES MEIRELLES, os juízes são agentes políticos do Estado. 333<br />

Isso porque exercem função tipicamente jurisdicional quando decidem um caso concreto,<br />

no coroamento de um processo regular. São funções complementares a essa função<br />

típica – sem as quais esta não existe – as de administrar o processo e instruírem-se ou<br />

serem instruídos.<br />

Conforme o grande MIGUEL SEABRA FAGUNDES, “o ato jurisdicional, que se denomina<br />

especificamente sentença, é aquele através do qual o Estado define e determina<br />

situações jurídicas individuais com o fim de remover, pela definitiva interpretação do<br />

direito, conflito surgido a propósito de sua aplicação. (...) Este conceito decorre<br />

naturalmente do <strong>da</strong> função jurisdicional. (...) A sentença contém dois elementos<br />

inseparavelmente ligados: a constatação <strong>da</strong> controvérsia e a sua solução ou decisão. (...)<br />

332<br />

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito…, p. 67-68.<br />

333<br />

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito…, p. 69. Cf., em idêntico sentido, CRETELLA JÚNIOR, José.<br />

Direito…, p. 484.<br />

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Na falta de qualquer um deles não existirá o ato jurisdicional”. 334<br />

O órgão do Ministério Público também é um agente político do Estado porque exerce,<br />

com exclusivi<strong>da</strong>de, a ação penal pública: a característica de ser o titular exclusivo do<br />

único veículo para a aplicação do Direito Penal, soma<strong>da</strong> à inércia <strong>da</strong> jurisdição, dá-lhe a<br />

mesma natureza jurídica inerente ao juiz.<br />

É dentro <strong>da</strong> perspectiva de uma ativi<strong>da</strong>de complementar à jurisdição e exerci<strong>da</strong> por<br />

um agente político do Estado, que a ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual<br />

penal deve ser compreendi<strong>da</strong>. Essa perspectiva terá relevantes conseqüências.<br />

Outro aspecto conceitual importante, que deve ser logo fixado, diz com o do poder<br />

discricionário, aplicado às ativi<strong>da</strong>des desempenha<strong>da</strong>s pelo juiz no processo.<br />

Sendo o juiz, conforme visto, um agente político do Estado, sua ativi<strong>da</strong>de e a maneira<br />

pela qual interpreta e aplica a lei, faz com que não tenha sentido se falar, com relação a<br />

ele, em poder discricionário.<br />

O juiz, nas ativi<strong>da</strong>des administrativa, instrutória e decisória <strong>da</strong> audiência processual<br />

penal, não exerce poder discricionário de qualquer espécie. Todos os seus poderes são,<br />

ao mesmo tempo, deveres e vice-versa: por isso serão sempre denominados poderes-<br />

deveres.<br />

Por essa razão, to<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de de que dispõe na opção de interpretações possíveis <strong>da</strong><br />

lei faz parte de seu poder como agente político do Estado. Nesse mister, o juiz deve<br />

imbuir-se dos fins mesmos do Estado, a fim de aplicar as leis desse mesmo Estado aos<br />

casos concretos. Por tais razões, parece não ter cabimento vislumbrar parcela de poder<br />

discricionário em qualquer momento <strong>da</strong> atuação do juiz. Sua posição política como<br />

aplicador, por assim dizer, original <strong>da</strong> lei, faz com que possa interpretá-la de forma<br />

integrativa.<br />

Cabem aqui as lições de PLAUTO FARACO DE AZEVEDO: “ao juiz incumbe a missão de<br />

individualizar de modo apropriado a lei aos casos concretos. Para isto, tem o magistrado<br />

que abrir-se ao mundo ao invés de fechar-se no código e no exoterismo lógico-formal. É<br />

preciso que tenha claro que os códigos e os conceitos jurídicos estão no mundo, mas não<br />

são o mundo. Uns e outros existem para ordenar adequa<strong>da</strong>mente a vi<strong>da</strong>-intersubjetiva,<br />

apenas justificando-a na medi<strong>da</strong> em que servem a essa destinação. Não se pode<br />

pretender, por isso mesmo, que se sobreponham à vi<strong>da</strong>”. 335<br />

334<br />

Cf. FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle…, p. 97.<br />

335<br />

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica…, p. 70-71.<br />

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O ilustre filósofo do Direito acrescenta que “nessa perspectiva o trabalho do jurista e<br />

do juiz precisa ser criativo. (...) Se tiver se preparado para ser criativo, não precisará<br />

esperar passivamente a modificação <strong>da</strong>s leis para exercer na plenitude suas funções, até<br />

porque, como é fartamente sabido e vivenciado pelo povo e pelos juristas brasileiros, não<br />

se pode identificar a multiplicação <strong>da</strong>s leis ao progresso do direito”. 336<br />

É de ver, porém, que “criativi<strong>da</strong>de”, aqui, não equivale a invenção. O juiz não está<br />

autorizado a <strong>da</strong>r ao Direito uma interpretação pessoal, muitas vezes influencia<strong>da</strong> por<br />

ideologia própria, e criar normas contrárias ao que o ordenamento jurídico vigente dispõe.<br />

O juiz não pode sair com soluções de algibeira. Não foi eleito para tanto. Contudo, sua<br />

interpretação <strong>da</strong> lei não tem o mesmo caráter <strong>da</strong> interpretação de qualquer outro servidor<br />

público, que pode ter poder discricionário, mas limitado às duas ou três opções <strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

pela lei.<br />

Com efeito, o dizer-se que o juiz é um agente político do Estado, aliado à identificação<br />

de uma potencial e legítima criativi<strong>da</strong>de em seu poder jurisdicional dispensam qualquer<br />

raciocínio em torno de um conceito como o de poder discricionário.<br />

Na prática, isso quer dizer que os verbos colocados na lei na forma imperativa para o<br />

juiz ali estão, exatamente ao mesmo tempo, em forma autorizativa. Ao revés, os verbos<br />

autorizadores, quando dirigidos ao mesmo juiz, também são imperativos. Basta dizer, com<br />

relação a ele, que seus atos – salvo os meramente ordinatórios – serão motivados,<br />

consoante determina o art. 93, inciso IX, <strong>da</strong> Constituição. Tendo os juízes que justificarem<br />

sempre e sempre suas decisões, o órgão jurisdicional superior poderá revê-las, através<br />

<strong>da</strong> mera substituição de um juízo por outro juízo, realiza<strong>da</strong> pela reelaboração mental dos<br />

argumentos do juiz a quo.<br />

Discricionarie<strong>da</strong>de dos atos judiciais somente se poderia falar – e mesmo assim<br />

prudentemente – no que diz com o Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, e ain<strong>da</strong> assim quando<br />

reunido em sessão plenária, caso em que suas decisões não estariam sujeitas ao<br />

reexame por qualquer órgão jurisdicional, mas apenas a um controle político pelos<br />

Poderes Executivo e Legislativo.<br />

A missão do juiz não é desimportante: deve ele aplicar o direito ao caso concreto,<br />

presentando o Estado. Para tanto, interpreta seus fins, com legitimi<strong>da</strong>de política e<br />

competência jurídica para fazê-lo. É o quanto basta para estabelecer, juridicamente, os<br />

limites de sua ativi<strong>da</strong>de jurisdicional.<br />

336 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica…, p. 74.<br />

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Seção B<br />

Caracteres<br />

§ 1º Natureza jurídica<br />

A natureza jurídica <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz na audiência processual penal<br />

não é exatamente administrativa, como poderia à primeira vista parecer. Ou, antes: não é<br />

“administrativa” no sentido estrito <strong>da</strong> designação. É mais política do que propriamente<br />

administrativa.<br />

O termo “administrativa”, nesse caso, não implica, estritamente, em ativi<strong>da</strong>de sujeita<br />

ao regramento administrativo. As naturezas jurídicas de ca<strong>da</strong> ato do juiz no sentido de<br />

administrar a audiência processual penal não correspondem, necessariamente, à de ato<br />

administrativo, na<strong>da</strong> obstante sejam, materialmente, atos de administração, de<br />

coordenação <strong>da</strong> relação processual. Colocando a questão em termos mais claros, trata-se<br />

de um conceito funcional.<br />

Não resta dúvi<strong>da</strong>s de que o juiz, ao presidir a audiência processual penal, administra a<br />

justiça criminal, exercendo, pois, função administrativa. Ao presentar o Estado na função<br />

de dizer o direito em casos concretos, tudo o que não for propriamente jurisdicional em<br />

seus atos será administrativo. Como sua atuação se verifica no seio de um processo,<br />

seus atos ganham a coloração de atos processuais; materialmente, porém, grande parte<br />

dessa ativi<strong>da</strong>de é administrativa.<br />

To<strong>da</strong>via, como tudo o que acontece no seio do processo penal é, de certa maneira,<br />

abarcado pelo Direito Processual Penal, não teria sentido tratar de to<strong>da</strong>s as ativi<strong>da</strong>des<br />

nele desenvolvi<strong>da</strong>s como processuais. Isso configuraria redundância absolutamente<br />

improdutiva.<br />

Dessa maneira, a opção foi designar ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des pelo que possuíam de<br />

predominante em termos operativos. A ativi<strong>da</strong>de do juiz ao presidir a audiência é, pois,<br />

administrativa.<br />

O termo “diretiva”, em substituição a “administrativa”, <strong>da</strong>ria uma conotação excessiva<br />

aos poderes do juiz. Afinal, ele não dirige a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes técnicas. Não orienta<br />

nem corrige as ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s pelo órgão do Ministério Público ou pelo<br />

advogado. A rigor, numa estrutura democrática de audiência, os poderes administrativos<br />

do juiz são, veramente, de coordenação. “Administrar”, por significar menos que “dirigir”, é<br />

mais apropriado à espécie.<br />

Dentro dessa ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência, titulariza<strong>da</strong> pelo juiz, poderes-<br />

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deveres de diversas naturezas se alternam. Os poderes disciplinares são os que<br />

primeiramente aparecem, porque tratados pela lei processual penal.<br />

Esses poderes disciplinares, de estrita manutenção <strong>da</strong> ordem dos trabalhos, são<br />

funcionalmente negativos. Implica isso em dizer que não são negativos no sentido<br />

valorativo, mas apenas no sentido funcional, pois não operam no sentido <strong>da</strong> construção,<br />

<strong>da</strong> evolução, <strong>da</strong> adição de <strong>da</strong>dos novos à audiência, senão no caminho <strong>da</strong> repressão dos<br />

excessos. Ain<strong>da</strong> assim, porque necessários para a consecução dos trabalhos <strong>da</strong><br />

audiência, não poderiam ser dispensados.<br />

Ocorre, porém, que são superestimados.<br />

Rigorosamente falando, os poderes puramente disciplinares do juiz, na presidência<br />

dos trabalhos <strong>da</strong> audiência, somente atuam diante <strong>da</strong> concreta situação de abuso<br />

pratica<strong>da</strong> por quaisquer dos participantes <strong>da</strong> audiência processual penal. Além disso,<br />

atuam para, reprimindo, fazer voltar a audiência ao status quo em que se encontrava<br />

antes <strong>da</strong> prática do abuso. Seu titular não pode, valendo-se deles, impor subjugo às<br />

partes. Pe<strong>da</strong>gógicos, devem reprimir abusos que ten<strong>da</strong>m a desequilibrar a equação de<br />

poder <strong>da</strong> audiência; não mais.<br />

No processo penal brasileiro, presidido pela inquisição <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória,<br />

conforme adiante será visto, a ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal fica<br />

envulta<strong>da</strong> pela excessiva iniciativa conferi<strong>da</strong> ao juiz. Daí porque a ativi<strong>da</strong>de estritamente<br />

administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal, no seu aspecto positivo, dirije-se ao<br />

estímulo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas, a ser feita pelo juiz. Repita-se mais uma<br />

vez: a atuação positiva do juiz no sentido de instruir-se, para além <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes<br />

é, rigorosamente, ativi<strong>da</strong>de instrutória.<br />

Nesse particular, a ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz há de se fun<strong>da</strong>r nas enormes<br />

possibili<strong>da</strong>des que apresenta a diversi<strong>da</strong>de e o conflito, inerentes ao caso discutido na<br />

audiência.<br />

A fim de possibilitar que diversi<strong>da</strong>de e conflito dêem frutos cientificamente<br />

promissores, como o enriquecimento <strong>da</strong> linguagem do Direito Penal, por exemplo, a<br />

ativi<strong>da</strong>de administrativa há de fazer com que a orali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> audiência processual penal<br />

se a<strong>da</strong>pte às dimensões qualitativas e quantitativas do caso em julgamento. Em outras<br />

palavras, que a discussão se aprofunde (dimensão qualitativa) ou se esten<strong>da</strong> (dimensão<br />

quantitativa) dependendo do que exigirem os fatos em exame.<br />

Em termos concretos, percebendo que a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes não se<br />

aprofundou em aspectos relevantes do caso em julgamento, o juiz há de estimular as<br />

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partes a fazê-lo. Em percebendo que, na<strong>da</strong> obstante a profundi<strong>da</strong>de, as partes não<br />

conseguiram abarcar todos os aspectos <strong>da</strong> causa – ou, havendo conexi<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>s causas<br />

– em julgamento, deve conceder-lhes mais algum tempo, a título de esclarecimento<br />

especial.<br />

Dir-se-á que uma conclusão como essa não encontra base na lei processual penal<br />

brasileira, que somente tratou dos aspectos propriamente repressivos <strong>da</strong> administração<br />

exerci<strong>da</strong> pelo juiz.<br />

Com efeito, a lei processual penal brasileira acabou por centrar sua ativi<strong>da</strong>de<br />

propriamente administrativa no seu aspecto disciplinar. Isso ocorre justamente por causa<br />

<strong>da</strong> natureza prevalentemente inquisitória do processo penal brasileiro.<br />

To<strong>da</strong>via, é possível identificar essa ativi<strong>da</strong>de administrativa topicamente, como o faz<br />

ROGÉRIO LAURIA TUCCI com relação à tutela do direito de defesa do acusado: “tornam-se<br />

imprescindíveis (...) a concessão, ao acusado, ‘em geral’, <strong>da</strong> possibili<strong>da</strong>de de ampla<br />

defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes (sobretudo a técnica, realiza<strong>da</strong>,<br />

como visto, por um profissional dotado de conhecimento jurídico específico), numa<br />

autêntica pari<strong>da</strong>de de armas entre a acusação e a defesa”.<br />

337-338 De outra parte, embora não exista norma processual expressa a autorizá-lo, é<br />

possível também que o juiz, porque necessite de elementos para decidir no sentido <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de material, estimule, seja através <strong>da</strong> in<strong>da</strong>gação direta de questões não ou mal<br />

explora<strong>da</strong>s pelas partes, seja <strong>da</strong> pura e simples ampliação do tempo de duração dos<br />

debates orais, a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas na audiência processual penal.<br />

Desejável seria que, afastado <strong>da</strong> produção <strong>da</strong>s provas, a ativi<strong>da</strong>de administrativa do<br />

juiz se dirigisse também a isso, isto é, a coordenar a ativi<strong>da</strong>de probatória já, então,<br />

deferi<strong>da</strong> às partes técnicas. É o que a reforma processual penal italiana realizou,<br />

especificamente no campo <strong>da</strong> disciplina <strong>da</strong>s provas. 339<br />

Seja como for, a ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz há de estar volta<strong>da</strong>, a par <strong>da</strong><br />

repressão pura e simples, vez por outra necessária, <strong>da</strong> atuação <strong>da</strong>s partes técnicas, à<br />

337<br />

TUCCI, Rogério Lauria. Direitos…, p. 186.<br />

338<br />

Cf., no mesmo sentido, GRECO FILHO, Vicente. Manual…, p. 217: “Entre esses poderes que são<br />

também deveres, (...) podem ser enumerados (...) poder de velar pela defesa técnica e representação<br />

processual <strong>da</strong>s partes (...). O juiz, também, no júri pode declarar o réu indefeso, anulando o julgamento (art.<br />

479, V)”.<br />

339<br />

Cf., com detalhes, COMOGLIO, Luigi Paolo. “Prove ed accertamento dei fatti nel nuovo c.p.p.”, em<br />

RItDPPen, (1990), p. 113-147 e DE LUCA, Giuseppe. “Il sistema delle prove penali e il principio del libero<br />

convincimento nel nuovo rito”, em RItDPPen, (1992), p. 1.255-1.276.<br />

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ativação mesma <strong>da</strong> discussão do caso em julgamento.<br />

§ 2º A ativi<strong>da</strong>de administrativa e os “sistemas”<br />

a) sistema inquisitório<br />

A primeira característica <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa na audiência processual penal<br />

inquisitória é sua ver<strong>da</strong>deira comistão com as ativi<strong>da</strong>des instrutória e decisória.<br />

No processo de cunho inquisitório, o juiz administra a audiência exclusivamente em<br />

função de sua própria ativi<strong>da</strong>de instrutória. Mantém a ordem dos trabalhos porque precisa<br />

dela para investigar.<br />

Facilitam-lhe a direção dos trabalhos, de um lado, o segredo em que se desenvolvem<br />

e, de outro, a situação processual do imputado ver<strong>da</strong>deiro objeto de investigações. Sem<br />

publici<strong>da</strong>de e sem direitos, a ordem opressiva <strong>da</strong> audiência está virtualmente garanti<strong>da</strong>.<br />

Por outro lado, o juiz inquisidor não tem necessi<strong>da</strong>de de estimular quem quer que seja<br />

a uma ativi<strong>da</strong>de instrutória ou crítica mais apura<strong>da</strong>. O juiz inquisidor estimula-se a si<br />

próprio, o que é muito pouco. Ao contrário, tem a necessi<strong>da</strong>de, imposta pelo sistema, de<br />

desestimular a dialética, a discussão, de castrar to<strong>da</strong> a possibili<strong>da</strong>de de alternativi<strong>da</strong>de. O<br />

juiz inquisidor busca a totali<strong>da</strong>de e a univoci<strong>da</strong>de, exprimi<strong>da</strong>s pela sua sentença, na<br />

ver<strong>da</strong>de, o coroamento de investigações. Segundo FRANCO CORDERO, “De espectador<br />

impassível, que era, o juiz torna-se campeão do sistema, estirpando heresias ou<br />

solucionando delitos. Mutam as técnicas: não existe contraditório; obtém-se tudo<br />

secretamente; ao centro está, passivo, o inquirido; culpado ou não, sabe alguma coisa e é<br />

obrigado a dizê-la; a tortura estimula fluxos verbais coarctados. Dono do tabuleiro, o<br />

inquisidor elabora hipóteses em um quadro paranóico: nasce uma impura casuística <strong>da</strong>s<br />

confissões, algumas vezes obti<strong>da</strong>s com promessas de impuni<strong>da</strong>de. De fato, é um sistema<br />

legalmente amorfo: o segredo, o método introspectivo e o empenho ideológico dos<br />

operadores excluem vínculos, formas, termos; conta o êxito. Floresce uma retórica<br />

apologética, cujos argumentos se repetem, tais e quais, em lugares e tempos diversos”. 340<br />

Trata-se de um fenômeno interessante: havendo segredo no processo e estando o<br />

340 CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21. Trecho original: “Da spettatore impassibile, qual era, il<br />

giudice diventa campione del sistema, estirpi eresie o scovi delitti. Mutano le tecniche: non esiste<br />

contraddittorio; aviene tutto segretamente; al centro sta, passivo, l’inquisito; colpevole o no, sa qualcosa ed<br />

è obbligato a dirlo; la tortura stimola flussi verbali coatti. Padrone della scacchiera, l’inquisitore elabora<br />

ipotesi in un quadro paranoide: nasce un’impura casistica delle confessioni contro i correi, talvolta ottenute<br />

con promesse d’impunità. De facto, è un sistema legalmente amorfo: il segreto, quel metodo introspettivo e<br />

l’impegno ideologico degli operatori escludono vincoli, forme, termini; conta l’esito. Fiorisce una retorica<br />

apologetica i cui argomenti risuonano, tali e quali, in luoghi e tempi diversi”.<br />

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imputado em posição de sujeição aos poderes do juiz, a ativi<strong>da</strong>de administrativa é<br />

virtualmente envulta<strong>da</strong> pela sua absorvente e incontrastável ativi<strong>da</strong>de instrutória. Nessa<br />

situação o inquisidor mais do que nunca possui, mas praticamente não precisa usar seus<br />

poderes disciplinares.<br />

Num processo misto, como o brasileiro, em que há publici<strong>da</strong>de e partes no sentido<br />

formal, a experiência dos poderes-deveres disciplinares do juiz cresce em importância.<br />

Por razões muito simples isso ocorre. De um lado, porque a publici<strong>da</strong>de e a existência<br />

de partes expõem, naturalmente, a ativi<strong>da</strong>de do juiz à crítica. De outro, porque o juiz já<br />

não encontra, num processo misto, a obediência e passivi<strong>da</strong>de que outrora dispusera em<br />

um processo inquisitório.<br />

A manutenção de excessiva parcela de poderes-deveres instrutórios, ou<br />

investigatórios, por outro lado, faz com que a ativi<strong>da</strong>de disciplinar acabe sendo toma<strong>da</strong><br />

pela ativi<strong>da</strong>de propriamente administrativa <strong>da</strong> audiência, o que é incorreto e perigoso ao<br />

processo penal democrático.<br />

b) sistema acusatório<br />

No sistema acusatório, ao contrário do sistema inquisitório, avulta a experiência de<br />

uma ativi<strong>da</strong>de propriamente administrativa do juiz, embora, no conjunto, esse mesmo juiz<br />

perca poderes.<br />

Por uma razão muito simples: afastado <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> prova, o juiz adquire mais<br />

tempo para dirigir, efetivamente, os trabalhos do julgamento e nesse sentido apuram-se<br />

seus sentidos. Ain<strong>da</strong> que não o queira, sua posição privilegia<strong>da</strong>, alia<strong>da</strong> à subtração de<br />

parte de seus poderes, confere-lhe a condição concreta e mental de árbitro do conflito.<br />

Sua função passa a ser, rigorosamente, a de velar pela correção e justeza <strong>da</strong>s<br />

ativi<strong>da</strong>des instrutória e crítica <strong>da</strong>s partes. Em outras palavras, de velar pelo efetivo<br />

equilíbrio <strong>da</strong> relação processual penal. “No ritual acusatório”, segundo FRANCO CORDERO,<br />

“o processo é pura operação técnica: um êxito vale outro, desde que corretamente obtido;<br />

notamos como as regras são tudo; seria um abuso distorcê-las por uma finali<strong>da</strong>de<br />

justificável. Esse modelo ideologicamente neutro reconhece um só valor: fair play”.<br />

341-342 341<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 100-101. Trecho original: “Nel rituale accusatorio il processo è<br />

pura operazione tecnica: un esito vale l’altro, purché correttamente ottenuto; abbiano notato come le regole<br />

siano tutto; sarebbe abuso distorcerle a fini buoni. Questo modello ideologicamente neutro riconosce un solo<br />

valore: fair play”.<br />

342<br />

Cf., acerca do conceito de fair play (literalmente, “jogo bonito”, ou “jogo limpo”), RADBRUCH,<br />

Gustav. El espíritu…, p. 27-30.<br />

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Como no processo puramente acusatório avulta em importância a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s<br />

partes técnicas, há também maior espaço para a construtivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal.<br />

Quanto ao processo penal anglo-americano, a propósito, é de ser feita uma distinção<br />

no que se refere à ativi<strong>da</strong>de administrativa. No caso inglês, <strong>da</strong>do que o sistema, mais do<br />

que em regras legais ou constitucionais, está entronizado na cultura do povo e <strong>da</strong>s<br />

autori<strong>da</strong>des encarrega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> jurisdição, a ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz é mais ampla e<br />

incisiva. O juiz inglês orienta os jurados de maneira que pareceria perigosamente<br />

enformadora por qualquer jurista dos Estados Unidos: adverte-os de que determina<strong>da</strong>s<br />

decisões pareceriam absur<strong>da</strong>s, mostra-lhes o chamado obter dictum, explica-lhes os<br />

stan<strong>da</strong>rds, etc. Foi na Inglaterra, por exemplo, que surgiram as regras destina<strong>da</strong>s a<br />

regular a recusa de jurados pelas partes técnicas. Foi nesse país, ao tempo dos<br />

julgamentos pelos crimes de terrorismo, que foram cria<strong>da</strong>s regras destina<strong>da</strong>s a evitar,<br />

através <strong>da</strong> recusa peremptória de jurados pelas partes técnicas, fossem manipulados os<br />

julgamentos pelo tribunal do júri. 343<br />

§ 3º Princípios e regras<br />

a) publici<strong>da</strong>de<br />

O princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de enforma a ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz na audiência<br />

processual penal. É ele que dá à ativi<strong>da</strong>de o estrito caráter de ativi<strong>da</strong>de de coordenação<br />

do dissenso.<br />

Pode-se afirmar com alguma segurança que é precisamente o princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de<br />

que, limitando os poderes-deveres do juiz, tende a garantir às partes tratamento<br />

igualitário. Isso porque, visando a ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz a estabelecer um<br />

equilíbrio substancial entre as partes técnicas, está claro que em sendo realiza<strong>da</strong> à vista<br />

do público, há uma fiscalização desse objetivo politicamente legítimo.<br />

É de EDUARDO J. COUTURE a lição: “A justiça oral e pública consiste em poder realizar<br />

de viva voz este alto mister de decidir a sorte dos conci<strong>da</strong>dãos. As vantagens <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de não podem ser postas em dúvi<strong>da</strong>. De tempos em tempos, quando se debatem<br />

estas coisas, se repete o aforismo de Mirabeau: não temo os juízes, nem os mais abjetos,<br />

nem os mais depravados, nem mesmo os meus inimigos, se é que sua justiça devem<br />

343 Cf., a respeito do tema, LLOYD-BOSTOCK, Sally e THOMAS, Cheryl. “Decline of the ‘Little<br />

Parliament’: Juries and Jury Reform in England and Wales”, em Law & Contemporary Problems, n. 62<br />

(1999), p. 7-40.<br />

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fazê-la em presença do povo. Todos sabemos bem que o povo é o juiz dos juízes”. 344<br />

b) presidenciali<strong>da</strong>de<br />

A ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal é titulariza<strong>da</strong> pelo juiz. No<br />

inquérito policial, analogamente, pelo delegado de polícia, a “autori<strong>da</strong>de policial” a que se<br />

refere o CPP. Nisso consiste o princípio – <strong>da</strong> presidenciali<strong>da</strong>de – aplicado à ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal.<br />

A conseqüência, não sem importância, é de que a administração <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal é ativi<strong>da</strong>de exclusivamente judicial: não delegável, portanto, a qualquer<br />

dos outros atores desse momento processual.<br />

A presidenciali<strong>da</strong>de, no que respeita especificamente ao juiz, é determina<strong>da</strong> pela<br />

natureza jurídica <strong>da</strong> função de agente político que ele, no processo, exerce. Sua atuação<br />

deve ser orienta<strong>da</strong> politicamente pelos mesmos valores que orientam o Estado de Direito.<br />

No caso do delegado de polícia, a ativi<strong>da</strong>de administrativa é orienta<strong>da</strong> no sentido <strong>da</strong><br />

obtenção cautelar dos elementos de convicção para o exercício <strong>da</strong> opinio delicti e para a<br />

ativi<strong>da</strong>de instrutória, bem como para outros objetivos secundários e eventualmente<br />

afastáveis, como a manutenção do sigilo <strong>da</strong>s investigações.<br />

c) orali<strong>da</strong>de<br />

A orali<strong>da</strong>de é o princípio processual mais firmemente afetado pela ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa desenvolvi<strong>da</strong> pelo juiz na audiência processual penal.<br />

Conforme já ficou referido, a orali<strong>da</strong>de tem o potencial de flexibilizar a audiência,<br />

a<strong>da</strong>ptando-a ao caso em julgamento, efeito que a escritura absolutamente não possui.<br />

Essa característica faz com que, através <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, a ativi<strong>da</strong>de administrativa<br />

desenvolvi<strong>da</strong> na audiência sirva para a<strong>da</strong>ptar o instrumento ao objeto, isto é, a audiência<br />

aos fatos.<br />

E isso não apenas no aspecto puramente temporal <strong>da</strong> audiência. A flexibilização do<br />

tempo de duração <strong>da</strong> audiência é apenas o aspecto mais saliente dessa influência. É<br />

possível afirmar que, através <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, o juiz pode administrar a audiência no sentido<br />

344 COUTURE, Eduardo J. Estudios de derecho procesal civil, Buenos Aires: 1948, t. 1, p. 153, apud<br />

CARNEIRO, Athos Gusmão. Audiência…, p. 19-20. Trecho original: “La justicia oral y pública consiste em<br />

poder realizar de viva voz este alto menester de decidir la suerte de los conciu<strong>da</strong><strong>da</strong>nos. Las ventajas de la<br />

publici<strong>da</strong>d no pueden ser puestas en du<strong>da</strong>. Ca<strong>da</strong> tanto tiempo, cuando se debaten estas cosas, se repite el<br />

famoso aforismo de Mirabeau: no le temo a los jueces, ni a los más abyetos, ni a lo más depravados, ni a<br />

mis mismos enemigos, si es que su justicia deben hacerla en presencia del pueblo. Todos sabemos bien<br />

que el pueblo es el juez de los jueces”.<br />

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de aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes para aspectos que necessitem de<br />

melhor equacionamento.<br />

§ 4º Ritualismo<br />

a) no inquérito policial<br />

Qualquer audiência no inquérito policial, por se realizar no seio de um procedimento<br />

puramente inquisitório, possui exatamente as características que ele apresenta. A<br />

autori<strong>da</strong>de policial é, no rigor do termo, o único sujeito do procedimento.<br />

A autori<strong>da</strong>de policial que preside o inquérito policial tem consideráveis poderesdeveres<br />

instrutórios. Eles somente são suspensos pelos poderes-deveres judiciais, nas<br />

hipóteses legal e constitucionalmente reserva<strong>da</strong>s a essa apreciação, como no caso em<br />

que seja necessário decretar a prisão provisória do indiciado, buscar e apreender algum<br />

elemento de prova etc. Além disso, o delegado de polícia atua em segredo, por injunção<br />

legal (CPP, art. 20, caput), e dispõe do indiciado como objeto de investigações, embora o<br />

indiciado tenha direitos de cariz constitucional e legal frente ao próprio delegado. Assim,<br />

os poderes-deveres propriamente administrativos <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial, nas audiências<br />

que preside no inquérito policial, vêm confundidos com seus amplos poderes-deveres<br />

investigatórios.<br />

Na audiência que preside, a autori<strong>da</strong>de policial é a única parte, ao menos no sentido<br />

formal. Como o procedimento é secreto, de regra o trabalho <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial se<br />

desenvolve melhor estando o imputado, que é um mero objeto de investigações, preso<br />

provisoriamente. Daí se afirmar que a autori<strong>da</strong>de policial tem tantos poderes-deveres<br />

instrutórios que, a rigor, sequer necessita exercer ativi<strong>da</strong>de propriamente disciplinar;<br />

quanto à ativi<strong>da</strong>de administrativa no seu sentido positivo, de estímulo à ativi<strong>da</strong>de crítica<br />

<strong>da</strong>s partes, a sinceri<strong>da</strong>de se impõe: ou porque não há partes, em sentido formal, ou<br />

porque ao inquérito policial contam apenas os resultados, esse estímulo usualmente não<br />

interessa à autori<strong>da</strong>de policial; antes, atrapalha-a. 345<br />

Mesmo sendo assim, a autori<strong>da</strong>de policial terá de admitir ao menos a fiscalização<br />

eventualmente exercitável pelo órgão do Ministério Público e pelo advogado do imputado.<br />

Quanto ao órgão do Ministério Público, é preciso que fique claro que seus poderes-<br />

345 Discute-se muito, especialmente na doutrina estadunidense, a respeito do eventual dever <strong>da</strong> polícia<br />

de buscar provas no interesse <strong>da</strong> defesa. Cf., a respeito, NORTON, Jerry E. “Discovery in the Criminal<br />

Process”, em The Journal of Criminal Law, Criminology and Police Science, n. 61 (1970), p. 11-38;<br />

EVERETT, Robinson O. “Discovery in Criminal Cases – In Search of a Stan<strong>da</strong>rd”, em Duke Law Journal,<br />

(1964), p. 477-517.<br />

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deveres de “controle externo” <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial, criados pelo<br />

ordenamento constitucional e regulados pela legislação complementar e ordinária, não<br />

excluem a presidência do inquérito policial <strong>da</strong> pessoa do delegado.<br />

Isso porque o controle exercido sobre as ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial é<br />

meramente externo e tem conteúdo legalmente tipificado. Tanto a Lei Orgânica Nacional<br />

do Ministério Público (Lei n. 8.625/93, arts. 10, inciso IX, 25, inciso VI, 26, incisos III e IV,<br />

41, incisos VI, letra “b”, VIII e IX) quanto a Lei Orgânica do Ministério Público <strong>da</strong> União<br />

(Lei Complementar n. 75/93, arts. 7º, incisos II e III, 9º e 10) definem e delimitam o<br />

conteúdo dessa intervenção. Além disso, a polícia judiciária tem atribuições exclusivas<br />

nessa espécie de ativi<strong>da</strong>de investigatória, por força dos § 1º, inciso IV e § 4º, ambos do<br />

art. 144 <strong>da</strong> Constituição.<br />

O poder-dever de requisição do Ministério Público se exerce antes ou depois de fin<strong>da</strong>s<br />

as investigações, na forma <strong>da</strong> lei. Perceba-se, por fim, que as leis orgânicas se referem<br />

ao acompanhamento do inquérito policial pelo órgão do Ministério Público (Lei n.<br />

8.625/93, art. 10, inciso IX, letra “e”; Lei Complementar n. 75/93, art. 49, inciso XV, letra<br />

“e”). Como não há contraditório no inquérito, só é possível se pensar nesse<br />

acompanhamento como simples presença física, instrumental de uma melhor formação<br />

<strong>da</strong> opinio delicti. Entender-se diferentemente – isto é, que o acompanhamento implicaria<br />

em constante intervenção do órgão ministerial – implicaria em violar o próprio regramento<br />

constitucional, em prejuízo <strong>da</strong>s prerrogativas investigatórias <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial.<br />

Atualmente, o Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> limita a participação do Ministério Público às<br />

hipóteses legais, cujo principal exemplo é o art. 47 do CPP. 346<br />

Relativamente à participação do advogado, é preciso fazer uma digressão, eis que a<br />

questão está umbilicalmente liga<strong>da</strong> à <strong>da</strong> existência ou não de contraditório no inquérito<br />

policial.<br />

As tentativas de defender a existência de contraditório e ampla defesa no inquérito<br />

policial, antes 347 e depois 348 do surgimento do inciso LV do art. 5º <strong>da</strong> Constituição, não<br />

resistem a uma análise breve. Esse dispositivo constitucional fala em litigantes e em<br />

acusados: o indiciado em inquérito policial não está a litigar com quem quer que seja nem<br />

346<br />

Recurso de habeas corpus n. 66.176-SC – STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Carlos Madeira – julgado<br />

em 26.abr.88 – improvido – votação unânime – RTJ n. 130, p. 1.053-1.054.<br />

347<br />

Cf. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios…, p. 187-217.<br />

348<br />

Cf. TUCCI, Rogério Lauria. “Devido processo penal e alguns de seus mais importantes corolários”,<br />

em TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo…, p. 25-29.<br />

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é, ain<strong>da</strong>, acusado <strong>da</strong> prática de crime; é simplesmente objeto de investigações pela<br />

autori<strong>da</strong>de policial. O inciso LV do art. 5º <strong>da</strong> Constituição não modificou a estrutura<br />

inquisitiva desse instrumento de investigações. Esse é o entendimento predominante no<br />

Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong> 349 e no Superior <strong>Tribunal</strong> de Justiça. 350<br />

Tornando ao tema <strong>da</strong> fiscalização <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de policial pelo advogado, ela não é<br />

menos importante que a exerci<strong>da</strong> pelo órgão do Ministério Público e deve ser tolera<strong>da</strong><br />

pela autori<strong>da</strong>de policial, se exerci<strong>da</strong>, naturalmente, nos limites <strong>da</strong> lei. O art. 7º, inciso XIV,<br />

<strong>da</strong> Lei n. 8.906, de quatro de julho de 1994, é expresso no sentido de autorizar o<br />

advogado a, no interior de qualquer repartição policial e mesmo sem procuração,<br />

examinar autos de flagrante e de inquérito, findos ou não, ain<strong>da</strong> que conclusos à<br />

autori<strong>da</strong>de policial, com a possibili<strong>da</strong>de de copiar peças e de tomar anotações.<br />

A característica inquisitória do inquérito policial, contudo, impede que a submissão <strong>da</strong><br />

autori<strong>da</strong>de policial à fiscalização externa possa ter características criadoras.<br />

b) nos procedimentos comuns<br />

A ativi<strong>da</strong>de administrativa exerci<strong>da</strong> nas audiências do procedimento ordinário pleno<br />

vem confundi<strong>da</strong>, um tanto, com a ativi<strong>da</strong>de instrutória.<br />

Com efeito, a ativi<strong>da</strong>de administrativa nas audiências realiza<strong>da</strong>s no procedimento<br />

ordinário pleno, desde o interrogatório até a oitiva <strong>da</strong> última <strong>da</strong>s testemunhas, é envulta<strong>da</strong><br />

pelos também formidáveis poderes instrutórios do juiz.<br />

Neste caso, porém, ao contrário do que ocorre com o processo inquisitório, de que é<br />

exemplo o inquérito policial, no procedimento ordinário pleno o juiz não opera em segredo<br />

e tem, diante de si, sujeitos <strong>da</strong> relação processual penal.<br />

Esses dois ingredientes tornam mais explícitos os poderes-deveres disciplinares do<br />

juiz nessas audiências. Com eles, tornam-se mais ocorrentes situações de efetivo<br />

inconformismo <strong>da</strong>s partes técnicas para com os ideais de justiça que do juiz. Por causa<br />

dessas situações, é provável que ele, juiz, sinta-se mais estimulado a reprimi-las. Daí a<br />

importância do juiz não se conformar com esses poderes-deveres disciplinares. Deve<br />

estimular, na medi<strong>da</strong> do possível e cui<strong>da</strong>ndo para preservar sua própria imparciali<strong>da</strong>de, a<br />

ativi<strong>da</strong>de instrutória <strong>da</strong>s partes. Cabe ao juiz, por exemplo, destituir o defensor <strong>da</strong>tivo e<br />

349<br />

Habeas corpus n. 69.372-SP – STF – 1ª Turma – Rel. Ministro Celso de Mello – julgado em<br />

22.set.92 – ordem nega<strong>da</strong> – votação unânime – DJU, Seç. 1 (7.mai.93), p. 8.328.<br />

350<br />

Recurso de habeas corpus n. 1.393-RJ – STJ – 5ª Turma – Rel. Ministro Assis Toledo – julgado em<br />

2.set.91 – improvido – votação unânime – DJU, Seç. 1, (23.set.91), p. 13.088.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

nomear outro para o acusado, se perceber desídia na condução <strong>da</strong> defesa. Também cabe<br />

ao juiz interromper a audiência, a pedido do defensor ou por iniciativa própria, se perceber<br />

que dois ou mais acusados, defendidos por um mesmo profissional, têm interesses<br />

defensivos conflitantes uns com os outros.<br />

Por outro lado, como as diversas audiências que se podem verificar no procedimento<br />

ordinário pleno não possuem a característica <strong>da</strong> concentração, isto é, nelas não se decide<br />

a causa, a ativi<strong>da</strong>de administrativa positiva do juiz, de estimular a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s<br />

partes técnicas se atenua quase ao ponto de desaparecer.<br />

No procedimento sumário em sentido estrito acrescentam-se alguns elementos à<br />

ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal.<br />

Se de um lado o juiz que preside as audiências processuais penais realiza<strong>da</strong>s durante<br />

o procedimento sumário em sentido estrito dispõe, ain<strong>da</strong>, de amplos poderes-deveres<br />

instrutórios, bem como de partes e de ampla publici<strong>da</strong>de, há um elemento novo: nesse<br />

procedimento há ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes na audiência principal, de instrução e<br />

julgamento, conforme dispõe o § 2º do art. 538 e o § 2º do art. 539, ambos do CPP.<br />

Assim, nessa audiência de instrução (parcial) e julgamento, o juiz deve conviver com a<br />

ativi<strong>da</strong>de instrutória complementar e com a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas. Nesse<br />

momento, as partes técnicas fazem alegações de mérito. Por essa razão, ao juiz, no<br />

sentido de aproximar-se <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, é também <strong>da</strong>do o poder-dever de estimular a<br />

ativi<strong>da</strong>de crítica desenvolvi<strong>da</strong> pelas partes técnicas.<br />

c) no procedimento especial do júri<br />

Da<strong>da</strong>s suas características dicotômicas – predominantemente inquisitório na fase de<br />

formação <strong>da</strong> culpa e predominantemente acusatório na sessão de julgamento – o<br />

procedimento especial do júri merece uma análise à parte.<br />

Efetivamente, as audiências de instrução <strong>da</strong> fase de formação <strong>da</strong> culpa guar<strong>da</strong>m,<br />

mutatis et mutandis, as mesmas características de quaisquer <strong>da</strong>s audiências realiza<strong>da</strong>s<br />

durante os procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido estrito, excetua<strong>da</strong>, quanto<br />

a este, a audiência de instrução e julgamento.<br />

Quanto à sessão de instrução e julgamento, predominantemente acusatória, a<br />

ativi<strong>da</strong>de propriamente administrativa do juiz ganha uma importância inédita.<br />

A razão é evidente: não tendo o ônus <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória, o juiz pode dedicar-se<br />

ao mister de administrar o contraditório <strong>da</strong>s partes técnicas durante a sessão de<br />

julgamento.<br />

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Currículo<br />

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No caso do procedimento especial do júri no processo penal brasileiro, a ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa do juiz tem um inconveniente. As regras de tramitação do procedimento<br />

especial do júri, especialmente na fase do juízo <strong>da</strong> causa, são extremamente complexas,<br />

o que torna assaz delica<strong>da</strong> a atuação judicial no sentido de organizar a sessão de<br />

instrução e julgamento. Para tanto, basta conferir o número de regras legais existentes no<br />

CPP relativas à organização <strong>da</strong> sessão e à sua realização e a detalhes que bem<br />

poderiam ser excluídos <strong>da</strong> lei.<br />

Além disso, a preocupação do juiz passa a ser a de evitar a causação de nuli<strong>da</strong>des,<br />

mais do que freqüentes e de facílima ocorrência, sejam decorrentes <strong>da</strong> atuação dele<br />

próprio, sejam decorrentes <strong>da</strong> atuação <strong>da</strong>s partes técnicas, dos jurados ou mesmo de<br />

qualquer auxiliar <strong>da</strong> justiça.<br />

Por outro lado, também inibe a ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz um excessivamente<br />

amplo conceito de cerceamento que delineou-se na apreciação do trabalho <strong>da</strong>s partes<br />

técnicas durante a sessão de instrução e julgamento. A par <strong>da</strong> complexi<strong>da</strong>de desse<br />

momento processual, tem o juiz o temor de, interferindo na atuação de qualquer <strong>da</strong>s<br />

partes técnicas, cerceá-las, ferindo de morte a higidez do momento processual.<br />

Por tais razões, a plenitude <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz que preside a sessão<br />

de instrução e julgamento permanece, por assim dizer, em estado de potência. Com isso,<br />

seu aspecto construtivo não se demonstra de maneira plena. E, dentro desse aspecto<br />

construtivo, a atuação didática do juiz-presidente, tão comum em outros sistemas<br />

processuais, 351 também é limita<strong>da</strong>.<br />

Assim, o procedimento especial do júri do processo penal brasileiro,<br />

predominantemente acusatório em sua última fase, viabiliza uma ativi<strong>da</strong>de administrativa<br />

do juiz muito mais intensa e potencialmente criadora do que nos procedimentos comuns.<br />

Não há termos de comparação com a atuação análoga <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial na ativi<strong>da</strong>de<br />

administrativa realiza<strong>da</strong> durante momentos processuais do inquérito policial.<br />

Ain<strong>da</strong> assim, contudo, algumas características procedimentais e de hermenêutica de princípios<br />

constitucionais como o <strong>da</strong> ampla defesa, somente para se ficar com dois exemplos, inibem uma<br />

ativi<strong>da</strong>de que poderia ser mais construtiva e orienta<strong>da</strong> para uma sentença justa.<br />

351<br />

Cf., sobre as obrigações didáticas do juiz-presidente do escabinado alemão em COLOMER, Juan-<br />

Luiz Gomes. El proceso…, p. 231-239.<br />

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Currículo<br />

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Seção C<br />

Fun<strong>da</strong>mento político<br />

Conforme ficou claro pelo exame do ordenamento processual penal brasileiro, a<br />

ativi<strong>da</strong>de administrativa desenvolvi<strong>da</strong> pelo juiz, na audiência processual penal, adquiriu<br />

um perfil excessivamente negativo.<br />

Comprova-se essa assertiva ao perceber-se que os poderes de administração do juiz,<br />

na dicção do CPP, por seus arts. 251 e 794, parecem se resumir ao poder-dever de fazer<br />

manter-se a ordem <strong>da</strong> audiência, determinando que seus eventuais espectadores<br />

permaneçam em silêncio (CPP, art. 795, caput)e excluindo do local os recalcitrantes e<br />

prendendo os que resistirem à exclusão (CPP, art. 795, parágrafo único).<br />

Especificamente quanto à audiência, JOSÉ FREDERICO MARQUES arrola alguns desses<br />

poderes: “impedir a interferência do defensor no interrogatório (art. 187); determinar a<br />

condução do ofendido, de testemunhas e do próprio réu (arts. 201, 218 e 260); recusar<br />

perguntas <strong>da</strong>s partes às testemunhas, que não tenham relação com o processo, ou<br />

importem em repetição de outras já respondi<strong>da</strong>s (art. 212); não permitir que a testemunha<br />

manifeste apreciação subjetiva não inseparável <strong>da</strong> narrativa do fato (art. 213); (…) punir o<br />

jurado faltoso (art. 443); comunicar ao procurador-geral o não comparecimento do<br />

promotor ao júri (art. 448, parágrafo único), e ao Conselho <strong>da</strong> Ordem dos Advogados do<br />

Brasil, a falta, sem escusa legítima, do defensor ou curador do réu (art. 450); advertir e<br />

punir jurados que se comuniquem com outros, ou que manifestem sua opinião sobre a<br />

causa (art. 457, § 1º); impedir que tumultuem os debates do júri, e punir os faltosos (art.<br />

483); (...) regular os debates do júri e man<strong>da</strong>r retirar <strong>da</strong> sala o réu que dificultar o livre<br />

curso do julgamento (art. 497, ns. III e VI); ‘evitar verbiagem inútil’ (art. 538, § 2º)”. 352-353<br />

A idéia central deste capítulo é demonstrar que, na dialética de poder que se verifica<br />

na audiência, a função judicial de administrá-la vai muito além <strong>da</strong> repressão propriamente<br />

dita, no caso, dos abusos dos outros participantes <strong>da</strong> audiência, ou <strong>da</strong>s irregulari<strong>da</strong>des<br />

que viciem o processo.<br />

Trata-se de uma constatação mais do que simples. Há audiências perfeitas sob o<br />

aspecto disciplinar, audiências calmas, perfeitamente ordena<strong>da</strong>s, mas que não se<br />

prestam à descoberta <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de material. Embora essas audiências contem com<br />

participantes conscientes <strong>da</strong> disciplina e obedientes às regras de trato lhano entre as<br />

352<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 13.<br />

353<br />

Cf., quanto ao poder de polícia <strong>da</strong> audiência processual civil, CARNEIRO, Athos Gusmão.<br />

Audiência…, p. 39-45.<br />

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partes, falta-lhes alguma coisa a mais. Dir-se-á que lhes falta emoção, vi<strong>da</strong>? Falta-lhes<br />

partes engaja<strong>da</strong>s? Talvez falte-lhes mais, talvez falte-lhes menos. Da mesma maneira<br />

quanto ao aspecto do cui<strong>da</strong>do do juiz com a regulari<strong>da</strong>de formal do processo: embora<br />

necessário, não resta dúvi<strong>da</strong>, esse cui<strong>da</strong>do permeia to<strong>da</strong>s as outras ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

audiência: a instrução, a crítica e a decisão haverão de ser processualmente regulares.<br />

Daí porque esse cui<strong>da</strong>do do juiz – de certa maneira dividido também entre as partes<br />

técnicas – não suscita maiores in<strong>da</strong>gações.<br />

A ver<strong>da</strong>de é que, diante de um quadro de uma audiência processual penal apenas<br />

regular sob o aspecto formal e ordena<strong>da</strong> e pacifica<strong>da</strong>, mas imprópria à busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

material, há de atuar algum poder maior de estímulo, de construção: esse poder está<br />

embutido na ativi<strong>da</strong>de administrativa e é titularizado pelo juiz.<br />

O estudo <strong>da</strong> evolução histórica do processo penal e, conseqüentemente, <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal, revela que há, entre outras, uma direção nessa evolução: percebe-se<br />

niti<strong>da</strong>mente que ambos evoluíram no sentido <strong>da</strong> profissionalização <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

jurisdicional. 354<br />

Das assembléias populares do processo penal greco-romano, em seu início, e do<br />

processo bárbaro, evoluiu-se para um processo dominado pelo juiz profissional. Essa<br />

evolução, combina<strong>da</strong> com a idéia de repressão a certas criminali<strong>da</strong>des, também gerou a<br />

acentuação de poderes inquisitórios desse mesmo juiz profissional, que será estu<strong>da</strong><strong>da</strong><br />

adiante.<br />

Um estudo breve dos movimentos dessa evolução faz ver que faltam critérios<br />

razoáveis na paulatina exclusão <strong>da</strong> participação popular na administração <strong>da</strong> justiça<br />

criminal. O que deveria ser guiado por injunções puramente estatísticas (de fato, a<br />

hegemonia <strong>da</strong> participação popular nessa administração não é economicamente viável) 355<br />

passou a sê-lo por outros valores, alguns inconfessáveis.<br />

Presentemente, a questão <strong>da</strong> legitimi<strong>da</strong>de política <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa<br />

desenvolvi<strong>da</strong> na audiência processual penal deve partir de uma premissa, que diz com a<br />

caracterização do órgão responsável por essa ativi<strong>da</strong>de: o juiz.<br />

Se o juiz é, efetivamente, um agente político do Estado, sua ativi<strong>da</strong>de deve estar<br />

354 Cf., sobre aspectos mais gerais desse movimento de centralização, FARIA, José Eduardo.<br />

Eficácia…, p. 40-58.<br />

355 Cf., acerca <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de de critérios puramente estatísticos para o estabelecimento <strong>da</strong><br />

competência do tribunal do júri, RAMOS, João Gualberto Garcez. “O Júri como instrumento de efetivi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> reforma penal”, em JBC, n. 33 (1994), p. 47-48 e em RT, n. 699 (jan/1994), p. 283-288.<br />

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orienta<strong>da</strong> para os fins desse mesmo Estado. Caso contrário, não teria sentido essa<br />

conceituação.<br />

Verificando os fins do Estado brasileiro, percebe-se que, conforme o art. 3º <strong>da</strong><br />

Constituição, são os de “construir um socie<strong>da</strong>de livre, justa e solidária (...) garantir o<br />

desenvolvimento nacional (...) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as<br />

desigual<strong>da</strong>des sociais e regionais (...) promover o bem de todos, sem preconceitos de<br />

origem, raça, sexo, cor, i<strong>da</strong>de e quaisquer outras formas de discriminação”.<br />

Abstraindo, por ora, aqueles objetivos puramente administrativos, que estariam de<br />

certa maneira afastados dos poderes-deveres concretos do juiz criminal, mas que são<br />

objetivos dele também, posto que mais afastados, percebe-se que não é pequena sua<br />

missão enquanto agente político do Estado.<br />

Aproximando-se mais do fenômeno do processo penal, dispõe também a<br />

Constituição, em seu art. 1º, que, entre outros, é fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> República Federativa do<br />

Brasil o pluralismo político.<br />

Eis aí a sede do fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa do juiz, num sentido<br />

construtivo.<br />

Com efeito, para além dos poderes-deveres estritamente negativos do juiz, sua<br />

ativi<strong>da</strong>de administrativa, na audiência processual penal, enquanto agente político do<br />

Estado, é a de fomentar a discussão, a dialética processual em torno do caso e em torno<br />

do próprio poder-dever punitivo.<br />

A função administrativa do juiz e, ao mesmo tempo, a sua legitimação política,<br />

conforme será visto adiante, está no poder-dever de coordenar, construtivamente, o<br />

pluralismo processual, propiciando que do conflito construa-se uma decisão justa. Um<br />

argumento irrespondível para essa visão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal é o de que a experiência política tem demonstrado que é impossível<br />

pretender administrar os conflitos somente através de ações negativas, de coerção ou<br />

castração. 356 É institucionalmente necessário que a administração <strong>da</strong> audiência seja<br />

também construtiva.<br />

Por amor à própria sobrevivência, os poderes de administração <strong>da</strong> audiência não<br />

356 Cf. conceito de castração em WARAT, Luis Alberto. A ciência…, p. 16-18: “A castração é sobretudo<br />

a po<strong>da</strong> de um desejo. (...) À primeira vista, a castração revela-se, passivamente, como uma falta, uma<br />

insuficiência, um vazio. É essa representação camufla<strong>da</strong> <strong>da</strong> castração que nos faz submergir nos suntuosos<br />

anacronismos <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des completas. (...) Pelo seu lado ativo, a castração <strong>da</strong> linguagem é um modo de<br />

fechar nossos olhos, pelo pavor do distinto, a tudo que não é conjuntamente verossímil e consagrado<br />

culturalmente. (...) Ela é uma armadilha prepara<strong>da</strong> ao desejo, petrificando o seu processo”.<br />

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poderiam jamais ser somente negativos. A ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência é,<br />

outrossim, positiva, <strong>da</strong>do que é, rigorosamente, manifestação de poder, valendo, para ela,<br />

a precisa lição de MICHEL FOUCAULT: “Quando se define os efeitos do poder pela<br />

repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica desse mesmo poder; identifica-se o<br />

poder a uma lei que diz não. O fun<strong>da</strong>mental seria a força <strong>da</strong> proibição. Ora, creio ser esta<br />

uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo<br />

aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer<br />

não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que<br />

seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de<br />

fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se<br />

considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do<br />

que uma instância negativa que tem por função reprimir”. 357<br />

Assim, a ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual penal possui, além dos<br />

poderes-deveres estritamente repressivos, seu aspecto positivo, de criação, de estímulo<br />

dirigido à ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes, no sentido de vivificar uma ver<strong>da</strong>deira democracia<br />

processual, 358 tarefa que, repita-se ain<strong>da</strong> uma vez, é precípua do juiz enquanto agente<br />

político do Estado.<br />

Outro aspecto dessa construtivi<strong>da</strong>de, umbilicalmente ligado à administração do<br />

conflito, diz com a instrumentali<strong>da</strong>de do processo penal e, em linha de conseqüência, <strong>da</strong><br />

audiência processual penal. Trata-se de um aspecto não menos importante, mas pouco<br />

explorado pela doutrina processual penal e diz com o poder-dever do juiz, dentro <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência de, valendo-se <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, adequá-la à busca <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de material.<br />

Em outras palavras, há de existir na audiência uma ativi<strong>da</strong>de tendente a, dentro dos<br />

limites legais e <strong>da</strong> flexibili<strong>da</strong>de que a orali<strong>da</strong>de proporciona, adequá-la à necessi<strong>da</strong>de de<br />

reconstituir a ver<strong>da</strong>de histórica representa<strong>da</strong> pelo crime. Essa ativi<strong>da</strong>de titulariza-a o juiz,<br />

no exercício <strong>da</strong> direção dos trabalhos, seja no sentido negativo – coerção <strong>da</strong> atuação <strong>da</strong>s<br />

partes – seja no sentido positivo – adequação <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> audiência aos fatos em<br />

julgamento.<br />

Assim, além de manter a ordem <strong>da</strong> audiência processual penal, o juiz tem o poder-<br />

357<br />

FOUCAULT, Michel. “Entrevista: Ver<strong>da</strong>de e poder”, em Microfísica…, p. 7-8.<br />

358<br />

Cf. conceito de democracia em SILVA, José Afonso <strong>da</strong>. Curso…, p. 112: “A democracia é um<br />

processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente,<br />

pelo povo e em proveito do povo”.<br />

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dever de abreviá-la, ou estendê-la, bem como de estimular a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes<br />

técnicas, à medi<strong>da</strong> em que sinta necessi<strong>da</strong>de disso, para uma melhor apreciação <strong>da</strong><br />

causa. No caso de verificar que um dos aspectos <strong>da</strong> causa não foi convenientemente<br />

explorado pelas partes, deve estimulá-las a fazê-lo, como a dizer-lhes: – Convençam-me!<br />

Em resumo, o juiz tem o poder-dever de, administrando o pluralismo – representado<br />

pela polari<strong>da</strong>de entre acusação e defesa – realizar uma audiência processual penal<br />

concretamente adequa<strong>da</strong> à busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de material do respectivo caso concreto.<br />

Eis aí os fun<strong>da</strong>mentos políticos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de administrativa <strong>da</strong> audiência processual<br />

penal.<br />

Pelo exame dos sistemas processuais, percebe-se que a ativi<strong>da</strong>de administrativa tem<br />

características profun<strong>da</strong>mente diversas em se tratando do sistema acusatório ou do<br />

sistema inquisitório.<br />

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Capítulo 2<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória na audiência processual penal<br />

Seção A<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória stricto sensu<br />

§ 1º Conceitos<br />

É possível definir-se a ativi<strong>da</strong>de instrutória <strong>da</strong> audiência processual penal como sendo<br />

a atuação, <strong>da</strong>s partes técnicas ou do juiz, tendente acolher elementos úteis à solução <strong>da</strong><br />

causa.<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória stricto sensu, ou probatória, <strong>da</strong> audiência processual penal, por<br />

sua vez, diz com a ativi<strong>da</strong>de de produção de provas, também indispensáveis à solução do<br />

caso. O interrogatório do acusado, por sua vez, configura uma ativi<strong>da</strong>de instrutória lato<br />

sensu, na medi<strong>da</strong> em que não visa à produção de provas, mas de meros elementos de<br />

convicção, para o atendimento, por exemplo, dos deveres impostos pelo art. 59 do CP.<br />

Por suscitar problemas específicos, será analisado à parte.<br />

Neste passo, é conveniente invocar diferentes classificações <strong>da</strong>s provas, para os fins<br />

de facilitar a compreensão <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória desenvolvi<strong>da</strong> na audiência processual<br />

penal.<br />

A primeira classificação a ser registra<strong>da</strong> é a de NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA.<br />

Segundo esse autor, três devem ser os critérios de classificação <strong>da</strong> prova: conteúdo<br />

(ou objeto) sujeito e forma.<br />

Quanto ao primeiro critério, a prova pode ser direta ou indireta, conforme se refira<br />

imediata ou mediatamente ao fato que seja objeto <strong>da</strong> reconstituição histórica por parte do<br />

processo.<br />

Quanto ao sujeito, a prova há de ser pessoal ou real, conforme emane de um ser<br />

humano ou de uma coisa.<br />

Por fim, quanto à forma, a prova pode ser testemunhal, documental ou material. 359<br />

Outra classificação importante e talvez mais promissora, sob o aspecto científico, que<br />

a de NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA, é a de FRANCESCO CARNELUTTI.<br />

Esse autor classificou as provas a partir de dois critérios, quais sejam, o <strong>da</strong> função e o<br />

<strong>da</strong> estrutura <strong>da</strong> prova. Quanto à função, FRANCESCO CARNELUTTI classificou as provas em<br />

históricas e críticas; quanto à estrutura, em pessoais e reais.<br />

A classificação quanto à estrutura é simples e idêntica à que NICOLA FRAMARINO DEI<br />

359 MALATESTA, Framarino dei. Lógica…, v. 1, p. 139-140.<br />

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Currículo<br />

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MALATESTA identificou como sendo relativa ao sujeito. É superior em sua designação, na<br />

medi<strong>da</strong> em que é inaceitável ver-se uma coisa como “sujeito” <strong>da</strong> prova.<br />

A classificação quanto à função, ao contrário, é promissora num estudo acerca <strong>da</strong><br />

audiência processual penal.<br />

Explica-a FRANCESCO CARNELUTTI: “Para saber se o imputado cometeu o delito, o juiz,<br />

entre outras coisas, escuta os testemunhos, os quais lhe narram havê-lo visto roubar, ou<br />

bem confronta com suas impressões digitais as pega<strong>da</strong>s observa<strong>da</strong>s sobre a coisa<br />

rouba<strong>da</strong>; observemos agora a diferença entre esses dois casos. O juiz reconstitui, através<br />

do testemunho, a pessoa que aquele viu roubar, ou seja, trata de obter seu retrato falado;<br />

o que o testemunho procura é, portanto, uma imagem do fato a provar; na<strong>da</strong> disto tudo,<br />

ao contrário, ocorre no outro caso, em que as impressões digitais observa<strong>da</strong>s sobre a res<br />

furtiva não suscitam na mente do juiz nenhuma imagem, mas somente lhe proporcionam<br />

um termo de comparação. Tal diferença se formula dizendo que algumas provas têm e<br />

outras não têm eficácia representativa do fato aprovar; as primeiras se chamam provas<br />

históricas, as segun<strong>da</strong>s provas críticas”.<br />

360-361 Importante, ain<strong>da</strong>, é a observação de FRANCESCO CARNELUTTI acerca <strong>da</strong> base <strong>da</strong><br />

diversi<strong>da</strong>de dessas duas espécies de provas. Trata-se, segundo esse autor, do conceito<br />

de representação, que determina, entre as provas históricas e críticas, “sua idonei<strong>da</strong>de<br />

para suscitar na mente do juiz, direta ou indiretamente, mediante a figura ou o discurso,<br />

que são as duas espécies do conceito, a imagem do fato a provar, o que precisamente se<br />

diz representar, no sentido de fazer presente o que é passado ou distante”. 362<br />

A classificação de FRANCESCO CARNELUTTI será útil, mais que a de NICOLA FRAMARINO<br />

DEI MALATESTA, para estu<strong>da</strong>r o desenvolvimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória na audiência<br />

360<br />

CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 1, p. 300. Trecho original: “Para saber si el imputado ha<br />

cometido el delito, el juez, entre otras cosas, escucha a los testigos, los cuales la narran haberlo visto robar,<br />

o bien confronta con sus impresiones digitales las huellas observa<strong>da</strong>s sobre la cosa roba<strong>da</strong>; observemos<br />

ahora la diferencia entro estos dos casos. El juez se hace describir por el testigo la persona que aquél ha<br />

visto robar, o sea que trata de obtener de él su retrato hablado; lo que el testimonio procura es, pues, una<br />

imagen del hecho a probar; na<strong>da</strong> de todo esto, en cambio, ocurre en el otro caso, en el que las huellas<br />

observa<strong>da</strong>s sobre la res furtiva no suscitan en la mente del juez ninguna imagen, sino que solamente le<br />

proporcionan un término de comparación. Tal diferencia se formula diciendo que algunas pruebas tienen y<br />

otras no tienen eficacia representativa del hecho a probar; las primeras se llaman pruebas históricas, las<br />

segun<strong>da</strong>s pruebas críticas”.<br />

361<br />

Cf. redefinição <strong>da</strong>s duas classes de provas propostas por FRANCESCO CARNELUTTI em CORDERO,<br />

Franco. Procedura…, p. 517-518.<br />

362<br />

CARNELUTI, Francesco. Lecciones…, v. 1, p. 301. Trecho original: “su idonei<strong>da</strong>d para suscitar en la<br />

mente del juez, directa ou indirectamente, mediante la figura o el discurso, que son las dos especies del<br />

concepto, la imagen del hecho a probar, lo que precisamente se dice representar en el sentido de hacer<br />

presente lo que es pasado o distante”.<br />

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Currículo<br />

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processual penal.<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória mais freqüentemente desenvolvi<strong>da</strong> em audiência processual<br />

penal é a colheita de depoimentos orais – prova histórica quanto à função e pessoal<br />

quanto à estrutura, conforme FRANCESCO CARNELUTTI – sejam esses depoimentos orais<br />

partidos do próprio imputado, sejam partidos de testemunhas ou do próprio ofendido.<br />

No processo penal brasileiro, se esses depoimentos orais partem do imputado, são<br />

prestados no bojo do interrogatório, que possui características rituais próprias, merecendo<br />

um exame específico.<br />

Caso não partam do próprio imputado, o método de colheita <strong>da</strong>s declarações é<br />

sempre o mesmo.<br />

Contudo, há ain<strong>da</strong> que diferençar, conceituando, as testemunhas propriamente ditas e<br />

o ofendido pelo crime.<br />

Tradicionalmente, testemunha é, lato sensu, aquela pessoa que conhece os fatos,<br />

com maior ou menor número de detalhes, tendo adquirido essa ciência direta ou<br />

indiretamente. 363<br />

Segundo GIOVANNI LEONE, testemunho é “a declaração de ciência de um fato<br />

determinado, parti<strong>da</strong> de pessoa diversa <strong>da</strong>s partes e concernente ao acertamento sobre o<br />

qual caminha o processo”. 364<br />

Segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES, “prova testemunhal é a que se obtém com o<br />

depoimento oral sobre fatos que se contém no litígio penal”. 365<br />

O produto desse exame é denominado depoimento. 366 Sua produção em juízo, na<br />

presença e à disposição, para exame pela parte técnica que não o requereu, produz<br />

prova testemunhal.<br />

Não é senão uma característica acidental <strong>da</strong> testemunha, que usualmente não a<br />

363<br />

Cf. as antigas definições de praxistas portugueses, váli<strong>da</strong>s para o Direito <strong>da</strong>s ordenações, como: a)<br />

MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA LOBÃO: “As testemunhas (...) são pessoas que se fazem chamar a juízo, para<br />

declarar o que elas sabem sobre a ver<strong>da</strong>de dos fatos contestados entre partes: e a declaração que elas<br />

fazem, é o seu testemunho”; b) JOAQUIM INÁCIO RAMALHO: “Testemunha é a pessoa chama<strong>da</strong> a juízo para<br />

declarar o que sabe a respeito do fato controverso, ou coisa duvidosa”; c) JOAQUIM JOSÉ CAETANO PEREIRA E<br />

SOUSA: “Testemunhas são as provas consistentes em palavras de quem não é parte na causa, mas só de<br />

viva voz e jura<strong>da</strong>s”; d) FRANCISCO DE PAULA BATISTA: “Chamam-se testemunhas as pessoas que vêm a juízo<br />

depor sobre fato controvertido”.<br />

364<br />

LEONE, Giovanni. Trattato…, p. 240. Trecho original: “la dichiarazione di scienza di un fatto<br />

determinato concernente l’accertamento su cui verte il processo, resa <strong>da</strong> persona diversa <strong>da</strong>lle parti”.<br />

365<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 335.<br />

366 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 335.<br />

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descaracteriza como tal, 367 a de não ter interesse econômico, pessoal, psicológico ou de<br />

outra natureza em transmitir exatamente o que tem conhecimento.<br />

Outro conceito deveras relevante, quando se trata <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> prova testemunhal,<br />

é o de ofendido. Segundo a definição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “ofendido<br />

ou vítima é o sujeito passivo <strong>da</strong> infração. (...) é quem sofre a ação violatória <strong>da</strong> norma<br />

penal”. 368<br />

A oitiva do ofendido, no processo penal de cunho condenatório, reveste-se de<br />

características importantes que, se não justificam uma análise à parte, como ocorre com o<br />

interrogatório, aconselham destaque.<br />

A colheita do depoimento de uma testemunha denomina-se inquirição. À colheita de<br />

mais de um depoimento, na mesma situação de tempo e lugar, para fins de confrontação<br />

imediata, não só do conteúdo, como também <strong>da</strong> forma com que esse depoimento foi<br />

<strong>da</strong>do, reserva-se a denominação de acareação.<br />

É o que leciona JOSÉ FREDERICO MARQUES, ao escrever que “acareação é o ato<br />

probatório pelo qual se confrontam pessoas que prestaram depoimentos divergentes: é<br />

um depoimento em conjunto”. 369<br />

O processo penal brasileiro possui, ain<strong>da</strong>, outros conceitos importantes, no terreno <strong>da</strong><br />

prova testemunhal. Um deles é o de testemunha referi<strong>da</strong>: “testemunha referi<strong>da</strong> é aquela<br />

menciona<strong>da</strong> no depoimento de outra testemunha: àquela se dá o nome de testemunha<br />

referente”. 370<br />

O perito, seja ele oficial ou não, 371 quando inquirido em juízo, para fins de aclarar<br />

laudos ou autos, é ver<strong>da</strong>deira e própria testemunha. Ou seja: está submetido ao exame<br />

do juiz e <strong>da</strong>s partes técnicas e tem o dever de esclarecer quaisquer pontos dos laudos<br />

que porventura tenha subscrito.<br />

367<br />

Cf. CARNELUTTI, Francesco. Principi…, p. 192.<br />

368<br />

TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 3, p. 291.<br />

369<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 343.<br />

370<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 341.<br />

371<br />

Seja oficial ou não, o perito é considerado funcionário público, para os fins penais. Cf. Inquérito n.<br />

364-6(Queixa-crime)-MT – STF – Pleno – Rel. Ministro Oscar Corrêa – julgado em 28.abr.88 – julga<strong>da</strong><br />

extinta a punibili<strong>da</strong>de, pela decadência – votação unânime – DJU, Seção 1 (20.mai.88) – RT, n. 631<br />

(mai/1988), p. 347.<br />

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§ 2º Caracteres<br />

a) a ativi<strong>da</strong>de instrutória e os “sistemas”<br />

1. sistema inquisitório<br />

Conforme já ficara claro anteriormente, no estudo do processo penal e <strong>da</strong> respectiva<br />

audiência no sistema inquisitório, a ativi<strong>da</strong>de instrutória fica totalmente deferi<strong>da</strong> ao juiz.<br />

É ele o único ver<strong>da</strong>deiro responsável pela produção <strong>da</strong> prova, até porque o processo<br />

inquisitório não dispõe de partes, em sentido formal.<br />

Essa característica leva ao que FRANCO CORDERO denomina de amorfismo do<br />

processo inquisitório, que apenas se preocupa com o sucesso <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória: 372<br />

os meios, através <strong>da</strong> manipulação retórica propicia<strong>da</strong> pelo livre convencimento, 373 são<br />

justificados diante dos fins, geralmente ligados à repressão a certa criminali<strong>da</strong>de.<br />

Já no processo penal misto há publici<strong>da</strong>de e partes em sentido formal. Daí porque a<br />

tendência é dividir a ativi<strong>da</strong>de instrutória entre todos os participantes técnicos <strong>da</strong><br />

audiência processual penal: o juiz e as partes técnicas.<br />

Nesse caso, o juiz já não dispõe de total gerência sobre a prova, pois divide-a,<br />

mantendo a maior fatia do poder, com as partes técnicas.<br />

O mecanismo, aqui, de manutenção do status quo ante, do poder-dever de<br />

administrar a prova, é garantido pela adoção, confessa<strong>da</strong> pela Exposição de Motivos do<br />

CPP, do princípio <strong>da</strong> presidenciali<strong>da</strong>de.<br />

Através desse princípio, de início tratado como ideologicamente neutro, o juiz mantém<br />

imediação exclusiva dele com as provas.<br />

Embora as partes técnicas participem <strong>da</strong> administração <strong>da</strong> prova, o juiz mantém o<br />

contato direto e a maior parte dos poderes-deveres dessa administração. Pergunta em<br />

primeiro lugar à testemunha e somente ele mantém esse contato imediato.<br />

O aspecto temporal não é de nona<strong>da</strong>. Partindo <strong>da</strong> preeminência temporal, o juiz pode<br />

garantir, através de certas perguntas, que alguma versão <strong>da</strong> prova testemunhal fique<br />

desde logo fixa<strong>da</strong>, impedindo, através de sua ativi<strong>da</strong>de administrativa – na lei processual<br />

penal, conforme visto, estabeleci<strong>da</strong> negativamente – que alguma outra versão se<br />

imponha.<br />

372<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21.<br />

373<br />

Cf. CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555 e BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 51-84.<br />

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2. sistema acusatório<br />

No sistema acusatório, ao contrário do que ocorre com o inquisitório, a ativi<strong>da</strong>de<br />

instrutória é completamente deferi<strong>da</strong> às partes técnicas, reduzindo-se a uma parca<br />

exceção qualquer intervenção do juiz. “Este modelo”, escreve GIUSEPPE DE LUCCA,<br />

referindo-se ao modelo acusatório, “encontra atuação em uma série de princípios do novo<br />

código. Em particular através <strong>da</strong> (…) abolição <strong>da</strong> regra do processo inquisitório iudex<br />

potest in facto supplere (o juiz pode suprir a ativi<strong>da</strong>de instrutória <strong>da</strong>s partes) que é<br />

degra<strong>da</strong><strong>da</strong> a exceção e, depois, a um poder residual do juiz”. 374<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória, no sistema acusatório, é completamente deferi<strong>da</strong> às partes<br />

técnicas: ao juiz resta a ativi<strong>da</strong>de administrativa, de vigilância sobre o equilíbrio <strong>da</strong> relação<br />

processual.<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória <strong>da</strong> audiência processual penal acusatória, outrossim, é<br />

orienta<strong>da</strong> pelo estrito respeito à forma: a prova é admissível porque corretamente<br />

adquiri<strong>da</strong>. Segundo FRANCO CORDERO, “o processo adversarial anglo-saxão impõe formas,<br />

termos, proibições: todo poder instrutório cabe às partes; e o uso elabora regras ‘on<br />

evidence’”. 375<br />

A respeito <strong>da</strong>s regras em torno <strong>da</strong> prova oral nos Estados Unidos, país em que o<br />

sistema acusatório ganhou características peculiares, HENRY W. TAFT afirma que qualquer<br />

bom litigator sabe que as partes, testemunhas, jurados e o público em geral sentem-se<br />

incomo<strong>da</strong>dos e por vezes impossibilitados de dizerem to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>do o número de<br />

regras que existem em torno <strong>da</strong>s declarações <strong>da</strong><strong>da</strong>s no processo. 376 Ain<strong>da</strong> segundo esse<br />

autor, o senso comum considerará diversas <strong>da</strong>s regras contraproducentes à obtenção <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de material. 377<br />

No processo penal italiano enxergou-se uma preocupação de afastar a ativi<strong>da</strong>de<br />

instrutória do juiz, deferindo-a primacialmente às partes técnicas. 378<br />

374<br />

Cf. DE LUCA, Giuseppe. “Il sistema delle prove penali e il principio del libero convincimento nel<br />

nuovo rito”, em RItDPPen, (1992), p. 1.258. Trecho original: “Questo modello trova attuazione in un serie di<br />

principi del nuovo codice. In particulare attraverso (...) l’abolizione della regola del processo inquisitorio iudex<br />

potest in facto supplere che è degra<strong>da</strong>ta ad eccezione, e quindi a un potere residuale del giudice”.<br />

375<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555. Trecho original: “L’‘adversary system’ anglosassone<br />

impone forme, termini, divieti: ogni potere istruttorio spetta alle parti; e l’uso elabora regole ‘on evidence’”.<br />

376<br />

TAFT, Henry W. Curiosi<strong>da</strong>des…, p. 53-55.<br />

377<br />

TAFT, Henry W. Curiosi<strong>da</strong>des…, p. 53-55.<br />

378<br />

Cf. CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555, DE LUCA, Giuseppe. “Il sistema delle prove penali e il<br />

principio del libero convincimento nel nuovo rito”, em RItDPPen, (1992), p. 1.255-1.276 e FASSONE, Elvio.<br />

“Il dibattimento: ammissione ed assunzione della prova”, em Contributi…, p. 219-235.<br />

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b) princípios e regras<br />

1. publici<strong>da</strong>de<br />

O primeiro dos princípios reitores <strong>da</strong> audiência processual penal diretamente<br />

pertinente com ativi<strong>da</strong>de instrutória é o <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de.<br />

Segundo GIAN DOMENICO PISAPIA, três são os perfis desse princípio: “Sob um primeiro<br />

perfil, a publici<strong>da</strong>de consiste na presença à audiência dos defensores e <strong>da</strong>s partes e<br />

substancialmente se contrapõe ao sigilo instrutório; sob um segundo perfil, a publici<strong>da</strong>de é<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> pela presença do público à audiência; sob um terceiro perfil, consiste ela na<br />

possibili<strong>da</strong>de de que dos atos praticados se dê publici<strong>da</strong>de ao exterior, mediante<br />

divulgação pela imprensa e por outros meios de difusão”.<br />

379-380 JORGE FIGUEIREDO DIAS nega a afirmação de PAUL JOHANN ANSELM FEUERBACH no<br />

sentido de que a assistência de uma audiência processual penal seja também participante<br />

do processo penal, pois sua eventual intervenção não possui eficácia constitutiva sob<br />

prisma jurídico. 381<br />

Contudo, a lição de JORGE FIGUEIREDO DIAS corresponde a uma concepção formal <strong>da</strong><br />

relação processual penal. Se de um lado é ver<strong>da</strong>deiro que a existência de pessoas<br />

alheias à relação processual penal durante a realização de um ato, ou de um momento<br />

processual, não constitui, desconstitui ou mesmo modifica direitos, por outro lado é<br />

ver<strong>da</strong>deiro que o comportamento dos personagens do processo penal se modifica nessa<br />

situação. Especificamente com relação ao momento processual: a existência ou não de<br />

uma assistência, seu maior ou menor número de integrantes, bem como a sua mais ou<br />

menos intensa participação, são circunstâncias que, induvidosamente, alteram o<br />

comportamento <strong>da</strong>s partes.<br />

Não se trata, por outro lado, de opor a essa afirmação, de resto óbvia, o argumento de<br />

que o estudo dessas nuances do processo pertenceria à psicologia judiciária e não ao<br />

direito processual penal. É que, se ocorrem alterações no comportamento <strong>da</strong>s partes<br />

379<br />

PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 338. Trecho original: “Sotto un primo profilo, la pubblicità<br />

consiste nella presenza all’udienza dei defensori e delle parti e sostanzialmente si contrappone alla<br />

segretezza istruttoria; sotto un secondo profilo la pubblicità è <strong>da</strong>ta <strong>da</strong>lla presenza del pubblico alle udienze;<br />

sotto un terzo profilo essa consiste nella possibilità che degli atti compiuti si dia pubblicità all’esterno,<br />

mediante la stampa ed altri mezzi di diffusione”.<br />

380<br />

Cf, em passagem já cita<strong>da</strong>, a respeito do princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, DIAS, Jorge de Figueiredo.<br />

Direito…, p. 221.<br />

381<br />

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 223.<br />

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durante uma audiência processual penal em que há participação do público, está claro<br />

que isso interessa ao direito processual penal. Quanto ao estudo pormenorizado <strong>da</strong><br />

tipologia dessas alterações, concede-se que seja deferido à psicologia judiciária; mas a<br />

existência mesma do fenômeno não se compreende porque deva ser ignora<strong>da</strong> pelo direito<br />

processual penal, mormente quando a proposição é estu<strong>da</strong>r a audiência processual penal<br />

sob seu aspecto dinâmico.<br />

Assim, modificando-se o ponto de vista, é possível concor<strong>da</strong>r parcialmente com a<br />

afirmação de PAUL JOHANN ANSELM FEUERBACH no sentido de que o público é participante<br />

do processo penal; corrige-se-a, agregando-lhe a idéia <strong>da</strong> eventuali<strong>da</strong>de. A conclusão<br />

correta, pois, é a seguinte: o público é participante eventual do processo penal.<br />

Vem ele estabelecido, em regra deveras importante, no art. 792, caput, primeira parte,<br />

do CPP: “As audiências, sessões e atos processuais serão, em regra, públicos”.<br />

A exceção a esse princípio vem estabeleci<strong>da</strong> no § 1º do mesmo art. 792: “Se <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> audiência, <strong>da</strong> sessão ou do ato processual, puder resultar escân<strong>da</strong>lo,<br />

inconveniente grave ou perigo de perturbação <strong>da</strong> ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou<br />

turma, poderá, de ofício ou a requerimento <strong>da</strong> parte ou do Ministério Público, determinar<br />

que o ato seja realizado a portas fecha<strong>da</strong>s, limitando o número de pessoas que possam<br />

estar presentes”.<br />

De maneira a viabilizar a publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> audiência processual penal – de na<strong>da</strong><br />

adiantaria franquear ao público a audiência e realizá-la em local e horário desconhecidos<br />

– dispõe o art. 792, caput, segun<strong>da</strong> parte, do CPP, após determinar a publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s<br />

audiências, sessões e atos processuais, que eles “se realizarão nas sedes dos juízos e<br />

tribunais (...) em dia e hora certos, ou previamente designados”.<br />

Por sua vez, a exceção a essa regra instrumental <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de vem estabeleci<strong>da</strong> no<br />

§ 2º do art. 792 do CPP: “As audiências, as sessões e os atos processuais, em caso de<br />

necessi<strong>da</strong>de, poderão realizar-se na residência do juiz, ou em outra casa por ele<br />

especialmente designa<strong>da</strong>”.<br />

Se o estabelecimento dessa última exceção – realizar-se na casa do juiz, ou em outra<br />

– parece sentir o peso dos anos, com o perdão do termo, a exceção à publici<strong>da</strong>de mesma<br />

requer reflexão.<br />

Perceba-se que, mesmo relativizando o princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, o § 1º do art. 792 do<br />

CPP não autorizou o juiz criminal a realizar ato secreto, nem, tampouco, a restringir a<br />

participação em qualquer audiência processual penal somente às pessoas nela<br />

diretamente envolvi<strong>da</strong>s, como faz a lei processual civil, nas hipóteses de segredo de<br />

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justiça.<br />

É que, no art. 155 do CPC, as hipóteses ensejadoras do segredo de justiça são<br />

ontologicamente distintas, embora tenham tido a mesma conseqüência prática.<br />

A primeira delas, descrita no inciso I do referido art. 155, diz com o interesse público,<br />

que pode pretender, no máximo, a restrição à publici<strong>da</strong>de do ato processual ou <strong>da</strong><br />

audiência. Parece evidente que jamais será do interesse público o completo segredo do<br />

processo, quando essa tenha sido a hipótese 382 mas tão-somente a restrição à<br />

publici<strong>da</strong>de.<br />

A segun<strong>da</strong> hipótese, ao contrário, em que os assuntos a serem objeto de atos<br />

processuais ou de discussão em audiência podem ser de molde a humilhar, vexar,<br />

rebaixar ou embaraçar, para usar expressões de PONTES DE MIRANDA, 383 e, por isso<br />

mesmo, apenas por razões subalternas possam interessar a um número indeterminado<br />

de pessoas, o segredo de justiça, no processo civil, será absoluto. Acerca do assunto, é<br />

precisa a distinção feita por MOACYR AMARAL SANTOS: “Enquanto no segundo caso (art.<br />

155, n. II) o segredo de justiça é total, no primeiro (art. 155, n. I), atentas as<br />

circunstâncias, poderá ser total ou parcial e, assim, ao juiz cabe deliberar se a audiência<br />

ou certos atos deverão praticar-se a portas fecha<strong>da</strong>s”.<br />

384-385 Já no processo penal, contudo, a hipótese contempla<strong>da</strong> é apenas a de exigência do<br />

interesse público, váli<strong>da</strong> para as hipóteses em que, repita-se, “<strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

audiência, <strong>da</strong> sessão ou do ato processual, puder resultar escân<strong>da</strong>lo, inconveniente grave<br />

ou perigo de perturbação <strong>da</strong> ordem” (CPP, art. 792, § 1º).<br />

Nesse caso, o juiz criminal poderá apenas restringir a publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal, “limitando o número de pessoas que possam estar presentes”. Não<br />

poderá impor um segredo absoluto, consubstanciado na participação apenas <strong>da</strong>s pessoas<br />

envolvi<strong>da</strong>s no caso. Deverá permitir a assistência de pessoas estranhas ao caso, na<br />

382 Cf. MIRANDA, Pontes de. Comentários…, p. 64: “O segredo de justiça pode ser ordenado sempre<br />

que (...) possa envolver revelação prejudicial à socie<strong>da</strong>de, ao Estado, a terceiro”.<br />

383<br />

Cf. as hipóteses de determinação de segredo de justiça em MIRANDA, Pontes de. Comentários…,<br />

p. 64: “O segredo de justiça pode ser ordenado sempre que se trate de matéria que humilhe, rebaixe, vexe<br />

ou ponha a parte em situação de embaraço que dificulte o prosseguimento do ato, a consecução <strong>da</strong><br />

finali<strong>da</strong>de, do processo”.<br />

384<br />

SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários…, p. 396.<br />

385 Cf. lição no mesmo sentido – reforçando o argumento a respeito <strong>da</strong> diversi<strong>da</strong>de ontológica <strong>da</strong>s<br />

hipóteses – em ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários…, p. 24: “Apenas quanto ao primeiro, terão<br />

os juízes alguma discrição no determinar o segredo; quanto ao segundo, é a própria lei que o faz, sem<br />

margem de discrição”.<br />

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estrita medi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s condições materiais <strong>da</strong> sala de audiência.<br />

Quid iuris no caso de, no processo penal, ocorrerem discussões que possam<br />

humilhar, vexar, rebaixar ou embaraçar as partes? Estará o juiz criminal obrigado a<br />

franquear acesso à audiência a pessoas desvincula<strong>da</strong>s dos fatos em discussão, desde<br />

que o local <strong>da</strong> audiência o permita? Com que base imporá um segredo de justiça e<br />

demais disso, absoluto?<br />

Esclareça-se, em primeiro lugar, que a questão somente se põe no caso de ação<br />

penal de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>. No processo iniciado por denúncia o interesse público está<br />

por demais presente para autorizar um segredo absoluto: permite, no máximo, uma<br />

limitação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de.<br />

Nesse caso, até porque o art. 1º, inciso III, <strong>da</strong> Constituição dispõe ser a digni<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

pessoa humana um dos fun<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> República, há que ser adota<strong>da</strong> a lição de<br />

MOACYR AMARAL SANTOS, 386 para entender que, em processo iniciado por queixa, será<br />

possível que o juiz, em sendo vexatória ou humilhante a matéria discuti<strong>da</strong>, imponha um<br />

segredo absoluto na audiência processual penal.<br />

2. orali<strong>da</strong>de<br />

Estabeleci<strong>da</strong> a publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória <strong>da</strong> audiência processual penal,<br />

impõe-se precisar-lhe a forma como se desenvolverá. A respeito dispõe o art. 204 do CPP<br />

que “o depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo<br />

por escrito”. Mas o seu parágrafo único ressalva que não lhe será ve<strong>da</strong><strong>da</strong> “breve consulta<br />

a apontamentos”.<br />

Trata-se de regra que deixa claro que a audiência desenvolver-se-á oralmente, sendo<br />

ve<strong>da</strong>do às partes e mesmo ao juiz a consagração <strong>da</strong> forma escrita. Nisso consiste o<br />

princípio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de. A consulta a apontamentos, sendo breve, não viola a orali<strong>da</strong>de.<br />

Há exceção à regra, estabeleci<strong>da</strong> em favor de algumas <strong>da</strong>s pessoas egrégias, a<br />

saber: o Presidente e o Vice-Presidente <strong>da</strong> República, os presidentes do Senado <strong>Federal</strong>,<br />

<strong>da</strong> Câmara dos Deputados e do Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>. Essas pessoas, conforme o §<br />

1º do art. 221 do CPP, poderão, se o preferirem, apresentar seus depoimentos por<br />

escrito.<br />

É possível definir o princípio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de como sendo o que não somente impõe a<br />

forma oral para a prática <strong>da</strong> maioria dos atos processuais, como também o que a impõe<br />

386 Cf. SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários…, p. 396.<br />

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para a prática dos principais atos processuais de um <strong>da</strong>do processo.<br />

Especificamente com relação à audiência processual penal, é o princípio que impõe a<br />

orali<strong>da</strong>de para as principais ativi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> audiência processual penal: administrativa,<br />

instrutória, crítica e decisória.<br />

Com efeito, a orali<strong>da</strong>de, aplica<strong>da</strong> à ativi<strong>da</strong>de instrutória, determina que os atos<br />

processuais de aquisição de prova sejam praticados através <strong>da</strong> palavra fala<strong>da</strong>, em<br />

momento processual específico.<br />

3. imediação<br />

Exceto no caso <strong>da</strong> sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri,<br />

a ativi<strong>da</strong>de instrutória na audiência processual penal é marca<strong>da</strong> por relativa imediação.<br />

Reza o princípio <strong>da</strong> imediação que, quando em ativi<strong>da</strong>de instrutória, o órgão julgador<br />

terá contato imediato com a respectiva produção dessa prova. Em síntese, não haverá<br />

intermediários entre o juiz e as provas.<br />

Segundo GIUSEPPE CHIOVENDA, o princípio <strong>da</strong> imediação quer “que o juiz, a quem<br />

caiba proferir a sentença, haja assistido ao desenvolvimento <strong>da</strong>s provas, <strong>da</strong>s quais tenha<br />

de extrair seu convencimento, ou seja, que haja estabelecido contato direto com as<br />

partes, com as testemunhas, com os peritos e com os objetos do processo, de modo que<br />

possa apreciar as declarações de tais pessoas e as condições do lugar, e outras,<br />

baseado na impressão imediata, que delas teve, e não em informações de outros”.<br />

387-388 O princípio <strong>da</strong> imediação é complementar ao princípio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de e, em menor grau<br />

de intensi<strong>da</strong>de, ao princípio <strong>da</strong> concentração. 389<br />

Não se conceberia porque, diante de um momento processual durante o qual os atos<br />

se praticam oralmente e a eles se segue uma decisão, as provas tivessem de ser<br />

intermedia<strong>da</strong>s para o conhecimento pelo órgão julgador.<br />

É o que leciona LUIZ GUILHERME MARINONI: “O procedimento oral está umbilicalmente<br />

ligado ao princípio <strong>da</strong> imediati<strong>da</strong>de, mesmo porque a orali<strong>da</strong>de pressupõe contato direto<br />

387<br />

CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, trad. de J. Guimarães Menegale,<br />

São Paulo: Saraiva, 1945, v. 3, n. 309, apud CARNEIRO, Athos Gusmão. Audiência…, p. 24.<br />

388<br />

Cf. em idêntico sentido, SILVA, Ovídio Araújo Baptista <strong>da</strong>. Curso…, p. 53. Segundo esse autor, o<br />

princípio <strong>da</strong> imediação “exige que o juiz que deverá julgar a causa haja assistido a produção <strong>da</strong>s provas, em<br />

contato pessoal com as testemunhas, com os peritos e com as próprias partes, a quem deve ouvir, para<br />

recepção de depoimento formal e para simples esclarecimentos sobre pontos relevantes de suas<br />

divergências”.<br />

389<br />

Cf., sobre o princípio <strong>da</strong> imediação, com mais detalhes, MOREIRA, José Carlos Barbosa.<br />

“Problemas de la inmediacion en el proceso civil”, em RePro, n. 34 (abr-jun/1984), p. 191-196.<br />

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entre dois ou mais interlocutores. O princípio <strong>da</strong> imediati<strong>da</strong>de supõe, portanto, o juiz em<br />

contato pessoal com a produção de provas, ou seja, com os peritos, testemunhas e<br />

partes. Este contato permite uma melhor apreensão dos fatos, contribuindo, de forma<br />

decisiva, para a melhoria <strong>da</strong> quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> tarefa jurisdicional”. 390<br />

É também instrumental desse princípio o <strong>da</strong> concentração, <strong>da</strong>do que, conforme<br />

registra OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, 391 a falta de proximi<strong>da</strong>de temporal entre os atos de<br />

um ou mais momentos processuais invali<strong>da</strong> as vantagens eventualmente advin<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />

orali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> imediação. 392<br />

Sem dúvi<strong>da</strong>, há sempre imediação completa entre o juiz e as provas orais produzi<strong>da</strong>s<br />

em audiência. Suas perguntas dirige-as sem intermediários às testemunhas,<br />

invariavelmente.<br />

Quanto às partes técnicas, arrefece a imediação, nela tomando lugar o sistema<br />

presidencial, adotado como regra geral do procedimento comum. É o que determina o art.<br />

212, primeira parte, do CPP: “As perguntas <strong>da</strong>s partes serão requeri<strong>da</strong>s ao juiz, que as<br />

formulará à testemunha”.<br />

É o que explica a própria Exposição de Motivos do mesmo estatuto, em seu item X: “O<br />

sistema de inquirição <strong>da</strong>s testemunhas é o chamado presidencial, isto é, ao juiz que<br />

preside à formação <strong>da</strong> culpa cabe privativamente fazer perguntas diretas à testemunha.<br />

As perguntas <strong>da</strong>s partes serão feitas por intermédio do juiz, a cuja censura ficarão<br />

sujeitas”.<br />

Rigorosamente, a questão não se resume, como quer a Exposição de Motivos, a um<br />

mero sistema de inquirição, concedido de maneira politicamente neutra ao juiz ou às<br />

partes. Trata-se, aqui, talvez, <strong>da</strong> mais marcante característica inquisitória do processo<br />

penal brasileiro.<br />

De fato, o conceder-se efetiva imediação apenas entre juiz e testemunha, é<br />

estabelecer que somente o juiz está efetivamente autorizado a administrar, a gerir a prova<br />

testemunhal. A gerência <strong>da</strong> prova, mais do que a existência ou não de partes em sentido<br />

formal, é, com efeito, a característica central do sistema inquisitório, conforme afirmação<br />

precisa de JACINTO N. DE MIRANDA COUTINHO: “a característica fun<strong>da</strong>mental do sistema<br />

inquisitório, em ver<strong>da</strong>de, está na gestão <strong>da</strong> prova, confia<strong>da</strong> essencialmente ao<br />

390<br />

MARINONI, Luiz Guilherme. Novas…, p. 67.<br />

391<br />

SILVA, Ovídio Araújo Baptista <strong>da</strong>. Curso…, p. 53-54.<br />

392<br />

Cf., também, ARAÚJO, Justino Magno. “Os poderes do juiz no processo civil brasileiro (visão<br />

crítica)”, em RePro, n. 32 (out-dez/1983), p. 100-102.<br />

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magistrado”. 393<br />

A importância <strong>da</strong> distinção é claramente vista em FRANCO CORDERO, quando descreve<br />

o ora revogado sistema processual penal italiano, em muito semelhante ao brasileiro<br />

vigente, no que toca à administração <strong>da</strong> prova testemunhal: “Trabalham monologando juiz<br />

ou ministério público inquiridor. (...) Trabalho solitário: o instrutor elabora hipótese e a<br />

cultiva, procurando provas; quando as encontra, adquire-as. O sistema exclui os diálogos:<br />

partes priva<strong>da</strong>s e defensores ignoram os atos mais importantes (o testemunho) em outros<br />

momentos ativos, são aqui espectadores”. 394<br />

Ain<strong>da</strong> com relação à imediação, coloca-se a questão <strong>da</strong> cisão horizontal <strong>da</strong><br />

competência jurisdicional, em que se reparte horizontalmente, isto é, entre juízes de igual<br />

hierarquia e durante o mesmo grau de jurisdição, tarefas qualitativamente diferentes<br />

dentro do processo. Exemplo magno desse tipo de cisão, no processo penal brasileiro, é<br />

a ocorrente entre juiz togado e jurados no procedimento especial do júri. 395<br />

Nesse caso, quando não há produção de provas durante a sessão de instrução e<br />

julgamento pelo <strong>Tribunal</strong> do Júri, mas somente o interrogatório do acusado, os jurados<br />

não tem imediato contato com as provas a serem produzi<strong>da</strong>s.<br />

Atenua, mas não resolve o problema, o fato de o § 1º do art. 451 do CPP estabelecer<br />

que somente por exceção (crimes afiançáveis e ausência injustifica<strong>da</strong>) a sessão de<br />

instrução e julgamento do tribunal do júri se realiza sem a presença do réu, que deve ser<br />

interrogado na presença dos jurados.<br />

Há, aqui, aliás, um difícil balanceamento entre o interesse estatal de punição de<br />

autores de crimes e o princípio do contraditório e <strong>da</strong> imediação, ambos conectados, neste<br />

particular aspecto, ao princípio <strong>da</strong> ampla defesa. O fato do julgamento, nos casos mais<br />

graves, não se poder realizar sem a presença do réu, se de um lado favorece o<br />

contraditório e a defesa e possibilita um contato pessoal, ou ao menos visual, entre os<br />

jurados e o réu, de outro acaba por conduzir, muita vez, à extinção <strong>da</strong> punibili<strong>da</strong>de dos<br />

réus pela prescrição.<br />

RENÉ A. DOTTI, na apresentação <strong>da</strong>s razões de seu esboço de anteprojeto de reforma<br />

393<br />

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miran<strong>da</strong>. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.<br />

3-56.<br />

394<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 566-567. Trecho original: “Lavorano monologando giudice o<br />

publico ministero inquirenti. (...) Lavoro solitario: l’istruttore elabora ipotesi e le coltiva, cercando prove;<br />

quando ne scovi, le acquisisce. Il sistema esclude i dialoghi: parti private e difensori ignorano gli atti più<br />

importanti (le testemonianze); altrove ammessi, fungono <strong>da</strong> spettatori”.<br />

395<br />

Cf. MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 253.<br />

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parcial do procedimento do júri, 396 defendeu um coerente ponto de vista, mas que precisa<br />

ser eficazmente articulado com os princípios do contraditório, ampla defesa e imediação.<br />

Em seu arrazoado, o ilustre penalista paranaense sustenta que a razão de ser do<br />

dispositivo que impõe a presença do réu para a realização <strong>da</strong> sessão de instrução e<br />

julgamento do procedimento especial do júri ligava-se, dentro de um sistema coerente, à<br />

prisão preventiva obrigatória, então um dos efeitos <strong>da</strong> decisão de pronúncia.<br />

Preso, o agente do crime podia ser submetido ao julgamento. Vai <strong>da</strong>í que a<br />

postergação ficava dependente apenas <strong>da</strong> eficiência do aparelhamento policial em<br />

localizar e capturar o réu pronunciado para julgamento pelo <strong>Tribunal</strong> do Júri. Supera<strong>da</strong> a<br />

idéia de prisão preventiva obrigatória, pela <strong>da</strong> estrita necessi<strong>da</strong>de de semelhante<br />

medi<strong>da</strong>, 397 supera<strong>da</strong> também deveria estar a <strong>da</strong> obrigatorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> presença do réu na<br />

sessão de instrução e julgamento. Por essa razão, RENÉ A. DOTTI propõe, em seu esboço,<br />

que a sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri possa ser<br />

realiza<strong>da</strong> sem a presença do acusado.<br />

Esse ponto de vista e sua conclusão, irretocáveis sob o aspecto formal, precisam,<br />

entretanto, ser melhor articulados com os referidos princípios, sob pena de os jurados<br />

virem a ser obrigados a julgar seus semelhantes sem jamais terem tido a oportuni<strong>da</strong>de de<br />

sequer um contato visual com esses acusados.<br />

Essa melhor articulação bem pode vir do trabalho jurisprudencial, com a retoma<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

idéia <strong>da</strong> prisão, já não mais obrigatória, porém ver<strong>da</strong>deiramente cautelar e fun<strong>da</strong><strong>da</strong> na<br />

conveniência mesma dessa medi<strong>da</strong> para a instrução criminal, que se deve conduzir, na<br />

sessão de instrução e julgamento pelo <strong>Tribunal</strong> do Júri, respeitando-se o princípio <strong>da</strong><br />

imediação, ampla defesa e contraditório. E pode vir também de uma regra legal que<br />

coloque a hipótese como ensejadora <strong>da</strong> prisão cautelar, sempre e sempre fun<strong>da</strong><strong>da</strong> em<br />

critérios de necessi<strong>da</strong>de.<br />

4. contraditório<br />

Novamente ressalvado o caso <strong>da</strong> sessão de instrução e julgamento do procedimento<br />

especial do júri, o contraditório <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória na audiência processual penal é<br />

somente parcialmente atendido.<br />

Isso porque essa ativi<strong>da</strong>de é, senão monopoliza<strong>da</strong>, ao menos protagoniza<strong>da</strong> pelo juiz.<br />

396<br />

Cf. DOU, seç. I, (30.jun.1993), p. 8.795-8.809.<br />

397<br />

Cf. BAPTISTA, Weber Martins. Liber<strong>da</strong>de…, p. 117-119 e JARDIM, Afrânio Silva. “Visão sistemática<br />

<strong>da</strong> prisão provisória no Código de Processo Penal”, em Direito…, p. 353-388.<br />

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Formalmente, ela é apenas protagoniza<strong>da</strong> pelo juiz. A utilização de artifícios, mais do<br />

que ocorrente na prática, torna essa ativi<strong>da</strong>de ver<strong>da</strong>deiramente hegemônica.<br />

A fim de tornar-se efetivamente “campeão do sistema”, para usar uma expressão de<br />

FRANCO CORDERO, 398 bastará que o juiz comece a inquirição <strong>da</strong> testemunha ou pela<br />

in<strong>da</strong>gação ou – o que é mais grave – pela leitura mesma do depoimento prestado por ela<br />

na fase investigatória. Senão por necessi<strong>da</strong>de real, até por necessi<strong>da</strong>de psicológica, esse<br />

depoimento acabará sendo confirmado pela testemunha, obviando a plena atuação do<br />

contraditório: afinal, as partes técnicas não tiveram pleno acesso à fase de investigação.<br />

c) ritualismo<br />

1. no inquérito policial<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial, no procedimento investigatório do<br />

inquérito policial guar<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s as características do sistema inquisitório.<br />

Dispõem o art. 6º, incisos III, IV e VI, do CPP que, “logo que tiver conhecimento <strong>da</strong><br />

prática <strong>da</strong> infração penal, a autori<strong>da</strong>de policial deverá: (...) III - colher to<strong>da</strong>s as provas que<br />

servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; (...) VI<br />

- proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações (...)”.<br />

A primeira característica, pressuposta à produção mesma <strong>da</strong> prova testemunhal, é a<br />

do segredo que cerca a instrução realiza<strong>da</strong> no inquérito policial, conforme dispõe o art.<br />

20, caput, do CPP.<br />

A segun<strong>da</strong> característica, conforme se percebe do estudo do dispositivo acima, é a <strong>da</strong><br />

absoluta inexistência de procedimento no inquérito policial. Como o que vale é o êxito <strong>da</strong>s<br />

investigações, a autori<strong>da</strong>de policial produz a prova testemunhal de acordo com o que o<br />

seu instinto determinar.<br />

A ativi<strong>da</strong>de instrutória no inquérito policial também é marca<strong>da</strong> pela orali<strong>da</strong>de,<br />

presidenciali<strong>da</strong>de e imediação. A concentração, presente na lavratura do auto de prisão<br />

em flagrante, dependerá <strong>da</strong> vontade <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial.<br />

O contraditório, por mais que parte <strong>da</strong> doutrina processual penal se esforce por provar<br />

o contrário, 399 não está presente no inquérito policial.<br />

398<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21.<br />

399<br />

Cf., por todos, TUCCI, Rogério Lauria. “Devido processo penal e alguns de seus mais importantes<br />

corolários”, em TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo…, p. 25-29.<br />

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2. nos procedimentos comuns<br />

No procedimento ordinário pleno, uma vez termina<strong>da</strong> a fase postulatória, dentro <strong>da</strong><br />

qual se situa o interrogatório do acusado, realiza-se a audiência para oitiva <strong>da</strong>s<br />

testemunhas arrola<strong>da</strong>s pelas partes técnicas, 400 segundo dispõe o art. 396 do CPP.<br />

Perceba-se inexistir regra expressa que determine a realização de duas audiências,<br />

uma para inquirir as testemunhas arrola<strong>da</strong>s na denúncia e outra para inquirir as<br />

testemunhas arrola<strong>da</strong>s nas alegações escritas previstas pelo art. 395 do CPP.<br />

Contudo, a praxe do foro criminal é no sentido dessa instrução não se realizar em<br />

uma única audiência. O mais comum é os juízes assinarem ao menos duas audiências,<br />

ca<strong>da</strong> uma específica para a oitiva de um grupo de testemunhas. Cabe dizer: duas<br />

audiências no mínimo, dependendo do número de testemunhas arrola<strong>da</strong>s.<br />

A explicação para essa desaconselhável prática talvez esteja no art. 401 do CPP, que<br />

dispõe que “as testemunhas de acusação serão ouvi<strong>da</strong>s dentro do prazo de 20 (vinte)<br />

dias, quando o réu estiver preso, e de 40 (quarenta) dias, quando solto”.<br />

Esse dispositivo, que rigorosamente muito pouco tem de relação com o tema, passa a<br />

impressão de que recomen<strong>da</strong> a realização de audiências separa<strong>da</strong>s e não de uma só.<br />

EDUARDO ESPÍNOLA FILHO 401 , conforme ver-se-á adiante, explicita o tema, que se<br />

resume à ordem de inquirição do ofendido e <strong>da</strong>s testemunhas arrola<strong>da</strong>s pelas partes, em<br />

uma única audiência, sendo possível.<br />

JOSÉ FREDERICO MARQUES descreve: “depois do interrogatório, vem a inquirição de<br />

testemunhas, que se inicia com as de acusação, sucedendo-se, em segui<strong>da</strong>, os<br />

400<br />

Cf. interessante posicionamento de CERNICHIARO, a respeito <strong>da</strong> limitação legal <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

instrutória <strong>da</strong>s partes técnicas em CERNICHIARO, Luiz Vicente e COSTA JÚNIOR, Paulo José. Direito…, p.<br />

89: “As cautelas próprias do processo penal têm por finali<strong>da</strong>de só impor responsabili<strong>da</strong>de (...) a quem haja<br />

realizado a conduta delituosa. E mais. Só depois de esgota<strong>da</strong>s as etapas do processo. Até o julgamento<br />

transitar em julgado, encerra<strong>da</strong>, pois, a possibili<strong>da</strong>de de recurso. Em nenhum momento, ain<strong>da</strong>, o réu será<br />

privado de defesa técnica. (...) Não há, pois, presunção de fatos, limitação de provas, hierarquia de provas.<br />

Tudo o que for útil a demonstrar fato ou circunstância relevantes para a decisão é permitido à acusação e à<br />

defesa. (...) Evidente a inconstitucionali<strong>da</strong>de dos arts. 298, 417, § 2º, 421, parágrafo único, 532 e 533, do<br />

Código de Processo Penal, que limitam o número de testemunhas na instrução criminal (...). O contraste<br />

com a Lei Maior, atritando o princípio <strong>da</strong> defesa plena, explica-se facilmente. A acusação e a defesa<br />

poderão necessitar de número maior de testemunhas para demonstrar as respectivas afirmações. O texto<br />

legal impede atuarem com a desenvoltura necessária à revelação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de real. (...) ao juiz, como<br />

presidente do processo, é lícito coibir o abuso do exercício do direito de realizar a prova. No caso de rol<br />

numeroso, elaborado com intuito meramente procrastinatório, cabe o indeferimento. Não se justifica alongar<br />

a instrução com depoimentos repetitivos que na<strong>da</strong> acrescentam ao que já foi recolhido”. É de se observar<br />

que esse mesmo argumento fun<strong>da</strong>menta a possibili<strong>da</strong>de de ampliar o tempo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes<br />

técnicas em qualquer procedimento penal, desde que isso seja garantido a ambas as partes técnicas.<br />

401<br />

Cf. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 783, p. 208.<br />

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depoimentos <strong>da</strong>s testemunhas de defesa”. 402<br />

A conclusão de que a oitiva <strong>da</strong>s testemunhas arrola<strong>da</strong>s na denúncia ou queixa e nas<br />

alegações escritas do art. 395 do CPP deve ser feita, se for possível, numa audiência só,<br />

atende ao princípio <strong>da</strong> concentração.<br />

Diferentemente do que ocorre no procedimento ordinário pleno, a oitiva <strong>da</strong>s<br />

testemunhas no procedimento sumário em sentido estrito dá-se, obrigatoriamente, em<br />

audiências diversas, com violação do princípio <strong>da</strong> concentração.<br />

É o que dispõem o art. 539, caput, e o § 2º do art. 538 do CPP.<br />

Vê-se que a audiência de instrução e julgamento do procedimento sumário em sentido<br />

estrito destina-se à oitiva <strong>da</strong>s testemunhas arrola<strong>da</strong>s pela defesa, aos debates orais e à<br />

eventual publicação <strong>da</strong> sentença. De acordo com JOSÉ FREDERICO MARQUES, na referi<strong>da</strong><br />

audiência se verifica um procedimento quase-concentrado. 403<br />

De tal sorte que o procedimento sumário em sentido estrito vê inquirição de<br />

testemunhas em dois tipos de audiência. A <strong>da</strong>s testemunhas arrola<strong>da</strong>s na denúncia ou na<br />

queixa se desenvolve numa audiência exclusivamente convoca<strong>da</strong> para tal fim. A <strong>da</strong>s<br />

testemunhas arrola<strong>da</strong>s na oportuni<strong>da</strong>de do art. 395 do CPP se desenrola durante uma<br />

audiência de instrução parcial e julgamento.<br />

Trata-se de dicotomia inútil e mais: prejudicial à instrução <strong>da</strong> causa. Isso porque<br />

prejudica o an<strong>da</strong>mento do processo, prevendo uma fase instrutória, em seu início<br />

descontínua e, ao seu final, apenas quase-concentra<strong>da</strong>, prejudicando também a<br />

instrução, que poderia ser panorâmica, ouvindo-se to<strong>da</strong>s as testemunhas no mesmo<br />

momento processual.<br />

A razão estrutural dessa dicotomia revela-se intencionalmente boa, mas apenas isso.<br />

Quis a norma estabelecer, para realização antes <strong>da</strong> própria audiência de instrução e<br />

julgamento, um despacho saneador, conforme se dessume <strong>da</strong> combinação dos arts. 539,<br />

caput, e 538, caput, do CPP.<br />

Trata-se, porém, de um “arremedo de saneador”, conforme critica, com razão,<br />

FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO. 404 É que, nessa fase processual em que o juiz<br />

poderá sanar as nuli<strong>da</strong>des e complementá-las, negou-lhe a norma o julgamento conforme<br />

o estado do processo, que poderia solucionar desde logo o caso de ocorrer alguma<br />

402 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 270 [sem grifo no original].<br />

403<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 117.<br />

404<br />

TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 4, p. 162.<br />

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nuli<strong>da</strong>de insanável.<br />

Especificamente com relação à audiência de instrução parcial e julgamento do<br />

procedimento sumário em sentido estrito, a inexistência de regra que obrigue o juiz a,<br />

encerrados a instrução e os debates, prolatar a sentença, atenua em muito o efeito<br />

benéfico que a oitiva <strong>da</strong>s testemunhas em audiência de instrução e julgamento teria na<br />

construção <strong>da</strong> decisão do mérito do caso.<br />

A rigor, não se diferenciam muito as audiências de testemunhas de acusação nos<br />

procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido estrito. Afora a diferença evidente do<br />

número de testemunhas que podem ser ouvi<strong>da</strong>s, que naquele procedimento é de oito e<br />

neste de cinco para ca<strong>da</strong> um dos lados, outras diferenças de relevo não há.<br />

A ordem de oitiva <strong>da</strong>s testemunhas arrola<strong>da</strong>s nas alegações preliminares, deve ser<br />

decidi<strong>da</strong> pelo juiz, atendendo principalmente às ponderações <strong>da</strong> defesa, pois essa ordem<br />

pode estar liga<strong>da</strong> à própria estratégia do ou dos defensores.<br />

Instala<strong>da</strong> a audiência, o juiz, havendo um ofendido, ouve-o por primeiro, inquire<br />

depois as testemunhas arrola<strong>da</strong>s na denúncia ou na queixa e, por fim, ouve as<br />

testemunhas arrola<strong>da</strong>s na oportuni<strong>da</strong>de do art. 395 do CPP. Tal conclusão decorre <strong>da</strong><br />

combinação dos arts. 201, caput, e 396, caput, do CPP.<br />

Além <strong>da</strong> mera combinação de normas, esse entendimento decorre do bom senso e <strong>da</strong><br />

lógica. O ofendido deve ser ouvido antes porque de sua boca sairá, provavelmente, a tese<br />

<strong>da</strong> acusação. À oitiva dele seguem as <strong>da</strong>s testemunhas.<br />

Para EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, pois, “a ordem <strong>da</strong>s inquirições é a seguinte: Em<br />

primeiro lugar, o ou os ofendidos, cuja inquirição, se possível, é obrigatória, embora<br />

nenhuma <strong>da</strong>s partes o tenha arrolado; (...). Depois, serão inquiri<strong>da</strong>s as testemunhas de<br />

acusação, que podem ser ouvi<strong>da</strong>s logo em segui<strong>da</strong> ao ofendido, no mesmo dia, sem<br />

razão de estabelecer ordem entre as que prestam o compromisso e as a ele não sujeitas.<br />

(...) Encerra<strong>da</strong> essa inquirição, com a efetiva toma<strong>da</strong> dos depoimentos, ou a desistência,<br />

pela parte acusatória, que as arrolou (...), passa o juiz a proceder à audição <strong>da</strong>s<br />

testemunhas de defesa, devi<strong>da</strong>mente notifica<strong>da</strong>s, ou conduzi<strong>da</strong>s a juízo (...) não havendo<br />

conveniência alguma em estabelecer ordem para ouvir as sujeitas ao compromisso e as<br />

que dele são isentas”. 405<br />

Conforme EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, o ofendido há de ser inquirido em primeiro lugar,<br />

mesmo que não arrolado pelas partes e, segundo dispõe o parágrafo único do art. 201 do<br />

405 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 783, p. 208 e 224.<br />

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CPP, sujeito à condução coercitiva à presença do juiz caso desobedeça à intimação sem<br />

ter motivo justo. Esse dispositivo, porém, de tão draconiano, pressupõe que a oitiva do<br />

ofendido seja necessária à instrução do caso. Não será razoável, posto que jurídico, que<br />

o juiz notifique desnecessariamente o ofendido, que provavelmente na<strong>da</strong> saberá dos fatos<br />

e, diante de sua ausência injustifica<strong>da</strong>, determine-lhe a condução coercitiva. Com uma<br />

notificação desnecessária, o juiz apenas somará ao trauma do crime, que o ofendido<br />

talvez já tenha assimilado, o trauma <strong>da</strong> condução sob vara.<br />

Quanto à seqüência de oitiva <strong>da</strong>s testemunhas, havendo mais de um acusado,<br />

EDUARDO ESPÍNOLA FILHO faz interessante ponderação que, entretanto, não consta <strong>da</strong> lei e<br />

vale como conselho: “Quando mais de um os réus, tendo todos ou vários arrolado<br />

testemunhas, achamos aconselhável fazer intercala<strong>da</strong> a inquirição <strong>da</strong>s de uns e <strong>da</strong>s dos<br />

outros, para que o, cujas testemunhas se ouçam por último, não tire vantagem, podendoas<br />

instruir a respectiva defesa, à vista de quanto foi dito pelas do ou dos outros<br />

acusados”. 406<br />

Quanto à ordem de oitiva na audiência de instrução e julgamento, havendo<br />

testemunhas outras, que não de defesa – notifica<strong>da</strong>s de ofício pelo juiz, por exemplo – a<br />

doutrina não é conclusiva. JOSÉ FREDERICO MARQUES 407 entende que nesse caso as<br />

testemunhas notifica<strong>da</strong>s pelo juiz devem ser ouvi<strong>da</strong>s antes <strong>da</strong>s de defesa e EDUARDO<br />

ESPÍNOLA FILHO 408 sustenta justamente o contrário.<br />

O art. 210, primeira parte, do CPP, determina que a oitiva <strong>da</strong>s testemunhas se faça<br />

individualmente, “de modo que umas não saibam nem ouçam os depoimentos <strong>da</strong>s<br />

outras”.<br />

Após prestado o compromisso legal, quando for ele deferível – é a dicção do art. 208<br />

do CPP – será iniciado o depoimento propriamente dito, no caso, também por perguntas<br />

formulares.<br />

É o que dispõe a continuação do art. 203 do CPP, sobre a seqüência a ser segui<strong>da</strong> no<br />

depoimento <strong>da</strong> testemunha: “devendo declarar seu nome, sua i<strong>da</strong>de, seu estado e sua<br />

residência, sua profissão, lugar onde exerce sua ativi<strong>da</strong>de, se é parente, e em que grau,<br />

de alguma <strong>da</strong>s partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que<br />

souber”.<br />

406<br />

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 783, p. 224.<br />

407<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 117.<br />

408<br />

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 5, n. 1.058, p. 328.<br />

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Percebe-se que o art. 203 do CPP não estabelece, após as perguntas formulares –<br />

sobre nome, i<strong>da</strong>de, estado civil, residência, profissão e domicílio <strong>da</strong> testemunha,<br />

existência de parentesco ou relações entre ela e as partes – uma seqüência de perguntas<br />

a ser segui<strong>da</strong> pelo juiz.<br />

Trata-se, segundo HÉLIO TORNAGHI, do método misto de autoria de Otto Lipmann, que<br />

foi diretor do Instituto de Psicologia Aplica<strong>da</strong> de Berlim: “o depoente começa relatando o<br />

que souber, explicando sempre as razões de sua ciência e as circunstâncias pelas quais<br />

possa avaliar-se de sua credibili<strong>da</strong>de (art. 203). Depois então é que o juiz e as partes<br />

perguntam a respeito <strong>da</strong>quilo que ain<strong>da</strong> não houver sido dito”. 409<br />

Examine-se com mais vagar essa relevante particulari<strong>da</strong>de para a inquirição <strong>da</strong><br />

testemunha. Trata-se <strong>da</strong> parte final do art. 203 do CPP, que determina que a testemunha,<br />

à medi<strong>da</strong> em que depõe, deverá ir explicando sempre “as razões de sua ciência ou as<br />

circunstâncias pela quais possa avaliar-se de sua credibili<strong>da</strong>de”.<br />

Essa regra, na ver<strong>da</strong>de, não se dirige à testemunha, como à primeira vista poderia<br />

parecer. Dirige-se, na ver<strong>da</strong>de, ao inquiridor, que nos procedimentos comuns é o próprio<br />

administrador <strong>da</strong> audiência. É ele quem deve tomar a iniciativa de fazer com que a<br />

testemunha sempre forneça <strong>da</strong>dos para que se possa <strong>da</strong>r crédito à sua versão.<br />

Portanto, pode-se inferir <strong>da</strong>í uma regra procedimental <strong>da</strong> maior importância: para que<br />

o depoimento tenha utili<strong>da</strong>de para a comprovação do fato, o juiz deve, a ca<strong>da</strong> declaração<br />

<strong>da</strong> testemunha, in<strong>da</strong>gar-lhe <strong>da</strong>s suas fontes.<br />

A re<strong>da</strong>ção do depoimento <strong>da</strong> testemunha também será elabora<strong>da</strong> pelo juiz. A norma<br />

que o orienta é a do art. 215 do CPP: “Na re<strong>da</strong>ção do depoimento, o juiz deverá cingir-se,<br />

tanto quanto possível, às expressões usa<strong>da</strong>s pelas testemunhas, reproduzindo fielmente<br />

as suas frases”.<br />

A re<strong>da</strong>ção do depoimento <strong>da</strong> testemunha, tanto quanto de todos os demais termos do<br />

processo penal de conhecimento, frente às conquistas tecnológicas, apresenta-se a mais<br />

atrasa<strong>da</strong> possível. Isso acentua dificul<strong>da</strong>des inerentes ao exercício de ativi<strong>da</strong>de crítica e<br />

decisória sobre o material probatório produzido, conforme percebeu com agudeza JOSÉ<br />

CARLOS BARBOSA MOREIRA, ao considerar “muito grave é o problema do registro <strong>da</strong>s<br />

declarações. Se compreende com facili<strong>da</strong>de que os inconvenientes <strong>da</strong> falta de imediação<br />

podem atenuar-se, em boa medi<strong>da</strong>, se se logra reproduzir com to<strong>da</strong> exatidão, em seu<br />

conteúdo e em sua forma, o que disse a parte ou a testemunha. (...) [No Brasil] poucos<br />

409 TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 502.<br />

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Currículo<br />

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órgãos judiciais fazem uso <strong>da</strong> taquigrafia ou <strong>da</strong> estenografia; e as atas <strong>da</strong>tilografa<strong>da</strong>s,<br />

obviamente, não soem reproduzir exatamente, nem muito menos, as palavras <strong>da</strong> parte ou<br />

<strong>da</strong> testemunha. Claro está que na<strong>da</strong> se conserva do tom, do acento, <strong>da</strong>s inflexões, <strong>da</strong>s<br />

pausas mais breves ou mais largas, <strong>da</strong>s pequenas hesitações, do súbito tartamudear, do<br />

rubor ou <strong>da</strong> palidez, quer dizer, que lhes dá (ou lhes quita) às declarações um significado<br />

peculiar. Em plena era <strong>da</strong> tecnologia não pode, evidentemente, perpetuar-se tal situação.<br />

Há que incorporar à rotina judicial o emprego dos instrumentos criados pelo fenomenal<br />

progresso tecnológico do nosso tempo. Somente assim se poderão resolver de modo<br />

satisfatório alguns dos mais sérios problemas direta ou indiretamente relacionados com a<br />

imediação no processo”. 410<br />

Segue-se ao depoimento a autenticação. Se a parte não souber assinar, o art. 216, in<br />

fine, do CPP, impõe a assinatura a rogo, após prévia leitura.<br />

3. no procedimento especial do júri<br />

Da ou <strong>da</strong>s audiências de inquirição do ofendido e <strong>da</strong>s testemunhas, ocorri<strong>da</strong>s na<br />

primeira fase do procedimento, nenhuma nuance, relativamente às audiências<br />

equivalentes do procedimento ordinário pleno pode ser extraí<strong>da</strong>.<br />

O mesmo não se pode dizer <strong>da</strong>s inquirições de ofendido e testemunhas realiza<strong>da</strong>s na<br />

fase do iudicium causae, que apresentam particulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s mais relevantes.<br />

A primeira delas prende-se à característica acusatória dessa sessão, que determina<br />

uma ativi<strong>da</strong>de instrutória completamente diferencia<strong>da</strong>.<br />

No caso <strong>da</strong> oitiva do ofendido e <strong>da</strong>s testemunhas, a diferença torna-se mais profun<strong>da</strong>.<br />

É que, na sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri, não vige o<br />

denominado sistema presidencial.<br />

É o que dispõem os arts. 467 (“Terminado o relatório, o juiz, o acusador, o assistente<br />

410 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Problemas de la inmediacion en el proceso civil”, em RePro, n. 34<br />

(abr-jun/1984), p. 196. Trecho original: “muy grave el problema del registro de las declaraciones. Se<br />

comprende con facili<strong>da</strong>d que los inconvenientes de la falta de inmediación pueden atenuarse, en buena<br />

medi<strong>da</strong>, si se logra reproducir con to<strong>da</strong> exactitud, en su contenido y en su forma, lo que ha dicho la parte o<br />

el testigo. (...) [No Brasil] pocos órganos judiciales hacen uso de la taquigrafía o de la estenografía; y las<br />

actas <strong>da</strong>ctilografa<strong>da</strong>s por supuesto no suelen reproducir exactamente, ni mucho menos, las palavras de la<br />

parte o del testigo. Claro es que nadie se conserva del tono, del acento, de las inflexiones, de las pausas<br />

más breves o más largas, de las pequeñas hesitaciones, del súbito tartamudear, del sonroseo o de la<br />

palidez, es decir, de quanto les <strong>da</strong> (o les quita) a las declaraciones un significado peculiar. En plena era de<br />

la tecnología no puede, evidentemente, perpetuarse tal situación. Hay que incorporar a la rutina judicial el<br />

empleo de los instrumentos creados por el fenomenal progreso tecnológico de nuestro tiempo. Solamente<br />

así se podrán resolver de modo satisfactorio algunos de los más serios problemas directa o indirectamente<br />

relacionados con la inmediación en el proceso”.<br />

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Currículo<br />

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e o advogado do réu e, por fim, os jurados que o quiserem, inquirirão sucessivamente as<br />

testemunhas de acusação”) e 468 (“Ouvi<strong>da</strong>s as testemunhas de acusação, o juiz, o<br />

advogado do réu, o acusador particular, o promotor, o assistente e os jurados que o<br />

quiserem, inquirirão sucessivamente as testemunhas de defesa”) do CPP.<br />

A forma de inquirição, portanto, será a direta, 411 característica saliente do processo<br />

acusatório. A respeito dessa forma não-presidencial de oitiva <strong>da</strong>s testemunhas, escreve<br />

EDUARDO ESPÍNOLA FILHO: “A inquirição <strong>da</strong>s testemunhas, no plenário, apresenta uma<br />

particulari<strong>da</strong>de, tornando-a grandemente diversa <strong>da</strong> a que se procede no sumário de<br />

culpa; pois, nesta fase, é o juiz que faz, sempre, a pergunta, transmitindo, ele próprio, o<br />

que desejarem as partes saber do inquirido; no plenário do júri, se o juiz é quem, em<br />

primeiro lugar, inquire a testemunha, seja de defesa, seja de acusação; a <strong>da</strong> acusação,<br />

após pergunta<strong>da</strong> pelo presidente, sê-lo-á, na seguinte ordem, pelo promotor, pelo<br />

assistente, se houver habilitado, e pelo advogado incumbido <strong>da</strong> defesa de ca<strong>da</strong> réu, ou,<br />

se a causa se movimentar por queixa, pelo querelante, pelo promotor, que a tenha<br />

aditado, e por ca<strong>da</strong> um dos advogados de defesa; e a testemunha de defesa é inquiri<strong>da</strong><br />

nesta ordem, depois de o ser pelo presidente: pelo advogado do réu, que a arrolou, pelo<br />

do ou dos outros réus, pelo querelante (na ação promovi<strong>da</strong> por queixa), pelo promotor (na<br />

ação instaura<strong>da</strong> por denúncia e na inicia<strong>da</strong> por queixa, se a tiver aditado) e pelo<br />

assistente deste. Demais, após responderem ao juiz presidente e às partes, as<br />

testemunhas, tanto de acusação quanto de defesa, poderão ser inquiri<strong>da</strong>s, diretamente,<br />

por qualquer dos jurados, componentes do conselho de sentença, que o deseje fazer”. 412<br />

Embora muita vez o ofendido já não exista nos crimes de competência do júri, está<br />

claro que quando existir será inquirido, durante a sessão de instrução e julgamento, antes<br />

<strong>da</strong>s testemunhas, valendo a regra do art. 201 do CPP.<br />

Essa forma de inquirição direta, não-presidencial, muito se aproxima, embora não se<br />

confun<strong>da</strong>, com o sistema de exame cruzado <strong>da</strong> testemunha, vigente nos países que<br />

adotam o sistema acusatório.<br />

Segundo HÉLIO TORNAGHI, esse exame cruzado, que se contrapõe ao judicial, de<br />

matriz medieval e característico do sistema inquisitivo,<br />

é usado hoje em dia na Noruega, na Inglaterra, na América do Norte (cross examitation) e em algumas<br />

legislações cantonais <strong>da</strong> Suíça. A Alemanha e a Áustria, conquanto usando a denominação (Kreuzverhör),<br />

afastam-se <strong>da</strong> forma típica de praticá-lo.<br />

411<br />

Cf. PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri…, p. 131.<br />

412<br />

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 904, p. 433.<br />

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De acordo com essa maneira de produzir a prova testemunhal, ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s partes, à medi<strong>da</strong> que vai<br />

sustentando a acusação ou a defesa, vai indicando e interrogando testemunhas sobre ca<strong>da</strong> ponto de<br />

sua sustentação. Em segui<strong>da</strong>, passa a testemunha à parte contrária (<strong>da</strong>í o nome: exame cruzado; as<br />

partes se cruzam na argüição <strong>da</strong>s testemunhas) para que esta, por sua vez, interrogue sobre o mesmo<br />

ponto.<br />

Se qualquer <strong>da</strong>s partes entende que uma pergunta é impertinente ou sugestiva, protesta contra ela.<br />

O juiz, que na<strong>da</strong> pergunta, que assiste aos interrogatórios e aos depoimentos passivamente, só<br />

intervém para aceitar ou repelir os protestos <strong>da</strong>s partes. Se admite, a testemunha não precisa ou,<br />

melhor, não deve responder à pergunta. Se rejeita, a testemunha está obriga<strong>da</strong> a responder. 413<br />

Quanto às vantagens e desvantagens desse sistema, HÉLIO TORNAGHI é inconcluso,<br />

ao afirmar que “o sistema tem as mesmas vantagens e os mesmos defeitos do<br />

procedimento acusatório em que nasceu. Por um lado, a orali<strong>da</strong>de, o contacto direto, a<br />

objetivi<strong>da</strong>de, vivificam o depoimento e a sustentação (acusação ou defesa) a que servem<br />

de base. Por outro, entretanto, a possibili<strong>da</strong>de de coação psicológica sobre a testemunha,<br />

a facili<strong>da</strong>de de colusão entre as partes, a inidonei<strong>da</strong>de para atingir a ver<strong>da</strong>de histórica,<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong> a disponibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> parte contrária à que está interrogando a testemunha, tudo isso<br />

são defeitos que enfraquecem o método”. 414<br />

Em todo o caso, o sistema de inquirição direta pelas partes <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> fase do<br />

procedimento especial do júri, não é exatamente igual ao exame cruzado do sistema<br />

acusatório.<br />

Com efeito, no exame cruzado do sistema acusatório, há uma prévia classificação <strong>da</strong><br />

idonei<strong>da</strong>de <strong>da</strong> testemunha aos jurados, feita pelo juiz, para que eles tenham condição de<br />

melhor julgar o depoimento que diante deles se desenvolve. 415 Essa classificação prévia,<br />

que taxa a testemunha em diversas categorias (hostil, amistosa etc.) 416 não tem<br />

equivalente no processo penal brasileiro.<br />

Por fim, o sistema não-presidencial do plenário do júri não permite, à semelhança do<br />

sistema cruzado, que as partes argumentem enquanto inquirem a testemunha. Aliás,<br />

413<br />

TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 499.<br />

414<br />

TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 499-500.<br />

415<br />

Cf. RABASA, Oscar. El Derecho…, p. 118.<br />

416<br />

Cf. em passagem já cita<strong>da</strong>, SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 118: “Na ‘cross<br />

examination’ a testemunha se presume ‘hostil’ à parte que a interroga, e dessa maneira esta poderá<br />

convidá-la a uma narração continua<strong>da</strong>, seja porque não existe suspeita de colusão entre interrogante e<br />

interrogado, seja porque o constranger a testemunha a repetir o quanto haja declarado na ‘direct<br />

examination’ pode servir para ‘controlar a solidez <strong>da</strong>s suas recor<strong>da</strong>ções’”. Trecho original: “Nella ‘cross<br />

examination’, il testimoni si presume ‘ostile’ alla parte che lo interroga, e quindi questa può invitarlo ad una<br />

narrazione continuata sia perchè non esiste sospetto di colusione tra interrogante ed interrogato, sia perchè<br />

il costringere il testimoni a ripetere di seguito quanto ha poco prima dichiarato nella ‘direct examination’ può<br />

servire a ‘controlare la solidità dei suoi ricordi’”.<br />

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qualquer afirmação <strong>da</strong>s partes que configure razões deverá ser coibi<strong>da</strong> pelo juiz-<br />

presidente <strong>da</strong> sessão.<br />

Embora a inquirição <strong>da</strong> testemunha seja direta, ao juiz-presidente <strong>da</strong> sessão caberá a<br />

re<strong>da</strong>ção resumi<strong>da</strong> do depoimento, bem como sua redução a termo (CPP, art. 469).<br />

Desnecessário adicionar que, nessa hipótese, como em outras semelhantes, “o juiz<br />

deverá cingir-se tanto quanto possível, às expressões usa<strong>da</strong>s pelas testemunhas,<br />

reproduzindo fielmente suas expressões” (CPP, art. 215).<br />

§ 3º Fun<strong>da</strong>mento político<br />

a) a questão do fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> prova testemunhal<br />

A prova testemunhal, principal ativi<strong>da</strong>de instrutória desenvolvi<strong>da</strong> em audiência, é hoje<br />

a base <strong>da</strong> instrução no processo penal brasileiro. 417<br />

Sua importância e a riqueza dos aspectos jurídicos que suscita têm levado a doutrina<br />

processual penal a questionar-se acerca do fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> prova testemunhal.<br />

Duas vertentes podem ser destaca<strong>da</strong>s.<br />

NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA é expressão <strong>da</strong> primeira delas. O autor italiano, ao<br />

analisar o fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> prova testemunhal, busca-o na experiência humana<br />

relativa à ver<strong>da</strong>de dos semelhantes: “o fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> atestação de pessoa em geral e do<br />

testemunho em particular, é a presunção que consiste em dizer que os homens percebem<br />

e relatam a ver<strong>da</strong>de, presunção esta que, por sua vez, se fun<strong>da</strong> na experiência geral <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de, que demonstra que, na reali<strong>da</strong>de, as mais <strong>da</strong>s vezes, o homem é<br />

ver<strong>da</strong>deiro. E o é por várias razões, tanto pela tendência natural <strong>da</strong> mente, que na<br />

ver<strong>da</strong>de, mais do que na mentira, encontra a satisfação de uma necessi<strong>da</strong>de ingênita,<br />

como por uma tendência natural <strong>da</strong> vontade, à qual a ver<strong>da</strong>de parece um bem, ao mesmo<br />

tempo que toma a mentira como um mal; e, enfim, porque essas tendências naturais <strong>da</strong><br />

inteligência e <strong>da</strong> vontade estão robusteci<strong>da</strong>s no homem social, não só pelo desprezo que<br />

sente a socie<strong>da</strong>de pelo embusteiro, senão também pelas penas religiosas e civis que<br />

vigem ameaçadoramente sobre sua cabeça”. 418<br />

417<br />

LEONE, Giovanni. Trattato…, p. 238.<br />

418<br />

MALATESTA, Framarino dei. Lógica…, v. 2, p. 15-16. Trecho original: “el fun<strong>da</strong>mento de la<br />

atestación de persona em general y del testimonio en particular, es la presunción que consiste en decir que<br />

los hombres preciben y relatan la ver<strong>da</strong>d, presunción que a su vez se fun<strong>da</strong> en la experiencia general de la<br />

humani<strong>da</strong>d, que demuenstra que en reali<strong>da</strong>d, las más veces, el hombre es verídico. Y lo es por varias<br />

razones, tanto por una tendencia natural de la mente, que en la ver<strong>da</strong>d, más facilmente que en la mentira,<br />

encuentra la satisfacción de una necesi<strong>da</strong>d ingénita, como por una tendencia natural de la voluntad, a la<br />

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Currículo<br />

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A outra vertente é expressa<strong>da</strong> no magistério de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO.<br />

Esse autor, impressionado pela imprescindibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> prova testemunhal, chega ao ponto<br />

de fazer residir na necessi<strong>da</strong>de absoluta de se contar com ela o seu fun<strong>da</strong>mento<br />

político. 419<br />

Resumindo, portanto, duas são as vertentes na análise dos fun<strong>da</strong>mentos políticos <strong>da</strong><br />

prova testemunhal. A primeira busca-o na veraci<strong>da</strong>de inerente ao ser humano médio; a<br />

segun<strong>da</strong>, na absoluta imprescindibili<strong>da</strong>de de se contar com depoimentos humanos para a<br />

comprovação de crimes.<br />

A primeira vertente encontra em VINCENZO MANZINI, que tem uma concepção<br />

pessimista acerca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de que pode emanar <strong>da</strong> produção <strong>da</strong> prova testemunhal, um<br />

franco opositor: “não é, de fato, ver<strong>da</strong>deiro que, como sói ser ensinado, o fun<strong>da</strong>mento do<br />

valor probatório concedido ao testemunho seja a presunção de veraci<strong>da</strong>de dos homens.<br />

Uma semelhante presunção seria contrária à reali<strong>da</strong>de de que o homem é instintivamente<br />

mentiroso, não só quando tenha interesse direto a sê-lo, mas também quando supõe que<br />

a ver<strong>da</strong>de possa favorecer ou prejudicar outrem”. 420-421 De certa maneira também é opositor dessa concepção FRANCO CORDERO que, ao seu<br />

turno, posto que não adote uma posição claramente pessimista em relação à testemunha,<br />

antepõe dúvi<strong>da</strong>s graves ao pressuposto legal de objetivi<strong>da</strong>de, questão que, simples sob o<br />

prisma jurídico, é altamente complexa sob o aspecto psicológico: “a objetivi<strong>da</strong>de do<br />

testemunho, postula<strong>da</strong> pelas normas, parece ilusória a quem considera o interior<br />

neuropsíquico: desde logo, o aparato sensorial seleciona os possíveis estímulos;<br />

codificados segundos os modelos relativos ao indivíduo, as impressões compõem uma<br />

experiência perceptiva na qual os fantasmas variam tanto quanto o processo mnemônico,<br />

muito mais se a reminiscência não for espontânea mas solicita<strong>da</strong>, como ocorre com o<br />

testemunho; enfim, convertido em palavras o manipuladíssimo produto mental, emerge<br />

cual la ver<strong>da</strong>d parece un bien, en tanto que toma la mentira como un mal; y en fin, porque esas tendencias<br />

naturales de la inteligencia y de la voluntad están robusteci<strong>da</strong>s en el hombre social, no solo por el desprecio<br />

que siente la socie<strong>da</strong>d hacia el embustero, sino también por las penas religiosas y civiles que se ciernen<br />

amenazantes sobre su cabeza”.<br />

419<br />

TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 3, p. 297.<br />

420<br />

MANZINI, Vincenzo. Trattato…, p. 215. Trecho original: “Non è affatto vero che, come si suole<br />

insegnare, fon<strong>da</strong>mento del valore probatorio assegneto alla testimonianza sia la presunzione di verificità<br />

degli uomini. Una simile presunzione sarebbe contraria alla realtà perchè l’uomo è istintivamente men<strong>da</strong>ce,<br />

non solo allorché ha interesse diretto ad asserlo, ma altresì quando suppone che il dire la verità possa<br />

giovare o nuocere ad altri”.<br />

421<br />

Cf., a respeito, PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 290.<br />

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como enunciado ‘factual’”. 422<br />

Com efeito, a questão <strong>da</strong> sinceri<strong>da</strong>de ou objetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> testemunha, seja como for<br />

coloca<strong>da</strong>, ou é puramente filosófica, ou é de tratamento científico altamente problemático.<br />

Os homens podem tanto ser verazes como mentirosos, a depender de inúmeros e<br />

incontáveis fatores, como as circunstâncias do depoimento, a personali<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

testemunha, a gravi<strong>da</strong>de do fato, os critérios subjetivos do julgamento que ca<strong>da</strong><br />

testemunha realiza sobre o fato testemunhado, os sentimentos de gratidão, ódio, amor,<br />

amizade e tantos outros. Tratam-se de fatores que poderão quebrar ou ativar, em<br />

intensi<strong>da</strong>de praticamente indeterminável, senão a sinceri<strong>da</strong>de, ao menos a objetivi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> prova testemunhal. Impossível uma análise não-tópica desses fatores, a ponto de<br />

eleger a veraci<strong>da</strong>de como fun<strong>da</strong>mento político desse meio de prova.<br />

Por outro lado, resolver-se a questão do fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> prova testemunhal<br />

com base em sua imprescindibili<strong>da</strong>de configura ver<strong>da</strong>deira redundância. Está claro que a<br />

prova testemunhal é necessária, mas nem por isso possui mérito político.<br />

Esclareça-se que a colocação de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO é precisa,<br />

posto que insuficiente; de fato, a prova testemunhal é, no Brasil, imprescindível. E o é por<br />

diversas razões, muitas delas liga<strong>da</strong>s às condições sociais e econômicas do país.<br />

Essas condições, induvidosamente péssimas, impõem o freqüente acirramento de<br />

crises, que levam ao recrudescimento <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de patrimonial. Além disso, o<br />

desemprego, a piora <strong>da</strong>s condições de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> população, o enfavelamento, a exclusão<br />

<strong>da</strong> população <strong>da</strong>s decisões políticas, 423 fazem a criminali<strong>da</strong>de violenta, patrimonial ou<br />

não, também aprofun<strong>da</strong>r-se.<br />

Outrossim, <strong>da</strong>do que a maior parte <strong>da</strong> população não possui suficiente grau de<br />

instrução, as trocas de natureza econômica, mesmo quando opera<strong>da</strong>s pela classe média,<br />

422<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 575. Trecho original: “L’obiettività della testimonianza, postulata<br />

<strong>da</strong>lle norme, appare illusoria a chi consideri l’interno neuropsichico: già l’apparato sensorio sceglie i possibili<br />

stimoli; codificate secondo modelli relativi agli individui, le impressioni compongono un’esperienza percettiva<br />

i cui fantasmi variano alquanto nel processo mnemonico, tanto più se la reminiscenza no fosse spontanea<br />

ma sollecitata, come capità ai testimoni; infine, convertito in parole, il manipolatissimo prodotto mentale<br />

emerge come enunciato ‘factual’”.<br />

423<br />

Cf. PELLEGRINO, Hélio. “Psicanálise <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de brasileira: ricos e pobres”, em FSP,<br />

(7.out.1984), cad. “Folhetim”, p. 6-7: “A criminali<strong>da</strong>de dos miseráveis, dos famintos, dos desesperados, dos<br />

revoltados, exprime uma forma perversa de protesto social, que não conduz a na<strong>da</strong> e, sem dúvi<strong>da</strong>, piora<br />

tudo. O delinqüente, ao cometer o seu crime, não pretende nenhuma transformação <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Ao<br />

contrário, busca identificar-se imaginariamente com o seu inimigo de classe, copiando-lhe caricatamente os<br />

defeitos e deformi<strong>da</strong>des. Quando um ladrão assalta um apartamento na Vieira Souto, não comete ato de<br />

desapropriação socialista. Na ver<strong>da</strong>de, ele quer ocupar o lugar do milionário, usurpando-lhe o status e os<br />

privilégios”.<br />

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usualmente se realizam prescindindo de documentação, o que impõe a prova testemunhal<br />

como principal forma para sua comprovação ou utilização criminosa.<br />

Por essas razões e por outras que não cabe aqui aprofun<strong>da</strong>r, a prova testemunhal é,<br />

no processo penal brasileiro, a base <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória.<br />

Contudo, a prova testemunhal é freqüentemente invoca<strong>da</strong> e analisa<strong>da</strong> pela ativi<strong>da</strong>de<br />

crítica <strong>da</strong>s partes técnicas e decisória do órgão jurisdicional na forma de declarações<br />

extrajudiciais reduzi<strong>da</strong>s a termo. Tratam-se de depoimentos colhidos em segredo, durante<br />

o inquérito policial ou mesmo fora dele, sem a possibili<strong>da</strong>de de exame pela parte técnica<br />

contrária. Tecnicamente falando, configuram prova testemunhal; contudo, o fato de não<br />

ocorrer a necessária imediação <strong>da</strong>s testemunhas com o órgão julgador, violando, de uma<br />

só vez, os princípios do contraditório e ampla defesa, anula os porventura existentes<br />

fun<strong>da</strong>mentos políticos.<br />

Trata-se de alguma coisa muito comum no processo penal brasileiro vigente, tratado<br />

por uma boa parte <strong>da</strong> jurisprudência como ver<strong>da</strong>deira e própria prova testemunhal.<br />

Nesse passo, atende ao fun<strong>da</strong>mento político invocado por FERNANDO DA COSTA<br />

TOURINHO FILHO é justificável porque necessária; decerto será também acredita<strong>da</strong> pelo<br />

fun<strong>da</strong>mento invocado por NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA.<br />

Além disso, está claro que a prova testemunhal é, na grande maioria dos casos,<br />

imprescindível; mas também é ver<strong>da</strong>deiro afirmar-se que em crimes documentais ela é<br />

perfeitamente prescindível. O mesmo ocorre com a prova técnica e a prova documental,<br />

que em alguns casos serão imprescindíveis e em outros perfeitamente dispensáveis.<br />

Seguindo por esse caminho não se chega a lugar algum.<br />

Nenhuma <strong>da</strong>s duas posições é razoável. Nem é possível buscar-se o fun<strong>da</strong>mento<br />

político <strong>da</strong> prova testemunhal na imprescindibili<strong>da</strong>de de sua produção, nem o é na<br />

presunção de veraci<strong>da</strong>de e objetivi<strong>da</strong>de dos testemunhos. Em ambos, talvez, mas de uma<br />

maneira assaz remota; está claro que a prova testemunhal é imprescindível e que, para<br />

aceitá-la, é preciso aceitar senão a ver<strong>da</strong>de, ao menos a sinceri<strong>da</strong>de do ser humano.<br />

Contudo, tratam-se de fun<strong>da</strong>mentos extremamente remotos, imprestáveis à análise.<br />

Ao que parece, a questão do fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> prova testemunhal está mal<br />

coloca<strong>da</strong>. Não que não tenha relevância, mas a ver<strong>da</strong>de é que está mal formula<strong>da</strong>.<br />

É que a análise sobre qualquer prova, enquanto tal, sem referências históricas ou<br />

circunstanciais ou sem a análise do sistema processual em que se insere, carece de<br />

sentido. Abstraindo-se o sistema processual, qualquer meio de prova é meramente um<br />

instrumento técnico, ideologicamente neutro; produziram-se provas testemunhais,<br />

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técnicas e documentais em todos os sistemas, dos mais democráticos aos mais<br />

opressivos. Daí a inevitável pobreza de uma análise acerca de seus fun<strong>da</strong>mentos<br />

políticos.<br />

Daí por que é de ser busca<strong>da</strong> uma visa<strong>da</strong> mais promissora para a análise.<br />

O prisma <strong>da</strong> audiência processual penal, entretanto, mostra como um outro<br />

fun<strong>da</strong>mento político pode e deve ser buscado, com ganhos efetivos ao estudo do<br />

processo penal.<br />

A premissa para essa análise é também de ser busca<strong>da</strong> numa concepção política <strong>da</strong><br />

audiência processual penal, que deve reproduzir as condições sociais, garantindo a<br />

participação popular na discussão.<br />

b) o fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória em audiência<br />

A questão do fun<strong>da</strong>mento político <strong>da</strong> prova testemunhal, como visto, está mal<br />

coloca<strong>da</strong>. Para que se obtenha um resultado mais efetivo na análise do assunto, é<br />

preciso, isto sim, fun<strong>da</strong>mentar politicamente a ativi<strong>da</strong>de instrutória desenvolvi<strong>da</strong> em<br />

audiência processual penal.<br />

A premissa do presente estudo é, sabi<strong>da</strong>mente, de que a audiência processual penal<br />

– como o momento em que as partes se colocam em contato direto umas com as outras,<br />

ambas com o juiz e, juntamente com este com as provas orais, documentais e técnicas –<br />

é o instrumento mais apropriado para a busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de real.<br />

Além disso, a audiência processual penal é o momento de realização do ordenamento<br />

penal, que precisa do processo penal para tornar-se efetivo.<br />

Se, de fato, o Ordenamento jurídico-penal há de corresponder ao mínimo ético de<br />

uma determina<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, isto é, àquelas regras sem as quais a vi<strong>da</strong> de todos os<br />

estamentos sociais é impossível, é de extrema conveniência política que as pessoas que<br />

tiverem adquirido conhecimento pessoal dos fatos, em dose suficiente que possa ser<br />

considerado relevante, participem <strong>da</strong> solução <strong>da</strong> causa.<br />

Num ordenamento jurídico-penal “inflado” por duvidosas exigências de política<br />

criminal, nasci<strong>da</strong>s de um clima de ver<strong>da</strong>deiro terrorismo, 424 essa conveniência parece<br />

atenuar-se, porque se torna antes de tudo entediante a participação, como testemunha,<br />

em casos penais de escassa gravi<strong>da</strong>de, ca<strong>da</strong> vez mais freqüentes. Contudo, mesmo aqui<br />

424<br />

Cf., sobre o tema, RAMOS, João Gualberto Garcez. A inconstitucionali<strong>da</strong>de do “direito penal do<br />

terror”, Curitiba: Juruá, 1991, 95 p.<br />

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a participação é conveniente enquanto forma de perceber o quão “minimalista” parece ser<br />

o ordenamento penal.<br />

Com efeito, há maneira mais incisiva de demonstração <strong>da</strong> “inflação de normas penais”<br />

do que a análise crítica <strong>da</strong> relação custo-benefício na colheita de prova testemunhal em<br />

processos penais condenatórios relativos a crimes de bagatela? Nesses casos, não seria<br />

punir mais a testemunha do que o próprio acusado?<br />

Em qualquer dos dois casos, é politicamente saudável que o Estado estimule, o<br />

quanto possível, que provas orais sejam produzi<strong>da</strong>s em audiência, de maneira pública e<br />

contraditória.<br />

Em primeiro lugar, para possibilitar que a administração <strong>da</strong> justiça seja<br />

convenientemente fiscaliza<strong>da</strong> pela socie<strong>da</strong>de. 425 Em segundo, para ensejar uma<br />

aprendizagem de ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia ao maior número possível de pessoas leigas. Isso se faz<br />

através do júri, como se faz através <strong>da</strong>s testemunhas, que diretamente participam <strong>da</strong><br />

relação processual penal.<br />

É intuitivo que o tratamento meramente formal <strong>da</strong> prova testemunhal não corresponde<br />

à reali<strong>da</strong>de dos fatos. Mais do que simplesmente constituir uma prova, a testemunha<br />

comparece à audiência, para testemunhar, a fim de <strong>da</strong>r sua parcela de colaboração à<br />

solução do caso.<br />

FRANCESCO CARNELUTTI pareceu intuir essa reali<strong>da</strong>de, ao escrever que “existe outro<br />

indivíduo no centro do processo penal junto com o imputado: a testemunha. Os juristas,<br />

friamente, classificam a testemunha, junto com o documento, na categoria <strong>da</strong>s provas, e<br />

até em uma certa categoria de provas; essa sua frieza é necessária, como a do estudioso<br />

de anatomia que secciona o cadáver; porém ai! se se olvi<strong>da</strong> de que, enquanto o<br />

documento é uma coisa, a testemunha é um homem; um homem com seu corpo e com<br />

sua alma, com seus interesses e com suas tentações, com suas recor<strong>da</strong>ções e com seus<br />

esquecimentos, com sua ignorância e com com sua cultura, com sua valentia e com seu<br />

medo. Um homem que o processo coloca em uma posição incômo<strong>da</strong> e perigosa,<br />

submetido a uma espécie de requisição por utili<strong>da</strong>de pública, apartado de seu negócio e<br />

de sua paz, utilizado, espremido, inquirido, convertido em objeto de suspeita. Não<br />

conheço um aspecto <strong>da</strong> técnica penal mais preocupante do que o que se refere ao exame<br />

425 Cf. o conceito de publici<strong>da</strong>de em DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 222: “Considerando (...)<br />

que o processo penal desempenha uma função comunitária, que é assunto <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de jurídica, bem se<br />

compreende a sua publici<strong>da</strong>de como forma ótima de dissipar quaisquer desconfianças que possam suscitar<br />

sobre a independência e a imparciali<strong>da</strong>de com que é exerci<strong>da</strong> a justiça penal e são toma<strong>da</strong>s as decisões”.<br />

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e, em geral, ao trato do testemunho. Também aqui a exigência técnica termina por<br />

resolver-se em uma exigência moral; se a devesse resumir em uma fórmula, colocaria em<br />

um mesmo plano o respeito à testemunha e o respeito ao imputado”. 426<br />

A intuição de FRANCESCO CARNELUTTI se resolve na visão política <strong>da</strong> prova<br />

testemunhal como a de uma via de participação popular na administração <strong>da</strong> justiça<br />

criminal. Embora não se possa abrir mão de uma visão técnica <strong>da</strong> prova testemunhal, é<br />

preciso aceitar seu enorme matiz político.<br />

Examinando-se a questão a partir dele, percebe-se que a produção de prova<br />

testemunhal durante audiência processual penal marca<strong>da</strong> pelos princípios <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de,<br />

orali<strong>da</strong>de, imediação, contraditório e concentração é politicamente conveniente na medi<strong>da</strong><br />

em que possibilita a publicização ou, se preferir, socialização, cientificamente promissora,<br />

não só para o processo penal, como também para ordenamento penal, <strong>da</strong> relação<br />

processual penal. Nesse passo, impossível não se concor<strong>da</strong>r com FRANCESCO CARNELUTTI<br />

e aquiescer com um trato <strong>da</strong> testemunha como ver<strong>da</strong>deiro e próprio sujeito <strong>da</strong> relação<br />

processual penal.<br />

Antes de encerrar o presente item, contudo, é preciso também salientar que as<br />

vantagens <strong>da</strong> prova testemunhal realiza<strong>da</strong> em audiência, num país como o Brasil, há de<br />

ser convenientemente equaciona<strong>da</strong> com as reais condições de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> população, para<br />

que alguns de seus defeitos não a anulem.<br />

Não é possível negar que a história do Brasil é, mais do que qualquer outra coisa,<br />

uma história de repressão. Dessa maneira, é possível perceber que o relacionamento <strong>da</strong><br />

população brasileira com a autori<strong>da</strong>de pública não é natural, no sentido de ser claramente<br />

baseado no medo. Somando-se o “interno neuropsichico”, para usar a expressão de<br />

FRANCO CORDERO, a uma solicitação de invocação de lembranças francamente basea<strong>da</strong><br />

no medo, é de se ter, como resultado, um depoimento consideravelmente menos objetivo.<br />

Some-se a essa história de repressão a piora geral <strong>da</strong>s condições de vi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

426 CARNELUTTI, Francesco. Las miserias…, p. 49-50. Trecho original: “Pero existe otro individuo en el<br />

centro del proceso penal junto al imputado: el testigo. Los juristas, fríamente, clasifican al testigo, junto con<br />

el documento, en la categoría de las pruebas, y hasta en una cierta categoria de las pruebas; esta frial<strong>da</strong>d<br />

suya es necesaria, como la del estudioso de anatomía que secciona el cadáver; pero ¡ay! si se olvi<strong>da</strong> de<br />

que, mientra el documento es una cosa, el testigo es un hombre; un hombre con su cuerpo y con su alma,<br />

con sus intereses y con sus tentaciones, con sus recuerdos y con sus olvidos, con su ignorancia y con su<br />

cultura, con su valentía y con su miedo. Un hombre que el proceso coloca en una posición incómo<strong>da</strong> y<br />

peligrosa, sometido a una especie de requisición por utili<strong>da</strong>d pública, apartado de su negocio y de su paz,<br />

utilizado, exprimido, inquirido, convertido en objeto de sospecha. No conozco un aspecto de la técnica penal<br />

más preocupante que el que se refiere al examen y hasta, en general, al trato del testigo. También aqui, por<br />

lo demás, la exigencia técnica termina por resolverse en una exigencia moral; si la debiese resumir en una<br />

fórmula, colocaría en el mismo plano el respeto al testigo y el respeto al imputado”.<br />

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população, que paulatinamente vem se tornando mais séria. As más condições sociais e<br />

econômicas geram, além do recrudescimento de certa criminali<strong>da</strong>de, testemunhas menos<br />

instruí<strong>da</strong>s que, por conseqüência, têm ca<strong>da</strong> vez maior dificul<strong>da</strong>de de comunicação com os<br />

órgãos judiciários.<br />

O exame <strong>da</strong> psicologia dos depoimentos prestados em processos penais<br />

condenatórios, em países desenvolvidos, portanto, não pode ser indiscrimina<strong>da</strong>mente<br />

transposto para o Brasil.<br />

É possível afirmar que, em países desenvolvidos, as testemunhas, tendo um melhor<br />

grau de instrução e, portanto, maior familiari<strong>da</strong>de com a figura <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de, com ela<br />

melhor e mais eficazmente se comunicam. De regra, não padecem de temores<br />

infun<strong>da</strong>dos em relação aos órgãos públicos participantes <strong>da</strong> audiência processual penal.<br />

Por tal razão, ou depõem com maior naturali<strong>da</strong>de, ou sem que suas vontades estejam<br />

vicia<strong>da</strong>s por falsos motivos de temor.<br />

É o que leciona, com precisão, GUSTAV RADBRUCH, que afirma que as testemunhas<br />

britânicas têm, usualmente, comunicação mais eficaz com os juízes e partes técnicas,<br />

respondendo com objetivi<strong>da</strong>de e possibilitando a excelência <strong>da</strong> cross examination. 427<br />

Num modelo misto, como o brasileiro, avulta a importância <strong>da</strong> atuação do juiz criminal.<br />

Sendo autori<strong>da</strong>de e, mais que isso, constituindo-se na autori<strong>da</strong>de pìu eminente <strong>da</strong><br />

relação processual penal, não resta dúvi<strong>da</strong>s que seu relacionamento com a testemunha<br />

de parcos recursos intelectuais há de ser marcado pela sensibili<strong>da</strong>de.<br />

Num processo penal inquisitório, porém, em que a tendência é o estabelecimento de<br />

teses antes que tenha chegado o momento de julgar, a sensibili<strong>da</strong>de talvez não seja<br />

suficiente.<br />

O mais correto parece ser a subtração, ao menos do seu aspecto principal, <strong>da</strong> prova<br />

testemunhal do domínio <strong>da</strong> atuação judicial. A revogação do sistema presidencial, nesse<br />

passo, é questão crucial.<br />

Assim, resumindo, a legitimi<strong>da</strong>de política <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória desenvolvi<strong>da</strong> em<br />

audiência processual penal no Brasil de hoje há de ser a conveniência política de<br />

favorecer a participação popular na administração <strong>da</strong> justiça criminal.<br />

427 RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 27-30.<br />

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Seção B<br />

O interrogatório<br />

(ativi<strong>da</strong>de instrutória lato sensu)<br />

§ 1º Conceitos<br />

Historicamente, a doutrina processual penal brasileira hesitou em definir o<br />

interrogatório processual penal. Quando o fez, trabalhou com conceitos analíticos e não<br />

sintéticos, vinculando o conceito a uma toma<strong>da</strong> de posição acerca <strong>da</strong> natureza jurídica do<br />

interrogatório processual penal. Por último, esquece-se de que, em um <strong>da</strong>do sistema<br />

processual penal, freqüentemente há diferentes interrogatórios e não apenas um.<br />

428-429 Como primeiro exemplo de definição analítica, tem-se a de JOSÉ FREDERICO MARQUES:<br />

“Consiste o interrogatório em declarações do réu resultantes de perguntas formula<strong>da</strong>s<br />

para esclarecimento do fato delituoso que se lhe atribui e de circunstâncias pertinentes a<br />

esse fato”. 430<br />

FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO manifestou-se a respeito, definindo o<br />

interrogatório como o meio através “do qual o Juiz ouve do pretenso culpado<br />

esclarecimentos importantes sobre a imputação que lhe é feita e, ao mesmo tempo, colhe<br />

<strong>da</strong>dos importantes para o seu convencimento”. 431<br />

Mais analítico ain<strong>da</strong>, porém, é o conceito proposto por JULIO FABBRINI MIRABETE: “a<br />

audiência de interrogatório constitui ato solene, formal, de instrução, sob a presidência do<br />

juiz, em que este in<strong>da</strong>ga do acusado sobre os fatos articulados na denúncia ou queixa,<br />

428<br />

Cf., a respeito, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 440-463, que não fornece uma natureza<br />

jurídica única ao interrogatório, bem como SOUSA, João Castro e. A tramitação…, p. 210-215, que<br />

descreve os diversos tipos de interrogatório previstos pelo ordenamento processual penal português<br />

reformado pelo Decreto-lei n. 605, de três de novembro de 1975.<br />

429<br />

Cf., a respeito, <strong>da</strong>ndo características diferentes aos interrogatórios conforme realizados em ca<strong>da</strong><br />

fase do procedimento, BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos… Quanto ao interrogatório realizado<br />

na fase de formação <strong>da</strong> culpa, logo após o cometimento do crime (JOSÉ FREDERICO MARQUES esclarece que,<br />

hoje, essa espécie de interrogatório só existe no inquérito policial), PIMENTA BUENO escreve: “O<br />

interrogatório feito logo aproveita os vestígios ain<strong>da</strong> vivos do delito e suas circunstâncias; é um meio assim<br />

de esclarecimento como de defesa do réu, pois este não é constrangido a dizer senão o que quiser, e pode<br />

até guar<strong>da</strong>r silêncio (...). Entretanto, por isso mesmo que é um meio de defesa, o réu deve desde logo ser<br />

ouvido; e, como é simultaneamente meio de reconhecer a ver<strong>da</strong>de, não deve o juiz olvidá-lo, e pode repetir<br />

as perguntas, sempre que entender isso conveniente, qualquer que seja o estado <strong>da</strong> causa” (p. 356-357).<br />

Quanto ao interrogatório realizado no plenário do tribunal do júri, ao revés, BUENO observa: “O<br />

interrogatório tem pois o caráter de um meio de defesa: mediante ele pode o acusado expor antecedentes<br />

que justifiquem ou atenuem o crime, opor exceções contra as testemunhas, e indicar fatos ou provas que<br />

estabeleçam sua inocência. Então ele é o próprio advogado de si mesmo, é a natureza que pugna pela<br />

conservação de sua liber<strong>da</strong>de e vi<strong>da</strong>, que fala perante juízes que observam seus gestos e suas emoções”<br />

(p. 423).<br />

430<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 322.<br />

431 TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 3, p. 265.<br />

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deles lhe <strong>da</strong>ndo ciência, ao tempo em que abre oportuni<strong>da</strong>de de defesa”. 432<br />

Tais definições, como visto, pecam por sua metodologia que, analiticamente, prestigia<br />

aspectos acidentais do objeto a ser conceituado, tornando, ao mesmo tempo, impuro e<br />

imprestável o conceito.<br />

Em primeiro lugar, ao interrogatório processual penal não é essencial a elaboração de<br />

perguntas ao interrogado. No interrogatório do atual CPP, por coincidência, essas<br />

perguntas são previstas, mas não se constituem elas em essência do ato. 433<br />

Em segundo lugar, a questão <strong>da</strong> colheita de provas ou de elementos de convicção –<br />

seja ela verifica<strong>da</strong>, frustra<strong>da</strong> ou mesmo não busca<strong>da</strong> – é algo que vai depender <strong>da</strong><br />

natureza jurídica que o interrogatório tiver naquele determinado sistema processual penal.<br />

Acrescentar a definição acerca <strong>da</strong> natureza jurídica ao conceito é torná-lo inoperante em<br />

outro <strong>da</strong>do sistema processual penal.<br />

Assim, em sintéticos termos jurídicos, o interrogatório processual penal pode ser<br />

conceituado como sendo o ato processual penal consistente na oitiva do imputado<br />

(indiciado ou acusado) por um órgão público, durante um procedimento oficial de natureza<br />

processual penal.<br />

Aí estão, quer-se crer, as notas essenciais desse ato processual.<br />

ENRICO ALTAVILLA refere-se a um conceito psicológico, pelo qual o interrogatório é<br />

definível como “depoimento prestado em resposta a perguntas”. 434<br />

No presente estudo, preferir-se-á o conceito jurídico proposto como hipótese de<br />

trabalho.<br />

Aceita-se a assertiva de que o interrogatório é uma espécie de testemunho, conforme<br />

registra NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA. 435 Contudo, por ser ele o testemunho de<br />

432 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 265.<br />

433 Cf., a título de exemplo, a exposição do procedimento penal ordinário na Alemanha que faz<br />

COLOMER, Juan-Luis Gomes. El proceso…, p. 231-239. Segundo esse autor, há diversos interrogatórios<br />

nesse procedimento. O primeiro interrogatório, realizado antes <strong>da</strong> admissão <strong>da</strong> acusação, é um<br />

interrogatório pessoal, realizado entre o juiz e o ain<strong>da</strong> indiciado, sem a presença de qualquer outra pessoa<br />

no local e marcado por perguntas formulares [§ 243, apartado (2) Strafprozessordnung (StPO) ou “Código<br />

de Processo Penal”). O segundo interrogatório, após a admissão <strong>da</strong> acusação, relaciona-se<br />

especificamente com a causa e não possui perguntas formulares: qualquer in<strong>da</strong>gação é diretamente<br />

determina<strong>da</strong> pelo caso em julgamento. Nesse interrogatório, o acusado é advertido de que pode que<strong>da</strong>r-se<br />

calado. Se concor<strong>da</strong>r em declarar, é realizado o interrogatório [§ 243, apartado (4) StPO]. Por fim, após a<br />

prática <strong>da</strong>s provas e os informes finais, o acusado ain<strong>da</strong> tem a oportuni<strong>da</strong>de, antes <strong>da</strong> prolatação <strong>da</strong><br />

decisão, de uma “última palavra”, antes do tribunal, geralmente escabinado, retirar-se <strong>da</strong> sala de audiências<br />

para, secretamente, deliberar [§ 258, apartados (2) e (3) StPO].<br />

434 ALTAVILLA, Enrico. Psicologia…, p. 12.<br />

435 MALATESTA, Framarino dei. Lógica…, v. 2, p. 20.<br />

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alguém suspeito <strong>da</strong> prática de um mal, não pode visar, preeminentemente, a obtenção de<br />

provas. Por tais razões, mas principalmente porque o interrogatório, em qualquer sistema<br />

processual penal, evoca questões particularíssimas, será analisado separa<strong>da</strong>mente <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de instrutória propriamente dita, mormente testemunhal, produzi<strong>da</strong> durante a<br />

audiência. Demais disso, está justifica<strong>da</strong> a inclusão do interrogatório dentro <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

instrutória lato sensu: é que, mesmo que o objetivo do interrogatório não seja obter<br />

provas, a existência do art. 59 do CP impõe que, nesse momento de contato pessoal, a<br />

autori<strong>da</strong>de policial e juiz colham elementos de convicção importantes para a<br />

caracterização <strong>da</strong> personali<strong>da</strong>de do imputado, aquele cautelarmente e este<br />

definitivamente.<br />

Por vezes, será feita referência à audiência de interrogatório, o que não ocorrerá em<br />

outras vezes, em que referir-se-á apenas ao interrogatório processual penal propriamente<br />

dito.<br />

No primeiro caso, o objeto de análise será a audiência exclusivamente convoca<strong>da</strong><br />

para ouvir o acusado: nessa audiência realiza-se um interrogatório processual penal,<br />

na<strong>da</strong> mais.<br />

A audiência processual penal de interrogatório é um momento processual, enquanto<br />

interrogatório processual penal é, com to<strong>da</strong> evidência, um ato processual penal.<br />

Tal distinção é útil, nos limites do presente estudo, para diferençar o interrogatório<br />

realizado em audiência exclusiva, do interrogatório realizado no bojo de audiência<br />

convoca<strong>da</strong> também para outros fins, como a instrução e o julgamento, por exemplo. As<br />

conseqüências dessa diferença são mais relevantes do que, a princípio, podem parecer.<br />

§ 2º Caracteres<br />

a) o interrogatório e os “sistemas”<br />

1. sistema inquisitório<br />

A característica primeira do interrogatório processual penal num sistema inquisitivo<br />

também o é <strong>da</strong> própria audiência nesse sistema: o seu desenvolvimento em segredo, ou<br />

com publici<strong>da</strong>de sumamente restringi<strong>da</strong>. Outras características, porém, podem ser<br />

encontra<strong>da</strong>s.<br />

No processo inquisitivo, conforme é sabido, o juiz tem o poder-dever de buscar as<br />

provas para a formação de seu convencimento – atitude paranóica, conforme FRANCO<br />

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CORDERO 436 – mas de outra parte é também vinculado a uma tábua de valoração de<br />

provas, o que “representava também uma espécie de barreira contra os excessos ain<strong>da</strong><br />

piores que poderiam derivar do arbítrio dos juízes <strong>da</strong>quela época”. 437<br />

No interrogatório inquisitivo vige o princípio reo tenetur se accusare, caracterizado,<br />

conforme FRANCO CORDERO, pelo fato do acusado ser examinado sob juramento e de,<br />

ocorrendo os indícios ad torturam, poder ser a ela submetido: “O universo inquisitório<br />

nasce dos labirintos introspectivos: o imputado deve ‘se detegere’, confessando-se<br />

culpado quando o seja; em todo interrogatório jura; e ocorrendo indícios ad torturam,<br />

sofre-a”. 438<br />

Outra característica acidental do interrogatório inquisitivo é a utilização dos<br />

denominados interrogatórios sugestivos ou cavilosos.<br />

Nessa espécie de interrogatório, o acusado é levado a responder o que o interrogante<br />

deseja. Se o interrogante deseja que diga coisas contraditórias, o interrogado será levado<br />

a fazê-lo. Se o interrogante deseja beneficiá-lo, o interrogante será levado a dizer as<br />

coisas certas.<br />

O Marquês de BECCARIA, ao analisar os interrogatórios sugestivos, lembra que leis <strong>da</strong><br />

época os proibiram, tendo em vista evitar que a autori<strong>da</strong>de interrogante beneficiasse o réu<br />

através de uma sugestão a ele benéfica. Com isso, o célebre polemista milanês salienta a<br />

contradição existente entre essa proibição e a permissão <strong>da</strong> tortura, pois a dor é o maior<br />

dos instrumentos de sugestão, só que funciona unicamente contra os interesses do<br />

imputado. 439<br />

436 CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21 e 25.<br />

437 CAPPELLETTI, Mauro. “Ideologia en el derecho procesal”, em Proceso…, p. 7. Trecho original:<br />

“representaba también una especie de barrera contra los excesos aún peores que habrían podido derivar<br />

del arbitrio de los jueces de aquella época”.<br />

438<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 610. Trecho original: “L’universo inquisitorio nasce <strong>da</strong>i labirinti<br />

introspettivi: l’imputato deve ‘se detegere’, confessandosi colpevole quando lo sia; ad ogni interrogatorio<br />

giura; e ricorrendo indizi ad torturam, la subisce”.<br />

439<br />

BECCARIA, Cesare. Dei delitti…, p. 105-106: “Le nostre leggi proscrivono le interrogazioni che<br />

chiamansi suggestive in un processo: quelle cioè secondo i dottori, che interrogano della specie, dovendo<br />

interrogare del genere, nelle circostanze d’un delitto: quelle interrogazioni cioè che, avendo un’immediata<br />

conessione col delitto, suggeriscono al reo una immediata risposta. Le interrogazioni secondo i criminalisti<br />

devono per di cosí spiralmente il fatto, ma non an<strong>da</strong>re giammai per diritta linea a quello. I motivi di questo<br />

metodo sono o per non suggerire al reo una risposta che lo metta al coperto dell’accusa, o forse perché<br />

sembra contro la natura stessa che un reo si accusi immediatamente <strong>da</strong> sé. Qualunque sia di questi due<br />

motivi è rimarcabile la contradizione delle leggi che unicamente a tale consuetudine autorizzano la tortura;<br />

imperocché qual’interrogazione piú suggestiva del dolore? Il primo motivo si verifica nella tortura, perché il<br />

dolore suggerirà al robusto un’ostinata taciturnità onde cambiare la maggior pena colla minore, ed al debole<br />

suggerirà la confessione onde liberarsi <strong>da</strong>l tormento presente piú efficace per allora che non il dolore<br />

avvenire”. Il secondo motivo è ad evidenza lo stesso, perché se una interrogazione speciale fa contro il<br />

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A atuação mais freqüente e socialmente <strong>da</strong>nosa, porém, consiste em valer-se o<br />

interrogante de sua cultura e habili<strong>da</strong>de para sugestionar o acusado e levá-lo a cair em<br />

contradições para, enfim, confessar a prática de um ilícito.<br />

Há exemplos característicos de interrogatórios sugestivos no romance “O nome <strong>da</strong><br />

rosa”, de UMBERTO ECO, coman<strong>da</strong>dos pelo seu personagem, inquisidor BERNARDO<br />

GUIDONI, ou BERNARDO GUI, “como quiserdes chamá-lo”. 440<br />

Em seu libelo contra a tortura, PIETRO VERRI faz, outrossim, condenação à “insidiosa<br />

cavilação utiliza<strong>da</strong> no processo contra alguns infelizes”. 441<br />

O antigo processualista penal francês ANTOINE TOUSSAINT DESQUIRON DE SAINT-AGNAN<br />

descreve com precisão e condena com veemência o interrogatório sugestivo: “O<br />

Procurador Geral Servant abominou to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> um artifício que, naqueles tempos,<br />

gozava de grande reputação e que consistia em enre<strong>da</strong>r o acusado com perguntas<br />

insidiosas, até de falso fun<strong>da</strong>mento, para assim descobrir a ver<strong>da</strong>de; entendia ele que o<br />

juiz não deve de qualquer maneira apertar o acusado, a não ser quando a sua<br />

desatenção fosse prejudicial, a ele ou a terceiros. Por isso as perguntas insidiosas, as<br />

suposições falsas, em suma, qualquer mentira destina<strong>da</strong> a envolver o acusado, eram<br />

abomina<strong>da</strong>s por aquele bom magistrado. E estes princípios, dizia-nos ele, dirigem-se ao<br />

magistrado, ao ministro <strong>da</strong> lei, a quem chamaria o investigador <strong>da</strong> inocência, se<br />

procurássemos um nome para significar os seus deveres. Princípios indispensáveis em<br />

relação a um acusado, quase sempre de espírito e coração perturbados: em vez de<br />

insídias, é digno de socorro; ca<strong>da</strong> pergunta que não se refira diretamente ao crime, ca<strong>da</strong><br />

pergunta acidental, é funesta. O acusado, que se submete ao interrogatório de um juiz,<br />

está absolutamente convencido de que ca<strong>da</strong> pergunta pode ser capital; ca<strong>da</strong> interrogação<br />

parece, aos seus olhos, ameaçar-lhe a vi<strong>da</strong>: e pede, por isso, para lha repetirem,<br />

dispondo imaginárias defesas contra as palavras do magistrado. Numa tal disposição, se<br />

lhe é feita uma pergunta sem grande interesse, e se, realmente, ele fez aquilo que o juiz<br />

lhe pergunta, logo se perturba: negará, ou confessará? – De certo não me interrogou sem<br />

um fim... quem sabe que conseqüências ele irá tirar disto!... O que hei de dizer agora? – o<br />

que lhe inspira a fraqueza e o medo, a mentira: o acusado negará. O juiz, sereno,<br />

diritto di natura confessare un reo, gli spasimi lo faranno molto più facilmente: ma gli uomini piú <strong>da</strong>lla<br />

differenza de’ nomi si regolano che <strong>da</strong> quella delle cose”.<br />

440<br />

ECO, Humberto. O nome…, p. 245 e 420-442: “quinto dia, nona: onde se aplica a justiça e tem-se a<br />

embaraçosa impressão de que todos estejam errados”.<br />

441<br />

VERRI, Pietro. Observações…, p. 53.<br />

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Currículo<br />

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depressa vê que ele mentiu e fica desconfiado: o acusado está perdido! é surpreendido<br />

com a confissão na boca, está aterrado: o sr. é um mentiroso, diz-lhe o juiz; ele atrapalha-<br />

se, empalidece, treme, balbucia. – O que acontece? O juiz pensou ter descoberto um<br />

culpado e, pelo contrário, foi ele quem o criou”. 442<br />

Também é característica do interrogatório inquisitivo a maliciosa utilização do tempo.<br />

Através do revezamento de interrogadores, o acusado é levado à exaustão, ocasião em<br />

que suas defesas se atenuam, sendo induzido a confessar qualquer coisa, a título de<br />

contraparti<strong>da</strong> para ser deixado em paz.<br />

443-444 A utilização de to<strong>da</strong> sorte de constrangimentos, desde o físico até o moral, é também<br />

uma característica do interrogatório inquisitivo.<br />

Por fim, o interrogatório inquisitivo, conforme deixou claro FRANCO CORDERO, é<br />

conduzido com o interrogado tendo o tempo inteiro a consciência de que, a qualquer<br />

momento, poderá ser submetido a alguma espécie de constrangimento moral ou tormento<br />

físico, se não são eles contemporâneos ao ato.<br />

O mais ocorrente é a utilização combina<strong>da</strong> de to<strong>da</strong>s essas características: ausência<br />

de publici<strong>da</strong>de, utilização maliciosa <strong>da</strong>s habili<strong>da</strong>des retóricas e mesmo cênicas do<br />

interrogante, tempo indetermina<strong>da</strong>mente longo, constrangimento físico e moral e ameaça<br />

de tormento.<br />

PATRICK MARNHAM, biógrafo do escritor belga GEORGES SIMENON, descreve um<br />

episódio interessante do princípio <strong>da</strong> carreira do escritor, o qual é eluci<strong>da</strong>tivo dos métodos<br />

inquisitivos de exame do réu: “Os primeiros Maigrets foram aparentemente um sucesso tal<br />

que eram lidos pelo Chefe do CID de Paris, Xavier Guichard. Ele mais tarde chamou<br />

Simenon e disse-lhe que um escritor que chegava a tais extremos para tornar seus livros<br />

realistas devia ser informado de como evitar tantos erros fun<strong>da</strong>mentais. Simenon foi então<br />

apresentado a m. Guillaume, e permitiram-lhe percorrer os bastidores do Quai des<br />

442 DESQUIRON DE SAINT-AGNAN, Antoine Toussaint. Trattato della prova dei testimoni in materia<br />

criminale, trad. para o italiano de Starita. Nápoles: sem editora, 1833, apud ALTAVILLA, Enrico.<br />

Psicologia…, p. 33.<br />

443 Cf. VERRI, Pietro. Observações…, p. 77-82.<br />

444 Cf. TANZI, Eugenio. Psichiatria forense, Milão: Vallardi, 1911, p. 124 apud ALTAVILLA, Enrico.<br />

Psicologia…, p. 79: “Certos indivíduos tímidos, emocionáveis, sugestionáveis, confusos, não podem resistir<br />

por muito tempo a um interrogatório inquisitorial cheio de perguntas sugestivas, de dilemas angustiosos, de<br />

exortações a uma confissão completa, de lisonjas e de intimi<strong>da</strong>ções. Depois de haver cedido uma primeira<br />

vez acerca de um pormenor de cujo alcance não desconfiava, por confusão, por fraqueza, em virtude <strong>da</strong><br />

sua impulsivi<strong>da</strong>de emotiva, por um errado cálculo de defesa, estes indivíduos acabam por confessar o crime<br />

que lhes é atribuído com todos os pormenores que lhe são sugeridos ou até com outros inventados, que<br />

oportunamente são, com facili<strong>da</strong>de, desmentidos pela instrução”.<br />

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Currículo<br />

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Orfèvres e até assistir a interrogatórios de presos. Viu presos serem dobrados num<br />

período de 24 ou 48 horas, numa maratona de interrogatório realiza<strong>da</strong> por uma equipe de<br />

seis ou sete policiais, e disse acreditar que um homem como Guillaume jamais usaria<br />

violência num interrogatório, porque simplesmente não precisava. Também viu um<br />

suspeito ser despido e interrogado diante de uma sala cheia de policiais inteiramente<br />

vestidos. ‘Garanto a vocês que na<strong>da</strong> desconcerta mais um homem do que ficar nu, sem<br />

bolsos, sem absolutamente na<strong>da</strong>. É muito difícil contar mentiras muito tempo em tais<br />

trajes’, disse”. 445<br />

MICHEL FOUCAULT observa que não é característica do interrogatório inquisitório a<br />

liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s formas, a fim de facilitar o trabalho do inquisidor. Segundo esse autor, ao<br />

contrário, um interrogatório de matiz inquisitória é perfeitamente regrado: “o interrogatório<br />

não é uma maneira de arrancar a ver<strong>da</strong>de a qualquer preço; não é absolutamente a louca<br />

tortura dos interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de<br />

uma prática regulamenta<strong>da</strong>, que obedece a um procedimento bem definido, com<br />

momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos <strong>da</strong>s cor<strong>da</strong>s, peso dos<br />

chumbos, número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo os<br />

diferentes hábitos, cui<strong>da</strong>dosamente codificado”. 446<br />

Em síntese, os interesses do interrogante, num sistema inquisitório, na atitude de<br />

interrogar, são os de extrair do acusado uma prova tranqüilizadora (porque altamente<br />

gradua<strong>da</strong>): a confissão.<br />

2. sistema acusatório<br />

O interrogatório processual penal de matiz acusatória é principalmente caracterizado<br />

pela publici<strong>da</strong>de, sob cujo signo se desenvolve.<br />

O interrogatório acusatório é, quase exclusivamente, um meio de defesa. É, mais do<br />

que tudo, a melhor oportuni<strong>da</strong>de conferi<strong>da</strong> pela lei para que o acusado apresente sua<br />

versão acerca <strong>da</strong> acusação.<br />

A possibili<strong>da</strong>de de transformação do interrogatório acusatório, de meio de defesa, em<br />

meio de prova, é também a ele inerente.HÉLIO TORNAGHI escreve que “no Direito inglês é<br />

comum prometer-se a impuni<strong>da</strong>de ao acusado que aponta os co-réus. Geralmente<br />

quando a participação <strong>da</strong>quele foi de somenos importância e a do co-autor ignorado de<br />

445<br />

MARNHAM, Patrick. O homem…, p. 151 [sem grifo no original]. CID é o departamento de polícia<br />

francês.<br />

446<br />

FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 39.<br />

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grande realce. O interrogado é então considerado Witness for the Crown, testemunha<br />

pública, testemunha <strong>da</strong> acusação, ao pé <strong>da</strong> letra: testemunha em favor <strong>da</strong> Coroa”. 447<br />

Quanto ao processo penal estadunidense, leciona METELLO SCAPARONE que “o<br />

imputado é ‘competent witness’, isto é, pode depor como testemunha, sob prévio<br />

juramento, sobre os fatos deduzidos na imputação. Ele, porém, é protegido pelo ‘privilege<br />

against self-incrimination’, <strong>da</strong>í não ser ‘compallable witness’, isto é, não pode ser<br />

notificado a depor e, em geral, interrogado pela acusação. Uma vez que, como é sabido,<br />

o ‘privilege against self-incrimination’ exonera o imputado somente <strong>da</strong>s prestações que<br />

têm caráter testemunhal, o ‘prossecuting attorney’ pode de qualquer maneira deduzir no<br />

seu ‘case for the prossecuting’ os resultados <strong>da</strong> recognição e <strong>da</strong>s investigações técnicas<br />

às quais o acusado foi submetido na fase <strong>da</strong>s investigações <strong>da</strong> polícia”. 448<br />

É uma <strong>da</strong>s mais importantes e destaca<strong>da</strong>s características do interrogatório puramente<br />

acusatório ser um exame direto do interrogado pelas partes, que se sucedem nessa<br />

tarefa, restando ao juiz a oportuni<strong>da</strong>de de esclarecer-se acerca de algum ponto lhe<br />

pareça nebuloso. É o sistema <strong>da</strong> direct-cross-re-examination, característico do sistema<br />

acusatório do common law. 449<br />

Assim, do ponto de vista do juiz, é possível afirmar que o interrogatório acusatório é<br />

marcado pela simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong>de, ao contrário do sistema inquisitório, que<br />

impõe ao julgador uma excessiva subjetivização, inerente ao sistema.<br />

Nele, interrogatório acusatório, o juiz limita-se a ouvir o que o acusado tem a dizer em<br />

sua defesa, sem investigar seus motivos ao cometer seu crime, sua personali<strong>da</strong>de etc.<br />

Do ponto de vista <strong>da</strong>s partes, o interrogatório acusatório é marcado pelo intenso<br />

contraditório, que não é sua característica no sistema inquisitivo. Daí ser correto dizer que<br />

no interrogatório acusatório avulta a ativi<strong>da</strong>de administrativa, de polícia do juiz, no conter<br />

os excessos <strong>da</strong>s partes.<br />

Por fim, a característica central do interrogatório acusatório é que seu presidente está<br />

afastado, pelas características do sistema, <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória. Conforme é sabido, no<br />

447<br />

TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 393.<br />

448<br />

SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 101-102. Trecho original: “l’imputato è ‘competent<br />

witness’, cioè può deporre como testimone, previo giuramento, sui fatti dedotti in imputazione. Egli, però, è<br />

protetto <strong>da</strong>l ‘privilege against self-incrimination’ e quindi non è ‘compellable witness’, cioè non può essere<br />

chiamato a deporre e in generale interrogato <strong>da</strong>ll’accusa. Poichè, com’è noto, il ‘privilege against selfincrimination’<br />

esonera l’imputato <strong>da</strong>lle sole prestazioni aventi ‘carattere testimoniale’, il ‘prossecuting<br />

attorney’ può comunque dedurre nel ‘case for the prossecuting” i risultati della ricognizione e di qualsiasi<br />

in<strong>da</strong>gine tecnica cui l’imputato sia stato sottoposto nella fase delle in<strong>da</strong>gini di polizia”.<br />

449<br />

PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 21.<br />

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sistema acusatório o juiz é instruído, enquanto no sistema inquisitório ele próprio se<br />

instrui.<br />

A Suprema Corte dos Estados Unidos, sobretudo a partir do regramento dos<br />

interrogatórios policiais, modificou o aspecto do interrogatório acusatório naquele país.<br />

Essa modificação principiou com o caso Miran<strong>da</strong> v. Arizona, 384 US 436 (1966). Esse<br />

caso fixou um princípio básico: o de que ao acusador, caso queira utilizar-se de<br />

declarações presta<strong>da</strong>s pelo acusado na fase investigatória, deverá comprovar que a<br />

toma<strong>da</strong> dessas declarações obedeceu a diversas formali<strong>da</strong>des, que são: a) ciência clara<br />

ao preso de seu direito ao silêncio e admoestação de que qualquer manifestação que<br />

prestar poderá ser usa<strong>da</strong> contra sua pessoa; b) ciência de que tem direito a um<br />

advogado, que o defenderá e que esse advogado poderá estar presente ao interrogatório<br />

policial; c) concessão de efetiva oportuni<strong>da</strong>de de acompanhamento de advogado no<br />

interrogatório policial, que deverá ser suspenso até a chega<strong>da</strong> desse profissional; d)<br />

concessão de oportuni<strong>da</strong>de ao imputado de comunicar-se com seu advogado, antes de<br />

responder a ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s perguntas <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial; e) concessão de idêntica<br />

oportuni<strong>da</strong>de de patrocínio de advogado ao imputado que não possua meios econômicos<br />

para tanto; f) registro estreme de dúvi<strong>da</strong>s de eventual renúncia do imputado a qualquer<br />

desses direitos. 450<br />

“Se em juízo o promotor não demonstra que todos esses requisitos foram<br />

observados”, ensina ALEJANDRO D. CARRIÓ, “nenhuma evidência obti<strong>da</strong> como<br />

conseqüência do interrogatório pode ser usa<strong>da</strong> contra o acusado”. 451<br />

450<br />

Cf. a opinião do Chief Justice EARL WARREN em RODRIGUES, Lê<strong>da</strong> Boechat. A Corte de Warren…,<br />

p. 205-206: “A compreensão <strong>da</strong> natureza do interrogatório dos presos e do ambiente que é feito é essencial<br />

para a nossa decisão de hoje. A dificul<strong>da</strong>de de descrever o que se passa em tais interrogatórios decorre do<br />

fato de que neste país eles foram quase sempre feitos estando o acusado incomunicável. (...). Numa série<br />

de casos decididos por esta Corte (...) a polícia recorria à brutali<strong>da</strong>de física – surras, suspensão do solo,<br />

açoites – e a interrogatórios insistentes e prolongados dos acusados, mantidos incomunicáveis, a fim de<br />

lhes serem extorqui<strong>da</strong>s confissões. Em 1961, a Comissão de Direitos Civis encontrou muitas provas<br />

indicando que ‘alguns policiais ain<strong>da</strong> recorrem à violência para obter confissões’. O uso <strong>da</strong> brutali<strong>da</strong>de física<br />

e <strong>da</strong> violência não está, infelizmente, relegado ao passado em qualquer parte do país. Queremos reafirmar,<br />

entretanto, que as modernas práticas de interrogatório policial são mais orienta<strong>da</strong>s psicológica que<br />

fisicamente. Como dissemos antes, desde Chambers v. Flori<strong>da</strong> (1940) esta Corte reconheceu que a coação<br />

pode ser tanto mental quanto física e que o sangue do acusado não é o único sinete de uma inquisição<br />

inconstitucional”.<br />

451<br />

CARRIÓ, Alejandro D. Garantías…, p. 138. Trecho original: “si en el juicio del acusado el fiscal no<br />

demuenstra que todos estos requisitos han sido observados, ninguna evidencia obteni<strong>da</strong> como<br />

consecuencia del interrogatorio puede ser usa<strong>da</strong> en contra de aquél”.<br />

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b) princípios e regras<br />

1. publici<strong>da</strong>de<br />

No processo penal brasileiro, o interrogatório somente não se realiza publicamente<br />

durante o inquérito policial. Nos demais casos, o interrogatório é realizado em audiência<br />

pública, salvo se concorrer quaisquer <strong>da</strong>s hipóteses de restrição ou mesmo anulação <strong>da</strong><br />

publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> audiência, previstas no § 1º do art. 792 do CPP ou no art. 155 do CPC,<br />

invocado analogicamente.<br />

Quanto à publici<strong>da</strong>de, há que se fazer um destaque ao interrogatório realizado<br />

durante a sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri. Nesse<br />

momento processual, a publici<strong>da</strong>de é induvidosamente amplia<strong>da</strong>.<br />

2. orali<strong>da</strong>de e imediação<br />

Algumas <strong>da</strong>s características mais salientes do interrogatório, no processo penal<br />

brasileiro, são a orali<strong>da</strong>de e imediação em que se desenvolve.<br />

A autori<strong>da</strong>de pública formula oral e diretamente as perguntas ao interrogado. A forma<br />

de transmissão <strong>da</strong>s respostas do acusado ao juiz também é oral, embora o CPP não<br />

possua regra expressa a respeito, proibindo, por exemplo, o acusado de transmitir ao juiz<br />

suas respostas por escrito. Essa forma de transmissão, em todo o caso, não equivaleria a<br />

um silêncio. Não foi encontrado caso na jurisprudência de interrogado que, podendo fazêlo,<br />

tenha se recusado a responder oralmente ao juiz, preferindo a forma escrita.<br />

Há alguns casos de interrogatórios especiais, em que se impõem exceções ao<br />

princípio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de: tais são os casos dos interrogatórios do surdo, do mudo e do<br />

surdo-mudo.<br />

No caso do interrogado surdo, o art. 192, inciso I, do CPP impõe a forma escrita para<br />

as perguntas e a oral para as respostas.<br />

No caso do acusado mudo, o art. 192, inciso II, do mesmo diploma, impõe a forma<br />

oral para as perguntas e a escrita para as respostas.<br />

Por fim, no caso do acusado surdo-mudo, o art. 192, inciso III, também do CPP, impõe<br />

a forma escrita para as perguntas e respostas.<br />

Se o acusado, além de ser surdo, mudo ou surdo-mudo, não souber ler ou escrever, o<br />

parágrafo único do mesmo art. impõe a nomeação de um intérprete habilitado, que<br />

intervirá sob compromisso, no caso, de seu grau.<br />

Seria possível pensar-se em outras hipóteses que, não dizendo respeito a indivíduos<br />

inimputáveis, não se relacionam com regra expressa, mas apresentam dificul<strong>da</strong>des<br />

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Currículo<br />

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semelhantes.<br />

Assim, o caso do silvícola relativamente a<strong>da</strong>ptado, do indivíduo tão rústico que possa<br />

ser a àquele comparado, do que tenha sérios problemas de dicção, bem como, de certa<br />

maneira, do estrangeiro etc.<br />

Nesses casos, impossíveis de enumerar, de tão vários, justificar-se-ia a aplicação<br />

analógica de regras atinentes ao surdo, ao mudo e ao surdo-mudo, especialmente no que<br />

respeita à utilização de assessoria pelo juiz.<br />

Quanto ao interrogatório de quem não fala a língua nacional, o art. 193 do CPP tem<br />

dispositivo, de início, desconcertante: “Quando o acusado não falar a língua nacional, o<br />

interrogatório será feito por intérprete”.<br />

A norma, porém, não pode ser leva<strong>da</strong> ao pé <strong>da</strong> letra, devendo ser credita<strong>da</strong> à má<br />

técnica do Código. Está claro que, não conhecendo o interrogado a língua nacional,<br />

sempre e sempre o interrogatório será feito pelo juiz.<br />

Por vezes, quando o juiz não souber falar o ou os idiomas conhecidos pelo<br />

interrogado, será simplesmente auxiliado por um intérprete. Jamais esse intérprete, mero<br />

auxiliar <strong>da</strong> justiça que é, interrogará. Haveria, em caso contrário, violação do princípio <strong>da</strong><br />

presidenciali<strong>da</strong>de.<br />

Além disso, é evidente que se o juiz, mesmo sendo estrangeiro o acusado, for<br />

versado em sua língua e souber com ele se comunicar, desnecessário será o auxílio de<br />

intérprete. Desnecessário mas talvez aconselhável, <strong>da</strong>do que os outros participantes <strong>da</strong><br />

audiência talvez não sejam versados nesse mesmo idioma.<br />

To<strong>da</strong>via, conforme adverte agu<strong>da</strong>mente JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, “em<br />

qualquer caso é indubitável que haverá prejuízo para a comunicação. Se se recorre a um<br />

intérprete, a imediação estará, por definição, sacrifica<strong>da</strong>; e ain<strong>da</strong> a mais fiel de to<strong>da</strong>s as<br />

traduções não logrará subministrar ao juiz a percepção clara do tom, do acento, <strong>da</strong>s<br />

inflexões, dos inumeráveis matizes que é preciso ter em conta para valorar bem uma<br />

deposição. Por outra parte, será grande o risco de equivocações se o juiz se aventura ao<br />

diálogo em um idioma estrangeiro do qual não tenha perfeito conhecimento”. 452<br />

452 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Problemas de la inmediacion en el proceso civil”, em RePro, n. 34<br />

(abr-jun/1984), p. 193. Trecho original: “en cualquier caso es indu<strong>da</strong>ble que habrá perjuicio para la<br />

comunicación. Si se recurre a un intérprete, la inmediación estará, por definición, sacrifica<strong>da</strong>; y aún la más<br />

fiel de to<strong>da</strong>s las traducciones no logrará suministrar al juez la percepción clara del tono, del acento, de las<br />

inflexiones, de los innumerables matices que es preciso tener en cuenta para valorar bien una deposición.<br />

Por otra parte, será grande el riesgo de equivocaciones si el juez se aventura al diálogo en un idioma<br />

extranjero del cual no tenga perfecto conocimiento”.<br />

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Currículo<br />

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3. contraditório e presidenciali<strong>da</strong>de<br />

No processo penal brasileiro, até o advento <strong>da</strong> Lei n. 10.792, de 2003, o ato de<br />

interrogatório era unicamente bilateral, isto é, desenvolvia-se exclusivamente entre juiz e<br />

acusado.<br />

A partir do advento dessa lei, que realizou profun<strong>da</strong> alteração nas regras do capitulo<br />

III do título VII do livro I do CPP, as partes técnicas passaram a fazer parte do ato de<br />

interrogatório que, entretanto, continua a ser governado pela presidenciali<strong>da</strong>de. Quer<br />

dizer: como no caso <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória stricto sensu, as partes desenvolvem<br />

ativi<strong>da</strong>de instrutória, mas ela é meramente supletiva <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória do juiz.<br />

Assim, as partes técnicas podem agora intervir na audiência e no ato de interrogatório,<br />

isto é, podem influir na dialética entre interrogante e interrogado. A atuação processual<br />

<strong>da</strong>s partes técnicas, em que pese possa ser administra<strong>da</strong> pelo juiz, não pode ser proibi<strong>da</strong>.<br />

Poderão, por exemplo, argüir questões de ordem, requerer a instauração de incidentes,<br />

fiscalizar a transcrição <strong>da</strong>s palavras do acusado no termo ou mesmo fiscalizar a própria<br />

atitude do interrogante em relação ao interrogado etc.<br />

Além disso, como desdobramentos naturais do art. 5º, incisos LV e LVXIII, <strong>da</strong><br />

Constituição <strong>da</strong> República, o advogado poderá comunicar-se a todo momento com o<br />

acusado, durante o interrogatório, por sua iniciativa ou por iniciativa do acusado.<br />

c) ritualismo<br />

1. no inquérito policial<br />

O interrogatório realizado durante o inquérito policial também é um ato desenvolvido<br />

entre interrogante e interrogado.<br />

Contudo, há aqui uma particulari<strong>da</strong>de importante: a proibição de intervenção no ato,<br />

então desenvolvido entre autori<strong>da</strong>de policial e indiciado, vem também <strong>da</strong>s características<br />

puramente inquisitivas do procedimento.<br />

Daí ser correto dizer que o interrogatório policial se desenvolve exclusivamente entre<br />

interrogante e interrogado; este, porém, é apenas um objeto de investigações.<br />

Da mesma maneira com relação ao órgão do Ministério Público: o acompanhamento<br />

que porventura faça do interrogatório realizado no inquérito policial tem função<br />

fiscalizatória <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial e, de forma alguma, dá a ele a<br />

prerrogativa de se substituir à autori<strong>da</strong>de policial. E também não pode intervir no<br />

interrogatório, que a autori<strong>da</strong>de policial federal faz cautelarmente, pela natureza<br />

meramente bilateral do ato. A atuação do órgão do Ministério Público, no<br />

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acompanhamento do inquérito, tem função meramente instrumental: facilitar a formação<br />

<strong>da</strong> opinio delicti.<br />

É lícito afirmar, portanto, que a presidenciali<strong>da</strong>de do interrogatório realizado quando<br />

do inquérito policial é ain<strong>da</strong> mais aguça<strong>da</strong>, <strong>da</strong><strong>da</strong>s as características inquisitórias desse<br />

procedimento.<br />

2. nos procedimentos comuns<br />

Uma saliente característica do interrogatório no processo penal brasileiro, no que se<br />

relaciona às regras legais de procedimento, é a de não prender-se especificamente a uma<br />

fase procedimental. O art. 185 do CPP, por exemplo, dispõe que o “acusado que<br />

comparecer perante a autori<strong>da</strong>de judiciária, no curso do processo penal, será qualificado<br />

e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”. O art. 196 do CPP<br />

é ain<strong>da</strong> mais enfático, ao dispor que, “a todo tempo, o juiz poderá proceder a novo<br />

interrogatório de ofício ou a pedido fun<strong>da</strong>mentado <strong>da</strong>s partes”.<br />

No procedimento ordinário pleno, segundo o art. 394 do CPP, a audiência de<br />

interrogatório se situa dentro <strong>da</strong> chama<strong>da</strong> fase postulatória do processo penal de<br />

conhecimento.<br />

Essa fase é forma<strong>da</strong>, no procedimento ordinário pleno, pela denúncia, pelas<br />

alegações preliminares e pela oportuni<strong>da</strong>de de requerimento de diligências enseja<strong>da</strong> pelo<br />

art. 399 do CPP.<br />

Da mesma maneira com relação ao procedimento sumário em sentido estrito: em<br />

ambos os procedimentos a fase postulatória tem praticamente as mesmas regras,<br />

diferenciando-se apenas no que concerne ao número de testemunhas que podem ser<br />

arrola<strong>da</strong>s para futura oitiva. Assim, o interrogatório do procedimento sumário em sentido<br />

estrito possui exatamente as mesmas regras formais do interrogatório do procedimento<br />

ordinário pleno.<br />

O interrogatório nos procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido estrito é<br />

caracterizado pela orali<strong>da</strong>de, publici<strong>da</strong>de, imediação e bilaterali<strong>da</strong>de essencial. Como se<br />

situa no início de um procedimento instrutório, no dizer de JOSÉ FREDERICO MARQUES,<br />

descontínuo e fragmentário, 453 avultam nele as características do sistema inquisitório.<br />

Essa conseqüência seria mais do que evidente.<br />

Isso porque, se a instrução que se avizinha é descontinua, desconcentra<strong>da</strong> e ineficaz<br />

453 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 270.<br />

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na reconstrução histórica do fato criminoso, aumenta a pressão psicológica sobre a<br />

pessoa do juiz, que, assim, necessitará mais ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> prova <strong>da</strong> confissão, que o<br />

tranqüilizará, caso a intenção seja já a de condenar. Trata-se de um aprofun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong><br />

crise paranóica do processo inquisitório a que FRANCO CORDERO faz menção.<br />

Quanto às regras procedimentais do interrogatório, seu primeiro passo é a advertência<br />

do art. 186 do CPP.Nesse momento, após qualificar e cientificar o acusado do teor <strong>da</strong><br />

acusação, o juiz o informará do seu direito de permanecer calado e de não responder às<br />

perguntas que lhe forem formula<strong>da</strong>s.<br />

O procedimento <strong>da</strong> audiência de interrogatório está dividido em duas partes:<br />

interrogatório sobre o acusado e interrogatório sobre os fatos.<br />

“Na primeira parte”, diz o § 1º do art. 187 do CPP, “o interrogando será perguntado<br />

sobre a residência, meios de vi<strong>da</strong> ou profissão, oportuni<strong>da</strong>des sociais, lugar onde exerce<br />

a sua ativi<strong>da</strong>de, vi<strong>da</strong> pregressa, nota<strong>da</strong>mente se foi preso ou processado alguma vez e,<br />

em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou<br />

condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros <strong>da</strong>dos familiares e sociais”.<br />

Na seqüência, segundo o § 2º do mesmo dispositivo, o juiz lhe fará algumas<br />

perguntas protocolares, a respeito <strong>da</strong> veraci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> acusação que lhe é feita (inciso I),<br />

caso o interrogando negue a acusação, perguntará se este “tem algum motivo particular a<br />

que atribuí-la”, convi<strong>da</strong>-lo-á a apontar o ver<strong>da</strong>deiro culpado, e in<strong>da</strong>gará se esteve com ele<br />

antes ou depois <strong>da</strong> prática criminosa (inciso II), perguntará ao interrogando se onde ele<br />

estava ao tempo em que o crime foi cometido e se teve notícia de sua prática (inciso III),<br />

perguntará a ele sobre as provas já colhi<strong>da</strong>s (inciso IV), perguntará se ele conhece as<br />

vítimas e testemunhas, inquiri<strong>da</strong>s ou por inquirir e se tem algo a alegar contra elas (inciso<br />

V), perguntará se conhece o instrumento do crime ou qualquer objeto que tenha relação<br />

com o crime e que tenha sido apreendido (inciso VI), e in<strong>da</strong>gará acerca de “todos os<br />

demais fatos e pormenores que conduzam à eluci<strong>da</strong>ção dos antecedentes e<br />

circunstâncias <strong>da</strong> infração” (inciso VII).<br />

Se a confissão ocorrer, o art. 190 do CPP determina que o juiz pergunte<br />

especialmente ao acusado acerca dos motivos e <strong>da</strong>s circunstâncias <strong>da</strong> ação e sobre<br />

eventuais co-autores ou partícipes.<br />

Trata-se, aqui, de traço do subjetivismo inquisitório do interrogatório no processo<br />

penal brasileiro. Combina-se a regra, entretanto, com o art. 59 do CP, que impõe ao juiz,<br />

no momento de começar a aplicar a pena – segundo momento do processo de<br />

individualização <strong>da</strong> pena – a definição dos motivos e circunstâncias <strong>da</strong> ação criminosa.<br />

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Currículo<br />

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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

O interrogante deve possibilitar o estabelecimento de características, traços, que<br />

permitam a definição de stan<strong>da</strong>rds, de topoi, que serão, topicamente, tratados no<br />

momento <strong>da</strong> sentença.<br />

Outro aspecto relevante é o <strong>da</strong> transcrição <strong>da</strong>s palavras ditas pelo interrogado ao<br />

interrogante. Antes de qualquer outra razão, porque não se trata de transcrição pura e<br />

simples. Trata-se, isso sim, de reelaboração <strong>da</strong>s palavras ditas pelo interrogado.<br />

Nesse sentido, intuindo que se trata de elaboração, ou reelaboração, de palavras de<br />

um sujeito por outro sujeito, ENRICO ALTAVILLA preocupa-se com o tema. 454<br />

Não há regra específica para o caso, mas vale aqui utilizar-se analogicamente do art.<br />

215 do CPP: o interrogante, também na re<strong>da</strong>ção do interrogatório, deverá “cingir-se, tanto<br />

quanto possível, às expressões usa<strong>da</strong>s” pelo acusado, “reproduzindo fielmente as suas<br />

frases”. Daí o interesse crescente por meios tecnológicos de gravação dos depoimentos,<br />

que os conservam, com fideli<strong>da</strong>de, contra eventuais traduções traiçoeiras.<br />

3. no procedimento especial do júri<br />

Duas são as oportuni<strong>da</strong>des de interrogatório do acusado no procedimento especial<br />

dos crimes <strong>da</strong> competência do Júri: uma durante a fase do iudicium acusationis e outra na<br />

fase do iudicium causae.<br />

A audiência de interrogatório <strong>da</strong> fase do iudicium acusationes em na<strong>da</strong> se diferencia<br />

<strong>da</strong> audiência de interrogatório dos procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido<br />

estrito.<br />

Já o interrogatório <strong>da</strong> fase do iudicium causae apresenta características muito<br />

próprias.<br />

A característica que primeiro salta aos olhos é de que esse ato processual de<br />

interrogatório não se realiza numa audiência de interrogatório, onde somente ele seria<br />

realizado, mas durante ampla sessão de instrução e julgamento.<br />

A mais relevante característica, contudo, é de que o interrogatório do acusado durante<br />

a sessão de instrução e julgamento pelo júri se insere num procedimento acusatório. Ou<br />

por outra: esse interrogatório se realiza no momento mais puramente acusatório do<br />

processo penal de conhecimento vigente no Brasil.<br />

Isso, que é crucial para o estudo desse interrogatório, faz com que se modifique<br />

inclusive o comportamento do juiz que o realiza. Essa modificação de comportamento,<br />

454 ALTAVILLA, Enrico. Psicologia…, p. 41-42.<br />

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Currículo<br />

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psicologicamente auferível, tem uma razão muito simples: o juiz que interroga não é mais<br />

o juiz que julga.<br />

Além disso, o juiz profissional que interroga durante a sessão de instrução e<br />

julgamento do procedimento especial do júri, realiza um ato processual não somente para<br />

sua instrução, mas principalmente para a instrução de juízes leigos, que vêem e traduzem<br />

as reações do acusado diferentemente do que ele próprio faria na mesma situação.<br />

Passam a ter maior importância as reações do acusado, a forma decidi<strong>da</strong> ou relutante<br />

como responde as perguntas, seu tom de voz, tudo, enfim, que é ver<strong>da</strong>deiramente oral e<br />

visual, do que as palavras documenta<strong>da</strong>s. O desconhecimento <strong>da</strong>s regras jurídicas por<br />

parte dos jurados também faz com que a linguagem do juiz profissional se modifique,<br />

sendo ele obrigado a comunicar-se com o acusado e com as partes, bem como com seu<br />

auxiliar, em linguagem que os jurados compreen<strong>da</strong>m perfeitamente.<br />

Essas diferenças, <strong>da</strong> maior importância, são salienta<strong>da</strong>s por HERMÍNIO ALBERTO<br />

MARQUES PORTO: “O Juiz singular, quando competente para o julgamento, realizando o<br />

interrogatório, colhe, em confronto constante com a imputação e com pontos de prova<br />

coleciona<strong>da</strong>s nos autos, as respostas do acusado, sempre preocupado com a formação<br />

de seu convencimento ou com a preparação do convencimento de outro juiz togado, e<br />

então também com formação especializa<strong>da</strong>, que venha a presidir o processo quando <strong>da</strong><br />

sentença, ambos preparados, ou melhor dizendo, acostumados na avaliação de tal ato<br />

que pode motivar, na instintiva e irrefleti<strong>da</strong> vontade de criar benefícios, respostas que<br />

venham a criar reflexos comprometedores. A postura do Juiz Presidente do <strong>Tribunal</strong> do<br />

Júri na realização do interrogatório em Plenário, deve estar volta<strong>da</strong>, e centralmente, para<br />

a informação do jurado, que é leigo e, em regra, sem experiência de tais momentos, por<br />

isso competindo ao Juiz Presidente não olvi<strong>da</strong>r que está sendo o instrumento informativo<br />

de terceiros, também juízes, além de um especial policiamento de suas expressões, pois<br />

podem, então indevi<strong>da</strong>mente, refletir o convencimento pessoal e crítico sobre a versão<br />

defensiva ou parte dela”. 455<br />

A própria manutenção do acusado algemado durante a sessão de instrução e<br />

julgamento do procedimento especial do júri pode se revelar importante na formação do<br />

convencimentos dos jurados, <strong>da</strong>í porque submetê-la a um critério de estrita<br />

455 PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri…, p. 122-123.<br />

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Currículo<br />

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necessi<strong>da</strong>de. 456<br />

§ 3º Natureza jurídica<br />

a) na doutrina<br />

A natureza jurídica do interrogatório do acusado é questão <strong>da</strong>s mais controverti<strong>da</strong>s na<br />

doutrina processual penal. O presente estudo se refere, conforme já ficou registrado, ao<br />

aspecto dinâmico <strong>da</strong> audiência processual penal. Portanto e numa primeira aproximação,<br />

a natureza jurídica do interrogatório ficaria excluí<strong>da</strong> dessa destinação. Contudo, não é o<br />

que ocorre.<br />

Com efeito, <strong>da</strong> definição <strong>da</strong> natureza jurídica do interrogatório depende o seu<br />

desenvolvimento: 457 sobretudo no que respeita às relações entre interrogante e<br />

interrogado.<br />

O CPP não responde diretamente a questão <strong>da</strong> natureza jurídica do interrogatório<br />

processual penal, mas fornece pistas. A primeira delas é a colocação <strong>da</strong>s regras do<br />

interrogatório no capítulo destinado às provas.<br />

Outra pista é forneci<strong>da</strong> pelo item XI <strong>da</strong> Exposição de Motivos, quando justifica, entre<br />

outras, a regra do art. 260.<br />

Assim, com base, entre outros, nesse dispositivo, torna-se tarefa <strong>da</strong> doutrina<br />

processual penal perquirir essa natureza.<br />

De um lado, posicionam-se os que consideram o interrogatório como um meio de<br />

defesa, oportuni<strong>da</strong>de que a lei processual penal defere ao acusado a possibili<strong>da</strong>de de<br />

defender-se diretamente. Lecionam nesse sentido BENTO DE FARIA, 458 JORGE ALBERTO<br />

ROMEIRO 459 e LOURIVAL VILELA VIANA. 460<br />

De outro, há os que negam, pura e simplesmente, o caráter de meio de defesa ao<br />

interrogatório, afirmando ter ele apenas a natureza de meio ou ato de prova. Assim<br />

ROMEU PIRES DE CAMPOS BARROS, 461 HÉLIO TORNAGHI, 462 ROGÉRIO LAURIA TUCCI, 463 PAULO<br />

456<br />

Apelação criminal n. 112.836-3/8 – TJSP – 6ª Câmara – Rel. Desembargador Nélson Fonseca –<br />

votação majoritária – julga<strong>da</strong> em 6.nov.91 – RT n. 675 (jan/1992), p. 371.<br />

457<br />

Cf. ARANHA, A<strong>da</strong>lberto José Q. T. de Camargo. Da prova…, p. 67.<br />

458<br />

FARIA, Bento de. Código…, p. 281.<br />

459<br />

ROMEIRO, Jorge Alberto. Considerações…, p. 43.<br />

460<br />

VIANA, Lourival Vilela. Da confissão…, p. 28-29.<br />

461<br />

BARROS, Romeu Pires de Campos. “O interrogatório do acusado e o princípio <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de real”, em<br />

Estudos-Hungria (1962), p. 320-323.<br />

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LÚCIO NOGUEIRA, 464 DAVID TEIXEIRA DE AZEVEDO, 465 ADALBERTO JOSÉ Q. T. DE CAMARGO<br />

ARANHA 466 e, com posição crítica, ADA PELLEGRINI GRINOVER. 467<br />

JOSÉ GONÇALVES DA COSTA afirma que, em Portugal, essa é a posição de JOSÉ<br />

ANTÓNIO BARREIROS. 468<br />

Por fim, há os que, com nuances diversas, aceitam ambos os caracteres. 469<br />

VINCENZO MANZINI afirma ser o interrogatório um meio de defesa e apenas uma fonte<br />

de prova, onde o juiz poderá buscar elementos que auxiliarão no seu<br />

convencimento. 470 EDUARDO ESPÍNOLA FILHO parece inclinar-se nesse sentido, ao afirmar<br />

que “examina<strong>da</strong> a índole do interrogatório, (...) é preciso (...) insistir na afirmação de que,<br />

inquirindo o réu, o seu julgador não visa nem deve visar, em absoluto, a obter, dele, a<br />

confissão do crime”. 471<br />

JOSÉ FREDERICO MARQUES, por sua vez, parte de uma afirmação aparentemente<br />

categórica, para depois tomar seu lugar entre os ecléticos: “O interrogatório do acusado é,<br />

atualmente, meio probatório, pois que, entre as provas, o arrolou o Cód. de Processo<br />

Penal. (...) Mais aceitável se nos afigura o ensinamento de LINCOLN PRATES, de que o<br />

interrogatório é, concomitantemente, meio de prova e ato de defesa.” 472<br />

Ain<strong>da</strong> com relação ao trabalho <strong>da</strong> doutrina acerca <strong>da</strong> natureza jurídica do<br />

interrogatório, é preciso se ter muito cui<strong>da</strong>do com as lições doutrinárias estrangeiras, 473<br />

462<br />

TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 371-374.<br />

463<br />

TUCCI, Rogério Lauria. Direitos…, p. 394.<br />

464<br />

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso…, p. 146.<br />

465<br />

AZEVEDO, David Teixeira de. “O interrogatório do réu e o direito ao silêncio”, em RT, n. 682<br />

(ago/1992), p. 287.<br />

466<br />

ARANHA, A<strong>da</strong>lberto José Q. T. de Camargo. Da prova…, p. 67-68.<br />

467<br />

GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini. “Interrogatório do réu e direito ao silêncio”, em O processo…, p. 95-111.<br />

468<br />

BARREIROS, José Antônio. Processo penal, apud COSTA, José Gonçalves <strong>da</strong>. “O estatuto do<br />

argüido no projecto de Código de Processo Penal (uma primeira leitura)”, em Cadernos…, p. 251.<br />

469<br />

Assim, além dos citados no texto, MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 264-265 e GRECO<br />

FILHO, Vicente. Manual…, p. 200-201. No caso do processo penal português, cf. DIAS, Jorge de<br />

Figueiredo. Direito…, p. 440-443 e COSTA, José Gonçalves <strong>da</strong>. Idem, p. 251.<br />

470<br />

MANZINI, Vincenzo. Trattato di diritto processuale penale italiano, 1932, v. 4, p. 161, apud<br />

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 3, n. 402, p. 20.<br />

471<br />

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 3, n. 403, p. 24.<br />

472<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 321. FREDERICO MARQUES dá a seguinte<br />

referência sobre a contribuição de LINCOLN PRATES (na ver<strong>da</strong>de, um aresto do <strong>Tribunal</strong> de Justiça de Minas<br />

Gerais, por ele relatado): Revista Forense, n. 114 (nov/1947), p. 218.<br />

473<br />

Sobre a natureza do interrogatório no processo penal italiano, antes do novo Código, cf. PISAPIA,<br />

Gian Domenico. Compendio…, p. 247-252.<br />

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<strong>da</strong>do que as características de ca<strong>da</strong> interrogatório modificam-se de acordo com ca<strong>da</strong><br />

legislação e mais: uma pequena regra, por desimportante que possa parecer, modifica a<br />

natureza jurídica do respectivo interrogatório.<br />

b) o direito ao silêncio<br />

Na esteira <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> tormentosa questão <strong>da</strong> natureza jurídica do interrogatório,<br />

impende estu<strong>da</strong>r o denominado direito ao silêncio, ou princípio do nemo tenetur se<br />

accusare, ou nemo tenetur se detegere, e sua acepção no processo penal brasileiro.<br />

A primeira regra atinente ao tema é o inciso LXIII do art. 5º <strong>da</strong> Constituição <strong>da</strong><br />

República. A segun<strong>da</strong>, em grau de importância, é o parágrafo único do art. 187 do CPP,<br />

que esclarece o conteúdo desse direito.<br />

ADA PELLEGRINI GRINOVER, de lege feren<strong>da</strong> e muito antes <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> em vigor <strong>da</strong><br />

Constituição de 1988, defendia o “retorno ao direito ao silêncio”, sob o argumento de que<br />

ele, antes de ser uma exigência de justiça, protege a liber<strong>da</strong>de do acusado. 474<br />

Há um silêncio, caracterizado pela total ausência <strong>da</strong> palavra. Corresponde à situação<br />

do interrogado que, comparecendo ante o interrogante, não diz uma única palavra,<br />

colocando-se a salvo de contradições eventuais, preservando-se <strong>da</strong> sobrecarga de<br />

emotivi<strong>da</strong>de ou simplesmente negando informações úteis ao interrogante. Essa hipótese,<br />

segundo o parágrafo único do art. 187 do CPP, “não poderá ser interpretado em prejuízo<br />

<strong>da</strong> defesa”.<br />

Contudo, há uma espécie de silêncio, cuja utilização retórica, pelo princípio do livre<br />

convencimento, não é ve<strong>da</strong><strong>da</strong>. Trata-se <strong>da</strong> ausência de resposta ou do discurso<br />

lacunar. 475<br />

Nesse caso, o interrogado aceitou inicialmente dialogar com o interrogante, mas<br />

diante de alguma pergunta que lhe foi proposta, não consegue responder.<br />

É a hipótese do interrogante que, obtendo do acusado uma resposta num sentido e,<br />

logo depois, outra resposta completamente contraditória à anterior, inquire-o<br />

especialmente sobre essa contradição.<br />

O princípio do livre convencimento permite não só que o interrogante insista na<br />

pergunta acerca <strong>da</strong> contradição, como também, manti<strong>da</strong> a lacuna, consigne-a no termo,<br />

para que fique documenta<strong>da</strong>. Mantido o princípio <strong>da</strong> persuasão racional, contrastável pelo<br />

474 GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini. “Interrogatório do réu e direito ao silêncio”, em O processo…, p. 95-111.<br />

475 Cf., acerca do discurso lacunar, ALTAVILLA, Enrico. Psicologia…, p. 32-33.<br />

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superior grau de jurisdição, inaceitável que se proibisse a utilização retórica <strong>da</strong>quela<br />

lacuna. Isso corresponderia a estabelecer uma tábua de provas ao contrário, isto é, a<br />

favor do imputado.<br />

c) solução<br />

A ver<strong>da</strong>de parece estar, realmente, entre os que vêm natureza mista no interrogatório<br />

processual penal.<br />

Com efeito, no Brasil, o interrogatório é imediatamente um meio de defesa e<br />

mediatamente uma fonte de prova, na medi<strong>da</strong> em que dele pode advir a confissão do<br />

acusado, embora esse não seja o seu escopo.<br />

No interrogatório processual penal brasileiro, com efeito, o juiz não deve buscar a<br />

confissão do crime, 476 mas sim outros elementos de convicção e provas que poderá ter<br />

de vir a usar no caso de ter de condenar o interrogado. Trata-se de poder-dever que,<br />

diante do art. 59 do CP, tem sua oportuni<strong>da</strong>de de realização justamente durante o<br />

interrogatório.<br />

Contudo, como configura a oportuni<strong>da</strong>de para que o acusado exponha suas razões,<br />

defendendo-se pessoalmente, o interrogatório<br />

processual penal não se pode deixar de<br />

ser considerado como um meio de defesa.<br />

Também não se pode olvi<strong>da</strong>r, por fim, que o interrogatório realizado na sessão de<br />

instrução e julgamento do procedimento especial do júri é ain<strong>da</strong> mais acentua<strong>da</strong>mente um<br />

meio de defesa <strong>da</strong>do que, conforme ficou acima registrado, quem interroga, ou antes,<br />

quem preside o interrogatório, não é quem<br />

julga, ou ao menos não é quem profere o<br />

principal juízo componente <strong>da</strong> decisão.<br />

476 Cf., contrariamente a essa idéia, TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 378-380.<br />

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Capítulo 3<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica na audiência processual penal<br />

Seção A<br />

Conceitos<br />

Denomina-se ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> audiência processual penal to<strong>da</strong> a apreciação<br />

juridicamente fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, nela ocorri<strong>da</strong> e emana<strong>da</strong> <strong>da</strong>s partes técnicas, acerca do mérito do<br />

caso em discussão ou do respectivo processo penal condenatório, sob o prisma de sua<br />

regulari<strong>da</strong>de.<br />

Durante a audiência processual penal, essa ativi<strong>da</strong>de se realiza nos debates orais<br />

propriamente ditos e nos incidentes e questões de ordem levantados pelas partes<br />

técnicas.<br />

Em sentido amplo, a ativi<strong>da</strong>de crítica é postulatória, conforme se percebe do conceito<br />

de JOSÉ FREDERICO MARQUES: “Atos postulatórios são aqueles com que a parte procura<br />

obter do juiz um pronunciamento sobre o mérito <strong>da</strong> causa, ou uma resolução de mero<br />

conteúdo processual”. 477<br />

Contudo, é preferível a denominação de ativi<strong>da</strong>de crítica para as manifestações de<br />

vontade emiti<strong>da</strong>s uma vez iniciado o processo, a fim de separá-la <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

propriamente postulatória, ou seja, de pedido de uma sentença de mérito.<br />

Dado o princípio do nulla poena sine iuditio, os atos postulatórios ou petitórios penais,<br />

de impulso inicial do processo penal condenatório, estão submetidos a um regramento<br />

todo próprio (CPP, arts. 28 e 41) estranho aos atos críticos, contenham eles pedido ou<br />

não, praticados durante a tramitação do processo penal condenatório.<br />

Há utili<strong>da</strong>de nessa distinção, na medi<strong>da</strong> em que o processo penal brasileiro, dominado<br />

que é pelo princípio inquisitório, prescinde, via de regra, de uma nova postulação <strong>da</strong>s<br />

partes para a verificação de uma sentença de mérito.<br />

De fato, ressalva<strong>da</strong> a exceção <strong>da</strong> ação penal priva<strong>da</strong>, em que a falta de pedido de<br />

condenação, por parte do querelante, nas alegações finais, torna perempta a ação penal,<br />

a ativi<strong>da</strong>de de autor e réu, na audiência processual penal, é essencialmente crítica e<br />

apenas acidentalmente petitória. Tem relevo, uma vez iniciado o processo penal<br />

condenatório, não mais os pedidos de condenação ou de absolvição, mas a análise do<br />

caso, <strong>da</strong>s provas produzi<strong>da</strong>s, ou do próprio processo penal condenatório, realiza<strong>da</strong>s pelas<br />

partes técnicas. Salvo o caso <strong>da</strong> ação penal priva<strong>da</strong>, <strong>da</strong>do o fenômeno <strong>da</strong> perempção,<br />

477 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 84.<br />

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muito pouco importa que a parte técnica não tenha pedido a condenação ou a absolvição,<br />

desde que qualquer dessas conclusões exsurjam <strong>da</strong> análise que fizeram do caso ou do<br />

processo.<br />

Por outro lado, também pouco importa se as partes técnicas hajam formulado o<br />

pedido de mérito, sem fun<strong>da</strong>mentação jurídica. É o caso, por exemplo, quando o defensor<br />

<strong>da</strong>tivo atua apenas formalmente na defesa de um acusado, sem uma ativi<strong>da</strong>de crítica<br />

digna desse nome.<br />

Por tal razão é que se afirma ser fun<strong>da</strong>mentalmente crítica a ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s partes<br />

técnicas durante a audiência processual penal.<br />

Além disso, é perfeitamente possível afirmar que a crítica, tal como coloca<strong>da</strong>, também<br />

é integra<strong>da</strong> pela manifestação de vontade <strong>da</strong>s partes no sentido de uma decisão, tenha<br />

ela por objeto o mérito <strong>da</strong> causa ou não.<br />

O aspecto mais importante <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica desenvolvi<strong>da</strong> na audiência processual<br />

penal é a análise, sob um prisma jurídico, <strong>da</strong>s provas produzi<strong>da</strong>s, seja no que diz com o<br />

seu conteúdo, seja no que se refere ao modo de sua aquisição, se juridicamente hígido<br />

ou não.<br />

O Ministério Público, nas alegações orais que profere durante a audiência processual<br />

penal que as preveja, examina ora o mérito do caso que submeteu ao juiz, quando<br />

ofereceu a denúncia, ora o próprio processo penal condenatório, sob o prisma de sua<br />

regulari<strong>da</strong>de.<br />

Quanto ao mérito do caso, a diferença relevante é que seu exame pelo Ministério<br />

Público é feito, então, a partir de um ponto de vista diverso do que outrora tivera, quando<br />

deu início ao processo. Naquele primeiro momento, contava apenas com os elementos de<br />

convicção do inquérito policial ou <strong>da</strong>s peças de informação. No exame de mérito feito<br />

durante a audiência processual penal, vez que o Ministério Público é parte técnica com<br />

dever de objetivi<strong>da</strong>de – não imparcial, como muitos afirmam, pode manter a mesma tese<br />

do momento <strong>da</strong> formação <strong>da</strong> opinio delicti ou modificá-la.<br />

Pode concluir que a tese <strong>da</strong> denúncia é correta, completa ou parcialmente, caso em<br />

que pedirá julgamento de procedência, total ou não, <strong>da</strong> pretensão condenatória; ou pode<br />

fazê-lo em sentido diametralmente oposto, pedindo a prolatação de uma sentença<br />

absolutória.<br />

Sem analisar o mérito <strong>da</strong> causa – ou analisando-o apenas por obediência ao princípio<br />

<strong>da</strong> eventuali<strong>da</strong>de –a parte técnica pode criticar o próprio processo. Nesse caso, sua<br />

ativi<strong>da</strong>de crítica terá por objeto, para usar a expressão de JOSÉ FREDERICO MARQUES, a<br />

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“regulari<strong>da</strong>de formal <strong>da</strong> instância”. 478<br />

No que se relaciona à ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> defesa, a análise do mérito, sempre e sempre<br />

favorável ao acusado, mesmo contra sua vontade, 479 por injunção do art. 5º, inciso LV, <strong>da</strong><br />

Constituição, convencionou-se denominá-la de defesa de mérito, e a análise do processo<br />

em si, de defesa processual.<br />

Quanto à ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> defesa, convém distinguir, nos termos de JOSÉ<br />

FREDERICO MARQUES, a defesa dilatória <strong>da</strong> defesa peremptória: “A defesa do réu pode ser<br />

dilatória ou peremptória. A defesa do mérito é sempre peremptória, pois, se acolhi<strong>da</strong>, porá<br />

fim à relação processual e à lide penal, com a absolvição do acusado. (...) A defesa<br />

processual será dilatória quando apenas ampliar a relação processual, retar<strong>da</strong>ndo o<br />

pronunciamento jurisdicional sobre o mérito <strong>da</strong> acusação. Nessa defesa, não tem o réu<br />

por objetivo impedir o julgamento <strong>da</strong> acusação, mas o de provocar a regularização do<br />

processo. To<strong>da</strong>via, de forma reflexa pode <strong>da</strong>r ela causa a que a instância se finde e que<br />

se extinga a punibili<strong>da</strong>de (...). Defesa processual peremptória é a que põe termo à relação<br />

processual, desde que seja acolhi<strong>da</strong>, sem que o mérito <strong>da</strong> acusação fique julgado. (...) A<br />

defesa processual peremptória tem o caráter de objeção, pois independe de pedido do<br />

réu para que o juiz a reconheça. (...) A defesa peremptória pode ser absolutamente<br />

peremptória, ou relativamente peremptória. Esta última obriga a que se instaure nova<br />

relação processual, mas não impede, em absoluto, que, nesse outro processo, o juiz<br />

conheça do mérito do pedido. A defesa absolutamente peremptória, ao revés, torna<br />

impossível, em qualquer hipótese, o exame do mérito”. 480<br />

Esses são alguns conceitos prévios, relevantes para a visão dos caracteres <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas.<br />

478 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 385.<br />

479 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 66.<br />

480 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 200-201.<br />

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Currículo<br />

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Seção B<br />

Caracteres<br />

§ 1º A ativi<strong>da</strong>de crítica e os “sistemas”<br />

a) sistema inquisitório<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes no processo inquisitório, como não poderia deixar de<br />

ser, é sumamente restringi<strong>da</strong>.<br />

Diversas razões levam a essa característica. Logo em primeiro lugar, a restrição à<br />

ativi<strong>da</strong>de crítica vem <strong>da</strong> ausência de partes, característica do processo inquisitório.<br />

Depois dessa razão, a ativi<strong>da</strong>de crítica é também limita<strong>da</strong> pela ausência de<br />

publici<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> quando referi<strong>da</strong> ao imputado e a outros participantes eventuais do<br />

processo, que no processo inquisitório não freqüentemente não têm pleno acesso nem<br />

mesmo aos autos do processo. 481<br />

De outra parte, a ativi<strong>da</strong>de crítica no processo inquisitório tendeu a tomar-lhe a forma<br />

preferi<strong>da</strong>, a escritura, o que, é de se convir, limita-a mais ain<strong>da</strong>.<br />

Por fim, a ativi<strong>da</strong>de crítica é restringi<strong>da</strong> no sistema inquisitório porque, nele, há<br />

evidente predominância <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória, deferi<strong>da</strong> ao inquisidor. Nesse sistema, o<br />

que realmente importa ao inquisidor é obter provas, elementos objetivos que o auxiliem na<br />

fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> decisão que pretende tomar.<br />

Quanto ao processo penal misto ocorre fenômeno semelhante. Nesse caso, há partes<br />

e publici<strong>da</strong>de na relação processual que, entretanto, prefere adotar a escritura – é o que<br />

ocorre com o processo penal brasileiro. Daí que a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas é<br />

intermedia<strong>da</strong> pelo escrito e pelo juiz, pois a ele são destinados os arrazoados <strong>da</strong>s partes.<br />

Dado que a ativi<strong>da</strong>de instrutória do juiz é predominante no processo misto, de uma<br />

certa maneira prescinde-se <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas: a condenação vem do<br />

provado e a absolvição do não-provado. A única ativi<strong>da</strong>de “crítica” relevante do processo<br />

e <strong>da</strong> audiência – quando ela, por exceção, ocorre – é do juiz, ao fun<strong>da</strong>mentar sua<br />

decisão; mas, aqui, a rigor, trata-se de ativi<strong>da</strong>de decisória.<br />

Assim, é lícito dizer que a tendência <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas no<br />

processo misto, de cunho inquisitório, é de sua redução à condição de um simples<br />

requisito formal.<br />

481 EYMERICH, Nicolau. Manual…, p. 110.<br />

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b) sistema acusatório<br />

No caso do processo acusatório, a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas recebe um<br />

estímulo importante, tornando-se, em alguns casos, mais importante do que a própria<br />

ativi<strong>da</strong>de instrutória.<br />

Conforme se percebe niti<strong>da</strong>mente na estruturação do processo acusatório, é ele<br />

concebido como um ver<strong>da</strong>deiro embate entre partes técnicas coloca<strong>da</strong>s no mesmo nível,<br />

sob a administração do juiz.<br />

Por tal razão, o embate de idéias passa a ser, naturalmente, uma <strong>da</strong>s tônicas do<br />

processo.<br />

Na concepção mais radical do adversary system os debates orais repetiriam a troca<br />

de golpes inerente a qualquer embate esportivo. Está claro que a concepção não é mais<br />

essa, na atuali<strong>da</strong>de. 482 Mesmo no processo penal acusatório tem relevo uma<br />

“colaboração” entre as partes no sentido <strong>da</strong> obtenção <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de material.<br />

Mesmo assim, a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas no procedimento acusatório é,<br />

provavelmente, o aspecto mais saliente desse sistema.<br />

§ 2º Princípios e regras<br />

a) publici<strong>da</strong>de<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica exerci<strong>da</strong> na audiência processual penal atende melhor o princípio<br />

<strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de do que aquela exerci<strong>da</strong> por escrito.<br />

Com efeito, as manifestações críticas, uma vez veicula<strong>da</strong>s em audiência, são desde<br />

logo conheci<strong>da</strong>s pelas partes técnicas contrárias e pelo juiz. Da mesma maneira com<br />

relação ao público, participante eventual desse momento. Ain<strong>da</strong> que o público não<br />

compreen<strong>da</strong> detalhes técnicos <strong>da</strong> discussão entre promotor e advogados, possui a<br />

capaci<strong>da</strong>de de compreender a essência <strong>da</strong> discussão. E, como o assunto lhe diz respeito,<br />

é melhor que possa acompanhar tal discussão.<br />

Há quem lamente uma certa “glamourização” do debate jurídico, quando ele ganha<br />

uma audiência maior. Contudo, mesmo que diante de um público mais numeroso as<br />

partes técnicas ten<strong>da</strong>m a mostrar competências que não mostrariam diante de um público<br />

menor, isso não é suficiente para suprimir ou mesmo restringir a publici<strong>da</strong>de dos<br />

momentos processuais como a audiência.<br />

482 Cf., a respeito dessa concepção, BRENNAN, William J. “The Criminal Prosecution: Sporting Event or<br />

Quest for Truth?”, em Washington University Law Quarterly, (1963), p. 279-295.<br />

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Há, nesse particular, um tão evidente incremento à publici<strong>da</strong>de que se torna<br />

desnecessário tecer sobre ele maiores considerações.<br />

b) orali<strong>da</strong>de<br />

É também evidente que a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas, quando desenvolvi<strong>da</strong><br />

em audiência processual penal, assume a forma oral. A discussão, portanto, desenvolvese<br />

através <strong>da</strong> palavra fala<strong>da</strong>, com a limitação temporal <strong>da</strong> lei e administra<strong>da</strong>, construtiva<br />

ou restritivamente, conforme já visto, pelo presidente <strong>da</strong> audiência.<br />

Vale transcrever a lição de RENÉ A. DOTTI: “Na técnica processual o sistema <strong>da</strong><br />

orali<strong>da</strong>de consiste na soma de atos praticados boca a boca e que se converte em termo<br />

escrito no interesse do registro e <strong>da</strong> documentação de atos e termos”. 483<br />

Há aqui, porém, um reparo a ser feito à experiência do foro, que revela um<br />

entendimento equivocado do que vem a ser a orali<strong>da</strong>de.<br />

Trata-se de conceder à documentação, que é instrumental à orali<strong>da</strong>de, uma<br />

importância que ela, na ver<strong>da</strong>de, não tem. Os atores <strong>da</strong> audiência processual penal – juiz<br />

e partes técnicas – apegam-se com excessivo vigor aos poderes <strong>da</strong> documentação, até o<br />

ponto em que ela passa a ter maior importância do que a própria orali<strong>da</strong>de.<br />

Em termos mais simples, a discussão propriamente dita do caso cede seu lugar a<br />

uma ativi<strong>da</strong>de de mera documentação; as partes técnicas, nas suas alegações orais,<br />

limitam-se a ditar palavras para os auxiliares do juiz.<br />

Despreocupam-se em fazer valer as alegações para aquele momento, olvi<strong>da</strong>ndo-se<br />

de que o que importa é enformar o convencimento do juiz, fornecer-lhe um projeto viável<br />

de sentença.<br />

Está claro que essa deformação vem <strong>da</strong> ausência de uma regra legal que, como no<br />

procedimento especial do júri, imponha a concentração em to<strong>da</strong> a sua plenitude,<br />

determinando que <strong>da</strong>s discussões havi<strong>da</strong>s na audiência processual penal resulte,<br />

obrigatoriamente, uma sentença. Assim, como não há, para as partes técnicas, a garantia<br />

de que sairá uma decisão a partir <strong>da</strong> discussão técnica do caso, a preocupação passa a<br />

ser conservativa: gravar os argumentos para um “consumo” posterior.<br />

Trata-se, contudo, de uma violação <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, que deve enformar to<strong>da</strong>s as<br />

ativi<strong>da</strong>des desenvolvi<strong>da</strong>s na audiência processual penal.<br />

483 DOTTI, René Ariel. “Princípios do processo penal”, em RePro, n. 67 (jul-set/1992), p. 87.<br />

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c) imediação<br />

Está claro que a ativi<strong>da</strong>de crítica, quando exerci<strong>da</strong> pelas partes técnicas na audiência,<br />

permite uma maior imediação. O contato direto do juiz com as partes técnicas, no<br />

momento mesmo <strong>da</strong> emissão do pensamento, enseja que se estabeleça um ver<strong>da</strong>deiro<br />

diálogo, no sentido de ser ele, por definição, direto e potencialmente franco.<br />

Reside precisamente nesse aspecto a força <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> audiência enquanto<br />

instrumento de aproximação <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de material. A mediação do escrito anula as<br />

potenciali<strong>da</strong>des <strong>da</strong> relação processual penal como forma institucionaliza<strong>da</strong> de diálogo<br />

entre partes técnicas, com discurso jurídico, sobre casos penais concretos.<br />

A Suprema Corte norte-americana tem, nesse aspecto, uma experiência interessante<br />

a apresentar. Lá, como é consabido, as discussões e deliberações são secretas. Os<br />

juízes debatem os casos entre si e decidem-nos sem que qualquer funcionário <strong>da</strong><br />

Suprema Corte tenha qualquer participação. Contudo, antes dessas discussões<br />

começarem, os juízes anunciam sessões de argüição do caso em julgamento. Nessas<br />

sessões, os advogados <strong>da</strong>s partes e dos amici curiæ apresentam seus argumentos e são<br />

interpelados pelos juízes. É uma sessão de argüição, no sentido mais puro do termo. Os<br />

advogados devem comparecer a ela preparados para serem confrontados com os<br />

aspectos contraditórios de seus argumentos. Vários juízes <strong>da</strong> Suprema Corte, como<br />

WILLIAM O. DOUGLAS, HUGO L. BLACK e FELIX FRANKFURTER, entre tantos, notabilizaram-se<br />

por fustigar os advogados durante as sessões de argüição.<br />

d) contraditório<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica desenvolvi<strong>da</strong> em audiência processual penal, outrossim, permite<br />

que os argumentos sejam contrastáveis à medi<strong>da</strong> em que vão sendo emitidos. Como a<br />

discussão se desenvolve ao vivo, as partes podem e devem confrontar os argumentos<br />

contrários, diante do juiz, o que, conquanto exija deles uma preparação maior, permite ao<br />

juiz analisar a integri<strong>da</strong>de do caso, sob o prisma do contraditório. Fica claro que o<br />

man<strong>da</strong>to constitucional do inciso LV do art. 5º resta melhor atendido.<br />

§ 3º A ativi<strong>da</strong>de crítica e as partes técnicas<br />

a) Ministério Público<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica do Ministério Público, na audiência processual penal, como no<br />

processo penal como um todo, é marca<strong>da</strong> pela parciali<strong>da</strong>de,com dever de objetivi<strong>da</strong>de.<br />

O agente do Ministério Público não possui, como já se afirmou, dever de<br />

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imparciali<strong>da</strong>de no processo penal condenatório. Nesse sentido é a lição de JOSÉ<br />

FREDERICO MARQUES, para quem “não há que falar em imparciali<strong>da</strong>de do Ministério<br />

Público, porque então não haveria necessi<strong>da</strong>de de um juiz para decidir sobre a acusação;<br />

existiria, aí, um bis in idem de todo prescindível e inútil. No procedimento acusatório, deve<br />

o promotor atuar como parte, pois se assim não for, debilita<strong>da</strong> estará a função repressiva<br />

do Estado. O seu papel, no processo, não é o de defensor do réu, nem o de juiz, e sim o<br />

de órgão do interesse punitivo do Estado”. 484<br />

Nem se diga, a respeito do entendimento manifestado por JOSÉ FREDERICO MARQUES,<br />

que se deve ele ao fato do referido processualista penal adotar a noção de lide no<br />

processo penal. Ao contrário, o trecho do mesmo autor que segue o acima transcrito<br />

deixa claro que sua posição é eminentemente técnica: “o que caracteriza o conceito de<br />

parte não é a parciali<strong>da</strong>de ou imparciali<strong>da</strong>de, e sim a titulari<strong>da</strong>de de direitos próprios em<br />

relação ao conteúdo do processo, e a contraposição à função de dirimir o conflito de<br />

interesses e julgar”. 485<br />

Daí porque é preferível a noção de parciali<strong>da</strong>de, com dever de objetivi<strong>da</strong>de. Sendo,<br />

como é, parte, sua atuação é sempre parcial, <strong>da</strong>do que sustenta, primacialmente, uma<br />

tese de acusação. Impossível, ou desumano, que tivesse um dever de imparciali<strong>da</strong>de, o<br />

qual é reservado ao juiz – e, mesmo com relação a ele, por vezes contestado. 486 Está<br />

claro, outrossim, que mais um sujeito imparcial dentro <strong>da</strong> relação processual seria uma<br />

demasia e enfraqueceria, a um só tempo, as posições do autor <strong>da</strong> pretensão condenatória<br />

e do imputado.<br />

A atuação do Ministério Público, no processo penal, é de parte – e, portanto, parcial –<br />

com dever de objetivi<strong>da</strong>de. Isso significa que o dever do Ministério Público é o de atuar<br />

sempre com objetivi<strong>da</strong>de no processo penal, analisando sem paixão as provas e demais<br />

elementos de convicção relativos à causa.<br />

Contudo, se concluir, pela análise objetiva e necessariamente técnica de to<strong>da</strong>s as<br />

evidências, que a decisão mais correta há de ser a <strong>da</strong> condenação, atuará parcialmente –<br />

que não significa “cegamente”, ou mesmo “obstina<strong>da</strong>mente” – para obter esse resultado.<br />

Essa posição a princípio poderia parecer excessivamente rigorosa e<br />

484<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 40-41.<br />

485<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 41.<br />

486<br />

Cf. SOUZA, Artur César de. A parciali<strong>da</strong>de positiva do juiz e o justo processo penal: nova leitura do<br />

princípio <strong>da</strong> (im)parciali<strong>da</strong>de do juiz em face do paradigma <strong>da</strong> racionali<strong>da</strong>de do outro (tese de doutorado –<br />

UFPR), Curitiba: edição do autor, 2005.<br />

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descomprometi<strong>da</strong> com uma visão democrática do processo penal. Contudo, ela é<br />

rigorosamente coerente e não abdica de um processo penal democrático, em que a<br />

posição de proteção do imputado não é deixa<strong>da</strong> de lado. Aprofun<strong>da</strong>r agora a discussão<br />

desse aspecto implicaria num indevido afastamento do tema principal; contudo, basta<br />

dizer que também faz parte do entendimento a respeito <strong>da</strong> posição processual penal do<br />

Ministério Público uma mais correta elaboração do impropriamente denominado princípio<br />

<strong>da</strong> obrigatorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ação penal pública, que passa a ser visto como uma <strong>da</strong>s muitas<br />

manifestações do princípio <strong>da</strong> legali<strong>da</strong>de.<br />

Ao contrário de enfraquecer uma posição democrática diante do processo penal, esse<br />

entendimento a respeito <strong>da</strong> posição processual penal do Ministério Público fortalece-a. É<br />

que esse entendimento doutrinário acerca <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de do Ministério Público é, na<br />

prática do foro criminal, retórico. É “confortável”, sem dúvi<strong>da</strong>, para o acusador – para o<br />

acusador apaixonado pelo objetivo de condenar certo acusado, digamos – passar-se por<br />

imparcial. Esse “papel”, que parte <strong>da</strong> doutrina processual penal 487 insiste em lhe <strong>da</strong>r,<br />

acaba por fortalecer desproposita<strong>da</strong>mente sua posição processual diante do caso<br />

concreto e, genericamente, as teses de condenação que eventualmente postular. É<br />

deveras intuitivo o desconforto imposto ao imputado de se ver perseguido criminalmente<br />

por alguém que em um momento é seu acusador e em outro é juiz imparcial. Tamanha<br />

fluidez <strong>da</strong>s funções do Ministério Público não pode ser positiva para a garantia de um<br />

processo penal ver<strong>da</strong>deiramente democrático.<br />

É essa visão indevi<strong>da</strong> de imparciali<strong>da</strong>de que leva o Ministério Público a atuar como<br />

custus legis durante o processo penal, como se essa atuação fosse possível para quem é<br />

o titular exclusivo <strong>da</strong> ação penal pública. 488<br />

A prova cabal de que se trata de um entendimento equivocado é de que, diante do<br />

caso concreto, a atuação do Ministério Público como custus legis tem dois pesos e duas<br />

medi<strong>da</strong>s.<br />

Capta<strong>da</strong> a dimensão retórica, de relevância ímpar no processo penal, vê-se que uma<br />

487<br />

Cf. JARDIM, Afrânio Silva. Direito…, p. 66: “No atendimento dos postulados do sistema acusatório, o<br />

Ministério Público atua inicialmente como órgão acusatório, submisso ao princípio <strong>da</strong> obrigatorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

ação penal pública. Ao depois, diante <strong>da</strong> prova produzi<strong>da</strong>, deve pugnar pela correta aplicação <strong>da</strong> lei ao caso<br />

concreto, funcionando como custus legis, já que o Estado não tem qualquer interesse de ver acolhi<strong>da</strong> uma<br />

pretensão punitiva injusta, seja na sua essência, seja na sua quanti<strong>da</strong>de”. Cf., outrossim, MIRABETE, Júlio<br />

Fabbrini. Processo…, p. 317: “Não obstante parte, o Ministério Público deve conduzir-se com<br />

imparciali<strong>da</strong>de, pois deve defender os interesses <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de e fiscalizar a aplicação e execução <strong>da</strong>s leis”.<br />

488<br />

Cf. JARDIM, Afrânio Silva. Direito…, p. 346-352, que sustenta a legitimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> atuação do<br />

Ministério Público como custus legis, mesmo no processo penal condenatório.<br />

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manifestação do Ministério Público, em fase recursal, depois do recurso voluntário de<br />

qualquer <strong>da</strong>s partes – e, nesse momento, como “parecerista” – tem um peso se for pela<br />

condenação – é vista como uma análise técnica, aceitável ou não, <strong>da</strong> causa – e tem<br />

outro, muito maior, se for pela absolvição: será vista, na sessão de julgamento, como a<br />

comprovação de que, diante <strong>da</strong>quele caso, nem mesmo o Ministério Público, instituição<br />

una e indivisível, tem uma uniformi<strong>da</strong>de de entendimento. O resultado é a dúvi<strong>da</strong> e,<br />

concluindo retoricamente... in dubio pro reo.<br />

Perceba-se, por outro lado, que a referência é feita a um dever de objetivi<strong>da</strong>de, o que<br />

não implica numa toma<strong>da</strong> de posição ontológica. Com a noção de dever não se afirma<br />

que o Ministério Público seja imparcial, mas que ele tem, isto sim, um dever de<br />

objetivi<strong>da</strong>de; se um determinado órgão do Ministério Público atua com obediência a esse<br />

dever, não é papel <strong>da</strong> doutrina processual penal definir. Essa posição evita a<br />

instrumentalização retórica do tema.<br />

Assim, a característica <strong>da</strong> imparciali<strong>da</strong>de, com dever de objetivi<strong>da</strong>de, por parte do<br />

Ministério Público, revela<strong>da</strong> com nitidez ímpar em sua atuação crítica dentro ou fora <strong>da</strong><br />

audiência processual penal, é seu aspecto mais saliente.<br />

b) assistente do Ministério Público<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica do assistente do Ministério Público, na audiência processual penal,<br />

obviamente não é marca<strong>da</strong> pelo dever de objetivi<strong>da</strong>de, senão pelo de dedicação<br />

profissional à causa do cliente, ofendido pela prática criminosa.<br />

Mais do que isso, porém, a ativi<strong>da</strong>de crítica do assistente do Ministério Público, na<br />

audiência processual penal, é orienta<strong>da</strong> no sentido de patrocinar os interesses do<br />

ofendido de reparação civil pelo crime.<br />

Nesse particular, é exemplar a lição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO,<br />

perfeitamente basea<strong>da</strong> no ordenamento jurídico brasileiro: “Entendemos que a razão de<br />

se permitir a ingerência do ofendido em todos os termos <strong>da</strong> ação penal pública, ao lado<br />

do Ministério Público, repousa na influência decisiva que a sentença <strong>da</strong> sede penal exerce<br />

na sede civil. Segundo dispõe o art. 91, I, do CP, constitui um dos efeitos <strong>da</strong> sentença<br />

condenatória tornar certa a obrigação de indenizar o <strong>da</strong>no causado pelo crime. Por isso<br />

mesmo dispõe o art. 63 do CPP que a sentença penal condenatória com trânsito em<br />

julgado constitui título certo e ilíquido em favor do direito à indenização, e, com esse título<br />

executório, o exeqüente não vai discutir o an debeatur, mas sim o quantum debeatur.<br />

Desse modo, salta aos olhos que o Estado permitiu pudesse o ofendido ingressar no<br />

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Processo Penal nos crimes de ação pública, para velar pelo seu direito à indenização. (...)<br />

Conclui-se, pois, que a função do assistente não é a de auxiliar a acusação, mas a de<br />

procurar defender seu interesse na indenização do <strong>da</strong>no ex delicto. (…) Já, então, se<br />

pode estabelecer a seguinte regra: se <strong>da</strong> prática de uma infração advier prejuízo para a<br />

vítima, poderá ela habilitar-se no processo como assistente. Se não, não”. 489<br />

Ain<strong>da</strong> segundo FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, 490 a base normativa de tal<br />

conclusão é a legitimi<strong>da</strong>de para recorrer do assistente do Ministério Público, sumamente<br />

restringi<strong>da</strong> em relação à do próprio Ministério Público. No caso do recurso em sentido<br />

estrito, conforme dispõe o art. 271, caput, do CPP, o assistente do Ministério Público<br />

somente poderá interpor recurso em sentido estrito de sentença de impronúncia (art. 584,<br />

§ 1º) e de declaração de extinção de punibili<strong>da</strong>de (art. 581, inciso VIII). No caso do<br />

recurso de apelação, o art. 598 do CPP dispõe que o ofendido (ou qualquer <strong>da</strong>s pessoas<br />

menciona<strong>da</strong>s no art. 31 do CPP) ain<strong>da</strong> que não habilitado como assistente poderá<br />

interpô-lo, desde que o Ministério Público não o faça, mas, no caso, o recurso não terá<br />

efeito suspensivo.<br />

Eis o ensinamento de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO: “a lei não diz ‘se <strong>da</strong><br />

sentença absolutória não for interposta apelação...’. Assim, poderá parecer que o<br />

assistente, desde que o Ministério Público não tenha interposto o recurso de apelo,<br />

poderá fazê-lo, pouco importando seja a decisão recorri<strong>da</strong> condenatória ou absolutória.<br />

Entretanto o art. 598 não pode ser interpretado insula<strong>da</strong>mente. Ao analisá-lo, deverá o<br />

intérprete cotejá-lo com os arts. 63, 271 e 584, § 1º, todos do CPP, e se concluirá que, se<br />

o ofendido ingressa no processo, ao lado do Ministério Público, para preservar seu direito<br />

à satisfação do <strong>da</strong>no ex delicto, é fora de dúvi<strong>da</strong> que, havendo sentença condenatória,<br />

cessará seu interesse no apelo. Assim, se o juiz condena o réu, por violação do art. 129,<br />

caput, do CP, a 3 meses, o ofendido não poderá interpor apelação para majorar a pena,<br />

porquanto, nesse caso, seu direito à satisfação do <strong>da</strong>no estará garantido (cf. RTJ, 56/877;<br />

RT, 462/381, 462/382, 376/207, 489/327, 489/329, 520/436)”. 491<br />

Dessa maneira, parece claro que a ativi<strong>da</strong>de crítica do assistente do Ministério<br />

Público, na audiência processual penal, em que pese a aparente amplitude do art. 271 do<br />

CPP, é também limita<strong>da</strong> pelo interesse na reparação do <strong>da</strong>no sofrido pelo ofendido –<br />

489<br />

TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 2, p. 499-500 e 504.<br />

490<br />

TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 2, p. 500-503.<br />

491 TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo…, v. 2, p. 501-502.<br />

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incluído aí o <strong>da</strong>no moral – causado pelo crime. Entretanto, para o caso <strong>da</strong> atuação crítica<br />

do assistente do Ministério Público na audiência processual penal, não há, como no caso<br />

<strong>da</strong> disciplina recursal, regra positiva que a limite. Em outras palavras, mesmo estando<br />

claro que a atuação processual do assistente do Ministério Público é condiciona<strong>da</strong> ao<br />

interesse de ressarcimento do <strong>da</strong>no ao ofendido, qualquer consideração sua,<br />

transbor<strong>da</strong>nte desse objetivo, não poderá ser ti<strong>da</strong> como não emiti<strong>da</strong>.<br />

c) autor técnico privado<br />

Da mesma maneira do que ocorre com a ativi<strong>da</strong>de crítica do assistente do Ministério<br />

Público, a do autor técnico privado, na audiência processual penal, também é marca<strong>da</strong><br />

pelo dever profissional de dedicação à causa do cliente.<br />

Além disso, à ativi<strong>da</strong>de crítica do autor técnico privado, na audiência processual<br />

penal, soma-se a postulação, em sentido estrito, traduzi<strong>da</strong> pelo expresso pedido de<br />

condenação, obrigatório, sob pena de considera-se perempta a ação penal, conforme<br />

EDUARDO ESPÍNOLA FILHO: “no processo sumário, (...) alegações são expostas oralmente<br />

na audiência de julgamento, de que trata o art. 539, § 2º; nessas alegações é feita a<br />

apreciação <strong>da</strong> prova, com o pedido circunstanciado de condenação dos responsáveis,<br />

pelo delito, e a menção <strong>da</strong>s agravantes que ocorrem; a circunstância de, em ação penal,<br />

cuja iniciativa era privativa do ofendido ou do seu representante legal, não ser formulado<br />

um pedido de condenação, nas alegações finais do querelante, importa em desistência <strong>da</strong><br />

ação penal, cuja perempção deve pronunciar-se, por isso”. 492<br />

Essa obrigatorie<strong>da</strong>de advém, como dito, <strong>da</strong> cominação de pena de perempção à<br />

omissão de pedido condenatório, nas alegações finais, orais ou não, no art. 60, inciso III,<br />

última figura, do CPP: “Nos casos em que somente se procede mediante queixa,<br />

considerar-se-á perempta a ação penal (…) quando o querelante (...) deixar de formular o<br />

pedido de condenação nas alegações finais”.<br />

Consiste a perempção na per<strong>da</strong> do direito do querelante de propor ou de manter uma<br />

determina<strong>da</strong> deman<strong>da</strong> no juízo criminal contra o querelado.<br />

Eis a conceituação de JOSÉ FREDERICO MARQUES: “a perempção é o nomen juris <strong>da</strong>do<br />

à extinção <strong>da</strong> instância, nos processos de ação penal exclusivamente priva<strong>da</strong>, quando o<br />

querelante descumpre os ônus que lhe são impostos para movimentar o processo ou<br />

492 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 1, n. 145, p. 474-475.<br />

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manter presente o seu animus querelandi”. 493<br />

No processo penal brasileiro, <strong>da</strong>do que está comina<strong>da</strong>, é confortável definir-se a<br />

perempção como sanção processual. A fim de que seus efeitos de exclusão de nova<br />

deman<strong>da</strong> fiquem claros, a perempção é causa de extinção <strong>da</strong> punibili<strong>da</strong>de. 494<br />

A postulação, na ação penal de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, é forma<strong>da</strong> pela queixa, que<br />

propulsiona inicialmente o processo, bem como por uma conduta que demonstra, de<br />

maneira cabal, que mantém-se vivo o animus querelandi do autor técnico privado. Daí ser<br />

possível qualificar-se a promoção <strong>da</strong> ação penal de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> como um ato<br />

postulatório complexo.<br />

De tudo isso decorre a inafastável conclusão de que a ativi<strong>da</strong>de do autor técnico<br />

privado, na audiência processual penal, além de crítica, também é postulatória, em<br />

sentido estrito, traço a mais que, como visto, a ativi<strong>da</strong>de do Ministério Público não possui.<br />

Essa quali<strong>da</strong>de que é acrescenta<strong>da</strong> à atuação do autor técnico privado, na ação penal<br />

de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, é também presente na ação penal de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong><br />

subsidiária, posto que com características profun<strong>da</strong>mente diversas.<br />

No caso <strong>da</strong> ação penal de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> subsidiária, hoje um direito fun<strong>da</strong>mental<br />

(Constituição, art. 5º, inciso LIX), o querelante também tem o dever de formular pedido de<br />

condenação nas alegações orais proferi<strong>da</strong>s em audiência (CPP, arts. 29 e 60, inciso III,<br />

última figura). Contudo, a conseqüência para a ausência de postulação condenatória, na<br />

ação penal de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> subsidiária, é tão somente processual: o Ministério<br />

Público deve assumir, excludentemente <strong>da</strong> pessoa do ofendido, sua posição de autor.<br />

Entretanto, essa conclusão, como dito, não exsurge de norma expressa, como ocorre<br />

com a ação penal exclusivamente priva<strong>da</strong>, mas sim <strong>da</strong> conjugação de outras regras.<br />

O argumento que justifica essa conjugação é de que, sendo hoje a ação penal de<br />

titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong> subsidiária um direito fun<strong>da</strong>mental e prescrevendo o art. 29 do CPP<br />

que o Ministério Público retomará (rectius: tomará) o curso do processo como autor “no<br />

caso de negligência”, é absolutamente indispensável que se tipifique em que casos se<br />

configurará essa negligência.<br />

E isso é imprescindível porque, existindo regra constitucional de instituição de direito<br />

493 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 141.<br />

494 Cf. MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 141: “O descumprimento de (...) ônus seria de<br />

molde a provocar a absolutio ab instantia do querelado, não fosse a regra do art. 108, n. IV, do Código<br />

Penal, que inscreveu a perempção entre as causas de extinção <strong>da</strong> punibili<strong>da</strong>de, e a do art. 60, do Código de<br />

Proc. Penal, que fala em perempção <strong>da</strong> ação penal”.<br />

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fun<strong>da</strong>mental a sua limitação somente poderá decorrer de estrita tipificação legal. Não é<br />

possível, diante do art. 5º, inciso LIX, <strong>da</strong> Constituição, que se conserve um conceito tão<br />

aberto quanto negligência, a pairar sobre o autor técnico privado de ação penal pública.<br />

Daí porque é necessário que a lei processual penal tipifique os casos que configuram<br />

negligência do autor técnico privado. Esses casos são, precisamente, os cuja prática<br />

causa, na ação penal de titulari<strong>da</strong>de priva<strong>da</strong>, perempção. Eles configuram,<br />

ver<strong>da</strong>deiramente, negligência do autor técnico privado.<br />

Por essa razão, o autor técnico privado, no comando de ação penal pública <strong>da</strong><strong>da</strong> uma<br />

omissão do Ministério Público, perderá esse comando se não pedir a condenação,<br />

expressamente, nos debates orais <strong>da</strong> audiência processual penal de instrução e<br />

julgamento do procedimento sumário do art. 539 do CPP. 495 Logo, sua ativi<strong>da</strong>de na<br />

audiência processual penal é crítica e, outrossim, postulatória em sentido estrito.<br />

d) defensor técnico<br />

Quanto à ativi<strong>da</strong>de do defensor técnico, seja público ou não, 496 é preciso deixar claro<br />

ser ela marca<strong>da</strong> pela parciali<strong>da</strong>de, sem dever de objetivi<strong>da</strong>de, bem como pelo dever de<br />

buscar sempre a melhor posição processual possível ao seu defendido.<br />

Nesse particular, a ativi<strong>da</strong>de processual penal do defensor técnico não há de estar<br />

volta<strong>da</strong> apenas para a busca de uma posição favorável – diante <strong>da</strong> concreta ameaça do<br />

constrangimento <strong>da</strong> sanção criminal – mas, muito mais conseqüentemente, para a busca<br />

<strong>da</strong> melhor posição processual possível para o imputado.<br />

Essa ativi<strong>da</strong>de implica, de maneira essencial, na realização de opções. O defensor<br />

técnico opta por diferentes linhas de defesa, de acordo com as características do caso ou<br />

do processo penal condenatório. Tal opção, por conseguinte, assemelha-se, mutatis et<br />

mutandis, à do funcionário público por alguma <strong>da</strong>s soluções possíveis no domínio dos<br />

atos administrativos impropriamente denominados discricionários.<br />

De fato, a atuação técnica do defensor, dentro <strong>da</strong> dinâmica de um processo penal<br />

condenatório, não vem estritamente tipifica<strong>da</strong> na lei. A escolha que faz o defensor técnico,<br />

495<br />

Bem assim, está claro, embora não seja o tema do presente estudo, no caso de alegações escritas.<br />

496<br />

As figuras do defensor público e do defensor <strong>da</strong>tivo são sui generis. Quanto ao primeiro, ele é um<br />

servidor público, do prisma do direito administrativo, e um funcionário público, para os fins penais, mas sua<br />

atuação é substancialmente priva<strong>da</strong>. Seu dever, aliás, é atuar como a parte priva<strong>da</strong> no processo penal<br />

condenatório, única maneira de preservar o “elo privado” no processo penal condenatório. Quanto ao<br />

defensor <strong>da</strong>tivo, não é ele servidor público, sob o ponto de vista administrativo, mantendo o caráter de<br />

funcionário público, para os fins penais: sua atuação, portanto, é formal e substancialmente priva<strong>da</strong>.<br />

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portanto, <strong>da</strong> melhor tese para a defesa, bem como a preparação de suas linhas mestras<br />

e, além disso, suas manifestações de vontade na realização de negócios jurídicos<br />

processuais, deve ser no sentido já indicado, valendo como parâmetro as regras objetivas<br />

e os princípios do processo penal.<br />

A dúvi<strong>da</strong> razoável, entre uma linha e outra, subtrai a apreciação <strong>da</strong> opção por parte do<br />

judiciário, no caso de eventual responsabilização do defensor técnico, na<strong>da</strong> obstante não<br />

se possa negar que, naquela situação, havia uma solução melhor para a defesa.<br />

Acerca do tema, há a lição de TERESA CELINA DE ARRUDA ALVIM PINTO: “Mesmo no<br />

plano <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> administração, a liber<strong>da</strong>de que há, para o administrador, não existe<br />

senão em tese. O caso concreto faz desaparecer esta liber<strong>da</strong>de. A circunstância de ao<br />

Judiciário nãocaber a análise quanto a qual seria a melhor solução, dentre duas ou três<br />

possíveis, não significa que uma <strong>da</strong>s três não seja ontologicamente, A MELHOR.<br />

Também a dificul<strong>da</strong>de do intérprete em saber qual <strong>da</strong>s soluções seria a melhor, em face<br />

do caso concreto, não significa que esta MELHOR solução não exista”. 497<br />

Outrossim, a análise <strong>da</strong>s opções jurídicas do defensor técnico implica também em<br />

perguntar-se a doutrina se a ele é lícito, estabeleci<strong>da</strong> uma linha de defesa, alterá-la<br />

durante o curso de uma audiência processual penal. Em tese, modificação desse tipo é<br />

possível, na medi<strong>da</strong> em que as opções, de início acerta<strong>da</strong>s, podem se mostrar<br />

equivoca<strong>da</strong>s no curso de um momento processual rico como a audiência processual<br />

penal.<br />

A modificação <strong>da</strong> tese <strong>da</strong> defesa durante a sessão de instrução e julgamento pelo júri<br />

é possível, segundo certo entendimento jurisprudencial: “Nos debates em plenário do Júri,<br />

é lícito à defesa, no ensejo <strong>da</strong> tréplica, complementar a tese. Seja por reconhecer a falta<br />

de ressonância nos jurados quanto à linha segui<strong>da</strong>, ou mesmo a superiori<strong>da</strong>de acusatória<br />

na réplica. Ou, mesmo, ocasionalmente, o surgimento de outra faceta que o<br />

desenvolvimento dos debates acaso suscite. Deve-se ter em conta que os debates<br />

tendem à conformação jurídica dos fatos com fun<strong>da</strong>mento nas provas dos autos. Não há,<br />

portanto, violação ao princípio do contraditório na sustentação de nova tese na tréplica<br />

pela defesa. Ao contrário, constitui prejuízo à defesa, configurador de nuli<strong>da</strong>de, o<br />

indeferimento de quesitos relativos àquela tese”. 498<br />

Se uma modificação desse jaez, durante a sessão de instrução e julgamento do<br />

497<br />

PINTO, Teresa Celina de Arru<strong>da</strong> Alvim. Medi<strong>da</strong>…, p. 108.<br />

498<br />

Apelação n. 86.091-3 – TJSP – <strong>4ª</strong> Turma – Rel. Desembargador Ary Belfort – votação unânime –<br />

julga<strong>da</strong> em 25.jun.90 – RT n. 661 (nov/1990), p. 269.<br />

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procedimento especial do júri, é possível, sendo o conselho de sentença, como é,<br />

extremamente sensível a alterações do discurso <strong>da</strong>s partes técnicas, na<strong>da</strong> obsta que<br />

semelhante entendimento seja consagrado para a audiência processual penal em<br />

processo desenvolvido perante juiz singular.<br />

§ 4º Riscos de uma publicização excessiva <strong>da</strong>s partes técnicas<br />

Outro aspecto importante <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas na audiência<br />

processual penal vem de um fenômeno que se poderia denominar de excesso de<br />

publicização <strong>da</strong>s partes no processo penal.<br />

Trata-se de alguma coisa que aos poucos se vem desenhando no horizonte do<br />

processo penal condenatório e que, de um ponto de vista político, seria motivo de reflexão<br />

e estudo.<br />

Efetivamente, nesta quadra <strong>da</strong> história do país, é urgente a implementação, por parte<br />

<strong>da</strong> administração pública, de órgãos públicos de defensoria técnica. Nesse sentido, é<br />

exemplar o alvitre de ROGÉRIO LAURIA TUCCI: “Só mesmo uma, tanto quanto possível,<br />

perfeita regulamentação <strong>da</strong> Defensoria Pública, com a conjugação de um quadro de<br />

profissionais habilitados e capazes e de elementos estruturais e materiais plenamente<br />

satisfatórios, é que poderá transformar esse acalentado sonho em alvissareira<br />

reali<strong>da</strong>de”. 499<br />

Contudo, a defensoria pública tem um defeito estrutural insolúvel: o de ser pública.<br />

Nesse particular, na<strong>da</strong> pode ser feito: por mais que se lhes concedessem amplíssimas<br />

garantias e prerrogativas, hoje advoga<strong>da</strong>s, seria ela sempre e sempre um órgão público.<br />

Com tal berço, por assim dizer, a defensoria pública representa mais uma ingerência<br />

estatal na estrutura de partes <strong>da</strong> relação processual penal: <strong>da</strong>í a referência a uma<br />

excessiva publicização <strong>da</strong>s partes no processo penal.<br />

Com mais essa ingerência, rompe-se o único elo privado na administração <strong>da</strong> justiça<br />

criminal, que é precisamente o advogado.<br />

A questão, aqui, é política. Sua sutileza torna-a de difícil tradução, na medi<strong>da</strong> em que<br />

a quadra histórica brasileira apresenta, efetivamente, um quadro pavoroso <strong>da</strong> defensoria<br />

técnica no processo penal. Não somente não há defensores técnicos em número<br />

suficiente, como também não há suficiente quali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> grande maioria dos que atuam<br />

no foro criminal, <strong>da</strong><strong>da</strong> a deficientíssima formação profissional enseja<strong>da</strong> pelas facul<strong>da</strong>des<br />

499 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos…, p. 108.<br />

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de Direito. Com esse quadro histórico, seria lícito opor qualquer obstáculo, ain<strong>da</strong> que<br />

teórico, à formação de um quadro de defensores públicos condignamente pagos? Decerto<br />

que não. A colocação teórica que ora se faz tem cunho político, com reflexos sutis, porém<br />

relevantes, na estrutura do próprio ordenamento jurídico-penal.<br />

A presença de um elo privado na discussão criminal é alguma coisa de imprescindível.<br />

Esse é o pressuposto teórico de tal análise.<br />

A visão particular, ou priva<strong>da</strong>, do advogado militante, é extremamente relevante na<br />

democratização do próprio processo penal. Sua visão dissocia<strong>da</strong>, porque independente,<br />

do aparelhamento estatal, concede-lhe a autonomia perfeita para advogar pelo imputado.<br />

O fato de não pertencer, como advogado, a órgão público algum, dá a ele autonomia<br />

e independência e ao processo uma saudável “válvula de escape” particular. A estrutura<br />

<strong>da</strong> discussão ocorri<strong>da</strong> no processo penal condenatório, ocorre, num prisma político, entre<br />

o Estado-administração (presentado pelo Ministério Público) e o ci<strong>da</strong>dão, individualmente<br />

considerado (presentado pelo imputado e por seu advogado, que o defende<br />

tecnicamente). Assiste a essa discussão o Estado-Juiz, outro órgão público <strong>da</strong> relação<br />

processual penal.<br />

A potenciali<strong>da</strong>de vivificadora que uma estrutura assim tem para o processo penal<br />

condenatório, posto que muito pouco percebi<strong>da</strong>, é notável.<br />

Entretanto, figurando também no pólo passivo <strong>da</strong> relação processual penal, como<br />

defensor técnico, alguém também pago pelos cofres públicos, não resta dúvi<strong>da</strong> que<br />

atenua-se o diálogo que o processo penal pode propiciar entre Estado e ci<strong>da</strong>dão.<br />

Com isso, publiciza-se excessivamente a estrutura de partes <strong>da</strong> relação processual<br />

penal, o que, politicamente, não deixa de ser preocupante. Com a participação, na<br />

ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> audiência processual penal, somente de servidores públicos,<br />

latosenso, a própria linguagem do Direito Penal irá empobrecendo, paulatinamente. Por<br />

quê? Porque é necessário, num processo penal democrático, também enformador do<br />

ordenamento jurídico-penal democrático, que o ci<strong>da</strong>dão seja presentado e ouvido,<br />

enquanto instituição política. Não se fala aqui, perceba-se, em ouvir a própria socie<strong>da</strong>de,<br />

cujos interesses punitivos são defendidos pelo Ministério Público. Trata-se de ouvir o<br />

ci<strong>da</strong>dão, instituição política individual. É politicamente necessário – e cientificamente<br />

vivificante – que o Estado ouça o que o “ci<strong>da</strong>dão-argüido” tem a dizer sobre a<br />

conformação <strong>da</strong>quele ordenamento jurídico-penal que modificou-lhe o status quo através<br />

de uma persecução penal. Mais do que ouvir, deve dialogar, através do Ministério Público,<br />

com ele.<br />

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Um fenômeno deveras preocupante, nos tempos atuais, vem sendo a sofisticação <strong>da</strong><br />

linguagem do Direito Penal. Essa sofisticação tem uma fonte importante. Trata-se <strong>da</strong><br />

excessiva profissionalização dos personagens do processo penal. Ca<strong>da</strong> vez mais,<br />

integram o processo penal condenatório profissionais ligados à ciência penal.<br />

Enfraquecem-se os elos privados <strong>da</strong> estrutura de partes.<br />

É por essa razão, entre outras, que o <strong>Tribunal</strong> do Júri é tão relevante para a<br />

conformação do Ordenamento jurídico-penal. Contudo, num processo penal perante juiz<br />

singular, profissional, portanto, será necessário que se restabeleça ao menos uma<br />

“válvula de escape” para a visão do particular na discussão e análise do caso.<br />

Que valha como uma in<strong>da</strong>gação problematizante: num caso de sonegação fiscal, a<br />

atuação do defensor público (pago pelos cofres públicos, que são financiados pelos<br />

tributos) seria a mesma de um defensor particular? Difícil de dizer, senão no caso<br />

concreto. Contudo, pergunta-se: não haveria aqui, para o defensor público, um conflito,<br />

ain<strong>da</strong> que muito sutil, entre os interesses de seu defendido – o “sonegador”, que não quer<br />

pagar impostos – e os seus, de ser bem pago pelos cofres públicos? Não se objete que<br />

em casos de sonegação fiscal os acusados usualmente podem pagar pelos serviços<br />

profissionais de advogados. Conforme é óbvio, a defensoria pública é perfeitamente<br />

acionável nesses casos; na hipótese de revelia, por exemplo.<br />

Parece claro que seria politicamente enriquecedor um diálogo entre o Estado,<br />

representado pelo Ministério Público, que corporifica os interesses <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

politicamente organiza<strong>da</strong>, que quer que todos paguem seus tributos, e o ci<strong>da</strong>dão, que não<br />

quer pagar tantos tributos, ou mesmo secretamente, não desejaria pagar tributo algum.<br />

Como a defensoria pública é, decerto, imprescindível, coloca-se um problema: ou<br />

opta-se por deixar aberta uma “válvula de escape” particular, deixando a descoberto os<br />

interesses dos “argüidos”, ou se lhes concede defensor público, com a conseqüência de<br />

publicizar excessivamente o processo penal condenatório.<br />

A solução, com efeito, parece ser no sentido de viabilizar, sim, a defensoria pública,<br />

pagando condignamente seus profissionais. Contudo, parece certamente necessário que<br />

não seja ela hegemônica na defesa dos menos favorecidos. É preciso que, além dela,<br />

tomem parte nesse mister os advogados liberais, procedendo a defesas de acusados sem<br />

condições de pagá-los. Não se trata de cari<strong>da</strong>de, mas de cumprir, ca<strong>da</strong> um, sua parte na<br />

implementação de uma justiça social mesmo através do processo penal. Seria salutar que<br />

a Ordem dos Advogados do Brasil estimulasse uma efetiva atuação de assistência<br />

judiciária, remunera<strong>da</strong> ou não, por parte de advogados liberais.<br />

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Por outro lado, parece que também seria interessante adotar um sistema de<br />

remuneração, por caso atendido, aos advogados liberais que atuassem na defensoria<br />

<strong>da</strong>tiva. O importante, de fato, é que se criem mecanismos eficientes de defesa <strong>da</strong>tiva,<br />

preservando o caráter substancialmente dialético do processo penal condenatório.<br />

O caso norte-americano é, uma vez mais, notável. Nesse país, ao longo <strong>da</strong> história,<br />

foram forma<strong>da</strong>s inúmeras associações não estatais, sem fins lucrativos, dedica<strong>da</strong>s a<br />

defender as assim chama<strong>da</strong>s liber<strong>da</strong>des civis. A mais antiga e mais famosa delas é a<br />

“União Norte-Americana <strong>da</strong>s Liber<strong>da</strong>des Civis” (American Civil Liberties Union – ACLU).<br />

Com o tempo, outras associações se formaram para trabalhar em campos menos amplos,<br />

ligados às mesmas liber<strong>da</strong>des. Assim, foram forma<strong>da</strong>s a “Liga <strong>da</strong>s Mulheres Eleitoras”<br />

(League of Women Voters – LWV), para lutar pelos direitos <strong>da</strong>s mulheres, a “Associação<br />

Nacional para o Avanço <strong>da</strong>s Pessoas de Cor” (National Association of Advancement of<br />

Colored People – NAACP), para lutar pelos direitos dos negros, o “Fundo Becket para a<br />

Liber<strong>da</strong>de Religiosa” (The Becket Fund for Religious Liberty), para lutar pela liber<strong>da</strong>de<br />

religiosa, entre outras. Mais recentemente, a pena de morte, que ain<strong>da</strong> resiste nos<br />

Estados Unidos, motivou o nascimento de associações dedica<strong>da</strong>s a combater a pena de<br />

morte.<br />

Entre elas se destacam a “Coalizão Nacional para Abolir a Pena de Morte (National<br />

Coalition to Abolish the Death Penalty – NCADP), a “Ci<strong>da</strong>dão Unidos para Alternativas à<br />

Pena de Morte” (Citizens United for Alternatives to the Death Penalty – CUADP), o<br />

“Centro Nacional sobre Instituições e Alternativas” (National Center on Institutions and<br />

Alternatives – NCIA), o “Centro de Informação sobre a Pena de Morte” (Death Penalty<br />

Information Center – DPIC), as “Famílias de Vítimas de Homicídio pró-Direitos Humanos”<br />

(Murder Victims’ Families for Human Rights – MVFHR), entre tantas outras. Pois bem.<br />

Uma <strong>da</strong>s muitas estratégias considera<strong>da</strong>s por essas associações está, por exemplo, a de<br />

fornecer advogados a sentenciados à pena de morte, com o objetivo de comutar-lhes as<br />

penas. Há até associações de médicos contra a pena de morte, que se oferecem para<br />

realizar, gratuitamente, perícias com a finali<strong>da</strong>de de reverterem as sentenças capitais.<br />

É exatamente essa a idéia. A defesa dos imputados necessitados não é algo que se<br />

possa resolver através de um único mecanismo; e sobretudo através de um mecanismo<br />

estatal. A defensoria pública é uma <strong>da</strong>s principais alternativas, mas não é a única. Muitas<br />

outras hipóteses devem ser considera<strong>da</strong>s e implementa<strong>da</strong>s. Somente assim se garante,<br />

ao processo penal, o “oxigênio” necessário para sua sobrevivência.<br />

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§ 5º Ritualismo<br />

a) no inquérito policial<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica não está regula<strong>da</strong> de maneira alguma no inquérito policial, o que<br />

poderia fazer concluir que não existe.<br />

Entretanto, uma constatação importante é de ser registra<strong>da</strong>: embora não prevista nem<br />

regula<strong>da</strong> e ver<strong>da</strong>deiramente submeti<strong>da</strong> ao arbítrio <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial, a experiência<br />

demonstra que, muitas vezes, os efeitos de uma ativi<strong>da</strong>de crítica no inquérito policial são<br />

devastadores para o exercício positivo <strong>da</strong> opinio delicti. É dizer: mesmo que não prevista,<br />

a oportuna inserção de argumentos na fase investigatória introduz, no mínimo, a dúvi<strong>da</strong>,<br />

que mesmo indevi<strong>da</strong>mente é muitas vezes levanta<strong>da</strong> como argumento para o<br />

arquivamento do inquérito ou para a rejeição <strong>da</strong> denúncia ou <strong>da</strong> queixa.<br />

b) nos procedimentos comuns<br />

Não há audiência de instrução e julgamento no procedimento ordinário pleno,<br />

dominado pelo princípio <strong>da</strong> escritura; <strong>da</strong>í porque talvez pareça incorreto falar-se em<br />

ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> audiência nesse procedimento.<br />

Entretanto, alguns juízes nele têm realizado uma audiência de instrução e julgamento,<br />

de lege feren<strong>da</strong>, com o objetivo de agilizar a tramitação dos processos penais<br />

condenatórios. Essa praxe, dependendo de como seja leva<strong>da</strong> a efeito, não fere qualquer<br />

dos princípios do processo penal, proporcionando uma visão de conjunto do caso em<br />

julgamento.<br />

Quanto aos debates <strong>da</strong> audiência de instrução e julgamento do procedimento sumário<br />

em sentido estrito, a regulamentação legal limita-se ao aspecto temporal. É o que fazem o<br />

§ 2º do art. 538 e o § 2º do art. 539 do CPP. Aquele dispõe: “Na audiência (...) será <strong>da</strong><strong>da</strong><br />

a palavra, sucessivamente, ao órgão do Ministério Público e ao defensor do réu ou a este,<br />

quando tiver sido admitido a defender-se, pelo tempo de 20 (vinte) minutos para ca<strong>da</strong> um,<br />

prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz (...)”; este, por sua vez, estabelece: “Ao<br />

querelante ou ao assistente será, na audiência do julgamento, <strong>da</strong><strong>da</strong> a palavra pelo tempo<br />

de 20 (vinte) minutos, prorrogável por mais 10 (dez), devendo o primeiro falar antes do<br />

órgão do Ministério Público e o último depois”.<br />

Não há regulamentação detalha<strong>da</strong> dos debates orais produzidos durante a audiência<br />

de instrução e julgamento do procedimento sumário em sentido estrito.<br />

Essa, aliás, é a praxe do CPP. Também com relação aos debates produzidos durante<br />

a sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri não há<br />

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regulamentação estrita, limitando-se a lei a delimitar-lhes o tempo total.<br />

No caso do procedimento sumário em sentido estrito, essa omissão gera uma falsa<br />

dúvi<strong>da</strong> que, entretanto, tem se mostrado importante: os debates <strong>da</strong> respectiva audiência<br />

de instrução e julgamento devem ser consignados por escrito no termo?<br />

Falsa dúvi<strong>da</strong> porque, não existindo previsão expressa de que deverão ser reduzidos a<br />

escrito, é porque não precisarão sê-lo, ao menos necessariamente.<br />

A prova disso é de que, em se tratando de atos processuais praticados oralmente no<br />

processo penal, a lei sempre cui<strong>da</strong> de, sendo o caso, determinar sua transcrição no<br />

termo.<br />

Ademais, nunca se desconfiou de que, na sessão de instrução e julgamento do<br />

procedimento especial do júri, o juiz-presidente estivesse obrigado a transcrever os<br />

debates orais que ali se desenvolvem. Uma <strong>da</strong>s razões dessa atitude é a mesma, isto é, a<br />

ausência de norma que determine a transcrição. A outra, decerto mais importante, é de<br />

que, no procedimento especial do júri a lei garante que, regular a relação processual, uma<br />

decisão de mérito coroará a discussão do caso entre as partes técnicas.<br />

Seja como for, no procedimento sumário em sentido estrito não há regra que<br />

determine que a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas deverá ser registra<strong>da</strong> in totum. Daí<br />

poder se inferir, com segurança, que também nesse procedimento o registro detalhado<br />

dos debates orais na ata <strong>da</strong> audiência não é necessário.<br />

Isso não implica que os argumentos produzidos nesse debate ficarão sem registro.<br />

Essa conseqüência não seria razoável nem juridicamente váli<strong>da</strong>, pois há o interesse, por<br />

parte do órgão judicial de segundo grau de jurisdição de, em sede de recurso, conhecer a<br />

matéria jurídica alega<strong>da</strong> pelas partes. Esse interesse é evidentemente maior nos casos de<br />

procedimento sumário em sentido estrito do que nos casos do procedimento especial do<br />

júri, <strong>da</strong><strong>da</strong> a regra <strong>da</strong> soberania dos veredictos deste último (Constituição, art. 5º, inciso<br />

XXXVIII). Por tal razão, sublinhe-se que o teor dos debates orais deve ser registrado. O<br />

problema é, aqui, de sede e de extensão desse registro.<br />

Salvo a utilização de métodos de gravação sonora e visual, que poderiam solucionar<br />

alguns dos problemas de execução <strong>da</strong> transcrição, a sede mais apropria<strong>da</strong> para um<br />

registro escrito e resumido dos debates é, em ver<strong>da</strong>de, a sentença que no procedimento<br />

sumário em sentido estrito deve ser prolata<strong>da</strong> na audiência ou pouco depois. O art. 381,<br />

inciso II, do CPP, a propósito, determina que conste <strong>da</strong> sentença “a exposição sucinta <strong>da</strong><br />

acusação e <strong>da</strong> defesa”.<br />

Essa assertiva, está claro, deve ser considera<strong>da</strong> cum granum salis. Não é váli<strong>da</strong>,<br />

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admita-se, para os casos em que, fin<strong>da</strong> a audiência de instrução e julgamento, o juiz<br />

determina que os autos do processo lhe venham conclusos e leva muito tempo para<br />

prolatar a sentença. Um hiato considerável faria com que o juiz esquecesse <strong>da</strong>s provas<br />

produzi<strong>da</strong>s e de tudo o que foi discutido pelas partes, caso em que a documentação ser-<br />

lhe-ia útil.<br />

Essa atitude, porém, é patológica, pois o § 3º do art. 538 do CPP determina que se o<br />

juiz “não se julgar habilitado a proferir decisão” deve prolatar sentença escrita em cinco<br />

dias, que é um prazo razoável para que o conteúdo do que lhe foi mostrado e dito na<br />

audiência esteja, ain<strong>da</strong> vívido. Por essa razão, não invali<strong>da</strong> o raciocínio.<br />

Se na audiência de instrução e julgamento respeitarem-se os princípios <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de e<br />

concentração, as alegações orais não precisarão ser consigna<strong>da</strong>s no termo, bastando<br />

que o sejam, resumi<strong>da</strong>mente, no relatório <strong>da</strong> sentença. Essa providência preservará, para<br />

“consumo” pelo órgão judicial de segundo grau de jurisdição, o conhecimento <strong>da</strong> matéria<br />

jurídica alega<strong>da</strong> pelas partes. Dessa maneira, preservar-se-á a orali<strong>da</strong>de desse momento<br />

processual.<br />

Nesse passo, é exemplar o seguinte entendimento jurisprudencial: “A deliberação do<br />

magistrado, em audiência de instrução e julgamento, para que os debates orais sejam<br />

dirigidos diretamente a ele, cujo resumo será ditado ao escrevente e consignado em ata,<br />

está em perfeita sintonia com a letra <strong>da</strong> lei (art. 538, § 2º, do CPP). Este é o sistema do<br />

Código, que a praxe forense, pela sobrecarga de serviço, alterou para fazer os debates<br />

diretamente ao escrevente. Esta praxe é aceitável quando os profissionais trabalham em<br />

harmonia e existe confiança recíproca. Perdi<strong>da</strong> essa harmonia, deve-se retornar à letra <strong>da</strong><br />

lei, nos seus rígidos conformes, descabi<strong>da</strong> qualquer argumentação no sentido de que tal<br />

providência importa inversão tumultuária <strong>da</strong> ordem dos atos e fórmulas legais do<br />

processo”. 500<br />

Ain<strong>da</strong> com relação aos debates, a doutrina é pacífica em que neles não se admite<br />

réplica nem tréplica. 501 O que se tem, unicamente, é a prorrogação dos tempos de<br />

sustentação oral <strong>da</strong> acusação e <strong>da</strong> defesa.<br />

500<br />

Correição parcial n. 609.887-3-Taquaritinga – TACrimSP – 2ª Câmara – Rel. Juiz Pedro Gagliardi –<br />

julga<strong>da</strong> em 10.mai.90 – indeferi<strong>da</strong> – votação unânime – RT n. 659 (set/1990), p. 286-287.<br />

501<br />

Cf. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 5, n. 1.060, p. 330 e MIRABETE, Júlio Fabbrini.<br />

Processo…, p. 550.<br />

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c) no procedimento especial do júri<br />

Está precisamente nos debates orais <strong>da</strong> sessão de instrução e julgamento do<br />

procedimento especial do júri sua mais saliente expressão.<br />

Isso ocorre por diversas razões.<br />

Em primeiro lugar, pelo que os debates orais <strong>da</strong> sessão de instrução e julgamento<br />

desse procedimento representam enquanto “espetáculo”.<br />

Em segundo lugar, porque a estrutura dessa sessão de instrução e julgamento, oral e<br />

altamente concentra<strong>da</strong>, permite uma visão de conjunto do caso e a perspectiva, geradora<br />

de tensão, para todos os que dela tomam parte, de uma sentença de mérito imediata.<br />

É o que escreve HERMÍNIO ALBERTO MARQUES PORTO: “A cumulação, na instrução em<br />

Plenário e nos debates, dos sistemas de concentração, orali<strong>da</strong>de e imediati<strong>da</strong>de, oferece<br />

condições especiais de expressivi<strong>da</strong>de às provas produzi<strong>da</strong>s e debati<strong>da</strong>s à frente dos<br />

jurados, e a coloração envolvedora dos debates em na<strong>da</strong> é desmerecedora como meio<br />

valorativo <strong>da</strong>s provas”. 502<br />

Mas não é somente nesse momento caracteristicamente acusatório do procedimento<br />

que é “encenado” o caso pelas partes, para melhor intelecção pelos juízes leigos. A<br />

“encenação” se inicia desde os momentos em que, conforme o art. 442 do CPP, o<br />

escrivão procede à chama<strong>da</strong> dos jurados e que o juiz-presidente, constatando a presença<br />

de ao menos quinze deles, declara instala<strong>da</strong> a sessão.<br />

Já a partir desse momento inicial passa a ser ver<strong>da</strong>deiramente “encenado” a causa<br />

em julgamento. Contudo, é no momento do início dos debates orais que essa<br />

“encenação” passa a aumentar, em proporção até então inocorrente, de intensi<strong>da</strong>de<br />

espetacular e emocional.<br />

Está claro que a importância desse momento tem sido freqüentemente exagera<strong>da</strong>,<br />

sobretudo pelas partes, na experiência do foro criminal. O exagero, nesse caso,<br />

corresponderia a <strong>da</strong>r um aspecto por demais dramático e retórico a esses debates,<br />

desconsiderando o efeito que a produção direta de provas perante os jurados pode<br />

produzir em termos de convencimento.<br />

Quanto à sua posição durante a sessão de instrução e julgamento do procedimento<br />

especial do júri, os debates orais se situam após a inquirição de testemunhas. É o que diz<br />

o art. 471, caput, do CPP: “Termina<strong>da</strong> a inquirição <strong>da</strong>s testemunhas, o promotor lerá o<br />

libelo e os dispositivos <strong>da</strong> lei em que o réu se achar incurso, e produzirá a acusação”.<br />

502 PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri…, p. 120-121.<br />

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Ain<strong>da</strong> segundo o CPP, os debates orais dividem-se em cinco partes: a leitura do libelo<br />

e dos dispositivos legais fixados pela pronúncia, a acusação, a defesa, a réplica e a<br />

tréplica.<br />

Os limites temporais dessas partes, à exceção <strong>da</strong> primeira, são estabelecidos pelo art.<br />

474, caput, do CPP: “O tempo destinado à acusação e à defesa será de 2 (duas) horas<br />

para ca<strong>da</strong> um, e de meia hora a réplica e outro tanto para a tréplica”.<br />

A existência de mais de um órgão acusador ou de mais de um órgão defensor, para<br />

um só réu, não excepciona essa regra. É o que diz o § 1º do art. 474 do CPP. A exceção<br />

a essa regra vem estabeleci<strong>da</strong> no § 2º desse mesmo dispositivo, que aumenta em uma<br />

hora os tempos <strong>da</strong> acusação e <strong>da</strong> defesa e dobra os de réplica e tréplica no caso de<br />

estarem sendo julgados ao menos dois réus.<br />

A leitura do libelo e dos dispositivos legais fixados pela pronúncia, que precede a<br />

acusação, tem sido considera<strong>da</strong> uma formali<strong>da</strong>de não-essencial.<br />

A acusação tem forma oral, mas livre de peias formais. A única peia de caráter formal<br />

tem sido imposta por parte <strong>da</strong> jurisprudência e se relaciona com a prestação de<br />

testemunho pessoal por parte do órgão acusador.<br />

Diz a jurisprudência que ao órgão acusador e ao órgão defensor não é <strong>da</strong>do<br />

testemunhar em favor ou contra a parte em julgamento.<br />

Essa regra jurisprudencial tem sua fonte na parte final do art. 258 do CPP, que<br />

estende ao Ministério Público, no que lhe for próprio, as regras de suspeição e<br />

impedimento do juiz. Se revela-se testemunha, pois sabe, por experiência própria, de<br />

<strong>da</strong>dos fáticos do fato criminoso, torna-se impedido de tomar parte dele, sendo nulo o<br />

processo desde quando passou a nele atuar.<br />

Quanto ao autor técnico privado e ao defensor técnico, essa regra não vige, sendo<br />

possível, portanto, que o representante <strong>da</strong> parte dê seu testemunho sobre o caso em<br />

questão; não há, enfim, nuli<strong>da</strong>de nisso. 503<br />

No mais, há as regras delimitadoras do conteúdo dos debates orais que dizem com o<br />

cometimento de crimes contra a honra, 504 contra a administração <strong>da</strong> justiça 505 etc., regras<br />

503<br />

RT 517/295, 383/172, 358/229, 444/316, 504/315-616.<br />

504<br />

O art. 142, inciso I, do CP, exclui o caráter criminoso <strong>da</strong> injúria e <strong>da</strong> difamação cometi<strong>da</strong>s pelas<br />

partes e seus órgãos técnicos na discussão <strong>da</strong> causa; a calúnia permanece materialmente típica.<br />

505<br />

O art. 330 e o art. 331 do CP, por exemplo.<br />

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que, a to<strong>da</strong> evidência, não foram revoga<strong>da</strong>s. 506<br />

Está fixado que há conseqüências penais para certas manifestações <strong>da</strong>s partes<br />

técnicas durante os debates orais. Quid iuris se, no sentir do juiz-presidente, qualquer<br />

delas fizer pronunciamentos inexatos, ou mesmo mentir para os jurados? Pode o juiz<br />

togado interferir em qualquer <strong>da</strong>s fases dos debates, esclarecendo os jurados de que<br />

aquela afirmação é imprecisa ou mesmo inverídica? Pode punir o órgão do Ministério<br />

Público ou o advogado?<br />

Para uma resposta, o primeiro <strong>da</strong>do a ser considerado é o <strong>da</strong> destaca<strong>da</strong> posição do<br />

juiz-presidente, a qual, alia<strong>da</strong> à sua condição de imparciali<strong>da</strong>de, poderia conferir<br />

credibili<strong>da</strong>de insuperável às suas afirmações, virtualmente condenando ao fracasso a tese<br />

<strong>da</strong> parte por elas contraria<strong>da</strong>. Admitir hipóteses amplas de intervenção do juiz nos<br />

debates é assumir riscos de vulnerar direitos e garantias individuais ou de inviabilizar a<br />

aplicação <strong>da</strong> lei penal.<br />

Contudo, e embora o juiz-presidente deva velar para que os jurados estejam<br />

perfeitamente esclarecidos no momento de julgar, seu prestígio desproporcionalmente<br />

maior do que o <strong>da</strong>s partes técnicas, faz com que qualquer intervenção sua nos debates<br />

seja potencialmente deletéria.<br />

Admitir intervenções, deixando-as ao sabor <strong>da</strong> maior ou menor habili<strong>da</strong>de ou<br />

refinamento do juiz-presidente é simplesmente imprudente. Qualquer excesso que<br />

pratique pode desmoralizar a parte técnica que está com a palavra, ou <strong>da</strong>r-lhe forças<br />

descomunais para seguir adiante, aniquilando a tese <strong>da</strong> parte contrária.<br />

Além disso, diga-se que há momento processual próprio para comunicação do juizpresidente<br />

com os jurados. Isso advém <strong>da</strong> competência do juiz-presidente no<br />

procedimento especial do júri. Com a repartição <strong>da</strong> competência pelo objeto do juízo, o<br />

juiz-presidente é o responsável pela prolatação <strong>da</strong> sentença e dosimetria <strong>da</strong> pena, bem<br />

como pelo esclarecimento dos jurados em matéria de fato e pela sua orientação jurídica.<br />

Assim, a resposta para essa questão há de ser negativa. Somente as hipóteses dos<br />

arts. 478, parágrafo único, e 479, primeira parte, do CPP autorizam resposta contrária. No<br />

caso do art. 478, parágrafo único, “se qualquer dos jurados necessitar de novos<br />

esclarecimentos sobre questão de fato, o juiz os <strong>da</strong>rá, ou man<strong>da</strong>rá que o escrivão os dê,<br />

506 Cf., a respeito de normas penais aplicáveis aos advogados, a ADI n. 1.127-DF – STF – Rel. Min.<br />

Marco Aurélio – Rel. para o acórdão Min. Ricardo Lewandowski – julga<strong>da</strong> em 17.mai.2006 – parcialmente<br />

procedente – votação majoritária – DJU, Seção 1, A respeito dos advogados, em 2006 o STF terminou de<br />

se pronunciar na ADI 1.127, pela aplicabili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> hipótese de desacato ao advogado em face do juiz.<br />

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à vista dos autos”. No caso do art. 479, o código determina que o juiz, antes de ca<strong>da</strong><br />

votação, leia os quesitos e explique “a significação legal de ca<strong>da</strong> um”.<br />

Aliás, a re<strong>da</strong>ção do art. 478, caput, é intuitiva: “Concluídos os debates, o juiz in<strong>da</strong>gará<br />

dos jurados se estão habilitados a julgar ou se precisam de mais esclarecimentos”.<br />

Se a lei autoriza essa comunicação e transmissão de informações do juiz-presidente<br />

para os jurados e vice-versa findos os debates, é porque durante seu desenvolvimento ela<br />

é ve<strong>da</strong><strong>da</strong>.<br />

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Seção C<br />

Fun<strong>da</strong>mento Político<br />

A ativi<strong>da</strong>de crítica realiza<strong>da</strong> na audiência processual penal, pelas partes técnicas,<br />

possui um relevo político dos maiores e que, entretanto, não teve jamais <strong>da</strong> doutrina<br />

processual penal um tratamento à altura.<br />

Perceba-se que sendo o processo penal, como é, o instrumento de aplicação do<br />

ordenamento jurídico-penal, suas características influenciarão este ordenamento.<br />

Mais do que uma relevância casuística, isto é, limita<strong>da</strong> a determinados fenômenos, 507-<br />

508 o processo penal terá influência direta, mas nem sempre percebi<strong>da</strong>, sobre a própria<br />

fisionomia do ordenamento jurídico-penal.<br />

É o que ocorre hoje, claramente, com a ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas no<br />

processo penal brasileiro.<br />

Conforme tem sido repisado freqüentemente, o processo penal brasileiro é misto, isto<br />

é, embora disponha de partes em sentido formal e se desenvolva publicamente, adotou<br />

mecanismos importantes do sistema inquisitório. Algumas <strong>da</strong>s características do sistema<br />

inquisitório que o processo penal brasileiro adotou já foram enumera<strong>da</strong>s: a adoção de um<br />

procedimento investigatório prévio, de matiz puramente inquisitório; a adoção <strong>da</strong><br />

presidenciali<strong>da</strong>de na ativi<strong>da</strong>de instrutória; a adoção de um importante “princípio<br />

inquisitório”, que permite ao juiz investigar, em busca <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de material; a autorização<br />

ao juiz de julgar além do pedido pelo autor.<br />

Somando-se a essas características a adoção, como regra geral, <strong>da</strong> escritura, que<br />

determina a realização de todos os mais importantes atos processuais por escrito, tem-se,<br />

como resultado, um aspecto amorfo, ou até, se for permitido o termo, insosso do processo<br />

507<br />

Cf., aspectos <strong>da</strong> influência do processo penal sobre o ordenamento penal substantivo e sobre a<br />

própria dogmática penal em DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 23-36: “Há, na ver<strong>da</strong>de, desde logo,<br />

diretrizes fun<strong>da</strong>mentais do pensamento jurídico-penal – umas já plenamente realiza<strong>da</strong>s, outras que se<br />

afirmam ain<strong>da</strong> só no plano de lege feren<strong>da</strong> – que são, totalmente ou pelo menos em boa parte, o resultado<br />

de necessi<strong>da</strong>des imperiosos feitas sentir ao nível do processo penal. Há, depois, modificações que se<br />

operaram ou se advogam no seio do direito penal e se apresentam como puras conseqüências de<br />

modificações introduzi<strong>da</strong>s no direito processual penal. Há, finalmente, soluções de problemas jurídicoprocessuais<br />

que, quando considera<strong>da</strong>s em polari<strong>da</strong>de dialética com o direito penal, podem contribuir de<br />

modo relevante para o esclarecimento de intrincados e discutidos problemas de direito substantivo”.<br />

508<br />

Cf. precisa informação acerca <strong>da</strong>s influências do processo inquisitório sobre o Direito Penal em<br />

GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini. Liber<strong>da</strong>des…, p. 36: “Os defeitos do sistema inquisitivo são evidentes; o que<br />

não deve levar ao esquecimento de certos progressos que por seu intermédio o direito processual penal<br />

pôde realizar: uma avaliação mais rigorosa <strong>da</strong>s provas, a separação <strong>da</strong> fase instrutória <strong>da</strong> fase de debates,<br />

a importância do elemento psicológico do crime, o encaminhamento para um direito penal livre de<br />

intromissões de origem priva<strong>da</strong>, progressos esses que permaneceram definitivamente adquiridos pela<br />

ciência penalística” [sem grifo no original].<br />

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penal condenatório no Brasil.<br />

Essa “ausência de cor” ou “sabor”, por assim dizer, do processo penal brasileiro, tem,<br />

conforme já visto, um fator importante na ativi<strong>da</strong>de instrutória, <strong>da</strong>do que os amplos<br />

poderes-deveres instrutórios do juiz fazem com que não exista uma efetiva autoresponsabili<strong>da</strong>de<br />

probatória para as partes técnicas, ver<strong>da</strong>deiramente tutela<strong>da</strong>s pelo juiz.<br />

Contudo, esse amorfismo tem também um fator igualmente relevante na ativi<strong>da</strong>de<br />

crítica <strong>da</strong>s partes técnicas, que no processo penal brasileiro se desenvolve principalmente<br />

por escrito.<br />

Não podem restar dúvi<strong>da</strong>s de que o processo penal brasileiro optou por estruturar-se<br />

com um respeito quase reverencial por algo que, por ora, convém denominar de dogma<br />

do distanciamento. 509<br />

Esse dogma dispõe que na relação processual, o juiz será sempre, além de seu<br />

presidente, o “prisma” através do qual to<strong>da</strong>s as manifestações e ativi<strong>da</strong>des deverão<br />

passar. A imediação, no processo penal brasileiro, é deferi<strong>da</strong> ao juiz; somente como<br />

exceção as partes técnicas terão qualquer possibili<strong>da</strong>de de imediação, seja com as<br />

provas, seja umas relativamente às outras.<br />

No caso <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de instrutória, está claro que a imediação somente se verifica entre<br />

o juiz e as provas, dela não participando as partes técnicas, com a importante exceção do<br />

júri.<br />

Da mesma maneira essa ausência de intermediação se verifica na ativi<strong>da</strong>de crítica<br />

<strong>da</strong>s partes técnicas.<br />

A adoção de alegações finais escritas no procedimento-padrão para os crimes mais<br />

graves, bem como em inúmeros outros procedimentos, é um evidente exemplo desse<br />

distanciamento desejado pela legislação processual penal.<br />

Como subproduto desse distanciamento, tem-se que mesmo em processos relativos a<br />

casos penais de diminuta complexi<strong>da</strong>de as partes técnicas freqüentemente optam por<br />

alegações finais escritas, na forma de memoriais, quando ser-lhes-ia muito mais útil o<br />

oferecimento de alegações orais.<br />

Ain<strong>da</strong> é um subproduto dessa opção o imenso apego do juiz e <strong>da</strong>s partes técnicas<br />

pela documentação exagera<strong>da</strong>, que leva a situações de ver<strong>da</strong>deiro non sense, se o termo<br />

ríspido é permitido. Compreendendo muito mal a orali<strong>da</strong>de, tanto os juízes quanto as<br />

509<br />

RAMOS, João Gualberto Garcez. “Observações acerca <strong>da</strong> instrução criminal no Brasil”, em RPGR,<br />

n. 3 (abr-jun/1993), p. 105.<br />

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partes técnicas, mesmo diante de alegações orais, pretendem que elas sejam<br />

documenta<strong>da</strong>s à exaustão, em todos as suas palavras, como se as alegações orais <strong>da</strong>s<br />

partes técnicas fossem apenas um ditado para os escreventes.<br />

O debate jurídico direto, franco e aberto em torno do caso, desaparece debaixo de<br />

tonela<strong>da</strong>s de papel. Eis aí onde se perdem a “cor” e o “sabor” do Direito Penal: nos<br />

volumosos autos e nas intermináveis petições e alegações escritas.<br />

A relevância política <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas na audiência processual<br />

penal é ensejar um ver<strong>da</strong>deiro debate jurídico acerca <strong>da</strong>s normas penais e de suas<br />

conseqüências para a socie<strong>da</strong>de.<br />

É preciso que se compreen<strong>da</strong> a relação processual penal, no aspecto <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de<br />

crítica <strong>da</strong>s partes técnicas, como uma ver<strong>da</strong>deira discussão de todos os aspectos<br />

jurídicos e políticos do respectivo caso. A doutrina processual penal, por muitos anos,<br />

prestigiou o aspecto reconstrutivo do processo penal condenatório, definindo-o como a<br />

“reconstituição histórica do fato pretérito representado pelo crime”.<br />

Nesse prestigiamento, inevitável, aliás, porque não se pode pensar numa relação<br />

processual que não pretendesse a reconstituição histórica do fato criminoso, esqueceu-se<br />

a doutrina processual penal de que o processo penal é, também, discussão. Assim, mais<br />

do que pretender a pura e simples reconstituição histórica do fato criminoso, o processo<br />

penal condenatório também visa o debate jurídico acerca desse fato.<br />

Dir-se-á que o debate gira em torno <strong>da</strong> reconstituição histórica do fato criminoso,<br />

enseja<strong>da</strong> pela instrução criminal, razão pela qual a ativi<strong>da</strong>de instrutória é, ain<strong>da</strong> o objetivo<br />

magno do processo. Contudo, embora a preeminência dessa ativi<strong>da</strong>de tenha muito de<br />

ver<strong>da</strong>deiro, é preciso que de uma vez por to<strong>da</strong>s seja assumi<strong>da</strong> pelo Direito Processual<br />

Penal a lição de NILO BAIRROS DE BRUM, no sentido de que a prova também possui o que<br />

denominou de dimensão argumentativa: “a prova pode ser tudo (...) mas o que nos<br />

preocupa (...) é a dimensão argumentativa <strong>da</strong> prova. É a forma que a prova assume nos<br />

discursos judiciais, principalmente na sentença do juiz. É na forma de argumento que a<br />

prova aparece nos arrazoados <strong>da</strong> defesa ou <strong>da</strong> acusação. Nestes, a prova é usa<strong>da</strong> para<br />

convencer o juiz, para persuadi-lo a tomar determina<strong>da</strong>s decisões. É na forma de<br />

argumento que a prova aparece na fun<strong>da</strong>mentação <strong>da</strong> sentença, quando o juiz procura<br />

justificar sua decisão perante as partes, os tribunais e a comuni<strong>da</strong>de jurídica. (...) A<br />

reflexão acerca <strong>da</strong> dimensão retórica <strong>da</strong> prova leva-nos a concluir que, ao contrário do<br />

que se costuma pensar, a fixação do fato sub judice não está determina<strong>da</strong> unicamente<br />

por juízos descritivos, mas principalmente por juízos de valor e que a legitimação <strong>da</strong>s<br />

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decisões judiciais passa pela justificação persuasiva também no que se refere à esfera<br />

fática”. 510<br />

Em outras palavras, essa importante lição de NILO BAIRROS DE BRUM implica em<br />

assumir que mesmo a mais evidente reconstituição histórica realiza<strong>da</strong> por um processo<br />

penal condenatório não é completamente imune a uma manipulação argumentativa. Vem<br />

<strong>da</strong>í a relevância do estudo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s partes técnicas na audiência<br />

processual penal.<br />

É preciso que se compreen<strong>da</strong> que a audiência processual penal é um momento <strong>da</strong><br />

maior importância para um exercício mais efetivo <strong>da</strong> crítica pelas partes técnicas. O nãoaproveitamento<br />

desse momento processual para o exercício de ver<strong>da</strong>deira ativi<strong>da</strong>de<br />

crítica, consubstancia<strong>da</strong> no debate franco de idéias, coordenado construtivamente pelo<br />

juiz, enseja um empobrecimento do ordenamento jurídico-penal e <strong>da</strong> dogmática penal em<br />

diversos e relevantes aspectos. A linguagem do Direito Penal é um deles.<br />

É mais do que preciso que se torne preocupante para a doutrina penal brasileira a<br />

reali<strong>da</strong>de de que a esmagadora maioria <strong>da</strong>s teorias penais veicula<strong>da</strong>s no Brasil é<br />

importa<strong>da</strong> de dois países, basicamente: Alemanha e Itália. Mais preocupante ain<strong>da</strong> é que<br />

algumas vezes essas teorias são importa<strong>da</strong>s sem um juízo crítico.<br />

Indo um pouco mais além na análise dessa reali<strong>da</strong>de, tome-se o exemplo <strong>da</strong><br />

inexigibili<strong>da</strong>de de conduta diversa, forma<strong>da</strong> a partir <strong>da</strong> conjugação <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des críticas<br />

<strong>da</strong> doutrina e <strong>da</strong> jurisprudência alemãs, pouco antes do início deste século. 511<br />

É mister reconhecer que, na evolução de uma ciência aplica<strong>da</strong> como é o Direito<br />

Penal, o trabalho acadêmico não é suficiente: é preciso que seja ele submetido à<br />

experimentação, bem como a uma avaliação por parte <strong>da</strong> política criminal.<br />

Especificamente com relação a certa fase <strong>da</strong> dogmática alemã, precisamente a que<br />

produziu a Teoria Finalista <strong>da</strong> Ação – alguns anos depois <strong>da</strong> Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial,<br />

portanto – WINFRIED HASSEMER, que a denomina de “fase <strong>da</strong> dogmática abstrata”, escreve<br />

o seguinte: “Os traços marcantes desta etapa, nomea<strong>da</strong>mente a concentração em<br />

fun<strong>da</strong>mentos práticos <strong>da</strong> disciplina e a inclinação para a solidificação hermética dos<br />

enunciados científicos, constituíram-se num veneno para qualquer relevância políticocriminal<br />

desse tipo de ciência penal: Política criminal exige não tanto concentração nos<br />

fun<strong>da</strong>mentos teóricos, mas muito mais a sensibili<strong>da</strong>de para uma “ciência penal total”, aí<br />

510<br />

BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 70-71.<br />

511<br />

Cf. CERNICHIARO, Luiz Vicente e COSTA JÚNIOR, Paulo José. Direito…, p. 13.<br />

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compreendidos os <strong>da</strong>dos empíricos <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de sancionatória ou do desenvolvimento e<br />

controle sobre as condutas desviantes, aí compreendido também o interesse por<br />

mo<strong>da</strong>li<strong>da</strong>des novas ou alternativas de sanção, pela ação conjunta do Direito e processo<br />

penal, pela integração de Direito Penal, Direito trabalhista e previdenciário, política<br />

habitacional, políticas <strong>da</strong> juventude e <strong>da</strong> saúde pública. Para isto a Dogmática<br />

academicista encontrava-se pessimamente equipa<strong>da</strong>”. 512<br />

É indispensável que as teorias penais ganhem o judiciário como terreno à discussão.<br />

Mas é preciso também que o processo penal enseje essa discussão. E, nesse particular,<br />

a honesti<strong>da</strong>de científica se impõe: a escritura tem se revelado insuficiente para possibilitar<br />

uma evolução do Direito Penal em termos aceitáveis.<br />

A fim de, uma vez mais, legitimar politicamente tanto o estudo quanto a experiência <strong>da</strong><br />

ativi<strong>da</strong>de crítica na audiência processual penal, com a imediati<strong>da</strong>de e franqueza que<br />

forem de obtenção possível, vale retomar o conceito de castração, aplicado à linguagem,<br />

conforme a precisa colocação de LUIS ALBERTO WARAT: “Ela é, muito mais que corte, (o<br />

seu lado passivo), um direcionamento permanente em to<strong>da</strong>s as formas do cotidiano. Ela<br />

ocupa plenamente todos os lugares através do empanzinamento <strong>da</strong> linguagem. Daí poder<br />

ser capta<strong>da</strong> como a esteriotipação dos desejos. (...) Somos sujeitos castrados quando<br />

não sentimos a necessi<strong>da</strong>de de um confronto com o instituído, quando não vemos a<br />

importância de expor os poderes estabelecidos frente aos conflitos que os desestabilizam,<br />

quando não podemos fazer (porque não percebemos a necessi<strong>da</strong>de) uma prática<br />

descentraliza<strong>da</strong> e desierarquiza<strong>da</strong> do político e, sobretudo, na medi<strong>da</strong> em que não<br />

sabemos transformar o político e o saber em um espaço simbólico sem proprietários”. 513<br />

Eis aí a tarefa política mais importante do estudo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong> audiência<br />

processual penal: superar a castração simbólica opera<strong>da</strong> pela univoci<strong>da</strong>de <strong>da</strong> linguagem<br />

do Direito Penal e, em grande medi<strong>da</strong>, causa<strong>da</strong> pela experiência com o princípio <strong>da</strong><br />

escritura no processo penal condenatório no Brasil.<br />

Em texto já clássico, NELSON HUNGRIA abor<strong>da</strong> esse tema, intuindo o mesmo<br />

empanzinamento <strong>da</strong> linguagem de que trata LUIS ALBERTO WARAT. Não há dúvi<strong>da</strong> de que<br />

a sofisticação vazia de conteúdo <strong>da</strong> linguagem do Direito Penal, contra a qual faz<br />

candente libelo, muito tem de relação com a predominância <strong>da</strong> escritura no processo<br />

penal condenatório brasileiro. Nesse passo, suas observações são exemplares: “Quando<br />

512<br />

HASSEMER, Winfried. “História <strong>da</strong>s idéias penais na Alemanha do pós-guerra”, em RInfoLeg, n. 118<br />

(abr-jun/1993), p. 251-252.<br />

513<br />

WARAT, Luis Alberto. A ciência…, p. 17.<br />

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Currículo<br />

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hoje se abrem livros de doutrina penal, que parecem representar tramas aracnídeas para<br />

a complicação de idéias como um fim em si mesma, já não mais se reconhece aquele<br />

direito aquecido do calor <strong>da</strong> alma humana e que era o direito penal na época do<br />

iluminismo e no edificante século XIX. O direito penal hodierno alheou-se à essência e à<br />

lição cotidiana dos fatos humanos e sociais, desligou-se de suas próprias fontes de seiva,<br />

e tende-se a privar-se radicalmente do seu élan emocional, <strong>da</strong> sua profun<strong>da</strong> sensibili<strong>da</strong>de<br />

ética, para abastar<strong>da</strong>r-se na interminável tessitura de deduções silogísticas, de distinções<br />

e subdistinções de uma dogmática que constrói no terreno <strong>da</strong>s abstrações, a milhas de<br />

distância do espetáculo e <strong>da</strong> efervescência do mundo. (...) Ciência penal não é só a<br />

interpretação hierárquica <strong>da</strong> lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação do seu<br />

“espírito” e a compreensão do seu “escopo”, para ajustá-la aos fatos humanos, a almas<br />

humanas, a episódios do espetáculo dramático <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>”. 514<br />

Recriar esse “espetáculo dramático”, através <strong>da</strong> reconstituição dinâmica e não<br />

segmentaliza<strong>da</strong> <strong>da</strong> ocorrência criminosa, é o que a audiência processual penal pretende.<br />

E, através <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica acerca desse fato, tão oral e viva quanto sua ocorrência,<br />

reaproxima-se a linguagem jurídica do instrumento de análise, que é o Direito Penal, <strong>da</strong><br />

riqueza dramática a que faz menção NELSON HUNGRIA e que se constitui no seu cerne.<br />

514<br />

HUNGRIA, Nelson. “Os pandectistas do Direito Penal”, em HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Heleno.<br />

Comentários…, p. 357-358 e 368.<br />

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Capítulo 4<br />

A ativi<strong>da</strong>de decisória na audiência processual penal<br />

Seção A<br />

Conceitos<br />

Seguindo a sistemática até aqui adota<strong>da</strong>, impõe-se a tarefa de estabelecer alguns<br />

conceitos básicos. O primeiro deles se refere à sentença penal.<br />

Diversos são as definições com que se pode operar. Por exemplo, segundo EUGENIO<br />

FLORIAN, “em substância, a sentença é a definição <strong>da</strong> relação jurídica processual (total ou<br />

parcialmente) ou <strong>da</strong> relação jurídica objeto principal do processo (e <strong>da</strong>s acessórias) ou<br />

<strong>da</strong>s duas conjuntamente”. 515<br />

Já GIAN DOMENICO PISAPIA apresenta uma definição, por assim dizer, “engaja<strong>da</strong><br />

ideologicamente” e que corresponde à visão tradicional do ato decisório no âmbito do<br />

processo penal: “A sentença é o ato fun<strong>da</strong>mental no qual a jurisdição se exprime em to<strong>da</strong><br />

a sua plenitude, porquanto com ela o juiz interpreta e realiza a vontade <strong>da</strong> lei, com um ato<br />

destinado a adquirir o valor de ‘coisa julga<strong>da</strong>’ e, portanto, de ver<strong>da</strong>de judicial vinculante<br />

para todos”. 516<br />

No mesmo sentido posiciona-se JOSÉ FREDERICO MARQUES, que a define como sendo<br />

o “instante jurisdicional básico <strong>da</strong> fase de cognição do processo penal condenatório, (...) o<br />

ato de composição do litígio ou causa penal, em que o preceito normativo, imposto pela<br />

ordem jurídica, se transforma em preceito concreto e específico”. 517<br />

NILO BAIRROS DE BRUM, analisando conceitos como os de GIAN DOMENICO PISAPIA,<br />

JOSÉ FREDERICO MARQUES e E. MAGALHÃES NORONHA, 518 que transcreve, faz-lhes a<br />

seguinte crítica: “embora tenham pretensões de objetivi<strong>da</strong>de, seus autores escamoteiam<br />

sentidos retóricos nessas definições. Uma leitura ideológica dessas definições denuncia<br />

que por trás <strong>da</strong>s definições (...) escondem-se tendências formalistas que rejeitam a<br />

pessoa do juiz como órgão criador de direito para sugeri-la como mero canal entre o<br />

515<br />

FLORIAN, Eugenio. Elementos…, p. 400-401. Trecho original: “en substancia, la sentencia es la<br />

definición de la relación jurídica procesal (total o parcialmente) o de la relación jurídica objeto principal del<br />

proceso (y de las accesorias), o de las dos conjuntamente”.<br />

516<br />

PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 406. Trecho original: “La sentenza è l’atto fon<strong>da</strong>mentale<br />

in cui la giurisdizione si esprime in tutta la sua pienezza, in quanto con essa il giudice interpreta e realizza la<br />

volontà della legge, con un atto destinato ad acquistare il valore di “cosa giudicata” e cioè di verità giudiziale<br />

vinculante per tutti”.<br />

517<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 19.<br />

518 NORONHA, Magalhães. Curso…, p. 203: “Sentença é a declaração judicial do direito no caso<br />

concreto”.<br />

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Currículo<br />

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ordenamento jurídico positivo e o fato sub judicie. Tal postura serve à conservação do<br />

modelo social cristalizado no direito positivo legislado”. 519<br />

Assim, acolhendo a crítica, dois passam a ser os critérios de conceituação <strong>da</strong><br />

sentença que serão válidos ao estudo <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória na audiência processual<br />

penal.<br />

O primeiro deles diz com a operação mental subjacente à prolatação <strong>da</strong> sentença.<br />

Nesse caso, há que se buscar uma definição de sentença que prestigie o elemento<br />

volitivo do juiz, em detrimento, embora não o anule, do seu elemento puramente<br />

intelectivo.<br />

No mesmo sentido segue a análise de PIERO CALAMANDREI, que define a justiça ou,<br />

mais propriamente, a sentença justa como a “criação que (e)mana <strong>da</strong> consciência viva,<br />

sensível, vigilante, humana. É precisamente esse calor vital, esse sentimento de contínua<br />

conquista, de vigilante responsabili<strong>da</strong>de que o juiz tem o mister de apreciar e de<br />

desenvolver”. 520<br />

O outro critério prestigia, por sua vez, o aspecto dinâmico <strong>da</strong> sentença penal,<br />

favorecendo a idéia de ativi<strong>da</strong>de decisória. É o caso <strong>da</strong> definição de FRANCESCO<br />

CARNELUTTI que, partindo do conceito de “deliberação” – vendo-a diferentemente,<br />

conforme seja singular ou colegia<strong>da</strong> – chega ao de sentença: “A deliberação, seja ela<br />

singular ou colegia<strong>da</strong>, resulta <strong>da</strong> solução, afirmativa ou negativa, <strong>da</strong>s diversas questões,<br />

de ordem ou de mérito, de fato ou de direito, em que se decompõe a questão penal, e<br />

assim conduz a uma declaração de certeza, de ordem ou de mérito”. 521<br />

Também para CARLOS J. RUBIANES, “no momento <strong>da</strong> decisão, o órgão jurisdicional dita<br />

sentença definitiva sobre a existência ou inexistência de um delito e a responsabili<strong>da</strong>de do<br />

imputado. O juiz declara positiva ou negativamente a certeza do delito, e condena ou<br />

absolve o imputado”. 522<br />

519<br />

BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 7.<br />

520<br />

CALAMANDREI, Piero. “Giustizia e politica: sentenza e sentimento”, em Proceso e democrazia,<br />

Pádua: 1954, p. 43-66 apud CAPPELLETTI, Mauro. “Ideologia en el derecho procesal”, em Proceso…, nota<br />

1, p. 4. Trecho original: “creazión que (e)mana <strong>da</strong> una conciencia viva, sensible, vigilante, humana. Es<br />

precisamente este calor vital, este sentimento de continua conquista, de vigilante responsabili<strong>da</strong>d que el<br />

juez ha menester de apreciar e y desarrolar”.<br />

521<br />

CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 4, p. 72. Trecho original: “La deliberación, ya sea singular<br />

o colegia<strong>da</strong>, resulta de la solución, afirmativa o negativa, de las diversas questiones, de orden o de mérito,<br />

de hecho ou de derecho, en que se descompone la questión penal, y así conduce a una declaración de<br />

certeza, de orden o de mérito”.<br />

522<br />

Cf., também, o conceito de RUBIANES, Carlos J. Manual…, p. 166. Trecho original: “en el momento<br />

de la decisión, el órgano jurisdiccional dicta sentencia definitiva, sobre la existencia o inexistencia de un<br />

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Currículo<br />

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O aspecto dinâmico do conceito de FRANCESCO CARNELUTTI verifica-se pela diferença<br />

do tratamento que concede às decisões singulares ou colegia<strong>da</strong>s. 523 <strong>Parte</strong> ele do<br />

momento em que, terminando as fases propriamente instrutória e crítica dos processos,<br />

os órgãos jurisdicionais singulares ou colegiados se põe a decidir: “Pois bem, se este é o<br />

momento em que o juiz se separa <strong>da</strong>s duas partes instrumentais, é também aquele em<br />

que, quando é colegiado, se reúne ou, melhor dito, se unifica o colégio: assim como,<br />

enquanto se trata <strong>da</strong> recolher ou de valorar as provas, operam ao lado do juiz o acusador<br />

ou o defensor, assim enquanto participem dele mais de um juiz, ca<strong>da</strong> um opera por sua<br />

conta; porém quando, ao contrário, se passa à reunião, e <strong>da</strong> valoração à decisão, convém<br />

que, em um certo modo, a plurali<strong>da</strong>de dos juízes se unifique, convertendo-se em uma<br />

totali<strong>da</strong>de. Compreende-se, portanto, que o estudo <strong>da</strong> decisão deve desenvolver-se,<br />

antes de tudo, sobre duas hipóteses, a <strong>da</strong> decisão singular e a <strong>da</strong> decisão colegia<strong>da</strong>”. 524<br />

Contudo, vistas as coisas sob o aspecto psicológico, percebe-se que, a rigor, não são<br />

tantas nem tão radicais as diferenças se a decisão emanar de órgão jurisdicional simples<br />

ou colegiado. Nas duas situações é possível que se verifiquem tanto o embate de<br />

posições antagônicas, como a remansosa concordância a respeito <strong>da</strong> situação de fato e<br />

<strong>da</strong>s regras jurídicas a aplicar. O próprio juiz terá que, vez por outra, lutar contra valores<br />

incompossíveis, <strong>da</strong> mesma maneira que ocorre em órgãos colegiados, até chegar a uma<br />

decisão, necessária para que a prestação jurisdicional ocorra. No caso de um órgão<br />

colegiado, ao contrário, podem ocorrer decisões absolutamente unânimes, por inércia ou<br />

por seus próprios méritos, sem que qualquer debate se verifique.<br />

Quanto à ativi<strong>da</strong>de decisória, define-se-a como o procedimento decisório do juiz, no<br />

sentido de chegar seja a uma solução, seja a uma composição, do caso se constituíra no<br />

conteúdo do processo penal condenatório, processo esse iniciado pela demonstração<br />

cabal de que conhece o caso, bem como as provas e os argumentos que se levantaram<br />

em torno dele (demonstração que atende no relatório) que passa pela exposição de<br />

delito y la responsabili<strong>da</strong>d del imputado. El juez declara positiva o negativamente la certeza del delito, y<br />

condena o absuelve al imputado”.<br />

523<br />

Cf. D’ALIMONTE, Roberto. “Teoria <strong>da</strong>s decisões coletivas”, em A.A.V.V. Dicionário …, p. 309-312.<br />

524<br />

Cf. CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 4, p. 55-71. Trecho original: “Ahora bien, si éste es el<br />

momento en que el juez se separa de las dos partes instrumentales, es también aquel en que, cuando es<br />

colegiado, se reúne o, mejor dicho, se unifica el colegio: así como mientras se trata de recoger o de valorar<br />

las pruebas, operan al lado del juez el acusador o el defensor, así en cuanto participen de ello más de un<br />

juez, ca<strong>da</strong> uno opera por su cuenta; pero cuando, por el contrario, se pasa a la reunión, y de la valoración a<br />

la decisión, conviene que, en un cierto modo, la plurali<strong>da</strong>d de los jueces se unifique convirtiéndose en una<br />

totali<strong>da</strong>d. Se compreender por tanto que el estúdio de la decisión deve desarrollarse ante todo sobre dos<br />

hipótesis, la de la decisión singular y la de la decisión colegia<strong>da</strong>”.<br />

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Currículo<br />

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argumentos jurídicos que fun<strong>da</strong>mentem a decisão (motivação) e que termina com a<br />

disposição propriamente dita.<br />

A sentença na<strong>da</strong> mais é que o produto final, acabado – em linguagem figura<strong>da</strong>:<br />

“consumível” por terceiros – de uma ver<strong>da</strong>deira ativi<strong>da</strong>de decisória. Não existe sem<br />

aquela.<br />

Preferiu-se um conceito analítico de ativi<strong>da</strong>de decisória, pois procura-se, com ele,<br />

problematizar, colocando em evidência alguns de seus aspectos até então inexplorados<br />

pela doutrina processual penal.<br />

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Seção B<br />

Caracteres<br />

§ 1º A ativi<strong>da</strong>de decisória e os “sistemas”<br />

a) sistema inquisitório<br />

A preferência maior do sistema inquisitório é, com efeito, pela forma escrita. Não há,<br />

conforme HÉLIO TORNAGHI 525 deixa claro, incompatibili<strong>da</strong>de ontológica do processo<br />

inquisitório com as formasorais, ou do acusatório com as escritas, mas a ver<strong>da</strong>de é que<br />

aquele se compatibiliza mais perfeitamente com estas.<br />

Aliás, conforme observa com precisão FRANCO CORDERO, “no processo reduzido a<br />

uma son<strong>da</strong>gem introspectiva, as formas constituem um <strong>da</strong>do secundário ou<br />

absolutamente irrelevante; conta o êxito, obtido seja como for”. 526<br />

É no sistema acusatório que as formas do contraditório gozam, por assim dizer, de um<br />

respeito quase litúrgico.<br />

Contudo, está claro que a preferência do sistema inquisitório sempre foi pelas formas<br />

escritas, seja na ativi<strong>da</strong>de instrutória, seja na crítica, seja na decisória. Cabe descobrir as<br />

razões dessa preferência.<br />

Uma razão é o segredo em que se desenvolve o processo inquisitório. Não o favorece<br />

uma sentença prolata<strong>da</strong> em audiência. No processo de cunho inquisitório, em que hajam<br />

partes e publici<strong>da</strong>de, essa razão se atenua, posto que não desapareça.<br />

Outra razão que deve ser arrola<strong>da</strong> é a <strong>da</strong> mais intensa subjetivi<strong>da</strong>de imposta pelo<br />

sistema inquisitório ao juiz, no momento de decidir. Os “labirintos introspectivos”, a que<br />

vivamente faz menção FRANCO CORDERO, 527 impõem um “mergulho mais fundo”, por parte<br />

do juiz, em aspectos subjetivos do crime e de seu autor. Nesse caso, porque autoriza uma<br />

dedicação mais intensa e permite uma atenção maior aos detalhes, a forma escrita é<br />

usualmente preferi<strong>da</strong> no sistema inquisitório ou no sistema misto, como o brasileiro. 528<br />

525<br />

TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 3, p. 468-469.<br />

526<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 290. Trecho original: “nel processo ridotto a scan<strong>da</strong>glio<br />

introspettivo le forme costituiscono un <strong>da</strong>to secon<strong>da</strong>rio o addirittura irrilevante; conta l’esito, comunque<br />

ottenuto”.<br />

527<br />

CORDERO, Franco. Procedura…, p. 610.<br />

528<br />

No foro, essa preferência é usual, sobretudo nos casos considerados “muito complexos”. Irreal ou<br />

não a complexi<strong>da</strong>de dos casos penais, a ver<strong>da</strong>de é que freqüentemente os juízes evitam prolatar a<br />

sentença na audiência.<br />

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b) sistema acusatório<br />

O sistema acusatório, ao contrário do que ocorre com o inquisitivo, prefere<br />

desenvolver oralmente a ativi<strong>da</strong>de decisória.<br />

Como no caso anterior, aqui a questão é de preferência e não de exclusivi<strong>da</strong>de.<br />

Impende descobrir as razões dessa preferência.<br />

A razão que talvez mais avulte é a de que, desenvolvendo-se o procedimento<br />

acusatório em função <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de probatória e principalmente crítica <strong>da</strong>s partes técnicas<br />

– basta conferir o relevo que os debates orais têm no procedimento especial do júri – a<br />

conclusão rápi<strong>da</strong> do processo é algo exigido pelas suas características: ao esforço <strong>da</strong>s<br />

partes técnicas em instruir o julgador e em analisar oralmente os elementos de convicção<br />

e provas produzi<strong>da</strong>s deverá, quase que naturalmente, corresponder o esforço do juiz em<br />

pronunciar oralmente sua decisão. Sendo assim, a tendência natural do processo<br />

acusatório, é a <strong>da</strong> prolatação pública e oral <strong>da</strong> sentença.<br />

§ 2º Princípios e regras<br />

a) concentração<br />

Obviamente, a concentração <strong>da</strong> audiência processual penal é o primeiro dos<br />

princípios atendidos pelo desenvolvimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória na própria audiência<br />

processual penal.<br />

O conceito mesmo do princípio <strong>da</strong> concentração envolve a reunião do maior número<br />

possível de atos processuais num só momento, reunião essa que é coroa<strong>da</strong> com a<br />

prolatação <strong>da</strong> sentença definitiva. Em síntese, o princípio <strong>da</strong> concentração determina que<br />

a audiência processual penal será de instrução e julgamento e quando isso não se puder<br />

realizar, os atos instrutórios serão praticados no menor número possível de audiências,<br />

separa<strong>da</strong>s por pequeno espaço de tempo.<br />

É a lição de JORGE FIGUEIREDO DIAS: “Tomado em sua mais ampla acepção, (...) o<br />

princípio <strong>da</strong> concentração do processo penal exige uma prossecução tanto quanto<br />

possível unitária e continua<strong>da</strong> de todos os termos e atos processuais, devendo o<br />

complexo destes, em to<strong>da</strong>s as fases do processo, desenvolver-se na medi<strong>da</strong> do possível<br />

concentra<strong>da</strong>mente, seja no espaço, seja no tempo. Tomado neste contexto amplo, o<br />

princípio enforma, com efeito, todo o decurso ou prossecução do processo penal e é, em<br />

geral, fun<strong>da</strong>do pela necessi<strong>da</strong>de de que se não suscitem obstáculos ou impedimentos ao<br />

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Currículo<br />

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exercício do processo”. 529<br />

Daí porque se compreende que a concentração é o primeiro dos princípios<br />

processuais penais atendido pela ativi<strong>da</strong>de decisória desenvolvi<strong>da</strong> na audiência.<br />

b) publici<strong>da</strong>de e orali<strong>da</strong>de<br />

Os princípios <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de, verificando-se a ativi<strong>da</strong>de decisória na<br />

audiência processual penal, são conjuntamente prestigiados, posto que por razões<br />

levemente diversas. Trate-se primeiro do princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de.<br />

O prestigiamento desse princípio não ocorre somente porque, ao ser pronuncia<strong>da</strong> em<br />

audiência, a sentença penal torna-se pública. Essa seria uma razão muito simples e<br />

justamente seria considera<strong>da</strong> pueril. Está claro que, sendo a sentença escrita publica<strong>da</strong><br />

nas mãos do escrivão, também ela adquire publici<strong>da</strong>de.<br />

Também não há aqui uma diferença de grau, de maior ou menor publici<strong>da</strong>de <strong>da</strong><br />

sentença proferi<strong>da</strong> em audiência ou fora dela. Ambas adquirem, em tese, a mesma<br />

publici<strong>da</strong>de.<br />

O princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de é mais eficazmente atendido pela ativi<strong>da</strong>de decisória<br />

desenvolvi<strong>da</strong> em audiência processual penal porque, nesse caso, não é somente a<br />

sentença acaba<strong>da</strong> que é leva<strong>da</strong> imediatamente à consideração <strong>da</strong>s partes técnicas, mas<br />

também o seu processo de formação. Eis aí o relevo maior <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória<br />

desenvolvi<strong>da</strong> em audiência.<br />

Há publici<strong>da</strong>de completa, por assim dizer, que se refere não somente à sentença<br />

acaba<strong>da</strong> – produto “consumível” – mas que também abarca todo o seu processo de<br />

formação.<br />

Também não seria demasiado afirmar que o aspecto intrínseco <strong>da</strong> sentença<br />

oralmente proferi<strong>da</strong> em audiência é também influenciado pela sua completa publici<strong>da</strong>de.<br />

Analisando o quadro sob o prisma psicológico, não parece caberem dúvi<strong>da</strong>s de que,<br />

sendo compelido a proferir publicamente sua sentença, o juiz criminal age diferentemente<br />

do que o faria ao prolatar sua sentença por escrito, no recôndito de seu lar ou de seu<br />

gabinete de trabalho.<br />

Isso não quer significar, absolutamente, que o juiz proferiria duas sentenças diversas,<br />

conforme estivesse só ou acompanhado no momento de sentenciar. Essa afirmação,<br />

sendo impossível de ser comprova<strong>da</strong> teoricamente, não apresenta cientifici<strong>da</strong>de.<br />

529 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 183.<br />

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Currículo<br />

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O que é perfeitamente possível afirmar é que, sendo exposto enquanto elabora sua<br />

decisão, o juiz posta-se diferentemente diante <strong>da</strong>s partes e, assim, o produto de seu labor<br />

há de apresentar diferentes características.<br />

Assim, apenas para exemplificar, é possível afirmar que, proferindo sua sentença<br />

publicamente, diante <strong>da</strong>s partes técnicas e do acusado, para não citar as testemunhas<br />

(que nesse momento já haveriam de ter sido retira<strong>da</strong>s do recinto) seus auxiliares e<br />

eventuais espectadores, o juiz acabaria por prestigiar pontos do caso que interessassem<br />

ao público <strong>da</strong> audiência, mas que, exclusivamente para ele, juiz, parecessem<br />

desimportantes.<br />

Não significa que, por covardia, intrepidez ou frieza, a situação de estar sendo<br />

fiscalizado no processo de formação de sua sentença, levasse o juiz a decidir<br />

diferentemente. Significa apenas que, publicizando-se esse momento, o procedimento<br />

argumentativo do juiz teria relevantes diferenças em relação ao mesmo procedimento<br />

aplicado à sentença escrita.<br />

Já o princípio <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de coordena-se com o <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de no acrescentar algumas<br />

motivações novas às que normalmente animariam o juiz na prolatação <strong>da</strong> sentença por<br />

escrito.<br />

É importante complemento ao princípio <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de, na medi<strong>da</strong> em que a audiência<br />

processual penal pública poderia ser utiliza<strong>da</strong> para a mera publicação de uma sentença<br />

escrita adrede prepara<strong>da</strong>, como, aliás, ocorre no processo trabalhista, caso em que as<br />

vantagens <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de que<strong>da</strong>riam anula<strong>da</strong>s.<br />

A sentença penal prolata<strong>da</strong> oralmente, se de um lado expõe a figura do juiz à análise<br />

imediata <strong>da</strong>s partes técnicas presentes na audiência, de outro fortalece a ativi<strong>da</strong>de<br />

jurisdicional, na medi<strong>da</strong> em que salvaguar<strong>da</strong>-a de protelações, hoje vistas de maneira<br />

assaz negativa pela opinião pública.<br />

c) contraditório<br />

Na ativi<strong>da</strong>de decisória desenvolvi<strong>da</strong> pública e oralmente, durante a tramitação de<br />

audiência processual penal, há mais um princípio processual amplamente atendido: o do<br />

contraditório.<br />

Essa característica é de enorme sutileza, na medi<strong>da</strong> em que não se encontra<br />

positiva<strong>da</strong> qualquer manifestação do contraditório na fase estritamente decisória do<br />

processo penal condenatório. Se a contraditorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s ativi<strong>da</strong>des instrutória e crítica<br />

<strong>da</strong>s partes técnicas <strong>da</strong> audiência processual penal é perfeitamente assimila<strong>da</strong>, a<br />

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contraditorie<strong>da</strong>de <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória parecerá estranha. Contudo, sendo desenvolvi<strong>da</strong><br />

pública e oralmente, ela também estimula o contraditório. A razão é simples e se vincula<br />

às já vistas.<br />

Perceba-se que, sendo proferi<strong>da</strong> por escrito a sentença, as partes técnicas não têm a<br />

oportuni<strong>da</strong>de de assistir, ao menos, o processo de formação <strong>da</strong> decisão. Têm contato<br />

com os argumentos do juiz prolator apenas depois que ele os deposita, efetivamente,<br />

junto com o dispositivo <strong>da</strong> sentença, nas mãos do escrivão. Esse contato verifica-se de<br />

uma vez, desde logo com o produto final do labor intelectual do juiz.<br />

Justifica-se plenamente, nesse passo, o pessimismo manifestado por NILO BAIRROS DE<br />

BRUM: “Em um sistema processual baseado no livre convencimento, não é fácil (diríamos<br />

que é absolutamente impossível) reconstituir os reais motivos que levaram um juiz a<br />

decidir conforme decidiu. No que se refere à avaliação <strong>da</strong> prova, os códigos são<br />

lacônicos; a doutrina, extremamente plástica, e a jurisprudência, vacilante. Com tais<br />

instrumentos, os juízes podem manipular os fatos segundo seu temperamento, sua<br />

formação pessoal, sua ideologia, enfim, o que não implica que isso seja feito de forma<br />

consciente ou premedita<strong>da</strong>. A única garantia que o sistema oferece é a imposição legal<br />

que obriga os juízes a fun<strong>da</strong>mentarem suas decisões, permitindo, assim, que os<br />

inconformados possam atacá-las, voltando contra elas os mesmos instrumentos<br />

oferecidos pelo sistema”. 530<br />

No caso <strong>da</strong> sentença proferi<strong>da</strong> oralmente, ain<strong>da</strong> que o juiz procure esconder os “reais<br />

motivos” de sua decisão, através do uso de argumentos retóricos, e ain<strong>da</strong> que consiga, ao<br />

menos o processo de criação <strong>da</strong> sentença é exposto às partes técnicas. Com isso, os<br />

argumentos jurídicos trazidos à baila pelo juiz são fiscalizados no momento mesmo de<br />

sua emissão e antes <strong>da</strong> publicação do dispositivo, pelas partes técnicas.<br />

Sendo assim, abre-se a possibili<strong>da</strong>de de contestação. Não é preciso dizer mais para<br />

revelar que, desenvolvendo-se ativi<strong>da</strong>de decisória no seio <strong>da</strong> audiência processual penal,<br />

e expondo-se os argumentos do juiz às partes técnicas, que também dominam a<br />

linguagem em que o juiz se comunica, nasce a possibili<strong>da</strong>de, senão jurídica, ao menos<br />

temporal, <strong>da</strong> contradita.<br />

A preocupação <strong>da</strong> presente argumentação não é especificamente com a lei<br />

processual penal vigente no Brasil. Com o afirmar que o princípio do contraditório é<br />

prestigiado pela ativi<strong>da</strong>de decisória desenvolvi<strong>da</strong> em audiência, não se quer dizer que há<br />

530 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 71.<br />

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Currículo<br />

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regra ou princípio jurídico que expressamente permita às partes técnicas transformar o<br />

labor argumentativo do juiz, no momento em que está a proferir uma decisão, em debate<br />

oral.<br />

Com efeito, o iniciar-se a ativi<strong>da</strong>de decisória (rectius: “fase decisória”) do processo<br />

penal condenatório, implica o término, no fechamento <strong>da</strong> fase processual imediatamente<br />

antecedente, a <strong>da</strong> crítica ou <strong>da</strong> discussão. Significa que, iniciado o momento decisório, o<br />

debate já se encerrou.<br />

Contudo, e para início de argumentação, esse fechamento ou preclusão, por assim<br />

dizer, não é senão formal, procedimental. Não poderia, <strong>da</strong><strong>da</strong> a relevância <strong>da</strong> matéria<br />

discuti<strong>da</strong> no processo penal condenatório, ser vista com caráter absoluto e incontrastável.<br />

Além disso, a ativi<strong>da</strong>de decisória desenvolve-se oral e publicamente e diante <strong>da</strong>s<br />

partes técnicas, que dominam o discurso jurídico do juiz profissional. Sendo assim, e<br />

porque se protrai no tempo, diante dessas partes técnicas, é possível dizer que elas estão<br />

“na hora e na vez” de, eventualmente, contestar os argumentos do juiz, mormente no que<br />

eles têm de faticamente correto ou faticamente incorreto. A regra positiva, aqui, é menor<br />

importância.<br />

Imagine-se a hipótese do juiz estar decidindo uma causa penal, prolatando, por<br />

exemplo, uma sentença condenatória. Em <strong>da</strong>do momento, enquanto expõe seus<br />

argumentos, afirma que o réu confessou a autoria do crime, sendo essa uma veemente<br />

prova de sua culpabili<strong>da</strong>de. Ao perceber o equívoco, o defensor o contesta, através de<br />

uma questão de ordem, afirmando que jamais houve confissão do crime.<br />

Coloca<strong>da</strong> uma situação desse jaez e mesmo que o juiz chegasse, por absurdo, ao<br />

ponto de procurar punir o defensor “impertinente”, mesmo assim remanesceria, para ele,<br />

a necessi<strong>da</strong>de psicológica de superar a contestação ao seu argumento. Nesse afã, vendo<br />

ser impossível a contestação – por perceber não ter ocorrido, de fato, a confissão –<br />

poderia ser levado, inclusive, a modificar seu entendimento anterior. Vendo o quadro sob<br />

o prisma psicológico, é possível que, dependendo do temperamento do juiz, a decisão<br />

não se modificasse, de qualquer maneira. Mas a probabili<strong>da</strong>de, menor embora, de<br />

modificação, convi<strong>da</strong>ria a parte técnica a opor o argumento.<br />

Nesses casos, bem como em outros, que se poderia imaginar, ad infinitum, percebese<br />

como e em que grau o criador <strong>da</strong> sentença é submetido explicitamente à fiscalização<br />

<strong>da</strong>s partes técnicas. Não resta dúvi<strong>da</strong> de que o contraditório, na espécie, é firmemente<br />

ativado.<br />

Se a hipótese, referi<strong>da</strong> a processo penal desenvolvido perante juiz singular, parece<br />

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por demais imaginativa, basta conferir o que ocorre nos julgamentos colegiados dos<br />

tribunais. Nesses casos, as intervenções <strong>da</strong>s partes técnicas ocorrem com muito mais<br />

freqüência e, por essa razão, entre outras, são mais comumente recebi<strong>da</strong>s pelos juízes<br />

como ver<strong>da</strong>deira colaboração a uma mais perfeita prestação jurisdicional.<br />

d) a questão <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de física do juiz<br />

Outro aspecto importante <strong>da</strong> audiência de instrução e julgamento do procedimento<br />

sumário em sentido estrito é a quaestio iuris acerca <strong>da</strong> existência ou não, no nosso<br />

processo penal condenatório, do princípio <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de física do juiz.<br />

A esse respeito, escreve JOSÉ FREDERICO MARQUES: “Findos os debates, na audiência,<br />

fica vinculado para proferir a sentença, o juiz que presidiu a esta? A esse respeito,<br />

vacilante se apresentava a jurisprudência de nossos tribunais (...). E, de nossa parte, já<br />

sustentamos o entendimento de que tal vinculação não se forma, uma vez que impera,<br />

em nosso procedimento penal, o princípio <strong>da</strong> escritura e não o <strong>da</strong> orali<strong>da</strong>de (...). O<br />

Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>, no entanto, em acórdão relatado pelo Ministro EVANDRO LINS E<br />

SILVA, firmou o princípio <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de física do juiz, para os casos do procedimento<br />

sumário, sob o fun<strong>da</strong>mento de que se assim não fosse, haveria substancial prejuízo ao<br />

direito de defesa. Reexaminando o problema, também acabamos por adotar a diretriz do<br />

Excelso Pretório. Realmente, as partes (defesa e acusação) poderiam ficar sumamente<br />

prejudica<strong>da</strong>s, se o juiz <strong>da</strong> sentença fosse outro diverso <strong>da</strong>quele que presidiu a audiência.<br />

Nesta, houve, apenas debates orais, sem que as partes tenham outro meio de comunicar<br />

ao julgador os argumentos que entendem dever apresentar em prol de seus respectivos<br />

interesses. Proferi<strong>da</strong> a sentença, por um outro juiz, diferente do que presidiu a audiência,<br />

as alegações que as partes expenderam oralmente em na<strong>da</strong> irão pesar, uma vez que o<br />

julgador as desconhece e ignora, <strong>da</strong>do que não as ouviu serem proferi<strong>da</strong>s. Ante os<br />

termos com que o art. 538, §§ 2º e 3º, do Cód. de Proc. Penal, estruturou a audiência de<br />

julgamento e estabeleceu a forma de ser <strong>da</strong> sentença, não temos dúvi<strong>da</strong> em rever a<br />

posição que antes sustentávamos para seguir, agora a opinião dos que afirmam existir<br />

vinculação para o juiz que presidiu à audiência, no sentido de fazê-lo o único juiz<br />

competente para proferir a sentença”. 531<br />

531 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 119-120.<br />

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Essa opinião foi sustenta<strong>da</strong> inicialmente por E. MAGALHÃES NORONHA 532 e adota<strong>da</strong>,<br />

mas sempre de maneira vacilante, pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> <strong>Federal</strong>. JULIO FABBRINI<br />

MIRABETE manifesta opinião contrária a ela. 533<br />

Com efeito, esse princípio não foi adotado entre nós. O argumento de que o juiz que<br />

receber os autos e não tiver ouvido os debates não saberá o que neles se discutiu não<br />

resiste a uma análise breve. Quaisquer registros dos debates <strong>da</strong> audiência, ain<strong>da</strong> que não<br />

previstos pela lei processual penal, cientificarão facilmente o juiz do que foi alegado pelas<br />

partes.<br />

Além disso, o princípio <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de física do juiz, no processo civil, decorre de<br />

norma expressa (CPC, art. 132). Não existindo norma expressa que o consagre para o<br />

processo penal, seria demasia dizê-lo existente.<br />

§ 3º Ritualismo<br />

a) no inquérito policial<br />

Parecerá estranho, numa primeira avaliação, falar-se em ativi<strong>da</strong>de decisória no<br />

inquérito policial, tipicamente um procedimento de caráter informativo e não decisório.<br />

Contudo, sua estruturação como procedimento, com um presidente e objetivos a<br />

alcançar, fazem com que, indevi<strong>da</strong> e até inconscientemente, haja um arremedo de<br />

ativi<strong>da</strong>de decisória no inquérito policial. Não em qualquer audiência realiza<strong>da</strong> no<br />

procedimento investigatório, mas em todo e principalmente ao final de seu iter.<br />

Trata-se de uma ver<strong>da</strong>deira necessi<strong>da</strong>de psicológica do presidente do inquérito<br />

policial concluí-lo de maneira a decidir acerca do conteúdo <strong>da</strong> matéria investiga<strong>da</strong>.<br />

É o que ocorre, por exemplo, com a questão do indiciamento.<br />

No processo penal brasileiro não existe a figura do indiciamento formal. Não há um<br />

ato processual que modifique o status quo do imputado, transformando-o em indiciado,<br />

fenômeno que ocorre ao ser recebi<strong>da</strong> a denúncia. O art. 6º, inciso V, do CPP, inclusive,<br />

deixa claro que o indiciado preexiste à própria instauração do inquérito policial.<br />

532<br />

NORONHA, Edgard Magalhães. Curso…, p. 307: “Em segui<strong>da</strong> aos debates, proferirá o Juiz a<br />

sentença, ditando-a ao escrivão. Pode ser que não se julgue habilitado a prolatá-la no momento e, então,<br />

determinará que os autos lhe sejam conclusos imediatamente e a <strong>da</strong>rá no prazo de cinco dias, consoante o<br />

§ 3º do art. 538. Nesta hipótese, o Juiz prolator há de ser o mesmo que presidiu à audiência, sob pena de<br />

nuli<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sentença, pois os debates são orais e, conseqüentemente, se outro for o Juiz, não os ouviu<br />

nem sabe qual a defesa. Nesse sentido se têm pronunciado os Tribunais do País (Darci A. Miran<strong>da</strong>,<br />

Repertório de Jurisprudência do Código de Processo Penal. vol. VIII, ns. 7056 e 7056-A). Deve,<br />

conseqüentemente, o novo juiz realizar outra audiência, em que haja novos debates”.<br />

533<br />

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 550.<br />

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Mesmo assim, tanto há uma tendência <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de policial no sentido de exercer<br />

ativi<strong>da</strong>de decisória mesmo no inquérito policial, que criou-se, na jurisprudência, a idéia de<br />

que existe um ato de indiciamento formal. Esse ato é o objeto de decisão <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de<br />

policial. Através dele a autori<strong>da</strong>de policial – até por necessi<strong>da</strong>de psicológica, diga-se – dá<br />

sua contribuição construtiva ao que entende ser o caminho para o restabelecimento <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de real.<br />

Reforça-se uma indevi<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória, que tem como conteúdo esse “ato de<br />

indiciamento” – defendi<strong>da</strong>, inclusive, por SÉRGIO M. MORAES PITOMBO 534 – a sistemática<br />

violação do parágrafo único do art. 20 do CPP. Através <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de não-autoriza<strong>da</strong><br />

sobre os antecedentes criminais do indiciado, esse arremedo de ativi<strong>da</strong>de decisória, no<br />

inquérito policial, torna-se alguma coisa de relevante.<br />

b) nos procedimentos comuns<br />

A ativi<strong>da</strong>de decisória no procedimento ordinário pleno, conforme dispõe o art. 502,<br />

caput, do CPP, é escrita, até porque não está prevista uma audiência de julgamento<br />

nesse procedimento.<br />

De relevo, nesse caso, é a experiência do foro, <strong>da</strong>do que em alguns casos juízes –<br />

infelizmente não a maioria deles – têm ensejado a realização de audiência de instrução e<br />

julgamento, ao estimularem as partes técnicas a, após desistirem de qualquer<br />

requerimento de diligências, previsto no art. 499 do CPP, exercerem oralmente ativi<strong>da</strong>de<br />

crítica, a fim de propiciar o exercício, também oralmente, de ativi<strong>da</strong>de decisória.<br />

Tendo em vista que o objetivo, aqui, é de tornar mais pronta a prestação jurisdicional,<br />

não há sequer que se cogitar de qualquer nuli<strong>da</strong>de nessa subversão do procedimento<br />

ordinário pleno, escrito por natureza. Sublinhe-se apenas que essa modificação não pode<br />

ser imposta às partes técnicas. Como não se trata de matéria legalmente disciplina<strong>da</strong>, só<br />

pode ser implementa<strong>da</strong> através de ver<strong>da</strong>deiro negócio jurídico processual.<br />

Quanto à ativi<strong>da</strong>de decisória no procedimento sumário em sentido estrito, a lei<br />

processual determina que seja exerci<strong>da</strong> oralmente, na própria audiência de instrução<br />

(parcial) e julgamento, ou pouco depois, por escrito, “se o juiz não se julgar habilitado a<br />

proferir decisão” (CPP, § 3º do art. 538).<br />

Caso não se enten<strong>da</strong> em condições de proferir logo a sentença, o juiz o fará por<br />

534 PITOMBO, Sérgio M. Moraes. Inquérito…, p. 37: “(...) no inquérito policial, o indiciamento há de<br />

ostentar-se como ato do procedimento, que resulta do encontro de um ‘feixe de indícios convergentes’, que<br />

apontam o suposto autor <strong>da</strong> infração penal (...). Dimana, pois do foco incriminador”.<br />

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escrito, não sendo necessário continuar a audiência apenas para publicar a sentença.<br />

Vale aqui o magistério de ARRUDA ALVIM, concebido para o processo civil, mas<br />

inteiramente válido para o procedimento sumário em sentido estrito do CPP: “A sentença<br />

deve, regra geral, ser proferi<strong>da</strong> em audiência (art. 456). Segundo o sistema do Código de<br />

Processo Civil a audiência deve ser aquela em que se tenham tentado inicialmente a<br />

conciliação, quando for o caso, produzido as provas orais e debatido a causa, <strong>da</strong>do que a<br />

audiência deve ser contínua, evitando-se adiamentos (art. 455). Se, to<strong>da</strong>via, o adiamento<br />

for inevitável, nem por isto se deverá deixar de prolatar, regra geral, a sentença em<br />

audiência. Se a sentença não for proferi<strong>da</strong> na própria audiência em continuação (art. 455),<br />

porque o juiz não se sinta em condições de prolatá-la, a lei atribui-lhe o prazo de dez dias<br />

para proferi-la (art. 456), que evidentemente poderá ser dilatado, motiva<strong>da</strong>mente. Desde<br />

que o juiz encerre a audiência de instrução, nesta última hipótese, não está obrigado a,<br />

prolata<strong>da</strong> a sentença, publicá-la em audiência. Inexiste esta exigência no novo<br />

sistema”. 535<br />

Não há dúvi<strong>da</strong>s do acerto <strong>da</strong> lição mesmo para o processo penal. Uma audiência<br />

especial para a publicação <strong>da</strong> sentença seria uma demasia inútil.<br />

c) no procedimento especial do júri<br />

Complexa é a ativi<strong>da</strong>de decisória do juiz profissional no procedimento especial do júri.<br />

Da<strong>da</strong> a cisão <strong>da</strong> competência pelo objeto do juízo, juiz profissional e jurados dividem a<br />

ativi<strong>da</strong>de decisória, não sendo possível, senão no caso concreto, perceber exatamente<br />

onde começa uma ativi<strong>da</strong>de e termina outra e vice-versa.<br />

Dir-se-á que a ativi<strong>da</strong>de decisória dos jurados se inicia com a votação dos quesitos<br />

em sala secreta. Não é ver<strong>da</strong>de. Pode começar, de fato, antes disso. É exterioriza<strong>da</strong><br />

oficialmente na sala secreta, mas tudo leva a crer que muitos jurados decidem antes<br />

desse momento.<br />

Outro <strong>da</strong>do complicador dessa análise é o de que o juiz profissional, por dominar um<br />

discurso que os jurados desconhecem, influencia, mesmo sem querer e ignorando-o as<br />

partes técnicas, as decisões dos juízes leigos.<br />

Seja como for, a ativi<strong>da</strong>de decisória no procedimento especial do júri é fragmenta<strong>da</strong><br />

entre o juiz que preside a sessão de instrução e julgamento e os jurados. Em ambos os<br />

535<br />

ALVIM, Arru<strong>da</strong>. “Sentença no processo civil: as diversas formas de terminação do processo em<br />

primeiro grau”, em RePro, n. 2 (abr-jun/1976), p. 84.<br />

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casos, é marca<strong>da</strong> por limitação <strong>da</strong> publici<strong>da</strong>de às partes técnicas. Mesmo com essa<br />

limitação, a ativi<strong>da</strong>de decisória desse procedimento é superior à de outros procedimentos<br />

perante juiz singular.<br />

O defeito maior <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória do procedimento especial do júri é sua<br />

complexi<strong>da</strong>de extrema. Dá-se através de votação de quesitos, seja em sala especial, seja<br />

no plenário esvaziado; o importante é que seja garantido o sigilo desse momento <strong>da</strong><br />

sessão, constitucionalmente ordenado (Constituição, art. 5º, inciso XXXVIII, letra “b”. Essa<br />

votação é minuciosamente disciplina<strong>da</strong> pela lei (CPP, arts. 478 a 491), o que, ao invés de<br />

impedir, estimula to<strong>da</strong> sorte de equívocos de parte do juiz-presidente e dos jurados e<br />

mesmo <strong>da</strong>s partes técnicas.<br />

Mais do que um defeito, essa característica é seu ver<strong>da</strong>deiro “calcanhar de Aquiles”.<br />

Não há estatísticas a respeito, mas certamente muitos jurados decidiram equivocados,<br />

condenando quando queriam absolver ou absolvendo quando queriam condenar, apenas<br />

porque não entenderam a pergunta formula<strong>da</strong> pelo juiz- presidente.<br />

Para a própria sobrevivência do procedimento especial do júri, urge uma simplificação<br />

<strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória.<br />

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Seção C<br />

Fun<strong>da</strong>mento Político<br />

O fun<strong>da</strong>mento político do exercício de ativi<strong>da</strong>de decisória em audiência processual<br />

penal é justamente o de proporcionar às partes e à socie<strong>da</strong>de uma decisão imediata para<br />

o caso em julgamento.<br />

Sublinhe-se, ademais, que a legitimi<strong>da</strong>de política do exercício <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória<br />

em audiência também está na atitude de proporcionar às partes técnicas um acesso mais<br />

imediato às fases do labor judicial na elaboração <strong>da</strong> decisão.<br />

Por fim, outro fun<strong>da</strong>mento político, mas aqui mais de política jurídica, por assim dizer,<br />

dessa ativi<strong>da</strong>de decisória imediatamente exerci<strong>da</strong>, é o de aproximar o juiz do contexto<br />

fático e argumentativo <strong>da</strong> causa em julgamento.<br />

Através <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória exerci<strong>da</strong> na audiência, os fatos tornam-se, quase<br />

automaticamente, o centro do processo penal condenatório, mais do que quaisquer outros<br />

princípios e conceitos jurídicos, reduzidos à categoria de ver<strong>da</strong>deiros topoi.<br />

É esse o espaço juridicamente adequado para o desenvolvimento e experiência de<br />

uma ver<strong>da</strong>deira tópica, defini<strong>da</strong> por EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA como sendo “um<br />

pensamento que opera por ajustes concretos para resolver problemas singulares partindo<br />

de diretrizes ou de guias que não são princípios lógicos que se podem deduzir com<br />

resolução, senão simples loci comunes de valor relativo e circunscrito revelados pela<br />

experiência”. 536<br />

A propósito, também escrevi: “Assim, em resumo, a tópica serve para atribuir aos<br />

juristas suas ver<strong>da</strong>deiras responsabili<strong>da</strong>des. Se o método lógico-jurídico levava o jurista a<br />

uma certa preguiça mental (...) e, pior, a uma certa sensação de irresponsabili<strong>da</strong>de diante<br />

<strong>da</strong>s conseqüências de seu atuar, a tópica faz exatamente o contrário. O juiz que condena<br />

é o responsável pela condenação; não é o Código Penal. O juiz que determina a saí<strong>da</strong><br />

dos sem-terra <strong>da</strong> área invadi<strong>da</strong> é o responsável por tal decisão; não é o Código Civil. E<br />

será o tirocínio do jurista em utilizar os topoi que determinará a justiça <strong>da</strong> decisão<br />

toma<strong>da</strong>”. 537<br />

Desenvolvendo-se oralmente a ativi<strong>da</strong>de decisória, até por imperativo de ordem<br />

536<br />

ENTERRÍA, Eduardo García de. “Prólogo al libro de Theodor Viehweg, Tópica y jurisprudencia”, em<br />

Reflexiones…, p. 77: Trecho original: “un pensamiento que opera por ajustes concretos para resolver<br />

problemas singulares partiendo de directrices o de guías que non son principios lógicos desde los que poder<br />

[SIC] deducir con resolución, sino simples loci comunes de valor relativo y circunscrito revelados por la<br />

experiencia”.<br />

537<br />

Cf., também, RAMOS, João Gualberto Garcez. A inconstitucionali<strong>da</strong>de…, p. 75.<br />

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prática, o caso passa a ter efetiva preeminência no atuar do juiz. Utilizando os conceitos<br />

jurídicos de que dispõe, diante e sob a fiscalização <strong>da</strong>s partes técnicas, o juiz tem um<br />

parâmetro concreto para a sua decisão: solucionar precisamente aquele caso em<br />

julgamento.<br />

Dir-se-á que sendo escrita ou oral a sentença isso pode ocorrer <strong>da</strong> mesma maneira,<br />

bem como o seu contrário, isto é, o apego do juiz à coerência intrínseca do sistema.<br />

Está certo, mas ocorrendo ativi<strong>da</strong>de decisória na mesma audiência processual penal,<br />

há um efetivo coroamento de to<strong>da</strong>s as outras ativi<strong>da</strong>des nela realiza<strong>da</strong>s, bem como o<br />

respeito aos seus princípios estruturais e dinâmicos. Através <strong>da</strong> combinação de todos os<br />

princípios, tem-se uma audiência processual penal que permite ao julgador e às partes<br />

técnicas uma mais perfeita – ou menos imperfeita – avaliação crítica de todos os aspectos<br />

<strong>da</strong> causa em julgamento.<br />

Mais do que isso, o exercício louvável <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória na audiência pressupõe<br />

a prática anterior, no mesmo momento processual, no mínimo, <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de crítica <strong>da</strong>s<br />

partes técnicas, visto que não se concebe, sequer de lege feren<strong>da</strong>, uma audiência<br />

convoca<strong>da</strong> simplesmente para a publicação <strong>da</strong> sentença ou mesmo para o<br />

desenvolvimento <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de decisória.<br />

Sendo assim, a orali<strong>da</strong>de, concentração e imediação acabam delimitando os topoi do<br />

julgamento: embora o juiz possa se utilizar de argumentos outros, a tendência natural é<br />

que deci<strong>da</strong> utilizando-se do material crítico que lhe tenha sido fornecido pelas partes<br />

técnicas. Se buscar outros, ao menos deverá ter <strong>da</strong>do conta dos argumentos levantados.<br />

Seja como for, nesse particular, a atitude do juiz ao decidir, a realização de um<br />

momento processual como a audiência, tão rico em aspectos fáticos, jurídicos e políticos,<br />

predispõe as partes a decidir conforme os <strong>da</strong>dos produzidos. Se não for por outra razão,<br />

será porque muito provavelmente eles serão suficientemente amplos.<br />

Essa orientação para o fato, cientificamente consentânea com a tendência moderna<br />

do Direito Penal, é estimula<strong>da</strong> pela audiência processual penal. E, se assim ocorre, a<br />

tendência é de uma solução para o caso mais ajusta<strong>da</strong> às suas peculiari<strong>da</strong>des.<br />

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226


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

dosTribunais, n. 682 (ago/1992)<br />

AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica à dogmática e hermenêutica jurídica, Porto Alegre:<br />

Fabris, 1989.<br />

BARROS, Romeu Pires de Campos. “O interrogatório do acusado e o princípio <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de real”, em Estudos de Direito e Processo Penal em homenagem a Nélson<br />

Hungria, org. de Heleno Cláudio Fragoso, Rio-São Paulo: Forense, 1962.<br />

BAPTISTA, Weber Martins. Liber<strong>da</strong>de provisória, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1985<br />

BATTAGLINI, Giulio. Direito penal: parte geral, trad. de Paulo José <strong>da</strong> Costa Júnior e A<strong>da</strong><br />

Pellegrini Grinover, São Paulo: Saraiva, 1964.<br />

BATISTA, Nilo. “Práticas penais no Direito indígena”, em RDPen, n. 31 (jan-jun/1981), p.<br />

75-86.<br />

BECCARIA, Cesare. Dei delitti e delle pene, 9ª ed., org. de Renato Fabietti, Mursia: Ugo<br />

Mursia Editore, 1995.<br />

BRENNAN, William J. “The Criminal Prosecution: Sporting Event or Quest for Truth?”, em<br />

Washington University Law Quarterly, (1963), p. 279-295.<br />

BROSSARD, Paulo. O impeachment: aspectos <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de política do Presidente<br />

<strong>da</strong> República, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1992.<br />

BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos retóricos <strong>da</strong> sentença penal, São Paulo: Revista dos<br />

Tribunais, 1980.<br />

BRUNO, Aníbal. Direito penal, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1959, v. 1, t. 1.<br />

BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro, ed.<br />

anot., atual. e compl. por José Frederico Marques, São Paulo: Revista dos Tribunais,<br />

1959.<br />

BURDESE, Alberto. Manuale di diritto pubblico romano, Turim: Unione Tipografica, 1966<br />

CAPDEQUÍ, José Maria Ots. Manual de historia Del Derecho español em las índias y Del<br />

Derecho propiamente indiano, Buenos Aires: Losa<strong>da</strong>, 1945.<br />

CAPPELLETTI, Mauro. “Ideologia en el Derecho procesal”, em Proceso, ideologias,<br />

socie<strong>da</strong>d, trad. de Santiago Sentís Melendo e Tomás A. Banzhaf, Buenos Aires:<br />

Europa América, 1974, p. 3-31.<br />

CARCOPINO, Jérome. Roma no apogeu do império, trad. de Hildegard Feist, São Paulo:<br />

Companhia <strong>da</strong>s Letras: Círculo do Livro, 1990.<br />

CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito antigo, São Paulo: Brasiliense, sem <strong>da</strong>ta.<br />

CARRIÓ, Alejandro D. Garantias constitucionales en el proceso penal, 2ª ed., Buenos<br />

Aires: Hammurabi, 1991.<br />

227


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

CARNEIRO, Athos Gusmão. Audiência de instrução e julgamento: aspectos teóricos e<br />

práticos, Rio de Janeiro: Forense, 1979.<br />

CARNELUTTI, Francesco. Las misérias Del proceso penal, trad. de Santiago Sentís<br />

Melendo. Bogotá: Themis, 1993.<br />

–––––––––. Lecciones sobre el proceso penal, trad. de Santiago Sentís Melendo, Buenos<br />

Aires: Europa América, Bosch, 1950.<br />

–––––––––. Principi del processo penale. Nápoles: Morano, 1960.<br />

CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia <strong>da</strong> reação social, trad. de Ester Kosovski, Rio de<br />

Janeiro: Forense, 1983.<br />

CERNICHIARO, Luiz Vicente e COSTA JÚNIOR, Paulo José <strong>da</strong>. Direito penal na<br />

Constituição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990<br />

COLOMER, Juan-Luiz Gomes. El proceso penal aleman: introduccion y normas basicas,<br />

Barcelona: Bosch, 1985.<br />

COMOGLIO, Luigi Paolo. “Prove ed accertamento dei fatti nel nuovo c.p.p.”, em Rivista<br />

italiana di diritto e procedura penale, (1990), p. 113-147.<br />

CORDERO, Franco. Procedura penale. Milão: Giuffrè, 1991.<br />

CORWIN, Edward S. A Constituição norte-americana e seu significado atual, trad. de<br />

Lê<strong>da</strong> Boechat Rodrigues, Rio de Janeiro: Zahar, 1986.<br />

COSTA, José Gonçalves <strong>da</strong>. “O estatuto do argüido no projecto de Código de Processo<br />

Penal (uma primeira leitura)”, em Cadernos <strong>da</strong> Revista do Ministério Público: jorna<strong>da</strong>s<br />

de Processo Penal, org. de Mário Torres, Lisboa: Sindicato dos Magistrados do<br />

Ministério Público, sem <strong>da</strong>ta.<br />

COSTA JÚNIOR, Paulo José <strong>da</strong>. Curso de Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1991, v. 3.<br />

–––––––––. e CERNICHIARO, Luiz Vicente. Direito penal na Constituição, São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, 1990.<br />

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miran<strong>da</strong>. “O papel do novo juiz no Processo Penal”, em<br />

Crítica à teoria geral do Direito Processual Penal, org. de Jacinto Nelson de Miran<strong>da</strong><br />

Coutinho, Rio de Janeiro, 2001, p. 3-56.<br />

CRETELLA JÚNIOR, José. Direito administrativo brasileiro, Rio de Janeiro: Forense,<br />

1983, v. 1.<br />

D’ALIMONTE, Roberto. “Teoria <strong>da</strong>s decisões coletivas”, em A.A.V.V. Dicionário de<br />

política, org. de Norberto Bobbio, Nicola Matteuci e Gianfranco Pasquino, trad. de<br />

Carmen C. Varrialle e outros, 2ª ed., Brasília: Universi<strong>da</strong>de de Brasília, p. 309-312.<br />

DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito contemporâneo, trad. de Hermínio A.<br />

228


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

Carvalho, 2ª ed., Lisboa: Meridiano, 1978.<br />

DE LUCA, Giuseppe. “Il sistema delle prove penali e il principio del libero convincimento<br />

nel nuovo rito”, em Rivista italiana di diritto e procedura penale, (1992), p. 1.255-1.276.<br />

DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel <strong>da</strong> Costa. Criminologia: o homem<br />

delinqüente e a socie<strong>da</strong>de criminógena, Coimbra: Coimbra, 1984.<br />

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, v.<br />

1.<br />

–––––––––. Direito Processual Penal: lições do Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias,<br />

coligi<strong>da</strong>s por Maria João Antunes, Coimbra: Seção de textos <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Direito<br />

<strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Coimbra, 1988-1989.<br />

DINAMARCO, Cândido R. A instrumentali<strong>da</strong>de do processo, São Paulo: Revista dos<br />

Tribunais, 1987.<br />

DOTTI, René Ariel. Princípios do Processo Penal. In: Revista de Processo, São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, 1992, n. 67 (julho-setembro) p. 72-92.<br />

DRUMMOND, Magalhães. Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1944,<br />

v. 9.<br />

ECO, Humberto. O nome <strong>da</strong> rosa, trad. de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de<br />

Andrade, São Paulo: Record, 1986.<br />

ENTERRÍA, Eduardo García de. “Prólogo al libro de Theodor Viehweg, Tópica y<br />

jurisprudencia”, em Reflexiones sobre la ley y los princípios generales Del Derecho,<br />

Madri: Civitas, 1986.<br />

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal brasileiro anotado, 3ª ed., Rio de<br />

Janeiro: Borsoi, 1954 (v. 1), 1955 (vv. 2, 3, 4, 5, 6 e 7) e 1956 (v. 8).<br />

EVERETT, Robinson O. “Discovery in Criminal Cases – In Search of a Stan<strong>da</strong>rd”, em<br />

Duke Law Journal, (1964), p. 477-517.<br />

EYMERICH, Nicolau. Manual dos inquisidores, ed. rev. e atual. em 1578 por Francisco de<br />

La Peña, trad. de Maria José Lopes <strong>da</strong> Silva, Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos e<br />

Brasília: Fun<strong>da</strong>ção Universi<strong>da</strong>de de Brasília, 1993.<br />

FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário, 3ª<br />

ed., atual, Rio de Janeiro: Forense, 1957.<br />

FARIA, Bento de. Código de Processo Penal, Rio de Janeiro: Editora Record, 1960, v. 1.<br />

FARIA, José Eduardo. Eficácia jurídica e violência simbólica: o Direito como instrumento<br />

de transformação social, São Paulo: Edusp, 1988.<br />

FASSONE, Elvio. “Il dibattimento: ammissione ed assunzione della prova”, em Contributi<br />

229


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

allo studio del nuovo códice di procedura penal, org. de Giovanni Canzio, Donatella<br />

Ferranti e Alessandro Pascolini, Milão: Giuffrè, 1989, p. 219-235.<br />

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira, 6ª ed., rev.<br />

e atual., São Paulo: Saraiva, 1986.<br />

FLORIAN, Eugenio. Elementos de Derecho procesal penal, trad. de L. Prieto Castro,<br />

Barcelona: Bosch, 1934.<br />

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e trad. de Roberto Machado. 10.<br />

ed., Rio de Janeiro: Graal, 1979.<br />

––––––––. Vigiar e punir: nascimento <strong>da</strong> prisão, trad. de Lígia M. Pondé Vassallo, 7ª ed.,<br />

Petrópolis: Vozes, 1989.<br />

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito penal: a nova parte geral, 10ª ed., rev. de<br />

Fernando Fragoso, Rio de Janeiro: Forense, 1986.<br />

–––––––––. Lições de Direito penal: parte especial, <strong>4ª</strong> ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984,<br />

v. 2.<br />

GILISSEN, John. Introdução histórica ao Direito, trad. de António Manuel Hespanha e<br />

Manuel Luís Macaísta Malheiros, Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1988.<br />

GLOTZ, Gustave. A ci<strong>da</strong>de grega, trad. de Henrique de Araújo Mesquita e de Roberto<br />

Cortes de Lacer<strong>da</strong>, 2ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988.<br />

GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal, São Paulo: Saraiva, 1991.<br />

GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini. Garantia constitucional do direito de ação, São Paulo: Revista<br />

dos Tribunais, 1973.<br />

–––––––––. “Interrogatório do réu e direito ao silêncio”, em O processo em sua uni<strong>da</strong>de,<br />

São Paulo: Saraiva, 1978.<br />

–––––––––. Liber<strong>da</strong>des públicas e Processo Penal: as interceptações telefônicas, 2ª ed.,<br />

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982.<br />

HAMILTON, Alexander. “Número LXXXIII: Maior exame do poder judiciário no tocante ao<br />

julgamento por júri”, em MADISON, James, HAMILTON, Alexander e JAY, John. Os<br />

artigos federalistas: 1787-1788: edição integral, trad. de Maria Luiza X. de A. Borges,<br />

Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.<br />

HOLMES, Oliver Wendell. O Direito comum: as origens do Direito anglo-americano, trad.<br />

de J. L. Melo, Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1967.<br />

HUNGRIA, Nelson. “Os pandectistas do Direito penal”, em HUNGRIA, Nelson e<br />

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao Código Penal, 6ª ed., Rio de Janeiro:<br />

Forense, 1983, v. 1, t. 2.<br />

230


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

INGMAN, Terence. The English Legal Process, <strong>4ª</strong> ed., Londres: Blackstone, 1992.<br />

JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal: estudos e pareceres, 3ª ed., Rio de<br />

Janeiro: Forense, 1990.<br />

KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus maleficarum: o martelo <strong>da</strong>s feiticeiras,<br />

trad. de Paulo Fróes, 9ª ed., São Paulo: Rosa dos Ventos, 1993.<br />

LEITE, Eduardo de Oliveira. A monografia jurídica, Porto Alegre: Fabris, 1985.<br />

LEITE, Luciano Marques. “O conceito de ‘lide’ no Processo Penal: um tema de teoria geral<br />

do processo”, em Justitia, n. 70 (1970), p. 181-195.<br />

LEONE, Giovanni. Trattato di diritto processual e penale, Nápoles: Jovene, 1961, v. 2.<br />

LIMA, Hermes. Introdução à ciência do Direito, 28ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos,<br />

1986.<br />

LYRA FILHO, Roberto. Direito do capital e Direito do trabalho, Porto Alegre: Fabris, 1982.<br />

MACCHIA, Alberto. “Udienza preliminare”, em Contributi allo studio del nuovo códice di<br />

procedura penal, org. de Giovanni Canzio, Donatella Ferranti e Alessandro Pascolini,<br />

Milão: Giuffrè, 1989, p. 38-43.<br />

MACHADO, Luiz Alberto. “Execução <strong>da</strong>s penas privativas de liber<strong>da</strong>de”, em Revista <strong>da</strong><br />

Procuradoria Geral do Estado, (1987), p. 150 ss.<br />

–––––––––. “O princípio constitucional <strong>da</strong> isonomia jurídica e o Direito criminal e<br />

processual criminal”, em Estudos jurídicos, em homenagem a Manoel Pedro Pimentel,<br />

org. de Rubens Prestes Barra e Ricardo Antunes Andreucci, São Paulo: Revista dos<br />

Tribunais, 1992.<br />

MACHADO, Paulo Affonso Leme. “Intervenção do acusado e <strong>da</strong> defesa no interrogatório<br />

do réu”, em Revista dosTribunais, n. 439, (mai/1972).<br />

MALATESTA, Nicola Framarino dei. La lógica delas prueba sem materia criminal, trad. de<br />

Simón Carrejo e Jorge Guerrero, <strong>4ª</strong> ed., Bogotá: Themis, 1988.<br />

MANNHEIM, Hermann. Criminologia compara<strong>da</strong>, trad. de José Faria Costa e de Manuel<br />

<strong>da</strong> Costa Andrade, Lisboa: Fun<strong>da</strong>ção Calouste Gulbenkian, 1984, v. 1.<br />

MANZINI, Vincenzo. Trattato di diritto processuale penale italiano, 5ª ed., Turim: Unione<br />

Tipográfico, 1956, v. 3.<br />

MARICONDE, Alfredo Velez. Estúdios de Derecho procesal penal, Córdoba: Imprensa <strong>da</strong><br />

Universi<strong>da</strong>de de Córdoba, 1956, v. 1.<br />

MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil: o acesso à justiça e os<br />

institutos fun<strong>da</strong>mentais do Direito processual, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.<br />

MARNHAM, Patrick. O homem que não era Maigret: a vi<strong>da</strong> de Georges Simenon, trad. de<br />

231


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

Marcos Santarrita, São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1993.<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, 2ª ed., Rio de<br />

Janeiro-São Paulo: Forense, 1965, v. 2.<br />

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal, 2ª ed., Rio de<br />

Janeiro-São Paulo: Forense, 1970, v. 3.<br />

MARQUES, José Frederico. “Do Processo Penal acusatório”, em Estudos de Direito<br />

Processual Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 21-29.<br />

MARQUES, José Frederico. “Evolução histórica do Processo Penal”, em Investigações, n.<br />

7 (jul/1949).<br />

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito, 7ª ed., Rio de Janeiro-São<br />

Paulo: Freitas Bastos, 1961.<br />

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo brasileiro, 1<strong>4ª</strong> ed., São Paulo: Revista<br />

dos Tribunais, 1989.<br />

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal, São Paulo: Atlas, 1991.<br />

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil,<br />

Rio de Janeiro-São Paulo: Forense, 1974, t. 3.<br />

MOMMSEN, Teodoro. Derecho penal romano, trad. de P. Dorado. Bogotá: Temis, 1991.<br />

MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vi<strong>da</strong> do Direito”, em Estudos de história do Direito,<br />

Coimbra: Universi<strong>da</strong>de de Coimbra, 1948 (Acta Universitatis Conimbrigensis), v. 1. p.<br />

158-188.<br />

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro: exposição sistemática<br />

do procedimento, 9ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1989.<br />

–––––––––. “Problemas de la inmediacion en el proceso civil”, em RevistadeProcesso, n.<br />

34 (abr-jun/1984)<br />

NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso completo de Processo Penal, <strong>4ª</strong> ed., São Paulo: Saraiva,<br />

1990.<br />

NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva,<br />

1971.<br />

–––––––––. Direito penal, 23ª ed., atual. por Dirceu de Mello e Eliana Passarelli Lepera,<br />

São Paulo: Saraiva, v. 4.<br />

NORTON, Jerry E. “Discovery in the Criminal Process”, em The Journal of Criminal Law,<br />

Criminology and Police Science, n. 61 (1970), p. 11-38.<br />

OURLIAC, Paul. Historia del Derecho, trad. de Arturo Fernándes Aguirre, Puebla: Jose M.<br />

Cajica Jr., 1952, t. 1.<br />

232


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

PELLEGRINO, Hélio. “Psicanálise <strong>da</strong> criminali<strong>da</strong>de brasileira: ricos e pobres”, em Folha<br />

de S.Paulo, (7.out.1984), caderno “Folhetim”, p. 6-7.<br />

PIERANGELLI, José Henrique. Processo Penal: evolução histórica e fontes legislativas.<br />

Bauru: Jalovi, 1983.<br />

PINTO, Teresa Celina de Arru<strong>da</strong> Alvim. Medi<strong>da</strong> cautelar, man<strong>da</strong>do de segurança e ato<br />

judicial, São Paulo: Malheiros, 1992.<br />

PISAPIA, Gian Domenico. Compendio di procedura penale, <strong>4ª</strong> ed., Pádua: Ce<strong>da</strong>m, 1985<br />

PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri, 6ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990.<br />

PRADO, Luiz Regis. Multa penal: doutrina e jurisprudência, 2ª ed., São Paulo: Revista dos<br />

Tribunais, 1993.<br />

RABASA, Oscar. El Derecho angloamericano: estudio expositivo y comparado del<br />

“Common Law”. Ci<strong>da</strong>de do México: Fondo de Cultura Economica, 1944.<br />

RADBRUCH, Gustav. El espíritu del Derecho inglés, trad. de Fernando Vela. Madri:<br />

Revista de Occidente, 1958.<br />

–––––––––. Filosofia do Direito, trad. de L. Cabral de Monca<strong>da</strong>, 6ª ed., Coimbra: Arménio<br />

Amado, 1979.<br />

RAMOS, João Gualberto Garcez. A inconstitucionali<strong>da</strong>de do “Direito penal do terror”,<br />

Curitiba: Juruá, 1991.<br />

–––––––––. “Observações acerca <strong>da</strong> instrução criminal no Brasil”, em Revista <strong>da</strong><br />

Procuradoria-Geral <strong>da</strong> República, n. 3 (abr-jun/1993), p. 102-117.<br />

–––––––––. “O Júri como instrumento de efetivi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> reforma penal”, em<br />

Jurisprudência brasileira criminal, n. 33 (1994), p. 47-48 e em Revista dosTribunais, n.<br />

699 (jan/1994), p. 283-288.<br />

RÁO, Vicente. O Direito e a vi<strong>da</strong> dos direitos, anot. e atual. de Ovídio Rocha Barros<br />

Sandoval, 3ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, v. 1.<br />

REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito, 9ª ed., revista, São Paulo: Saraiva, 1981<br />

RODRIGUES, Lê<strong>da</strong> Boechat. A Corte de Warren (1953-1969): revolução constitucional,<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.<br />

RODRIGUES, Lê<strong>da</strong> Boechat. A Corte Suprema e o Direito constitucional americano, Rio<br />

de Janeiro: Revista Forense, 1958.<br />

ROMANO, Santi. Princípios de Direito constitucional geral, trad. de Maria Helena Diniz,<br />

São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977.<br />

ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação penal, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1978.<br />

RUBIANES, Carlos j. Manual de Derecho procesal penal, Buenos Aires: Depalma, 1978,<br />

233


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

v. 1.<br />

SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro-São<br />

Paulo: Forense, 1976, v. 4.<br />

SCAPARONE, Metello. “Common law” e processo penale. Milão: Giuffrè, 1974.<br />

SERRA, António Truyol y. História <strong>da</strong> filosofia do Direito e do Estado: 1. Das origens, à<br />

Baixa I<strong>da</strong>de Média, trad. de Henrique Barrilaro Ruas, Lisboa: Instituto de Novas<br />

Profissões, sem <strong>da</strong>ta.<br />

SIDOU, J. M. Othon. A vocação publicística do procedimento romano (monografia<br />

apresenta<strong>da</strong> à Facul<strong>da</strong>de de Direito <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de do Recife, em conclusão do<br />

Curso de Doutoramento), Recife: Câmbio, 1955..<br />

SILVA, José Afonso <strong>da</strong>. Curso de Direito Constitucional Positivo, 5ª ed., São Paulo:<br />

Revista dos Tribunais, 1989.<br />

SILVA, Ovídio Araújo Baptista <strong>da</strong>. Curso de Processo Civil, 2ª ed., Porto Alegre: Fabris,<br />

1991, v. 1.<br />

SIQUEIRA, Galdino. Curso de Processo Criminal, 2ª ed., São Paulo: Magalhães, 1930.<br />

SOUSA, João Castro e. A tramitação do Processo Penal, Coimbra: Coimbra Editora,<br />

1985, 333 p.<br />

SPRENGER, James e KRAMER, Heinrich e. Malleus maleficarum: o martelo <strong>da</strong>s<br />

feiticeiras, trad. de Paulo Fróes, 9ª ed., São Paulo: Rosa dos Ventos, 1993.<br />

SUBIN, Harry I., MIRSKY, Chester L. e WEINSTEIN, Ian S. The criminal process:<br />

prosecution and defense functions, St. Paul (Minesota, EUA): West, 1993.<br />

TAFT, Henry W. Curiosi<strong>da</strong>des legales: aspectos de la vi<strong>da</strong> judicial de los Estados Unidos:<br />

seis deca<strong>da</strong>s de cambios y progreso, trad. de Julio E. Payro, Buenos Aires: Guilhermo<br />

Taft, 1944<br />

TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. “Aprimoramento do processo civil como pressuposto de<br />

uma justiça melhor”, em Revista de Processo, n. 65 (jan-mar/1992), p. 165 ss.<br />

THOMPSON, Augusto F. G. Escorço histórico do Direito criminal luso-brasileiro, São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, 1976.<br />

TORNAGHI, Hélio. A relação Processual Penal, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1987.<br />

–––––––. Instituições de Processo Penal, Rio de Janeiro: Forense, 1959, vv. 3 e 4.<br />

TOURINHO FILHO, Fernando <strong>da</strong> Costa. Processo Penal, 18ª ed., São Paulo: Saraiva,<br />

1997.<br />

TUCCI, José Rogério Cruz e. “Apontamentos sobre o procedimento monitório”, em<br />

TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo legal e tutela<br />

234


Currículo<br />

_____________________________________________________________________________________________________<br />

Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos<br />

jurisdicional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.<br />

TUCCI, Rogério Lauria. “Devido processo penal e alguns de seus mais importantes<br />

corolários”, em TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo<br />

legal e tutela jurisdicional, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.<br />

–––––––––. Direitos e garantias individuais no Processo Penal brasileiro, São Paulo:<br />

Saraiva, 1993.<br />

–––––––––. Lineamentos do Processo Penal romano, São Paulo: José Bushatski, 1976.<br />

VERRI, Pietro. Observações sobre a tortura, trad. de Federico Carotti, São Paulo: Martins<br />

Fontes, 1992.<br />

VIDIGAL, Luís Eulálio de Bueno. “Prefácio” (1974), em CINTRA, Antonio Carlos de<br />

Araújo, GRINOVER, A<strong>da</strong> Pellegrini & DINAMARCO, Cândido R. Dinamarco. Teoria<br />

geral do processo, <strong>4ª</strong> ed., amplia<strong>da</strong> e revista, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984.<br />

WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos, Santa Cruz do Sul:<br />

Facul<strong>da</strong>des Integra<strong>da</strong>s de Santa Cruz do Sul, 1985.<br />

235

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