Parte 1 - Tribunal Regional Federal da 4ª Região

Currículo
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Permanente - Módulo IV - Direito Penal - 2008 João Gualberto Garcez Ramos
ESCOLA DA MAGISTRATURA DO
TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 4ª REGIÃO
Direção
Desembargador Federal Paulo Afonso Brum Vaz
Conselho
Desembargador Federal Victor Luiz dos Santos Laus
Desembargador Federal Joel Ilan Paciornik
Coordenador Científico do Módulo de Direito Penal 2008
Juiz Federal José Paulo Baltazar Júnior
Assessoria
Isabel Cristina Lima Selau
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CADERNO DE DIREITO PENAL - 2008
Organização – Divisão de Ensino
Maria Luiza Bernardi Fiori Schilling
Revisão – Divisão de Ensino
Maria de Fátima de Goes Lanziotti
Capa e Editoração – Divisão de Editoração e Artes
Alberto Pietro Bigatti
Artur Felipe Temes
Erico da Silva Ferreira
Rodrigo Meine
Apoio
Seção de Reprografia e Encadernação
Contatos:
E-mail: emagis@trf4.gov.br
Assessoria: (51) 3213-3040
Divisão de Ensino: (51) 3213-3041, 3213-3045
Divisão de Editoração e Artes: (51) 3213-3046
www.trf4.gov.br/emagis
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Apresentação
O Currículo Permanente criado pela Escola da Magistratura do Tribunal
Regional Federal da 4ª Região - EMAGIS - é um curso realizado em encontros mensais,
voltado ao aperfeiçoamento dos juízes federais e juízes federais substitutos da 4ª Região,
que atende ao disposto na Emenda Constitucional nº 45/2004. Tem por objetivo, entre
outros, propiciar aos magistrados, além de uma atualização nas matérias enfocadas,
melhor instrumentalidade para condução e solução das questões referentes aos casos
concretos de sua jurisdição.
O Caderno do Currículo Permanente é fruto de um trabalho conjunto desta
Escola e dos ministrantes do curso, a fim de subsidiar as aulas e atender às necessidades
dos participantes.
O material conta com o registro de notáveis contribuições, tais como artigos,
jurisprudência selecionada e estudos de ilustres doutrinadores brasileiros e estrangeiros
compilados pela EMAGIS e destina-se aos magistrados da 4ª Região, bem como a
pesquisadores e público interessado em geral.
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COMO CITAR ESTA OBRA:
RAMOS, João Gualberto Garcez. Audiência no processo penal. Porto Alegre: TRF – 4ª
Região, 2008 (Currículo Permanente. Caderno de Direito Penal: módulo 4)
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ÍNDICE
Audiência no processo penal
Ministrante: João Gualberto Garcez Ramos
Ficha Técnica.............................................................................................................................. 02
Apresentação.............................................................................................................................. 03
Introdução................................................................................................................................... 09
Parte 1 – Evolução histórica da audiência processual penal...................................................... 11
Capítulo 1 – Evolução histórica da audiência processual penal......................................... 15
Seção A – A audiência processual penal primitiva...................................................... 15
§ 1º Comunidades primitivas............................................................................ 15
§ 2º Egito.......................................................................................................... 18
Seção B – A audiência processual penal greco-romana............................................. 24
§ 1º Grécia....................................................................................................... 24
§ 2º Roma....................................................................................................... 29
Seção C – A audiência processual penal bárbara....................................................... 37
Seção D – A audiência processual penal e os “sistemas”........................................... 48
§ 1º Sistema inquisitório (audiência canônica)................................................. 48
a) o processo canônico.................................................................................. 48
b) o processo inquisitório............................................................................... 54
c) a audiência inquisitória.............................................................................. 56
1. publicidade............................................................................................. 56
2. contraditório........................................................................................... 57
3. oralidade................................................................................................ 58
4. imediação............................................................................................... 58
5. concentração.......................................................................................... 59
§ 2º Sistema acusatório (audiência inglesa).................................................... 60
a) o sistema inglês......................................................................................... 60
1. esclarecimentos iniciais......................................................................... 60
2. a questão do método............................................................................. 60
3. evolução rumo ao adversary system..................................................... 62
4. o trial by jury inglês................................................................................ 66
b) a evolução estadunidense......................................................................... 70
c) a audiência acusatória............................................................................... 72
1. publicidade............................................................................................. 72
2. contraditório........................................................................................... 72
3. oralidade................................................................................................ 75
4. imediação.............................................................................................. 75
5. concentração.......................................................................................... 76
Capítulo 2 – A evolução histórica no Brasil......................................................................... 77
Seção A – Nas Ordenações do Reino de Portugal...................................................... 77
§ 1º As Ordenações Afonsinas........................................................................ 77
§ 2º As Ordenações Manuelinas...................................................................... 79
§ 3º As Ordenações Filipinas........................................................................... 80
Seção B – No Código do Processo Criminal de Primeira Instância............................ 84
§ 1º A sistemática original................................................................................ 84
§ 2º As reformas de 1841 e 1871..................................................................... 87
Seção C – Nos códigos estaduais............................................................................... 90
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Parte 2 – Princípios e regras da audiência processual penal..................................................... 91
Capítulo 1 – A atividade administrativa na audiência processual penal............................. 104
Seção A – Conceitos.................................................................................................... 104
Seção B – Caracteres.................................................................................................. 109
§ 1º Natureza jurídica....................................................................................... 109
§ 2º A atividade administrativa e os “sistemas”................................................ 112
a) sistema inquisitório.................................................................................... 112
b) sistema acusatório..................................................................................... 113
§ 3º Princípios e regras.................................................................................... 114
a) publicidade................................................................................................ 114
b) presidencialidade....................................................................................... 115
c) oralidade.................................................................................................... 115
§ 4º Ritualismo................................................................................................. 116
a) no inquérito policial.................................................................................... 116
b) nos procedimentos comuns...................................................................... 118
c) no procedimento especial do júri............................................................... 119
Seção C – Fundamento político................................................................................... 121
Capítulo 2 – A atividade instrutória na audiência processual penal.................................... 126
Seção A – A atividade instrutória stricto sensu............................................................ 126
§ 1º Conceitos.................................................................................................. 126
§ 2º Caracteres................................................................................................ 130
a) a atividade instrutória e os “sistemas”....................................................... 130
1. sistema inquisitório................................................................................. 130
2. sistema acusatório................................................................................. 131
b) princípios e regras..................................................................................... 132
1. publicidade............................................................................................. 132
2. oralidade................................................................................................ 135
3. imediação.............................................................................................. 136
4. contraditório........................................................................................... 139
c) ritualismo................................................................................................... 140
1. no inquérito policial................................................................................ 140
2. nos procedimentos comuns................................................................... 141
3. no procedimento especial do júri.......................................................... 146
§ 3º - Fundamento político............................................................................... 149
a) a questão do fundamento político da prova testemunhal......................... 149
b) o fundamento político da atividade instrutória em audiência..................... 153
Seção B – O interrogatório (atividade instrutória lato sensu)....................................... 157
§ 1º Conceitos.................................................................................................. 157
§ 2º Caracteres................................................................................................ 159
a) o interrogatório e os “sistemas”................................................................ 159
1. sistema inquisitório................................................................................. 159
2. sistema acusatório................................................................................. 163
b) princípios e regras..................................................................................... 166
1. publicidade............................................................................................. 166
2. oralidade e imediação............................................................................ 166
3. contraditório e presidencialidade........................................................... 168
c) ritualismo................................................................................................... 168
1. no inquérito policial................................................................................ 168
2. nos procedimentos comuns................................................................... 169
3. no procedimento especial do júri........................................................... 171
§ 3º Natureza jurídica....................................................................................... 173
a) na doutrina................................................................................................. 173
b) o direito ao silêncio.................................................................................... 175
c) solução...................................................................................................... 176
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Capítulo 3 – A atividade crítica na audiência processual penal.......................................... 177
Seção A – Conceitos.................................................................................................... 177
Seção B – Caracteres................................................................................................. 180
§ 1º A atividade crítica e os “sistemas”............................................................ 180
a) sistema inquisitório.................................................................................... 180
b) sistema acusatório..................................................................................... 181
§ 2º Princípios e regras.................................................................................... 181
a) publicidade................................................................................................ 181
b) oralidade.................................................................................................... 182
c) imediação.................................................................................................. 183
d) contraditório............................................................................................... 183
§ 3º A atividade crítica e as partes técnicas.................................................... 183
a) Ministério Público..................................................................................... 183
b) assistente do Ministério Público................................................................ 186
c) autor técnico privado................................................................................. 188
d) defensor técnico........................................................................................ 190
§ 4º Riscos de uma publicização excessiva das partes técnicas..................... 192
§ 5º Ritualismo................................................................................................. 196
a) no inquérito policial.................................................................................... 196
b) nos procedimentos comuns...................................................................... 196
c) no procedimento especial do júri............................................................... 199
Seção C – Fundamento Político.................................................................................. 203
Capítulo 4 – A atividade decisória na audiência processual penal..................................... 209
Seção A – Conceitos.................................................................................................... 209
Seção B – Caracteres................................................................................................. 213
§ 1º A atividade decisória e os “sistemas”....................................................... 213
a) sistema inquisitório.................................................................................... 213
b) sistema acusatório..................................................................................... 214
§ 2º Princípios e regras.................................................................................... 214
a) concentração............................................................................................. 214
b) publicidade e oralidade.............................................................................. 215
c) contraditório.............................................................................................. 216
d) a questão da identidade física do juiz....................................................... 219
§ 3º Ritualismo................................................................................................. 220
a) no inquérito policial.................................................................................... 220
b) nos procedimentos comuns...................................................................... 221
c) no procedimento especial do júri............................................................... 222
Seção C – Fundamento Político.................................................................................. 224
Referências Bibliográficas.......................................................................................................... 226
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Audiência Processual Penal
Introdução
João Gualberto Garcez Ramos
O convite para participar do “Currículo Permanente – Módulo IV – Direito Penal Edição
2008” da Escola da Magistratura do TRF da 4ª Região (EMAGIS) veio acompanhado do
tema previamente determinado: “Audiência no processo penal”.
A lembrança de meu nome foi certamente uma gentileza imerecida dos
organizadores, especialmente do desembargador federal Paulo Afonso Brum Vaz.
Percebo a influência, outrossim, dos juízes federais Fernando Quadros da Silva e Marcelo
Malucelli, amigos de longa data. Sou sumamente agradecido a todos quantos têm algo a
ver com isso.
Numa entrevista, certa feita, o compositor Chico Buarque disse que suas melhores
composições resultaram de encomendas de alguém. Disse que sempre que tinha um
tema predeterminado nas mãos, dado não por ele, mas pelo diretor de um filme ou de
uma peça teatral, por exemplo, conseguia compor melhor. Talvez porque a aparente falta
de liberdade quanto ao tema era amplamente superada pela vertigem diante do desafio
de compor algo novo, em cima de um tema dado por outra pessoa. Foi assim, de fato,
com a maior parte das obras-primas criadas por esse grande compositor. Não sou Chico
Buarque, não chego nem perto, na verdade, mas isso de receber um tema de outrem e
desenvolver algo em cima é, de fato, um desafio instigante e gratificante.
No caso, o tema da “audiência processual penal” é próximo a mim, porque foi o objeto
de minha pesquisa de mestrado, da primeira metade da década de noventa do século
passado.
Contudo, o tema da audiência – que nasceu justamente de meu trabalho junto à
Justiça Federal de 1ª Instância – já havia ficado para trás, aprovado por banca na
Universidade Federal do Paraná e publicado pela Editora Del Rey, de Belo Horizonte.
Minhas atuais preocupações, que derivaram desse tema inicial, estão hoje mais voltadas
para o estudo do processo penal norte-americano, especialmente relacionado com os
seus princípios constitucionais.
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Mas foi muito interessante retornar ao tema inicial que, certamente, propiciará um
produtivo debate com o qualificado público do módulo permanente da EMAGIS. Além
disso, o resultado desse debate será a base para uma segunda edição do livro “Audiência
Processual Penal”, o que me trás ainda mais responsabilidade.
Toda introdução é, fundamentalmente, um pedido de desculpas disfarçado. Prefiro
assumi-lo. Confesso a autoria de todas as debilidades do presente estudo. Elas serão
resolvidas, espero, com o andar do curso.
Conto com os leitores e críticos.
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Parte 1
Evolução histórica da audiência processual penal
O estudo da evolução histórica do processo penal, conforme o título dá a entender,
será feito sob o prisma da audiência processual penal.
Com o estudo da evolução histórica desse preciso objeto, estudar-se-á, quase
inevitavelmente, a evolução histórica de todo o processo penal.
Diversas foram as civilizações que precederam a Idade Contemporânea e é evidente
que em todas elas praticou-se alguma forma de processo destinado a fundamentar a
punição de autores de infrações penais. Em outras palavras, todas as civilizações, antigas
e modernas, tiveram ordenamentos jurídico-penais e processuais penais, cada qual com
suas características. Estudá-los todos seria, pois, impossível e mesmo inútil, dado que
alguns sistemas não tiveram qualquer conseqüência na evolução posterior.
A opção metodológica do presente estudo foi, portanto, escolher determinados
exemplos históricos que tivessem tido relevância como etapas no desenvolvimento do
processo penal. São eles as comunidades primitivas, o Egito, a Grécia, Roma, e as
sociedades bárbaras.
O início se dá pela audiência processual penal primitiva, da qual dois exemplos
históricos são extraídos: a audiência nas sociedades primitivas propriamente ditas e a
audiência no Egito antigo.
A cisão foi necessária na medida em que o Egito antigo experimentou,
induvidosamente, um “salto qualitativo” em relação às outras sociedades que lhe foram
contemporâneas. Enquanto as comunidades primitivas viviam sem uma organização, ou
com uma organização débil, o Egito já era um Estado forte e centralizado. Seu processo
penal, por essa razão, já apresentava, então, características significativamente
avançadas.
Apesar do comparativo atraso das comunidades primitivas em relação ao Egito antigo,
é perfeitamente possível concluir que a audiência processual penal recebeu importantes
contribuições de cada um desses modelos.
A audiência processual penal na Grécia e em Roma também é estudada. Tanto
aquela quanto esta são exemplos de sociedades organizadas em Estado. Cada qual à
sua maneira, dão uma contribuição efetiva ao desenvolvimento das regras de estrutura e
dinamização da audiência processual penal.
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As invasões bárbaras, que dissolveram paulatina e inexoravelmente o império
romano, trouxeram consigo novas práticas processuais penais e novos rituais de
justiçamento. Essencial fixar cada um desses rituais e suas características que ficaram
para a evolução do instituto.
Por último, será feito um estudo da audiência processual penal e os chamados
“sistemas”.
O termo “sistemas” referir-se-á aos sistemas inquisitório e acusatório em suas
formulações puras, tais como concebidos no processo canônico e no processo penal
inglês.
Essa opção metodológica, porém, não goza de unanimidade dentro da doutrina
processual penal. Autores há, como JOSÉ FREDERICO MARQUES, que imputam a certa visão
histórica de institutos do processo penal a culpa por imprecisões científicas. É o que se
percebe, nitidamente, no seguinte trecho, em que o ilustre processualista trata dos
“sistemas”: “O sistema acusatório e o inquisitivo são apresentados, geralmente, com
outros princípios e regras gerais que lhes não são absolutamente inerentes, em virtude da
confusão originada do estudo de ambos os sistemas em suas formas históricas.
Conceitos basilares do sistema acusatório são apenas os seguintes: a) separação entre
os órgãos da acusação, defesa e julgamento, instaurando-se assim um processo de
partes; b) liberdade de defesa e igualdade de posição das partes; c) a regra do
contraditório; d) livre apresentação das provas pelas partes; e) regra do impulso
processual autônomo, ou ativação inicial da causa pelos interessados. No sistema
inquisitivo, ao contrário, são essas as regras capitais: a) concentração das funções
processuais no órgão judiciário, de forma a tornar este o acusador principal e também juiz
da própria acusação; b) restrição dos direitos da defesa, com o encargo ao juiz de suprir a
atividade do réu, conforme o princípio de CARPSOVIO, de que judex supplere debet
defensiones rei ex officio; c) supressão ao juiz, do dever ‘de reunir, por sua própria
atividade, o material do litígio’; e) impulso processual ex officio”. 1
A advertência acima, contudo, não pode ser levada com o rigor sugerido, ao ponto de
redundar, ela mesma, numa imprecisão científica.
Ao contrário do que sustenta JOSÉ FREDERICO MARQUES, o verdadeiro e mais útil
estudo dos “sistemas” é o histórico. Apenas a partir da visão retrospectiva de cada uma
1
MARQUES, José Frederico. “Do processo penal acusatório”, em MARQUES, José Frederico.
Estudos…, p. 23.
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das duas mais importantes manifestações do processo penal condenatório é que se
poderá identificar cada um dos seus caracteres. O processo penal que não apresente
todas as características de um “sistema” não poderá, sem a prévia renúncia à precisão
dos conceitos, ser qualificado como tal.
Além disso, com a identificação dos caracteres de cada “sistema” será possível a
construção de um modelo novo, que aproveite os aspectos positivos de cada um,
rejeitando ou minimizando os negativos.
Dúvidas não há mais, na doutrina, de que, na atualidade, não há um processo penal
“puro”. Ainda assim, não será feita uma análise mais detalhada do impropriamente
denominado “sistema misto”, ou “sistema reformado”. É que ele não apresenta, senão
formalmente, as características de um verdadeiro sistema. Foi, em realidade, o produto da
fusão dos outros dois. Com maior propriedade poder-se-ia concluir que se trata de mais
uma forma de administrar a justiça criminal que aproveitou elementos dos “sistemas”
acusatório e inquisitório. FRANCO CORDERO resume-o assim: “nasceu o processo assim
chamado misto: demoradas instruções em um perfeito estilo inquisitório, autos volumosos,
debates falados, com muita leitura e algum gesto (...). O êxito satisfaz os devotos da
‘Ordonnance’: os debates são uma suportável contrapartida à restauração instrutória;
pecado que existam ainda júris. Sob o plano técnico esse código parece algo medíocre.
(...) Em suma, parece muito acertado do ponto de vista reacionário”. 2
No presente estudo reservar-se-á a denominação “sistema” àquela “estrutura externa”
do processo penal 3 que possua uma coerência intrínseca, qualidade que somente
aqueles dois apresentam.
Por outro lado, não é possível, por todas essas razões, renunciar a uma precisão dos
termos. Um determinado ordenamento jurídico-processual penal atual somente poderá
ser considerado acusatório se apresentar, rigorosamente, as características de sua matriz
histórica. Se a ele faltar somente uma das características, será necessário obter uma
denominação que prestigie esse rigor metodológico. Embora em tese seja diferente
daquela matriz, é “praticamente” acusatório.
Assim, a referência será doravante feita da seguinte maneira: sistema inquisitório
2
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 67. Trecho original: “è nato il processo cosiddetto misto: lunghe
istruzioni in perfetto stile inquisitorio, fascicoli gonfi, dibattimenti parlati, con molte letture e qualche gesto
(...). L’esito soddisfa i devoti all’Ordonnance: i débats sono una sopportabile contropartita alla restaurazione
istruttoria; peccato che esistano ancora giurie. Sul piano tecnico questo codice appare alquanto mediocre.
(...) Insomma, appare molto riuscito dal punto di vista reazionario”.
3
Cf. FLORIAN, Eugenio. Elementos…, p. 64.
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puro, que significará o sistema formal e materialmente inquisitório, isto é, o sistema
processual penal sem partes, secreto, tal como começou a surgir a partir do IV Concílio
de Latrão, em 1215; sistema acusatório puro, que significará o próprio adversary system
inglês; sistema predominantemente inquisitório ou predominantemente acusatório, que
será o indevidamente chamado “sistema misto”, no qual predominem quaisquer das
características dos sistemas puros, que serão, à medida em que o estudo avance,
expostas.
Após essa visão, que se poderia denominar de histórico-sistemática, será feito um
estudo da evolução da audiência processual penal no Brasil.
Tal é necessário porque, embora essa evolução tenha com algumas variações
obedecido aos padrões determinados pelos “sistemas”, é preciso situá-la historicamente.
O estudo dela revelará algumas peculiaridades que podem ser úteis ao estudo do instituto
da audiência processual penal e à sua visão prospectiva.
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Capítulo 1
Evolução histórica da audiência processual penal
Seção A
A audiência processual penal primitiva
§ 1º Comunidades primitivas
Os historiadores sustentam que a fragilidade do ser humano foi, de certo modo, a
mais decisiva das alavancas que o impulsionou no sentido do progresso e da civilização.
Ao contrário dos outros animais, o homem não possuía peles grossas, garras afiadas ou
asas que o tornassem apto, por si só, a viver plenamente integrado à natureza. Por isso,
devia usar de criatividade, a fim de industrializar, de modificar os objetos naturais que lhe
permitiriam sobreviver num mundo hostil. 4
A utilização da criatividade estimulou-lhe a sensibilidade e o raciocínio, permitindo que
criasse cultura. A escrita e a linguagem foram as primeiras e mais relevantes
manifestações dessa cultura nascente. O direito nasceu pouco depois, com o aumento da
complexidade das relações entre os homens.
Está claro, outrossim, que o nascimento do direito ocorreu de forma por demais lenta,
sendo produto, em verdade, do aperfeiçoamento paulatino de certas regras de
convivência.
ANÍBAL BRUNO ensina que uma das características das comunidades primitivas foi a
ausência de uma figura, singular ou coletiva, que exercesse a autoridade comunal. 5
Dessa característica, ainda conforme ANÍBAL BRUNO, resultava que a observância das
regras de convivência, nas comunidades primitivas, estava a depender do costume e do
temor religioso ou místico, principalmente. 6
A prática de condutas contrárias a essa convivência, entre os povos primitivos, deve
ser logicamente admitida como ocorrente. Se haviam violações, posto que raras, a
característica de inexistir órgão diretivo das comunidades primitivas possui ainda mais
uma particularidade, interessante para o estudo do desenvolvimento histórico do Direito
Processual Penal: a punição a essas práticas não se verificava pela atuação de uma
autoridade, senão pela do todo ou de parte do grupo social. O que se conhece hoje por
4
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 58.
5
BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 54.
6 BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 54.
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juiz não existia entre os povos primitivos, ao menos em regra.
A primeira das práticas punitivas, segundo ANÍBAL BRUNO, antes mesmo da vingança
de sangue, foi a perda da paz. 7 Trata-se da expulsão do violador dessas regras do seio
do grupo, que dantes o protegia. Funda-se no perigo que a conduta desse homem
representava para o grupo enquanto agressão às entidades da natureza, divinas para
esses povos: era a violação do tabu. A expulsão demonstrava aos deuses que o grupo
não concordava com aquela violação, colocando-se ao lado das entidades da natureza.
A expulsão é algo que acontecia por obra de todo o grupo, sem a ocorrência de
cerimônia especial para esse mister. O cerimonial, em verdade, tem outra função,
conforme descreve ANÍBAL BRUNO: “Daí os ritos mágicos numerosos e prolongados que se
praticam em diversas tribos primárias, para preservá-las da cólera divina, sempre que
ocorre um homicídio e não se chega a descobrir e punir o seu autor. É para aplacar essa
cólera que se aplica a esse autor, em muitas delas, o sacrifício, como sanção de natureza
sacral”. 8
Historicamente, é só depois dessa etapa do desenvolvimento das sociedades que
surgiu a vingança de sangue, como subproduto da divisão daquela sociedade primitiva
em grupos sociais.
A prática de condutas indesejáveis passou, então e paulatinamente, a ser vista como
agressão ao grupo ao qual pertencia o eventual ofendido. A resposta de sangue era
dirigida desde o grupo do ofendido até o grupo do agressor, visando a ele ou a qualquer
outro membro desse grupo. 9 Outra característica dessa resposta foi ser desmedida,
quase sempre muito maior do que o mal praticado. 10
O aperfeiçoamento desse sistema veio com dois instrumentos de limitação do poder
punitivo, a lei de talião e a composição entre os grupos envolvidos em práticas de crimes.
A lei de talião, conforme é sabido, veio estabelecer um critério de simetria entre o mal
praticado e a resposta ao seu autor.
A composição, por seu turno, nasceu da aceitação de que o mal físico praticado
poderia, convindo ao grupo ofendido, ser compensado por algum valor econômico e, com
7
BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 56-57.
8
BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 57.
9
BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 57-58.
10
Cf. Livro do Gênesis, 4, 23-24: “Lamec disse às suas mulheres:/‘Ada e Sela, ouvi minha
voz,/mulheres de Lamec, escutai minha palavra:/Eu matei um homem por uma ferida,/ uma criança por uma
contusão./ É que Caim é vingado sete vezes,/ mas Lamec, setenta e sete vezes’”.
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isso, substituir a resposta física e preservar os grupos de ensandecida guerra e
destruição.
Tratam-se de dois aperfeiçoamentos que visaram à preservação dos grupos sociais
envolvidos.
Nisso, o que é de interesse para o Direito Processual Penal é que essa limitação da
vingança entre os grupos, através do regramento das práticas punitivas, revela o
paulatino nascimento da figura da autoridade.
São sábios que exercem a função de fiscalizar a observância dessas novas regras:
são os juízes daqueles tempos. É o que demonstram alguns dos textos bíblicos do
Pentateuco, ou Tora (Lei) por exemplo, de presumível autoria de MOISÉS, 11 e as práticas
atuais de composição. 12
Nesses casos, os textos bíblicos e os “códigos” antigos – na verdade textos esparsos,
encontrados em caracteres cuneiformes – eram, mais que regras de convivência,
conselhos desses autores aos homens encarregados de administrar a justiça. No caso
específico dos hebreus, conselho de Iahweh: “Quem ferir um compatriota, desfigurando-o,
como ele fez assim, assim se lhe fará: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente.
O dano que se causa a alguém, assim também se sofrerá: quem matar um animal deverá
dar compensação por ele, e quem matar um homem deve morrer. A sentença será entre
vós a mesma, quer se trate de um natural ou de um estrangeiro, pois eu sou Iahweh
vosso Deus”. 13
A existência dessas regras escritas e das autoridades, suas destinatárias, revela um
aperfeiçoamento das práticas punitivas.
Não há ainda, entre os povos primitivos, um bem desenvolvido cerimonial de
justiçamento. 14 O cerimonial que se verifica é, a rigor, de apascentamento das entidades
divinas.
Os aspectos importantes dessa fase são o paulatino regramento das práticas
punitivas, inclusive das regras relativas à produção de provas, bem como o surgimento da
11 Cf. Livros do Êxodo, 21, 12-14 e 23-25; Levítico, 24, 17-22 e Deuteronômio, 19, 21.
12 Cf. BATTAGLINI, Giulio. Direito…, p. 8. Nesse texto, o autor italiano traz o exemplo atual de dois
países, Etiópia e Somália, em que a composição ainda é uma prática comum. Acerca da Somália, ensina:
“A cabila do assassino que desejar a paz envia, através de intermediários, aos chefes do grupo adversário,
donativo que consiste geralmente em gado. A aceitação da oferta importa na extinção da questão, pelo
pagamento do preço do sangue derramado”.
13 Livro do Levítico, 24, 17-22 [sem grifo no original].
14 Cf., sobre as práticas punitivas entre os povos indígenas brasileiros, no mesmo sentido do texto,
BATISTA, Nilo. “Práticas penais no direito indígena”, em RDPen, n. 31 (jan-jun/1981), p. 75-86.
17

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figura que será, posteriormente, o centro do cerimonial da distribuição de justiça: o juiz.
No Egito antigo, essas características revelar-se-ão mais perfeitamente estruturadas.
§ 2º Egito
Conforme se acentuou anteriormente e é, em verdade, evidente e lógico, cada povo e
cada região, nos tempos primitivos, antes ou durante o nascimento da escrita e da
linguagem, tiveram características próprias no que se refere ao seu desenvolvimento
histórico.
Relativamente aos demais povos da época, o egípcio experimentava, naquele
momento, um verdadeiro salto de qualidade em seu desenvolvimento. Isso porque
representa, na história, o primeiro exemplo de Estado efetivamente estruturado. E, mais
que isso, de Estado predominantemente centralizado e despótico. 15
Outras duas características preponderantes da sociedade egípcia são sua religião e o
avanço que lograram obter no campo do conhecimento e uso de práticas científicas
empíricas. 16
Essas características se combinaram dialeticamente na estruturação das práticas
egípcias de administração da justiça.
Um exemplo dessa combinação dialética entre religião e matemática, por exemplo, é
a referência ao Maât que, sendo o objetivo dos reis do Egito antigo, representa o
equilíbrio. 17 Essa combinação influencia o processo da época, gerando um verdadeiro
princípio, quase com o sentido como o vemos no presente. O Maât corresponde ao ideal
das partes saírem plena e igualmente satisfeitas do tribunal. Como tal, era um objetivo a
ser perseguido e atingido pelos julgadores. Para os egípcios antigos, Maât é sinônimo de
verdade, ordem e justiça. 18
É importante também ressaltar que o antigo Egito experimentou fases bastante
diferenciadas no que se refere à sua caracterização como Estado.
No período denominado pré-dinástico (entre 4.000 e 3.000 a.C.), o Estado egípcio
formou-se. Isso se deu com a unificação política e territorial do Alto e Baixo Egito. Em que
15
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 93.
16
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 102-106.
17
GILISSEN, John. Introdução…, p. 53.
18 GILISSEN, John. Introdução…, p. 53.
18

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pese sua incipiência como Estado, já é possível encontrar, nessa época, segundo os
historiadores, um grande número de funcionários públicos, denominados de escribas. 19- 20
No período dinástico se podem identificar duas fases: uma anterior e outra posterior à
invasão e dominação do Egito pelos hicsos, povo originário da Ásia.
Na fase anterior, situada entre os anos de 3.000 e 1.750 a. C., continuou se
desenvolvendo, sem rompimentos, a estrutura estatal egípcia, apenas nascente no
período pré-dinástico.
Posteriormente à expulsão dos hicsos, ocorrida por volta do ano de 1.750 a. C., o
Estado egípcio transformou-se: enquanto na fase anterior à invasão era centralizado e
despótico, com um fundo predominantemente teocrático – os reis eram reis-deuses – no
período mais importante da fase posterior, denominado de Novo Império, que vigorou
entre os anos de 1.580 e 1.085 a. C., todos os documentos jurídicos e históricos
demonstram que o Estado egípcio voltou-se, sim, para a consolidação de seu poder, mas
agora voltado para a realização do bem comum. 21
Está claro que se tratava do bem comum dos estamentos mais envolvidos no
processo político, pois a massa camponesa continuava em situação opressiva,
principalmente por causa da carga tributária, mais pesada nessa fase. 22
No dizer de ANTONIO TRUYOL Y SERRA, é a fase de formação de um verdadeiro
socialismo de Estado. 23 A rigor, ainda segundo os historiadores, esse socialismo de
Estado nasceu no período do Médio Império, antes, portanto, da invasão dos hicsos, mas
aprofundou-se, tomando conta inclusive da filosofia egípcia, após a expulsão desse povo
asiático.
Por derradeiro, na fase de decadência do Estado egípcio (entre 1.080 e 525 a.C.)
percebe-se uma influência cada vez maior dos povos vizinhos e mais poderosos,
sobretudo gregos e romanos.
Essas digressões históricas servem para demonstrar que as preocupações
19
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 96.
20
Cf. GILISSEN, John. Introdução…, p. 54. Segundo esse autor, no antigo império egípcio, havia o
serviço público de chancelaria, junto aos tribunais, destinado à documentação dos atos e ao registro civil em
geral.
21
SERRA, António Truyol y. História…, p. 21-22.
22
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 100.
23
SERRA, António Truyol y. História…, p. 22.
19

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normativas com a distribuição da justiça se intensificaram após a fase do Novo Império,
com a visão da justiça como serviço público. Anteriormente, a caracterização do Faraó
como grande provedor dispensava esse tipo de preocupação: ele era a justiça.
Já no período do Médio Império encontram-se documentos contendo conselhos aos
julgadores, como a “Instrução do Faraó ao Vizir”, da XII Dinastia (entre 1.900 e 1.785
a.C.), encontrada nos túmulos do Vizir Rekmara e sua família e que orienta os julgadores
na direção da realização do princípio do Maât: “Atenta em que se espera o exercício da
Justiça na maneira de ser de um vizir. Atenta em o que é a lei justa, segundo o deus (Râ).
Atenta no que se diz do escriba do vizir: ‘Escriba de Maât (a Justiça)’ é (o seu nome). A
sala onde dás audiência, é a sala das Duas Justiças, em que se julga: e quem distribui a
Justiça perante os homens é o Vizir”. 24
E prossegue, em outra tradução: “Quando vier um requerente do Alto ou do Baixo
Egito (...) vê bem que tudo se faça conforme com a lei (...). Atende aquele que conheces
como aquele que não conheces, o que vem pessoalmente junto de ti, como o que está
longe da tua casa (...). Não despeças ninguém sem ter ouvido a sua palavra. Quando um
requerente estiver junto de ti, queixando-se, não rejeites com uma palavra o que te disser,
mas, se tiveres de negar-lhes o que pede, faz com que veja por que razão o negas”. 25
Eis aí, portanto, o perfil dos julgadores egípcios: atuavam orientados fortemente por
princípios que eram mais filosóficos que propriamente jurídicos. Esses princípios, ao
menos formalmente, voltavam-se para a efetiva distribuição de justiça.
Essa preocupação com a justiça eqüitativa fez, por exemplo, com que no Egito antigo
o ordenamento jurídico-penal fosse menos rigoroso do que o de outras civilizações
contemporâneas: nele não há notícia, por exemplo, de pena de morte. 26
A justiça – já foi visto – era estatal e centralizada. Os juízes faziam parte da classe
sacerdotal e eram nomeados pelo Faraó e seus delegados na função de administrar
justiça. 27 A escolha, porém, era eticamente orientada: recaía, usualmente, sobre os mais
respeitáveis e inteligentes homens. 28
Quanto ao aspecto externo do processo, segundo JORGE ALBERTO ROMEIRO, era ele
24
MORET, Alexandre. Le Nil et la civilisation égyptienne, Paris, 1937, p. 331-332 apud GILISSEN,
John. Introdução…, p. 56-57.
25
SERRA, António Truyol y. História…, p. 22.
26
GILISSEN, John. Introdução…, p. 55.
27
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 7-8.
28
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.
20

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predominantemente acusatório, sendo que em casos muito graves essa acusação era
obrigatória mesmo para os que não eram ofendidos pelos crimes. 29
No antigo Egito, diferentemente do que ocorria com os povos primitivos, já é possível
encontrar um extremamente elaborado e solene cerimonial de justiçamento.
O julgador egípcio tinha, segundo FRANÇOIS VIGOUROUX, citado por JOÃO MENDES DE
ALMEIDA JÚNIOR, mania de escrever. 30 Mais do que isso, “os egípcios professavam uma
crença no poder criador da palavra e, por extensão, das imagens, dos gestos e dos
símbolos em geral, que se articulava com a possibilidade de coagir os deuses e o
cosmos; ou seja, com a magia. Ptah, deus de mênfis, numa das versões do mito da
criação do mundo, gerou deuses simplesmente pronunciando os respectivos nomes. (...).
A extensão de tal princípio a outros sistemas de signos abria o caminho a formas variadas
de ações mágicas. Se a palavra, o gesto, a escrita, a imagem etc. geram a realidade,
podia-se agir sobre esta através de fórmulas verbais, gesticulação ritual, textos,
desenhos... (...). Se um dado rito exigia o sacrifício de um hipopótamo – ação bastante
incômoda e complicada – quebrar a estatueta de um hipopótamo magicamente
consagrada surtiria o mesmo efeito”. 31
Daí porque a audiência do Egito antigo era caracterizada, primeiramente, pela
ausência da palavra dita em voz alta.
Além disso, havia, de fato, uma certa mania de escrever. Contudo, essa atitude deve
ser convenientemente entendida, através do entendimento da simbologia egípcia: a
escrita não tinha a função de registro ou de comunicação de atos, como hoje, mas a
função de simbolizar os acontecimentos e transformá-los, magicamente.
O cerimonial de distribuição de justiça do antigo Egito era, portanto, apenas
externamente marcado pela escritura. Internamente, porém, tratava-se de um cerimonial
simbólico e mágico, porque marcado por grande solenidade e por gestuais de
representação e de transformação da realidade, tanto no tribunal supremo 32 quanto
perante os juízos ordinários, que eram formados por colegiados de trinta juízes 33 e por
29
ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 39.
30
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.
31
CARDOSO, Ciro Flamarion S. O Egito…, p. 85-89 [sem grifo no original].
32 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.
33 ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 39.
21

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órgãos singulares, estes reservados aos casos de crimes menores. 34
JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR escreve que “o tribunal supremo não buscava
prestígio na luta oral da acusação e da defesa e nas emoções da eloqüência; mas, nem
por isso havia ali o segredo da instrução. Era uma publicidade muda e solene, diz (...) DU
BOYS; e, como o sinal característico do egípcio era, na frase de VIGOUROUX, a mania de
escrever, tudo ali era escrito, a acusação, a contestação, a réplica, a tréplica, as
confissões e os depoimentos. O julgamento, esse sim, era secreto; e o presidente do
tribunal, depois de tomada a deliberação no segredo do santuário, nem assim rompia o
mutismo solene: limitava-se a tocar com a estatueta da justiça, suspensa a seu pescoço,
a pessoa do vencedor e, em seguida, no meio de um silêncio glacial, mais terrível ainda
se havia um condenado, era este preso pelos oficiais de justiça e levado ao suplício que a
lei determinava para o crime de que era acusado”. 35
Esse silêncio não corresponde, simetricamente, a uma ausência da palavra dita. Ao
revés, deve ser entendido no contexto da filosofia egípcia de crença no poder criador dos
gestos e símbolos. A justiça se fazia por obra deles.
No período de decadência do Estado egípcio, foi sendo cada vez maior a influência
dos gregos e romanos, principalmente no processo que, embora continuasse
basicamente o mesmo – procedimento escrito e decisão secreta e simbólica – foi
paulatinamente perdendo o simbolismo característico e se transformando, sob a influência
das outras culturas então hegemônicas, num processo racional.
Diante das particularidades da antiga filosofia egípcia, certamente não é dado concluir
que o seu processo penal era escrito, ao menos com o sentido que essa palavra possui
hoje; nem, tampouco, que as palavras eventualmente proferidas em suas cerimônias
tinham função exatamente igual à que as palavras desempenham nas audiências do
processo penal contemporâneo. 36
Mais do que escrito, o processo penal egípcio era simbólico, gestual, talvez o único
exemplo dessa espécie de processo na história das civilizações organizadas em Estado.
Por tal razão, é assaz arriscado analisar o processo penal do antigo Egito com
quaisquer dos conceitos atuais. A um só tempo, não é lícito dizer que sua audiência
respeitava, nem que desrespeitava, por exemplo, os princípios da oralidade e imediação.
34 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8.
35 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8; cf., também, ROMEIRO, Jorge Alberto. Da
ação…, p. 39 [sem grifo no original].
36 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 8-9.
22

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Não é possível dizer que negasse a oralidade e afirmasse a escritura, ou que
desrespeitasse a imediação, impondo a intermediação do juiz com as provas: o processo
penal do antigo Egito simplesmente desconheceu esses princípios, porque era mágico. 37
Quanto ao princípio da publicidade, JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR ensina que o
processo penal do Egito antigo conheceu uma instrução, posto que escrita, sendo a
audiência de julgamento secreta. Não há notícias sobre o princípio da concentração.
Assim, resumindo, a importância do conhecimento do processo penal do antigo Egito
se justifica por dois fatos principais. O primeiro deles se refere à existência, reconhecida e
positivada pelo Estado egípcio, de verdadeiros princípios a orientarem o trabalho dos
julgadores; tratam-se da visão da justiça como um importante serviço público, em sua
melhor acepção e do Maât (equilíbrio das decisões). O segundo desses fatos é a
estruturação de um verdadeiro cerimonial de justiçamento, com características próprias e
ideologicamente afinadas com a filosofia egípcia.
Contudo, é preciso deixar claro que esse cerimonial não deixou traços no processo
penal ulterior, das sociedades organizadas em Estado. A simbologia e a magia da
audiência processual penal do antigo Egito são únicas. 38
37 Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 9. Segundo esse autor, um exemplo
freqüentemente apontado pela doutrina processual penal de procedimento penal oral no antigo Egito, o
julgamento dos mortos, não pode ser considerado de natureza processual penal. Esse ritual, que se
realizava às margens do lago Moeris, tinha natureza política e moral: com ele, os antigos egípcios
tencionavam examinar a conduta dos reis e administradores no dia de seus funerais.
38 O processo penal, no extremo oriente, tinha outras características, orientadas por filosofia toda
própria, conforme se percebe do texto de um documento chinês antigo, denominado TCHOUANG
TSOTCHOUEN, item 10, transcrito por GILISSEN: “Nas causas judiciárias, pequenas e grandes, se não se
puder estabelecer a evidência, é necessário decidir sempre segundo as circunstâncias”. Segundo esse
mesmo autor, a interpretação desse dispositivo também é clássica: “Segundo a interpretação do Tch’ouents’ieou
deve-se sondar os corações (as intenções) para estabelecer os crimes (Etienne BALAZS, Traité
juridique du’Souei Chou, Leidem, 1954)” (GILISSEN, John. Introdução…, p. 115).
23

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Seção B
A audiência processual penal greco-romana
§ 1º Grécia
Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, as características principais do processo penal
em Atenas foram a participação popular tanto no exercício da acusação, como no da
jurisdição, bem como as audiências orais e públicas. 39
Quatro eram, conforme JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, os tribunais criminais: a
Assembléia do Povo, o Areópago, e os tribunais dos Efetas e os dos Heliastas. 40
Hierarquicamente, o mais graduado desses tribunais era a “Assembléia do Povo”
(Ekklêsía), convocada ordinariamente dez vezes por ano com competência a mais
diversa. 41 No caso criminal, sua competência se referia aos crimes políticos mais
graves. 42 . Dada a gravidade dos crimes que julgava, o acusado, após a manifestação do
Conselho dos Quinhentos, 43 era levado diante da Assembléia do Povo por um arconte e
não tinha qualquer garantia de cunho processual ou material. 44
Em tese, todo o povo de Atenas era juiz na Assembléia do Povo, excluídos os
menores de dezoito anos, os não registrados no demos de origem, os escravos, as
mulheres e os estrangeiros. 45
A idéia de uma multidão incalculável é, entretanto, afastada por GUSTAVE GLOTZ, para
quem “era sempre uma fração do povo a que se apresentava. Pode-se avaliar em cerca
de 42 mil o número de cidadão em 431. A Pnice jamais poderia ter abrigado semelhante
multidão e, no entanto, ela era amplamente suficiente. Em tempo de guerra, a maior parte
dos adultos estava afastada de Atenas (...). Em tempo de paz, os campônios (...)
recuavam (...) diante de uma viagem por vezes longa e dispendiosa; os lenhadores de
Arcanas permaneciam nas matas do Monte Parnes, e os comerciantes dos povoados
distantes não abandonavam as suas lojinhas, salvo em ocasiões importantes; os
39
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 15.
40
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 13.
41
GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 129.
42
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 15 e ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O
processo…, p. 13.
43
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 34.
44
PLUTARCO, Vidas Paralelas apud MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 16.
45
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 196.
24

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habitantes do litoral não renunciavam de bom grado a uma ou duas jornadas de pesca.
Quando aos ricos, não gostavam de ser incomodados. Os cavaleiros hesitavam em deixar
as suas casas de campo de Colono para se misturar à multidão. Mesmo aqueles que
viviam na cidade nem sempre estavam dispostos a suportar o tédio de uma longa sessão
(...). Certas resoluções tinham de ser tomadas pelo que impropriamente se chamava de “o
povo completo” (ho dêmos plêthúôn); na realidade, em tais casos, o quorum era de seis
mil votos”. 46
As sessões da Assembléia do Povo começavam pela manhã, sendo sinalizado seu
início através do hasteamento de uma bandeira na colina da Pnice, local da reunião. As
deliberações deviam se encerrar até o fim do dia; um caso mais complexo justificava a
declaração de seu estado de permanência, durante o qual nenhuma outra discussão se
podia iniciar. 47
Com características de tribunal ordinário, apresentava-se o Areópago, ou Conselho de
Anciãos, qualificado como o mais antigo e famoso dos tribunais atenienses. 48
Foi estabelecido antes de Sólon, com caráter aristocrático, que aos poucos se foi
atenuando, 49 bem como com competência para os crimes graves, como o homicídio
premeditado, tentativa de homicídio que resulta em lesões corporais, de incêndio de casa
habitada e de envenenamento. 50 Seus juízes eram os arcontes, em número variado mas
não superior a 51 51 e seu procedimento introduziu algo muito importante e que tornar-seia,
com o passar dos anos, característica comum, embora inconsciente, da disciplina das
audiências processuais penais que se seguiram às gregas.
Trata-se do recurso cênico, utilizado conscientemente pelo aparelho judiciário
ateniense. No caso específico do Areópago, esse recurso consubstanciou-se na dedução
solene e teatral da acusação e na realização de sessões noturnas.
Quanto ao primeiro exemplo, segundo ENRICO PESSINA, o autor sentava-se numa
cadeira, denominada cadeira do ultraje, diante do acusado, este sentado na cadeira da
inocência. Olhando para o acusado, o acusador proferia um juramento solene, “escurando
46
GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 128.
47
GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 130.
48
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 13.
49
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 192.
50
GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 192.
51 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 13.
25

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as Eumênides (fúrias infernais)”.
52-53 Nesses exemplos, porém, o recurso fora consciente, pois as sessões noturnas, sob
luz que não a do Sol, visavam a evitar, por parte dos participantes dos julgamentos, o uso
da oratória vazia e da mistificação, bem como procuravam mascarar as expressões dos
julgadores diante do desenrolar da instrução.
54-55 Prossegue JORGE ALBERTO ROMEIRO, na descrição de outros recursos cênicos
utilizados pelos atenienses nas sessões de julgamento do Areópago: “eram defesos no
debate, que era público, oral e contraditório, os ornamentos e artifícios da retórica. A
severidade, o comedimento, a frieza mesmo, eram impostos aos litigantes na discussão
da causa. Insulado, por meio de uma corda, da assistência e guardando desta a distância
necessária para melhor impressioná-la, refletindo o triste palor do luar, o Areópago era
envolvido, aos olhos de quem o visse, em uma grande névoa de mistério”. 56
Esses recursos cênicos de controle da oratória, não há dúvida que tinham um
endereço certo: evitar a “perniciosa” retórica dos sofistas.
Dos tribunais dos Efetas, constituídos também por 51 juízes e de competência
jurisdicional imediatamente inferior ao Areópago, os três principais eram os seguintes: o
Palládion, o Delphínion e o Phreattús. O Palládion era competente no caso de homicídio
involuntário, de instigação ao homicídio, se a vítima é um cidadão e de “assassinato”,
voluntário ou não, de um meteco, estrangeiro ou escravo. 57 O Delphínion julgava, entre
outros, os crimes cometidos na guerra ou durante práticas desportivas. O Phreattús,
situado no litoral, era competente para julgar os crimes de homicídio premeditado
praticado pelos anteriormente banidos do território ático.
52
PESSINA, Enrico. Storia delle leggi sul procedimento penale, Nápolis: 1912 apud ROMEIRO, Jorge
Alberto. Da ação…, p. 47.
53
Cf. GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 194, que descreve a solenidade diferentemente: “No Areópago,
as partes punham-se de pé sobre dois blocos de rocha, a pedra da injúria (líthos húbreos) e a pedra da
implacabilidade (líthos anaiadeías) (...). Cada uma das partes tinha o direito de falar duas vezes. (...) Ao
descer da colina de Ares, o absolvido penetrava na gruta das Eumênides para pacificar as deusas e
agradecer-lhes, com um sacrifício, o favor recebido (...)”.
54
ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 47.
55
Cf., em BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 430: “Na Grécia, houve tempo em que
os oradores não podiam usar de exórdios, digressões, nem perorações para mover os juízes: aquele que
quisesse indispô-los ou enternecer, seria logo chamado à ordem; a Justiça repele a paixão e a fraqueza.
Sua máxima era: ‘Quod justum putant mansuet doceant, et docentem audiant’. ‘Quod si ab his aberrat
adrem a magistratu reducatur’: ‘Plato de legibus’”.
56
ROMEIRO, Jorge Alberto. Da ação…, p. 48.
57 GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 192.
26

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Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, esses tribunais não se mantiveram por muito
tempo: a evolução da democracia escravista ateniense foi aos poucos lhes diminuindo a
importância. 58
Competente para crimes menores, suas audiências processuais penais foram
caracterizados por cerimonial singelo, se comparado com as do Areópago, embora não
prescindissem da solenidade: “ A ação tem início com uma cerimônia dramática: os
parentes acercam-se de onde está o morto e plantam uma lança no outeiro sepulcral: é a
declaração de guerra. Ela provoca uma proclamação do rei (a prórrêsis) proibindo ao réu
os lugares sagrados e mesmo o acesso à ágora, até o dia do julgamento (...): é a
excomunhão. Faz-se o sumário de culpa em três sessões de contestação (prodikasíai)
celebradas em intervalos de um mês (...). É a céu aberto que se passa o julgamento, para
que os juízes e o acusador escapem do contágio da impureza do réu (...). Nesse dia, o rei
retira a coroa da cabeça (...). Antes de todos os debates, oferece-se um sacrifício, durante
o qual se imolam um bode, um porco e um touro; diante do altar, as duas partes prestam
solenemente um juramento declaratório sobre os fatos da causa”. 59
Por fim, o Tribunal dos Heliastas, com competência residual, caracterizou-se pelo
vário, mas sempre exagerado número de juízes, 60-61 escolhidos anualmente por sorteio
dentre os cidadãos atenienses e atendendo, como todos os outros tribunais de Atenas o
fizeram com menor intensidade, à medida em que se aprofundava a democracia
escravista, ao princípio timocrático: a participação como juiz estava condicionada à classe
social, que por sua vez era determinada pela fortuna do pretendente.
Suas sessões se verificavam em praça pública e ao Sol, por isso seu nome. 62 Suas
audiências eram presididas pela oralidade, publicidade, imediação e concentração e, por
oposição ao Areópago, admitiam o uso da retórica por parte das partes e de seus
representantes. Descreve-as GUSTAVE GLOTZ: “Chega, enfim, o dia da audiência. Cerca o
tribunal uma paliçada interrompida por uma porta de grades. (...) A sessão tem início de
manhã bem cedo. (...) Tudo tem início, como se passa também na Assembléia, com um
sacrifício e uma prece. (...) Concede-se, sucessivamente, a palavra ao autor e ao réu. (...)
58
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 16.
59
GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 193-194.
60
HÉLIE, Faustin. Traité de l’instruction criminelle, Paris: 1845, v. 1, p. 21 apud ROMEIRO, Jorge
Alberto. Da ação…, p. 48.
61
GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 196.
62 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 14.
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O julgamento (...) deve encerrar-se no próprio dia (...). É preciso, por conseguinte, andar
depressa. (...) O tempo é controlado por uma clepsidra (...). Nos processos públicos em
que se avaliam as sentenças, divide-se o dia de trabalho em três sessões, sendo uma
reservada à acusação, outra, ao réu, e a terceira aos juízes. Até cerca de 390, as
testemunhas devem fazer oralmente os seus depoimentos; depois disso, os depoimentos
são redigidos, com antecipação, e recitados pelo escrivão. (...) Enquanto duravam os
debates, os juízes desempenhavam o papel de jurados mudos e passivos. (...) Votavam
sem prévia deliberação, e o segredo do voto garantia a liberdade com que era dado. (...)
Depois de 390 (...) cada jurado recebia dois jetons de bronze, um inteiriço, para a
absolvição, o outro furado, para a condenação; atirava o que devia valer numa urna de
bronze (kúrios amphoreús) e o outro, como contraprova, numa urna de madeira (ákuros
amphoreús) (...). O arauto proclamava os resultados do escrutínio, e o presidente
pronunciava a decisão, obtida mediante maioria simples”. 63
JULIO FABBRINI MIRABETE, a propósito, assinala que em todos os tribunais atenienses,
após a instrução, os juízes votavam sem deliberação prévia, sendo que o empate era
considerado a favor do acusado. 64
É lícito, outrossim, registrar que o sistema judicial ateniense foi estruturado, em
grande parte, pela feição política vigente. A existência de grandes tribunais, nos quais os
mesmos personagens que definiam os destinos políticos e militares de Atenas julgavam
seus pares, é comprovação cabal disso.
Assim, é perfeitamente razoável afirmar-se que Atenas moldou seu sistema judicial a
partir de um explícito ponto de vista constitucional e é, talvez, o primeiro exemplo histórico
desse tipo de interação, ao menos de uma interação conscientemente realizada.
Reconhecendo essa feição popular, HEINRICH AHRENS, contudo, adverte que a morte
de Sócrates e as perseguições empreendidas contra Alcibíades, Pitágoras, Diógenes etc.
sugerem alguma falta de retidão na aplicação do Ordenamento jurídico-penal por parte
dos tribunais atenienses, ainda que caracterizados por ampla participação popular. 65
Exemplo: a partir de Clístenes, no Século VI a.C., evoluindo até o apogeu com
Péricles, por princípio constitucional, os tribunais atenienses haviam de funcionar como
simulacros da própria sociedade, com efetiva participação popular. Como princípio de
63
GLOTZ, Gustave. A cidade…, p. 200-203.
64
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 34.
65
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 112, nota 223.
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constituição da Cidade-Estado, a democracia escravista ateniense havia de presidir a
estruturação e funcionamento dos tribunais.
É o que escreve ANTONIO TRUYOL Y SERRA, ao se referir à teoria da democracia de
Péricles e Protágoras: “núcleo dessa concepção é a participação de todos os cidadãos na
vida política, chamada a criar neles um sentido de responsabilidade e uma livre aceitação
da subordinação de todos às exigências do bem comum. A igualdade de oportunidades
deve substituir os privilégios hereditários. No discurso de Péricles, há sobretudo uma fé
otimista no valor social da livre discussão e da espontaneidade individual”. 66
Assim, portanto, e resumindo, as mais relevantes contribuições, dentre tantas, do
processo penal ateniense, no âmbito da audiência, foram a explícita utilização de recursos
cênicos na estruturação das sessões dos tribunais e, à medida em que se desenvolvia a
democracia ateniense, a interação entre a constituição política do Estado e a estruturação
e funcionamento da máquina judicial.
§ 2º Roma
Citando GUGLIELMO SABATINI, ao mesmo tempo em que contesta essa versão, HÉLIO
TORNAGHI registra a existência de uma lenda segundo a qual três senadores romanos
foram à Grécia especialmente para conhecerem o processo grego e transpô-lo para
Roma. 67
Seja como for, a verdade é que o processo penal grego, ao menos no início do
processo penal romano, foi uma influência forte.
As dificuldades em estudar o processo penal romano são por demais conhecidas. Vão
desde as fontes, jamais abundantes e poucas vezes perfeitamente confiáveis, até a
característica de que o processo penal romano existiu quase sempre em fusão com o
respectivo ordenamento jurídico-penal. 68 Essa dificuldade é a mesma no que se relaciona
com o processo penal grego e egípcio.
Assim, a verdade, conforme afirma ALBERTO BURDESE, é que a evolução do processo
penal romano determinou e conformou o desenvolvimento do respectivo ordenamento
66
SERRA, António Truyol y. História…, p. 103.
67
TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 3, p. 469-470. A obra de GUGLIELMO SABATINI citada por
TORNAGHI é “Teoria das provas no direito judiciário penal” (Teoria delle prove nel diritto giudiziario penale,
1900-1915).
68
TUCCI, Rogério Lauria. Lineamentos…, p. 11.
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jurídico-penal. 69
ALBERTO BURDESE, que define o processo penal romano como o conjunto de atos
desenvolvidos pelos órgãos públicos ou sob o seu controle para a imposição de pena
criminal, 70 ensina que sua evolução partiu de uma função religiosa, a de restabelecer a
pax deorum. 71 Essa fase, dos primitivos monarcas de origem etrusca que governaram
Roma, até a Lei das XII Tábuas, corresponde, com maior sofisticação, embora, às
práticas punitivas primitivas.
HEINRICH AHRENS aponta como sinal dessa sofisticação uma mais nítida separação
entre as esferas estatal e individual do que a de povos contemporâneos dos romanos. A
intervenção do Estado se limitava a crimes 72 de traição (proditio) resistência violenta às
autoridades (perduellio) homicídio atroz (parricidium) incêndio, falso testemunho e ceifa, à
noite, de campos consagrados ao sustento dos deuses e do povo, todos esses, crimes
punidos com a morte. 73
Há, porém, já na Lei das XII Tábuas, algumas normas respeitantes ao processo e
outras à audiência judicial. 74
Nessa fase, é fundamento da persecução a coërcitio, definida como o poder
discricionário dos magistrados de cominar e aplicar sanções de caráter criminal. 75
Por essa razão e baseado em THEODOR MOMMSEN, ROGÉRIO LAURIA TUCCI anota que o
momento mais importante dessas práticas processuais iniciadas pelo próprio magistrado,
69 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241.
70 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
71 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
72 Cf., a diferenciação romana entre delito público e delito privado em ALVES, José Carlos Moreira.
Direito…, p. 265 (texto e nota n. 1.471): “Delito público é a violação de norma jurídica que o Estado
considera de relevante importância social. Assim, por exemplo, são delitos públicos a perduellio (atentado
contra a segurança do Estado), o parricidium (assassínio de homem livre). O Estado punia os autores dos
delitos públicos com poena publica (pena pública), imposta por Tribunais especiais (como as Quaestiones
Perpetuae), e que consistia na morte, ou na imposição de castigos corporais, ou em multa que revertia em
benefício do Estado [segundo se verifica dos textos, os jurisconsultos clássicos, em geral (e não,
invariavelmente ...) designavam o delito público com termo crimen, e o delito privado, com os vocábulos
delictum e maleficium (este, empregado mais raramente)]”.
73 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 134.
74 Da 1 a Tábua: “IV – Que um rico somente responda por um rico; por um proletário responda quem
quiser. V – Se as partes transigirem, que a demanda seja assim regulada. VI – Não havendo acordo, que o
magistrado conheça da causa antes do meio-dia, no comício ou no foro, depois da discussão entre os
litigantes. VII – Passado o meio dia, que o magistrado se pronuncie perante as partes presentes. VII –
Depois do sol posto, nenhum ato mais de processo” (Lei das XII Tábuas, sem referências, apud
ALTAVILLA, Jayme de. A origem…, p. 22).
75 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
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através da cognitio, 76 vinha a ser a audiência de interrogatório. 77
É o seguinte o trecho em que THEODOR MOMMSEN disserta sobre o assunto: “A lei não
assinalava nenhuma forma fixa nem para a abertura do juízo, nem, tampouco, para sua
terminação. O magistrado podia sobrestar e abandonar a causa em todo momento, e em
todo momento também podia renová-la; a cognição não consentia, por sua própria
natureza, que se desse uma absolvição tal que impedisse abrir novamente o mesmo
processo. O interrogatório do inculpado, interrogatório que já não se conhece no juízo
penal de época posterior, deve ter constituído o ponto central do procedimento primitivo,
porquanto nenhum interrogado podia negar-se a contestar o magistrado que o
interrogava”. 78
No mesmo sentido escreve ALFREDO VELEZ MARICONDE: “Não se conservaram traços
do procedimento imperante nessa época, embora pareça lógico admitir que se caracteriza
pela ausência de toda forma legal ou invariável, capaz de por limites à arbitrariedade do
julgador, que ao mesmo tempo tinha a suma do poder: a indagatória constitui a alma do
processo, e a defesa se exerce na medida em que o magistrado tem por bem concedê-
la”. 79
Essa parece ser a primeira contribuição efetiva do processo penal romano à
estruturação da audiência tal como se a conhece hoje. É nele que se caracteriza com
nitidez e autoridade incontrastável, ao menos no seio do processo, a figura do juiz, que
nas práticas punitivas primitivas apenas surgira.
O magistrado romano dessa fase encarna o imperium do Estado e nisso está toda sua
importância. Diferentemente do que ocorria na Grécia, a autoridade estatal está, nessa
fase do processo penal romano, encarnada numa pessoa. Conforme se viu acima, por
injunções constitucionais, a autoridade judiciária grega era uma assembléia, uma
76
TUCCI, Rogério Lauria. Lineamentos…, p. 109.
77
TUCCI, Rogério Lauria. Lineamentos…, p. 114.
78
MOMMSEN, Theodor. Derecho…, p. 224. Trecho original: “La Ley no señalaba ninguna forma fija ni
para la apertura del juicio, ni en rigor tampoco para su terminación. El magistrado podía sobreseer y
abandonar la causa en todo momento, y en todo momento también podía renovarla; la cognición no
consentía, por su propia naturaleza, que se diese una absolución tal, que impidiera abrir de nuevo el mismo
proceso. El interrogatorio del inculpado, interrogatorio que ya no se conoce en el juicio penal de época
posterior, debió constituír el punto central del procedimiento primitivo, por cuanto ningún interrogado podía
negarse a contestar al magistrado que le preguntaba”.
79
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 24-25. Trecho original: “No se han conservado trazas del
procedimiento imperante en esta época, si bien parece lógico admitir que se caracteriza por la ausencia de
toda forma legal o invariable, capaz de poner límites a la arbitrariedad del juzgador, que al mismo tiempo
tenía la suma del poder: la indagatoria constituye el alma del proceso, y la defensa se ejerce en la medida
que el magistrado tiene a bien concederla”.
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sociedade, menor embora, que toda a sociedade em que se inseria. Esse poder, portanto,
estava dissolvido entre muitos homens e não reunido nas mãos de um só. Em Roma ele
será concentrado, paulatinamente com maior intensidade, nas mãos de somente um
indivíduo.
Paralelamente a essa espécie de procedimento, em que a discricionariedade do
magistrado era a nota marcante, desenvolvia-se um processo comicial, diante de uma
assembléia de cidadãos, nos moldes da equivalente grega. 80 A diferença é que essa
assembléia se reunia após uma espécie de recurso por parte do acusado, a provocatio ad
populum. 81 É aqui que os romanistas identificam um marcante teor publicístico da
evolução do processo penal, visto que, naquele momento de sua evolução, o processo
civil era per legis actiones, 82- 83 arcaica forma de deduzir os pedidos em juízo.
THEODOR MOMMSEN, porém, observa que não foi precisamente no momento em que
passou a existir um procedimento comicial que os poderes de coërcitio do magistrado
romano foram efetivamente limitados. Ainda que tivesse de atuar em conjunto com os
Comícios, o juiz permanecia com poderes ilimitados. Somente com a anquisito, fruto da
evolução da sociedade romana, surgiram limitações. É o que ensina o importante
historiador alemão: “teve uma importância grande no desenvolvimento do procedimento
penal a circunstância de que para fazer possível uma decisão a respeito dos cidadãos,
era preciso dar, não só a sentença, senão também os fundamentos da mesma, as provas
da culpabilidade do condenado; pelo que, dado e depois da inquisição que sem
formalidades legais havia levado a cabo o magistrado, se fazia uso de um procedimento
penal preparatório, chamado anquisitio, no qual estava fixamente determinada a citação e
fixamente determinados os prazos, e onde se admitia, além da autodefesa, a defesa por
meio de terceira pessoa. (...) Não pode caber dúvida alguma de que se o direito romano
80 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
81 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 35.
82 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
83 Cf. a conceituação acerca do procedimento civil romano denominado per legis actiones em ALVES,
José Carlos Moreira. Direito…, p. 261-262: “O mais antigo dos sistemas do processo civil romano é o das
ações da lei (legis actiones) (...). Julgava-se (...) que ela (refere-se à denominação) decorria ou do fato de
as legis actiones se originarem da lei, ou, então, da circunstância de elas se conformarem com as palavras
da lei. (...) O processo das ações da lei é todo oral, quer diante do magistrado (in iure), quer diante do juiz
popular (apud iudicem). Caracteriza-se, principalmente, pela rigidez do formalismo a ser observado pelos
litigantes, a ponto de alguém – o exemplo é de GAIO (Inst. IV, 11) – perder a demanda pelo fato de haver
empregado em juízo a palavra uites (videira), ao invés do termo arbor (árvore), como preceituava a Lei das
XII Tábuas com relação à actio de arboribus succisis (ação relativa às árvores cortadas), e isso apesar de,
no caso concreto, as árvores abatidas terem sido justamente videiras”.
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chegou a construir em geral um procedimento penal regulado pela lei, as bases para esse
procedimento as deixou a anquisição”. 84
Tanto a audiência processual penal desenvolvida perante assembléia, essência desse
processo comicial, quanto o interrogatório do magistrado romano com o acusado de
crime, na primeira fase, parece lícito supor que se desenvolviam oralmente, com o contato
imediato do julgador com a prova. Tudo nos moldes das audiências processuais penais
da Grécia durante o mesmo período, excluído o caso especial do processo perante o
Areópago, em que as audiências tinham características cênicas especiais, conforme visto.
Essa conclusão se funda, em primeiro lugar, na fase de desenvolvimento do Estado
romano, nesse tempo ainda incipiente; em segundo, na filiação comum entre os
processos grego e romano.
J. M. OTHON SIDOU ensina que a oralidade era a tônica do processo romano, ao menos
durante o período republicano, afirmando que diversas características permitem
considerá-lo como tal. Assim, o livre convencimento, a imediação, a identidade, o
desenvolvimento dos atos processuais só em audiência, sem escrito, a irrecorribilidade
das decisões interlocutórias, com a concentração dos autos, a coisa julgada somente em
relação à sentença final etc. 85 Outros autores acrescentam a liberdade de meios de
prova, 86 o contraditório, 87 bem como a clara separação entre a fase instrutória e a fase
decisória, aquela perante o juiz e esta perante uma assembléia, 88 como outros sinais
desse predomínio da oralidade no processo penal romano durante o período republicano.
No Século IV a. C., destaca-se das assembléias comiciais um júri extraordinário
84
MOMMSEN, Theodor. Derecho…, p. 225-226. Trecho original: “tuvo una importancia grande en el
desarrollo del procedimiento penal la circunstancia de que para hacer posible una decisión respecto de los
ciudadanos, era preciso dar, no solo la sentencia, sino también los fundamentos de la misma, las pruebas
de la culpabilidad del condenado; por lo que, al dado y después de la inquisición que sin formalidades
legales había llevado a cabo el magistrado, se hacía uso de un procedimiento preparatorio, llamado
anquisitio, en el cual estaba fijamente determinada la citación y fijamente determinados los plazos, y en
onde se admitía, además de la autodefensa, la defensa por medio de tercera persona. (...) No puede caber
duda alguna de que si el derecho romano llegó a construír en general un procedimiento penal regulado por
la ley, las bases para este procedimiento las echó la anquisición”.
85
SIDOU, J. M. Othon. A vocação…, p. 133.
86 GILISSEN, John. Introdução…, p. 714.
87
Cf., em GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades…, p. 30: “O processo era dominado pelo
contraditório; a prova dos fatos competia às partes, sem que o juiz tomasse qualquer iniciativa; se o réu se
confessava culpado, era condenado sem mais indagações. A publicidade e a oralidade imperavam, nesta
fase”.
88
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 150-151.
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destinado à repressão de crimes que atentassem contra o interesse coletivo. 89 Essa é a
base do futuro sistema de juízes ordinários permanentes e pertence a uma fase
denominada quaestiones perpetuae.
Esse sistema, regulado pela Lex Iulia iudiciorum publicorum, de Augusto,
freqüentemente classificado como acusatório, pois a iniciativa do processo penal ficava ao
encargo de particulares, estabelecia uma base à finalidade de repressão regular da
criminalidade. 90 Sua audiência era predominantemente pública, oral, com contato direto
entre o órgão julgador e as provas, e desenvolvia-se perante um colegiado de juízes
regulares. 91
Conforme dito, a finalidade precípua da fase das quaestiones perpetuae era propiciar
uma repressão regular da criminalidade. Com o tempo, a iniciativa meramente privada
dos crimes, denominada accusatio, mostrou-se um desserviço à repressão tal como
esperada. 92 Por isso, a fase imediatamente posterior, a da ordo iudiciorum publicorum,
manteve as mesmas características anteriores, inclusive com relação à audiência,
excetuando a iniciativa do processo, que já não era mais do cidadão.
A cognitio extra ordinem – última fase do desenvolvimento do processo penal romano
– se caracterizou pela dominação do processo pelo magistrado e pela predominância das
formas escritas, mostrando a direção do processo inquisitivo. 93 A discricionariedade da
primeira fase e a liberdade das formas das fases das quaestiones perpetuae e ordo
iudiciorum publicorum foram substituídas por uma praxe cada vez mais vinculante e
estritamente regrada por disposições imperiais. 94
89
BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
90
BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
91
BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
92
Cf., em GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades…, p. 30-31: “A acusação tornou-se, na realidade,
fonte de graves injustiças, principalmente quando se dispôs que um quarto da multa paga pelo condenado
fosse atribuída ao acusador. (...). A produção de provas, confiada à parcialidade das partes, não oferecia
garantias suficientes para o imputador que não dispusesse de meios (...). Foi assim necessário, de um lado,
pôr cabo à corrida às acusações e, de outro lado, fazer sentir com maior peso a autoridade do Estado. As
sanções fixadas contra o acusador de má-fé (...) tornaram-se mais severas (...). Esse sistema (...) continha
(...) sério defeito: a cominação de sanções tão graves a cargo do acusador fez com que as acusações
diminuíssem, e não apenas as infundadas (...). Tal circunstância (levou) o Estado a intervir ex officio,
inicialmente naqueles casos particulares em que mais evidente se demonstrava o interesse público e,
gradativamente, de maneira geral, pela instituição de funcionários públicos, encarregados de promover a
persecução penal (...). Foi assim que se organizou uma polícia oficial, fortemente centralizada, com funções
tipicamente judiciárias, enquanto o espírito policial do povo foi desaparecendo (...). O sistema acusatório
puro entrava em crise (...)”.
93
BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
94 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246.
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A respeito do funcionamento dos tribunais romanos, sobretudo no que respeita às
suas audiências e ao comportamento dos advogados, juízes e acusados, JÉROME
CARCOPINO tece interessantes considerações: “Uma preciosa indicação de Marcial revela
que nos dias fastos os tribunais ordinários atuavam sem cessar desde o amanhecer até o
final da quarta hora (...), o que à primeira vista limita as audiências a três de nossas horas
no inverno e as prolonga por cinco horas seguidas no verão. (...). Na época de Marcial era
comum o advogado de uma das partes reclamar e obter dos juízes pelo menos seis
clepsidras só para si (...). Como podemos deduzir de uma passagem de Plínio, o Jovem,
que cada uma dessas clepsidras – cuja igualdade de fluxo postula a relação com o
horário dos equinócios – devia escoar-se em cerca de vinte de nossos minutos, resulta de
tal hábito que uma só defesa preenchia mais ou menos o tempo de uma sessão no
inverno e que pelo menos outra sessão, com a réplica e o desfile das testemunhas, era
indispensável para concluir-se o processo. (...) Durante (...) todo o tempo para os
processos criminais, a Urbs se consumia com a febre judiciária que se apoderava não só
dos litigantes ou dos acusados, mas também de seus advogados e da multidão de
curiosos imobilizados durante horas à volta dos tribunais, pela avidez do escândalo ou
pelo gosto das controvérsias oratórias. Tais audiências não eram uma sinecura para
ninguém. Exauriam a todos: litigantes e testemunhas, juízes e advogados, sem contar os
espectadores. (...). Numa e noutra eventualidade, magistrados e público se apinhavam, e
era numa atmosfera sufocante que se desenrolavam os debates. Para cúmulo do
infortúnio, a acústica era lamentável, o que obrigava os advogados a redobrar os
esforços, os juízes a redobrar a atenção, os espectadores a redobrar a paciência. Muitas
vezes a voz tonitruante de um dos defensores, enchendo o vasto saguão, encobria as
controvérsias das outras seções; (...). Ademais, para aumentar a cacofonia, intervinha o
entusiasmo estipendiado da claque, que, à imitação de Larcius Licinus, advogados
impudentes se habituavam a levar aos processos que desejavam ganhar; com tal prática
(...) pretendiam tanto impressionar o júri como servir à própria reputação”. 95
O aspecto relevante do desenvolvimento do processo penal romano, no que toca à
audiência processual penal, é precisamente o sentido e a direção desse desenvolvimento.
Mais especificamente, o que esse desenvolvimento tinha de “premonitório”, por assim
dizer.
Explique-se: a evolução do processo penal romano foi no sentido da
95 CARCOPINO, Jérome. Roma…, p. 223-226.
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profissionalização dos órgãos judiciários e da positivação das praxes procedimentais,
tendo essas medidas o escopo de instrumentalizarem uma regular repressão da
criminalidade. Como sub-produto dessa profissionalização e regramento, o processo
penal caminhou na direção da inquisitividade. A inquisitividade, por sua vez, trouxe um
cada vez mais profundo desinteresse pela audiência processual penal, especialmente
pela audiência de julgamento. Nascia o processo verdadeiramente escrito.
Essa direção do processo penal romano foi premonitória. Interrompida pelas invasões,
repetiu-se, depois, como tragédia.
Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, essa tragédia somente não ocorreu entre os
romanos dado que possuíam “um secreto espírito de humanidade e de prudência”, que
preservou a pessoa do acusado da verdadeira barbárie que tanto tempo depois ocorreria. 96
96 MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 22.
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Seção C
A audiência processual penal bárbara
A fragmentação do império romano se deu aos poucos, conforme é sabido, através
das diversas invasões bárbaras. Da mesma maneira, o processo penal romano foi sendo
tomado pelas práticas punitivas dos invasores, que o foram paulatinamente
descaracterizando.
A influência principal das novas práticas punitivas verificou-se, conforme é notório, no
terreno da atividade instrutória. Enquanto no processo penal romano as provas
obedeciam a um princípio de racionalidade – ao menos racionalidade conforme se a
entende hoje – as provas bárbaras eram caracterizadas, comparativamente com as
provas romanas, por certa dose de irracionalidade.
Contudo e antes de prosseguir, é preciso fazer um esclarecimento. Está claro que a
influência das práticas punitivas bárbaras foi no sentido de uma certa irracionalização da
atividade probatória. Essa direção, porém, deve ser justamente compreendida.
Em primeiro lugar, irracionalização corresponde, aqui, à própria visão romana,
claramente pejorativa, dos invasores como bárbaros. Por tal razão, deve ser
compreendida cum granum salis.
Assim, as provas irracionais tinham como base dois valores de grande importância: a
igualdade formal entre as partes e a resposta divina, de determinação do resultado da
prova. Aliás, era da igualdade formal garantida entre as partes que nascia a possibilidade
de prestação do favor divino. Esta é, decerto, a mais relevante característica da audiência
processual penal bárbara.
É justa, nesse particular, a observação de MICHEL FOUCAULT: “O ordálio que submetia
o acusado a uma prova, o duelo no qual se confrontavam acusado e acusador ou seus
representantes, não eram uma maneira grosseira e irracional de ‘detectar’ a verdade e de
saber o que realmente tinha acontecido quanto à questão em litígio. Eram uma maneira
de decidir de que lado Deus colocava naquele momento o suplemento de sorte ou de
força que dava a vitória a um dos adversários. O êxito, se tivesse sido conquistado
conforme o regulamento, indicava em proveito de quem devia ser feita a liquidação do
litígio. E a posição do juiz não era a de um pesquisador tentando descobrir uma verdade
oculta e restituí-la na sua forma exata, devia sim organizar a sua produção, autentificar as
formas rituais na qual tinha sido suscitada. A verdade era o efeito produzido pela
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determinação ritual do vencedor”. 97
Em segundo lugar, é preciso sublinhar que essa relativa irracionalidade dos povos
bárbaros é o resultado histórico da influência dos gregos e de sua filosofia. Com efeito,
quando se iniciaram as “invasões bárbaras”, os povos invasores já viviam uma cultura
fortemente influenciada pelos gregos, que nas suas terras, navegando pelos mares do
norte, penetraram.
Antes dessa influência, os bárbaros viviam um ordenamento jurídico-penal
caracterizado por uma muito própria racionalidade e influenciado pela moral.
Segundo HEINRICH AHRENS, entre os germânicos, por exemplo, em seus primeiros
tempos, tiveram relevo as assembléias deliberatórias, presididas pelos príncipes e pelo rei
e que decidiam racionalmente. 98 No ordenamento jurídico-penal haviam os crimes
cometidos diretamente contra a comunidade (proditores ou transfugae) os que revelavam
a maldade de um membro só (ignavi, imbelles, corpore infames) e os que produziam dano
a uma só pessoa. Enquanto os primeiros admitiam uma composição pecuniária, os
segundos eram punidos até com a morte. Aqueles, isto é, os crimes que afetavam a
ordem pública, admitiam a venganza, ou talião (rache) e a pena mais grave, a perda da
paz. Os parentes não eram compelidos a tomar parte na vingança de sangue, salvo em casos
especiais, como o homicídio, em que os parentes do morto eram obrigados, para se
conservarem moralmente dignos, a vingar o morto com sangue ou com uma composição,
juridicamente taxada. 99-100 Essas assembléias, aliás, eram marcadas pela racionalidade –
orientada pelo princípio moral – e pela objetividade, tal como hoje seria concebida. 101
Essa relevância do aspecto moral, de respeito pela palavra empenhada pelo homem,
é destacada por ANTONIO PERTILE: “quando alguém afirmava um fato em juízo, sua
97
FOUCAULT, Michel. “A casa dos loucos”, em Microfísica…, p. 114.
98
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.
99
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.
100
Cf. PRADO, Luiz Regis. Multa…, p. 32-34: “A composição judicial (...) distinguia três espécies
principais: a) Wergeld (...) – composição paga ao ofendido ou ao seu grupo familiar (Sippe), a título de
reparação pecuniária (indenização do dano); (...) preço do homem (...) (Manngeld/MannBusse), devido
como pagamento do sangue (...) (Blutgeld); tarifa de carne humana (Nonnulli dicunt homagium pretium esse
hominis interempti). (...) b) Busse – corresponde à soma (preço) que o delinqüente pagava à vítima ou à sua
família, pela compra do direito de vingança (Racherecht); por ela, aquele se libertava da vingança. (...) Era o
preço da composição da Faida. (...) c) Friedgeld, Friedsgeld, Brüche, Wette, (dinheiro da paz ou preço da
proteção) – na forma latina medieval fredum ou fredus (...) – consistia no pagamento feito ao chefe tribal, ao
tribunal, ao soberano ou ao Estado, como preço da paz. (...) Era devido por violação da paz (ordem pública)
ou pela intervenção conciliatória do Estado, garantidora de protetção contra a vingança do ofendido. (...)”
101
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.
38

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asserção se tinha por veraz, de modo que não se a podia destruir com outra contrária ou
com argumentos humanos, senão só recorrendo a uma ordem superior e fazendo intervir
direta ou indiretamente a divindade: isto é, por um sistema de provas morais ou
aparentes, cujo resultado resolvia sem mais a questão, e que tinha preferência sobre toda
outra espécie de provas”. 102
Com a influência dos gregos, a racionalidade com base moral dos germânicos foi
sendo paulatinamente substituída pela transferência, para entidades divinas, que
protegeriam os homens, das decisões em casos de conflitos. 103
Tanto isso é verdadeiro que, segundo JOHN GILISSEN, nas legesbarbaorum,
influenciadas, de certa maneira, pela filosofia grega, o processo penal, que se desenvolvia
acusatório, através de uma queixa (chrane calcium) pronunciada pelo ofendido ou um seu
sucessor, após a admissão da acusação, previa uma atividade instrutória racional,
baseada na prova testemunhal. Somente se essa prova fosse impossível, por inexistirem
testemunhas, por exemplo, é que o processo tomava uma outra direção. Nesse caso, o
acusado tinha duas opções para salvar-se da acusação: o pagamento de um preço
tabelado pelas leges barbaorum (sendo a Lex Salica a mais antiga delas) dependendo do
caso, 104 ou a execução de um ordálio. 105 Está clara, aqui, a solução de compromisso
entre uma prática penal puramente bárbara e outra influenciada pela idéia da proteção
divina aos justos.
Feitos esses esclarecimentos, é possível seguir adiante.
A descaracterização do processo penal romano, no sentido de uma certa
irracionalidade religiosamente orientada, deveu-se, em grande parte, à estruturação da
102
PERTILE, Antonio. Storia del diritto italiano, 2ª ed., Turim: 1900, p. 319 apud MARICONDE, Alfredo
Velez. Estudios…, p. 53. Trecho original: “cuando alguien afirmaba un hecho en juicio, su aserción se tenía
por veraz, de modo que no se la podía destruir con otra contraria o com argumentos humanos, sino sólo
recurriendo a un orden superior e y haciendo intervenir directa o indirectamente a la divindad: esto es, por
un sistema de pruebas morales o aparentes, cuyo resultado resolvía sin más la question, y que tenía
preferencia sobre toda otra especie de pruebas”.
103
MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vida do Direito”, em Estudos…, p. 158-188.
104
Cf., em ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 44-45, explicação acerca de cada um
dos “preços” (gelde) entre os visigodos: “Os crimes contra o indivíduo, – se afetavam a pessoa, eram
punidos pelo wehrgeld (composição ou dinheiro de proteção); – se afetavam a propriedade, eram punidos
pelo widrigeld (compensação ou dinheiro de retorno). O wehrgeld era a soma em dinheiro ou multa da
reparação da ofensa; o widrigeld era a soma em dinheiro ou multa da reparação da ofensa; o widrigeld era a
soma em dinheiro para indenização dos prejuízos e danos, além da restituição da coisa, sempre que
possível fosse. No wehrgeld, a soma era calculada, não só pela lesão corporal, como pela qualidade do
ofendido. O culpado que não pagasse o wehrgeld ou o widrigeld era excluído da sociedade (bannum) e o
ofendido podia declarar-lhe o duelo (faida, guerra) visto que o culpado, que não se livrava por esse
pagamento, era considerado perturbador da paz pública (freda)”.
105
GILISSEN, John. Introdução…, p. 178-179.
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justiça entre os bárbaros. Os graus de civilização dos povos envolvidos eram
profundamente diversos, conforme se sabe.
A sofisticação da civilização romana se refletia no seu processo penal. A última fase
de desenvolvimento do processo penal romano foi a da cognitio extra ordinem,
caracterizada por um processo de cunho inquisitório, altamente regulado, e dominado por
uma magistratura profissional, afastado o caráter popular da justiça. Conforme se viu
acima, esse paulatino afastamento se deu com o escopo de realizar uma melhor
repressão da criminalidade. 106
Ao contrário, a justiça entre os bárbaros estava ainda num estágio inferior. Ela ainda
tinha, entre os germânicos, um nítido caráter popular, pois era administrada, conforme
ALFREDO VELEZ MARICONDE, por uma assembléia de homens livres, denominada
conventus, mallus, mallum ou placitum e cujo presidente era o príncipe ou chefe da
tribo. 107
Essa feição popular da justiça bárbara teve como conseqüência imediata uma
inadaptação dos juízes bárbaros às rígidas regras processuais penais dos romanos.
Segundo HEINRICH AHRENS, com a recepção do Direito Romano, o processo
germânico continuou formalmente como era dantes, isto é, com a direção do processo por
um juiz e a participação popular, 108 tal como o processo penal romano durante a
República. 109
Em seus primeiros tempos, ainda segundo esse autor, o tribunal era formado pela
assembléia cantonal, comandada pelo prínceps.
PAUL OURLIAC observa que essa assembléia não pronunciava, a rigor, a sentença:
confirmava-a, aclamando-a, ou infirmava-a, murmurando sua inconformidade; 110
GREGÓRIO DE TOURS, conforme PAUL OURLIAC, dá exemplos desse procedimento
decisório. 111
Entre os francos, presidia-a um centenarius ou tunginus (Hunne) que funcionava junto
a um mallus – daí Malberg, que significa “lugar de tribunal” – formado por centenas de
homens, dentre eles somente sete sentados, reunidos estes na qualidade de homens de
106 BURDESE, Alberto. Manuale…, p. 241-246 e nota n. 89.
107 MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 51.
108 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
109 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 162.
110 OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
111 OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
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direito que davam a sentença. Esses homens, que eram os únicos autorizados a
pronunciarem sentença (legemdicere) eram denominados rachinburgen ou consilium
ferentes. 112 Nessa época, criaram-se as figuras do conde e seu auxiliar, denominado
vicarius, que percorriam o país atuando ao lado do centenarius local. 113 Mais tarde, conde
e vicarius substituíram a figura do centenarius, como forma de se aumentar a autoridade e
força do poder central. Esse aumento do poder do conde e do vicarius, com o tempo,
serviu para arrefecer o caráter popular da justiça entre os francos. 114
Com o passar do tempo, essa organização também se foi sofisticando, embora por
caminhos diferentes dos trilhados pelos romanos: a evolução do processo penal bárbaro
também foi no sentido da profissionalização da justiça, embora se mantivesse a
participação popular, dividido seu poder com outros funcionários reais. 115
O importante é que a organização predominantemente popular da justiça entre os
bárbaros, por inadaptação às regras romanas relativas à prova, acabou por derrogá-las. É
que às assembléias cantonais germânicas o sistema racional e regrado de provas dos
romanos parecia a um só tempo frágil e complicado e gerava, aos seus olhos, decisões
pouco naturais. Por essa razão, segundo PAUL OURLIAC, os germânicos passaram a
apelar para os juízos de Deus, inicialmente formados pelos juramentos purgatórios e
pelas ordálias ou, no masculino, ordálios, 116 palavras que, segundo JOHN GILISSEN,
derivam do alemão urteil, que significa decisão, sentença. 117 O apelo às divindades,
essência dessas provas, é clara influência grega.
Segundo HEINRICH AHRENS, desde a fase primitiva, quando as práticas punitivas de
outros povos ainda se encontravam em estágio anterior de desenvolvimento, os
germânicos já praticavam a composição. Essa prática se limitava aos crimes que
causavam dano a uma só pessoa, pois os que afetavam a comunidade e os que
revelavam maldade de seu autor, podiam ser punidos com a pena de talião ou a morte,
dependendo da gravidade do mal praticado. 118 Essa distinção entre crimes públicos e
privados, que incluía mais uma categoria, a dos crimes que indiciavam maldade de seu
112 Cf. AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334 e OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
113
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
114
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
115
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
116
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
117
GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.
118
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.
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autor, sugere, segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, que houve influência do ordenamento
jurídico-penal romano no respectivo ordenamento bárbaro ainda antes das invasões. 119
Essa composição, conforme HEINRICH AHRENS, era decidida em uma audiência
marcada pela objetividade. 120 Essa objetividade, entre outras conseqüências,
determinava que a confissão do acusado evitasse qualquer forma de instrução: era prova
plena de culpabilidade. 121
Seja como for, está claro que a audiência processual penal dos germânicos era
caracterizada pela objetividade, simplicidade e ampla participação popular, que aos
poucos se foi restringido no sentido da participação indireta, por representantes, cujos
primeiros exemplos são, conforme visto, os rachinburgen ou consilium ferentes,
destacados dos demais por que podiam deliberar sentados, tendo em vista sua
respeitabilidade e, além disso, um maior conhecimento das regras jurídicas e da
tradição. 122
Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE e também conforme já visto, a outra
característica da audiência processual penal entre os germânicos, por influência grega,
era a prévia colocação da causa da justiça sob a proteção das divindades. 123
Tal colocação, ainda segundo esse autor, é comprovada pela existência de dois
procedimentos entre os germânicos: o ordinário e o extraordinário. 124 Este último, dado
que se aplicava aos criminosos apanhados infraganti, prescindia da proteção e juízo das
divindades. A razão disso é clara: as evidências surgidas do flagrante eram suficientes
para darem a certeza da culpa do criminoso. Já no procedimento ordinário, em que os
juízes eram privados da evidência do flagrante, seria melhor que se apoiassem em juízos
divinos.
A invocação da proteção divina se verificava através de cerimônias religiosas
realizadas no início de cada audiência. 125
A queixa do ofendido não era exatamente no sentido atual: ao invés de pleitear à
119
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 51-52.
120
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 245-246.
121
GILISSEN, John. Introdução…, p. 178-179. GILISSEN descreve esse procedimento de forma
diversa, já vista.
122
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
123
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.
124
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.
125
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.
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assembléia cantonal o reconhecimento de seu direito, seja a punir ou a ver punido seu
ofensor, seja à indenização pelos danos, o autor visava antes a cessação da injustiça que
lhe infligia o ofensor, que tinha o ônus de demonstrar sua inocência, da mesma maneira
que o ofendido tinha o de demonstrar que estava sendo vítima de injustiça. 126
Desse ônus de provar-se inocente, de livrar-se das acusações, o requerido se liberava
seja através de juramentos purgatórios, seja através de juízos de Deus ou ordálios. 127 A
essa atitude dos bárbaros perante a justiça foi dada a denominação de “Sistema das
Provas Irracionais”, que vigorou desde a derrocada do Império Romano até os Séculos XII
e XIII, quando foi condenado pela Igreja. JOHN GILISSEN observa que exemplos desse
sistema puderam ser encontrados na Inglaterra e na Rússia até fins do Século XIX,
embora seja certo que ele entrou em crise a partir do Século XIII. 128
O juramento purgatório, segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, baseia-se na crença de
que Deus, por saber do passado, tem condições e interesse de punir quem jura em
falso. 129 Por isso, ao jurar, o acusado invocava para si a vingança de Deus, no caso de
estar a mentir. 130
Em casos mais graves, era necessário, para a validade do ato, que a parte se fizesse
acompanhar por outras pessoas, de notória idoneidade, que juntamente com ela juravam:
eram os “cojurantes” ou “compurgantes”. Já há exemplos de juramentos purgatórios na
Bíblia, 131 mas eles se tornaram mais freqüentes entre os bárbaros, sendo notório o
exemplo, citado por GREGÓRIO DE TOURS, de Fredegunda, que para livrar-se da acusação
de adultério precisou jurar sua inocência com três bispos e trezentos nobres como
“cojurantes”, somente assim satisfazendo seu marido. 132
Além da realização das maldições que o “jurante” imprecava contra si, de resto não
verificável, quem jurava em falso sofria, segundo as leges barbaorum, punições diversas.
Tinha, por exemplo, suas mãos decepadas. 133
Não é preciso salientar que os juramentos purgatórios, como quaisquer dessas
126
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 52.
127
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 53.
128
GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.
129
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 53.
130
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 53.
131
Livro dos Números, 5, 11-31.
132
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
133
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
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provas, deviam realizar-se em audiência solene e pública, com obediência de estritas
formalidades, para que seu juramento tivesse valor jurídico. Assim, além dos casos em
que eram necessários os compurgantes e confirmando o caráter religioso dessa prova,
era uma formalidade muito comum o juramento sobre relíquias de santos. 134
Um exemplo dessas normas é o seguinte trecho de um juramento de calúnia do Foral
do Freixo, de 1.152, transcrito por JOHN GILISSEN: “Quem intentar uma ação dessas
(homicídio por traição) jure com três parentes dos mais próximos que tiver na vila em
como não o demanda por qualquer outra malquerença mas que o acusado matou ou feriu
o seu parente por ferida de onde veio a morrer; e se não tiver parentes, jure com três
vizinhos. E se não fizer este juramento, o acusado não terá que responder (...) Quem ferir
o seu vizinho com pedra ou com pau pague vinte morabitinos se (o autor e conjuradores)
firmarem e se não firmarem, jure (o acusado) com cinco vizinhos (que está inocente)”. 135
Segundo JOHN GILISSEN, essa espécie de prova, após cair em desuso no processo
penal, manteve-se ainda no processo civil na forma de juramento litisdecisório. 136
Quanto aos ordálios, o prestigiamento divino é pedido e verificado de maneira mais
direta. Baseavam-se na crença na proteção de Deus aos justos e no desamparo aos
injustos. De fato, consta da Primeira Epístola de São Pedro (cap. 3, v. 16: “sejam
confundidos aqueles que ultrajam o vosso bom comportamento em Cristo”. Dois eram os
tipos de ordálios: os unilaterais e os bilaterais. Ambos interessam ao tema da audiência
porque se verificavam durante uma cerimônia especificamente convocada para tal fim, na
qual a igualdade formal das partes era de vital importância para a validade da prova.
Segundo JOHN GILISSEN, eram exemplos de ordálios unilaterais a prova do ferro em
brasa, da água fervente, da água corrente, do cadáver etc. 137 As provas do ferro em
brasa e da água fervente eram semelhantes: no caso do ferro em brasa, devia o réu
segurar, com as mãos nuas, um objeto de ferro em brasa e dar nove passos segurando-o;
da mesma maneira com a água fervente: deveria mergulhar uma das mãos num pote
cheio dela e assim permanecer, por certo tempo. Nos dois casos, se dentro de três dias
134
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
135
SEM AUTOR, Coleção de textos de direito português, I, Foraes, Coimbra, 1914, 70, apud
GILISSEN, John. Introdução…, p. 722-723. Trecho original: “Et qui istam uocem (aleiuoso traidor)
demandauerint primum iuret cum III parentes los magis circa qui in tota la uila fuerint qui lonon demanda por
outra malquerencia mais que matador en fridor foi de seo parente onde morreo, et si parentes non habuent
cum III uicinos. Et si istum non iurar nom respondeat illi (...) Qui ferir sua uicino cum petra antcum fuste
pectet XX mo si firmarem et si iuret cum V uicinos”.
136
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.
137 GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.
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os ferimentos decorrentes das queimaduras permanecessem com aspecto ruim, era
considerado culpado. 138
A prova da água corrente, conforme atesta JOHN GILISSEN, já era praticada entre os
povos primitivos e baseava-se na crença de que o rio recusaria o impuro, mandando-o à
tona e aceitaria o puro, tragando-o para o seu fundo. 139 Nos mais antigos “códigos”
cuneiformes, como o de “Ur-Namur” (2.040 a.C.), o de “Esnunna” (1.930 a.C.) e o de
“Hamurabi” (1.694 a.C.), já eram descritos os ordálios da água corrente.
Assim, consta no de “Ur-Namur: “Se um cidadão acusa um outro cidadão de feitiçaria
e o leva perante o Deus rio [e se] o Deus rio o declara puro, aquele que o levou”; 140 e no
de “Hamurabi”: “Se alguém imputou a um homem atos de feitiçaria, mas se ele não pôde
convencê-lo disso, aquele a quem foram imputadas as atividades de feitiçaria, irá ao Rio;
mergulhará no Rio. Se o Rio o dominar, o acusador ficará com a sua casa. Se este
homem for purificado pelo Rio, e se sair são e salvo, aquele que lhe tinha imputado atos
de feitiçaria será morto; aquele que mergulhou no Rio ficará com a casa do seu
acusador”. 141
Na prova do cadáver (em alemão: bahuprobe) o réu deveria tocar um cadáver
(provavelmente com arma branca) sem que ele sangrasse. 142
Essas provas mantiveram-se, tanto na Alemanha quanto na Suíça, até o Século XVI.
Os exemplos mais célebres de ordálios bilaterais eram o iudicium crucis e o duelo
judicial.
No iudicium crucis, ou “julgamento da cruz”, surgido na época carolíngia, as partes
eram levadas frente à frente e, numa cerimônia especial, faziam suas alegações e
levantavam os braços, detendo-os em posição de cruz, isto é, ambos horizontais em
relação ao chão. Nessa posição deviam permanecer até que algum dos dois se cansasse
e deixasse cair os braços antes do outro, sendo considerado o perdedor. 143
O ordálio mais comum, entretanto, era o duelo judiciário. Nele, também realizado num
cerimônia especial, em que o favor divino era invocado solenemente, as partes,
138
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
139
GILISSEN, John. Introdução…, p. 35-36.
140
SZLECHTER, E. “Le code de Ur-Namu”, em Revue d’assyriologie, n. 19 (1955), p. 169-177 apud
GILISSEN, John. Introdução…, p. 64.
141
FINET, A. Le code de Hammurapi: Introduction, traduction e annotations. Paris, 1973, apud
GILISSEN, John. Introdução…, p. 65.
142
GILISSEN, John. Introdução…, p. 715.
143 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.
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pessoalmente ou representadas por “campeões”, duelavam até que surgisse um
vencedor. 144
Há diversas definições acerca dos duelos ou combates judiciários, como a de PEDRO
SÁNCHEZ, transcrita por L. CABRAL DE MONCADA: “Duelo é uma batalha singular de duas
pessoas, que se faz para que se expresse o juízo de Deus, que declare a verdade
daquele que tem justa causa com a vitória”. 145
O que tem relevo nessa espécie de juízo de Deus, previsto em diversas das antigas
legislações – como forais do “Freixo” (1.152), de “Urros” (1.182) e “Santa Cruz” (1.225),
todos de Portugal – é que eram essenciais, para a validade do duelo, que ele fosse
cercado de formalidades, dirigidas para que as partes tivessem paridade em armas, o que
permitiria, aos circunstantes, a certeza de que a vitória de um ou de outro dos
contendores se deu por obra de Deus. Ainda segundo L. CABRAL DE MONCADA, as leis
dispunham acerca das circunstâncias de tempo, lugar, modo de produção dessa prova,
bem como seus efeitos. 146 Primeiramente regulava-o a tradição antiga; depois, a lei
passou a ser sua fonte exclusiva.
Importante, destarte, que o duelo se realizasse em audiência previamente
determinada para tal fim, assegurada a igualdade entre as partes.
Segundo JOHN GILISSEN, esse ordálio sobreviveu até os Séculos XIV e XV. 147 Com
características de procedimento apto apenas a demonstrar nobreza e caráter, o duelo
permaneceu, ainda segundo JOHN GILISSEN, até os Séculos XIX e XX.
148-149 Conforme se percebe com nitidez, o chamado “Sistema das Provas Irracionais”, posto
tenha subvertido a organização das provas tal como praticada entre os romanos,
manteve, mutatis et mutandis, a estrutura da audiência que vigia em Roma durante a fase
republicana. Entre os bárbaros, portanto, a audiência continuava a ser pública,
144 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.
145
SÁNCHEZ, Pedro. Historia moral y philosophica. Toledo: 1590, apud MONCADA, L. Cabral de. “O
duelo na vida do direito”, em Estudos…, p. 129, nota 1. Trecho original: “Duelo es una batalla singular de
dos personas, que se hace para que se espresa el juicio de Dios, que declare la verdad de aquel que tien
justa causa com la victoria”.
146
MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vida do direito”, em Estudos…, p. 134-135.
147 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.
148 GILISSEN, John. Introdução…, p. 716.
149 Cf., ainda, MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vida do direito”, em Estudos…, p. 158-159.
Segundo esse autor, o procedimento do duelo era estritamente regulado, inclusive com fases perfeitamente
delimitadas. Assim, a primeira era do repto, ou reto, ou recto particular perante o rei; três dias eram
concedidos ao desafiante para que refletisse e reconsiderasse o caso; após, era citado o desafiado,
ocorrendo o duelo propriamente dito perante o rei e doze cavalheiros.
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contraditória, oral e caracterizada pelo contato direto entre o órgão judiciário e as provas.
Essas características, entretanto, iriam modificar-se a partir da paulatina influência do
Direito Canônico.
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Seção D
A audiência processual penal e os “sistemas”
§ 1º Sistema inquisitório (audiência canônica)
a) o processo canônico
O processo canônico representou, conforme dito, um relativo retorno ao sistema
vigente em Roma, na fase imperial, denominado cognitio extra ordinem. 150 Mais do que
um retorno, porém, significou o efetivo aperfeiçoamento do sistema inquisitório.
O processo das jurisdições eclesiásticas, leciona JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR,
principiou não se afastando muito do processo vigente entre os bárbaros. 151 Assim,
baseava-se em acusação, sua instrução admitia, ao menos em seu início, as provas
irracionais, sendo que as audiências eram caracterizadas pela oralidade. Contudo, já se
entremostrava uma preferência do processo canônico pelas formas escritas: Accusatorum
personae nunquam recipiantur sine scripto. 152
No seu início, como dito, o processo canônico admitia os ordálios (purgatio vulgaris)
como a prova da água fervente e do ferro em brasa. Contudo, e baseado no princípio de
que Ecclesia abhorret sanguinem, o Papa Estevão V, durante o Século IX, através de um
decreto, proibiu-os. 153
Do clássico de HEINRICH KRAMER e JAMES SPRENGER sobre a persecução penal da
bruxaria, extraem-se os seguintes trechos sobre os ordálios: “tais provas são ilícitas por
duas razões. Em primeiro lugar, porque o seu propósito é o de julgar coisas ocultas cujo
julgamento só cabe a Deus. Em segundo lugar, por não haver uma autoridade Divina para
tais provas, e nem serem elas sancionadas nos escritos dos Santos Padres. (...) Há,
todavia, uma diferença entre um duelo e o ordálio pelo ferro em brasa ou por água
fervendo. O duelo se afigura mais humanamente razoável – por serem os combatentes de
força e de habilidade semelhante – do que a prova pelo ferro em brasa. Pois embora o
propósito de ambos seja o de descobrir alguma coisa oculta através de um ato humano,
no caso do ordálio pelo ferro em brasa busca-se um efeito miraculoso, o que não
150
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 79.
151
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 64.
152
Decreto de Graciano, Causa II, quaest 8, cap. I, apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O
processo…, p. 64.
153
Decreto de Graciano, Causa II, quaest 5, cap. XX, apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O
processo…, p. 65.
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acontece no caso de um duelo, em que o máximo que pode acontecer é a morte de um
ou de ambos os combatentes. Portanto, a prova do ferro incandescente é absolutamente
ilícita; não obstante o duelo não o seja no mesmo grau”. 154
Os juramentos purgatórios, sobretudo com acompanhamento de compurgadores,
eram mais facilmente admitidos, 155 embora a Igreja já então possuísse, doutrinariamente,
motivos mais do que sólidos para condená-los. 156 Isso sem considerar o fato, anotado por
HEINRICH AHRENS, de que esses juramentos, dadas as modificações das condições morais
da sociedade, iam se tornando cada vez mais suspeitos e insuficientes. 157
A abjuração dos ordálios veio no contexto de uma retomada do racionalismo dentro do
processo. Esse racionalismo, que fazia fundar-se a sentença na certeza moral de autoria
e culpabilidade, era necessário para o combate, então encetado pela Igreja, às chamadas
“doutrinas heréticas”. Essa certeza seria dada no seio, precisamente, do processo
inquisitório: da mesma maneira do ocorrido em Roma, o sistema da investigação
renasceu para garantir uma repressão regular a certo tipo de criminalidade.
O primeiro passo no sentido da violenta repressão que ameaçava o poder da Igreja,
foi a equiparação das manifestações heréticas ao crime de lesa-majestade, necessária
para justificar a violenta reação. Há, nessa fase, uma luta pelo poder, surdamente travada
entre clérigos, nobres e o rei. 158
A cronologia do nascimento do sistema inquisitório é precisamente traçada por
JACINTO N. DE MIRANDA COUTINHO: “Entre liberais e conservadores (não fosse isto não
haveria um Concílio em Latrão, em 1215), a Igreja optou pela morte, na esteira da Bula
Vergentis in senium, do Papa Inocêncio III (1199) (...), a qual prepara o campo da
repressão canônica com a equiparação das “heresias” aos crimes de lesa-majestade. (…)
O Concílio faz a sua opção (o pano de fundo era a manutenção do poder); e o novo
sistema paulatinamente assume sua fachada, para consolidar-se com a Bula Ad
extirpanda, de Inocêncio IV, em 1252”. 159
154
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 446.
155
Decreto de Graciano, Causa II, quaest 5, cap. XX, apud ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O
processo…, p. 65.
156
Cf., no Livro do Êxodo, 20, 7, trecho do Decálogo: “Não pronunciarás em vão o nome de Iahweh teu
Deus, porque Iahweh não deixará impune aquele que pronunciar em vão o seu nome”.
157
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
158
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 81.
159
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.
3-56.
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Segundo ALFREDO VELEZ MARICONDE, a evolução segue, ainda, até o Papa Bonifácio
VII, que sofistica a organização da justiça eclesiástica. 160
No Século XIII, período de consolidação do processo inquisitório, surge, como
principal instrumento para repressão das “heresias”, dos “sortilégios” (magias) e das
“adivinhações” – todas práticas que ameaçavam o poder da Igreja – o Tribunal da
Inquisição, ou Tribunal do Santo Ofício, 161 sob o pontificado de Gregório IX. De acordo
com ALFREDO VELEZ MARICONDE, esse tribunal surgiu, efetivamente, como forma de
unificar a repressão à “heresia” lato sensu, repressão essa que, até então, era realizada
pelos bispos, quando visitavam suas paróquias. 162
Tendo sempre como pano de fundo a luta entre os reis, os nobres e os clérigos, a
jurisdição eclesiástica experimentou, nessa fase, grande expansão. É mister explicá-la
convenientemente.
Segundo PAUL OURLIAC, desde sempre a Igreja exerceu duas espécies de jurisdição:
uma espiritual (denominada “essencial” ou “a clavibus”, porque nascida do poder das
chaves entregues a São Pedro) e uma temporal. 163 Esta última tem, ainda segundo esse
autor, grande importância, pois reflete uma tendência expansionista da jurisdição
eclesiástica que vem desde antes do Edito de Milão. 164 Essa jurisdição – sempre civil –
era exercida ou por uma assembléia de fiéis ou pelo bispo. Durante o reinado do
imperador romano Constantino, os bispos tiveram o privilégio de serem julgados por um
sínodo ou pelo próprio imperador. Nos Concílios dos Séculos V e VI, se foi determinando
que os clérigos não haveriam de ser julgados por tribunais seculares. 165 A culminância
desse processo, segundo PAUL OURLIAC, verificou-se no Concílio de Paris, em 614, aceito
pelo rei de França Clotário II, em edito famoso. 166 No caso criminal, se se trata de crime
de clérigo, porém sem gravidade, era ele julgado pelo conde. No caso de crime capital, o
julgamento dar-se-ia pelo bispo. Em tratando-se de crime de um sacerdote ou diácono, o
julgamento seria pelo bispo; se do bispo, por um sínodo. 167
160
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 81.
161
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 82.
162
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 82.
163
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.
164
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.
165
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.
166
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.
167
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.
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São interessantes as técnicas jurídicas de que se valeram os sábios da Igreja para
justificar essa expansão. A primeira delas foi determinar-se a competência da jurisdição
eclesiástica através de dois critérios; ora era estabelecida ratione personae, ora era fixada
ratione materiae.
Esse movimento hegemônico é descrito por ALFREDO VELEZ MARICONDE: “Do foro
eclesiástico gozavam desde então os clérigos, se bem que se limitava às faltas e delitos
leves; posteriormente se estendeu a todas as infrações, ao mesmo tempo em que os
tonsurados, os cruzados e outras pessoas eram incluídos entre aqueles, a fim de que
gozassem do privilégio jurisdicional. E sem ter em conta os fatos de significação
puramente espiritual, o foro surgia quando se afetavam os interesses da fé, qualquer que
fosse o infrator. Delitos exclusivamente eclesiásticos eram a heresia e a simonia,
enquanto o sacrilégio, a usura, o rapto, o adultério e outros constituíam mixti fori, o que
explica os inumeráveis conflitos jurisdicionais que ocorriam. (...) Durante a expansão da
justiça eclesiástica se recorre a diversos subterfúgios, seja para outorgar o título de
clérigo a quem não o era, seja para reconhecer em muitos delitos um ataque direto aos
interesses da Igreja”. 168
É importante, por outro lado, deixar claro que essa expansão, decerto por algum
fenômeno similar ao da “inércia”, foi também estimulada por uma tendência, de certo
modo, natural ou, antes, não-coarctada.
Conforme a lição de PAUL OURLIAC, embora a Igreja tivesse utilizado técnicas jurídicoprocessuais
de forte matiz retórico para atrair para a competência da jurisdição
eclesiástica os casos envolvendo os órfãos, viúvas (miserabiles personae), os libertos da
Igreja, servos de monastérios e hospitais etc., 169 como um verdadeiro privilegium fori,
muitas vezes era espontaneamente preferida pelas partes, porque mais racional e menos
árdua que a secular, que impunha os ordálios, bem como mais barata e dotada de juízes
168
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 82. Trecho original: “Del fuero eclesiástico gozaban
desde antaño los clérigos, si bien se limitaba a las faltas y delitos leves; posteriormente se extendió a todas
las infracciones, al mismo tiempo que los tonsurados, los cruzados y otras personas eran incluídos entre
aquéllos, a fin de que gozaran del privilegio jurisdiccional. Y sin tener en cuenta los hechos de significación
puramente espiritual, el fuero surgía quando se afectaban los interesses de la fe, cualquiera que fuese el
infractor. Delitos exclusivamente eclesiásticos eran la herejía y la simonía, mientras el sacrilegio, la usura,
el rapto, el adulterio y otros constituían mixti fori, lo que explica los innumerables conflictos jurisdiccionales
que se planteaban. Durante la expansión de la justicia eclesiástica se recurre a diversos subterfugios, sea
para otorgar el título de clérigo a quien no lo era, sea para reconocer en muchos delitos un ataque directo a
los intereses de la Iglesia”.
169
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.
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que pareciam mais inteligentes e imparciais do que os da jurisdição secular. 170
A outra característica saliente do processo canônico foi o tabelamento das provas,
vigente no período compreendido entre os séculos XII e XVIII. Assim, a audiência
canônica se desenvolvia em função do atendimento das tabelas de provas.
Esse tabelamento, que se convencionou denominar de “sistema romano-canônico de
provas legais” tinha, segundo JOHN GILISSEN, a característica básica de sua graduação,
oriunda do método escolástico, de acordo com a intensidade de certeza moral que
ministravam ao julgador.
171-172 Assim, a tabela era formada das seguintes categorias de prova, diferentes quanto à
sua intensidade: probationes plenae, probationes semiplenae e iudicia; acima da probatio
plena e a partir do Século XIII, há somente o notorium, que é uma criação canônica,
inexistente em Roma. 173
Quanto a este último, dividiram-no, os canonistas, em notorium facti, notorium iuris e
notorium praesumptionis. Quanto ao primeiro, define-se-o como o que é evidente aos
olhos do mundo: publice coram omnibus. Segundo JOHN GILISSEN, trata-se do fato
permanente (notorium facti permanentis) como um monumento conhecido ou isolado
(semel notorium, sempe rnotorium) de que são exemplos os crimes praticados em
audiência e o flagrante: notorium factim omentanei. 174 Há, ainda, o notorium iuris,
manifestado na autoridade do caso julgado – que em Roma era relativa – e na confissão
em juízo (confessio projudicatu); ambas vedavam a contra-prova e o recurso 175 . Por fim,
havia o notorium praesumptionis, de dois tipos: as presunções iuris et de iure e as
presunções iuris tantum. Aquelas eram um notorium propriamente dito e estas equivaliam
às probationes plenae, desconstituíveis por uma probatio plena equivalente. 176
Faziam probationes plenae o duplo testemunho, porque testisunis, testis nullus e o ato
escrito por instrumento público (instrumentum publicum) de que eram exemplos os atos
notariais, os atos judiciais e os autenticados por selo ou sinal. Em caso de conflito entre o
170
OURLIAC, Paul. Historia…, p. 177-182.
171
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.
172
Cf., sobre o tema, FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36.
173
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.
174
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.
175
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718. Segundo esse autor, a “indivisibilidade” dos efeitos do
notorium iuris é uma teoria atribuída à escola de Orleães, do Século XIII.
176
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.
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testemunho e o ato escrito, de princípio prevalecia o testemunho (témoins passent lettres)
mas essa regra foi, posteriormente, invertida. 177
Quanto às probationes semiplenae, configuravam-nas, entre outros, o testemunho
isolado (unus testis) os documentos particulares (cartae domesticae) a fuga e a fama que,
entretanto, não chega a ser notoriedade. A probatio semiplena, por exemplo, era
fundamento para medidas cautelares e duas probationes semiplenae equivaliam a uma
probatio plena. 178
Vinham, finalmente, os iudicia, representados pela inimizade com a vítima, pelo
empunhar uma espada nua, pela ameaça, pelos boatos e rumores etc. Embora a menos
graduada das provas (valiam de um quarto a um oitavo da probatio plena) autorizava a
tortura (quaestio) uma vez ocorrente (iudicium ad torturam). 179
A confissão ensejada pela tortura, conforme registrado acima, configurava notorium
iuris, desde que em juízo (longe, portanto, do aparelho de tormento) e confirmada mais de
uma vez, ficando claro, para o confessor, que a volta atrás na confissão impunha novo
tormento, até um limite máximo, em geral de três vezes.
O regramento da confissão no processo inquisitório é dado por HEINRICH KRAMER e
JAMES SPRENGER: “se nem as ameaças nem as promessas a levam a confessar a
verdade, então os oficiais devem prosseguir com a sentença, e a bruxa deverá ser
examinada, não de alguma forma nova ou estranha, mas da maneira habitual, com pouca
ou com muita violência, de acordo com a natureza dos crimes cometidos. E enquanto
estiver sendo interrogada a respeito de cada um dos pontos, que seja submetida à tortura
com a devida freqüência, começando-se com os meios mais brandos; o Juiz não deve se
apressar em usar dos meios mais violentos. E enquanto isso é feito, que o Notário a tudo
anote: de que modo é torturada, quais as perguntas feitas e quais as respostas obtidas. E
notar que, se confessar sob tortura, deverá ser então levada para outro local e interrogada
novamente, para que não confesse tão-somente sob a pressão da tortura. Se após a
devida sessão de tortura a acusada se recusar a confessar a verdade, caberá ao Juiz
colocar diante dela outros aparelhos de tortura e dizer-lhe que terá de suportá-los se não
confessar. Se então não for induzida pelo terror a confessar, a tortura deverá prosseguir
no segundo ou no terceiro dia, mas não naquele mesmo momento, salvo se houver boas
177
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.
178
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.
179
GILISSEN, John. Introdução…, p. 716-718.
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indicações de seu provável êxito”. 180
Com o tempo, passou-se a exigir, para que a confissão importasse em condenação,
que fosse confirmada por alguma probatio semiplena ou por um iudicium. 181
b) o processo inquisitório
O processo canônico, conforme visto, genuinamente inquisitório, não possuía partes,
no sentido jurídico do termo. O “herege”, “inimigo”, “paciente”, ou como se pudesse
denominá-lo, não era sujeito de direitos dentro do processo, mas sim um objeto sobre o
qual trabalhava o inquisidor.
Em seu aspecto dinâmico, o processo canônico caracterizava-se por investir-se e
utilizar-se o inquisidor do poder-dever de, voluntariosamente, buscar as provas para
fundamentar sua sentença.
Não é essencial à inquisitoriedade, todavia, a ausência de partes.
Com efeito, é perfeitamente possível estruturar um processo penal de cunho
marcadamente inquisitório, mas formalmente dotado de partes. A respeito, exemplar o
seguinte trecho de JACINTO N. DE MIRANDA COUTINHO: “Estabelece-se, assim, uma
característica de extrema importância a demarcar o sistema, enquanto puro, ou seja, a
inexistência de partes, no sentido que hoje emprestamos ao termo. Não obstante o vigor
com que conduz e orienta o discurso de alguns, às vezes usada como ponto de partida ou
mesmo como fator único de distinção, trata-se de elemento distintivo secundário, até
porque pode-se ter um processo inquisitório e partes (...), como sucedia no ancien régime,
com as Ordonnance Criminelle (1670), de Luís XIV”. 182
O que é mais importante no processo inquisitório, sobretudo no que destacou-se do
processo propriamente canônico, é a questão da administração do “patrimônio”
probatório. 183 Essa administração, ou gestão da prova, era de competência exclusiva, ou
180
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 433.
181
FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36-38.
182
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.
3-56.
183
Cf. a lição precisa de ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Processo…, p. 119-120: “O poder
inquisitório do juiz é amplo ainda quando às partes é dado requerer a instauração do procedimento,
definitivo ou preliminar. Permanece quando lhes é possível instruir o juízo por meio de alegações e
produção de meios de prova. Restringe-se, quando o juiz é obrigado a atender a tais pedidos de produção
de provas por outro motivo que não seja a demonstração da existência do crime e da autoria; ou quando o
juiz é obrigado a instaurar procedimento sempre que requerido pelo autor. Diminui, ainda mais, quando o
juiz não pode ter iniciativa para proceder; e anula-se, definitivamente, se o juiz não pode senão julgar
segundo o alegado e provado pelas partes. Este é o tipo processual acusatório puro”.
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quase exclusiva, do juiz. É o que ocorria, como visto, nas citadas Ordonnance Criminelle,
de 1670, com um fundamento político específico. Segundo MICHEL FOUCAULT, “o
magistrado tinha o direito de receber denúncias anônimas, de esconder ao acusado a
natureza da causa, de interrogá-lo de maneira capciosa, de usar insinuações. (...) Ele
constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado (...). A
forma secreta e escrita do processo confere com o princípio de que em matéria criminal o
estabelecimento da verdade era para o soberano e seus juízes um direito absoluto e um
poder exclusivo”. 184
Quanto às influências do novo sistema, pode-se dizer que enquanto a influência
bárbara sobre o processo penal romano foi no sentido de desintegração para um sistema
híbrido, a influência do processo canônico sobre esse produto híbrido foi no sentido
exatamente contrário, isto é, de reorganização das normas e princípios mais ou menos
como vigentes em Roma, sobretudo na sua última fase, a da cognitio extra ordinem.
Assim, por exemplo, L. CABRAL DE MONCADA observa que o duelo judicial não vicejou
em Portugal senão entre os plebeus, sendo praticamente esquecido pelo Tribunal da
Corte. A razão desse desprezo é que o processo praticado no referido tribunal era de
feitio romano-canônico, baseado em provas lógico-racionais. 185
Assim, a primeira atitude do processo canônico relativamente ao processo bárbaro foi
no sentido de condenar as provas irracionais.
Todavia, a influência do processo canônico não se verificou somente nesse terreno.
HEINRICH AHRENS observa que a doutrina dos práticos, influenciada pelo Direito Canônico,
definia cinco tipos de procedimentos entre os germânicos, a saber: por acusação (ora
privada, ora oficial) por denúncia, por inquisição, por purgação (a fim de restabelecer a
boa fama – leumundes – através dos Inzichtoder Beizicht processes) e em virtude de más
ações intencionais. 186 HEINRICH AHRENS soma a esses os procedimentos nos tribunais de
Wehm, de origem pouco conhecida, que deliberava secretamente e que chegou a ter mil
integrantes, extremamente temido e que, após sua abolição no Século XIV, transformou-
se em associação secreta, bem como, finalmente, os procedimentos penais por atos de
feitiçaria, que no início impunham pena arbitrariamente e, depois, por volta do ano 1.230,
184 FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36 [sem grifo no original].
185 MONCADA, L. Cabral de. “O duelo na vida do direito”, em Estudos…, p. 158-188.
186 AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
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passaram a impor a morte pelo fogo. 187
A Constitutio Criminalis Carolina (CCC) inclusive, é caracterizada como uma tentativa,
ocorrida durante o reinado de Carlos V, em 1.532, de harmonizar o processo germânico
com as regras dos direitos canônico e romano, dando-lhe unidade.
188-189 Diversas outras legislações foram profundamente influenciadas pelo sistema
inquisitório. Entre elas as Ordenações do Reino de Portugal, cujo estudo será feito
adiante.
c) a audiência inquisitória
Com essas informações, já é possível traçar as características básicas da audiência
processual penal inquisitória. Para tanto, é preciso invocar alguns dos princípios
processuais modernos, a fim de verificar quais deles encontram abrigo no sistema
inquisitório.
1. publicidade
A primeira das características do processo inquisitório foi a eliminação da publicidade,
ou sua restrição a níveis comparáveis ao segredo. Com isso, sobretudo a audiência de
julgamento, mas também, em menor grau, embora, a ou as audiências de instrução,
tornaram-se, paulatinamente, algo de dispensável. A ausência de publicidade tornou a
audiência processual penal incômoda.
Contudo, não seria correto afirmar-se que, no processo penal inquisitório, a audiência
processual penal tivesse perdido completamente sua importância. Na verdade, muitas das
principais nuances do processo penal inquisitório eram definidas justamente em alguma
audiência processual penal, posto que não de julgamento.
A característica mais saliente da audiência processual penal inquisitória é, como visto,
a ausência ou suma restrição da publicidade. Essa característica, aliás, é o que possibilita
a desenvoltura do inquisidor na pesquisa das provas de que necessita.
Entretanto, essa anulação da publicidade – que depois tornou-se a pedra de toque do
187
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
188
AHRENS, Enrique. Historia…, p. 327-334.
189
Cf. COLOMER, Juan-Luis Gomes. El proceso…, p. 29-38. Segundo esse autor, são características
do processo da CCC: recusa ao processo acusatório, prova legal, procedimento escrito e secreto, juízes e
escabinos leigos, persecução oficial, processo inquisitivo, absolvição de instância, condenação por prova
indiciária e jurisdição suprema do rei, entre outras.
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sistema inquisitório – em seu princípio era apenas tolerada, em caráter excepcional,
conforme afirma ALFREDO VELEZ MARICONDE. 190
Contudo, transformou-se ela no “ambiente” ideal para o desenvolvimento do processo
de tipo inquisitório. Sem publicidade, a atividade do inquisidor poderia se tornar muito
mais eficiente, possibilitando-lhe dedicar-se melhor ao afã de chegar à verdade. Essa
ausência de publicidade, outrossim, era travestida em ausência de solenidade, em
cândida simplicidade na tramitação do processo penal. É o que se percebe nitidamente
nas recomendações de NICOLAS EYMERICH – “Vamos esclarecer logo que, nas questões
de fé, o procedimento deve ser sumário, simples, sem complicações e tumultos, nem
ostentação de advogados e juízes. Não se pode mostrar os autos de acusação ao
acusado nem discuti-los. Não se admitem pedidos de adiamento, nem coisas do
gênero” 191 – e de HEINRICH KRAMER e JAMES SPRENGER – “No que tange ao método para
proceder ao julgamento de bruxas em causas de fé, cumpre observar primeiro: são
causas a serem conduzidas da maneira mais simples e mais sumária, sem os argumentos
e as contenções dos advogados de defesa”. 192
2. contraditório
Não resta dúvidas de que o contraditório foi o princípio mais ferido pela audiência
processual penal inquisitória.
E está claro que deveria ser assim, até porque o processo penal inquisitório se funda
numa situação de ampla vantagem que o juiz leva sobre a pessoa do imputado.
Juridicamente, inclusive, o processo penal inquisitório puro não prevê a existência de
partes, senão a titularizada pelo próprio inquisidor. O processo penal de matiz inquisitória,
por sua vez, prevê partes, mas o imputado, que naquele processo era mero objeto de
investigação, neste aparece como parte em sentido formal, posto que em situação de
clara inferioridade.
Além disso, é possível dizer que há uma clara interpenetração dos princípios, daí a
ocorrência de certa dificuldade em separar cada qual. O segredo, por exemplo, é algo que
também prejudica, sobremaneira, o exercício de algum contraditório eficaz.
190
MARICONDE, Alfredo Velez. Estudios…, p. 100.
191
EYMERICH, Nicolau. Manual…, p. 110.
192
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 406.
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3. oralidade
A tendência do processo penal inquisitório é, claramente, a escritura. A audiência
processual penal inquisitória, em linha de conseqüência, embora se desenvolva
oralmente, não é marcada por qualquer respeito ao princípio da oralidade, entendido este
como o desenvolvimento dos atos principais da audiência processual penal através da
palavra falada.
Em outras palavras: embora a comunicação das partes na “reunião” que se
estabelece na audiência se dê através da palavra falada, nenhuma decisão efetivamente
importante que decorra dessa reunião se processa e exsurge através desse instrumento.
Qualquer decisão ou ato processual importante é sempre e sempre escrito.
A aceitação da forma oral na comunicação, aliás, decorre de imperiosa necessidade
prática. As testemunhas de antanho – é fácil imaginar – muitas vezes não eram
alfabetizadas, razão pela qual estaria inviabilizada qualquer comunicação por escrito.
Assim, não é lícito se considerar a comunicação oral, presente na atividade instrutória
do mais puro processo inquisitório, como manifestação de respeito à oralidade.
A preferência é claramente por uma decisão escrita, que interrompe e viola qualquer
possibilidade de respeito à oralidade.
4. imediação
Quanto à prova produzida na audiência processual penal inquisitória pura, valem as
mesmas considerações feitas quanto à oralidade: não é possível negar-se imediação. De
fato, uma vez ouvidas testemunhas ou produzidas outras provas durante a audiência de
instrução, nada autoriza a concluir que o juiz estivesse fisicamente afastado delas. Havia,
pois, ao menos formalmente, imediação.
Todavia, o desrespeito ao princípio da imediação manifesta-se por outra via. O
seguinte trecho de MICHEL FOUCAULT, em parte já transcrito, esclarece o assunto: “Ele
constituía, sozinho e com pleno poder, uma verdade com a qual investia o acusado; e
essa verdade, os juízes a recebiam pronta, sob a forma de peças e de relatórios escritos;
para ele, esses documentos sozinhos comprovavam; só encontravam o acusado uma vez
para interrogá-lo antes de dar a sentença”. 193
De fato, na audiência processual penal inquisitória, e nos diversos momentos secretos
desse processo penal, o trabalho mental do juiz estará orientado não só pelas provas que
193 FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 36 [sem grifo no original].
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ele mesmo colher, mas também pelas provas que produzirem para ele – com o mesmo
escopo de conseguir evidências para a condenação. Dentre ambas, o juiz escolherá as
que considerar mais aptas a fundamentarem seu entendimento.
5. concentração
A bem da verdade, diga-se que, no que se refere à audiência processual penal de
matiz inquisitória, não é verdadeiramente importante definir se ela é ou não concentrada –
poderá ser ou não, de acordo com o entendimento do seu presidente, que decidirá
baseado nas características do caso concreto. O que tem efetiva relevância é captar o
ritmo desse momento processual penal.
Há, aqui, uma interessantíssima diversidade. Numa primeira aproximação, poderia
parecer incongruência, ou contradição; mas não é. Trata-se do que se poderia denominar
de uma maliciosa utilização do tempo.
De um lado, o processo penal inquisitório há de ser célere, o quanto possível,
garantida essa celeridade pela ausência de publicidade, contraditório e pela
disponibilidade que tem o inquisidor sobre a pessoa do imputado. De outro, justamente no
momento processual da audiência, o tempo como que “pára”, ou “passa a correr
lentamente”, sem compromisso com aquela celeridade anterior.
De acordo com as instruções de HEINRICH KRAMER e JAMES SPRENGER, “o Juiz não
deve se apressar em submeter a bruxa a exame, embora deva prestar atenção a certos
sinais importantes. Não deve se apressar pela seguinte razão: a menos que Deus,
através de um santo Anjo, obrigue o demônio a não auxiliar a bruxa, ela se mostrará tão
insensível às dores da tortura que logo será dilacerada membro a membro sem confessar
a menor parcela da verdade. (...) se então ela começar a contar a verdade, que o Juiz não
adie por qualquer motivo ouvir-lhe a confissão, mesmo no meio da noite, mas que
continue ao extremo de sua capacidade. Se for durante o dia, que cuide para protelar o
almoço ou jantar e que persista até que ela tenha revelado a verdade, ao menos em
linhas gerais. Pois se verifica em geral que retornarão à sua obstinação depois de
adiamentos e interrupções e não revelarão a verdade que começaram a confessar,
mudando de idéia a respeito”. 194
Não resta dúvida que a anulação da celeridade, no preciso momento da audiência, é
maliciosamente instrumentalizada. O tempo, na audiência processual penal inquisitória, é
194 KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. Malleus…, p. 429 e 442.
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indeterminável.
Em termos juridicamente mais inteligíveis, é possível afirmar que a conclusão da
audiência processual penal inquisitória – sobretudo a de instrução, representada pelo
interrogatório – está submetida a uma condição resolutiva, sabida pelo inquisidor e pelo
imputado: que este confesse o crime. A partir desse momento, a audiência já pode se
encerrar. Se ele não ocorrer, a audiência se estenderá até quando for preciso.
§ 2º Sistema acusatório (audiência inglesa)
a) o sistema inglês
1. esclarecimentos iniciais
Segundo RENÉ DAVID, a common law consiste em um conjunto sistêmico de normas,
paulatinamente criado na Inglaterra, a partir da atividade dos Tribunais Reais de Justiça,
após a conquista normanda. 195
Embora essa “família” como quer RENÉ DAVID, abranja hoje outros países, cujo
ordenamento jurídico é claramente influenciado pelo ordenamento jurídico inglês, é
conveniente que o estudo de qualquer instituto jurídico da common law, ainda que não
exclusivamente inglês, parta do estudo deste. 196 É o que acontece, basicamente, com o
sistema processual penal acusatório que, embora não seja sequer genuinamente inglês,
ou exclusivo do common law – o processo anterior ao nascimento do sistema inquisitório
era, basicamente, e por exclusão, acusatório – precisa ser estudado a partir das
características que teve na Inglaterra.
2. a questão do método
Duas são as características fundantes do direito inglês e, por conseguinte, do
common law. A primeira delas é a questão do método.
No direito inglês, o método de conhecimento não é dedutivo, mas indutivo, ou
empírico, cuja significação é desnecessário explicitar.
Há duas frases que definem muito perfeitamente o método inglês de desenvolvimento
de seu sistema jurídico, de constante aprendizagem com os fatos sociais, a fim de se
chegar a regras positivas.
A primeira delas, já clássica, é de autoria de OLIVER WENDELL HOLMES, JR.: “a vida do
195
DAVID, René. Os grandes…, p. 327.
196
DAVID, René. Os grandes…, p. 327. Cf. preocupação semelhante em RÁO, Vicente. O Direito…, p.
101-113.
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direito não foi a lógica; foi a experiência”. 197
A segunda frase é de FREDERIC W. MAITLAND, historiador do direito inglês: “seguir
tropeçando à nossa moda empírica e, enfim, enganando-nos, chegar à sabedoria”. 198
Esse método empírico enformou o próprio pensamento jurídico inglês, avesso à
formação de grandes sistemas de idéias, mas atento à evolução natural dos
acontecimentos históricos. 199 A partir daí é que o sistema jurídico inglês começou a se
afastar do sistema continental. É como descreve RENÉ DAVID: “O jurista do continente
europeu vê no direito os princípios, ou o próprio princípio, da ordem social. Procura defini-
lo, melhorá-lo, sob o ângulo destes princípios: estabelece o princípio das liberdades
políticas, o dos direitos sociais, o da inviolabilidade da propriedade e dos contratos, e
abandona aos práticos o cuidado de pôr a funcionar – ou de deixar desprovidos de
sanção – estes princípios. O jurista inglês, herdeiro dos práticos, desconfia daquilo que
ele considera, muito naturalmente, como fórmulas ocas: que vale a afirmação dum direito
ou dum princípio, se na prática não existe um meio de o pôr a funcionar? Toda a atenção
dos juristas ingleses se voltou, durante séculos, para o processo: só lentamente se volta
para as regras de fundo do direito”. 200
O papel das universidades, nisso, foi interessante. Antes de mais nada, porque essas
entidades de ensino superior não formavam, como formam as universidades de hoje, os
juristas: a maioria dos antigos juristas ingleses sequer estudaram alguma vez em
universidade, até porque Oxford só teve um curso jurídico a partir de 1758 e Cambridge
197 HOLMES Jr., Oliver Wendell. O Direito…, p. 29.
198 MAITLAND, Frederic William, apud RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 18-27. Trecho original:
“Stumbling forward in our empirical fashion, blundering into wisdom”.
199
Cf. precisa observação em DAVID, René. Os grandes…, p. 381: “Os direitos da família romanogermânica
constituem conjuntos coerentes, ‘sistemas fechados’, em que toda a espécie de questões pode e
deve, pelo menos em teoria, ser resolvida pela ‘interpretação’ duma regra jurídica existente. O direito inglês
é, pelo contrário, um ‘sistema aberto’; comporta uma técnica que permite resolver toda a espécie de
questões, mas não comporta regras de fundo das quais é permitido, em todas as circunstâncias, fazer
aplicação. A técnica do direito inglês não é uma técnica de interpretação das regras jurídicas; consiste,
partindo das legal rules, que desde logo foram destacadas, em descobrir qual a legal rule, talvez nova, que
deverá ser aplicada em espécie; esta tentativa é conduzida, mantendo-se muito perto dos fatos de cada
espécie, e considerando com cuidado as razões que existem para distinguir a situação que hoje se
apresenta das que foram apresentadas no passado. A uma nova situação corresponde, deve corresponder
segundo o jurista inglês, uma nova regra. A função do juiz é a de administrar a justiça. Não é sua função
formular, em termos gerais, regras que ultrapassem, pelo seu alcance, o litígio a ele submetido. A
concepção inglesa de legal rule, mais estreita do que a nossa concepção de regra jurídica, encontra a sua
explicação histórica no fato da common law se ter formado por obra de juízes; ela está intimamente ligada à
técnica das distinctions que, por oposição à da interpretação, continua a ser o método do direito inglês”.
200
DAVID, René. Os grandes…, p. 376.
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mais tarde, em 1800. 201 Além disso, muito pouco se estudou do direito romano nessas
universidades, ao contrário do que ocorreu nas universidades continentais.
3. evolução rumo ao adversary system 202
Outra característica fundante do sistema da common law foi a ausência de
rompimentos bruscos na sua linha de desenvolvimento histórico, bem como, ao longo da
história, um constante aprendizado de convivência política.
Segundo GUSTAV RADBRUCH, a Idade Média, na Inglaterra, não foi sucedida pela Idade
Moderna através de um rompimento. Houve uma continuidade, mesmo no terreno do
pensamento.
203-204 A história do direito inglês começa no ano de 1.066, quando o Duque da Normandia,
Guilherme, cognominado “O Conquistador”, vence Haroldo de Wessex, em Hastings,
conquistando a ilha da Inglaterra. Essa conquista normanda se traduz, conforme RENÉ
DAVID, em “um acontecimento capital na história do direito inglês, porque traz para (a)
Inglaterra, com uma ocupação estrangeira, um poder forte, centralizado, rico duma
experiência administrativa posta à prova no ducado da Normandia. Com a conquista pelos
normandos, a época tribal desaparece; o feudalismo instala-se na Inglaterra”. 205
Ainda segundo RENÉ DAVID, o feudalismo inglês é diferente do que se instalou no
continente europeu. Ao distribuir as terras dos vencidos entre seus aliados, o
conquistador, já, então, o rei GUILHERME I (1027-1087; reinado: 1066-1087), evitou dar
grande quantidade delas a apenas um de seus vassalos, a fim de prevenir-se contra
futura ameaça ao seu poder. 206-207 Além disso, impôs aos nobres exclusivo dever de
fidelidade ao rei, obtido sob juramento, proibiu guerras privadas e criou a figura do sheriff,
201
DAVID, René. Os grandes…, p. 376.
202
Cf. CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555. Da expressão, consagrada para designar o processo
acusatório puro, tal como praticado na Inglaterra, há variantes, como adversarial ou adversariness.
203
RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 13-18.
204
Os exemplos mais significativos dessa ausência de rompimentos, de acordo com RADBRUCH, são as
universidades inglesas, como Oxford e Cambridge, que, mais do que quaisquer outras universidades,
correspondem ao modelo medieval. Cf. RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 13-18.
205
DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.
206 DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.
207 Cf., também, ALVARENGA, Francisco Jacques Moreira de, AQUINO, Rubim Santos Leão de,
FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. Histórias…, p. 44.
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funcionário real que controlava os shires (condados). 208 Através dessas medidas, o
monarca inglês permaneceu como o maior senhor feudal da Inglaterra e com condições
materiais de policiar a maior parte do território inglês, o que lhe garantiu o exercício de
grande autoridade. 209
Por essa razão e porque a ação do conquistador foi politicamente orientada, seus
súditos normandos entraram na Inglaterra e assumiram, desde logo, uma organização e
disciplina que RENÉ DAVID compara às equivalentes militares. 210
No princípio desse desenvolvimento, três ordens de normas são aplicadas: as normas
locais, as normas comuns a toda a ilha e as normas eclesiásticas.
As normas locais são aplicadas por assembléias de homens livres, denominadas
“Cortes do condado” (County Courts) ou “Cortes da centena” (Hundred Courts, sendo a
“centena” uma unidade política resultante da divisão de um condado), cujo método de
comprovação ou instrução, conforme RENÉ DAVID, “não tem qualquer pretensão de ser
racional”. 211
As normas comuns a toda Inglaterra são aplicadas pelos Tribunais Reais de Justiça,
que em questões criminais julgam causas que ponham em risco a paz do reino. 212
Finalmente, as normas eclesiásticas são aplicadas pelos tribunais eclesiásticos.
Há, ainda, menos poderosa do que a equivalente do continente, uma justiça senhorial.
Conforme se percebe, nesse momento do desenvolvimento do direito inglês há um
quadro de disputa pelo poder, semelhante ao que ocorreu no continente. Contudo, alguns
fatores vão determinar que o desenrolar dessa disputa, aliás, inevitável, tenha, na
Inglaterra, um aspecto peculiar.
O primeiro desses fatores foi a forma natural com que se impuseram os Tribunais
Reais de Justiça. Efetivamente, o processo nessas cortes parecerá às partes mais
moderno, porque racional, do que o processo desenvolvido perante as County Courts ou
Hundred Courts. No continente, como visto, essa preferência recaiu sobre o processo
canônico.
208 AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 427.
209 ALVARENGA, Francisco Jacques Moreira de, AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize
de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl Campos. Histórias…, p. 44.
210 DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.
211 DAVID, René. Os grandes…, p. 332-333.
212 DAVID, René. Os grandes…, p. 335.
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Além disso, os Tribunais Reais de Justiça eram os únicos que tinham reais condições
de fazerem valer, coativamente, suas decisões. “Por outro lado, só o rei, com a Igreja,
pode obrigar os seus súditos a prestar juramento; os Tribunais Reais puderam, por esse
fato, modernizar o seu processo e submeter o julgamento dos litígios a um júri (...)
enquanto que as outras jurisdições estavam condenadas a conservar um sistema arcaico
de provas”. 213
Some-se a essa natural imposição, por méritos, a pouca força dos nobres e de sua
justiça. RENÉ DAVID acrescenta a esses fatores a ação politicamente sábia dos Tribunais
Reais diante dos nobres ingleses quando, negando-se a conhecer causas de
competência interna dos feudos, de competência da justiça senhorial, evitavam ferir
suscetibilidades. 214
Esse desenvolvimento, orientado pelo cuidado de evitar arestas entre as diversas
esferas do poder, fez nascer, na Inglaterra, um costume de convivência política, senão
pacífica, ao menos incruenta, entre os diversos estamentos da sociedade, que valeria
para o enfrentamento de futuras crises, que não tardariam a ocorrer. 215
Uma das primeiras crises e, decerto, a mais grave desse período, foi a ocorrida com o
rei inglês JOÃO I (1167-1216; reinado 1199-1216) dito “Sem-Terra” (Lackland), da dinastia
dos plantagenetas, filho de HENRIQUE II (1133-1189; reinado: 1154-1189) e irmão mais
novo de RICARDO I (1157-1199; reinado: 1189-1199), dito “Coração de Leão” (Coeur de
Lion ou Lion-Hearted).
Essa crise teve diversas causas. Uma se relaciona com as contradições internas dos
plantagenetas. De origem normanda, os membros dessa dinastia possuíam feudos que
abrangiam a metade do território francês. 216 Essa condição os colocava em contraditória
213
DAVID, René. Os grandes…, p. 335-336.
214
DAVID, René. Os grandes…, p. 335-336.
215
Cf., MACHADO, Luiz Alberto. “O princípio constitucional da isonomia jurídica e o direito criminal e
processual criminal”, em Estudos-Manoel Pedro Pimentel (1992), p. 239-240: “Nós vivemos duas realidades
jurídicas ocidentais: uma, a do direito comum, de origem anglo-saxã. Tome-se a Inglaterra, construída por
vários povos, o anglo, o saxão, o celta, o povo antigo, o normando, o romano. Como a maioria dos povos
estava sempre dominada por algum outro, fez-se um pacto de poder em que ficou assentado que o povo
dizia o direito material, já que ele sofreria a sua aplicação. Então, o direito material comum foi estabelecido
pelos usos e costumes do povo, aquilo que o povo entendeu como direito é o Direito material;
sofisticadamente, no Direito continental-europeu, Del Vecchio chamou de consciência coletiva de
necessidade da norma. Mas como o poder dominante deveria aplicar esse direito material, o poder
dominante dizia o direito processual. Estabeleceu-se o equilíbrio: o costume do povo fixou o direito material;
o poder dominante, respeitados limites, o direito material”.
216
AQUINO, Rubim Santos Leão de, FRANCO, Denize de Azevedo e LOPES, Oscar Guilherme Pahl
Campos. História…, p. 429.
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condição: por direito de conquista, eram os soberanos da Inglaterra; por direito de
propriedade, eram vassalos dos reis franceses. Além disso, os enormes interesses
territoriais que tinham na França faziam-nos envolverem-se constantemente em guerras
com os soberanos daqueles países.
A outra causa se relaciona com as constantes aventuras de seu irmão Ricardo
Coração de Leão, ou Ricardo I, que foi coroado e praticamente não reinou,
permanecendo longo tempo na Terceira Cruzada e em constantes guerras contra a
França, a fim de defender dos ataques inimigos os feudos dos plantagenetas nesse país.
Essas guerras levaram a grandes gastos, causadores da elevação dos impostos sobre os
nobres ingleses, o que fez crescer o descontentamento desses nobres. A longa ausência
do monarca, outrossim, fortaleceu-os.
Em 1.199 João Sem-Terra ascendeu ao trono. Envolveu-se em uma guerra contra
Felipe Augusto, rei da França, perdeu-a e viu aumentar ainda mais o descontentamento
dos nobres.
Um conflito político com a Igreja – deixou de reconhecer o Bispo de Canterbury – fez
com que fosse excomungado pelo Papa Inocêncio III, o que o colocou em posição de
extrema fragilidade diante dos nobres, que dela se aproveitaram para tirar proveito
político. Nesse momento é que se mostra a “disciplina militar” a que RENÉ DAVID fizera
referência; ao invés de algum desses nobres procurar um proveito pessoal dessa
fragilidade, o conjunto dos nobres procurou-o. O instrumento dessa vantagem foi a
imposição de limites jurídicos ao poder do soberano inglês, o que fizeram através da
Magna Charta Libertarum, de 1215.
Para os referidos nobres, o conteúdo mais importante desse diploma é o
estabelecimento de limites jurídicos à atividade impositiva do rei inglês, dado que
consideravam extremamente pesada a carga tributária da época.
Contudo, outro dos seus dispositivos trouxe importante conquista para a cidadania.
Trata-se do seu item 39: “Nenhum homem livre será tocado, ou aprisionado, ou
despojado, ou colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo destruído, nem nós
iremos contra ele, nem permitiremos que alguém o faça, exceto pelo julgamento legal de
seus pares, ou pela lei da terra”. 217
217 Trecho original, em latim: “Nullus liber homo capiatur vel imprisonetur aut disseisietur de libere
tenemento sua vel libertatibus, vel liberis consuetudinibus suis, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo
destruatur, nec super eo ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium parium suorum, vel per
legem terrae”. Trecho original, em inglês: “No free man shall be taken, or imprisoned, or disseised, or
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Outro conflito, ocorrido entre o rei inglês HENRIQUE III (1207-1272; reinado: 1216-1272)
e os nobres, fez com que nascesse o Parlamento inglês, logo dividido em duas casas,
uma reservada para os nobres e outra para os comuns.
Está claro que essas conquistas não tiveram uma história isenta de recuos. Em seus
primórdios, a atuação do parlamento inglês, imposta a HENRIQUE III pelos nobres, não foi
contínua, sendo ele convocado somente quando assim o desejava o rei. Somente a partir
do ano de 1.295, durante o reinado de EDUARDO I (1239-1307; reinado: 1272-1307), é que
passou a ser permanente. 218
Contudo, “no constante conflito entre as forças, entre os barões e o rei, parece ter
levado vantagem o povo, até assumir a consciência de ser o efetivo detentor do poder,
pelo menos para efeito de não ter violado o seu espaço de intimidade, com uma cultura
de respeito à cidadania”. 219
Ao lado dessa evolução das instituições políticas inglesas, evoluía uma forma de
processo que tornou-se, talvez, a face mais saliente do processo acusatório inglês. Trata-
se do trial by jury.
4. o trial by jury inglês
ADA PELLEGRINI GRINOVER observa que a melhor doutrina não considera a frase “by the
legal judgement of his peers” como constitutiva da primeira manifestação do trial by jury 220
inglês.
Com efeito, o trial by jury não é uma instituição genuinamente inglesa e nem,
tampouco, foi constituído a partir de normas jurídicas como a Magna Charta Libertarum.
O júri nasceu, segundo FREDERIC W. MAITLAND, “mais francês que inglês, mais real
que popular, mais o signo do subjugo que o distintivo da liberdade”. 221
Sua história 222 é, porém e rigorosamente, um bom exemplo de como, novamente
outlawed, or exiled, or in any way destroyed, nor will we go upon him, nor will we send upon him, except by
the legal judgement of his peers or by the law of the land”.
218
ROMANO, Santi. Princípios…, p. 282.
219
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.
3-56.
220
GRINOVER, Ada Pellegrini. Garantia…, p. 24.
221
MAITLAND, Frederic William, apud RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 18-27.
222
Cf., em HOLMES, Oliver Wendell. O Direito…, p. 331-332 história um tanto diversa acerca da origem
do júri inglês. Segundo esse autor, no Código de Henrique II as ações propostas por proprietários de terras
deviam ser julgadas por um assize que, conforme o modelo francês, era um órgão judiciário formado por
jurados que decidiam os casos, murmurando aprovação ou desaprovação. No caso dos não-proprietários
66

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recordando FREDERIC W. MAITLAND, mas agora para parafraseá-lo, os ingleses seguiam
tropeçando à sua maneira para, enfim, chegar à sabedoria.
Na época de formação da common law quatro eram, basicamente, os órgãos dotados
de jurisdição: a justiça local, de caráter costumeiro, a justiça senhorial, de competência
basicamente reduzida aos problemas interna corporis dos feudos, a justiça eclesiástica
que, por não lograr o desenvolvimento ocorrido no continente permaneceu com
competência reduzida aos problemas do espírito e a justiça real.
No princípio, os conquistadores preferiram manter a estrutura da justiça tal como
estava configurada. Assim, a justiça local, formada a partir de assembléias de homens
livres, como ocorria com os demais povos “bárbaros”, era o foro natural dos ingleses.
Seguiu sendo a justiça comum, por assim dizer.
A justiça dos tribunais de Westminster permaneceu, nesse tempo e até 1875, ao
menos teoricamente, uma justiça de exceção. 223 Para obter dela um pronunciamento, que
tinha caráter de privilégio, o interessado precisava obter um writ do Chancellor. No
princípio, a concessão ou não do writ ficava submetida à decisão dessa autoridade real,
que examinava se havia ou não motivo para concedê-la. Com o tempo, fixou-se o
entendimento de que em alguns casos o writ era concedido sem qualquer exame.
Ao lado desses órgãos, permaneceram funcionando as assembléias de homens livres,
praticando uma justiça baseada nos costumes. Além de não estarem próximos de todas
as localidades inglesas, a prestação jurisdicional dos Tribunais de Westminster era de
difícil acesso, por causa da exigência de writ. Entretanto, a justiça que distribuíam parecia
mais razoável e moderna às partes. Por tais razões – e porque a coroa inglesa disputava
o poder com as comunidades locais – o rei da Inglaterra preferiu “cooptar” ou mesmo
submeter essa justiça local aos padrões racionais da justiça real. Tratava-se, sem dúvida,
de uma forma de subjugo.
Para tanto, passou a enviar delegados do rei, com a função de presidirem eles os
julgamentos que essas assembléias de homens livres iriam fazer: aproveitou,
modificando-o um tanto, o modelo francês, depois abandonado, de julgamento por alguns
dos pares mais notáveis, os rachimbourgs. 224
de terra que propusessem ações quaisquer, a competência era da jurata, um conselho convocado para
decidir apenas as questões fáticas do caso. Posteriormente o assize foi absorvido pela jurata. Segundo
HOLMES, esta última é a origem verdadeira do júri inglês.
223 DAVID, René. Os grandes…, p. 336.
224 Cf., sobre o assunto, com detalhes, OURLIAC, Paul. Historia…, p. 92-96.
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O aproveitamento desse modelo, que na França também incluía um funcionário do rei,
o vicarius, tem uma razão de ordem prática: a dificuldade, ou mesmo desinteresse, de
toda a comunidade manifestar-se em cada julgamento.
Os delegados do rei da Inglaterra chegavam a uma localidade e logo se punham a
ouvir as reclamações e as notícias de crimes. Como nada sabiam, limitavam-se a
administrar a atividade popular de indiciamento, em primeiro lugar, e de julgamento,
posteriormente.
O órgão popular encarregado, por assim dizer, de indiciar os acusados da prática de
crime, era o grand jury, formado por 21 cidadãos. Esse grand jury devia decidir “se este é,
prima facie, um caso” (wether there is a prima facie case), isto é, se a acusação tinha
sustentação, se era “um documento legítimo” (a true bill). 225
O órgão encarregado do julgamento propriamente dito era o petty jury, formado por
doze membros da comunidade, preferentemente arrebanhados dentre os que tinham
conhecimento dos acontecimentos.
A partir daí, o petty jury decidia o caso com base nos conhecimentos de seus
integrantes acerca do caso; afinal, seus membros, moradores do local, sabiam o que, em
realidade, ocorrera.
Rigorosamente, isso não aconteceu desde o início. A princípio, produziam-se provas
diante do petty jury, especificamente os juízos de Deus, prática que se tornou impossível
a partir do ano de 1.219, quando a Igreja, dado o IV Concílio de Latrão, ocorrido quatro
anos antes, passou a se recusar a colaborar. 226 Com a impossibilidade de se realizarem
os ordálios, os membros do petty jury passaram a decidir com base em seus próprios
conhecimentos acerca da causa.
Somente muito tempo depois, no Século V, o petty jury passou a decidir com base em
provas produzidas racionalmente diante de si. Mesmo nesse caso, porém, a modificação
teve uma clara razão de ser: com o aumento das populações dos diversos vilarejos, já
não era possível aos julgadores saber do que ocorrera em cada lugar.
Outra particularidade que mostra como a evolução do processo inglês é lenta, mas
profundamente integrada com a realidade social, é a questão da obrigatoriedade do
acusado de se submeter ao júri.
A rigor, durante muito tempo, o suspeito da prática de um crime podia, no princípio da
225 RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.
226 RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.
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história do trial by jury, ao invés de a ele ser submetido, valer-se de “conjuradores”, ou
“compurgantes”, que com ele juravam inocência. Essa prática, porém, diante do
movimento de paulatina racionalização do procedimento inglês, não se firmou. 227
Passaram, então, a existir duas possibilidades ao suspeito. Ele podia confessar logo
seu crime, evitando ser julgado ou pedir o seu “descargo” pelo petty jury, cujos membros
funcionariam como sua prova. Contudo, se omitisse quaisquer dessas atitudes,
impossibilitando à justiça julgá-lo ou aplicar-lhe, desde logo, uma sanção, o suspeito era
submetido à peine forte et dure: 228 fechado numa sala escura, com as costas nuas sobre
o chão de pedra, era colocado sobre o seu peito um grande peso de ferro, devendo
passar a pão e água (três nacos de pão ruim num dia, três goles de água parada no
outro). 229
GUSTAV RADBRUCH comenta que, na grande maioria dos casos, os suspeitos tomavam
logo uma dessas atitudes. Apenas num caso, ocorrido em 1.658, o suspeito, com o
sugestivo sobrenome de Strangeways (ironicamente, traduzido como “estranhos
caminhos”), decerto para evitar que seus filhos perdessem o direito a sua herança, que
era uma das penas acessórias, permaneceu omisso até morrer. 230 A lei da peine forte et
dure vigorou até 1.772, quando foi revogada 231 e substituída por uma lei que dispunha
implicar em confissão tácita a inércia do acusado. 232
Em 1933 suprimiu-se o grand jury. 233
Hoje, na Inglaterra, de acordo com o registro de TERENCE INGMAN, o trial by jury, que é
praticado na “Corte da Coroa” (Crown Court) 234 tem as seguintes características: os
jurados devem ter entre dezoito e setenta anos, ser eleitores e residentes no Reino Unido
e Territórios (Channel Islands e Isle of Man) por cinco anos, no mínimo, desde os treze
anos e, segundo a regulamentação do Juries Act, de 1974, podem ser desqualificados
227
RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.
228
Cf. RABASA, Oscar. El Derecho…, p. 116. Segundo esse autor, a expressão traduz-se por: “Tortura
forte e dura”. A rigor, porém, não é correto dizer-se que se tratava de uma verdadeira “tortura”, aplicada
para obter a verdade.
229
RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.
230
RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.
231
RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.
232
Cf. RABASA, Oscar. El Derecho…, p. 116.
233
RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 103-108.
234
Cf., acerca da organização judiciária inglesa, INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.
Informações úteis encontram-se também em DAVID, René. Os grandes…, p. 386-395.
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para o serviço do júri caso presos, condenados ou se cometerem inconfidência, ao se
comunicarem com algum acusado. 235 Podem se escusar do serviço do júri se exercerem
atividade que os impeça de prestá-lo (caso das enfermeiras, soldados etc.) ou caso
apresentem uma good reason, como ser pessoa envolvida com o caso em julgamento, ter
problemas de consciência com a instituição do júri etc. 236 A seleção para um determinado
conselho de sentença é precedida de um interrogatório que os advogados fazem dos
jurados, a fim de recusá-los. Outrora, havia liberdade nesse interrogatório. Hoje, dado um
caso de crime político ocorrido em 1972, envolvendo a Angry Brigade, os advogados só
podem fazer perguntas ligadas ao crime a ser julgado e em tese, devendo excluir
perguntas acerca de convicção política, amizade ou parentesco com policiais da Irlanda
do Norte etc. 237
Hoje, segundo TERENCE INGMAN, os jurados ingleses são juízes de fato e de direito:
devem decidir baseados no que viram e ouviram, no que sabem de direito e nas lições
jurídicas que o juiz lhes ministrar, sem a necessidade de fundamentarem os seus
veredictos. 238 Não há recurso contra o “veredicto de inocente”, ou “veredicto de não-
culpado” (notguilt veredict) pronunciado na “Corte da Coroa” (Crown Court).
Como não há júris nas “cortes dos magistrados” (magistrates’ courts), que respondem
por 97 (noventa e sete) por cento dos casos criminais, apenas três por cento deles
podem, em tese, ser julgados pelo júri. 239 Na prática, porém, apenas 0,8 (oito décimos)
por cento dos casos são, efetivamente, julgados pelo júri, porque 72 (setenta e dois) por
cento dos indiciados que poderiam ser julgados, “declaram-se culpados (plead guilties), e
evitam o julgamento (trial). 240
b) a evolução estadunidense
A origem do trial by jury norte-americano é a mesma do trial by jury inglês. Contudo,
as respectivas evoluções separaram-nos profundamente. O trial by jury norte-americano é
considerado hoje um privilégio, que pode ser recusado pelo acusado. Assim,
diferentemente do que acontece com o imputado na Inglaterra, que só evita o júri – nos
235
INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.
236
INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.
237
INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.
238
INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.
239
INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.
240
INGMAN, Terence. The English…, p. 176-190.
70

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casos de competência da Crown Court, evidentemente – se declarar-se culpado, nos
Estados Unidos também pode fazê-lo renunciando ao privilégio de ser julgado por seus
pares.
A causa principal dessa separação tem ligação com a disciplina legal das respectivas
instituições. O trial by jury inglês é considerado um direito fundamental 241 , pois é tratado
no item 39 da Magna Charta Libertarum e, principalmente, no art. IV da Petition of Rights.
Contudo, é juridicamente mais maleável que o equivalente norte-americano dada a
ausência de rigidez da Constituição inglesa. Pode ser restringido ou ampliado, de acordo
com a vontade manifestada em leis ordinárias pelo Parlamento inglês.
Nos Estados Unidos, ao revés, a instituição do júri se encontra positivada na
Constituição, que é rígida. Daí porque sua evolução haveria de ser, quase
necessariamente, diferente da do trial by jury inglês.
Está claro que o júri norte-americano partiu do modelo inglês, “abandonando-o depois.
Na Constituição norte-americana, segundo a lição de EDWARD S. CORWIN, baseado, nesse
aspecto, na jurisprudência da Suprema Corte, o júri não é um direito fundamental, mas
apenas, tecnicamente, um privilégio das pessoas acusadas, ‘que dele podem desistir, se
quiserem’. Essa transformação do perfil constitucional do júri deu-se, ainda segundo o
grande constitucionalista estadunidense, dada à paulatina reelaboração, por parte da
Suprema Corte dos Estados Unidos, da noção do due process of law, que passou a ser
formada, entre outros, pelos direitos do acusado de (a) conhecer o teor da acusação e do
nome de seu defensor (b) de não se auto-incriminar (c) de não ser forçado a confessar (d)
de não ser submetido a buscas e apreensões sem motivação justa (e) de não ser
condenado com base em falso testemunho (f) de estar presente ao julgamento final (g) de
ser julgado publicamente e (h) por tribunal imparcial. Nessa perspectiva, o julgamento
popular deixou de ser, na visão da Suprema Corte dos Estados Unidos, durante o
denominado ‘Governo dos Juízes’ (1895-1937) um direito fundamental. (...) Entenda-se
que a Suprema Corte norte-americana assim agiu porque, lá, existe uma norma
constitucional que determina que todos os crimes, salvo nos casos de impeachment,
serão julgados pelo júri. Como o processo de alteração constitucional norte-americano é
por demais árduo e não há condições econômicas e políticas de submeter ao júri todos os
casos criminais, a opção da Suprema Corte norte-americana foi tratá-lo como um
privilégio dos acusados, que podem dele abrir mão, o que, de certa maneira, foi
241 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários…, p. 602.
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estabelecido em troca de um aperfeiçoamento da cláusula do due process of law. Essa
opção preservou a justiça penal norte-americana que, caso contrário, seria virtualmente
inadministrável”. 242
c) a audiência acusatória
1. publicidade
A característica externa mais saliente da audiência processual penal acusatória, até
em oposição à correspondente inquisitória, é a sua publicidade.
Com efeito, é inerente ao sistema acusatório executarem-se os atos orais do processo
num momento cercado, usualmente, de ampla publicidade.
A razão de ser dessa publicidade é clara e tem origem no próprio sistema acusatório
inglês. Como os casos eram de conhecimento de todo o povo, que o levava aos
delegados do rei, não havia razão porque cercar o julgamento propriamente dito de
qualquer espécie de nuvem de mistério.
O sistema acusatório, portanto, conservou o princípio como essencial.
Induvidosamente, tem caráter político relevante. Duas são as suas acepções: “as
audiências dos tribunais são públicas, devendo por tal entender-se não apenas (...) que
qualquer cidadão tem direito a assistir ao (e a ouvir o) desenrolar da audiência de
julgamento, mas também que são admissíveis os relatos públicos daquela audiência”. 243
2. contraditório
Outra característica bastante evidente da audiência processual penal acusatória é a
absoluta contraditoriedade de seus atos.
Enquanto a publicidade é a característica externa mais saliente da audiência
processual penal acusatória, o contraditório é a sua característica dinâmica mais
relevante.
Perceba-se que, ainda hoje, o processo penal inglês tem um caráter privado, de
disputa entre partes; é por isso também denominado adversary system.
Assim concebido, como uma disputa entre duas partes sob a vigilância e o controle do
242
RAMOS, João Gualberto Garcez. “O Júri como instrumento de efetividade da reforma penal”, em
JBC, n. 33 (1994), p. 47-48 e em RT, n. 699 (jan/1994), p. 283-284.
243
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 221.
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juiz, 244 o contraditório do sistema acusatório puro tem um outro aspecto relevante: o da
garantia de absoluta igualdade, ou paridade em armas, entre cada uma das partes.
Essa é uma das razões que justificam a inexistência de um Ministério Público na
Inglaterra, pois “o estatuto reconhecido ao Ministério Público parece-lhes, por outro lado,
que destrói a igualdade que é necessário assegurar em matéria penal entre a acusação e
o acusado”. 245
O sistema norte-americano conta com um Ministério Público, conforme é sabido.
Entretanto, o tema do contraditório pleno, ou da absoluta paridade em armas, em alguns
dos estados norte-americanos, nos Estados Unidos, tem uma abordagem diferente.
No processo penal desses estados, cujo exemplo mais importante é a Califórnia, o
contraditório é garantido pelo juiz, entre Ministério Público e acusado, de uma maneira
mais abrangente sob o aspecto dinâmico. A paridade de armas há de ser garantida
mesmo na fase pré-processual, ocasião em que as partes têm o dever jurídico de mostrar
umas às outras as provas que possuem. É o que se denomina pre-trial discovery.
Um acórdão da Suprema Corte da Califórnia explica os fundamentos dessa solução:
“a acusação deve revelar as suas provas à defesa, a fim de assegurar ao imputado um
contraditório real. O segredo sobre as provas que venham a ser coligidas rende um
contraditório aleatório, e a sociedade é interessada demais na justa definição do processo
penal para permitir que a defesa seja apanhada de surpresa”. 246
Esse entendimento jurisprudencial, conforme dito, não está consagrado em todos os
estados norte-americanos. LÊDA BOECHAT RODRIGUES, entretanto, descreve outra decisão
da Suprema Corte norte-americana, 247 ocorrida em três de junho de 1957, que estendeu
o princípio aos processos criminais federais: “afirmou a Corte que quando o Governo
244 Cf. observação em RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 27-30, no sentido de que, nos registros
dos processos penais condenatórios, tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, cada caso é registrado
com a expressão latina versus abreviada (“v.”, ou “vs.”) entre a denominação de cada parte; exemplo: Rex
v. Smith etc., lembrando um duelo entre as partes envolvidas, ainda que alguma delas seja o próprio rei ou
rainha ou, no caso dos Estados Unidos, um dos estados ou a própria administração federal.
245 DAVID, René. Os grandes…, p. 395.
246
Cash v. Superior Court, 53 Cal. 2d 72 (1959) apud SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, nota
33, p. 86. A tradução foi feita livremente da tradução do acórdão californiano para o italiano, provavelmente
por SCAPARONE. Trecho original: “l’accusa deve rivelare le sue prova alla difesa per assicurare all’imputato
un dibattimento leale. Il segreto sulle prove che verrano adotte rende il dibattimento aleatório, e la società è
troppo interessata alla giusta definizione del processo penale per poter tollerare che la difesa venga colta di
sorpresa”.
247
Jencks v. United States, 353 U.S. 657 (1957) apud RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte
Suprema…, p. 305-306. A autora anota que o redator da decisão foi o justice Willian Brennan Jr.;
concordaram com suas considerações os justices Harold H. Burton e John Marshall Harlan; opinou em
sentido contrário o justice Tom Clark.
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processa alguém criminalmente tem o dever de assegurar-lhe justiça e não pode negar à
defesa vista dos depoimentos em que se baseou a acusação. Não basta alegar razões de
segurança nacional contrárias à comunicação desses elementos à defesa, ou o caráter
confidencial dos relatórios (no caso, tratava-se de informes orais e escritos de agentes
pagos pelo F.B.I. para obterem dados relativos ao Partido Comunista), ou o interesse
público, ou, ainda, outros motivos, para eximir o Governo dessa obrigação. Este terá de
decidir, por conseguinte, “se o prejuízo público decorrente do fato de deixar o crime
impunido é maior que o advindo da possível divulgação de segredos de Estado e de
outras informações confidenciais em sua posse”. Tal responsabilidade pertence ao
Governo e não pode ser deslocada para os tribunais; se este resolve descumprir ordem
judicial e se recusa a exibir documentação essencial à defesa do acusado, a ação criminal
deve ser julgada improcedente”. 248
Nesse particular, o que tem, efetivamente importância, é uma regra, ou princípio,
firmado por tribunais ingleses acerca do contraditório. Estabelecido esse princípio também
pelos tribunais norte-americanos, as diversas soluções dependerão do ritmo da evolução,
ou involução, do entendimento jurisprudencial a respeito.
Como todas as regras da common law, foi ela o resultado de uma evolução. Nesse
caso, relaciona-se com o entendimento acerca do caráter de disputa do processo penal
acusatório, base do seu conceito de contraditório.
Segundo METELLO SCAPARONE, alguns autores anglo-americanos, cujos nomes não
declina, explicam a questão em conexão com certo entendimento do processo penal
como uma verdadeira disputa esportiva. Tal entendimento, explícito ou não, foi agrupado
dentro de uma teoria curiosamente denominada “sporting theory of the common law”: “Em
um processo penal no qual (...) ‘a vitória deveria vir para o contendor que usasse de
astúcia, força e habilidade, era lógico que qualquer das partes pudesse ter as suas provas
em segredo até o último instante, para assim poderem usá-las nos debates de forma a
obter um maior rendimento”. 249
Contudo, a evolução do processo penal inglês fez com que se abandonasse essa
visão, extremamente árida, e se passasse a “ver no processo penal não tanto um “jogo
248
RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte Suprema…, p. 305-306.
249
SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 81. Trecho original: “In un processo nel quale (...) “la
vittoria sarebbe dovutta arridere al contendente che fosse prevalso in astuzia, forza e abilità”, era logico che
ciascuna delle parti potesse tenere le sue prove segrete fino all’ultimo, così da poterle usare al dibattimento
in modo di ottenerne il maggiore rendimento”.
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esportivo” entre as partes, mas um instrumento para definir a verdade”. 250
Assim, os tribunais ingleses definiram uma regra diversa acerca do contraditório, que
deve ser considerada como outro dos seus mais relevantes aspectos, no presente: “o
advogado que aceita sustentar as razões da acusação num processo, não deve
considerar-se o tutor dos interesses de uma parte, mas deve fazer todo esforço para que
a justiça, seja como for, triunfe”. 251
3. oralidade
Acerca da oralidade, o mais provável é que ela tenha sido a tônica do processo
acusatório desde o seu princípio. Na verdade, trata-se de um sistema que se imporia de
maneira natural, dado que o processo acusatório nasceu das práticas de justiça dos
vilarejos ingleses, praticadas pelos próprios vilões. Da mesma maneira com as formas
acusatórias de processo existentes no período republicano de Roma, na Grécia ou
mesmo entre os bárbaros, já mais próximos dos ingleses.
Com efeito, tratava-se da mais razoável forma de comunicação numa audiência com
caráter popular como a acusatória.
A oralidade do sistema acusatório puro, é possível dizê-lo, fez com que adquirisse
natural destaque a fase crítica da audiência de julgamento, isto é, os debates.
Em primeiro lugar, impôs que esses debates se realizassem oralmente, como uma
discussão entre as partes técnicas – órgão do Ministério Público, assistente do Ministério
Público, defensor técnico e advogado do querelante – sob os olhos do conselho de
sentença. Por outro, educou-as na condução desses debates, conforme registra JOSÉ
ANTONIO PIMENTA BUENO: “Os advogados ingleses aplicam todo o cuidado no exame das
provas e na clareza dos debates, evitando divagações, e o vício das declamações: sua
eloqüência forense é por isso mesmo vigorosa e original”. 252
4. imediação
Quanto à imediação na audiência processual penal no sistema acusatório, é lícito
afirmar que ela somente passou a existir, com todas as suas características, a partir do
250
SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 81. Trecho original: “vedere nel processo penale non
tanto un “gioco sportivo” fra le parti quanto piuttosto uno strumento per accertare la verità”.
251
SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 81. Trecho original: “l’avvocato che accetta di
sostenere le ragioni dell’accusa nel dibattimento non deve considerarsi il tuttore degli interessi di una parte,
ma deve fare ogni sforzo perché la giustizia comunque trionfi”.
252
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 430.
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momento em que o petty jury se transformou de júri de prova que era, em órgão judiciário
encarregado de ouvir a produção oral de provas. Isso ocorreu apenas muitos anos depois
da “invenção” do júri.
Até então é possível afirmar que na audiência processual penal havia imediação, na
medida em que a decisão era precedida de alguma espécie de diálogo oral e, portanto,
direto, entre as partes e o órgão julgador. Mais do que isso, como no início do processo
acusatório havia a produção de provas irracionais, não há porque se acreditar na
ausência de certa imediatidade. Contudo, nesse caso, como o que importava nas provas
irracionais era efetivamente o seu resultado, mais do que sua produção, qualquer
imediatidade era apenas um elemento acidental.
Entretanto, se o entendimento for no sentido veramente científico, isto é, de que a
imediação é, sobretudo, o contato direto entre o órgão julgador e as provas, no sentido de
que ele presencia-lhes a produção, a fim de poder analisar-lhes o resultado, a conclusão
só pode ser no sentido de que, quanto a esse atributo, a audiência processual penal
acusatória somente veio a adquiri-lo a partir do momento em que se começou a, nela,
produzir-se prova oral.
5. concentração
O processo acusatório introduziu, por assim dizer, o princípio da concentração.
Fê-lo, contudo, de maneira natural, sem preocupações de outra ordem, como hoje se
tem em relação a esse princípio. Dessa maneira, é razoável pensar-se no princípio da
concentração como algo presente no processo e na audiência processual penal
acusatórios. Contudo, é também sustentável afirmar-se que o respeito a ele dependia das
conveniências políticas e circunstanciais de cada caso.
É dizer: nada obriga a pensar que o princípio da concentração é algo inerente ao
processo penal acusatório desde o seu nascimento. A concentração ou não entre as
audiências de instrução e julgamento ou – situação modelar – a realização da instrução e
julgamento num só momento, dependiam, a princípio – como dependem até hoje, da
conveniência de cada caso, da urgência em decidir ou mesmo de outros motivos
subalternos, que não cabe enumerar.
O que é bastante lícito afirmar é que a concentração se justifica, tem uma razão de
ser, no processo penal acusatório. A audiência processual penal acusatória que obedece
o princípio da concentração é um formidável instrumento na busca da verdade material.
Não é possível dizer que seja um instrumento perfeito, mas é formidável.
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Capítulo 2
A evolução histórica no Brasil
Seção A
Nas Ordenações do Reino de Portugal
§ 1º As Ordenações Afonsinas
Nascidas a partir da necessidade de compilação dos antigos “forais” e leis –
especialmente a Lei das Sete Partidas – do reino de Portugal, 253 as Ordenações
Afonsinas não tiveram, praticamente, influência direta sobre o Brasil, na medida em que
vigoraram entre os anos de 1.446 e 1.521.
ANÍBAL BRUNO chega ao ponto de afirmar que as Ordenações Afonsinas só têm
relevância para o Brasil pelo que contribuíram para a formação das Manuelinas. 254
Contudo, talvez seja de interesse fixar-lhes algumas das linhas básicas.
Talvez como imitação das “Decretais” do Papa Gregório IX – afirma JOÃO MENDES DE
ALMEIDA JÚNIOR – as Ordenações Afonsinas foram divididas em cinco livros. 255
O livro primeiro disciplinava o regime jurídico dos órgãos de administração da justiça,
o livro segundo, as leis “relativas à jurisdição, pessoas e bens da Igreja, a jurisdição e
privilégios dos donatários, os direitos reais e sua arrecadação”, 256 o livro terceiro, as
normas do processo civil, o livro quarto, as normas de Direito Civil e o livro quinto, as
normas penais e processuais penais. 257
JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR descreve com precisão as iniquidades do livro quinto
dessas Ordenações Afonsinas: “Os defeitos dos Códigos Criminais da meia idade se
acham neste de mistura com as disposições de Direito Romano e Canônico. O legislador
não teve em vista tanto os fins das penas, e a sua proporção com o delito, como conter os
homens por meio do terror e do sangue. O crime de feitiçaria e encantos, o trato ilícito do
Cristão com Judia ou Moura, e o furto do valor de marco de prata, são igualmente punidos
com pena de morte. O crime de lesa-majestade foi adotado com todo o odioso das leis
imperiais, assim enquanto à qualidade do crime, como enquanto ao modo de o processar.
253
THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 67.
254
BRUNO, Aníbal. Direito…, p. 158.
255
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 103.
256
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 104.
257
Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 103.
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Na imposição das penas reconhece-se a desigualdade do sistema feudal: aos nobres
impõem-se sempre penas menores do que aos plebeus. (...) Para coibir o arbítrio dos
juízes, foram declarados subsidiários o Direito Romano e o Direito Canônico. Este, o
Canônico, devia ser aplicado nos casos que envolvessem pecado; e aquele, nos outros
(...) Na falta destes, e como em terceiro grau, foram mandadas seguir as glosas e
opiniões de Accursio; e depois deste as de Bartolo, no conflito destes, ou absoluta falta de
textos, devia o Juiz consultar o governo”. 258
Especificamente com relação ao processo penal, o entendimento predominante, ao
tempo das Ordenações Afonsinas, é de que se tratava de matéria relativa ao pecado,
razão pela qual, segundo JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, nessa matéria se recorria
amiúde às regras do processo canônico. 259
JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, aliás, descreve as fases do processo criminal
ordinário previsto nas Ordenações Afonsinas: “1º Três modos de proceder: a acusação, a
denúncia, a inquirição. A acusação inscrevia-se pelo auto de querela; a denúncia não se
inscrevia, pois era o meio de delação secreta e da súplica dos fracos; à inquirição, em
regra, procedia-se ex officio. 2º Lavrado o auto de querela, com as formalidades do
juramento e nomeação de duas ou três testemunhas, ou feita a denúncia, ou encerrada a
inquirição, tinha lugar a citação; 3º Seguia-se o interrogatório do réu, em que este podia
negar ou confessar o crime e exigir que as testemunhas da devassa se tornassem
judiciais, isto é, que fossem reperguntadas perante o Juiz em sua presença: era isto a
recollectio ou recollatio e a confrontatio. 4º Terminadas as inquirições, dava-se ao réu
termo para defesa, ou como diziam os canonistas – ad allegandum quidquid vult ne
condemnetur, et ad omnes suas defensiones faciendas”. 260
As características do processo penal, seja ele iniciado por acusação – pelo chamado
auto de querela – ou por ato do juiz ordinário – nos casos de denúncia ou inquirição –
eram fortemente marcadas pelo processo inquisitório, de cujas linhas gerais guarda
importante influência. 261
Assim, a audiência processual penal prevista nas Ordenações Afonsinas se insere na
258
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 104-105.
259
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 105.
260
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 106.
261
Cf., acerca do exagerado formalismo e do predomínio da escritura no processo penal e mesmo na
audiência processual penal previstos nas Ordenações Afonsinas, ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O
processo…, p. 107-110.
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classificação de um processo de matiz inquisitória: podia dispor de partes, no sentido
formal, mas o predomínio no jogo de forças do processo era claramente do juiz.
“Unânimes são os autores em exaltar as qualidades do Código Afonsino – naturalmente
levando em conta o pioneirismo da obra e a época em que surgiu. (...). Claro, ainda
contempla grande número de infrações religiosas, cominando-lhes castigos atrozes, (...)
presta excessivo tributo às formalidades, (...) não cuida de proporcionar as penas aos
delitos, concebendo-as, exclusivamente, como meio de intimidar os homens através do
terror e do sangue. Impossível, porém, fosse de outro modo: distantes estavam os albores
do Direito Penal científico”. 262
§ 2º As Ordenações Manuelinas
Segundo AUGUSTO F. G. THOMPSON, as Ordenações Manuelinas nasceram a partir da
intenção do rei de Portugal, Dom Manuel, cognominado “O Venturoso”, de se fortalecer
diante das justiças senhorial e eclesiástica. 263 Segundo JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR,
quando D. Manuel começou a reinar, já encontrou a justiça real predominando fortemente
sobre todas as outras. Contudo, pretendeu fortalecê-la ainda mais, multiplicando “o
número de juízes de fora, de tal modo que, em Portugal, já não era comum a existência
de juízes ordinários, ou antes, a jurisdição dos juízes ordinários já estava, quase por toda
a parte do reino, a cargo de juízes de fóra”. 264
Feita às pressas, por comissões de juristas, que se sucederam, às Ordenações
Manuelinas, último ato de D. Manuel durante sua vida, não se podem dirigir os elogios
feitos às anteriores, 265 embora JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR deixe consignado que
suas “alterações, principalmente no que diz respeito ao processo criminal, são muito
importantes”. 266
A jurisdição dos mouros e judeus, existente nas Ordenações Afonsinas, é excluída
das Manuelinas, 267 que também introduzem a figura do Promotor de Justiça, 268 órgão
262
THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 72.
263
THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 73.
264
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 116.
265
Cf. THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 74.
266
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 115.
267
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 115.
268
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 115.
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encarregado de requerer as causas de interesse da justiça pública. 269 O processo penal,
cada vez mais, passou a adquirir os contornos do processo penal romano, da fase de
decadência (cognitio extra ordinem) e do processo canônico. 270
Pouca importância tiveram, no Brasil, as Ordenações Manuelinas, (...) embora, formalmente,
estivessem vigorando na época das capitanias hereditárias. Abundavam as determinações reais
especialmente decretadas para a nova colônia, as quais, aliadas às cartas de doação, com força
semelhante à dos forais, abacinavam as regras do Código unitário. (...) O arbítrio dos donatários, na
prática, é que estatuía o Direito empregado e, como cada um tinha um critério próprio, era
extremamente caótico o regime jurídico da América. 271
Impressionou JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, 272 nas Ordenações Manuelinas, a
obrigatoriedade da apelação das sentenças definitivas (se as partes não o fizessem,
fazia-o o juiz) e, principalmente, a existência de apelação voluntária das interlocutórias
irreparáveis, como, no exemplo de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR, “se o juiz julgasse
meter o preso a tormento”. 273
Quanto ao mais, interessam efetivamente, para a evolução da audiência processual
penal no Brasil, as Ordenações Filipinas.
§ 3º As Ordenações Filipinas
JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI descreve os antecedentes e circunstâncias históricos que
levaram à promulgação das Ordenações Filipinas:
A morte de D. João III, em 1.557, fez com que o Cardeal D. Henrique assumisse, na qualidade de
Regente, o poder, pois D. Sebastião, o herdeiro do trono, contava com apenas três anos de idade. D.
Sebastião, ao atingir a idade de catorze anos, (...) assumiu o trono com plenos poderes. Muito jovem e
despreparado para as funções de Chefe de Estado, ao que se associa uma personalidade mórbida e
sonhadora, o jovem rei atirou-se à aventura de tomar o Marrocos aos mouros, sem que dispusesse de
recursos para tal empreitada bélica. Na Batalha de Alcácer-Quibir, o jovem soberano encontrou a
morte. Assumiu o trono (...) o Cardeal D. Henrique, que possuía discutíveis qualidades de governante
(...). Sua morte possibilitou a Felipe II, de Espanha, empolgar, por herança, o trono lusitano. Em 1.581,
era sagrado Rei de Portugal, com o título de Felipe I.
Felipe I (II, de Espanha) mandou refundir as Ordenações. (...).
(...)
As Ordenações Filipinas só foram promulgadas no reinado de D. Felipe II (III, de Espanha), entrando
269
Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 116.
270
Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 117.
271
THOMPSON, Augusto F. G. Escorço…, p. 76.
272
PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 60.
273
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 117.
80

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em vigor por lei de 11 de janeiro de 1.603. 274
O processo penal, nas Ordenações Filipinas, é tratado a partir do título 117 (cento e
dezessete). A seu respeito, afirma JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR: “na consolidação
houve precipitações tais, que deram em resultado muitas obscuridades”. 275
No caso, as obscuridades dizem com regras das Ordenações Filipinas referentes ao
início do processo penal, sobretudo no que respeita ao ato de dar ou tirar querelas, 276
conforme dito, extremamente aferrado a formalidades.
No que toca ao caráter do processo penal, dois aspectos revelam, com clareza solar,
o caráter inquisitorial das Ordenações Filipinas.
O primeiro deles está nos cinco títulos que abrem o Livro V: “Dos Hereges e
Apostatas” (Título I) “Dos que arrenegão, ou blasfemão de Deos, ou dos Santos” (Título II)
“Dos Feiticeiros” (Título III) “Dos que benzem cães, ou bichos sem autoridade d’El Rey, ou
dos Prelados” (Título IV) e “Dos que fazem vigilias em Igrejas, ou vódos fóra dellas”
(Título V).
O segundo aspecto, que demonstra claramente a predisposição dessa legislação ao
policiamento da população e à repressão da criminalidade em geral, relaciona-se às
chamadas devassas.
Havia devassas gerais e devassas especiais: as gerais, sobre delitos incertos, eram tiradas
anualmente, quando os juízes principiavam a servir os seus cargos, e também eram gerais as
chamadas janeirinhas, que, em relação a alguns crimes, se tiravam em Janeiro de cada ano; as
especiais supõem a existência do delito de que é só incerto o delinqüente. (...) Em regra, as
testemunhas perguntadas na devassa não podiam exceder de trinta. 277
Nas devassas, o juiz competente ouvia testemunhas acerca do comportamento das
pessoas integrantes de determinada comunidade, a fim de saber da eventual prática de
crimes, tendo em vista o caráter religioso das ordenações Filipinas, calcula-se o quanto as
devassas gerais serviram como instrumento de opressão e intolerância religiosa.
As devassas, certamente, dado que fortaleceram os poderes dos juízes de fora e de
seus delegados, prepararam o terreno, ainda que remotamente, para o inquérito policial,
que veio a ser adotado no Código de Processo Penal de 1941.
Entretanto, o trecho de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR referente às devassas,
274
PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 62.
275
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 121.
276
Cf. detalhes a respeito e comparação das regras das Ordenações Manuelinas e Filipina em
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 121-126.
277
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 126 [sem grifo no original].
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mostra-se atual e poderia ser transcrito sem modificações e integrar uma crítica ao
inquérito policial, que ao tempo das Ordenações nem “sonhava” em ser concebido: “As
devassas, sendo inquirições feitas sem citação da parte, não eram consideradas
inquirições judiciais, para o efeito do julgamento, sem que as testemunhas fossem
reperguntadas e as testemunhas dos sumários das querelas do mesmo modo. Mas, para
efeito de prisão preventiva, assim como nos casos em que se não procedia
ordinariamente, não havia necessidade dessa reiteração”. 278
As devassas eram, sem necessidade alguma de retoques, verdadeiros panópticos, no
modelo descrito por MICHEL FOUCAULT, servindo de instrumentos para opressão social:
O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na periferia
uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a
face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda a
espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da
torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então
colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um
operário ou um escolar.
(...) Por isso Bentham colocou o princípio de que o poder devia ser visível e inverificável. Visível: sem
cessar o detento terá diante dos olhos a alta silhueta da torre central de onde é espionado. Inverificável:
o detento nunca deve saber se está sendo observado; mas deve ter certeza de que sempre pode sê-
lo. 279
Quanto à audiência processual penal e ao processo penal, o modelo então vigente era
o inquisitório, com todas as características já mencionadas.
Dois eram os procedimentos: o ordinário 280 e o sumário. 281
Em qualquer dos dois procedimentos – mesmo no sumário, mais célere por natureza
– a formalidade e a solenidade eram havidas em alta conta, com tendência flagrante à
278
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 127 [sem grifo no original].
279
FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 177-178.
280
Cf., o iter do procedimento ordinário das Ordenações Filipinas em ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes
de. O processo…, p. 129: “No processo ordinário era guardada a ordem solene do juízo com citação, libelo,
exceções, como atos preparatórios, com contestação, contrariedade, réplica, tréplica, provas, publicação,
alegações da defesa e sentença, como atos médios; com embargos, apelação, agravo e execução, como
atos últimos ou posteriores, segundo a classificação dos praxistas do tempo”.
281
Cf., o iter do procedimento sumário das Ordenações Filipinas em ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes
de. O processo…, p. 129: “O processo sumário tinha lugar nos crimes leves (...) nas injúrias verbais
sentenciadas em câmara e nas cauções ou termos de não ofender e bem viver; e também tinha lugar nos
casos mais graves, isto é, nos casos de pena de morte que se processavam nas Relações. Nestes últimos
nem mesmo era necessária a citação da parte, nem que as testemunhas se tornassem judiciais, admitindose
apenas a defesa em termo breve; nos primeiros não se guardavam as solenidades, mas se seguia a
ordem natural do juízo, com citação e defesa e recursos, posto que em termo leve. (...) Os recursos
ordinários eram, além dos embargos, a apelação e o agravo; o recurso extraordinário era a revista por
graça ou concessão régia”.
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escritura. A tortura, a fim de obter a confissão do imputado, era de uso corrente. Há aqui
um jogo de palavras: a lei da época determinava que a tortura só fosse ordenada nos
casos mais graves e aplicada somente após conhecimento e julgamento de apelação do
imputado; 282 como as Ordenações Filipinas puniam com severidade infrações morais e
religiosas, a tortura era um instrumento usado em flagrante desproporção aos crimes cuja
comprovação pretendia facilitar.
Conceitualmente, os termos tortura e tormento, conforme JOÃO MENDES DE ALMEIDA
JÚNIOR, não querem dizer exatamente a mesma coisa: “Os tormentos eram perguntas
judiciais feitas ao réu de crimes graves, a fim de compeli-lo a dizer a verdade por meio de
tratos do corpo. Ao próprio trato chama-se também tortura; e esta expressão é a mais
vulgar”. 283
Finalmente, é precisa e exemplar a crítica colocada por JOÃO MENDES DE ALMEIDA
JÚNIOR com relação ao uso que se fez, naquele período, da tortura:
A esquissa ou inquérito e o processo secreto desenvolveram, pois, o uso da tortura, em conseqüência
dos preconceitos que levaram a jurisprudência a formular, como regra essencial, a necessidade de
confissão do acusado. O juiz, habituado a fundar toda a instrução nas contínuas perguntas ao réu,
buscava todos os meios de extorquir essa confissão, ostentando uma habilidade sem escrúpulo, quer
para a sugestão, quer para as ciladas, quer para o cansaço do interrogado; e, se ainda assim nada
conseguisse, recorria às ameaças e depois aos tormentos. 284
Tais são, em linhas gerais, as características do processo penal e, particularmente, da
audiência processual penal previstos nas Ordenações Filipinas. Como vigoraram por mais
de duzentos anos no Brasil, contribuíram no enformar a mente dos que obravam com a
justiça penal. Esse costume de “fazer inquisição”, de certa maneira até hoje visível,
mostrar-se-á muito mais claro quando se estudar o processo penal do Império do Brasil e
a tentativa, ocorrida nesse período, de adotar um modelo acusatório puro.
282
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 131.
283
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 130.
284
ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 131.
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Seção B
No Código do Processo Criminal de Primeira Instância
§ 1º A sistemática original
O Código do Processo Criminal de Primeira Instância – Lei de 29 de novembro de
1832 – que vigorou durante boa parte do período imperial brasileiro, insere-se na
circunstância histórica da independência do Brasil. Apesar de uma certa “inclinação
autoritária” de Dom Pedro I 285 – afinal, ele dissolveu a Assembléia Constituinte em 1823
e, ao outorgá-la, em 1824, fez com que a Constituição previsse um amplo e incontrastável
“Poder Moderador” – esse código reflete algumas das concepções liberais desse
monarca.
Por conta dessas concepções, Dom Pedro I pretendeu – não há como negá-lo – dar
ao país uma legislação penal liberal e avançada, inspirada no que de melhor havia no
mundo de então. Tão inspirada foi essa tarefa, que seus executores acabaram por
conceber soluções penais originais e das mais interessantes, de que é saliente exemplo o
“dia-multa”. 286
No caso do processo penal, Dom Pedro I encarregou o Senador Alves Branco de
preparar um anteprojeto de Código. Andou bem o dito parlamentar, ao praticamente nada
aproveitar das Ordenações, 287 buscando inspiração no sistema acusatório inglês, bem
como no sistema reformado francês, 288 para realizar um processo penal com ambas as
características: “O nosso Código do Processo Criminal, consagrando o sistema misto,
subordinou a formação da culpa mais ao processo inquisitório do que ao acusatório,
deixando ao plenário da acusação, defesa, provas e julgamento, toda a amplitude do
processo acusatório”. 289
Conforme a gravidade do delito, o processo penal condenatório era ordinário ou
285
ALENCAR, Francisco, RAMALHO, Lúcia Carpi e RIBEIRO, Marcus Venício Toledo. História…, p.
100.
286
Cf. PRADO, Luiz Regis. Multa…, p. 44: “sem dúvida, o Estatuto Penal de 1830 foi extremamente
original em inúmeras matérias e, dentre elas, convém pôr em evidência, como exemplo claro, o esboço,
pela vez primeira, do sistema de dias-multa para a pena pecuniária, que, a bem da verdade histórica,
deveria chamar-se também sistema brasileiro”.
287
Cf. ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 226.
288 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 12.
289 ALMEIDA JÚNIOR, João Mendes de. O processo…, p. 226.
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sumário; conforme a qualidade de seu autor, comum ou especial. 290
Quanto ao procedimento ordinário, também denominado “comum do júri”, 291 era
dividido em duas fases – juízo de acusação e juízo da causa. Seu iter, na lição de JOSÉ
ANTONIO PIMENTA BUENO, era o seguinte:
1º (...) desde que há crime, ele trata de assegurar-se da existência do delito, e de reconhecer quem
seja seu autor e cúmplices (...): é o processo de formação da culpa (...).
2º Formada a culpa, ele determina que o libelo (...) seja formulado; que todos os esclarecimentos ou
meios de convicção e defesa sejam coligidos; e que se expeçam as providências necessárias para
constituir o tribunal; são os preparativos dos debates e do exame.
3º Finalmente, manda desenvolver perante o tribunal a acusação já formulada, contestá-la e debatê-la
solenemente, analisar o valor das provas e das circunstâncias agravantes ou atenuantes dos fatos; (...);
esse é propriamente o processo da acusação.
4º Segue-se o ato do julgamento ou a sentença, os recursos dela, ou a execução. 292
Está clara a influência do processo penal acusatório inglês, inclusive pela existência
de um grand jury, previsto nos seus arts. 242 a 253. Esse grand jury, legalmente
denominado de “1º Conselho de Jurados”, ou “Júri de Acusação”, foi extinto pelo art. 54
da Lei n. 261, de três de dezembro de 1841.
O dito processo de formação da culpa, então também denominado sumário de culpa –
aspecto que lhe dá caráter misto, na visão de JOÃO MENDES DE ALMEIDA JÚNIOR – era
presidido por um juiz que investigava a prática do crime, coligindo elementos de prova
que autorizassem a remessa do caso ao seu juiz natural, o júri de sentença.
Segundo JOSÉ ANTONIO PIMENTA BUENO, duas sub-fases compunham essa fase de
formação da culpa: a primeira delas englobava as medidas de investigação, indiciamento
e cautelares instrutórias, isto é, de conservação das provas colhidas; a segunda, judicial
“por sua natureza”, prolongava-se até a pronúncia. 293
No princípio da fase de formação da culpa, conforme dito, tratava o juiz de investigar,
de colher provas do caso. A preocupação central, nessa fase, como se percebe do exame
dos arts. 134 a 149 do referido Código, era estabelecer e resguardar o corpo de delito,
através de auto próprio. É o que determinava o seu art. 134: “Formar-se-á auto de corpo
290
Cf. BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 212.
291
Cf. definição do referido procedimento ordinário em BUENO, José Antonio Pimenta.
Apontamentos…, p. 266: “O processo criminal ordinário é o complexo dos termos e fórmulas solenes que a
lei em sua sabedoria tem criado e prescrito para a direção e marcha do juízo criminal em relação aos delitos
graves. É o modo, a ordem legítima de descobrir e seguir tais crimes, de reconhecê-los, de comprová-los e
de julgá-los mediante os meios amplos ou trâmites ordinários e protetores que o direito haja determinado”.
292
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 267.
293 BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 268.
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de delito, quando este deixa vestígios que podem ser ocularmente examinados; não
existindo porém vestígios, formar-se-á o dito auto por duas testemunhas que deponham
da existência do fato, e suas circunstâncias”.
Trata-se de verdadeira medida cautelar instrutória, semelhante a que se verifica hoje,
no auto de prisão em flagrante e, em menor grau, em todo o inquérito policial. A diferença
fundamental é que a formação do corpo de delito, nesse caso, era de competência de
órgão judiciário. 294 Presidia essa atividade cautelar o princípio inquisitório, inclusive na
oitiva das testemunhas e do imputado.
Quanto às testemunhas, no sistema do Código do Processo Criminal de Primeira
Instância, segundo GALDINO SIQUEIRA, guardam elas as mesmas características das
testemunhas no Código de Processo Penal de 1941 como, por exemplo, a de deporem
apenas acerca dos fatos. 295
Uma diferença importante, porém, afasta-as das testemunhas do sistema atual: no
Código do Processo Criminal de Primeira Instância não predominava, como no de 1941, o
princípio da presidencialidade, pois as testemunhas somente eram inquiridas pelo juiz na
fase de formação da culpa e nos processos ditos “policiais”, de procedimento sumário.
Era o que dispunham os seus arts. 114-227.
No procedimento ordinário o juiz está afastado da produção da prova, tarefa deferida
às partes. Era o que determinavam os arts. 262 – “As testemunhas do acusador serão
introduzidas na sala da sessão, e jurarão sobre os artigos, sendo primeiro inquiridas pelo
acusador, ou seu Advogado, ou Procurador, e depois pelo réu, seu Advogado, ou
Procurador” – e 264 do Código do Processo Criminal de Primeira Instância – “As
testemunhas do réu serão introduzidas, e jurarão sobre os artigos, sendo inquiridas
primeiro pelo Advogado do réu, e depois pelo do acusador, ou autor”.
Já o interrogatório do imputado, seja ele realizado durante a fase de formação da
culpa, seja realizado no plenário do júri, era sempre baseado no princípio da
presidencialidade. Contudo, acerca da sua natureza jurídica, JOSÉ ANTONIO PIMENTA
BUENO conclui diferentemente em relação a cada um dos interrogatórios: quanto ao
interrogatório da fase de formação da culpa, conclui ter as características de meio de
defesa e de meio de prova (em suas palavras, “meio de reconhecer a verdade”); 296
294 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 12.
295 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 207.
296 BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 357.
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quanto ao realizado no plenário do júri, chega a resultado diverso: “O interrogatório tem
pois caráter de um meio de defesa: mediante ele pode o acusado expor antecedentes que
justifiquem ou atenuem o crime, opor exceções contra as testemunhas, e indicar fatos ou
provas que estabeleçam sua inocência. Então ele é o próprio advogado de si mesmo, é a
natureza que pugna pela conservação de sua liberdade e vida, que fala perante juízes
que observam seus gestos e suas emoções”. 297
Um último aspecto relevante do Código do Processo Criminal de Primeira Instância é
o destaque que nele assumiam os debates orais, tal como se verifica hoje, no
procedimento especial do júri. A rigor, é um efeito normal do processo penal de matiz
acusatória.
No procedimento ordinário do Código do Processo Criminal de Primeira Instância,
contudo, a ordem dos debates orais é diversa da que é atualmente prevista para o
procedimento especial do júri. Segundo o seu art. 261, o acusador deduz sua acusação
desde logo, antes da atividade instrutória da sessão de instrução e julgamento. A essa
acusação, segundo o art. 262, segue-se a oitiva das testemunhas de acusação, sempre
inquiridas pelas partes técnicas.
Após a inquirição das testemunhas de acusação, a defesa é produzida, segundo
prevê o art. 263. É depois dessa defesa que, de acordo com o art. 264, as partes técnicas
inquirem as testemunhas arroladas pelo acusado.
Após a inquirição das testemunhas de defesa, vem a fase conclusiva da atividade
crítica, de réplica e tréplica, previstas no art. 265. 298 Nessa fase conclusiva, ainda
segundo o art. 265, as partes técnicas “poderão requerer a repergunta de alguma, ou de
algumas testemunhas já inquiridas; ou a inquirição de mais duas de novo para pleno
conhecimento de algum, ou alguns artigos, ou pontos contestados, ou para provar
algumas testemunhas qualidades que as constituem indignas de fé”.
Por fim, o art. 266 autorizava o deferimento de alguma outra diligência relevante,
antes da fase propriamente decisória do referido procedimento ordinário.
§ 2º As reformas de 1841 e 1871
A previsão, nas Ordenações Filipinas, de um sistema de devassas titularizado por
297
BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos…, p. 423.
298
No procedimento especial do júri do Código de Processo Penal vigente, conforme se sabe e ver-seá
adiante, com maiores detalhes, as provas são produzidas antes dos debates orais, aos quais se segue a
fase conclusiva da atividade crítica da sessão de instrução e julgamento desse procedimento especial.
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órgãos judiciais com atribuições policiais – verdadeiro panóptico, de onde era possível
exercer um controle férreo sobre a população – acostumou as autoridades brasileiras – e,
por que não dizer? a própria população – ao policiamento e à inquisição. Como esse
controle era exercido sobre as camadas menos favorecidas da população e não sobre os
mais abastados, os conservadores nele “faziam gosto” como, decerto, era usado falar
naqueles tempos.
Assim, não tardou a iniciar-se uma campanha conservadora contra o espírito liberal do
Código do Processo Criminal de Primeira Instância.
A primeira reação conservadora foi, provavelmente, de arrependimento, no caso, do
próprio Senador Alves Branco. Segundo JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, já na sessão de
nove de setembro de 1835 do Senado Federal, esse parlamentar advogava uma reforma
no Código, apresentando, inclusive, um projeto nesse sentido e “apontando nessa
ocasião, a necessidade de dissociação das funções judiciárias e policiais, que estavam
entregues aos juízes municipais e aos juízes de paz, para que as mesmas fossem
entregues ao chefe de polícia, por si e pelos seus delegados, que deveriam, com
exclusividade, proceder à formação da culpa”. 299
Esse projeto de reforma, ainda segundo JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, não foi
examinado conclusivamente, uma vez que, na prática e nas atenções e na preferência
dos conservadores, outro tomou-lhe o lugar. Tratou-se do projeto de reforma elaborado
pelo Senador Bernardo Pereira de Vasconcellos que, embora combatido ferrenhamente
pelos liberais, foi aprovado e entrou em vigor através da Lei n. 261/1841, detalhada pelo
Regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842. 300
Ambos os diplomas, no dizer de JOSÉ FREDERICO MARQUES, significaram uma “reação
monárquico-conservadora, tendente a criar, através de um aparelhamento policial
altamente centralizado, meios de repressão fortes e eficazes contra a desordem reinante
no país, desde a época da regência”. 301
Com efeito, ambos os diplomas restabeleceram o sistema de controle social através
da organização policial que, se já não possuía o instrumento das devassas, tinha atraída
para si, na pessoa do Chefe de Polícia e de seus delegados, boa parte da competência
dos juízes de paz (Lei n. 261/1841, art. 4º, § 1º) e, principalmente, a de “vigiar e
299 PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 135.
300 PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 135-136.
301 MARQUES, José Frederico. “Evolução histórica do processo penal”, em Investigações, n. 7
(jul/1949), p. 115.
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providenciar, na forma das leis, sobre tudo que pertence à prevenção dos delitos e
manutenção da segurança e tranqüilidade pública” (Lei n. 261/1841, art. 4º, § 4º).
Quanto à reforma de 1871, implementada por mais de uma lei, sendo a principal delas
a Lei n. 2.033, de vinte de setembro de 1871 – e por tal razão, de complexo exame, nos
limites deste esboço – trouxe ela um recuo nos objetivos autoritários da reforma de 1841.
Mais do que isso, melhorou a estrutura e o mecanismo do aparelhamento judiciário então
existente, deitando raízes para o processo penal do primeiro período republicano, de
competência, conforme se sabe, de cada um dos estados-membros. Segundo JOSÉ
HENRIQUE PIERANGELLI, inclusive, alguns estados preferiram permanecer com o sistema
processual penal estabelecido pela dita reforma, ou implementaram reformas de pouca
monta. 302
302 PIERANGELLI, José Henrique. Processo…, p. 151.
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Seção C
Nos códigos estaduais
Segundo JOSÉ HENRIQUE PIERANGELLI, a maioria dos códigos de processo penal
estaduais mantiveram, com algumas poucas mudanças, a sistemática do Código do
Processo Criminal de Primeira Instância, após as reformas de 1841 e 1871.
Essa razão, aliada ao excessivo número de diplomas legais e a variedade de
características, não aconselham uma exposição pormenorizada.
Fique claro, entretanto, que, nesses códigos, a sistemática processual permaneceu a
mesma, quer dizer: uma lei processual penal básica orientada no sentido do sistema
acusatório, com as reformas conservadoras que se lhes impuseram em 1841 e 1871.
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Parte 2
Princípios e regras da audiência processual penal
O processo penal brasileiro é predominantemente escrito; excessivamente escrito.
Isso pode ser comprovado até por um exame perfunctório do sistema de procedimentos
do Código de Processo Penal. O procedimento estrutural, a base, por assim dizer,
denominado processo comum pelo legislador, é largamente dominado pela escritura.
Sua caracterização como procedimento principal vem desde a nomenclatura, mas vai
além. Segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES, que o chama de procedimento ordinário pleno,
denominação consagrada pelo uso, essa qualidade decorre de outros elementos:
“Chama-se tal procedimento de ordinário pleno, como o denominavam os antigos
praxistas, porquanto nele se observam todos os atos, termos e formalidades que na
doutrina do processo comum eram tidos como adequados para uma ampla discussão das
lides de mais destacado vulto e importância”. “A ‘maior amplitude da discussão’ e a ‘maior
dilação dos prazos’”, conclui o eminente professor paulista, “constituem os traços
fundamentais dessa forma de procedimento”. 303
A aplicação desse procedimento se verifica para a persecução de infrações penais
graves do ordenamento jurídico-penal, qualificáveis como tais pela natureza da pena
privativa de liberdade cominada. É ainda JOSÉ FREDERICO MARQUES que leciona: “O
procedimento ordinário pleno, que o Cód. de Processo Penal disciplina sob o nomen juris
de processo comum, é aquele geralmente aplicável às causas penais em que vem
pedida, na peça acusatória, a pena de reclusão”. 304
Tendo em vista que o legislador penal brasileiro foi verdadeiramente pródigo na
cominação de penas privativas de liberdade a condutas criminosas – e, dentre estas, com
especial relevo, a pena de reclusão – o procedimento escrito acabou por ser a base do
processo penal brasileiro. Daí porque se justifica a afirmação inicial de que o processo
penal brasileiro é dominado pelo princípio da escritura.
Dentro do procedimento ordinário pleno, por linha de conseqüência, não há espaço
normativo de relevo para a audiência processual penal, resolvendo-se por escrito todas as
questões relevantes surgidas durante a tramitação do processo.
303 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 116.
304 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 116.
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Isso leva a uma constatação bastante simples: a audiência processual penal não é
elemento principal da estrutura do processo penal brasileiro vigente.
Contudo, a tendência moderna do processo, seja ele penal ou não, é de dar maior
consideração à audiência, como instrumento de solução de conflitos – caso do processo
civil – ou de solução de causas penais – caso do processo penal.
Assim, o presente trabalho se coloca diante de uma tarefa que é encerra um
paradoxo: estudar algo que outrora fora desconsiderado pelo legislador ordinário, mas
que, obedecendo-se as tendências evolutivas da ciência processual, deve ser resgatado.
Algo que, sob o prisma da legislação processual penal vigente, não tem foro de cidadania,
mas cuja reabilitação é reclamada pelos mais importantes princípios da moderna ciência
processual penal, no que se refere ao estudo do procedimento.
Por tais razões, o exame dos princípios e regras das audiências do processo penal
brasileiro não se limitará ao estudo de determinadas audiências previstas pelo Código de
Processo Penal e legislação complementar e tampouco terá preocupação exegética.
Através do exame dos sistemas processuais e da estruturação dessas audiências,
também abrangerá outras que paulatinamente se impõem por força da praxe forense. O
objetivo remoto é o de elaborar um verdadeiro “modelo” de audiência processual penal.
A premissa metodológica é a de que, no processo penal, a audiência é, via de regra,
senão o melhor, ao menos um formidável instrumento a serviço da busca da verdade
material. Isso ocorre porque, através da audiência, atendem-se melhor a princípios
processuais como a publicidade, oralidade, imediação, contraditório e concentração. E
esses princípios colaboram para a prolatação de uma decisão mais próxima da verdade.
Há, aqui, porém, uma questão conceitual prévia que, como tal, exige solução
imediata, antes de se prosseguir. Trata-se da tarefa de conceituar a audiência.
São clássicas as definições de audiência de JOAQUIM JOSÉ CAETANO PEREIRA E SOUSA
– “chama-se audiência o lugar em que os juízes ouvem as partes por si ou por seus
advogados, ou procuradores. Neste lugar é que as causas devem prosseguir os seus
termos, sendo regulado pelos juízes que a ela presidem. Decidem-se em audiência as
questões de fácil expedição” 305 – e de GALDINO SIQUEIRA – “audiência é o lugar público,
onde o juiz está, em dia e hora determinadas, para publicar as suas sentenças, ouvir as
partes ou seus advogados, decidir sobre os requerimentos e questões de fácil e pronta
305 SOUSA, José Joaquim Caetano Pereira e. Primeiras linhas sobre o processo civil, 1863, t. 4, p. 20,
n. 969 apud MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 89.
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solução, tudo na conformidade da Ord. L. III, t. XIX e mais regimentos”. 306
Essas definições, que prestigiam o aspecto espacial em detrimento do temporal,
merecem por isso mesmo reparo. Quem o faz é ainda JOSÉ FREDERICO MARQUES: “Mais
acertado se nos afigura, porém, falar em momento processual, como o faz COSTA
CARVALHO, ou ato processual complexo, como o faz PONTES DE MIRANDA, uma vez que
não mais se realizam as antigas audiências ordinárias que existiam outrora para a prática
de determinados atos processuais (...). Depois de promulgado o Cód. de Proc. Civil, as
antigas audiências ordinárias deixaram de existir. Aquele diploma deu nova estruturação
às audiências, transformando-as em ato culminante do procedimento de primeiro grau.
Desaparecidas, por inúteis, as audiências semanais e ordinárias que em cada juízo se
efetuavam, – é, hoje, a audiência ato especial de cada processo, que se distingue dos
demais atos processuais pelo seu caráter de ato complexo que se apresenta como
‘envolvente de outros atos por sua duração e extensão no espaço’. (...) Desnecessárias
são por isso, na justiça criminal as audiências ordinárias”. 307
Entretanto, como que acatando, nas suas essências, as definições que pretendeu
criticar, JOSÉ FREDERICO MARQUES arrola, como tais entendidas pelo Código de Processo
Penal, apenas as seguintes audiências: “Em todo o Cód. de Proc. Penal, só se prevê a
prática em audiência: a) da instrução e julgamento dos procedimentos sumários (art. 538);
b) instrução e julgamento do procedimento de aplicação de medida de segurança por fato
não criminoso (art. 554); c) leitura de sentença que suspende condicionalmente a
execução da pena (arts. 703 e 705)”. 308
Todavia, percebe-se tratar-se de um rol que corresponde a uma conceituação estrita
de audiência. Tal conceito deixa sem explicação a prática de diversos outros atos
processuais que são, inegavelmente, realizados em “momentos processuais” e, portanto,
em audiências.
Nesse mesmo equívoco incide EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, ao afirmar que “por
necessidade do rápido andamento das ações penais, reclamada por economia do
processo, a orientação de dispensar, para a efetuação da generalidade dos atos judiciais,
a realização de audiências, que hão-de, obrigatoriamente, revestir-se de certas
formalidades, é, rigorosamente, correspondente à tendência anti-formalista do processo,
306
SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 303.
307
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 90.
308
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 90.
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na sua caracterização mais moderna e mais adiantada. Assim é que, no seu curso
normal, o processo criminal, seja ante o juiz singular, seja perante colégios judiciários, se
desenvolve, seguidamente, numa série de atos (interrogatório, inquirições, acareações,
exame pericial, diligências outras), que são simplesmente tomados por termo,
consignados em assentadas ou certificados nos autos, sem necessidade de realização
em audiências dos juízos, ou nas sessões dos tribunais”. 309
Há, portanto, que se ampliar o rol de audiências, considerando que outros atos
processuais penais – praticados em momento próprio, cuja característica central é a de
ser dominado pela palavra falada – são também praticados em verdadeiras e próprias
audiências processuais penais.
Para tanto, é mister precisar a noção moderna de audiência processual penal. Nesse
passo, os conceitos de audiências ordinárias, extraordinárias e especiais devem ser
rigorosamente compreendidos.
Fique claro que, embora o art. 791 do CPP as preveja, não há mais, na prática
forense brasileira, as chamadas audiências ordinárias e extraordinárias. É de GALDINO
SIQUEIRA um conceito preciso dessas audiências fora de época: “Audiência ordinária é a
que os juízes são obrigados a fazer, pelo menos uma vez por semana, em lugar, dia e
hora determinados estavelmente. (...) Audiência extraordinária é a feita para o
prosseguimento do processo”. 310
A essas audiências – mas especialmente a audiência ordinária – correspondem hoje
as sessões de tribunais de apelação e superiores, nas quais os ministros,
desembargadores e juízes se reúnem, periodicamente, a fim de julgarem os processos
que lhes são submetidos, bem como as sessões do Tribunal do Júri.
Contudo, a audiência processual penal usualmente praticada no foro criminal, em
primeiro grau de jurisdição, não corresponde nem a essa audiência dita ordinária, nem à
extraordinária, seu complemento.
Essa audiência – objeto de análise fundamental do presente trabalho – corresponde a
outro conceito que também pode ser retirado da doutrina processual penal brasileira
anterior ao Código de Processo Penal vigente. Malgrado isso, serve à conceituação
309
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 8, n. 1.605, p. 490.
310
SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 305. Cf. que, na primeira definição, GALDINO SIQUEIRA faz menção
aos arts. 58 da Lei de 29 de novembro de 1832 (Código do Processo Criminal de Primeira Instância) e 193
do Regulamento n. 120, de 31 de janeiro de 1842; na segunda definição, faz menção ao art. 48, § 5º, do
Decreto n. 4.824, de 22 de novembro de 1871.
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moderna da audiência processual penal. Trata-se do conceito de audiência especial.
GALDINO SIQUEIRA o fornece: “Audiência especial é a que é feita para determinado ato,
como por exemplo a que é feita em diligência de vistoria, etc.” 311
Esse conceito, modernamente – embora a previsão de audiências ordinárias e
extraordinárias continue constando do Código de Processo Penal – tornou-se
hegemônico, à exceção das sessões de tribunais, verdadeiras modalidades de audiências
ordinárias.
Neste passo, um conceito analítico de audiência processual penal é factível. Assim, é
ela o momento processual penal em que as partes se reúnem, de regra intimada se sob a
presidência do juiz criminal, para a prática de atos processuais penais.
A par de prestigiar o aspecto temporal do objeto em estudo, põe em relevo a atuação
de atores processuais – partes, em sentido amplo – a administração do juiz criminal e o
seu escopo, que vem a ser a prática de atos jurídicos relevantes sob o prisma processual
penal.
Há, porém, uma outra acepção do vocábulo audiência, encontrada amiúde na doutrina
processual penal. JORGE FIGUEIREDO DIAS refere-se a essa acepção quando trata do que
denomina princípio ou direito de audiência. Define-o como a “oportunidade conferida a
todo o participante processual de influir, através de sua audição pelo tribunal, no decurso
do processo”. 312
Tal acepção, isto é, da audiência como um direito material, 313 não coincide com a dela
como momento processual. Com ela não colide; apenas não se confunde.
Assim, é perfeitamente possível atender-se ao princípio da audiência referido por
JORGE FIGUEIREDO DIAS através da escritura: o acusado é ouvido pelo juiz – “influi no
decurso do processo” – indiretamente, através de seu defensor técnico e por escrito. É o
que ocorre na hipótese do art. 514 do CPP. Essa regra, ao determinar ao juiz que, no
caso dos crimes funcionais afiançáveis, autue a denúncia e ordene a notificação do
acusado (rectius: do denunciado) servidor público, para responder por escrito, no prazo
de quinze dias, é uma manifestação da escritura no processo penal condenatório.
Outros dois exemplos de um direito de audiência não exercitável – ao menos
311 SIQUEIRA, Galdino. Curso…, p. 305.
312 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 153.
313 Cf. o conceito de audiência como direito material – e não especificamente como momento
processual – em ALVIM, Rui Carlos Machado. “O direito de audiência na execução penal: uma tentativa de
sua apreensão”, em RT, n. 636 (out/1988), p. 257-266.
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obrigatoriamente – em momento processual, colhem-se na Lei n. 7.210, de onze de julho
de 1984, denominada Lei de Execução Penal. A decisão acerca da execução da pena na
forma regressiva é tomada pelo juiz, diz o § 2º do art. 118 dessa Lei, após a oitiva do
condenado. Da mesma forma no caso de revogação do livramento condicional, por força
do art. 143 do mesmo diploma.
Em qualquer desses dois dispositivos citados, não há, efetivamente, regra jurídica que
imponha a reunião entre juiz e condenado, em momento processual próprio. As
explicações que entender cabíveis o condenado pode dá-las através de seu procurador,
ou pessoalmente, se possuir capacidade postulatória, por escrito. A efetivação de uma
reunião entre juiz e condenado é optativa.
Seja como for, é possível afirmar que a realização de audiência processual penal, em
qualquer dos dois casos – resposta preliminar do denunciado servidor público e oitiva
prévia do condenado, pelo juiz da execução – atenderia melhor aos objetivos colimados
pela norma.
Com efeito, não seria indefensável sustentar-se que esse tipo de audição indireta, em
casos que dependam de certa dose de consideração subjetiva do juiz, é incompleto ou
defeituoso. Por força da imediação, a oitiva direta do interessado pelo juiz, em momento
processual próprio, talvez impressionasse este melhor e mais fidedignamente.
Além disso, a força criadora da oralidade – e essa afirmação se pretende comprovar
no presente estudo – permitiria que aflorassem soluções originais e mais proveitosas à
administração da justiça criminal.
Não estão calcados em outra razão a denominada preliminary hearing, diante do
grand jury, no processo penal estadunidense, bem como a udienza preliminare do novo
processo penal italiano (Códice de procedura penale, art. 401).
No caso estadunidense, é possível conferir a importância dessa audiência preliminar
pelo seguinte trecho de SUBIN-MIRSKY-WEINSTEIN: “Existindo questionamento ao mesmo
tempo jurídico e de fato no procedimento anterior ao julgamento a atividade das partes
envolverá sempre um requerimento no sentido da realização de uma audiência tendente a
resolver o aspecto fático da questão. A admissibilidade de uma audiência depende de
alguns requisitos: em primeiro lugar, o autor terá de antecipar as provas da culpa de
alguém, isto é, provar, com base nos elementos dos autos, que tem um causa (a prima
facie case). Falhar nessa tarefa resulta em sumário arquivamento do processo. Em
segundo lugar, o defendente deve discutir alguns ou todos os fatos afirmados por quem
move o procedimento. Se o defendente não discuti-los, os fatos serão dados como
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estando estabelecidos e, por conseguinte, nenhuma audiência será cabível. Assumindo
que o questionamento sobre os fatos está corretamente elaborado, uma audiência será
cabível. Ela pode ser vista como uma espécie de audiência de julgamento sendo que sua
questão de fundo não é a culpa ou a inocência do defendente, mas outros problemas
preliminares, usualmente a admissibilidade ou supressão de peças de evidência”. 314
Quanto à udienza preliminare do novo processo penal italiano, ALBERTO MACCHIA
salienta seu caráter de garantia deferida ao imputado, na medida em que, através dela,
defere-se a ele o direito de conhecer e discutir, ao menos preliminarmente, todos os
elementos de convicção colhidos por quem conduz as investigações (“indagini
preliminari”). É a realização, no moderno processo penal italiano, do que os juristas
estadunidenses denominam de discovery.
ALBERTO MACCHIA prossegue: “À função de garantia que a audiência preliminar é
chamada a desenvolver, como direito do imputado ao qual pode, todavia (...) renunciar,
vem conjugar-se uma outra: vale dizer, aquela de controle da base sobre a qual a
acusação vem formulada e, portanto, sobre o correlativo ‘bom exercício’ da ação penal.
Acerca deste perfil é lícito dizer que a audiência preliminar desenvolve uma função de
filtro, mas se trata de um filtro de fato singular, porque a peculiaridade da fase na qual se
encontra inserido, processual, sim, mas certamente não de cognição plena, impôs
particulares regras processuais que permitem realizar-se o controle pelo juiz no sentido de
manter a instrução circunscrita a uma acusação não-aventureira”. 315
É preciso, porém, retomar o objeto do presente estudo; refere-se ele – repita-se ainda
uma vez – ao momento processual penal em que as partes se reúnem, de regra intimadas
314
SUBIN, Harry I., MIRSKY, Chester L. e WEINSTEIN, Ian S. The Criminal…, p. 260. Trecho original:
“Where there a mixed question of law and fact in a pretrial motion, the relief requested will always include a
request for a hearing to resolve the factual issue. Whether a hearing will be granted depends upon several
things: first, the movant will have to meet the burden of going forward, i.e., make out a prima facie case on
the moving papers. Failure to do that will result in summary denial of the motion. Second, the respondent
must dispute some or all of the facts asserted. If the respondent does not do that, the facts will be deemed to
have been established, and therefore no hearing will be required. Assuming that a factual dispute is properly
framed, a hearing will be held. It can be looked upon as a kind of trial, with the issue not being the guilt or
innocence of the defendant, but some preliminary issue, usually the admissibility or suppression of a piece of
evidence”.
315
MACCHIA, Alberto. “Udienza preliminare”, em Contributi…, p. 39. Trecho original: “Alla funzione di
garanzia che l’udienza preliminare è chiamata a svolgere, come diritto dell’imputato al quale può tuttavia (...)
rinunciare, viene a coniugarsene un’altra: vale a dire quella di controllo sulla fondatezza della domanda di
giudizio che viene formulata e, quindi, sul correlativo “buon” esercizio dell’azione penale. Sotto questo profilo
si è soliti dire che l’udienza preliminare svolge una funzione di filtro, ma si tratta di un filtro affatto singolare,
perché la peculiarità della fase in cui si trova inserito, processuale se ma certo non di cognizione piena, ha
imposto particolari regole di giudizio che permettono di configurare il controlo del giudice in termini
grossomodo riconducibili ad una verifica circoscritta alla imputazione non azzardata”.
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e sob a presidência do juiz criminal, para a prática de atos processuais penais.
Com base nessa conceituação, a conclusão forçosa é de que, contrariamente ao que
ensina JOSÉ FREDERICO MARQUES, há mais audiências dentro do Código de Processo
Penal.
É possível tentar um pequeno rol delas.
Assim, das que se realizam sob a presidência de juiz singular, tem-se: a) audiência
judicial de interrogatório do acusado (CPP, arts. 185-196 e 394); b) audiência judicial de
tomada por termo de confissão feita fora de interrogatório (CPP, art. 199); c) audiência
judicial de oitiva do ofendido (CPP, arts. 201 e 396); d) audiência judicial de oitiva de
testemunhas (CPP, arts. 202-225 e 396); e) audiência judicial de reconhecimento de
pessoas e coisas (CPP, arts. 226-228); f) audiência judicial de acareação (CPP, arts.
229-230); g) audiência judicial de tentativa de reconciliação das partes nos crimes de
calúnia e injúria, de competência de juiz singular (CPP, arts. 520-522); h) audiência de
instrução e julgamento do procedimento sumário em sentido estrito (CPP, arts. 539 e
538); i) audiência admonitória das condições da suspensão condicional da pena (CPP,
arts. 703 e 705). 316
As sessões de tribunais são uma espécie de audiência. Sendo uma causa de
natureza penal o seu objeto, são verdadeiras audiências processuais penais, sejam elas
realizadas para a apreciação de recursos, sejam para a instrução oral (CPP, art. 616).
Indo mais adiante, são também audiências as seguintes, presididas pela autoridade
policial no curso de inquérito policial: j) audiência de oitiva de ofendido pela autoridade
policial (CPP, art. 616); l) audiência de oitiva de indiciado pela autoridade policial (CPP,
art. 6º, inciso V); m) audiência de colheita de depoimentos pela autoridade policial (CPP,
art. 6º, inciso III); n) audiência de “reprodução simulada dos fatos” pela autoridade policial
(CPP, art. 7º); o) audiência de acareação (CPP, art. 6º, inciso VI); p) audiência de
reconhecimento de pessoas e coisas (CPP, art. 7º, inciso VI). No caso dessas audiências
policiais, porém, o que se vê são verdadeiros simulacros das respectivas audiências
judiciais. Somente algumas particularidades as distinguem.
A legislação complementar acrescentou diversas outras audiências.
316 Apenas por amor ao registro, tinham-se ainda as seguintes audiências, que hoje se têm por
revogadas: audiência de qualificação do réu e oitiva de testemunhas, no processo sumário das
contravenções (CPP, art. 533); audiência de lavratura de auto de prisão em flagrante, no processo sumário
das contravenções (CPP, art. 535); audiência de interrogatório do réu, no processo sumário das
contravenções (CPP, art. 536); audiência de instrução e julgamento, no processo sumário das
contravenções (CPP, art. 538); audiência de instrução e julgamento do procedimento de aplicação de
medida de segurança por fato não criminoso (CPP, art. 554).
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Assim, a Lei n. 1.508, de dezenove de dezembro de 1951, que dispõe sobre os
procedimentos para apuração e julgamento das contravenções penais, prevê, no seu art.
3º, uma audiência de instrução e julgamento. Por força do art. 36 da Lei n. 4.771, de
quinze de setembro de 1965 (Código Florestal) essa mesma audiência aplica-se aos
processos relativos às contravenções nele tipificadas.
A Lei n. 4.737, de quinze de julho de 1965 (Código Eleitoral) prevê uma audiência
para o depoimento pessoal do acusado (art. 359), e audiência ou audiências para a oitiva
das testemunhas de acusação e defesa (art. 360).
A Lei n. 4.898, de nove de dezembro de 1965 (abuso de autoridade) prevê uma
audiência de instrução e julgamento (arts. 17, § 1º, 19 e 21-26).
A Lei n. 5.250, de nove de fevereiro de 1967 (Lei de Imprensa) prevê uma audiência
de instrução e julgamento (art. 45).
A Lei n. 6.815, de dezenove de agosto de 1980 (Lei de Estrangeiros) disciplina uma
audiência de interrogatório de extraditando (art. 85).
A Lei n. 7.210, de onze de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), prevê as seguintes
audiências: audiência de leitura das modificações das condições do livramento
condicional (LEP, art. 144) e audiência admonitória das condições da suspensão
condicional da pena (LEP, art. 166) essa última, aliás, também regulada pelo art. 703 do
CPP.
É também audiência a “cerimônia do livramento condicional”, regulada pelos arts. 723
do CPP e 137 da LEP.
A Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995, que prevê um procedimento orientado
“pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade” (art. 62),
prevê inúmeras audiências, a saber: a) audiência preliminar (art. 69-76); b) audiência
inicial do procedimento sumariíssimo (art. 77); c) audiência de instrução e julgamento do
procedimento sumariíssimo (art. 79-81).
A Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006, que define os tipos penais referentes à
produção e ao tráfico de drogas, e também define o procedimento penal a eles relativo,
prevê,no seu art. 56, uma audiência de instrução e julgamento.
O rol é apenas exemplificativo.
Não se incluem na categoria de audiência processual penal quaisquer das audiências
realizadas com base na Lei n. 1.079, de dez de abril de 1950, que define os crimes de
responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento. Isso porque nessa lei não
se trata nem de matéria penal, nem, conseqüentemente, de matéria processual penal,
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mas de matéria política, conforme lecionam PAULO BROSSARD 317 e JOSÉ FREDERICO
MARQUES. 318 O mesmo se diga das audiências disciplinadas pelo Decreto-lei n. 201, de 27
de fevereiro de 1967, mormente daquelas relacionadas ao processo de cassação do
mandato de prefeito municipal.
A par dessas audiências, cujo rol não é, nem de longe, exaustivo, há outras impostas
pela praxe forense, como, por exemplo, as de instrução e julgamento realizadas no
procedimento ordinário pleno.
Não há incompatibilidade ontológica entre a audiência processual penal e qualquer
das atividades processuais possíveis, desde a postulação propriamente dita até a
atividade devolutiva. Todavia, a experiência demonstra que algumas atividades são mais
comumente realizadas durante audiência processual penal do que as outras.
JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, ao tratar do tema para o processo civil, prefere
analisar as atividades da audiência partindo da figura do juiz. Assim, identifica sete
funções que essa autoridade desempenha na audiência processual civil: as inerentes ao
seu poder de polícia, as relativas à tentativa de conciliação, quando esta for prevista, as
instrutórias, as relacionadas com a presidência dos debates orais, as estritamente
decisórias e as de documentação dos atos praticados. 319
A lição de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA é também válida para o processo penal.
Contudo, o presente estudo parte de um ponto diverso, não centrando a análise na figura
do juiz, mas dando relevo à atividade ou função mesma que se pode desenvolver durante
a audiência, por parte de quaisquer dos seus atores. Assim, na audiência processual
penal se podem verificar as seguintes atividades ou serem exercidas as seguintes
funções: a) postulatória; b) instrutória; c) crítica; d) decisória; e) administrativa; f)
devolutiva 320 e g) de documentação.
No presente estudo preferiu-se destacar quatro dessas atividades ou funções:
instrutória, crítica, decisória e administrativa.
A exclusão das atividades ou funções postulatória e devolutiva deve-se ao fato de que
elas não se constituem em regra do procedimento mas, antes, em exceção. Sendo assim,
317
BROSSARD, Paulo. O impeachment…, p. 70-74.
318
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 327-328.
319
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo…, p. 113-114.
320
Cf. CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 1, p. 101-191. Esse autor denomina a atividade
devolutiva – de impugnação da sentença para reexame por outro órgão jurisdicional – de atividade “crítica”.
É preferível, entretanto, a denominação aqui proposta, que leva em consideração os efeitos jurídicos da
impugnação, de devolver o conhecimento do caso a outro órgão jurisdicional.
100

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não se justifica uma análise específica.
A atividade postulatória, que consiste na dedução da pretensão condenatória em
juízo, no sistema processual penal brasileiro faz-se geralmente por escrito. Uma
digressão: a referência a uma pretensão condenatória e não a uma pretensão punitiva,
como consta em diversos manuais clássicos, é proposital. É tecnicamente mais correto
bipartir-se o que a doutrina processual penal tradicional denomina impropriamente de
pretensão punitiva em pretensão condenatória e pretensão executória. Isso porque só
com o condenar-se não se pune, propriamente. Esse fim somente é atingido pelo
condenação e execução da pena condenatória. Daí porque não é correto falar-se numa
pretensão punitiva, que prescreve antes da condenação. O que prescreve, na verdade, é
a pretensão condenatória. Isoladamente considerada, a pretensão punitiva é, em
verdade, uma categoria pré-jurídica.
Quanto à atividade devolutiva, inclusive, há certa corrente jurisprudencial que entende
ser ela inválida quando exercida em audiência, dada a ausência da formalidade do termo,
pois o recorrente, à toda evidência recorre verbalmente e seu inconformismo passa a
constar apenas da ata de julgamento. 321 Outra corrente, mais acertada e numerosa, no
STF 322 e no STJ, 323 admite-a, até porque a exigência absoluta de termo de recurso é um
formalismo vazio; feitas as evidentes ressalvas de que a ata da audiência deve ser
assinada pelo recorrente 324 e de que, no caso de decisão proferida oralmente – gravada
por processo de estenotipia, por exemplo – o termo inicial para recurso somente se inicia
da data da transcrição, 325 isso, evidentemente, porque somente a partir desse instante a
parte tem pleno e detalhado conhecimento acerca da decisão. Esteja com qualquer das
321 Habeas corpus n. 46.944-PR – STF – 1ª Turma – Rel. Ministro Aliomar Baleeiro – julgado em
17.jun.69 – ordem concedida – votação unânime – RTJ, n. 52, p. 162.
322
Recurso de habeas corpus n. 49.625-GO – STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Antonio Neder – julgado
em 24.abr.72 – improvido – votação unânime – RTJ, n. 61, p. 638; Habeas corpus n. 60.449-RJ – STF – 1ª
Turma – Rel. Ministro Oscar Corrêa – julgado em 14.dez.82 – ordem negada – votação unânime – DJU,
Seç. 1 (25.fev.1983) – RT n. 574 (ago/1983), p. 462-463; Recurso extraordinário criminal n. 114.513-PB –
STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Carlos Madeira – julgado em 10.mai.88 – não conhecido – votação unânime
– RTJ n. 130, p. 1.186.
323
Recurso especial n. 19.465-0-PE – STJ – 6ª Turma – Rel. Ministro Luiz Vicente Cernichiaro –
julgado em 30.jun.92 – provido – votação unânime – DJU, Seç. 1, (3.ago.1992) – RT n. 692 (jun/1993), p.
335.
324
Apelação criminal n. 17.306-8-Curitiba – TJPR – 2ª Câmara Criminal – Rel. Desembargador Lima
Lopes – julgada em 14.mai.92 – não-conhecida – votação unânime – RT n. 695 (set/1993), p. 373.
325
Habeas corpus n. 66.734-1-SP – STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Carlos Madeira – julgado em
18.nov.88 – ordem concedida para que o tribunal a quo aprecie o mérito do recurso – votação unânime –
DJU, Seç. 1 (10.fev.89) – RT n. 649 (nov/1989), p. 352.
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correntes a solução correta, a atividade devolutiva da audiência processual penal, por seu
caráter residual, não justificaria uma análise pormenorizada.
Quanto à atividade de documentação, é ela instrumental de todas as outras, na
medida em que, até enquanto administra a audiência, o juiz pode sentir a necessidade de
documentar alguma deliberação sua. Da mesma maneira enquanto instrui o processo,
recebe a crítica das partes técnicas e decide. A administração da audiência envolve,
enfim, a documentação dos atos nela praticados. Isso porque, evidentemente, não há
método de documentação que seja completamente isento de defeitos e que não reclame,
vez por outra, a intervenção do juiz, para corrigi-los.
Há, na atitude de selecionar quatro das atividades desenvolvidas na audiência, uma
conveniência didática e uma estratégica, por assim dizer.
objeto.
A primeira é óbvia: facilitar o estudo da audiência processual penal, delimitando-lhe o
A conveniência estratégica está ligada ao estudo da audiência e do procedimento, no
processo penal, com o objetivo de encontrar um referencial para a crítica do próprio
processo penal. Neste passo, o estudo dos sistemas processuais penais – acusatório e
inquisitório – desempenha papel relevante.
É o que se procurará implementar no estudo das atividades desenvolvidas em
audiência.
A questão topográfica, por assim dizer, de disposição das matérias no trabalho, é algo
que não tem importância transcendental. Porém, cumpre justificar a ordenação da
matéria.
Assim, o critério dessa ordenação, antes de mais nada, é cronológico. Abre-se a
análise da audiência pela atividade administrativa. Isso se justifica porque ela, atividade
administrativa, é a primeira que se manifesta, permeando todo o momento processual até
o seu final.
Também se justifica o estudo da atividade instrutória logo após o da atividade
administrativa. Coordenando os trabalhos da audiência, a preocupação mais imediata do
juiz é com desenvolver atividade instrutória. Tão grande é essa preocupação que se vê
amiúde na doutrina a utilização do termo instrução criminal como sinônimo de processo
penal condenatório.
Todavia, pelos problemas particulares que suscita, preferiu-se separar a atividade
instrutória propriamente dita, de colheita de provas, da atividade instrutória lato sensu,
formada no procedimento pelo interrogatório do acusado. Nesse ato processual, situado
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em momentos diversos, o juiz se instrui, mas não necessariamente recolhe material
probatório. Daí a razão pela qual se preferiu cindir a análise da atividade instrutória em
lato sensu e stricto sensu, referindo-se aquela ao interrogatório e esta à colheita de
provas propriamente dita.
O exame da atividade crítica da audiência sucede o da atividade instrutória também
por razões cronológicas, embora aquela não suceda, necessariamente, esta.
Nos processos penais de perfil acusatório, a atividade crítica permeia,
verdadeiramente, a atividade instrutória. É o que ocorre no sistema da direct-cross-re-
examination, em que a parte técnica alega enquanto inquire. Esse motivo, porém, não é
suficiente para inverter-se a ordem natural, até porque a atividade crítica tende a atuar por
sobre o material probatório, produzido ou não em audiência.
Por fim, analisar-se-á a atividade decisória da audiência processual penal, como
coroamento de todas as outras. É ela que, induvidosamente, constitui-se na síntese real
de toda a dinâmica da audiência, coroando o respeito a todas as regras e princípios
aplicáveis a esse momento processual.
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Capítulo 1
A atividade administrativa na audiência processual penal
Seção A
Conceitos
Boa parte da doutrina processual penal, ao enfrentar o tema dos poderes do juiz que
não apresentem característica instrutória ou decisória, a mais das vezes influenciada pelo
art. 251 do CPP, limita-se a analisar-lhes os poderes-deveres disciplinares e os poderesdeveres
de cuidado para com a regularidade do processo penal.
A fim de exemplificar, é o que se percebe em HÉLIO TORNAGHI que, ao se referir ao
dever de impor o que é Direito em cada caso, afirma que “para chegar a esse fim o juiz
provê à regularidade do processo, mantém a ordem no curso dos respectivos atos e usa
da força pública, se necessário”. 326
O magistério de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO também apresenta essa mesma
característica: “Incumbe (...) ao magistrado: a) prover à regularidade do processo
(atividade de natureza processual); b) manter a ordem no curso dos respectivos atos,
podendo, inclusive, requisitar a força pública (atividade de natureza administrativa)”. 327
De igual maneira, a análise da atividade administrativa na audiência processual penal
brasileira vem correntemente associada à atividade estritamente instrutória, como se
percebe “nas entrelinhas” da lição de EDUARDO ESPÍNOLA FILHO: “Não se limita (...) ao
pronunciamento da decisão a função do juiz no processo, mas toma uma atitude de
direção ativa, desde quando a queixa ou denúncia lhe é apresentada até passar em
julgado a sentença (...). Toda a atividade das partes é submetida à apreciação e
controlada pelo juiz (...). E, ainda nesse ponto, a sua função vai além da fiscalização da
ação desenvolvida pelas partes; se lhe é negada, e muito bem (...) a faculdade de
proceder ex-officio, instaurando a ação penal (...) é-lhe facultada a maior liberdade de
iniciativa, na promoção de todos os meios de prova, aptos a fornecerem um
esclarecimento completo e perfeito da verdade”. 328
É possível desde já concluir, provisoriamente, que a análise da atividade
administrativa na audiência processual penal padece desses dois vícios: de um lado, a
doutrina salienta demasiadamente os aspectos propriamente disciplinares e de cuidado
326
TORNAGHI, Hélio. A relação…, p. 141.
327
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 2, p. 432.
328 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 3, n. 534, p. 236.
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com a regularidade do processo por parte do juiz criminal; de outro, confunde-a com a sua
atividade investigatória.
O menor dos vícios, diga-se a bem da verdade, é o primeiro. O segundo é mais grave
porque confunde conceitos. A atividade investigatória do juiz não configura atividade
administrativa, mas sim instrutória, sendo precisamente esse um dos aspectos mais
relevantes do processo penal brasileiro que, nada obstante seja formalmente acusatório,
tem predominante cunho inquisitório. É o que se denomina, impropriamente, de “sistema
misto”. 329 Por tal razão, a atividade instrutória supletiva do juiz, ou “princípio da
investigação”, como quer JORGE FIGUEIREDO DIAS, 330 deve ser estudada dentro da
atividade instrutória lato sensu da audiência processual penal.
O primeiro vício, conforme dito, faz crer que a atividade administrativa do juiz, na
audiência processual penal, é basicamente disciplinar, formado por poderes-deveres
estabelecidos em um sentido puramente negativo, de coação, de limitação da atividade
das partes, a fim de garantir a ordem e a paz dos trabalhos realizados, bem como
poderes-deveres de ordem estritamente processual, de cuidado com a ocorrência de
nulidades que impossibilitem a prolatação de sentença de mérito eficaz. Não é.
A esse respeito, é exemplar a lição de JOSÉ ALBERTO DOS REIS que, a par de registrar
o aspecto puramente disciplinar da atividade administrativa do juiz, deixa antever alguma
coisa de positiva, de construtiva nessa atividade: “os poderes de disciplina do juiz visam
coordenar e inspecionar a atividade das partes, estimulando-a quando deficiente, e
reprimindo-a quando excessiva”. 331
De fato, uma grande parte da atividade administrativa da audiência processual penal
diz com a manutenção da ordem e com a regularidade do processo. Contudo, para JOSÉ
ALBERTO DOS REIS, a atividade administrativa da audiência processual penal há de ter algo
de positivo; há de ter algo de construtivo.
Assim, prefere-se definir a atividade administrativa da audiência processual penal
329
Cf. a elegante definição do impropriamente denominado “sistema misto“ em ALMEIDA, Joaquim
Canuto Mendes de. Processo…, p. 118: “Os tipos mistos são aqueles em que a forma acusatória não
absorve a inquisitoriedade judicial; ou aqueles que, desdobrados em fases, as contém de tipos diferentes”.
330
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 148: “(...) com o ‘princípio da investigação’ pretende-se
traduzir antes o poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para
além das contribuições da acusação ou da defesa, o ‘facto’ sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as
bases necessárias à sua decisão. (...) pode-se também designá-lo corretamente por princípio da verdade
material”.
331
REIS, José Alberto dos. Comentários ao Código de Processo Civil português, 1946, v. 3, p. 12, apud
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 13.
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como sendo a função desenvolvida pelo juiz de preparação e direção dos trabalhos
desenvolvidos na audiência processual penal; engloba ela a manutenção da ordem, a
adequação da oralidade ao caso, a fomentação da atividade crítica das partes técnicas
(de molde a propiciar uma decisão justa) e, por fim, a documentação dos atos processuais
penais praticados, afim de permitir reexame por outro órgão jurisdicional. Os aspectos
jurídicos e políticos desse conceito serão retomados adiante.
Alguns conceitos relevantes também devem ser fixados desde já, a fim de uma melhor
compreensão da atividade administrativa desenvolvida na audiência processual penal.
A primeira noção é a de agente político. Segundo HELY LOPES MEIRELLES, “agentes
políticos são os componentes do Governo nos seus primeiros escalões, investidos em
cargos, funções, mandatos ou comissões, por nomeação, eleição, designação ou
delegação para o exercício de atribuições constitucionais. Esses agentes atuam com
plena liberdade funcional, desempenhando suas atribuições com prerrogativas e
responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição e em leis especiais. Não são
funcionários públicos em sentido estrito, nem se sujeitam ao regime estatutário comum.
Os agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase judiciais,
elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com
independência nos assuntos de sua competência”. 332
Ainda segundo HELY LOPES MEIRELLES, os juízes são agentes políticos do Estado. 333
Isso porque exercem função tipicamente jurisdicional quando decidem um caso concreto,
no coroamento de um processo regular. São funções complementares a essa função
típica – sem as quais esta não existe – as de administrar o processo e instruírem-se ou
serem instruídos.
Conforme o grande MIGUEL SEABRA FAGUNDES, “o ato jurisdicional, que se denomina
especificamente sentença, é aquele através do qual o Estado define e determina
situações jurídicas individuais com o fim de remover, pela definitiva interpretação do
direito, conflito surgido a propósito de sua aplicação. (...) Este conceito decorre
naturalmente do da função jurisdicional. (...) A sentença contém dois elementos
inseparavelmente ligados: a constatação da controvérsia e a sua solução ou decisão. (...)
332
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito…, p. 67-68.
333
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito…, p. 69. Cf., em idêntico sentido, CRETELLA JÚNIOR, José.
Direito…, p. 484.
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Na falta de qualquer um deles não existirá o ato jurisdicional”. 334
O órgão do Ministério Público também é um agente político do Estado porque exerce,
com exclusividade, a ação penal pública: a característica de ser o titular exclusivo do
único veículo para a aplicação do Direito Penal, somada à inércia da jurisdição, dá-lhe a
mesma natureza jurídica inerente ao juiz.
É dentro da perspectiva de uma atividade complementar à jurisdição e exercida por
um agente político do Estado, que a atividade administrativa da audiência processual
penal deve ser compreendida. Essa perspectiva terá relevantes conseqüências.
Outro aspecto conceitual importante, que deve ser logo fixado, diz com o do poder
discricionário, aplicado às atividades desempenhadas pelo juiz no processo.
Sendo o juiz, conforme visto, um agente político do Estado, sua atividade e a maneira
pela qual interpreta e aplica a lei, faz com que não tenha sentido se falar, com relação a
ele, em poder discricionário.
O juiz, nas atividades administrativa, instrutória e decisória da audiência processual
penal, não exerce poder discricionário de qualquer espécie. Todos os seus poderes são,
ao mesmo tempo, deveres e vice-versa: por isso serão sempre denominados poderes-
deveres.
Por essa razão, toda liberdade de que dispõe na opção de interpretações possíveis da
lei faz parte de seu poder como agente político do Estado. Nesse mister, o juiz deve
imbuir-se dos fins mesmos do Estado, a fim de aplicar as leis desse mesmo Estado aos
casos concretos. Por tais razões, parece não ter cabimento vislumbrar parcela de poder
discricionário em qualquer momento da atuação do juiz. Sua posição política como
aplicador, por assim dizer, original da lei, faz com que possa interpretá-la de forma
integrativa.
Cabem aqui as lições de PLAUTO FARACO DE AZEVEDO: “ao juiz incumbe a missão de
individualizar de modo apropriado a lei aos casos concretos. Para isto, tem o magistrado
que abrir-se ao mundo ao invés de fechar-se no código e no exoterismo lógico-formal. É
preciso que tenha claro que os códigos e os conceitos jurídicos estão no mundo, mas não
são o mundo. Uns e outros existem para ordenar adequadamente a vida-intersubjetiva,
apenas justificando-a na medida em que servem a essa destinação. Não se pode
pretender, por isso mesmo, que se sobreponham à vida”. 335
334
Cf. FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle…, p. 97.
335
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica…, p. 70-71.
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O ilustre filósofo do Direito acrescenta que “nessa perspectiva o trabalho do jurista e
do juiz precisa ser criativo. (...) Se tiver se preparado para ser criativo, não precisará
esperar passivamente a modificação das leis para exercer na plenitude suas funções, até
porque, como é fartamente sabido e vivenciado pelo povo e pelos juristas brasileiros, não
se pode identificar a multiplicação das leis ao progresso do direito”. 336
É de ver, porém, que “criatividade”, aqui, não equivale a invenção. O juiz não está
autorizado a dar ao Direito uma interpretação pessoal, muitas vezes influenciada por
ideologia própria, e criar normas contrárias ao que o ordenamento jurídico vigente dispõe.
O juiz não pode sair com soluções de algibeira. Não foi eleito para tanto. Contudo, sua
interpretação da lei não tem o mesmo caráter da interpretação de qualquer outro servidor
público, que pode ter poder discricionário, mas limitado às duas ou três opções dadas
pela lei.
Com efeito, o dizer-se que o juiz é um agente político do Estado, aliado à identificação
de uma potencial e legítima criatividade em seu poder jurisdicional dispensam qualquer
raciocínio em torno de um conceito como o de poder discricionário.
Na prática, isso quer dizer que os verbos colocados na lei na forma imperativa para o
juiz ali estão, exatamente ao mesmo tempo, em forma autorizativa. Ao revés, os verbos
autorizadores, quando dirigidos ao mesmo juiz, também são imperativos. Basta dizer, com
relação a ele, que seus atos – salvo os meramente ordinatórios – serão motivados,
consoante determina o art. 93, inciso IX, da Constituição. Tendo os juízes que justificarem
sempre e sempre suas decisões, o órgão jurisdicional superior poderá revê-las, através
da mera substituição de um juízo por outro juízo, realizada pela reelaboração mental dos
argumentos do juiz a quo.
Discricionariedade dos atos judiciais somente se poderia falar – e mesmo assim
prudentemente – no que diz com o Supremo Tribunal Federal, e ainda assim quando
reunido em sessão plenária, caso em que suas decisões não estariam sujeitas ao
reexame por qualquer órgão jurisdicional, mas apenas a um controle político pelos
Poderes Executivo e Legislativo.
A missão do juiz não é desimportante: deve ele aplicar o direito ao caso concreto,
presentando o Estado. Para tanto, interpreta seus fins, com legitimidade política e
competência jurídica para fazê-lo. É o quanto basta para estabelecer, juridicamente, os
limites de sua atividade jurisdicional.
336 AZEVEDO, Plauto Faraco de. Crítica…, p. 74.
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Seção B
Caracteres
§ 1º Natureza jurídica
A natureza jurídica da atividade administrativa do juiz na audiência processual penal
não é exatamente administrativa, como poderia à primeira vista parecer. Ou, antes: não é
“administrativa” no sentido estrito da designação. É mais política do que propriamente
administrativa.
O termo “administrativa”, nesse caso, não implica, estritamente, em atividade sujeita
ao regramento administrativo. As naturezas jurídicas de cada ato do juiz no sentido de
administrar a audiência processual penal não correspondem, necessariamente, à de ato
administrativo, nada obstante sejam, materialmente, atos de administração, de
coordenação da relação processual. Colocando a questão em termos mais claros, trata-se
de um conceito funcional.
Não resta dúvidas de que o juiz, ao presidir a audiência processual penal, administra a
justiça criminal, exercendo, pois, função administrativa. Ao presentar o Estado na função
de dizer o direito em casos concretos, tudo o que não for propriamente jurisdicional em
seus atos será administrativo. Como sua atuação se verifica no seio de um processo,
seus atos ganham a coloração de atos processuais; materialmente, porém, grande parte
dessa atividade é administrativa.
Todavia, como tudo o que acontece no seio do processo penal é, de certa maneira,
abarcado pelo Direito Processual Penal, não teria sentido tratar de todas as atividades
nele desenvolvidas como processuais. Isso configuraria redundância absolutamente
improdutiva.
Dessa maneira, a opção foi designar cada uma das atividades pelo que possuíam de
predominante em termos operativos. A atividade do juiz ao presidir a audiência é, pois,
administrativa.
O termo “diretiva”, em substituição a “administrativa”, daria uma conotação excessiva
aos poderes do juiz. Afinal, ele não dirige a atividade das partes técnicas. Não orienta
nem corrige as atividades desenvolvidas pelo órgão do Ministério Público ou pelo
advogado. A rigor, numa estrutura democrática de audiência, os poderes administrativos
do juiz são, veramente, de coordenação. “Administrar”, por significar menos que “dirigir”, é
mais apropriado à espécie.
Dentro dessa atividade administrativa da audiência, titularizada pelo juiz, poderes-
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deveres de diversas naturezas se alternam. Os poderes disciplinares são os que
primeiramente aparecem, porque tratados pela lei processual penal.
Esses poderes disciplinares, de estrita manutenção da ordem dos trabalhos, são
funcionalmente negativos. Implica isso em dizer que não são negativos no sentido
valorativo, mas apenas no sentido funcional, pois não operam no sentido da construção,
da evolução, da adição de dados novos à audiência, senão no caminho da repressão dos
excessos. Ainda assim, porque necessários para a consecução dos trabalhos da
audiência, não poderiam ser dispensados.
Ocorre, porém, que são superestimados.
Rigorosamente falando, os poderes puramente disciplinares do juiz, na presidência
dos trabalhos da audiência, somente atuam diante da concreta situação de abuso
praticada por quaisquer dos participantes da audiência processual penal. Além disso,
atuam para, reprimindo, fazer voltar a audiência ao status quo em que se encontrava
antes da prática do abuso. Seu titular não pode, valendo-se deles, impor subjugo às
partes. Pedagógicos, devem reprimir abusos que tendam a desequilibrar a equação de
poder da audiência; não mais.
No processo penal brasileiro, presidido pela inquisição da atividade instrutória,
conforme adiante será visto, a atividade administrativa da audiência processual penal fica
envultada pela excessiva iniciativa conferida ao juiz. Daí porque a atividade estritamente
administrativa da audiência processual penal, no seu aspecto positivo, dirije-se ao
estímulo da atividade crítica das partes técnicas, a ser feita pelo juiz. Repita-se mais uma
vez: a atuação positiva do juiz no sentido de instruir-se, para além da atividade das partes
é, rigorosamente, atividade instrutória.
Nesse particular, a atividade administrativa do juiz há de se fundar nas enormes
possibilidades que apresenta a diversidade e o conflito, inerentes ao caso discutido na
audiência.
A fim de possibilitar que diversidade e conflito dêem frutos cientificamente
promissores, como o enriquecimento da linguagem do Direito Penal, por exemplo, a
atividade administrativa há de fazer com que a oralidade da audiência processual penal
se adapte às dimensões qualitativas e quantitativas do caso em julgamento. Em outras
palavras, que a discussão se aprofunde (dimensão qualitativa) ou se estenda (dimensão
quantitativa) dependendo do que exigirem os fatos em exame.
Em termos concretos, percebendo que a atividade crítica das partes não se
aprofundou em aspectos relevantes do caso em julgamento, o juiz há de estimular as
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partes a fazê-lo. Em percebendo que, nada obstante a profundidade, as partes não
conseguiram abarcar todos os aspectos da causa – ou, havendo conexidade, das causas
– em julgamento, deve conceder-lhes mais algum tempo, a título de esclarecimento
especial.
Dir-se-á que uma conclusão como essa não encontra base na lei processual penal
brasileira, que somente tratou dos aspectos propriamente repressivos da administração
exercida pelo juiz.
Com efeito, a lei processual penal brasileira acabou por centrar sua atividade
propriamente administrativa no seu aspecto disciplinar. Isso ocorre justamente por causa
da natureza prevalentemente inquisitória do processo penal brasileiro.
Todavia, é possível identificar essa atividade administrativa topicamente, como o faz
ROGÉRIO LAURIA TUCCI com relação à tutela do direito de defesa do acusado: “tornam-se
imprescindíveis (...) a concessão, ao acusado, ‘em geral’, da possibilidade de ampla
defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes (sobretudo a técnica, realizada,
como visto, por um profissional dotado de conhecimento jurídico específico), numa
autêntica paridade de armas entre a acusação e a defesa”.
337-338 De outra parte, embora não exista norma processual expressa a autorizá-lo, é
possível também que o juiz, porque necessite de elementos para decidir no sentido da
verdade material, estimule, seja através da indagação direta de questões não ou mal
exploradas pelas partes, seja da pura e simples ampliação do tempo de duração dos
debates orais, a atividade crítica das partes técnicas na audiência processual penal.
Desejável seria que, afastado da produção das provas, a atividade administrativa do
juiz se dirigisse também a isso, isto é, a coordenar a atividade probatória já, então,
deferida às partes técnicas. É o que a reforma processual penal italiana realizou,
especificamente no campo da disciplina das provas. 339
Seja como for, a atividade administrativa do juiz há de estar voltada, a par da
repressão pura e simples, vez por outra necessária, da atuação das partes técnicas, à
337
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos…, p. 186.
338
Cf., no mesmo sentido, GRECO FILHO, Vicente. Manual…, p. 217: “Entre esses poderes que são
também deveres, (...) podem ser enumerados (...) poder de velar pela defesa técnica e representação
processual das partes (...). O juiz, também, no júri pode declarar o réu indefeso, anulando o julgamento (art.
479, V)”.
339
Cf., com detalhes, COMOGLIO, Luigi Paolo. “Prove ed accertamento dei fatti nel nuovo c.p.p.”, em
RItDPPen, (1990), p. 113-147 e DE LUCA, Giuseppe. “Il sistema delle prove penali e il principio del libero
convincimento nel nuovo rito”, em RItDPPen, (1992), p. 1.255-1.276.
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ativação mesma da discussão do caso em julgamento.
§ 2º A atividade administrativa e os “sistemas”
a) sistema inquisitório
A primeira característica da atividade administrativa na audiência processual penal
inquisitória é sua verdadeira comistão com as atividades instrutória e decisória.
No processo de cunho inquisitório, o juiz administra a audiência exclusivamente em
função de sua própria atividade instrutória. Mantém a ordem dos trabalhos porque precisa
dela para investigar.
Facilitam-lhe a direção dos trabalhos, de um lado, o segredo em que se desenvolvem
e, de outro, a situação processual do imputado verdadeiro objeto de investigações. Sem
publicidade e sem direitos, a ordem opressiva da audiência está virtualmente garantida.
Por outro lado, o juiz inquisidor não tem necessidade de estimular quem quer que seja
a uma atividade instrutória ou crítica mais apurada. O juiz inquisidor estimula-se a si
próprio, o que é muito pouco. Ao contrário, tem a necessidade, imposta pelo sistema, de
desestimular a dialética, a discussão, de castrar toda a possibilidade de alternatividade. O
juiz inquisidor busca a totalidade e a univocidade, exprimidas pela sua sentença, na
verdade, o coroamento de investigações. Segundo FRANCO CORDERO, “De espectador
impassível, que era, o juiz torna-se campeão do sistema, estirpando heresias ou
solucionando delitos. Mutam as técnicas: não existe contraditório; obtém-se tudo
secretamente; ao centro está, passivo, o inquirido; culpado ou não, sabe alguma coisa e é
obrigado a dizê-la; a tortura estimula fluxos verbais coarctados. Dono do tabuleiro, o
inquisidor elabora hipóteses em um quadro paranóico: nasce uma impura casuística das
confissões, algumas vezes obtidas com promessas de impunidade. De fato, é um sistema
legalmente amorfo: o segredo, o método introspectivo e o empenho ideológico dos
operadores excluem vínculos, formas, termos; conta o êxito. Floresce uma retórica
apologética, cujos argumentos se repetem, tais e quais, em lugares e tempos diversos”. 340
Trata-se de um fenômeno interessante: havendo segredo no processo e estando o
340 CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21. Trecho original: “Da spettatore impassibile, qual era, il
giudice diventa campione del sistema, estirpi eresie o scovi delitti. Mutano le tecniche: non esiste
contraddittorio; aviene tutto segretamente; al centro sta, passivo, l’inquisito; colpevole o no, sa qualcosa ed
è obbligato a dirlo; la tortura stimola flussi verbali coatti. Padrone della scacchiera, l’inquisitore elabora
ipotesi in un quadro paranoide: nasce un’impura casistica delle confessioni contro i correi, talvolta ottenute
con promesse d’impunità. De facto, è un sistema legalmente amorfo: il segreto, quel metodo introspettivo e
l’impegno ideologico degli operatori escludono vincoli, forme, termini; conta l’esito. Fiorisce una retorica
apologetica i cui argomenti risuonano, tali e quali, in luoghi e tempi diversi”.
112

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imputado em posição de sujeição aos poderes do juiz, a atividade administrativa é
virtualmente envultada pela sua absorvente e incontrastável atividade instrutória. Nessa
situação o inquisidor mais do que nunca possui, mas praticamente não precisa usar seus
poderes disciplinares.
Num processo misto, como o brasileiro, em que há publicidade e partes no sentido
formal, a experiência dos poderes-deveres disciplinares do juiz cresce em importância.
Por razões muito simples isso ocorre. De um lado, porque a publicidade e a existência
de partes expõem, naturalmente, a atividade do juiz à crítica. De outro, porque o juiz já
não encontra, num processo misto, a obediência e passividade que outrora dispusera em
um processo inquisitório.
A manutenção de excessiva parcela de poderes-deveres instrutórios, ou
investigatórios, por outro lado, faz com que a atividade disciplinar acabe sendo tomada
pela atividade propriamente administrativa da audiência, o que é incorreto e perigoso ao
processo penal democrático.
b) sistema acusatório
No sistema acusatório, ao contrário do sistema inquisitório, avulta a experiência de
uma atividade propriamente administrativa do juiz, embora, no conjunto, esse mesmo juiz
perca poderes.
Por uma razão muito simples: afastado da produção da prova, o juiz adquire mais
tempo para dirigir, efetivamente, os trabalhos do julgamento e nesse sentido apuram-se
seus sentidos. Ainda que não o queira, sua posição privilegiada, aliada à subtração de
parte de seus poderes, confere-lhe a condição concreta e mental de árbitro do conflito.
Sua função passa a ser, rigorosamente, a de velar pela correção e justeza das
atividades instrutória e crítica das partes. Em outras palavras, de velar pelo efetivo
equilíbrio da relação processual penal. “No ritual acusatório”, segundo FRANCO CORDERO,
“o processo é pura operação técnica: um êxito vale outro, desde que corretamente obtido;
notamos como as regras são tudo; seria um abuso distorcê-las por uma finalidade
justificável. Esse modelo ideologicamente neutro reconhece um só valor: fair play”.
341-342 341
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 100-101. Trecho original: “Nel rituale accusatorio il processo è
pura operazione tecnica: un esito vale l’altro, purché correttamente ottenuto; abbiano notato come le regole
siano tutto; sarebbe abuso distorcerle a fini buoni. Questo modello ideologicamente neutro riconosce un solo
valore: fair play”.
342
Cf., acerca do conceito de fair play (literalmente, “jogo bonito”, ou “jogo limpo”), RADBRUCH,
Gustav. El espíritu…, p. 27-30.
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Como no processo puramente acusatório avulta em importância a atividade crítica das
partes técnicas, há também maior espaço para a construtividade da atividade
administrativa da audiência processual penal.
Quanto ao processo penal anglo-americano, a propósito, é de ser feita uma distinção
no que se refere à atividade administrativa. No caso inglês, dado que o sistema, mais do
que em regras legais ou constitucionais, está entronizado na cultura do povo e das
autoridades encarregadas da jurisdição, a atividade administrativa do juiz é mais ampla e
incisiva. O juiz inglês orienta os jurados de maneira que pareceria perigosamente
enformadora por qualquer jurista dos Estados Unidos: adverte-os de que determinadas
decisões pareceriam absurdas, mostra-lhes o chamado obter dictum, explica-lhes os
standards, etc. Foi na Inglaterra, por exemplo, que surgiram as regras destinadas a
regular a recusa de jurados pelas partes técnicas. Foi nesse país, ao tempo dos
julgamentos pelos crimes de terrorismo, que foram criadas regras destinadas a evitar,
através da recusa peremptória de jurados pelas partes técnicas, fossem manipulados os
julgamentos pelo tribunal do júri. 343
§ 3º Princípios e regras
a) publicidade
O princípio da publicidade enforma a atividade administrativa do juiz na audiência
processual penal. É ele que dá à atividade o estrito caráter de atividade de coordenação
do dissenso.
Pode-se afirmar com alguma segurança que é precisamente o princípio da publicidade
que, limitando os poderes-deveres do juiz, tende a garantir às partes tratamento
igualitário. Isso porque, visando a atividade administrativa do juiz a estabelecer um
equilíbrio substancial entre as partes técnicas, está claro que em sendo realizada à vista
do público, há uma fiscalização desse objetivo politicamente legítimo.
É de EDUARDO J. COUTURE a lição: “A justiça oral e pública consiste em poder realizar
de viva voz este alto mister de decidir a sorte dos concidadãos. As vantagens da
publicidade não podem ser postas em dúvida. De tempos em tempos, quando se debatem
estas coisas, se repete o aforismo de Mirabeau: não temo os juízes, nem os mais abjetos,
nem os mais depravados, nem mesmo os meus inimigos, se é que sua justiça devem
343 Cf., a respeito do tema, LLOYD-BOSTOCK, Sally e THOMAS, Cheryl. “Decline of the ‘Little
Parliament’: Juries and Jury Reform in England and Wales”, em Law & Contemporary Problems, n. 62
(1999), p. 7-40.
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fazê-la em presença do povo. Todos sabemos bem que o povo é o juiz dos juízes”. 344
b) presidencialidade
A atividade administrativa da audiência processual penal é titularizada pelo juiz. No
inquérito policial, analogamente, pelo delegado de polícia, a “autoridade policial” a que se
refere o CPP. Nisso consiste o princípio – da presidencialidade – aplicado à atividade
administrativa da audiência processual penal.
A conseqüência, não sem importância, é de que a administração da audiência
processual penal é atividade exclusivamente judicial: não delegável, portanto, a qualquer
dos outros atores desse momento processual.
A presidencialidade, no que respeita especificamente ao juiz, é determinada pela
natureza jurídica da função de agente político que ele, no processo, exerce. Sua atuação
deve ser orientada politicamente pelos mesmos valores que orientam o Estado de Direito.
No caso do delegado de polícia, a atividade administrativa é orientada no sentido da
obtenção cautelar dos elementos de convicção para o exercício da opinio delicti e para a
atividade instrutória, bem como para outros objetivos secundários e eventualmente
afastáveis, como a manutenção do sigilo das investigações.
c) oralidade
A oralidade é o princípio processual mais firmemente afetado pela atividade
administrativa desenvolvida pelo juiz na audiência processual penal.
Conforme já ficou referido, a oralidade tem o potencial de flexibilizar a audiência,
adaptando-a ao caso em julgamento, efeito que a escritura absolutamente não possui.
Essa característica faz com que, através da oralidade, a atividade administrativa
desenvolvida na audiência sirva para adaptar o instrumento ao objeto, isto é, a audiência
aos fatos.
E isso não apenas no aspecto puramente temporal da audiência. A flexibilização do
tempo de duração da audiência é apenas o aspecto mais saliente dessa influência. É
possível afirmar que, através da oralidade, o juiz pode administrar a audiência no sentido
344 COUTURE, Eduardo J. Estudios de derecho procesal civil, Buenos Aires: 1948, t. 1, p. 153, apud
CARNEIRO, Athos Gusmão. Audiência…, p. 19-20. Trecho original: “La justicia oral y pública consiste em
poder realizar de viva voz este alto menester de decidir la suerte de los conciudadanos. Las ventajas de la
publicidad no pueden ser puestas en duda. Cada tanto tiempo, cuando se debaten estas cosas, se repite el
famoso aforismo de Mirabeau: no le temo a los jueces, ni a los más abyetos, ni a lo más depravados, ni a
mis mismos enemigos, si es que su justicia deben hacerla en presencia del pueblo. Todos sabemos bien
que el pueblo es el juez de los jueces”.
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de aprofundamento da atividade crítica das partes para aspectos que necessitem de
melhor equacionamento.
§ 4º Ritualismo
a) no inquérito policial
Qualquer audiência no inquérito policial, por se realizar no seio de um procedimento
puramente inquisitório, possui exatamente as características que ele apresenta. A
autoridade policial é, no rigor do termo, o único sujeito do procedimento.
A autoridade policial que preside o inquérito policial tem consideráveis poderesdeveres
instrutórios. Eles somente são suspensos pelos poderes-deveres judiciais, nas
hipóteses legal e constitucionalmente reservadas a essa apreciação, como no caso em
que seja necessário decretar a prisão provisória do indiciado, buscar e apreender algum
elemento de prova etc. Além disso, o delegado de polícia atua em segredo, por injunção
legal (CPP, art. 20, caput), e dispõe do indiciado como objeto de investigações, embora o
indiciado tenha direitos de cariz constitucional e legal frente ao próprio delegado. Assim,
os poderes-deveres propriamente administrativos da autoridade policial, nas audiências
que preside no inquérito policial, vêm confundidos com seus amplos poderes-deveres
investigatórios.
Na audiência que preside, a autoridade policial é a única parte, ao menos no sentido
formal. Como o procedimento é secreto, de regra o trabalho da autoridade policial se
desenvolve melhor estando o imputado, que é um mero objeto de investigações, preso
provisoriamente. Daí se afirmar que a autoridade policial tem tantos poderes-deveres
instrutórios que, a rigor, sequer necessita exercer atividade propriamente disciplinar;
quanto à atividade administrativa no seu sentido positivo, de estímulo à atividade crítica
das partes, a sinceridade se impõe: ou porque não há partes, em sentido formal, ou
porque ao inquérito policial contam apenas os resultados, esse estímulo usualmente não
interessa à autoridade policial; antes, atrapalha-a. 345
Mesmo sendo assim, a autoridade policial terá de admitir ao menos a fiscalização
eventualmente exercitável pelo órgão do Ministério Público e pelo advogado do imputado.
Quanto ao órgão do Ministério Público, é preciso que fique claro que seus poderes-
345 Discute-se muito, especialmente na doutrina estadunidense, a respeito do eventual dever da polícia
de buscar provas no interesse da defesa. Cf., a respeito, NORTON, Jerry E. “Discovery in the Criminal
Process”, em The Journal of Criminal Law, Criminology and Police Science, n. 61 (1970), p. 11-38;
EVERETT, Robinson O. “Discovery in Criminal Cases – In Search of a Standard”, em Duke Law Journal,
(1964), p. 477-517.
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deveres de “controle externo” das atividades da autoridade policial, criados pelo
ordenamento constitucional e regulados pela legislação complementar e ordinária, não
excluem a presidência do inquérito policial da pessoa do delegado.
Isso porque o controle exercido sobre as atividades da autoridade policial é
meramente externo e tem conteúdo legalmente tipificado. Tanto a Lei Orgânica Nacional
do Ministério Público (Lei n. 8.625/93, arts. 10, inciso IX, 25, inciso VI, 26, incisos III e IV,
41, incisos VI, letra “b”, VIII e IX) quanto a Lei Orgânica do Ministério Público da União
(Lei Complementar n. 75/93, arts. 7º, incisos II e III, 9º e 10) definem e delimitam o
conteúdo dessa intervenção. Além disso, a polícia judiciária tem atribuições exclusivas
nessa espécie de atividade investigatória, por força dos § 1º, inciso IV e § 4º, ambos do
art. 144 da Constituição.
O poder-dever de requisição do Ministério Público se exerce antes ou depois de findas
as investigações, na forma da lei. Perceba-se, por fim, que as leis orgânicas se referem
ao acompanhamento do inquérito policial pelo órgão do Ministério Público (Lei n.
8.625/93, art. 10, inciso IX, letra “e”; Lei Complementar n. 75/93, art. 49, inciso XV, letra
“e”). Como não há contraditório no inquérito, só é possível se pensar nesse
acompanhamento como simples presença física, instrumental de uma melhor formação
da opinio delicti. Entender-se diferentemente – isto é, que o acompanhamento implicaria
em constante intervenção do órgão ministerial – implicaria em violar o próprio regramento
constitucional, em prejuízo das prerrogativas investigatórias da autoridade policial.
Atualmente, o Supremo Tribunal Federal limita a participação do Ministério Público às
hipóteses legais, cujo principal exemplo é o art. 47 do CPP. 346
Relativamente à participação do advogado, é preciso fazer uma digressão, eis que a
questão está umbilicalmente ligada à da existência ou não de contraditório no inquérito
policial.
As tentativas de defender a existência de contraditório e ampla defesa no inquérito
policial, antes 347 e depois 348 do surgimento do inciso LV do art. 5º da Constituição, não
resistem a uma análise breve. Esse dispositivo constitucional fala em litigantes e em
acusados: o indiciado em inquérito policial não está a litigar com quem quer que seja nem
346
Recurso de habeas corpus n. 66.176-SC – STF – 2ª Turma – Rel. Ministro Carlos Madeira – julgado
em 26.abr.88 – improvido – votação unânime – RTJ n. 130, p. 1.053-1.054.
347
Cf. ALMEIDA, Joaquim Canuto Mendes de. Princípios…, p. 187-217.
348
Cf. TUCCI, Rogério Lauria. “Devido processo penal e alguns de seus mais importantes corolários”,
em TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo…, p. 25-29.
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é, ainda, acusado da prática de crime; é simplesmente objeto de investigações pela
autoridade policial. O inciso LV do art. 5º da Constituição não modificou a estrutura
inquisitiva desse instrumento de investigações. Esse é o entendimento predominante no
Supremo Tribunal Federal 349 e no Superior Tribunal de Justiça. 350
Tornando ao tema da fiscalização da atividade policial pelo advogado, ela não é
menos importante que a exercida pelo órgão do Ministério Público e deve ser tolerada
pela autoridade policial, se exercida, naturalmente, nos limites da lei. O art. 7º, inciso XIV,
da Lei n. 8.906, de quatro de julho de 1994, é expresso no sentido de autorizar o
advogado a, no interior de qualquer repartição policial e mesmo sem procuração,
examinar autos de flagrante e de inquérito, findos ou não, ainda que conclusos à
autoridade policial, com a possibilidade de copiar peças e de tomar anotações.
A característica inquisitória do inquérito policial, contudo, impede que a submissão da
autoridade policial à fiscalização externa possa ter características criadoras.
b) nos procedimentos comuns
A atividade administrativa exercida nas audiências do procedimento ordinário pleno
vem confundida, um tanto, com a atividade instrutória.
Com efeito, a atividade administrativa nas audiências realizadas no procedimento
ordinário pleno, desde o interrogatório até a oitiva da última das testemunhas, é envultada
pelos também formidáveis poderes instrutórios do juiz.
Neste caso, porém, ao contrário do que ocorre com o processo inquisitório, de que é
exemplo o inquérito policial, no procedimento ordinário pleno o juiz não opera em segredo
e tem, diante de si, sujeitos da relação processual penal.
Esses dois ingredientes tornam mais explícitos os poderes-deveres disciplinares do
juiz nessas audiências. Com eles, tornam-se mais ocorrentes situações de efetivo
inconformismo das partes técnicas para com os ideais de justiça que do juiz. Por causa
dessas situações, é provável que ele, juiz, sinta-se mais estimulado a reprimi-las. Daí a
importância do juiz não se conformar com esses poderes-deveres disciplinares. Deve
estimular, na medida do possível e cuidando para preservar sua própria imparcialidade, a
atividade instrutória das partes. Cabe ao juiz, por exemplo, destituir o defensor dativo e
349
Habeas corpus n. 69.372-SP – STF – 1ª Turma – Rel. Ministro Celso de Mello – julgado em
22.set.92 – ordem negada – votação unânime – DJU, Seç. 1 (7.mai.93), p. 8.328.
350
Recurso de habeas corpus n. 1.393-RJ – STJ – 5ª Turma – Rel. Ministro Assis Toledo – julgado em
2.set.91 – improvido – votação unânime – DJU, Seç. 1, (23.set.91), p. 13.088.
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nomear outro para o acusado, se perceber desídia na condução da defesa. Também cabe
ao juiz interromper a audiência, a pedido do defensor ou por iniciativa própria, se perceber
que dois ou mais acusados, defendidos por um mesmo profissional, têm interesses
defensivos conflitantes uns com os outros.
Por outro lado, como as diversas audiências que se podem verificar no procedimento
ordinário pleno não possuem a característica da concentração, isto é, nelas não se decide
a causa, a atividade administrativa positiva do juiz, de estimular a atividade crítica das
partes técnicas se atenua quase ao ponto de desaparecer.
No procedimento sumário em sentido estrito acrescentam-se alguns elementos à
atividade administrativa da audiência processual penal.
Se de um lado o juiz que preside as audiências processuais penais realizadas durante
o procedimento sumário em sentido estrito dispõe, ainda, de amplos poderes-deveres
instrutórios, bem como de partes e de ampla publicidade, há um elemento novo: nesse
procedimento há atividade crítica das partes na audiência principal, de instrução e
julgamento, conforme dispõe o § 2º do art. 538 e o § 2º do art. 539, ambos do CPP.
Assim, nessa audiência de instrução (parcial) e julgamento, o juiz deve conviver com a
atividade instrutória complementar e com a atividade crítica das partes técnicas. Nesse
momento, as partes técnicas fazem alegações de mérito. Por essa razão, ao juiz, no
sentido de aproximar-se da verdade, é também dado o poder-dever de estimular a
atividade crítica desenvolvida pelas partes técnicas.
c) no procedimento especial do júri
Dadas suas características dicotômicas – predominantemente inquisitório na fase de
formação da culpa e predominantemente acusatório na sessão de julgamento – o
procedimento especial do júri merece uma análise à parte.
Efetivamente, as audiências de instrução da fase de formação da culpa guardam,
mutatis et mutandis, as mesmas características de quaisquer das audiências realizadas
durante os procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido estrito, excetuada, quanto
a este, a audiência de instrução e julgamento.
Quanto à sessão de instrução e julgamento, predominantemente acusatória, a
atividade propriamente administrativa do juiz ganha uma importância inédita.
A razão é evidente: não tendo o ônus da atividade instrutória, o juiz pode dedicar-se
ao mister de administrar o contraditório das partes técnicas durante a sessão de
julgamento.
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No caso do procedimento especial do júri no processo penal brasileiro, a atividade
administrativa do juiz tem um inconveniente. As regras de tramitação do procedimento
especial do júri, especialmente na fase do juízo da causa, são extremamente complexas,
o que torna assaz delicada a atuação judicial no sentido de organizar a sessão de
instrução e julgamento. Para tanto, basta conferir o número de regras legais existentes no
CPP relativas à organização da sessão e à sua realização e a detalhes que bem
poderiam ser excluídos da lei.
Além disso, a preocupação do juiz passa a ser a de evitar a causação de nulidades,
mais do que freqüentes e de facílima ocorrência, sejam decorrentes da atuação dele
próprio, sejam decorrentes da atuação das partes técnicas, dos jurados ou mesmo de
qualquer auxiliar da justiça.
Por outro lado, também inibe a atividade administrativa do juiz um excessivamente
amplo conceito de cerceamento que delineou-se na apreciação do trabalho das partes
técnicas durante a sessão de instrução e julgamento. A par da complexidade desse
momento processual, tem o juiz o temor de, interferindo na atuação de qualquer das
partes técnicas, cerceá-las, ferindo de morte a higidez do momento processual.
Por tais razões, a plenitude da atividade administrativa do juiz que preside a sessão
de instrução e julgamento permanece, por assim dizer, em estado de potência. Com isso,
seu aspecto construtivo não se demonstra de maneira plena. E, dentro desse aspecto
construtivo, a atuação didática do juiz-presidente, tão comum em outros sistemas
processuais, 351 também é limitada.
Assim, o procedimento especial do júri do processo penal brasileiro,
predominantemente acusatório em sua última fase, viabiliza uma atividade administrativa
do juiz muito mais intensa e potencialmente criadora do que nos procedimentos comuns.
Não há termos de comparação com a atuação análoga da autoridade policial na atividade
administrativa realizada durante momentos processuais do inquérito policial.
Ainda assim, contudo, algumas características procedimentais e de hermenêutica de princípios
constitucionais como o da ampla defesa, somente para se ficar com dois exemplos, inibem uma
atividade que poderia ser mais construtiva e orientada para uma sentença justa.
351
Cf., sobre as obrigações didáticas do juiz-presidente do escabinado alemão em COLOMER, Juan-
Luiz Gomes. El proceso…, p. 231-239.
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Seção C
Fundamento político
Conforme ficou claro pelo exame do ordenamento processual penal brasileiro, a
atividade administrativa desenvolvida pelo juiz, na audiência processual penal, adquiriu
um perfil excessivamente negativo.
Comprova-se essa assertiva ao perceber-se que os poderes de administração do juiz,
na dicção do CPP, por seus arts. 251 e 794, parecem se resumir ao poder-dever de fazer
manter-se a ordem da audiência, determinando que seus eventuais espectadores
permaneçam em silêncio (CPP, art. 795, caput)e excluindo do local os recalcitrantes e
prendendo os que resistirem à exclusão (CPP, art. 795, parágrafo único).
Especificamente quanto à audiência, JOSÉ FREDERICO MARQUES arrola alguns desses
poderes: “impedir a interferência do defensor no interrogatório (art. 187); determinar a
condução do ofendido, de testemunhas e do próprio réu (arts. 201, 218 e 260); recusar
perguntas das partes às testemunhas, que não tenham relação com o processo, ou
importem em repetição de outras já respondidas (art. 212); não permitir que a testemunha
manifeste apreciação subjetiva não inseparável da narrativa do fato (art. 213); (…) punir o
jurado faltoso (art. 443); comunicar ao procurador-geral o não comparecimento do
promotor ao júri (art. 448, parágrafo único), e ao Conselho da Ordem dos Advogados do
Brasil, a falta, sem escusa legítima, do defensor ou curador do réu (art. 450); advertir e
punir jurados que se comuniquem com outros, ou que manifestem sua opinião sobre a
causa (art. 457, § 1º); impedir que tumultuem os debates do júri, e punir os faltosos (art.
483); (...) regular os debates do júri e mandar retirar da sala o réu que dificultar o livre
curso do julgamento (art. 497, ns. III e VI); ‘evitar verbiagem inútil’ (art. 538, § 2º)”. 352-353
A idéia central deste capítulo é demonstrar que, na dialética de poder que se verifica
na audiência, a função judicial de administrá-la vai muito além da repressão propriamente
dita, no caso, dos abusos dos outros participantes da audiência, ou das irregularidades
que viciem o processo.
Trata-se de uma constatação mais do que simples. Há audiências perfeitas sob o
aspecto disciplinar, audiências calmas, perfeitamente ordenadas, mas que não se
prestam à descoberta da verdade material. Embora essas audiências contem com
participantes conscientes da disciplina e obedientes às regras de trato lhano entre as
352
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 13.
353
Cf., quanto ao poder de polícia da audiência processual civil, CARNEIRO, Athos Gusmão.
Audiência…, p. 39-45.
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partes, falta-lhes alguma coisa a mais. Dir-se-á que lhes falta emoção, vida? Falta-lhes
partes engajadas? Talvez falte-lhes mais, talvez falte-lhes menos. Da mesma maneira
quanto ao aspecto do cuidado do juiz com a regularidade formal do processo: embora
necessário, não resta dúvida, esse cuidado permeia todas as outras atividades da
audiência: a instrução, a crítica e a decisão haverão de ser processualmente regulares.
Daí porque esse cuidado do juiz – de certa maneira dividido também entre as partes
técnicas – não suscita maiores indagações.
A verdade é que, diante de um quadro de uma audiência processual penal apenas
regular sob o aspecto formal e ordenada e pacificada, mas imprópria à busca da verdade
material, há de atuar algum poder maior de estímulo, de construção: esse poder está
embutido na atividade administrativa e é titularizado pelo juiz.
O estudo da evolução histórica do processo penal e, conseqüentemente, da audiência
processual penal, revela que há, entre outras, uma direção nessa evolução: percebe-se
nitidamente que ambos evoluíram no sentido da profissionalização da atividade
jurisdicional. 354
Das assembléias populares do processo penal greco-romano, em seu início, e do
processo bárbaro, evoluiu-se para um processo dominado pelo juiz profissional. Essa
evolução, combinada com a idéia de repressão a certas criminalidades, também gerou a
acentuação de poderes inquisitórios desse mesmo juiz profissional, que será estudada
adiante.
Um estudo breve dos movimentos dessa evolução faz ver que faltam critérios
razoáveis na paulatina exclusão da participação popular na administração da justiça
criminal. O que deveria ser guiado por injunções puramente estatísticas (de fato, a
hegemonia da participação popular nessa administração não é economicamente viável) 355
passou a sê-lo por outros valores, alguns inconfessáveis.
Presentemente, a questão da legitimidade política da atividade administrativa
desenvolvida na audiência processual penal deve partir de uma premissa, que diz com a
caracterização do órgão responsável por essa atividade: o juiz.
Se o juiz é, efetivamente, um agente político do Estado, sua atividade deve estar
354 Cf., sobre aspectos mais gerais desse movimento de centralização, FARIA, José Eduardo.
Eficácia…, p. 40-58.
355 Cf., acerca da necessidade de critérios puramente estatísticos para o estabelecimento da
competência do tribunal do júri, RAMOS, João Gualberto Garcez. “O Júri como instrumento de efetividade
da reforma penal”, em JBC, n. 33 (1994), p. 47-48 e em RT, n. 699 (jan/1994), p. 283-288.
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orientada para os fins desse mesmo Estado. Caso contrário, não teria sentido essa
conceituação.
Verificando os fins do Estado brasileiro, percebe-se que, conforme o art. 3º da
Constituição, são os de “construir um sociedade livre, justa e solidária (...) garantir o
desenvolvimento nacional (...) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais (...) promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Abstraindo, por ora, aqueles objetivos puramente administrativos, que estariam de
certa maneira afastados dos poderes-deveres concretos do juiz criminal, mas que são
objetivos dele também, posto que mais afastados, percebe-se que não é pequena sua
missão enquanto agente político do Estado.
Aproximando-se mais do fenômeno do processo penal, dispõe também a
Constituição, em seu art. 1º, que, entre outros, é fundamento da República Federativa do
Brasil o pluralismo político.
Eis aí a sede do fundamento político da atividade administrativa do juiz, num sentido
construtivo.
Com efeito, para além dos poderes-deveres estritamente negativos do juiz, sua
atividade administrativa, na audiência processual penal, enquanto agente político do
Estado, é a de fomentar a discussão, a dialética processual em torno do caso e em torno
do próprio poder-dever punitivo.
A função administrativa do juiz e, ao mesmo tempo, a sua legitimação política,
conforme será visto adiante, está no poder-dever de coordenar, construtivamente, o
pluralismo processual, propiciando que do conflito construa-se uma decisão justa. Um
argumento irrespondível para essa visão da atividade administrativa da audiência
processual penal é o de que a experiência política tem demonstrado que é impossível
pretender administrar os conflitos somente através de ações negativas, de coerção ou
castração. 356 É institucionalmente necessário que a administração da audiência seja
também construtiva.
Por amor à própria sobrevivência, os poderes de administração da audiência não
356 Cf. conceito de castração em WARAT, Luis Alberto. A ciência…, p. 16-18: “A castração é sobretudo
a poda de um desejo. (...) À primeira vista, a castração revela-se, passivamente, como uma falta, uma
insuficiência, um vazio. É essa representação camuflada da castração que nos faz submergir nos suntuosos
anacronismos das verdades completas. (...) Pelo seu lado ativo, a castração da linguagem é um modo de
fechar nossos olhos, pelo pavor do distinto, a tudo que não é conjuntamente verossímil e consagrado
culturalmente. (...) Ela é uma armadilha preparada ao desejo, petrificando o seu processo”.
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poderiam jamais ser somente negativos. A atividade administrativa da audiência é,
outrossim, positiva, dado que é, rigorosamente, manifestação de poder, valendo, para ela,
a precisa lição de MICHEL FOUCAULT: “Quando se define os efeitos do poder pela
repressão, tem-se uma concepção puramente jurídica desse mesmo poder; identifica-se o
poder a uma lei que diz não. O fundamental seria a força da proibição. Ora, creio ser esta
uma noção negativa, estreita e esquelética do poder que curiosamente todo mundo
aceitou. Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer
não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que
seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de
fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se
considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do
que uma instância negativa que tem por função reprimir”. 357
Assim, a atividade administrativa da audiência processual penal possui, além dos
poderes-deveres estritamente repressivos, seu aspecto positivo, de criação, de estímulo
dirigido à atividade das partes, no sentido de vivificar uma verdadeira democracia
processual, 358 tarefa que, repita-se ainda uma vez, é precípua do juiz enquanto agente
político do Estado.
Outro aspecto dessa construtividade, umbilicalmente ligado à administração do
conflito, diz com a instrumentalidade do processo penal e, em linha de conseqüência, da
audiência processual penal. Trata-se de um aspecto não menos importante, mas pouco
explorado pela doutrina processual penal e diz com o poder-dever do juiz, dentro da
atividade administrativa da audiência de, valendo-se da oralidade, adequá-la à busca da
verdade material.
Em outras palavras, há de existir na audiência uma atividade tendente a, dentro dos
limites legais e da flexibilidade que a oralidade proporciona, adequá-la à necessidade de
reconstituir a verdade histórica representada pelo crime. Essa atividade titulariza-a o juiz,
no exercício da direção dos trabalhos, seja no sentido negativo – coerção da atuação das
partes – seja no sentido positivo – adequação da oralidade da audiência aos fatos em
julgamento.
Assim, além de manter a ordem da audiência processual penal, o juiz tem o poder-
357
FOUCAULT, Michel. “Entrevista: Verdade e poder”, em Microfísica…, p. 7-8.
358
Cf. conceito de democracia em SILVA, José Afonso da. Curso…, p. 112: “A democracia é um
processo de convivência social em que o poder emana do povo, há de ser exercido, direta ou indiretamente,
pelo povo e em proveito do povo”.
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dever de abreviá-la, ou estendê-la, bem como de estimular a atividade crítica das partes
técnicas, à medida em que sinta necessidade disso, para uma melhor apreciação da
causa. No caso de verificar que um dos aspectos da causa não foi convenientemente
explorado pelas partes, deve estimulá-las a fazê-lo, como a dizer-lhes: – Convençam-me!
Em resumo, o juiz tem o poder-dever de, administrando o pluralismo – representado
pela polaridade entre acusação e defesa – realizar uma audiência processual penal
concretamente adequada à busca da verdade material do respectivo caso concreto.
Eis aí os fundamentos políticos da atividade administrativa da audiência processual
penal.
Pelo exame dos sistemas processuais, percebe-se que a atividade administrativa tem
características profundamente diversas em se tratando do sistema acusatório ou do
sistema inquisitório.
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Capítulo 2
A atividade instrutória na audiência processual penal
Seção A
A atividade instrutória stricto sensu
§ 1º Conceitos
É possível definir-se a atividade instrutória da audiência processual penal como sendo
a atuação, das partes técnicas ou do juiz, tendente acolher elementos úteis à solução da
causa.
A atividade instrutória stricto sensu, ou probatória, da audiência processual penal, por
sua vez, diz com a atividade de produção de provas, também indispensáveis à solução do
caso. O interrogatório do acusado, por sua vez, configura uma atividade instrutória lato
sensu, na medida em que não visa à produção de provas, mas de meros elementos de
convicção, para o atendimento, por exemplo, dos deveres impostos pelo art. 59 do CP.
Por suscitar problemas específicos, será analisado à parte.
Neste passo, é conveniente invocar diferentes classificações das provas, para os fins
de facilitar a compreensão da atividade instrutória desenvolvida na audiência processual
penal.
A primeira classificação a ser registrada é a de NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA.
Segundo esse autor, três devem ser os critérios de classificação da prova: conteúdo
(ou objeto) sujeito e forma.
Quanto ao primeiro critério, a prova pode ser direta ou indireta, conforme se refira
imediata ou mediatamente ao fato que seja objeto da reconstituição histórica por parte do
processo.
Quanto ao sujeito, a prova há de ser pessoal ou real, conforme emane de um ser
humano ou de uma coisa.
Por fim, quanto à forma, a prova pode ser testemunhal, documental ou material. 359
Outra classificação importante e talvez mais promissora, sob o aspecto científico, que
a de NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA, é a de FRANCESCO CARNELUTTI.
Esse autor classificou as provas a partir de dois critérios, quais sejam, o da função e o
da estrutura da prova. Quanto à função, FRANCESCO CARNELUTTI classificou as provas em
históricas e críticas; quanto à estrutura, em pessoais e reais.
A classificação quanto à estrutura é simples e idêntica à que NICOLA FRAMARINO DEI
359 MALATESTA, Framarino dei. Lógica…, v. 1, p. 139-140.
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MALATESTA identificou como sendo relativa ao sujeito. É superior em sua designação, na
medida em que é inaceitável ver-se uma coisa como “sujeito” da prova.
A classificação quanto à função, ao contrário, é promissora num estudo acerca da
audiência processual penal.
Explica-a FRANCESCO CARNELUTTI: “Para saber se o imputado cometeu o delito, o juiz,
entre outras coisas, escuta os testemunhos, os quais lhe narram havê-lo visto roubar, ou
bem confronta com suas impressões digitais as pegadas observadas sobre a coisa
roubada; observemos agora a diferença entre esses dois casos. O juiz reconstitui, através
do testemunho, a pessoa que aquele viu roubar, ou seja, trata de obter seu retrato falado;
o que o testemunho procura é, portanto, uma imagem do fato a provar; nada disto tudo,
ao contrário, ocorre no outro caso, em que as impressões digitais observadas sobre a res
furtiva não suscitam na mente do juiz nenhuma imagem, mas somente lhe proporcionam
um termo de comparação. Tal diferença se formula dizendo que algumas provas têm e
outras não têm eficácia representativa do fato aprovar; as primeiras se chamam provas
históricas, as segundas provas críticas”.
360-361 Importante, ainda, é a observação de FRANCESCO CARNELUTTI acerca da base da
diversidade dessas duas espécies de provas. Trata-se, segundo esse autor, do conceito
de representação, que determina, entre as provas históricas e críticas, “sua idoneidade
para suscitar na mente do juiz, direta ou indiretamente, mediante a figura ou o discurso,
que são as duas espécies do conceito, a imagem do fato a provar, o que precisamente se
diz representar, no sentido de fazer presente o que é passado ou distante”. 362
A classificação de FRANCESCO CARNELUTTI será útil, mais que a de NICOLA FRAMARINO
DEI MALATESTA, para estudar o desenvolvimento da atividade instrutória na audiência
360
CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 1, p. 300. Trecho original: “Para saber si el imputado ha
cometido el delito, el juez, entre otras cosas, escucha a los testigos, los cuales la narran haberlo visto robar,
o bien confronta con sus impresiones digitales las huellas observadas sobre la cosa robada; observemos
ahora la diferencia entro estos dos casos. El juez se hace describir por el testigo la persona que aquél ha
visto robar, o sea que trata de obtener de él su retrato hablado; lo que el testimonio procura es, pues, una
imagen del hecho a probar; nada de todo esto, en cambio, ocurre en el otro caso, en el que las huellas
observadas sobre la res furtiva no suscitan en la mente del juez ninguna imagen, sino que solamente le
proporcionan un término de comparación. Tal diferencia se formula diciendo que algunas pruebas tienen y
otras no tienen eficacia representativa del hecho a probar; las primeras se llaman pruebas históricas, las
segundas pruebas críticas”.
361
Cf. redefinição das duas classes de provas propostas por FRANCESCO CARNELUTTI em CORDERO,
Franco. Procedura…, p. 517-518.
362
CARNELUTI, Francesco. Lecciones…, v. 1, p. 301. Trecho original: “su idoneidad para suscitar en la
mente del juez, directa ou indirectamente, mediante la figura o el discurso, que son las dos especies del
concepto, la imagen del hecho a probar, lo que precisamente se dice representar en el sentido de hacer
presente lo que es pasado o distante”.
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processual penal.
A atividade instrutória mais freqüentemente desenvolvida em audiência processual
penal é a colheita de depoimentos orais – prova histórica quanto à função e pessoal
quanto à estrutura, conforme FRANCESCO CARNELUTTI – sejam esses depoimentos orais
partidos do próprio imputado, sejam partidos de testemunhas ou do próprio ofendido.
No processo penal brasileiro, se esses depoimentos orais partem do imputado, são
prestados no bojo do interrogatório, que possui características rituais próprias, merecendo
um exame específico.
Caso não partam do próprio imputado, o método de colheita das declarações é
sempre o mesmo.
Contudo, há ainda que diferençar, conceituando, as testemunhas propriamente ditas e
o ofendido pelo crime.
Tradicionalmente, testemunha é, lato sensu, aquela pessoa que conhece os fatos,
com maior ou menor número de detalhes, tendo adquirido essa ciência direta ou
indiretamente. 363
Segundo GIOVANNI LEONE, testemunho é “a declaração de ciência de um fato
determinado, partida de pessoa diversa das partes e concernente ao acertamento sobre o
qual caminha o processo”. 364
Segundo JOSÉ FREDERICO MARQUES, “prova testemunhal é a que se obtém com o
depoimento oral sobre fatos que se contém no litígio penal”. 365
O produto desse exame é denominado depoimento. 366 Sua produção em juízo, na
presença e à disposição, para exame pela parte técnica que não o requereu, produz
prova testemunhal.
Não é senão uma característica acidental da testemunha, que usualmente não a
363
Cf. as antigas definições de praxistas portugueses, válidas para o Direito das ordenações, como: a)
MANUEL DE ALMEIDA E SOUSA LOBÃO: “As testemunhas (...) são pessoas que se fazem chamar a juízo, para
declarar o que elas sabem sobre a verdade dos fatos contestados entre partes: e a declaração que elas
fazem, é o seu testemunho”; b) JOAQUIM INÁCIO RAMALHO: “Testemunha é a pessoa chamada a juízo para
declarar o que sabe a respeito do fato controverso, ou coisa duvidosa”; c) JOAQUIM JOSÉ CAETANO PEREIRA E
SOUSA: “Testemunhas são as provas consistentes em palavras de quem não é parte na causa, mas só de
viva voz e juradas”; d) FRANCISCO DE PAULA BATISTA: “Chamam-se testemunhas as pessoas que vêm a juízo
depor sobre fato controvertido”.
364
LEONE, Giovanni. Trattato…, p. 240. Trecho original: “la dichiarazione di scienza di un fatto
determinato concernente l’accertamento su cui verte il processo, resa da persona diversa dalle parti”.
365
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 335.
366 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 335.
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descaracteriza como tal, 367 a de não ter interesse econômico, pessoal, psicológico ou de
outra natureza em transmitir exatamente o que tem conhecimento.
Outro conceito deveras relevante, quando se trata da produção da prova testemunhal,
é o de ofendido. Segundo a definição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “ofendido
ou vítima é o sujeito passivo da infração. (...) é quem sofre a ação violatória da norma
penal”. 368
A oitiva do ofendido, no processo penal de cunho condenatório, reveste-se de
características importantes que, se não justificam uma análise à parte, como ocorre com o
interrogatório, aconselham destaque.
A colheita do depoimento de uma testemunha denomina-se inquirição. À colheita de
mais de um depoimento, na mesma situação de tempo e lugar, para fins de confrontação
imediata, não só do conteúdo, como também da forma com que esse depoimento foi
dado, reserva-se a denominação de acareação.
É o que leciona JOSÉ FREDERICO MARQUES, ao escrever que “acareação é o ato
probatório pelo qual se confrontam pessoas que prestaram depoimentos divergentes: é
um depoimento em conjunto”. 369
O processo penal brasileiro possui, ainda, outros conceitos importantes, no terreno da
prova testemunhal. Um deles é o de testemunha referida: “testemunha referida é aquela
mencionada no depoimento de outra testemunha: àquela se dá o nome de testemunha
referente”. 370
O perito, seja ele oficial ou não, 371 quando inquirido em juízo, para fins de aclarar
laudos ou autos, é verdadeira e própria testemunha. Ou seja: está submetido ao exame
do juiz e das partes técnicas e tem o dever de esclarecer quaisquer pontos dos laudos
que porventura tenha subscrito.
367
Cf. CARNELUTTI, Francesco. Principi…, p. 192.
368
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 3, p. 291.
369
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 343.
370
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 341.
371
Seja oficial ou não, o perito é considerado funcionário público, para os fins penais. Cf. Inquérito n.
364-6(Queixa-crime)-MT – STF – Pleno – Rel. Ministro Oscar Corrêa – julgado em 28.abr.88 – julgada
extinta a punibilidade, pela decadência – votação unânime – DJU, Seção 1 (20.mai.88) – RT, n. 631
(mai/1988), p. 347.
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§ 2º Caracteres
a) a atividade instrutória e os “sistemas”
1. sistema inquisitório
Conforme já ficara claro anteriormente, no estudo do processo penal e da respectiva
audiência no sistema inquisitório, a atividade instrutória fica totalmente deferida ao juiz.
É ele o único verdadeiro responsável pela produção da prova, até porque o processo
inquisitório não dispõe de partes, em sentido formal.
Essa característica leva ao que FRANCO CORDERO denomina de amorfismo do
processo inquisitório, que apenas se preocupa com o sucesso da atividade instrutória: 372
os meios, através da manipulação retórica propiciada pelo livre convencimento, 373 são
justificados diante dos fins, geralmente ligados à repressão a certa criminalidade.
Já no processo penal misto há publicidade e partes em sentido formal. Daí porque a
tendência é dividir a atividade instrutória entre todos os participantes técnicos da
audiência processual penal: o juiz e as partes técnicas.
Nesse caso, o juiz já não dispõe de total gerência sobre a prova, pois divide-a,
mantendo a maior fatia do poder, com as partes técnicas.
O mecanismo, aqui, de manutenção do status quo ante, do poder-dever de
administrar a prova, é garantido pela adoção, confessada pela Exposição de Motivos do
CPP, do princípio da presidencialidade.
Através desse princípio, de início tratado como ideologicamente neutro, o juiz mantém
imediação exclusiva dele com as provas.
Embora as partes técnicas participem da administração da prova, o juiz mantém o
contato direto e a maior parte dos poderes-deveres dessa administração. Pergunta em
primeiro lugar à testemunha e somente ele mantém esse contato imediato.
O aspecto temporal não é de nonada. Partindo da preeminência temporal, o juiz pode
garantir, através de certas perguntas, que alguma versão da prova testemunhal fique
desde logo fixada, impedindo, através de sua atividade administrativa – na lei processual
penal, conforme visto, estabelecida negativamente – que alguma outra versão se
imponha.
372
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21.
373
Cf. CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555 e BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 51-84.
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2. sistema acusatório
No sistema acusatório, ao contrário do que ocorre com o inquisitório, a atividade
instrutória é completamente deferida às partes técnicas, reduzindo-se a uma parca
exceção qualquer intervenção do juiz. “Este modelo”, escreve GIUSEPPE DE LUCCA,
referindo-se ao modelo acusatório, “encontra atuação em uma série de princípios do novo
código. Em particular através da (…) abolição da regra do processo inquisitório iudex
potest in facto supplere (o juiz pode suprir a atividade instrutória das partes) que é
degradada a exceção e, depois, a um poder residual do juiz”. 374
A atividade instrutória, no sistema acusatório, é completamente deferida às partes
técnicas: ao juiz resta a atividade administrativa, de vigilância sobre o equilíbrio da relação
processual.
A atividade instrutória da audiência processual penal acusatória, outrossim, é
orientada pelo estrito respeito à forma: a prova é admissível porque corretamente
adquirida. Segundo FRANCO CORDERO, “o processo adversarial anglo-saxão impõe formas,
termos, proibições: todo poder instrutório cabe às partes; e o uso elabora regras ‘on
evidence’”. 375
A respeito das regras em torno da prova oral nos Estados Unidos, país em que o
sistema acusatório ganhou características peculiares, HENRY W. TAFT afirma que qualquer
bom litigator sabe que as partes, testemunhas, jurados e o público em geral sentem-se
incomodados e por vezes impossibilitados de dizerem toda a verdade, dado o número de
regras que existem em torno das declarações dadas no processo. 376 Ainda segundo esse
autor, o senso comum considerará diversas das regras contraproducentes à obtenção da
verdade material. 377
No processo penal italiano enxergou-se uma preocupação de afastar a atividade
instrutória do juiz, deferindo-a primacialmente às partes técnicas. 378
374
Cf. DE LUCA, Giuseppe. “Il sistema delle prove penali e il principio del libero convincimento nel
nuovo rito”, em RItDPPen, (1992), p. 1.258. Trecho original: “Questo modello trova attuazione in un serie di
principi del nuovo codice. In particulare attraverso (...) l’abolizione della regola del processo inquisitorio iudex
potest in facto supplere che è degradata ad eccezione, e quindi a un potere residuale del giudice”.
375
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555. Trecho original: “L’‘adversary system’ anglosassone
impone forme, termini, divieti: ogni potere istruttorio spetta alle parti; e l’uso elabora regole ‘on evidence’”.
376
TAFT, Henry W. Curiosidades…, p. 53-55.
377
TAFT, Henry W. Curiosidades…, p. 53-55.
378
Cf. CORDERO, Franco. Procedura…, p. 555, DE LUCA, Giuseppe. “Il sistema delle prove penali e il
principio del libero convincimento nel nuovo rito”, em RItDPPen, (1992), p. 1.255-1.276 e FASSONE, Elvio.
“Il dibattimento: ammissione ed assunzione della prova”, em Contributi…, p. 219-235.
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b) princípios e regras
1. publicidade
O primeiro dos princípios reitores da audiência processual penal diretamente
pertinente com atividade instrutória é o da publicidade.
Segundo GIAN DOMENICO PISAPIA, três são os perfis desse princípio: “Sob um primeiro
perfil, a publicidade consiste na presença à audiência dos defensores e das partes e
substancialmente se contrapõe ao sigilo instrutório; sob um segundo perfil, a publicidade é
dada pela presença do público à audiência; sob um terceiro perfil, consiste ela na
possibilidade de que dos atos praticados se dê publicidade ao exterior, mediante
divulgação pela imprensa e por outros meios de difusão”.
379-380 JORGE FIGUEIREDO DIAS nega a afirmação de PAUL JOHANN ANSELM FEUERBACH no
sentido de que a assistência de uma audiência processual penal seja também participante
do processo penal, pois sua eventual intervenção não possui eficácia constitutiva sob
prisma jurídico. 381
Contudo, a lição de JORGE FIGUEIREDO DIAS corresponde a uma concepção formal da
relação processual penal. Se de um lado é verdadeiro que a existência de pessoas
alheias à relação processual penal durante a realização de um ato, ou de um momento
processual, não constitui, desconstitui ou mesmo modifica direitos, por outro lado é
verdadeiro que o comportamento dos personagens do processo penal se modifica nessa
situação. Especificamente com relação ao momento processual: a existência ou não de
uma assistência, seu maior ou menor número de integrantes, bem como a sua mais ou
menos intensa participação, são circunstâncias que, induvidosamente, alteram o
comportamento das partes.
Não se trata, por outro lado, de opor a essa afirmação, de resto óbvia, o argumento de
que o estudo dessas nuances do processo pertenceria à psicologia judiciária e não ao
direito processual penal. É que, se ocorrem alterações no comportamento das partes
379
PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 338. Trecho original: “Sotto un primo profilo, la pubblicità
consiste nella presenza all’udienza dei defensori e delle parti e sostanzialmente si contrappone alla
segretezza istruttoria; sotto un secondo profilo la pubblicità è data dalla presenza del pubblico alle udienze;
sotto un terzo profilo essa consiste nella possibilità che degli atti compiuti si dia pubblicità all’esterno,
mediante la stampa ed altri mezzi di diffusione”.
380
Cf, em passagem já citada, a respeito do princípio da publicidade, DIAS, Jorge de Figueiredo.
Direito…, p. 221.
381
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 223.
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durante uma audiência processual penal em que há participação do público, está claro
que isso interessa ao direito processual penal. Quanto ao estudo pormenorizado da
tipologia dessas alterações, concede-se que seja deferido à psicologia judiciária; mas a
existência mesma do fenômeno não se compreende porque deva ser ignorada pelo direito
processual penal, mormente quando a proposição é estudar a audiência processual penal
sob seu aspecto dinâmico.
Assim, modificando-se o ponto de vista, é possível concordar parcialmente com a
afirmação de PAUL JOHANN ANSELM FEUERBACH no sentido de que o público é participante
do processo penal; corrige-se-a, agregando-lhe a idéia da eventualidade. A conclusão
correta, pois, é a seguinte: o público é participante eventual do processo penal.
Vem ele estabelecido, em regra deveras importante, no art. 792, caput, primeira parte,
do CPP: “As audiências, sessões e atos processuais serão, em regra, públicos”.
A exceção a esse princípio vem estabelecida no § 1º do mesmo art. 792: “Se da
publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo,
inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem, o juiz, ou o tribunal, câmara, ou
turma, poderá, de ofício ou a requerimento da parte ou do Ministério Público, determinar
que o ato seja realizado a portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam
estar presentes”.
De maneira a viabilizar a publicidade da audiência processual penal – de nada
adiantaria franquear ao público a audiência e realizá-la em local e horário desconhecidos
– dispõe o art. 792, caput, segunda parte, do CPP, após determinar a publicidade das
audiências, sessões e atos processuais, que eles “se realizarão nas sedes dos juízos e
tribunais (...) em dia e hora certos, ou previamente designados”.
Por sua vez, a exceção a essa regra instrumental da publicidade vem estabelecida no
§ 2º do art. 792 do CPP: “As audiências, as sessões e os atos processuais, em caso de
necessidade, poderão realizar-se na residência do juiz, ou em outra casa por ele
especialmente designada”.
Se o estabelecimento dessa última exceção – realizar-se na casa do juiz, ou em outra
– parece sentir o peso dos anos, com o perdão do termo, a exceção à publicidade mesma
requer reflexão.
Perceba-se que, mesmo relativizando o princípio da publicidade, o § 1º do art. 792 do
CPP não autorizou o juiz criminal a realizar ato secreto, nem, tampouco, a restringir a
participação em qualquer audiência processual penal somente às pessoas nela
diretamente envolvidas, como faz a lei processual civil, nas hipóteses de segredo de
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justiça.
É que, no art. 155 do CPC, as hipóteses ensejadoras do segredo de justiça são
ontologicamente distintas, embora tenham tido a mesma conseqüência prática.
A primeira delas, descrita no inciso I do referido art. 155, diz com o interesse público,
que pode pretender, no máximo, a restrição à publicidade do ato processual ou da
audiência. Parece evidente que jamais será do interesse público o completo segredo do
processo, quando essa tenha sido a hipótese 382 mas tão-somente a restrição à
publicidade.
A segunda hipótese, ao contrário, em que os assuntos a serem objeto de atos
processuais ou de discussão em audiência podem ser de molde a humilhar, vexar,
rebaixar ou embaraçar, para usar expressões de PONTES DE MIRANDA, 383 e, por isso
mesmo, apenas por razões subalternas possam interessar a um número indeterminado
de pessoas, o segredo de justiça, no processo civil, será absoluto. Acerca do assunto, é
precisa a distinção feita por MOACYR AMARAL SANTOS: “Enquanto no segundo caso (art.
155, n. II) o segredo de justiça é total, no primeiro (art. 155, n. I), atentas as
circunstâncias, poderá ser total ou parcial e, assim, ao juiz cabe deliberar se a audiência
ou certos atos deverão praticar-se a portas fechadas”.
384-385 Já no processo penal, contudo, a hipótese contemplada é apenas a de exigência do
interesse público, válida para as hipóteses em que, repita-se, “da publicidade da
audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave
ou perigo de perturbação da ordem” (CPP, art. 792, § 1º).
Nesse caso, o juiz criminal poderá apenas restringir a publicidade da audiência
processual penal, “limitando o número de pessoas que possam estar presentes”. Não
poderá impor um segredo absoluto, consubstanciado na participação apenas das pessoas
envolvidas no caso. Deverá permitir a assistência de pessoas estranhas ao caso, na
382 Cf. MIRANDA, Pontes de. Comentários…, p. 64: “O segredo de justiça pode ser ordenado sempre
que (...) possa envolver revelação prejudicial à sociedade, ao Estado, a terceiro”.
383
Cf. as hipóteses de determinação de segredo de justiça em MIRANDA, Pontes de. Comentários…,
p. 64: “O segredo de justiça pode ser ordenado sempre que se trate de matéria que humilhe, rebaixe, vexe
ou ponha a parte em situação de embaraço que dificulte o prosseguimento do ato, a consecução da
finalidade, do processo”.
384
SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários…, p. 396.
385 Cf. lição no mesmo sentido – reforçando o argumento a respeito da diversidade ontológica das
hipóteses – em ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários…, p. 24: “Apenas quanto ao primeiro, terão
os juízes alguma discrição no determinar o segredo; quanto ao segundo, é a própria lei que o faz, sem
margem de discrição”.
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estrita medida das condições materiais da sala de audiência.
Quid iuris no caso de, no processo penal, ocorrerem discussões que possam
humilhar, vexar, rebaixar ou embaraçar as partes? Estará o juiz criminal obrigado a
franquear acesso à audiência a pessoas desvinculadas dos fatos em discussão, desde
que o local da audiência o permita? Com que base imporá um segredo de justiça e
demais disso, absoluto?
Esclareça-se, em primeiro lugar, que a questão somente se põe no caso de ação
penal de titularidade privada. No processo iniciado por denúncia o interesse público está
por demais presente para autorizar um segredo absoluto: permite, no máximo, uma
limitação da publicidade.
Nesse caso, até porque o art. 1º, inciso III, da Constituição dispõe ser a dignidade da
pessoa humana um dos fundamentos da República, há que ser adotada a lição de
MOACYR AMARAL SANTOS, 386 para entender que, em processo iniciado por queixa, será
possível que o juiz, em sendo vexatória ou humilhante a matéria discutida, imponha um
segredo absoluto na audiência processual penal.
2. oralidade
Estabelecida a publicidade da atividade instrutória da audiência processual penal,
impõe-se precisar-lhe a forma como se desenvolverá. A respeito dispõe o art. 204 do CPP
que “o depoimento será prestado oralmente, não sendo permitido à testemunha trazê-lo
por escrito”. Mas o seu parágrafo único ressalva que não lhe será vedada “breve consulta
a apontamentos”.
Trata-se de regra que deixa claro que a audiência desenvolver-se-á oralmente, sendo
vedado às partes e mesmo ao juiz a consagração da forma escrita. Nisso consiste o
princípio da oralidade. A consulta a apontamentos, sendo breve, não viola a oralidade.
Há exceção à regra, estabelecida em favor de algumas das pessoas egrégias, a
saber: o Presidente e o Vice-Presidente da República, os presidentes do Senado Federal,
da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal. Essas pessoas, conforme o §
1º do art. 221 do CPP, poderão, se o preferirem, apresentar seus depoimentos por
escrito.
É possível definir o princípio da oralidade como sendo o que não somente impõe a
forma oral para a prática da maioria dos atos processuais, como também o que a impõe
386 Cf. SANTOS, Moacyr Amaral. Comentários…, p. 396.
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para a prática dos principais atos processuais de um dado processo.
Especificamente com relação à audiência processual penal, é o princípio que impõe a
oralidade para as principais atividades da audiência processual penal: administrativa,
instrutória, crítica e decisória.
Com efeito, a oralidade, aplicada à atividade instrutória, determina que os atos
processuais de aquisição de prova sejam praticados através da palavra falada, em
momento processual específico.
3. imediação
Exceto no caso da sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri,
a atividade instrutória na audiência processual penal é marcada por relativa imediação.
Reza o princípio da imediação que, quando em atividade instrutória, o órgão julgador
terá contato imediato com a respectiva produção dessa prova. Em síntese, não haverá
intermediários entre o juiz e as provas.
Segundo GIUSEPPE CHIOVENDA, o princípio da imediação quer “que o juiz, a quem
caiba proferir a sentença, haja assistido ao desenvolvimento das provas, das quais tenha
de extrair seu convencimento, ou seja, que haja estabelecido contato direto com as
partes, com as testemunhas, com os peritos e com os objetos do processo, de modo que
possa apreciar as declarações de tais pessoas e as condições do lugar, e outras,
baseado na impressão imediata, que delas teve, e não em informações de outros”.
387-388 O princípio da imediação é complementar ao princípio da oralidade e, em menor grau
de intensidade, ao princípio da concentração. 389
Não se conceberia porque, diante de um momento processual durante o qual os atos
se praticam oralmente e a eles se segue uma decisão, as provas tivessem de ser
intermediadas para o conhecimento pelo órgão julgador.
É o que leciona LUIZ GUILHERME MARINONI: “O procedimento oral está umbilicalmente
ligado ao princípio da imediatidade, mesmo porque a oralidade pressupõe contato direto
387
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil, trad. de J. Guimarães Menegale,
São Paulo: Saraiva, 1945, v. 3, n. 309, apud CARNEIRO, Athos Gusmão. Audiência…, p. 24.
388
Cf. em idêntico sentido, SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso…, p. 53. Segundo esse autor, o
princípio da imediação “exige que o juiz que deverá julgar a causa haja assistido a produção das provas, em
contato pessoal com as testemunhas, com os peritos e com as próprias partes, a quem deve ouvir, para
recepção de depoimento formal e para simples esclarecimentos sobre pontos relevantes de suas
divergências”.
389
Cf., sobre o princípio da imediação, com mais detalhes, MOREIRA, José Carlos Barbosa.
“Problemas de la inmediacion en el proceso civil”, em RePro, n. 34 (abr-jun/1984), p. 191-196.
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entre dois ou mais interlocutores. O princípio da imediatidade supõe, portanto, o juiz em
contato pessoal com a produção de provas, ou seja, com os peritos, testemunhas e
partes. Este contato permite uma melhor apreensão dos fatos, contribuindo, de forma
decisiva, para a melhoria da qualidade da tarefa jurisdicional”. 390
É também instrumental desse princípio o da concentração, dado que, conforme
registra OVÍDIO A. BAPTISTA DA SILVA, 391 a falta de proximidade temporal entre os atos de
um ou mais momentos processuais invalida as vantagens eventualmente advindas da
oralidade e da imediação. 392
Sem dúvida, há sempre imediação completa entre o juiz e as provas orais produzidas
em audiência. Suas perguntas dirige-as sem intermediários às testemunhas,
invariavelmente.
Quanto às partes técnicas, arrefece a imediação, nela tomando lugar o sistema
presidencial, adotado como regra geral do procedimento comum. É o que determina o art.
212, primeira parte, do CPP: “As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as
formulará à testemunha”.
É o que explica a própria Exposição de Motivos do mesmo estatuto, em seu item X: “O
sistema de inquirição das testemunhas é o chamado presidencial, isto é, ao juiz que
preside à formação da culpa cabe privativamente fazer perguntas diretas à testemunha.
As perguntas das partes serão feitas por intermédio do juiz, a cuja censura ficarão
sujeitas”.
Rigorosamente, a questão não se resume, como quer a Exposição de Motivos, a um
mero sistema de inquirição, concedido de maneira politicamente neutra ao juiz ou às
partes. Trata-se, aqui, talvez, da mais marcante característica inquisitória do processo
penal brasileiro.
De fato, o conceder-se efetiva imediação apenas entre juiz e testemunha, é
estabelecer que somente o juiz está efetivamente autorizado a administrar, a gerir a prova
testemunhal. A gerência da prova, mais do que a existência ou não de partes em sentido
formal, é, com efeito, a característica central do sistema inquisitório, conforme afirmação
precisa de JACINTO N. DE MIRANDA COUTINHO: “a característica fundamental do sistema
inquisitório, em verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao
390
MARINONI, Luiz Guilherme. Novas…, p. 67.
391
SILVA, Ovídio Araújo Baptista da. Curso…, p. 53-54.
392
Cf., também, ARAÚJO, Justino Magno. “Os poderes do juiz no processo civil brasileiro (visão
crítica)”, em RePro, n. 32 (out-dez/1983), p. 100-102.
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magistrado”. 393
A importância da distinção é claramente vista em FRANCO CORDERO, quando descreve
o ora revogado sistema processual penal italiano, em muito semelhante ao brasileiro
vigente, no que toca à administração da prova testemunhal: “Trabalham monologando juiz
ou ministério público inquiridor. (...) Trabalho solitário: o instrutor elabora hipótese e a
cultiva, procurando provas; quando as encontra, adquire-as. O sistema exclui os diálogos:
partes privadas e defensores ignoram os atos mais importantes (o testemunho) em outros
momentos ativos, são aqui espectadores”. 394
Ainda com relação à imediação, coloca-se a questão da cisão horizontal da
competência jurisdicional, em que se reparte horizontalmente, isto é, entre juízes de igual
hierarquia e durante o mesmo grau de jurisdição, tarefas qualitativamente diferentes
dentro do processo. Exemplo magno desse tipo de cisão, no processo penal brasileiro, é
a ocorrente entre juiz togado e jurados no procedimento especial do júri. 395
Nesse caso, quando não há produção de provas durante a sessão de instrução e
julgamento pelo Tribunal do Júri, mas somente o interrogatório do acusado, os jurados
não tem imediato contato com as provas a serem produzidas.
Atenua, mas não resolve o problema, o fato de o § 1º do art. 451 do CPP estabelecer
que somente por exceção (crimes afiançáveis e ausência injustificada) a sessão de
instrução e julgamento do tribunal do júri se realiza sem a presença do réu, que deve ser
interrogado na presença dos jurados.
Há, aqui, aliás, um difícil balanceamento entre o interesse estatal de punição de
autores de crimes e o princípio do contraditório e da imediação, ambos conectados, neste
particular aspecto, ao princípio da ampla defesa. O fato do julgamento, nos casos mais
graves, não se poder realizar sem a presença do réu, se de um lado favorece o
contraditório e a defesa e possibilita um contato pessoal, ou ao menos visual, entre os
jurados e o réu, de outro acaba por conduzir, muita vez, à extinção da punibilidade dos
réus pela prescrição.
RENÉ A. DOTTI, na apresentação das razões de seu esboço de anteprojeto de reforma
393
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “O papel do novo juiz no processo penal”, em Crítica…, p.
3-56.
394
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 566-567. Trecho original: “Lavorano monologando giudice o
publico ministero inquirenti. (...) Lavoro solitario: l’istruttore elabora ipotesi e le coltiva, cercando prove;
quando ne scovi, le acquisisce. Il sistema esclude i dialoghi: parti private e difensori ignorano gli atti più
importanti (le testemonianze); altrove ammessi, fungono da spettatori”.
395
Cf. MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 253.
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parcial do procedimento do júri, 396 defendeu um coerente ponto de vista, mas que precisa
ser eficazmente articulado com os princípios do contraditório, ampla defesa e imediação.
Em seu arrazoado, o ilustre penalista paranaense sustenta que a razão de ser do
dispositivo que impõe a presença do réu para a realização da sessão de instrução e
julgamento do procedimento especial do júri ligava-se, dentro de um sistema coerente, à
prisão preventiva obrigatória, então um dos efeitos da decisão de pronúncia.
Preso, o agente do crime podia ser submetido ao julgamento. Vai daí que a
postergação ficava dependente apenas da eficiência do aparelhamento policial em
localizar e capturar o réu pronunciado para julgamento pelo Tribunal do Júri. Superada a
idéia de prisão preventiva obrigatória, pela da estrita necessidade de semelhante
medida, 397 superada também deveria estar a da obrigatoriedade da presença do réu na
sessão de instrução e julgamento. Por essa razão, RENÉ A. DOTTI propõe, em seu esboço,
que a sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri possa ser
realizada sem a presença do acusado.
Esse ponto de vista e sua conclusão, irretocáveis sob o aspecto formal, precisam,
entretanto, ser melhor articulados com os referidos princípios, sob pena de os jurados
virem a ser obrigados a julgar seus semelhantes sem jamais terem tido a oportunidade de
sequer um contato visual com esses acusados.
Essa melhor articulação bem pode vir do trabalho jurisprudencial, com a retomada da
idéia da prisão, já não mais obrigatória, porém verdadeiramente cautelar e fundada na
conveniência mesma dessa medida para a instrução criminal, que se deve conduzir, na
sessão de instrução e julgamento pelo Tribunal do Júri, respeitando-se o princípio da
imediação, ampla defesa e contraditório. E pode vir também de uma regra legal que
coloque a hipótese como ensejadora da prisão cautelar, sempre e sempre fundada em
critérios de necessidade.
4. contraditório
Novamente ressalvado o caso da sessão de instrução e julgamento do procedimento
especial do júri, o contraditório da atividade instrutória na audiência processual penal é
somente parcialmente atendido.
Isso porque essa atividade é, senão monopolizada, ao menos protagonizada pelo juiz.
396
Cf. DOU, seç. I, (30.jun.1993), p. 8.795-8.809.
397
Cf. BAPTISTA, Weber Martins. Liberdade…, p. 117-119 e JARDIM, Afrânio Silva. “Visão sistemática
da prisão provisória no Código de Processo Penal”, em Direito…, p. 353-388.
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Formalmente, ela é apenas protagonizada pelo juiz. A utilização de artifícios, mais do
que ocorrente na prática, torna essa atividade verdadeiramente hegemônica.
A fim de tornar-se efetivamente “campeão do sistema”, para usar uma expressão de
FRANCO CORDERO, 398 bastará que o juiz comece a inquirição da testemunha ou pela
indagação ou – o que é mais grave – pela leitura mesma do depoimento prestado por ela
na fase investigatória. Senão por necessidade real, até por necessidade psicológica, esse
depoimento acabará sendo confirmado pela testemunha, obviando a plena atuação do
contraditório: afinal, as partes técnicas não tiveram pleno acesso à fase de investigação.
c) ritualismo
1. no inquérito policial
A atividade instrutória da autoridade policial, no procedimento investigatório do
inquérito policial guarda todas as características do sistema inquisitório.
Dispõem o art. 6º, incisos III, IV e VI, do CPP que, “logo que tiver conhecimento da
prática da infração penal, a autoridade policial deverá: (...) III - colher todas as provas que
servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias; IV - ouvir o ofendido; (...) VI
- proceder a reconhecimento de pessoas e coisas e a acareações (...)”.
A primeira característica, pressuposta à produção mesma da prova testemunhal, é a
do segredo que cerca a instrução realizada no inquérito policial, conforme dispõe o art.
20, caput, do CPP.
A segunda característica, conforme se percebe do estudo do dispositivo acima, é a da
absoluta inexistência de procedimento no inquérito policial. Como o que vale é o êxito das
investigações, a autoridade policial produz a prova testemunhal de acordo com o que o
seu instinto determinar.
A atividade instrutória no inquérito policial também é marcada pela oralidade,
presidencialidade e imediação. A concentração, presente na lavratura do auto de prisão
em flagrante, dependerá da vontade da autoridade policial.
O contraditório, por mais que parte da doutrina processual penal se esforce por provar
o contrário, 399 não está presente no inquérito policial.
398
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21.
399
Cf., por todos, TUCCI, Rogério Lauria. “Devido processo penal e alguns de seus mais importantes
corolários”, em TUCCI, Rogério Lauria e TUCCI, José Rogério Cruz e. Devido processo…, p. 25-29.
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2. nos procedimentos comuns
No procedimento ordinário pleno, uma vez terminada a fase postulatória, dentro da
qual se situa o interrogatório do acusado, realiza-se a audiência para oitiva das
testemunhas arroladas pelas partes técnicas, 400 segundo dispõe o art. 396 do CPP.
Perceba-se inexistir regra expressa que determine a realização de duas audiências,
uma para inquirir as testemunhas arroladas na denúncia e outra para inquirir as
testemunhas arroladas nas alegações escritas previstas pelo art. 395 do CPP.
Contudo, a praxe do foro criminal é no sentido dessa instrução não se realizar em
uma única audiência. O mais comum é os juízes assinarem ao menos duas audiências,
cada uma específica para a oitiva de um grupo de testemunhas. Cabe dizer: duas
audiências no mínimo, dependendo do número de testemunhas arroladas.
A explicação para essa desaconselhável prática talvez esteja no art. 401 do CPP, que
dispõe que “as testemunhas de acusação serão ouvidas dentro do prazo de 20 (vinte)
dias, quando o réu estiver preso, e de 40 (quarenta) dias, quando solto”.
Esse dispositivo, que rigorosamente muito pouco tem de relação com o tema, passa a
impressão de que recomenda a realização de audiências separadas e não de uma só.
EDUARDO ESPÍNOLA FILHO 401 , conforme ver-se-á adiante, explicita o tema, que se
resume à ordem de inquirição do ofendido e das testemunhas arroladas pelas partes, em
uma única audiência, sendo possível.
JOSÉ FREDERICO MARQUES descreve: “depois do interrogatório, vem a inquirição de
testemunhas, que se inicia com as de acusação, sucedendo-se, em seguida, os
400
Cf. interessante posicionamento de CERNICHIARO, a respeito da limitação legal da atividade
instrutória das partes técnicas em CERNICHIARO, Luiz Vicente e COSTA JÚNIOR, Paulo José. Direito…, p.
89: “As cautelas próprias do processo penal têm por finalidade só impor responsabilidade (...) a quem haja
realizado a conduta delituosa. E mais. Só depois de esgotadas as etapas do processo. Até o julgamento
transitar em julgado, encerrada, pois, a possibilidade de recurso. Em nenhum momento, ainda, o réu será
privado de defesa técnica. (...) Não há, pois, presunção de fatos, limitação de provas, hierarquia de provas.
Tudo o que for útil a demonstrar fato ou circunstância relevantes para a decisão é permitido à acusação e à
defesa. (...) Evidente a inconstitucionalidade dos arts. 298, 417, § 2º, 421, parágrafo único, 532 e 533, do
Código de Processo Penal, que limitam o número de testemunhas na instrução criminal (...). O contraste
com a Lei Maior, atritando o princípio da defesa plena, explica-se facilmente. A acusação e a defesa
poderão necessitar de número maior de testemunhas para demonstrar as respectivas afirmações. O texto
legal impede atuarem com a desenvoltura necessária à revelação da verdade real. (...) ao juiz, como
presidente do processo, é lícito coibir o abuso do exercício do direito de realizar a prova. No caso de rol
numeroso, elaborado com intuito meramente procrastinatório, cabe o indeferimento. Não se justifica alongar
a instrução com depoimentos repetitivos que nada acrescentam ao que já foi recolhido”. É de se observar
que esse mesmo argumento fundamenta a possibilidade de ampliar o tempo da atividade crítica das partes
técnicas em qualquer procedimento penal, desde que isso seja garantido a ambas as partes técnicas.
401
Cf. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 783, p. 208.
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depoimentos das testemunhas de defesa”. 402
A conclusão de que a oitiva das testemunhas arroladas na denúncia ou queixa e nas
alegações escritas do art. 395 do CPP deve ser feita, se for possível, numa audiência só,
atende ao princípio da concentração.
Diferentemente do que ocorre no procedimento ordinário pleno, a oitiva das
testemunhas no procedimento sumário em sentido estrito dá-se, obrigatoriamente, em
audiências diversas, com violação do princípio da concentração.
É o que dispõem o art. 539, caput, e o § 2º do art. 538 do CPP.
Vê-se que a audiência de instrução e julgamento do procedimento sumário em sentido
estrito destina-se à oitiva das testemunhas arroladas pela defesa, aos debates orais e à
eventual publicação da sentença. De acordo com JOSÉ FREDERICO MARQUES, na referida
audiência se verifica um procedimento quase-concentrado. 403
De tal sorte que o procedimento sumário em sentido estrito vê inquirição de
testemunhas em dois tipos de audiência. A das testemunhas arroladas na denúncia ou na
queixa se desenvolve numa audiência exclusivamente convocada para tal fim. A das
testemunhas arroladas na oportunidade do art. 395 do CPP se desenrola durante uma
audiência de instrução parcial e julgamento.
Trata-se de dicotomia inútil e mais: prejudicial à instrução da causa. Isso porque
prejudica o andamento do processo, prevendo uma fase instrutória, em seu início
descontínua e, ao seu final, apenas quase-concentrada, prejudicando também a
instrução, que poderia ser panorâmica, ouvindo-se todas as testemunhas no mesmo
momento processual.
A razão estrutural dessa dicotomia revela-se intencionalmente boa, mas apenas isso.
Quis a norma estabelecer, para realização antes da própria audiência de instrução e
julgamento, um despacho saneador, conforme se dessume da combinação dos arts. 539,
caput, e 538, caput, do CPP.
Trata-se, porém, de um “arremedo de saneador”, conforme critica, com razão,
FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO. 404 É que, nessa fase processual em que o juiz
poderá sanar as nulidades e complementá-las, negou-lhe a norma o julgamento conforme
o estado do processo, que poderia solucionar desde logo o caso de ocorrer alguma
402 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 270 [sem grifo no original].
403
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 117.
404
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 4, p. 162.
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nulidade insanável.
Especificamente com relação à audiência de instrução parcial e julgamento do
procedimento sumário em sentido estrito, a inexistência de regra que obrigue o juiz a,
encerrados a instrução e os debates, prolatar a sentença, atenua em muito o efeito
benéfico que a oitiva das testemunhas em audiência de instrução e julgamento teria na
construção da decisão do mérito do caso.
A rigor, não se diferenciam muito as audiências de testemunhas de acusação nos
procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido estrito. Afora a diferença evidente do
número de testemunhas que podem ser ouvidas, que naquele procedimento é de oito e
neste de cinco para cada um dos lados, outras diferenças de relevo não há.
A ordem de oitiva das testemunhas arroladas nas alegações preliminares, deve ser
decidida pelo juiz, atendendo principalmente às ponderações da defesa, pois essa ordem
pode estar ligada à própria estratégia do ou dos defensores.
Instalada a audiência, o juiz, havendo um ofendido, ouve-o por primeiro, inquire
depois as testemunhas arroladas na denúncia ou na queixa e, por fim, ouve as
testemunhas arroladas na oportunidade do art. 395 do CPP. Tal conclusão decorre da
combinação dos arts. 201, caput, e 396, caput, do CPP.
Além da mera combinação de normas, esse entendimento decorre do bom senso e da
lógica. O ofendido deve ser ouvido antes porque de sua boca sairá, provavelmente, a tese
da acusação. À oitiva dele seguem as das testemunhas.
Para EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, pois, “a ordem das inquirições é a seguinte: Em
primeiro lugar, o ou os ofendidos, cuja inquirição, se possível, é obrigatória, embora
nenhuma das partes o tenha arrolado; (...). Depois, serão inquiridas as testemunhas de
acusação, que podem ser ouvidas logo em seguida ao ofendido, no mesmo dia, sem
razão de estabelecer ordem entre as que prestam o compromisso e as a ele não sujeitas.
(...) Encerrada essa inquirição, com a efetiva tomada dos depoimentos, ou a desistência,
pela parte acusatória, que as arrolou (...), passa o juiz a proceder à audição das
testemunhas de defesa, devidamente notificadas, ou conduzidas a juízo (...) não havendo
conveniência alguma em estabelecer ordem para ouvir as sujeitas ao compromisso e as
que dele são isentas”. 405
Conforme EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, o ofendido há de ser inquirido em primeiro lugar,
mesmo que não arrolado pelas partes e, segundo dispõe o parágrafo único do art. 201 do
405 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 783, p. 208 e 224.
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CPP, sujeito à condução coercitiva à presença do juiz caso desobedeça à intimação sem
ter motivo justo. Esse dispositivo, porém, de tão draconiano, pressupõe que a oitiva do
ofendido seja necessária à instrução do caso. Não será razoável, posto que jurídico, que
o juiz notifique desnecessariamente o ofendido, que provavelmente nada saberá dos fatos
e, diante de sua ausência injustificada, determine-lhe a condução coercitiva. Com uma
notificação desnecessária, o juiz apenas somará ao trauma do crime, que o ofendido
talvez já tenha assimilado, o trauma da condução sob vara.
Quanto à seqüência de oitiva das testemunhas, havendo mais de um acusado,
EDUARDO ESPÍNOLA FILHO faz interessante ponderação que, entretanto, não consta da lei e
vale como conselho: “Quando mais de um os réus, tendo todos ou vários arrolado
testemunhas, achamos aconselhável fazer intercalada a inquirição das de uns e das dos
outros, para que o, cujas testemunhas se ouçam por último, não tire vantagem, podendoas
instruir a respectiva defesa, à vista de quanto foi dito pelas do ou dos outros
acusados”. 406
Quanto à ordem de oitiva na audiência de instrução e julgamento, havendo
testemunhas outras, que não de defesa – notificadas de ofício pelo juiz, por exemplo – a
doutrina não é conclusiva. JOSÉ FREDERICO MARQUES 407 entende que nesse caso as
testemunhas notificadas pelo juiz devem ser ouvidas antes das de defesa e EDUARDO
ESPÍNOLA FILHO 408 sustenta justamente o contrário.
O art. 210, primeira parte, do CPP, determina que a oitiva das testemunhas se faça
individualmente, “de modo que umas não saibam nem ouçam os depoimentos das
outras”.
Após prestado o compromisso legal, quando for ele deferível – é a dicção do art. 208
do CPP – será iniciado o depoimento propriamente dito, no caso, também por perguntas
formulares.
É o que dispõe a continuação do art. 203 do CPP, sobre a seqüência a ser seguida no
depoimento da testemunha: “devendo declarar seu nome, sua idade, seu estado e sua
residência, sua profissão, lugar onde exerce sua atividade, se é parente, e em que grau,
de alguma das partes, ou quais suas relações com qualquer delas, e relatar o que
souber”.
406
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 783, p. 224.
407
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 117.
408
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 5, n. 1.058, p. 328.
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Percebe-se que o art. 203 do CPP não estabelece, após as perguntas formulares –
sobre nome, idade, estado civil, residência, profissão e domicílio da testemunha,
existência de parentesco ou relações entre ela e as partes – uma seqüência de perguntas
a ser seguida pelo juiz.
Trata-se, segundo HÉLIO TORNAGHI, do método misto de autoria de Otto Lipmann, que
foi diretor do Instituto de Psicologia Aplicada de Berlim: “o depoente começa relatando o
que souber, explicando sempre as razões de sua ciência e as circunstâncias pelas quais
possa avaliar-se de sua credibilidade (art. 203). Depois então é que o juiz e as partes
perguntam a respeito daquilo que ainda não houver sido dito”. 409
Examine-se com mais vagar essa relevante particularidade para a inquirição da
testemunha. Trata-se da parte final do art. 203 do CPP, que determina que a testemunha,
à medida em que depõe, deverá ir explicando sempre “as razões de sua ciência ou as
circunstâncias pela quais possa avaliar-se de sua credibilidade”.
Essa regra, na verdade, não se dirige à testemunha, como à primeira vista poderia
parecer. Dirige-se, na verdade, ao inquiridor, que nos procedimentos comuns é o próprio
administrador da audiência. É ele quem deve tomar a iniciativa de fazer com que a
testemunha sempre forneça dados para que se possa dar crédito à sua versão.
Portanto, pode-se inferir daí uma regra procedimental da maior importância: para que
o depoimento tenha utilidade para a comprovação do fato, o juiz deve, a cada declaração
da testemunha, indagar-lhe das suas fontes.
A redação do depoimento da testemunha também será elaborada pelo juiz. A norma
que o orienta é a do art. 215 do CPP: “Na redação do depoimento, o juiz deverá cingir-se,
tanto quanto possível, às expressões usadas pelas testemunhas, reproduzindo fielmente
as suas frases”.
A redação do depoimento da testemunha, tanto quanto de todos os demais termos do
processo penal de conhecimento, frente às conquistas tecnológicas, apresenta-se a mais
atrasada possível. Isso acentua dificuldades inerentes ao exercício de atividade crítica e
decisória sobre o material probatório produzido, conforme percebeu com agudeza JOSÉ
CARLOS BARBOSA MOREIRA, ao considerar “muito grave é o problema do registro das
declarações. Se compreende com facilidade que os inconvenientes da falta de imediação
podem atenuar-se, em boa medida, se se logra reproduzir com toda exatidão, em seu
conteúdo e em sua forma, o que disse a parte ou a testemunha. (...) [No Brasil] poucos
409 TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 502.
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órgãos judiciais fazem uso da taquigrafia ou da estenografia; e as atas datilografadas,
obviamente, não soem reproduzir exatamente, nem muito menos, as palavras da parte ou
da testemunha. Claro está que nada se conserva do tom, do acento, das inflexões, das
pausas mais breves ou mais largas, das pequenas hesitações, do súbito tartamudear, do
rubor ou da palidez, quer dizer, que lhes dá (ou lhes quita) às declarações um significado
peculiar. Em plena era da tecnologia não pode, evidentemente, perpetuar-se tal situação.
Há que incorporar à rotina judicial o emprego dos instrumentos criados pelo fenomenal
progresso tecnológico do nosso tempo. Somente assim se poderão resolver de modo
satisfatório alguns dos mais sérios problemas direta ou indiretamente relacionados com a
imediação no processo”. 410
Segue-se ao depoimento a autenticação. Se a parte não souber assinar, o art. 216, in
fine, do CPP, impõe a assinatura a rogo, após prévia leitura.
3. no procedimento especial do júri
Da ou das audiências de inquirição do ofendido e das testemunhas, ocorridas na
primeira fase do procedimento, nenhuma nuance, relativamente às audiências
equivalentes do procedimento ordinário pleno pode ser extraída.
O mesmo não se pode dizer das inquirições de ofendido e testemunhas realizadas na
fase do iudicium causae, que apresentam particularidades das mais relevantes.
A primeira delas prende-se à característica acusatória dessa sessão, que determina
uma atividade instrutória completamente diferenciada.
No caso da oitiva do ofendido e das testemunhas, a diferença torna-se mais profunda.
É que, na sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri, não vige o
denominado sistema presidencial.
É o que dispõem os arts. 467 (“Terminado o relatório, o juiz, o acusador, o assistente
410 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Problemas de la inmediacion en el proceso civil”, em RePro, n. 34
(abr-jun/1984), p. 196. Trecho original: “muy grave el problema del registro de las declaraciones. Se
comprende con facilidad que los inconvenientes de la falta de inmediación pueden atenuarse, en buena
medida, si se logra reproducir con toda exactitud, en su contenido y en su forma, lo que ha dicho la parte o
el testigo. (...) [No Brasil] pocos órganos judiciales hacen uso de la taquigrafía o de la estenografía; y las
actas dactilografadas por supuesto no suelen reproducir exactamente, ni mucho menos, las palavras de la
parte o del testigo. Claro es que nadie se conserva del tono, del acento, de las inflexiones, de las pausas
más breves o más largas, de las pequeñas hesitaciones, del súbito tartamudear, del sonroseo o de la
palidez, es decir, de quanto les da (o les quita) a las declaraciones un significado peculiar. En plena era de
la tecnología no puede, evidentemente, perpetuarse tal situación. Hay que incorporar a la rutina judicial el
empleo de los instrumentos creados por el fenomenal progreso tecnológico de nuestro tiempo. Solamente
así se podrán resolver de modo satisfactorio algunos de los más serios problemas directa o indirectamente
relacionados con la inmediación en el proceso”.
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e o advogado do réu e, por fim, os jurados que o quiserem, inquirirão sucessivamente as
testemunhas de acusação”) e 468 (“Ouvidas as testemunhas de acusação, o juiz, o
advogado do réu, o acusador particular, o promotor, o assistente e os jurados que o
quiserem, inquirirão sucessivamente as testemunhas de defesa”) do CPP.
A forma de inquirição, portanto, será a direta, 411 característica saliente do processo
acusatório. A respeito dessa forma não-presidencial de oitiva das testemunhas, escreve
EDUARDO ESPÍNOLA FILHO: “A inquirição das testemunhas, no plenário, apresenta uma
particularidade, tornando-a grandemente diversa da a que se procede no sumário de
culpa; pois, nesta fase, é o juiz que faz, sempre, a pergunta, transmitindo, ele próprio, o
que desejarem as partes saber do inquirido; no plenário do júri, se o juiz é quem, em
primeiro lugar, inquire a testemunha, seja de defesa, seja de acusação; a da acusação,
após perguntada pelo presidente, sê-lo-á, na seguinte ordem, pelo promotor, pelo
assistente, se houver habilitado, e pelo advogado incumbido da defesa de cada réu, ou,
se a causa se movimentar por queixa, pelo querelante, pelo promotor, que a tenha
aditado, e por cada um dos advogados de defesa; e a testemunha de defesa é inquirida
nesta ordem, depois de o ser pelo presidente: pelo advogado do réu, que a arrolou, pelo
do ou dos outros réus, pelo querelante (na ação promovida por queixa), pelo promotor (na
ação instaurada por denúncia e na iniciada por queixa, se a tiver aditado) e pelo
assistente deste. Demais, após responderem ao juiz presidente e às partes, as
testemunhas, tanto de acusação quanto de defesa, poderão ser inquiridas, diretamente,
por qualquer dos jurados, componentes do conselho de sentença, que o deseje fazer”. 412
Embora muita vez o ofendido já não exista nos crimes de competência do júri, está
claro que quando existir será inquirido, durante a sessão de instrução e julgamento, antes
das testemunhas, valendo a regra do art. 201 do CPP.
Essa forma de inquirição direta, não-presidencial, muito se aproxima, embora não se
confunda, com o sistema de exame cruzado da testemunha, vigente nos países que
adotam o sistema acusatório.
Segundo HÉLIO TORNAGHI, esse exame cruzado, que se contrapõe ao judicial, de
matriz medieval e característico do sistema inquisitivo,
é usado hoje em dia na Noruega, na Inglaterra, na América do Norte (cross examitation) e em algumas
legislações cantonais da Suíça. A Alemanha e a Áustria, conquanto usando a denominação (Kreuzverhör),
afastam-se da forma típica de praticá-lo.
411
Cf. PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri…, p. 131.
412
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 4, n. 904, p. 433.
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De acordo com essa maneira de produzir a prova testemunhal, cada uma das partes, à medida que vai
sustentando a acusação ou a defesa, vai indicando e interrogando testemunhas sobre cada ponto de
sua sustentação. Em seguida, passa a testemunha à parte contrária (daí o nome: exame cruzado; as
partes se cruzam na argüição das testemunhas) para que esta, por sua vez, interrogue sobre o mesmo
ponto.
Se qualquer das partes entende que uma pergunta é impertinente ou sugestiva, protesta contra ela.
O juiz, que nada pergunta, que assiste aos interrogatórios e aos depoimentos passivamente, só
intervém para aceitar ou repelir os protestos das partes. Se admite, a testemunha não precisa ou,
melhor, não deve responder à pergunta. Se rejeita, a testemunha está obrigada a responder. 413
Quanto às vantagens e desvantagens desse sistema, HÉLIO TORNAGHI é inconcluso,
ao afirmar que “o sistema tem as mesmas vantagens e os mesmos defeitos do
procedimento acusatório em que nasceu. Por um lado, a oralidade, o contacto direto, a
objetividade, vivificam o depoimento e a sustentação (acusação ou defesa) a que servem
de base. Por outro, entretanto, a possibilidade de coação psicológica sobre a testemunha,
a facilidade de colusão entre as partes, a inidoneidade para atingir a verdade histórica,
dada a disponibilidade da parte contrária à que está interrogando a testemunha, tudo isso
são defeitos que enfraquecem o método”. 414
Em todo o caso, o sistema de inquirição direta pelas partes da segunda fase do
procedimento especial do júri, não é exatamente igual ao exame cruzado do sistema
acusatório.
Com efeito, no exame cruzado do sistema acusatório, há uma prévia classificação da
idoneidade da testemunha aos jurados, feita pelo juiz, para que eles tenham condição de
melhor julgar o depoimento que diante deles se desenvolve. 415 Essa classificação prévia,
que taxa a testemunha em diversas categorias (hostil, amistosa etc.) 416 não tem
equivalente no processo penal brasileiro.
Por fim, o sistema não-presidencial do plenário do júri não permite, à semelhança do
sistema cruzado, que as partes argumentem enquanto inquirem a testemunha. Aliás,
413
TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 499.
414
TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 499-500.
415
Cf. RABASA, Oscar. El Derecho…, p. 118.
416
Cf. em passagem já citada, SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 118: “Na ‘cross
examination’ a testemunha se presume ‘hostil’ à parte que a interroga, e dessa maneira esta poderá
convidá-la a uma narração continuada, seja porque não existe suspeita de colusão entre interrogante e
interrogado, seja porque o constranger a testemunha a repetir o quanto haja declarado na ‘direct
examination’ pode servir para ‘controlar a solidez das suas recordações’”. Trecho original: “Nella ‘cross
examination’, il testimoni si presume ‘ostile’ alla parte che lo interroga, e quindi questa può invitarlo ad una
narrazione continuata sia perchè non esiste sospetto di colusione tra interrogante ed interrogato, sia perchè
il costringere il testimoni a ripetere di seguito quanto ha poco prima dichiarato nella ‘direct examination’ può
servire a ‘controlare la solidità dei suoi ricordi’”.
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qualquer afirmação das partes que configure razões deverá ser coibida pelo juiz-
presidente da sessão.
Embora a inquirição da testemunha seja direta, ao juiz-presidente da sessão caberá a
redação resumida do depoimento, bem como sua redução a termo (CPP, art. 469).
Desnecessário adicionar que, nessa hipótese, como em outras semelhantes, “o juiz
deverá cingir-se tanto quanto possível, às expressões usadas pelas testemunhas,
reproduzindo fielmente suas expressões” (CPP, art. 215).
§ 3º Fundamento político
a) a questão do fundamento político da prova testemunhal
A prova testemunhal, principal atividade instrutória desenvolvida em audiência, é hoje
a base da instrução no processo penal brasileiro. 417
Sua importância e a riqueza dos aspectos jurídicos que suscita têm levado a doutrina
processual penal a questionar-se acerca do fundamento político da prova testemunhal.
Duas vertentes podem ser destacadas.
NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA é expressão da primeira delas. O autor italiano, ao
analisar o fundamento político da prova testemunhal, busca-o na experiência humana
relativa à verdade dos semelhantes: “o fundamento da atestação de pessoa em geral e do
testemunho em particular, é a presunção que consiste em dizer que os homens percebem
e relatam a verdade, presunção esta que, por sua vez, se funda na experiência geral da
humanidade, que demonstra que, na realidade, as mais das vezes, o homem é
verdadeiro. E o é por várias razões, tanto pela tendência natural da mente, que na
verdade, mais do que na mentira, encontra a satisfação de uma necessidade ingênita,
como por uma tendência natural da vontade, à qual a verdade parece um bem, ao mesmo
tempo que toma a mentira como um mal; e, enfim, porque essas tendências naturais da
inteligência e da vontade estão robustecidas no homem social, não só pelo desprezo que
sente a sociedade pelo embusteiro, senão também pelas penas religiosas e civis que
vigem ameaçadoramente sobre sua cabeça”. 418
417
LEONE, Giovanni. Trattato…, p. 238.
418
MALATESTA, Framarino dei. Lógica…, v. 2, p. 15-16. Trecho original: “el fundamento de la
atestación de persona em general y del testimonio en particular, es la presunción que consiste en decir que
los hombres preciben y relatan la verdad, presunción que a su vez se funda en la experiencia general de la
humanidad, que demuenstra que en realidad, las más veces, el hombre es verídico. Y lo es por varias
razones, tanto por una tendencia natural de la mente, que en la verdad, más facilmente que en la mentira,
encuentra la satisfacción de una necesidad ingénita, como por una tendencia natural de la voluntad, a la
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A outra vertente é expressada no magistério de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO.
Esse autor, impressionado pela imprescindibilidade da prova testemunhal, chega ao ponto
de fazer residir na necessidade absoluta de se contar com ela o seu fundamento
político. 419
Resumindo, portanto, duas são as vertentes na análise dos fundamentos políticos da
prova testemunhal. A primeira busca-o na veracidade inerente ao ser humano médio; a
segunda, na absoluta imprescindibilidade de se contar com depoimentos humanos para a
comprovação de crimes.
A primeira vertente encontra em VINCENZO MANZINI, que tem uma concepção
pessimista acerca da verdade que pode emanar da produção da prova testemunhal, um
franco opositor: “não é, de fato, verdadeiro que, como sói ser ensinado, o fundamento do
valor probatório concedido ao testemunho seja a presunção de veracidade dos homens.
Uma semelhante presunção seria contrária à realidade de que o homem é instintivamente
mentiroso, não só quando tenha interesse direto a sê-lo, mas também quando supõe que
a verdade possa favorecer ou prejudicar outrem”. 420-421 De certa maneira também é opositor dessa concepção FRANCO CORDERO que, ao seu
turno, posto que não adote uma posição claramente pessimista em relação à testemunha,
antepõe dúvidas graves ao pressuposto legal de objetividade, questão que, simples sob o
prisma jurídico, é altamente complexa sob o aspecto psicológico: “a objetividade do
testemunho, postulada pelas normas, parece ilusória a quem considera o interior
neuropsíquico: desde logo, o aparato sensorial seleciona os possíveis estímulos;
codificados segundos os modelos relativos ao indivíduo, as impressões compõem uma
experiência perceptiva na qual os fantasmas variam tanto quanto o processo mnemônico,
muito mais se a reminiscência não for espontânea mas solicitada, como ocorre com o
testemunho; enfim, convertido em palavras o manipuladíssimo produto mental, emerge
cual la verdad parece un bien, en tanto que toma la mentira como un mal; y en fin, porque esas tendencias
naturales de la inteligencia y de la voluntad están robustecidas en el hombre social, no solo por el desprecio
que siente la sociedad hacia el embustero, sino también por las penas religiosas y civiles que se ciernen
amenazantes sobre su cabeza”.
419
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 3, p. 297.
420
MANZINI, Vincenzo. Trattato…, p. 215. Trecho original: “Non è affatto vero che, come si suole
insegnare, fondamento del valore probatorio assegneto alla testimonianza sia la presunzione di verificità
degli uomini. Una simile presunzione sarebbe contraria alla realtà perchè l’uomo è istintivamente mendace,
non solo allorché ha interesse diretto ad asserlo, ma altresì quando suppone che il dire la verità possa
giovare o nuocere ad altri”.
421
Cf., a respeito, PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 290.
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como enunciado ‘factual’”. 422
Com efeito, a questão da sinceridade ou objetividade da testemunha, seja como for
colocada, ou é puramente filosófica, ou é de tratamento científico altamente problemático.
Os homens podem tanto ser verazes como mentirosos, a depender de inúmeros e
incontáveis fatores, como as circunstâncias do depoimento, a personalidade da
testemunha, a gravidade do fato, os critérios subjetivos do julgamento que cada
testemunha realiza sobre o fato testemunhado, os sentimentos de gratidão, ódio, amor,
amizade e tantos outros. Tratam-se de fatores que poderão quebrar ou ativar, em
intensidade praticamente indeterminável, senão a sinceridade, ao menos a objetividade
da prova testemunhal. Impossível uma análise não-tópica desses fatores, a ponto de
eleger a veracidade como fundamento político desse meio de prova.
Por outro lado, resolver-se a questão do fundamento político da prova testemunhal
com base em sua imprescindibilidade configura verdadeira redundância. Está claro que a
prova testemunhal é necessária, mas nem por isso possui mérito político.
Esclareça-se que a colocação de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO é precisa,
posto que insuficiente; de fato, a prova testemunhal é, no Brasil, imprescindível. E o é por
diversas razões, muitas delas ligadas às condições sociais e econômicas do país.
Essas condições, induvidosamente péssimas, impõem o freqüente acirramento de
crises, que levam ao recrudescimento da criminalidade patrimonial. Além disso, o
desemprego, a piora das condições de vida da população, o enfavelamento, a exclusão
da população das decisões políticas, 423 fazem a criminalidade violenta, patrimonial ou
não, também aprofundar-se.
Outrossim, dado que a maior parte da população não possui suficiente grau de
instrução, as trocas de natureza econômica, mesmo quando operadas pela classe média,
422
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 575. Trecho original: “L’obiettività della testimonianza, postulata
dalle norme, appare illusoria a chi consideri l’interno neuropsichico: già l’apparato sensorio sceglie i possibili
stimoli; codificate secondo modelli relativi agli individui, le impressioni compongono un’esperienza percettiva
i cui fantasmi variano alquanto nel processo mnemonico, tanto più se la reminiscenza no fosse spontanea
ma sollecitata, come capità ai testimoni; infine, convertito in parole, il manipolatissimo prodotto mentale
emerge come enunciato ‘factual’”.
423
Cf. PELLEGRINO, Hélio. “Psicanálise da criminalidade brasileira: ricos e pobres”, em FSP,
(7.out.1984), cad. “Folhetim”, p. 6-7: “A criminalidade dos miseráveis, dos famintos, dos desesperados, dos
revoltados, exprime uma forma perversa de protesto social, que não conduz a nada e, sem dúvida, piora
tudo. O delinqüente, ao cometer o seu crime, não pretende nenhuma transformação da sociedade. Ao
contrário, busca identificar-se imaginariamente com o seu inimigo de classe, copiando-lhe caricatamente os
defeitos e deformidades. Quando um ladrão assalta um apartamento na Vieira Souto, não comete ato de
desapropriação socialista. Na verdade, ele quer ocupar o lugar do milionário, usurpando-lhe o status e os
privilégios”.
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usualmente se realizam prescindindo de documentação, o que impõe a prova testemunhal
como principal forma para sua comprovação ou utilização criminosa.
Por essas razões e por outras que não cabe aqui aprofundar, a prova testemunhal é,
no processo penal brasileiro, a base da atividade instrutória.
Contudo, a prova testemunhal é freqüentemente invocada e analisada pela atividade
crítica das partes técnicas e decisória do órgão jurisdicional na forma de declarações
extrajudiciais reduzidas a termo. Tratam-se de depoimentos colhidos em segredo, durante
o inquérito policial ou mesmo fora dele, sem a possibilidade de exame pela parte técnica
contrária. Tecnicamente falando, configuram prova testemunhal; contudo, o fato de não
ocorrer a necessária imediação das testemunhas com o órgão julgador, violando, de uma
só vez, os princípios do contraditório e ampla defesa, anula os porventura existentes
fundamentos políticos.
Trata-se de alguma coisa muito comum no processo penal brasileiro vigente, tratado
por uma boa parte da jurisprudência como verdadeira e própria prova testemunhal.
Nesse passo, atende ao fundamento político invocado por FERNANDO DA COSTA
TOURINHO FILHO é justificável porque necessária; decerto será também acreditada pelo
fundamento invocado por NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA.
Além disso, está claro que a prova testemunhal é, na grande maioria dos casos,
imprescindível; mas também é verdadeiro afirmar-se que em crimes documentais ela é
perfeitamente prescindível. O mesmo ocorre com a prova técnica e a prova documental,
que em alguns casos serão imprescindíveis e em outros perfeitamente dispensáveis.
Seguindo por esse caminho não se chega a lugar algum.
Nenhuma das duas posições é razoável. Nem é possível buscar-se o fundamento
político da prova testemunhal na imprescindibilidade de sua produção, nem o é na
presunção de veracidade e objetividade dos testemunhos. Em ambos, talvez, mas de uma
maneira assaz remota; está claro que a prova testemunhal é imprescindível e que, para
aceitá-la, é preciso aceitar senão a verdade, ao menos a sinceridade do ser humano.
Contudo, tratam-se de fundamentos extremamente remotos, imprestáveis à análise.
Ao que parece, a questão do fundamento político da prova testemunhal está mal
colocada. Não que não tenha relevância, mas a verdade é que está mal formulada.
É que a análise sobre qualquer prova, enquanto tal, sem referências históricas ou
circunstanciais ou sem a análise do sistema processual em que se insere, carece de
sentido. Abstraindo-se o sistema processual, qualquer meio de prova é meramente um
instrumento técnico, ideologicamente neutro; produziram-se provas testemunhais,
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técnicas e documentais em todos os sistemas, dos mais democráticos aos mais
opressivos. Daí a inevitável pobreza de uma análise acerca de seus fundamentos
políticos.
Daí por que é de ser buscada uma visada mais promissora para a análise.
O prisma da audiência processual penal, entretanto, mostra como um outro
fundamento político pode e deve ser buscado, com ganhos efetivos ao estudo do
processo penal.
A premissa para essa análise é também de ser buscada numa concepção política da
audiência processual penal, que deve reproduzir as condições sociais, garantindo a
participação popular na discussão.
b) o fundamento político da atividade instrutória em audiência
A questão do fundamento político da prova testemunhal, como visto, está mal
colocada. Para que se obtenha um resultado mais efetivo na análise do assunto, é
preciso, isto sim, fundamentar politicamente a atividade instrutória desenvolvida em
audiência processual penal.
A premissa do presente estudo é, sabidamente, de que a audiência processual penal
– como o momento em que as partes se colocam em contato direto umas com as outras,
ambas com o juiz e, juntamente com este com as provas orais, documentais e técnicas –
é o instrumento mais apropriado para a busca da verdade real.
Além disso, a audiência processual penal é o momento de realização do ordenamento
penal, que precisa do processo penal para tornar-se efetivo.
Se, de fato, o Ordenamento jurídico-penal há de corresponder ao mínimo ético de
uma determinada sociedade, isto é, àquelas regras sem as quais a vida de todos os
estamentos sociais é impossível, é de extrema conveniência política que as pessoas que
tiverem adquirido conhecimento pessoal dos fatos, em dose suficiente que possa ser
considerado relevante, participem da solução da causa.
Num ordenamento jurídico-penal “inflado” por duvidosas exigências de política
criminal, nascidas de um clima de verdadeiro terrorismo, 424 essa conveniência parece
atenuar-se, porque se torna antes de tudo entediante a participação, como testemunha,
em casos penais de escassa gravidade, cada vez mais freqüentes. Contudo, mesmo aqui
424
Cf., sobre o tema, RAMOS, João Gualberto Garcez. A inconstitucionalidade do “direito penal do
terror”, Curitiba: Juruá, 1991, 95 p.
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a participação é conveniente enquanto forma de perceber o quão “minimalista” parece ser
o ordenamento penal.
Com efeito, há maneira mais incisiva de demonstração da “inflação de normas penais”
do que a análise crítica da relação custo-benefício na colheita de prova testemunhal em
processos penais condenatórios relativos a crimes de bagatela? Nesses casos, não seria
punir mais a testemunha do que o próprio acusado?
Em qualquer dos dois casos, é politicamente saudável que o Estado estimule, o
quanto possível, que provas orais sejam produzidas em audiência, de maneira pública e
contraditória.
Em primeiro lugar, para possibilitar que a administração da justiça seja
convenientemente fiscalizada pela sociedade. 425 Em segundo, para ensejar uma
aprendizagem de cidadania ao maior número possível de pessoas leigas. Isso se faz
através do júri, como se faz através das testemunhas, que diretamente participam da
relação processual penal.
É intuitivo que o tratamento meramente formal da prova testemunhal não corresponde
à realidade dos fatos. Mais do que simplesmente constituir uma prova, a testemunha
comparece à audiência, para testemunhar, a fim de dar sua parcela de colaboração à
solução do caso.
FRANCESCO CARNELUTTI pareceu intuir essa realidade, ao escrever que “existe outro
indivíduo no centro do processo penal junto com o imputado: a testemunha. Os juristas,
friamente, classificam a testemunha, junto com o documento, na categoria das provas, e
até em uma certa categoria de provas; essa sua frieza é necessária, como a do estudioso
de anatomia que secciona o cadáver; porém ai! se se olvida de que, enquanto o
documento é uma coisa, a testemunha é um homem; um homem com seu corpo e com
sua alma, com seus interesses e com suas tentações, com suas recordações e com seus
esquecimentos, com sua ignorância e com com sua cultura, com sua valentia e com seu
medo. Um homem que o processo coloca em uma posição incômoda e perigosa,
submetido a uma espécie de requisição por utilidade pública, apartado de seu negócio e
de sua paz, utilizado, espremido, inquirido, convertido em objeto de suspeita. Não
conheço um aspecto da técnica penal mais preocupante do que o que se refere ao exame
425 Cf. o conceito de publicidade em DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 222: “Considerando (...)
que o processo penal desempenha uma função comunitária, que é assunto da comunidade jurídica, bem se
compreende a sua publicidade como forma ótima de dissipar quaisquer desconfianças que possam suscitar
sobre a independência e a imparcialidade com que é exercida a justiça penal e são tomadas as decisões”.
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e, em geral, ao trato do testemunho. Também aqui a exigência técnica termina por
resolver-se em uma exigência moral; se a devesse resumir em uma fórmula, colocaria em
um mesmo plano o respeito à testemunha e o respeito ao imputado”. 426
A intuição de FRANCESCO CARNELUTTI se resolve na visão política da prova
testemunhal como a de uma via de participação popular na administração da justiça
criminal. Embora não se possa abrir mão de uma visão técnica da prova testemunhal, é
preciso aceitar seu enorme matiz político.
Examinando-se a questão a partir dele, percebe-se que a produção de prova
testemunhal durante audiência processual penal marcada pelos princípios da publicidade,
oralidade, imediação, contraditório e concentração é politicamente conveniente na medida
em que possibilita a publicização ou, se preferir, socialização, cientificamente promissora,
não só para o processo penal, como também para ordenamento penal, da relação
processual penal. Nesse passo, impossível não se concordar com FRANCESCO CARNELUTTI
e aquiescer com um trato da testemunha como verdadeiro e próprio sujeito da relação
processual penal.
Antes de encerrar o presente item, contudo, é preciso também salientar que as
vantagens da prova testemunhal realizada em audiência, num país como o Brasil, há de
ser convenientemente equacionada com as reais condições de vida da população, para
que alguns de seus defeitos não a anulem.
Não é possível negar que a história do Brasil é, mais do que qualquer outra coisa,
uma história de repressão. Dessa maneira, é possível perceber que o relacionamento da
população brasileira com a autoridade pública não é natural, no sentido de ser claramente
baseado no medo. Somando-se o “interno neuropsichico”, para usar a expressão de
FRANCO CORDERO, a uma solicitação de invocação de lembranças francamente baseada
no medo, é de se ter, como resultado, um depoimento consideravelmente menos objetivo.
Some-se a essa história de repressão a piora geral das condições de vida da
426 CARNELUTTI, Francesco. Las miserias…, p. 49-50. Trecho original: “Pero existe otro individuo en el
centro del proceso penal junto al imputado: el testigo. Los juristas, fríamente, clasifican al testigo, junto con
el documento, en la categoría de las pruebas, y hasta en una cierta categoria de las pruebas; esta frialdad
suya es necesaria, como la del estudioso de anatomía que secciona el cadáver; pero ¡ay! si se olvida de
que, mientra el documento es una cosa, el testigo es un hombre; un hombre con su cuerpo y con su alma,
con sus intereses y con sus tentaciones, con sus recuerdos y con sus olvidos, con su ignorancia y con su
cultura, con su valentía y con su miedo. Un hombre que el proceso coloca en una posición incómoda y
peligrosa, sometido a una especie de requisición por utilidad pública, apartado de su negocio y de su paz,
utilizado, exprimido, inquirido, convertido en objeto de sospecha. No conozco un aspecto de la técnica penal
más preocupante que el que se refiere al examen y hasta, en general, al trato del testigo. También aqui, por
lo demás, la exigencia técnica termina por resolverse en una exigencia moral; si la debiese resumir en una
fórmula, colocaría en el mismo plano el respeto al testigo y el respeto al imputado”.
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população, que paulatinamente vem se tornando mais séria. As más condições sociais e
econômicas geram, além do recrudescimento de certa criminalidade, testemunhas menos
instruídas que, por conseqüência, têm cada vez maior dificuldade de comunicação com os
órgãos judiciários.
O exame da psicologia dos depoimentos prestados em processos penais
condenatórios, em países desenvolvidos, portanto, não pode ser indiscriminadamente
transposto para o Brasil.
É possível afirmar que, em países desenvolvidos, as testemunhas, tendo um melhor
grau de instrução e, portanto, maior familiaridade com a figura da autoridade, com ela
melhor e mais eficazmente se comunicam. De regra, não padecem de temores
infundados em relação aos órgãos públicos participantes da audiência processual penal.
Por tal razão, ou depõem com maior naturalidade, ou sem que suas vontades estejam
viciadas por falsos motivos de temor.
É o que leciona, com precisão, GUSTAV RADBRUCH, que afirma que as testemunhas
britânicas têm, usualmente, comunicação mais eficaz com os juízes e partes técnicas,
respondendo com objetividade e possibilitando a excelência da cross examination. 427
Num modelo misto, como o brasileiro, avulta a importância da atuação do juiz criminal.
Sendo autoridade e, mais que isso, constituindo-se na autoridade pìu eminente da
relação processual penal, não resta dúvidas que seu relacionamento com a testemunha
de parcos recursos intelectuais há de ser marcado pela sensibilidade.
Num processo penal inquisitório, porém, em que a tendência é o estabelecimento de
teses antes que tenha chegado o momento de julgar, a sensibilidade talvez não seja
suficiente.
O mais correto parece ser a subtração, ao menos do seu aspecto principal, da prova
testemunhal do domínio da atuação judicial. A revogação do sistema presidencial, nesse
passo, é questão crucial.
Assim, resumindo, a legitimidade política da atividade instrutória desenvolvida em
audiência processual penal no Brasil de hoje há de ser a conveniência política de
favorecer a participação popular na administração da justiça criminal.
427 RADBRUCH, Gustav. El espíritu…, p. 27-30.
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Seção B
O interrogatório
(atividade instrutória lato sensu)
§ 1º Conceitos
Historicamente, a doutrina processual penal brasileira hesitou em definir o
interrogatório processual penal. Quando o fez, trabalhou com conceitos analíticos e não
sintéticos, vinculando o conceito a uma tomada de posição acerca da natureza jurídica do
interrogatório processual penal. Por último, esquece-se de que, em um dado sistema
processual penal, freqüentemente há diferentes interrogatórios e não apenas um.
428-429 Como primeiro exemplo de definição analítica, tem-se a de JOSÉ FREDERICO MARQUES:
“Consiste o interrogatório em declarações do réu resultantes de perguntas formuladas
para esclarecimento do fato delituoso que se lhe atribui e de circunstâncias pertinentes a
esse fato”. 430
FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO manifestou-se a respeito, definindo o
interrogatório como o meio através “do qual o Juiz ouve do pretenso culpado
esclarecimentos importantes sobre a imputação que lhe é feita e, ao mesmo tempo, colhe
dados importantes para o seu convencimento”. 431
Mais analítico ainda, porém, é o conceito proposto por JULIO FABBRINI MIRABETE: “a
audiência de interrogatório constitui ato solene, formal, de instrução, sob a presidência do
juiz, em que este indaga do acusado sobre os fatos articulados na denúncia ou queixa,
428
Cf., a respeito, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 440-463, que não fornece uma natureza
jurídica única ao interrogatório, bem como SOUSA, João Castro e. A tramitação…, p. 210-215, que
descreve os diversos tipos de interrogatório previstos pelo ordenamento processual penal português
reformado pelo Decreto-lei n. 605, de três de novembro de 1975.
429
Cf., a respeito, dando características diferentes aos interrogatórios conforme realizados em cada
fase do procedimento, BUENO, José Antonio Pimenta. Apontamentos… Quanto ao interrogatório realizado
na fase de formação da culpa, logo após o cometimento do crime (JOSÉ FREDERICO MARQUES esclarece que,
hoje, essa espécie de interrogatório só existe no inquérito policial), PIMENTA BUENO escreve: “O
interrogatório feito logo aproveita os vestígios ainda vivos do delito e suas circunstâncias; é um meio assim
de esclarecimento como de defesa do réu, pois este não é constrangido a dizer senão o que quiser, e pode
até guardar silêncio (...). Entretanto, por isso mesmo que é um meio de defesa, o réu deve desde logo ser
ouvido; e, como é simultaneamente meio de reconhecer a verdade, não deve o juiz olvidá-lo, e pode repetir
as perguntas, sempre que entender isso conveniente, qualquer que seja o estado da causa” (p. 356-357).
Quanto ao interrogatório realizado no plenário do tribunal do júri, ao revés, BUENO observa: “O
interrogatório tem pois o caráter de um meio de defesa: mediante ele pode o acusado expor antecedentes
que justifiquem ou atenuem o crime, opor exceções contra as testemunhas, e indicar fatos ou provas que
estabeleçam sua inocência. Então ele é o próprio advogado de si mesmo, é a natureza que pugna pela
conservação de sua liberdade e vida, que fala perante juízes que observam seus gestos e suas emoções”
(p. 423).
430
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 322.
431 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 3, p. 265.
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deles lhe dando ciência, ao tempo em que abre oportunidade de defesa”. 432
Tais definições, como visto, pecam por sua metodologia que, analiticamente, prestigia
aspectos acidentais do objeto a ser conceituado, tornando, ao mesmo tempo, impuro e
imprestável o conceito.
Em primeiro lugar, ao interrogatório processual penal não é essencial a elaboração de
perguntas ao interrogado. No interrogatório do atual CPP, por coincidência, essas
perguntas são previstas, mas não se constituem elas em essência do ato. 433
Em segundo lugar, a questão da colheita de provas ou de elementos de convicção –
seja ela verificada, frustrada ou mesmo não buscada – é algo que vai depender da
natureza jurídica que o interrogatório tiver naquele determinado sistema processual penal.
Acrescentar a definição acerca da natureza jurídica ao conceito é torná-lo inoperante em
outro dado sistema processual penal.
Assim, em sintéticos termos jurídicos, o interrogatório processual penal pode ser
conceituado como sendo o ato processual penal consistente na oitiva do imputado
(indiciado ou acusado) por um órgão público, durante um procedimento oficial de natureza
processual penal.
Aí estão, quer-se crer, as notas essenciais desse ato processual.
ENRICO ALTAVILLA refere-se a um conceito psicológico, pelo qual o interrogatório é
definível como “depoimento prestado em resposta a perguntas”. 434
No presente estudo, preferir-se-á o conceito jurídico proposto como hipótese de
trabalho.
Aceita-se a assertiva de que o interrogatório é uma espécie de testemunho, conforme
registra NICOLA FRAMARINO DEI MALATESTA. 435 Contudo, por ser ele o testemunho de
432 MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 265.
433 Cf., a título de exemplo, a exposição do procedimento penal ordinário na Alemanha que faz
COLOMER, Juan-Luis Gomes. El proceso…, p. 231-239. Segundo esse autor, há diversos interrogatórios
nesse procedimento. O primeiro interrogatório, realizado antes da admissão da acusação, é um
interrogatório pessoal, realizado entre o juiz e o ainda indiciado, sem a presença de qualquer outra pessoa
no local e marcado por perguntas formulares [§ 243, apartado (2) Strafprozessordnung (StPO) ou “Código
de Processo Penal”). O segundo interrogatório, após a admissão da acusação, relaciona-se
especificamente com a causa e não possui perguntas formulares: qualquer indagação é diretamente
determinada pelo caso em julgamento. Nesse interrogatório, o acusado é advertido de que pode quedar-se
calado. Se concordar em declarar, é realizado o interrogatório [§ 243, apartado (4) StPO]. Por fim, após a
prática das provas e os informes finais, o acusado ainda tem a oportunidade, antes da prolatação da
decisão, de uma “última palavra”, antes do tribunal, geralmente escabinado, retirar-se da sala de audiências
para, secretamente, deliberar [§ 258, apartados (2) e (3) StPO].
434 ALTAVILLA, Enrico. Psicologia…, p. 12.
435 MALATESTA, Framarino dei. Lógica…, v. 2, p. 20.
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alguém suspeito da prática de um mal, não pode visar, preeminentemente, a obtenção de
provas. Por tais razões, mas principalmente porque o interrogatório, em qualquer sistema
processual penal, evoca questões particularíssimas, será analisado separadamente da
atividade instrutória propriamente dita, mormente testemunhal, produzida durante a
audiência. Demais disso, está justificada a inclusão do interrogatório dentro da atividade
instrutória lato sensu: é que, mesmo que o objetivo do interrogatório não seja obter
provas, a existência do art. 59 do CP impõe que, nesse momento de contato pessoal, a
autoridade policial e juiz colham elementos de convicção importantes para a
caracterização da personalidade do imputado, aquele cautelarmente e este
definitivamente.
Por vezes, será feita referência à audiência de interrogatório, o que não ocorrerá em
outras vezes, em que referir-se-á apenas ao interrogatório processual penal propriamente
dito.
No primeiro caso, o objeto de análise será a audiência exclusivamente convocada
para ouvir o acusado: nessa audiência realiza-se um interrogatório processual penal,
nada mais.
A audiência processual penal de interrogatório é um momento processual, enquanto
interrogatório processual penal é, com toda evidência, um ato processual penal.
Tal distinção é útil, nos limites do presente estudo, para diferençar o interrogatório
realizado em audiência exclusiva, do interrogatório realizado no bojo de audiência
convocada também para outros fins, como a instrução e o julgamento, por exemplo. As
conseqüências dessa diferença são mais relevantes do que, a princípio, podem parecer.
§ 2º Caracteres
a) o interrogatório e os “sistemas”
1. sistema inquisitório
A característica primeira do interrogatório processual penal num sistema inquisitivo
também o é da própria audiência nesse sistema: o seu desenvolvimento em segredo, ou
com publicidade sumamente restringida. Outras características, porém, podem ser
encontradas.
No processo inquisitivo, conforme é sabido, o juiz tem o poder-dever de buscar as
provas para a formação de seu convencimento – atitude paranóica, conforme FRANCO
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CORDERO 436 – mas de outra parte é também vinculado a uma tábua de valoração de
provas, o que “representava também uma espécie de barreira contra os excessos ainda
piores que poderiam derivar do arbítrio dos juízes daquela época”. 437
No interrogatório inquisitivo vige o princípio reo tenetur se accusare, caracterizado,
conforme FRANCO CORDERO, pelo fato do acusado ser examinado sob juramento e de,
ocorrendo os indícios ad torturam, poder ser a ela submetido: “O universo inquisitório
nasce dos labirintos introspectivos: o imputado deve ‘se detegere’, confessando-se
culpado quando o seja; em todo interrogatório jura; e ocorrendo indícios ad torturam,
sofre-a”. 438
Outra característica acidental do interrogatório inquisitivo é a utilização dos
denominados interrogatórios sugestivos ou cavilosos.
Nessa espécie de interrogatório, o acusado é levado a responder o que o interrogante
deseja. Se o interrogante deseja que diga coisas contraditórias, o interrogado será levado
a fazê-lo. Se o interrogante deseja beneficiá-lo, o interrogante será levado a dizer as
coisas certas.
O Marquês de BECCARIA, ao analisar os interrogatórios sugestivos, lembra que leis da
época os proibiram, tendo em vista evitar que a autoridade interrogante beneficiasse o réu
através de uma sugestão a ele benéfica. Com isso, o célebre polemista milanês salienta a
contradição existente entre essa proibição e a permissão da tortura, pois a dor é o maior
dos instrumentos de sugestão, só que funciona unicamente contra os interesses do
imputado. 439
436 CORDERO, Franco. Procedura…, p. 21 e 25.
437 CAPPELLETTI, Mauro. “Ideologia en el derecho procesal”, em Proceso…, p. 7. Trecho original:
“representaba también una especie de barrera contra los excesos aún peores que habrían podido derivar
del arbitrio de los jueces de aquella época”.
438
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 610. Trecho original: “L’universo inquisitorio nasce dai labirinti
introspettivi: l’imputato deve ‘se detegere’, confessandosi colpevole quando lo sia; ad ogni interrogatorio
giura; e ricorrendo indizi ad torturam, la subisce”.
439
BECCARIA, Cesare. Dei delitti…, p. 105-106: “Le nostre leggi proscrivono le interrogazioni che
chiamansi suggestive in un processo: quelle cioè secondo i dottori, che interrogano della specie, dovendo
interrogare del genere, nelle circostanze d’un delitto: quelle interrogazioni cioè che, avendo un’immediata
conessione col delitto, suggeriscono al reo una immediata risposta. Le interrogazioni secondo i criminalisti
devono per di cosí spiralmente il fatto, ma non andare giammai per diritta linea a quello. I motivi di questo
metodo sono o per non suggerire al reo una risposta che lo metta al coperto dell’accusa, o forse perché
sembra contro la natura stessa che un reo si accusi immediatamente da sé. Qualunque sia di questi due
motivi è rimarcabile la contradizione delle leggi che unicamente a tale consuetudine autorizzano la tortura;
imperocché qual’interrogazione piú suggestiva del dolore? Il primo motivo si verifica nella tortura, perché il
dolore suggerirà al robusto un’ostinata taciturnità onde cambiare la maggior pena colla minore, ed al debole
suggerirà la confessione onde liberarsi dal tormento presente piú efficace per allora che non il dolore
avvenire”. Il secondo motivo è ad evidenza lo stesso, perché se una interrogazione speciale fa contro il
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A atuação mais freqüente e socialmente danosa, porém, consiste em valer-se o
interrogante de sua cultura e habilidade para sugestionar o acusado e levá-lo a cair em
contradições para, enfim, confessar a prática de um ilícito.
Há exemplos característicos de interrogatórios sugestivos no romance “O nome da
rosa”, de UMBERTO ECO, comandados pelo seu personagem, inquisidor BERNARDO
GUIDONI, ou BERNARDO GUI, “como quiserdes chamá-lo”. 440
Em seu libelo contra a tortura, PIETRO VERRI faz, outrossim, condenação à “insidiosa
cavilação utilizada no processo contra alguns infelizes”. 441
O antigo processualista penal francês ANTOINE TOUSSAINT DESQUIRON DE SAINT-AGNAN
descreve com precisão e condena com veemência o interrogatório sugestivo: “O
Procurador Geral Servant abominou toda a vida um artifício que, naqueles tempos,
gozava de grande reputação e que consistia em enredar o acusado com perguntas
insidiosas, até de falso fundamento, para assim descobrir a verdade; entendia ele que o
juiz não deve de qualquer maneira apertar o acusado, a não ser quando a sua
desatenção fosse prejudicial, a ele ou a terceiros. Por isso as perguntas insidiosas, as
suposições falsas, em suma, qualquer mentira destinada a envolver o acusado, eram
abominadas por aquele bom magistrado. E estes princípios, dizia-nos ele, dirigem-se ao
magistrado, ao ministro da lei, a quem chamaria o investigador da inocência, se
procurássemos um nome para significar os seus deveres. Princípios indispensáveis em
relação a um acusado, quase sempre de espírito e coração perturbados: em vez de
insídias, é digno de socorro; cada pergunta que não se refira diretamente ao crime, cada
pergunta acidental, é funesta. O acusado, que se submete ao interrogatório de um juiz,
está absolutamente convencido de que cada pergunta pode ser capital; cada interrogação
parece, aos seus olhos, ameaçar-lhe a vida: e pede, por isso, para lha repetirem,
dispondo imaginárias defesas contra as palavras do magistrado. Numa tal disposição, se
lhe é feita uma pergunta sem grande interesse, e se, realmente, ele fez aquilo que o juiz
lhe pergunta, logo se perturba: negará, ou confessará? – De certo não me interrogou sem
um fim... quem sabe que conseqüências ele irá tirar disto!... O que hei de dizer agora? – o
que lhe inspira a fraqueza e o medo, a mentira: o acusado negará. O juiz, sereno,
diritto di natura confessare un reo, gli spasimi lo faranno molto più facilmente: ma gli uomini piú dalla
differenza de’ nomi si regolano che da quella delle cose”.
440
ECO, Humberto. O nome…, p. 245 e 420-442: “quinto dia, nona: onde se aplica a justiça e tem-se a
embaraçosa impressão de que todos estejam errados”.
441
VERRI, Pietro. Observações…, p. 53.
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depressa vê que ele mentiu e fica desconfiado: o acusado está perdido! é surpreendido
com a confissão na boca, está aterrado: o sr. é um mentiroso, diz-lhe o juiz; ele atrapalha-
se, empalidece, treme, balbucia. – O que acontece? O juiz pensou ter descoberto um
culpado e, pelo contrário, foi ele quem o criou”. 442
Também é característica do interrogatório inquisitivo a maliciosa utilização do tempo.
Através do revezamento de interrogadores, o acusado é levado à exaustão, ocasião em
que suas defesas se atenuam, sendo induzido a confessar qualquer coisa, a título de
contrapartida para ser deixado em paz.
443-444 A utilização de toda sorte de constrangimentos, desde o físico até o moral, é também
uma característica do interrogatório inquisitivo.
Por fim, o interrogatório inquisitivo, conforme deixou claro FRANCO CORDERO, é
conduzido com o interrogado tendo o tempo inteiro a consciência de que, a qualquer
momento, poderá ser submetido a alguma espécie de constrangimento moral ou tormento
físico, se não são eles contemporâneos ao ato.
O mais ocorrente é a utilização combinada de todas essas características: ausência
de publicidade, utilização maliciosa das habilidades retóricas e mesmo cênicas do
interrogante, tempo indeterminadamente longo, constrangimento físico e moral e ameaça
de tormento.
PATRICK MARNHAM, biógrafo do escritor belga GEORGES SIMENON, descreve um
episódio interessante do princípio da carreira do escritor, o qual é elucidativo dos métodos
inquisitivos de exame do réu: “Os primeiros Maigrets foram aparentemente um sucesso tal
que eram lidos pelo Chefe do CID de Paris, Xavier Guichard. Ele mais tarde chamou
Simenon e disse-lhe que um escritor que chegava a tais extremos para tornar seus livros
realistas devia ser informado de como evitar tantos erros fundamentais. Simenon foi então
apresentado a m. Guillaume, e permitiram-lhe percorrer os bastidores do Quai des
442 DESQUIRON DE SAINT-AGNAN, Antoine Toussaint. Trattato della prova dei testimoni in materia
criminale, trad. para o italiano de Starita. Nápoles: sem editora, 1833, apud ALTAVILLA, Enrico.
Psicologia…, p. 33.
443 Cf. VERRI, Pietro. Observações…, p. 77-82.
444 Cf. TANZI, Eugenio. Psichiatria forense, Milão: Vallardi, 1911, p. 124 apud ALTAVILLA, Enrico.
Psicologia…, p. 79: “Certos indivíduos tímidos, emocionáveis, sugestionáveis, confusos, não podem resistir
por muito tempo a um interrogatório inquisitorial cheio de perguntas sugestivas, de dilemas angustiosos, de
exortações a uma confissão completa, de lisonjas e de intimidações. Depois de haver cedido uma primeira
vez acerca de um pormenor de cujo alcance não desconfiava, por confusão, por fraqueza, em virtude da
sua impulsividade emotiva, por um errado cálculo de defesa, estes indivíduos acabam por confessar o crime
que lhes é atribuído com todos os pormenores que lhe são sugeridos ou até com outros inventados, que
oportunamente são, com facilidade, desmentidos pela instrução”.
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Orfèvres e até assistir a interrogatórios de presos. Viu presos serem dobrados num
período de 24 ou 48 horas, numa maratona de interrogatório realizada por uma equipe de
seis ou sete policiais, e disse acreditar que um homem como Guillaume jamais usaria
violência num interrogatório, porque simplesmente não precisava. Também viu um
suspeito ser despido e interrogado diante de uma sala cheia de policiais inteiramente
vestidos. ‘Garanto a vocês que nada desconcerta mais um homem do que ficar nu, sem
bolsos, sem absolutamente nada. É muito difícil contar mentiras muito tempo em tais
trajes’, disse”. 445
MICHEL FOUCAULT observa que não é característica do interrogatório inquisitório a
liberdade das formas, a fim de facilitar o trabalho do inquisidor. Segundo esse autor, ao
contrário, um interrogatório de matiz inquisitória é perfeitamente regrado: “o interrogatório
não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não é absolutamente a louca
tortura dos interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de
uma prática regulamentada, que obedece a um procedimento bem definido, com
momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos
chumbos, número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo os
diferentes hábitos, cuidadosamente codificado”. 446
Em síntese, os interesses do interrogante, num sistema inquisitório, na atitude de
interrogar, são os de extrair do acusado uma prova tranqüilizadora (porque altamente
graduada): a confissão.
2. sistema acusatório
O interrogatório processual penal de matiz acusatória é principalmente caracterizado
pela publicidade, sob cujo signo se desenvolve.
O interrogatório acusatório é, quase exclusivamente, um meio de defesa. É, mais do
que tudo, a melhor oportunidade conferida pela lei para que o acusado apresente sua
versão acerca da acusação.
A possibilidade de transformação do interrogatório acusatório, de meio de defesa, em
meio de prova, é também a ele inerente.HÉLIO TORNAGHI escreve que “no Direito inglês é
comum prometer-se a impunidade ao acusado que aponta os co-réus. Geralmente
quando a participação daquele foi de somenos importância e a do co-autor ignorado de
445
MARNHAM, Patrick. O homem…, p. 151 [sem grifo no original]. CID é o departamento de polícia
francês.
446
FOUCAULT, Michel. Vigiar…, p. 39.
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grande realce. O interrogado é então considerado Witness for the Crown, testemunha
pública, testemunha da acusação, ao pé da letra: testemunha em favor da Coroa”. 447
Quanto ao processo penal estadunidense, leciona METELLO SCAPARONE que “o
imputado é ‘competent witness’, isto é, pode depor como testemunha, sob prévio
juramento, sobre os fatos deduzidos na imputação. Ele, porém, é protegido pelo ‘privilege
against self-incrimination’, daí não ser ‘compallable witness’, isto é, não pode ser
notificado a depor e, em geral, interrogado pela acusação. Uma vez que, como é sabido,
o ‘privilege against self-incrimination’ exonera o imputado somente das prestações que
têm caráter testemunhal, o ‘prossecuting attorney’ pode de qualquer maneira deduzir no
seu ‘case for the prossecuting’ os resultados da recognição e das investigações técnicas
às quais o acusado foi submetido na fase das investigações da polícia”. 448
É uma das mais importantes e destacadas características do interrogatório puramente
acusatório ser um exame direto do interrogado pelas partes, que se sucedem nessa
tarefa, restando ao juiz a oportunidade de esclarecer-se acerca de algum ponto lhe
pareça nebuloso. É o sistema da direct-cross-re-examination, característico do sistema
acusatório do common law. 449
Assim, do ponto de vista do juiz, é possível afirmar que o interrogatório acusatório é
marcado pela simplicidade da sua atividade, ao contrário do sistema inquisitório, que
impõe ao julgador uma excessiva subjetivização, inerente ao sistema.
Nele, interrogatório acusatório, o juiz limita-se a ouvir o que o acusado tem a dizer em
sua defesa, sem investigar seus motivos ao cometer seu crime, sua personalidade etc.
Do ponto de vista das partes, o interrogatório acusatório é marcado pelo intenso
contraditório, que não é sua característica no sistema inquisitivo. Daí ser correto dizer que
no interrogatório acusatório avulta a atividade administrativa, de polícia do juiz, no conter
os excessos das partes.
Por fim, a característica central do interrogatório acusatório é que seu presidente está
afastado, pelas características do sistema, da atividade instrutória. Conforme é sabido, no
447
TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 393.
448
SCAPARONE, Metello. “Common Law”…, p. 101-102. Trecho original: “l’imputato è ‘competent
witness’, cioè può deporre como testimone, previo giuramento, sui fatti dedotti in imputazione. Egli, però, è
protetto dal ‘privilege against self-incrimination’ e quindi non è ‘compellable witness’, cioè non può essere
chiamato a deporre e in generale interrogato dall’accusa. Poichè, com’è noto, il ‘privilege against selfincrimination’
esonera l’imputato dalle sole prestazioni aventi ‘carattere testimoniale’, il ‘prossecuting
attorney’ può comunque dedurre nel ‘case for the prossecuting” i risultati della ricognizione e di qualsiasi
indagine tecnica cui l’imputato sia stato sottoposto nella fase delle indagini di polizia”.
449
PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 21.
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sistema acusatório o juiz é instruído, enquanto no sistema inquisitório ele próprio se
instrui.
A Suprema Corte dos Estados Unidos, sobretudo a partir do regramento dos
interrogatórios policiais, modificou o aspecto do interrogatório acusatório naquele país.
Essa modificação principiou com o caso Miranda v. Arizona, 384 US 436 (1966). Esse
caso fixou um princípio básico: o de que ao acusador, caso queira utilizar-se de
declarações prestadas pelo acusado na fase investigatória, deverá comprovar que a
tomada dessas declarações obedeceu a diversas formalidades, que são: a) ciência clara
ao preso de seu direito ao silêncio e admoestação de que qualquer manifestação que
prestar poderá ser usada contra sua pessoa; b) ciência de que tem direito a um
advogado, que o defenderá e que esse advogado poderá estar presente ao interrogatório
policial; c) concessão de efetiva oportunidade de acompanhamento de advogado no
interrogatório policial, que deverá ser suspenso até a chegada desse profissional; d)
concessão de oportunidade ao imputado de comunicar-se com seu advogado, antes de
responder a cada uma das perguntas da autoridade policial; e) concessão de idêntica
oportunidade de patrocínio de advogado ao imputado que não possua meios econômicos
para tanto; f) registro estreme de dúvidas de eventual renúncia do imputado a qualquer
desses direitos. 450
“Se em juízo o promotor não demonstra que todos esses requisitos foram
observados”, ensina ALEJANDRO D. CARRIÓ, “nenhuma evidência obtida como
conseqüência do interrogatório pode ser usada contra o acusado”. 451
450
Cf. a opinião do Chief Justice EARL WARREN em RODRIGUES, Lêda Boechat. A Corte de Warren…,
p. 205-206: “A compreensão da natureza do interrogatório dos presos e do ambiente que é feito é essencial
para a nossa decisão de hoje. A dificuldade de descrever o que se passa em tais interrogatórios decorre do
fato de que neste país eles foram quase sempre feitos estando o acusado incomunicável. (...). Numa série
de casos decididos por esta Corte (...) a polícia recorria à brutalidade física – surras, suspensão do solo,
açoites – e a interrogatórios insistentes e prolongados dos acusados, mantidos incomunicáveis, a fim de
lhes serem extorquidas confissões. Em 1961, a Comissão de Direitos Civis encontrou muitas provas
indicando que ‘alguns policiais ainda recorrem à violência para obter confissões’. O uso da brutalidade física
e da violência não está, infelizmente, relegado ao passado em qualquer parte do país. Queremos reafirmar,
entretanto, que as modernas práticas de interrogatório policial são mais orientadas psicológica que
fisicamente. Como dissemos antes, desde Chambers v. Florida (1940) esta Corte reconheceu que a coação
pode ser tanto mental quanto física e que o sangue do acusado não é o único sinete de uma inquisição
inconstitucional”.
451
CARRIÓ, Alejandro D. Garantías…, p. 138. Trecho original: “si en el juicio del acusado el fiscal no
demuenstra que todos estos requisitos han sido observados, ninguna evidencia obtenida como
consecuencia del interrogatorio puede ser usada en contra de aquél”.
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b) princípios e regras
1. publicidade
No processo penal brasileiro, o interrogatório somente não se realiza publicamente
durante o inquérito policial. Nos demais casos, o interrogatório é realizado em audiência
pública, salvo se concorrer quaisquer das hipóteses de restrição ou mesmo anulação da
publicidade da audiência, previstas no § 1º do art. 792 do CPP ou no art. 155 do CPC,
invocado analogicamente.
Quanto à publicidade, há que se fazer um destaque ao interrogatório realizado
durante a sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri. Nesse
momento processual, a publicidade é induvidosamente ampliada.
2. oralidade e imediação
Algumas das características mais salientes do interrogatório, no processo penal
brasileiro, são a oralidade e imediação em que se desenvolve.
A autoridade pública formula oral e diretamente as perguntas ao interrogado. A forma
de transmissão das respostas do acusado ao juiz também é oral, embora o CPP não
possua regra expressa a respeito, proibindo, por exemplo, o acusado de transmitir ao juiz
suas respostas por escrito. Essa forma de transmissão, em todo o caso, não equivaleria a
um silêncio. Não foi encontrado caso na jurisprudência de interrogado que, podendo fazêlo,
tenha se recusado a responder oralmente ao juiz, preferindo a forma escrita.
Há alguns casos de interrogatórios especiais, em que se impõem exceções ao
princípio da oralidade: tais são os casos dos interrogatórios do surdo, do mudo e do
surdo-mudo.
No caso do interrogado surdo, o art. 192, inciso I, do CPP impõe a forma escrita para
as perguntas e a oral para as respostas.
No caso do acusado mudo, o art. 192, inciso II, do mesmo diploma, impõe a forma
oral para as perguntas e a escrita para as respostas.
Por fim, no caso do acusado surdo-mudo, o art. 192, inciso III, também do CPP, impõe
a forma escrita para as perguntas e respostas.
Se o acusado, além de ser surdo, mudo ou surdo-mudo, não souber ler ou escrever, o
parágrafo único do mesmo art. impõe a nomeação de um intérprete habilitado, que
intervirá sob compromisso, no caso, de seu grau.
Seria possível pensar-se em outras hipóteses que, não dizendo respeito a indivíduos
inimputáveis, não se relacionam com regra expressa, mas apresentam dificuldades
166

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semelhantes.
Assim, o caso do silvícola relativamente adaptado, do indivíduo tão rústico que possa
ser a àquele comparado, do que tenha sérios problemas de dicção, bem como, de certa
maneira, do estrangeiro etc.
Nesses casos, impossíveis de enumerar, de tão vários, justificar-se-ia a aplicação
analógica de regras atinentes ao surdo, ao mudo e ao surdo-mudo, especialmente no que
respeita à utilização de assessoria pelo juiz.
Quanto ao interrogatório de quem não fala a língua nacional, o art. 193 do CPP tem
dispositivo, de início, desconcertante: “Quando o acusado não falar a língua nacional, o
interrogatório será feito por intérprete”.
A norma, porém, não pode ser levada ao pé da letra, devendo ser creditada à má
técnica do Código. Está claro que, não conhecendo o interrogado a língua nacional,
sempre e sempre o interrogatório será feito pelo juiz.
Por vezes, quando o juiz não souber falar o ou os idiomas conhecidos pelo
interrogado, será simplesmente auxiliado por um intérprete. Jamais esse intérprete, mero
auxiliar da justiça que é, interrogará. Haveria, em caso contrário, violação do princípio da
presidencialidade.
Além disso, é evidente que se o juiz, mesmo sendo estrangeiro o acusado, for
versado em sua língua e souber com ele se comunicar, desnecessário será o auxílio de
intérprete. Desnecessário mas talvez aconselhável, dado que os outros participantes da
audiência talvez não sejam versados nesse mesmo idioma.
Todavia, conforme adverte agudamente JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA, “em
qualquer caso é indubitável que haverá prejuízo para a comunicação. Se se recorre a um
intérprete, a imediação estará, por definição, sacrificada; e ainda a mais fiel de todas as
traduções não logrará subministrar ao juiz a percepção clara do tom, do acento, das
inflexões, dos inumeráveis matizes que é preciso ter em conta para valorar bem uma
deposição. Por outra parte, será grande o risco de equivocações se o juiz se aventura ao
diálogo em um idioma estrangeiro do qual não tenha perfeito conhecimento”. 452
452 MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Problemas de la inmediacion en el proceso civil”, em RePro, n. 34
(abr-jun/1984), p. 193. Trecho original: “en cualquier caso es indudable que habrá perjuicio para la
comunicación. Si se recurre a un intérprete, la inmediación estará, por definición, sacrificada; y aún la más
fiel de todas las traducciones no logrará suministrar al juez la percepción clara del tono, del acento, de las
inflexiones, de los innumerables matices que es preciso tener en cuenta para valorar bien una deposición.
Por otra parte, será grande el riesgo de equivocaciones si el juez se aventura al diálogo en un idioma
extranjero del cual no tenga perfecto conocimiento”.
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3. contraditório e presidencialidade
No processo penal brasileiro, até o advento da Lei n. 10.792, de 2003, o ato de
interrogatório era unicamente bilateral, isto é, desenvolvia-se exclusivamente entre juiz e
acusado.
A partir do advento dessa lei, que realizou profunda alteração nas regras do capitulo
III do título VII do livro I do CPP, as partes técnicas passaram a fazer parte do ato de
interrogatório que, entretanto, continua a ser governado pela presidencialidade. Quer
dizer: como no caso da atividade instrutória stricto sensu, as partes desenvolvem
atividade instrutória, mas ela é meramente supletiva da atividade instrutória do juiz.
Assim, as partes técnicas podem agora intervir na audiência e no ato de interrogatório,
isto é, podem influir na dialética entre interrogante e interrogado. A atuação processual
das partes técnicas, em que pese possa ser administrada pelo juiz, não pode ser proibida.
Poderão, por exemplo, argüir questões de ordem, requerer a instauração de incidentes,
fiscalizar a transcrição das palavras do acusado no termo ou mesmo fiscalizar a própria
atitude do interrogante em relação ao interrogado etc.
Além disso, como desdobramentos naturais do art. 5º, incisos LV e LVXIII, da
Constituição da República, o advogado poderá comunicar-se a todo momento com o
acusado, durante o interrogatório, por sua iniciativa ou por iniciativa do acusado.
c) ritualismo
1. no inquérito policial
O interrogatório realizado durante o inquérito policial também é um ato desenvolvido
entre interrogante e interrogado.
Contudo, há aqui uma particularidade importante: a proibição de intervenção no ato,
então desenvolvido entre autoridade policial e indiciado, vem também das características
puramente inquisitivas do procedimento.
Daí ser correto dizer que o interrogatório policial se desenvolve exclusivamente entre
interrogante e interrogado; este, porém, é apenas um objeto de investigações.
Da mesma maneira com relação ao órgão do Ministério Público: o acompanhamento
que porventura faça do interrogatório realizado no inquérito policial tem função
fiscalizatória da atividade da autoridade policial e, de forma alguma, dá a ele a
prerrogativa de se substituir à autoridade policial. E também não pode intervir no
interrogatório, que a autoridade policial federal faz cautelarmente, pela natureza
meramente bilateral do ato. A atuação do órgão do Ministério Público, no
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acompanhamento do inquérito, tem função meramente instrumental: facilitar a formação
da opinio delicti.
É lícito afirmar, portanto, que a presidencialidade do interrogatório realizado quando
do inquérito policial é ainda mais aguçada, dadas as características inquisitórias desse
procedimento.
2. nos procedimentos comuns
Uma saliente característica do interrogatório no processo penal brasileiro, no que se
relaciona às regras legais de procedimento, é a de não prender-se especificamente a uma
fase procedimental. O art. 185 do CPP, por exemplo, dispõe que o “acusado que
comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado
e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”. O art. 196 do CPP
é ainda mais enfático, ao dispor que, “a todo tempo, o juiz poderá proceder a novo
interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado das partes”.
No procedimento ordinário pleno, segundo o art. 394 do CPP, a audiência de
interrogatório se situa dentro da chamada fase postulatória do processo penal de
conhecimento.
Essa fase é formada, no procedimento ordinário pleno, pela denúncia, pelas
alegações preliminares e pela oportunidade de requerimento de diligências ensejada pelo
art. 399 do CPP.
Da mesma maneira com relação ao procedimento sumário em sentido estrito: em
ambos os procedimentos a fase postulatória tem praticamente as mesmas regras,
diferenciando-se apenas no que concerne ao número de testemunhas que podem ser
arroladas para futura oitiva. Assim, o interrogatório do procedimento sumário em sentido
estrito possui exatamente as mesmas regras formais do interrogatório do procedimento
ordinário pleno.
O interrogatório nos procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido estrito é
caracterizado pela oralidade, publicidade, imediação e bilateralidade essencial. Como se
situa no início de um procedimento instrutório, no dizer de JOSÉ FREDERICO MARQUES,
descontínuo e fragmentário, 453 avultam nele as características do sistema inquisitório.
Essa conseqüência seria mais do que evidente.
Isso porque, se a instrução que se avizinha é descontinua, desconcentrada e ineficaz
453 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 270.
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na reconstrução histórica do fato criminoso, aumenta a pressão psicológica sobre a
pessoa do juiz, que, assim, necessitará mais ainda da prova da confissão, que o
tranqüilizará, caso a intenção seja já a de condenar. Trata-se de um aprofundamento da
crise paranóica do processo inquisitório a que FRANCO CORDERO faz menção.
Quanto às regras procedimentais do interrogatório, seu primeiro passo é a advertência
do art. 186 do CPP.Nesse momento, após qualificar e cientificar o acusado do teor da
acusação, o juiz o informará do seu direito de permanecer calado e de não responder às
perguntas que lhe forem formuladas.
O procedimento da audiência de interrogatório está dividido em duas partes:
interrogatório sobre o acusado e interrogatório sobre os fatos.
“Na primeira parte”, diz o § 1º do art. 187 do CPP, “o interrogando será perguntado
sobre a residência, meios de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde exerce
a sua atividade, vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma vez e,
em caso afirmativo, qual o juízo do processo, se houve suspensão condicional ou
condenação, qual a pena imposta, se a cumpriu e outros dados familiares e sociais”.
Na seqüência, segundo o § 2º do mesmo dispositivo, o juiz lhe fará algumas
perguntas protocolares, a respeito da veracidade da acusação que lhe é feita (inciso I),
caso o interrogando negue a acusação, perguntará se este “tem algum motivo particular a
que atribuí-la”, convida-lo-á a apontar o verdadeiro culpado, e indagará se esteve com ele
antes ou depois da prática criminosa (inciso II), perguntará ao interrogando se onde ele
estava ao tempo em que o crime foi cometido e se teve notícia de sua prática (inciso III),
perguntará a ele sobre as provas já colhidas (inciso IV), perguntará se ele conhece as
vítimas e testemunhas, inquiridas ou por inquirir e se tem algo a alegar contra elas (inciso
V), perguntará se conhece o instrumento do crime ou qualquer objeto que tenha relação
com o crime e que tenha sido apreendido (inciso VI), e indagará acerca de “todos os
demais fatos e pormenores que conduzam à elucidação dos antecedentes e
circunstâncias da infração” (inciso VII).
Se a confissão ocorrer, o art. 190 do CPP determina que o juiz pergunte
especialmente ao acusado acerca dos motivos e das circunstâncias da ação e sobre
eventuais co-autores ou partícipes.
Trata-se, aqui, de traço do subjetivismo inquisitório do interrogatório no processo
penal brasileiro. Combina-se a regra, entretanto, com o art. 59 do CP, que impõe ao juiz,
no momento de começar a aplicar a pena – segundo momento do processo de
individualização da pena – a definição dos motivos e circunstâncias da ação criminosa.
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O interrogante deve possibilitar o estabelecimento de características, traços, que
permitam a definição de standards, de topoi, que serão, topicamente, tratados no
momento da sentença.
Outro aspecto relevante é o da transcrição das palavras ditas pelo interrogado ao
interrogante. Antes de qualquer outra razão, porque não se trata de transcrição pura e
simples. Trata-se, isso sim, de reelaboração das palavras ditas pelo interrogado.
Nesse sentido, intuindo que se trata de elaboração, ou reelaboração, de palavras de
um sujeito por outro sujeito, ENRICO ALTAVILLA preocupa-se com o tema. 454
Não há regra específica para o caso, mas vale aqui utilizar-se analogicamente do art.
215 do CPP: o interrogante, também na redação do interrogatório, deverá “cingir-se, tanto
quanto possível, às expressões usadas” pelo acusado, “reproduzindo fielmente as suas
frases”. Daí o interesse crescente por meios tecnológicos de gravação dos depoimentos,
que os conservam, com fidelidade, contra eventuais traduções traiçoeiras.
3. no procedimento especial do júri
Duas são as oportunidades de interrogatório do acusado no procedimento especial
dos crimes da competência do Júri: uma durante a fase do iudicium acusationis e outra na
fase do iudicium causae.
A audiência de interrogatório da fase do iudicium acusationes em nada se diferencia
da audiência de interrogatório dos procedimentos ordinário pleno e sumário em sentido
estrito.
Já o interrogatório da fase do iudicium causae apresenta características muito
próprias.
A característica que primeiro salta aos olhos é de que esse ato processual de
interrogatório não se realiza numa audiência de interrogatório, onde somente ele seria
realizado, mas durante ampla sessão de instrução e julgamento.
A mais relevante característica, contudo, é de que o interrogatório do acusado durante
a sessão de instrução e julgamento pelo júri se insere num procedimento acusatório. Ou
por outra: esse interrogatório se realiza no momento mais puramente acusatório do
processo penal de conhecimento vigente no Brasil.
Isso, que é crucial para o estudo desse interrogatório, faz com que se modifique
inclusive o comportamento do juiz que o realiza. Essa modificação de comportamento,
454 ALTAVILLA, Enrico. Psicologia…, p. 41-42.
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psicologicamente auferível, tem uma razão muito simples: o juiz que interroga não é mais
o juiz que julga.
Além disso, o juiz profissional que interroga durante a sessão de instrução e
julgamento do procedimento especial do júri, realiza um ato processual não somente para
sua instrução, mas principalmente para a instrução de juízes leigos, que vêem e traduzem
as reações do acusado diferentemente do que ele próprio faria na mesma situação.
Passam a ter maior importância as reações do acusado, a forma decidida ou relutante
como responde as perguntas, seu tom de voz, tudo, enfim, que é verdadeiramente oral e
visual, do que as palavras documentadas. O desconhecimento das regras jurídicas por
parte dos jurados também faz com que a linguagem do juiz profissional se modifique,
sendo ele obrigado a comunicar-se com o acusado e com as partes, bem como com seu
auxiliar, em linguagem que os jurados compreendam perfeitamente.
Essas diferenças, da maior importância, são salientadas por HERMÍNIO ALBERTO
MARQUES PORTO: “O Juiz singular, quando competente para o julgamento, realizando o
interrogatório, colhe, em confronto constante com a imputação e com pontos de prova
colecionadas nos autos, as respostas do acusado, sempre preocupado com a formação
de seu convencimento ou com a preparação do convencimento de outro juiz togado, e
então também com formação especializada, que venha a presidir o processo quando da
sentença, ambos preparados, ou melhor dizendo, acostumados na avaliação de tal ato
que pode motivar, na instintiva e irrefletida vontade de criar benefícios, respostas que
venham a criar reflexos comprometedores. A postura do Juiz Presidente do Tribunal do
Júri na realização do interrogatório em Plenário, deve estar voltada, e centralmente, para
a informação do jurado, que é leigo e, em regra, sem experiência de tais momentos, por
isso competindo ao Juiz Presidente não olvidar que está sendo o instrumento informativo
de terceiros, também juízes, além de um especial policiamento de suas expressões, pois
podem, então indevidamente, refletir o convencimento pessoal e crítico sobre a versão
defensiva ou parte dela”. 455
A própria manutenção do acusado algemado durante a sessão de instrução e
julgamento do procedimento especial do júri pode se revelar importante na formação do
convencimentos dos jurados, daí porque submetê-la a um critério de estrita
455 PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri…, p. 122-123.
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necessidade. 456
§ 3º Natureza jurídica
a) na doutrina
A natureza jurídica do interrogatório do acusado é questão das mais controvertidas na
doutrina processual penal. O presente estudo se refere, conforme já ficou registrado, ao
aspecto dinâmico da audiência processual penal. Portanto e numa primeira aproximação,
a natureza jurídica do interrogatório ficaria excluída dessa destinação. Contudo, não é o
que ocorre.
Com efeito, da definição da natureza jurídica do interrogatório depende o seu
desenvolvimento: 457 sobretudo no que respeita às relações entre interrogante e
interrogado.
O CPP não responde diretamente a questão da natureza jurídica do interrogatório
processual penal, mas fornece pistas. A primeira delas é a colocação das regras do
interrogatório no capítulo destinado às provas.
Outra pista é fornecida pelo item XI da Exposição de Motivos, quando justifica, entre
outras, a regra do art. 260.
Assim, com base, entre outros, nesse dispositivo, torna-se tarefa da doutrina
processual penal perquirir essa natureza.
De um lado, posicionam-se os que consideram o interrogatório como um meio de
defesa, oportunidade que a lei processual penal defere ao acusado a possibilidade de
defender-se diretamente. Lecionam nesse sentido BENTO DE FARIA, 458 JORGE ALBERTO
ROMEIRO 459 e LOURIVAL VILELA VIANA. 460
De outro, há os que negam, pura e simplesmente, o caráter de meio de defesa ao
interrogatório, afirmando ter ele apenas a natureza de meio ou ato de prova. Assim
ROMEU PIRES DE CAMPOS BARROS, 461 HÉLIO TORNAGHI, 462 ROGÉRIO LAURIA TUCCI, 463 PAULO
456
Apelação criminal n. 112.836-3/8 – TJSP – 6ª Câmara – Rel. Desembargador Nélson Fonseca –
votação majoritária – julgada em 6.nov.91 – RT n. 675 (jan/1992), p. 371.
457
Cf. ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova…, p. 67.
458
FARIA, Bento de. Código…, p. 281.
459
ROMEIRO, Jorge Alberto. Considerações…, p. 43.
460
VIANA, Lourival Vilela. Da confissão…, p. 28-29.
461
BARROS, Romeu Pires de Campos. “O interrogatório do acusado e o princípio da verdade real”, em
Estudos-Hungria (1962), p. 320-323.
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LÚCIO NOGUEIRA, 464 DAVID TEIXEIRA DE AZEVEDO, 465 ADALBERTO JOSÉ Q. T. DE CAMARGO
ARANHA 466 e, com posição crítica, ADA PELLEGRINI GRINOVER. 467
JOSÉ GONÇALVES DA COSTA afirma que, em Portugal, essa é a posição de JOSÉ
ANTÓNIO BARREIROS. 468
Por fim, há os que, com nuances diversas, aceitam ambos os caracteres. 469
VINCENZO MANZINI afirma ser o interrogatório um meio de defesa e apenas uma fonte
de prova, onde o juiz poderá buscar elementos que auxiliarão no seu
convencimento. 470 EDUARDO ESPÍNOLA FILHO parece inclinar-se nesse sentido, ao afirmar
que “examinada a índole do interrogatório, (...) é preciso (...) insistir na afirmação de que,
inquirindo o réu, o seu julgador não visa nem deve visar, em absoluto, a obter, dele, a
confissão do crime”. 471
JOSÉ FREDERICO MARQUES, por sua vez, parte de uma afirmação aparentemente
categórica, para depois tomar seu lugar entre os ecléticos: “O interrogatório do acusado é,
atualmente, meio probatório, pois que, entre as provas, o arrolou o Cód. de Processo
Penal. (...) Mais aceitável se nos afigura o ensinamento de LINCOLN PRATES, de que o
interrogatório é, concomitantemente, meio de prova e ato de defesa.” 472
Ainda com relação ao trabalho da doutrina acerca da natureza jurídica do
interrogatório, é preciso se ter muito cuidado com as lições doutrinárias estrangeiras, 473
462
TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 371-374.
463
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos…, p. 394.
464
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Curso…, p. 146.
465
AZEVEDO, David Teixeira de. “O interrogatório do réu e o direito ao silêncio”, em RT, n. 682
(ago/1992), p. 287.
466
ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova…, p. 67-68.
467
GRINOVER, Ada Pellegrini. “Interrogatório do réu e direito ao silêncio”, em O processo…, p. 95-111.
468
BARREIROS, José Antônio. Processo penal, apud COSTA, José Gonçalves da. “O estatuto do
argüido no projecto de Código de Processo Penal (uma primeira leitura)”, em Cadernos…, p. 251.
469
Assim, além dos citados no texto, MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 264-265 e GRECO
FILHO, Vicente. Manual…, p. 200-201. No caso do processo penal português, cf. DIAS, Jorge de
Figueiredo. Direito…, p. 440-443 e COSTA, José Gonçalves da. Idem, p. 251.
470
MANZINI, Vincenzo. Trattato di diritto processuale penale italiano, 1932, v. 4, p. 161, apud
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 3, n. 402, p. 20.
471
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 3, n. 403, p. 24.
472
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 321. FREDERICO MARQUES dá a seguinte
referência sobre a contribuição de LINCOLN PRATES (na verdade, um aresto do Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, por ele relatado): Revista Forense, n. 114 (nov/1947), p. 218.
473
Sobre a natureza do interrogatório no processo penal italiano, antes do novo Código, cf. PISAPIA,
Gian Domenico. Compendio…, p. 247-252.
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dado que as características de cada interrogatório modificam-se de acordo com cada
legislação e mais: uma pequena regra, por desimportante que possa parecer, modifica a
natureza jurídica do respectivo interrogatório.
b) o direito ao silêncio
Na esteira da análise da tormentosa questão da natureza jurídica do interrogatório,
impende estudar o denominado direito ao silêncio, ou princípio do nemo tenetur se
accusare, ou nemo tenetur se detegere, e sua acepção no processo penal brasileiro.
A primeira regra atinente ao tema é o inciso LXIII do art. 5º da Constituição da
República. A segunda, em grau de importância, é o parágrafo único do art. 187 do CPP,
que esclarece o conteúdo desse direito.
ADA PELLEGRINI GRINOVER, de lege ferenda e muito antes da entrada em vigor da
Constituição de 1988, defendia o “retorno ao direito ao silêncio”, sob o argumento de que
ele, antes de ser uma exigência de justiça, protege a liberdade do acusado. 474
Há um silêncio, caracterizado pela total ausência da palavra. Corresponde à situação
do interrogado que, comparecendo ante o interrogante, não diz uma única palavra,
colocando-se a salvo de contradições eventuais, preservando-se da sobrecarga de
emotividade ou simplesmente negando informações úteis ao interrogante. Essa hipótese,
segundo o parágrafo único do art. 187 do CPP, “não poderá ser interpretado em prejuízo
da defesa”.
Contudo, há uma espécie de silêncio, cuja utilização retórica, pelo princípio do livre
convencimento, não é vedada. Trata-se da ausência de resposta ou do discurso
lacunar. 475
Nesse caso, o interrogado aceitou inicialmente dialogar com o interrogante, mas
diante de alguma pergunta que lhe foi proposta, não consegue responder.
É a hipótese do interrogante que, obtendo do acusado uma resposta num sentido e,
logo depois, outra resposta completamente contraditória à anterior, inquire-o
especialmente sobre essa contradição.
O princípio do livre convencimento permite não só que o interrogante insista na
pergunta acerca da contradição, como também, mantida a lacuna, consigne-a no termo,
para que fique documentada. Mantido o princípio da persuasão racional, contrastável pelo
474 GRINOVER, Ada Pellegrini. “Interrogatório do réu e direito ao silêncio”, em O processo…, p. 95-111.
475 Cf., acerca do discurso lacunar, ALTAVILLA, Enrico. Psicologia…, p. 32-33.
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superior grau de jurisdição, inaceitável que se proibisse a utilização retórica daquela
lacuna. Isso corresponderia a estabelecer uma tábua de provas ao contrário, isto é, a
favor do imputado.
c) solução
A verdade parece estar, realmente, entre os que vêm natureza mista no interrogatório
processual penal.
Com efeito, no Brasil, o interrogatório é imediatamente um meio de defesa e
mediatamente uma fonte de prova, na medida em que dele pode advir a confissão do
acusado, embora esse não seja o seu escopo.
No interrogatório processual penal brasileiro, com efeito, o juiz não deve buscar a
confissão do crime, 476 mas sim outros elementos de convicção e provas que poderá ter
de vir a usar no caso de ter de condenar o interrogado. Trata-se de poder-dever que,
diante do art. 59 do CP, tem sua oportunidade de realização justamente durante o
interrogatório.
Contudo, como configura a oportunidade para que o acusado exponha suas razões,
defendendo-se pessoalmente, o interrogatório
processual penal não se pode deixar de
ser considerado como um meio de defesa.
Também não se pode olvidar, por fim, que o interrogatório realizado na sessão de
instrução e julgamento do procedimento especial do júri é ainda mais acentuadamente um
meio de defesa dado que, conforme ficou acima registrado, quem interroga, ou antes,
quem preside o interrogatório, não é quem
julga, ou ao menos não é quem profere o
principal juízo componente da decisão.
476 Cf., contrariamente a essa idéia, TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 4, p. 378-380.
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Capítulo 3
A atividade crítica na audiência processual penal
Seção A
Conceitos
Denomina-se atividade crítica da audiência processual penal toda a apreciação
juridicamente fundada, nela ocorrida e emanada das partes técnicas, acerca do mérito do
caso em discussão ou do respectivo processo penal condenatório, sob o prisma de sua
regularidade.
Durante a audiência processual penal, essa atividade se realiza nos debates orais
propriamente ditos e nos incidentes e questões de ordem levantados pelas partes
técnicas.
Em sentido amplo, a atividade crítica é postulatória, conforme se percebe do conceito
de JOSÉ FREDERICO MARQUES: “Atos postulatórios são aqueles com que a parte procura
obter do juiz um pronunciamento sobre o mérito da causa, ou uma resolução de mero
conteúdo processual”. 477
Contudo, é preferível a denominação de atividade crítica para as manifestações de
vontade emitidas uma vez iniciado o processo, a fim de separá-la da atividade
propriamente postulatória, ou seja, de pedido de uma sentença de mérito.
Dado o princípio do nulla poena sine iuditio, os atos postulatórios ou petitórios penais,
de impulso inicial do processo penal condenatório, estão submetidos a um regramento
todo próprio (CPP, arts. 28 e 41) estranho aos atos críticos, contenham eles pedido ou
não, praticados durante a tramitação do processo penal condenatório.
Há utilidade nessa distinção, na medida em que o processo penal brasileiro, dominado
que é pelo princípio inquisitório, prescinde, via de regra, de uma nova postulação das
partes para a verificação de uma sentença de mérito.
De fato, ressalvada a exceção da ação penal privada, em que a falta de pedido de
condenação, por parte do querelante, nas alegações finais, torna perempta a ação penal,
a atividade de autor e réu, na audiência processual penal, é essencialmente crítica e
apenas acidentalmente petitória. Tem relevo, uma vez iniciado o processo penal
condenatório, não mais os pedidos de condenação ou de absolvição, mas a análise do
caso, das provas produzidas, ou do próprio processo penal condenatório, realizadas pelas
partes técnicas. Salvo o caso da ação penal privada, dado o fenômeno da perempção,
477 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 84.
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muito pouco importa que a parte técnica não tenha pedido a condenação ou a absolvição,
desde que qualquer dessas conclusões exsurjam da análise que fizeram do caso ou do
processo.
Por outro lado, também pouco importa se as partes técnicas hajam formulado o
pedido de mérito, sem fundamentação jurídica. É o caso, por exemplo, quando o defensor
dativo atua apenas formalmente na defesa de um acusado, sem uma atividade crítica
digna desse nome.
Por tal razão é que se afirma ser fundamentalmente crítica a atividade das partes
técnicas durante a audiência processual penal.
Além disso, é perfeitamente possível afirmar que a crítica, tal como colocada, também
é integrada pela manifestação de vontade das partes no sentido de uma decisão, tenha
ela por objeto o mérito da causa ou não.
O aspecto mais importante da atividade crítica desenvolvida na audiência processual
penal é a análise, sob um prisma jurídico, das provas produzidas, seja no que diz com o
seu conteúdo, seja no que se refere ao modo de sua aquisição, se juridicamente hígido
ou não.
O Ministério Público, nas alegações orais que profere durante a audiência processual
penal que as preveja, examina ora o mérito do caso que submeteu ao juiz, quando
ofereceu a denúncia, ora o próprio processo penal condenatório, sob o prisma de sua
regularidade.
Quanto ao mérito do caso, a diferença relevante é que seu exame pelo Ministério
Público é feito, então, a partir de um ponto de vista diverso do que outrora tivera, quando
deu início ao processo. Naquele primeiro momento, contava apenas com os elementos de
convicção do inquérito policial ou das peças de informação. No exame de mérito feito
durante a audiência processual penal, vez que o Ministério Público é parte técnica com
dever de objetividade – não imparcial, como muitos afirmam, pode manter a mesma tese
do momento da formação da opinio delicti ou modificá-la.
Pode concluir que a tese da denúncia é correta, completa ou parcialmente, caso em
que pedirá julgamento de procedência, total ou não, da pretensão condenatória; ou pode
fazê-lo em sentido diametralmente oposto, pedindo a prolatação de uma sentença
absolutória.
Sem analisar o mérito da causa – ou analisando-o apenas por obediência ao princípio
da eventualidade –a parte técnica pode criticar o próprio processo. Nesse caso, sua
atividade crítica terá por objeto, para usar a expressão de JOSÉ FREDERICO MARQUES, a
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“regularidade formal da instância”. 478
No que se relaciona à atividade da defesa, a análise do mérito, sempre e sempre
favorável ao acusado, mesmo contra sua vontade, 479 por injunção do art. 5º, inciso LV, da
Constituição, convencionou-se denominá-la de defesa de mérito, e a análise do processo
em si, de defesa processual.
Quanto à atividade crítica da defesa, convém distinguir, nos termos de JOSÉ
FREDERICO MARQUES, a defesa dilatória da defesa peremptória: “A defesa do réu pode ser
dilatória ou peremptória. A defesa do mérito é sempre peremptória, pois, se acolhida, porá
fim à relação processual e à lide penal, com a absolvição do acusado. (...) A defesa
processual será dilatória quando apenas ampliar a relação processual, retardando o
pronunciamento jurisdicional sobre o mérito da acusação. Nessa defesa, não tem o réu
por objetivo impedir o julgamento da acusação, mas o de provocar a regularização do
processo. Todavia, de forma reflexa pode dar ela causa a que a instância se finde e que
se extinga a punibilidade (...). Defesa processual peremptória é a que põe termo à relação
processual, desde que seja acolhida, sem que o mérito da acusação fique julgado. (...) A
defesa processual peremptória tem o caráter de objeção, pois independe de pedido do
réu para que o juiz a reconheça. (...) A defesa peremptória pode ser absolutamente
peremptória, ou relativamente peremptória. Esta última obriga a que se instaure nova
relação processual, mas não impede, em absoluto, que, nesse outro processo, o juiz
conheça do mérito do pedido. A defesa absolutamente peremptória, ao revés, torna
impossível, em qualquer hipótese, o exame do mérito”. 480
Esses são alguns conceitos prévios, relevantes para a visão dos caracteres da
atividade crítica das partes técnicas.
478 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 385.
479 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 66.
480 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 200-201.
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Seção B
Caracteres
§ 1º A atividade crítica e os “sistemas”
a) sistema inquisitório
A atividade crítica das partes no processo inquisitório, como não poderia deixar de
ser, é sumamente restringida.
Diversas razões levam a essa característica. Logo em primeiro lugar, a restrição à
atividade crítica vem da ausência de partes, característica do processo inquisitório.
Depois dessa razão, a atividade crítica é também limitada pela ausência de
publicidade, ainda quando referida ao imputado e a outros participantes eventuais do
processo, que no processo inquisitório não freqüentemente não têm pleno acesso nem
mesmo aos autos do processo. 481
De outra parte, a atividade crítica no processo inquisitório tendeu a tomar-lhe a forma
preferida, a escritura, o que, é de se convir, limita-a mais ainda.
Por fim, a atividade crítica é restringida no sistema inquisitório porque, nele, há
evidente predominância da atividade instrutória, deferida ao inquisidor. Nesse sistema, o
que realmente importa ao inquisidor é obter provas, elementos objetivos que o auxiliem na
fundamentação da decisão que pretende tomar.
Quanto ao processo penal misto ocorre fenômeno semelhante. Nesse caso, há partes
e publicidade na relação processual que, entretanto, prefere adotar a escritura – é o que
ocorre com o processo penal brasileiro. Daí que a atividade crítica das partes técnicas é
intermediada pelo escrito e pelo juiz, pois a ele são destinados os arrazoados das partes.
Dado que a atividade instrutória do juiz é predominante no processo misto, de uma
certa maneira prescinde-se da atividade crítica das partes técnicas: a condenação vem do
provado e a absolvição do não-provado. A única atividade “crítica” relevante do processo
e da audiência – quando ela, por exceção, ocorre – é do juiz, ao fundamentar sua
decisão; mas, aqui, a rigor, trata-se de atividade decisória.
Assim, é lícito dizer que a tendência da atividade crítica das partes técnicas no
processo misto, de cunho inquisitório, é de sua redução à condição de um simples
requisito formal.
481 EYMERICH, Nicolau. Manual…, p. 110.
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b) sistema acusatório
No caso do processo acusatório, a atividade crítica das partes técnicas recebe um
estímulo importante, tornando-se, em alguns casos, mais importante do que a própria
atividade instrutória.
Conforme se percebe nitidamente na estruturação do processo acusatório, é ele
concebido como um verdadeiro embate entre partes técnicas colocadas no mesmo nível,
sob a administração do juiz.
Por tal razão, o embate de idéias passa a ser, naturalmente, uma das tônicas do
processo.
Na concepção mais radical do adversary system os debates orais repetiriam a troca
de golpes inerente a qualquer embate esportivo. Está claro que a concepção não é mais
essa, na atualidade. 482 Mesmo no processo penal acusatório tem relevo uma
“colaboração” entre as partes no sentido da obtenção da verdade material.
Mesmo assim, a atividade crítica das partes técnicas no procedimento acusatório é,
provavelmente, o aspecto mais saliente desse sistema.
§ 2º Princípios e regras
a) publicidade
A atividade crítica exercida na audiência processual penal atende melhor o princípio
da publicidade do que aquela exercida por escrito.
Com efeito, as manifestações críticas, uma vez veiculadas em audiência, são desde
logo conhecidas pelas partes técnicas contrárias e pelo juiz. Da mesma maneira com
relação ao público, participante eventual desse momento. Ainda que o público não
compreenda detalhes técnicos da discussão entre promotor e advogados, possui a
capacidade de compreender a essência da discussão. E, como o assunto lhe diz respeito,
é melhor que possa acompanhar tal discussão.
Há quem lamente uma certa “glamourização” do debate jurídico, quando ele ganha
uma audiência maior. Contudo, mesmo que diante de um público mais numeroso as
partes técnicas tendam a mostrar competências que não mostrariam diante de um público
menor, isso não é suficiente para suprimir ou mesmo restringir a publicidade dos
momentos processuais como a audiência.
482 Cf., a respeito dessa concepção, BRENNAN, William J. “The Criminal Prosecution: Sporting Event or
Quest for Truth?”, em Washington University Law Quarterly, (1963), p. 279-295.
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Há, nesse particular, um tão evidente incremento à publicidade que se torna
desnecessário tecer sobre ele maiores considerações.
b) oralidade
É também evidente que a atividade crítica das partes técnicas, quando desenvolvida
em audiência processual penal, assume a forma oral. A discussão, portanto, desenvolvese
através da palavra falada, com a limitação temporal da lei e administrada, construtiva
ou restritivamente, conforme já visto, pelo presidente da audiência.
Vale transcrever a lição de RENÉ A. DOTTI: “Na técnica processual o sistema da
oralidade consiste na soma de atos praticados boca a boca e que se converte em termo
escrito no interesse do registro e da documentação de atos e termos”. 483
Há aqui, porém, um reparo a ser feito à experiência do foro, que revela um
entendimento equivocado do que vem a ser a oralidade.
Trata-se de conceder à documentação, que é instrumental à oralidade, uma
importância que ela, na verdade, não tem. Os atores da audiência processual penal – juiz
e partes técnicas – apegam-se com excessivo vigor aos poderes da documentação, até o
ponto em que ela passa a ter maior importância do que a própria oralidade.
Em termos mais simples, a discussão propriamente dita do caso cede seu lugar a
uma atividade de mera documentação; as partes técnicas, nas suas alegações orais,
limitam-se a ditar palavras para os auxiliares do juiz.
Despreocupam-se em fazer valer as alegações para aquele momento, olvidando-se
de que o que importa é enformar o convencimento do juiz, fornecer-lhe um projeto viável
de sentença.
Está claro que essa deformação vem da ausência de uma regra legal que, como no
procedimento especial do júri, imponha a concentração em toda a sua plenitude,
determinando que das discussões havidas na audiência processual penal resulte,
obrigatoriamente, uma sentença. Assim, como não há, para as partes técnicas, a garantia
de que sairá uma decisão a partir da discussão técnica do caso, a preocupação passa a
ser conservativa: gravar os argumentos para um “consumo” posterior.
Trata-se, contudo, de uma violação da oralidade, que deve enformar todas as
atividades desenvolvidas na audiência processual penal.
483 DOTTI, René Ariel. “Princípios do processo penal”, em RePro, n. 67 (jul-set/1992), p. 87.
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c) imediação
Está claro que a atividade crítica, quando exercida pelas partes técnicas na audiência,
permite uma maior imediação. O contato direto do juiz com as partes técnicas, no
momento mesmo da emissão do pensamento, enseja que se estabeleça um verdadeiro
diálogo, no sentido de ser ele, por definição, direto e potencialmente franco.
Reside precisamente nesse aspecto a força da atividade crítica da audiência enquanto
instrumento de aproximação da verdade material. A mediação do escrito anula as
potencialidades da relação processual penal como forma institucionalizada de diálogo
entre partes técnicas, com discurso jurídico, sobre casos penais concretos.
A Suprema Corte norte-americana tem, nesse aspecto, uma experiência interessante
a apresentar. Lá, como é consabido, as discussões e deliberações são secretas. Os
juízes debatem os casos entre si e decidem-nos sem que qualquer funcionário da
Suprema Corte tenha qualquer participação. Contudo, antes dessas discussões
começarem, os juízes anunciam sessões de argüição do caso em julgamento. Nessas
sessões, os advogados das partes e dos amici curiæ apresentam seus argumentos e são
interpelados pelos juízes. É uma sessão de argüição, no sentido mais puro do termo. Os
advogados devem comparecer a ela preparados para serem confrontados com os
aspectos contraditórios de seus argumentos. Vários juízes da Suprema Corte, como
WILLIAM O. DOUGLAS, HUGO L. BLACK e FELIX FRANKFURTER, entre tantos, notabilizaram-se
por fustigar os advogados durante as sessões de argüição.
d) contraditório
A atividade crítica desenvolvida em audiência processual penal, outrossim, permite
que os argumentos sejam contrastáveis à medida em que vão sendo emitidos. Como a
discussão se desenvolve ao vivo, as partes podem e devem confrontar os argumentos
contrários, diante do juiz, o que, conquanto exija deles uma preparação maior, permite ao
juiz analisar a integridade do caso, sob o prisma do contraditório. Fica claro que o
mandato constitucional do inciso LV do art. 5º resta melhor atendido.
§ 3º A atividade crítica e as partes técnicas
a) Ministério Público
A atividade crítica do Ministério Público, na audiência processual penal, como no
processo penal como um todo, é marcada pela parcialidade,com dever de objetividade.
O agente do Ministério Público não possui, como já se afirmou, dever de
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imparcialidade no processo penal condenatório. Nesse sentido é a lição de JOSÉ
FREDERICO MARQUES, para quem “não há que falar em imparcialidade do Ministério
Público, porque então não haveria necessidade de um juiz para decidir sobre a acusação;
existiria, aí, um bis in idem de todo prescindível e inútil. No procedimento acusatório, deve
o promotor atuar como parte, pois se assim não for, debilitada estará a função repressiva
do Estado. O seu papel, no processo, não é o de defensor do réu, nem o de juiz, e sim o
de órgão do interesse punitivo do Estado”. 484
Nem se diga, a respeito do entendimento manifestado por JOSÉ FREDERICO MARQUES,
que se deve ele ao fato do referido processualista penal adotar a noção de lide no
processo penal. Ao contrário, o trecho do mesmo autor que segue o acima transcrito
deixa claro que sua posição é eminentemente técnica: “o que caracteriza o conceito de
parte não é a parcialidade ou imparcialidade, e sim a titularidade de direitos próprios em
relação ao conteúdo do processo, e a contraposição à função de dirimir o conflito de
interesses e julgar”. 485
Daí porque é preferível a noção de parcialidade, com dever de objetividade. Sendo,
como é, parte, sua atuação é sempre parcial, dado que sustenta, primacialmente, uma
tese de acusação. Impossível, ou desumano, que tivesse um dever de imparcialidade, o
qual é reservado ao juiz – e, mesmo com relação a ele, por vezes contestado. 486 Está
claro, outrossim, que mais um sujeito imparcial dentro da relação processual seria uma
demasia e enfraqueceria, a um só tempo, as posições do autor da pretensão condenatória
e do imputado.
A atuação do Ministério Público, no processo penal, é de parte – e, portanto, parcial –
com dever de objetividade. Isso significa que o dever do Ministério Público é o de atuar
sempre com objetividade no processo penal, analisando sem paixão as provas e demais
elementos de convicção relativos à causa.
Contudo, se concluir, pela análise objetiva e necessariamente técnica de todas as
evidências, que a decisão mais correta há de ser a da condenação, atuará parcialmente –
que não significa “cegamente”, ou mesmo “obstinadamente” – para obter esse resultado.
Essa posição a princípio poderia parecer excessivamente rigorosa e
484
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 40-41.
485
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 2, p. 41.
486
Cf. SOUZA, Artur César de. A parcialidade positiva do juiz e o justo processo penal: nova leitura do
princípio da (im)parcialidade do juiz em face do paradigma da racionalidade do outro (tese de doutorado –
UFPR), Curitiba: edição do autor, 2005.
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descomprometida com uma visão democrática do processo penal. Contudo, ela é
rigorosamente coerente e não abdica de um processo penal democrático, em que a
posição de proteção do imputado não é deixada de lado. Aprofundar agora a discussão
desse aspecto implicaria num indevido afastamento do tema principal; contudo, basta
dizer que também faz parte do entendimento a respeito da posição processual penal do
Ministério Público uma mais correta elaboração do impropriamente denominado princípio
da obrigatoriedade da ação penal pública, que passa a ser visto como uma das muitas
manifestações do princípio da legalidade.
Ao contrário de enfraquecer uma posição democrática diante do processo penal, esse
entendimento a respeito da posição processual penal do Ministério Público fortalece-a. É
que esse entendimento doutrinário acerca da imparcialidade do Ministério Público é, na
prática do foro criminal, retórico. É “confortável”, sem dúvida, para o acusador – para o
acusador apaixonado pelo objetivo de condenar certo acusado, digamos – passar-se por
imparcial. Esse “papel”, que parte da doutrina processual penal 487 insiste em lhe dar,
acaba por fortalecer despropositadamente sua posição processual diante do caso
concreto e, genericamente, as teses de condenação que eventualmente postular. É
deveras intuitivo o desconforto imposto ao imputado de se ver perseguido criminalmente
por alguém que em um momento é seu acusador e em outro é juiz imparcial. Tamanha
fluidez das funções do Ministério Público não pode ser positiva para a garantia de um
processo penal verdadeiramente democrático.
É essa visão indevida de imparcialidade que leva o Ministério Público a atuar como
custus legis durante o processo penal, como se essa atuação fosse possível para quem é
o titular exclusivo da ação penal pública. 488
A prova cabal de que se trata de um entendimento equivocado é de que, diante do
caso concreto, a atuação do Ministério Público como custus legis tem dois pesos e duas
medidas.
Captada a dimensão retórica, de relevância ímpar no processo penal, vê-se que uma
487
Cf. JARDIM, Afrânio Silva. Direito…, p. 66: “No atendimento dos postulados do sistema acusatório, o
Ministério Público atua inicialmente como órgão acusatório, submisso ao princípio da obrigatoriedade da
ação penal pública. Ao depois, diante da prova produzida, deve pugnar pela correta aplicação da lei ao caso
concreto, funcionando como custus legis, já que o Estado não tem qualquer interesse de ver acolhida uma
pretensão punitiva injusta, seja na sua essência, seja na sua quantidade”. Cf., outrossim, MIRABETE, Júlio
Fabbrini. Processo…, p. 317: “Não obstante parte, o Ministério Público deve conduzir-se com
imparcialidade, pois deve defender os interesses da sociedade e fiscalizar a aplicação e execução das leis”.
488
Cf. JARDIM, Afrânio Silva. Direito…, p. 346-352, que sustenta a legitimidade da atuação do
Ministério Público como custus legis, mesmo no processo penal condenatório.
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manifestação do Ministério Público, em fase recursal, depois do recurso voluntário de
qualquer das partes – e, nesse momento, como “parecerista” – tem um peso se for pela
condenação – é vista como uma análise técnica, aceitável ou não, da causa – e tem
outro, muito maior, se for pela absolvição: será vista, na sessão de julgamento, como a
comprovação de que, diante daquele caso, nem mesmo o Ministério Público, instituição
una e indivisível, tem uma uniformidade de entendimento. O resultado é a dúvida e,
concluindo retoricamente... in dubio pro reo.
Perceba-se, por outro lado, que a referência é feita a um dever de objetividade, o que
não implica numa tomada de posição ontológica. Com a noção de dever não se afirma
que o Ministério Público seja imparcial, mas que ele tem, isto sim, um dever de
objetividade; se um determinado órgão do Ministério Público atua com obediência a esse
dever, não é papel da doutrina processual penal definir. Essa posição evita a
instrumentalização retórica do tema.
Assim, a característica da imparcialidade, com dever de objetividade, por parte do
Ministério Público, revelada com nitidez ímpar em sua atuação crítica dentro ou fora da
audiência processual penal, é seu aspecto mais saliente.
b) assistente do Ministério Público
A atividade crítica do assistente do Ministério Público, na audiência processual penal,
obviamente não é marcada pelo dever de objetividade, senão pelo de dedicação
profissional à causa do cliente, ofendido pela prática criminosa.
Mais do que isso, porém, a atividade crítica do assistente do Ministério Público, na
audiência processual penal, é orientada no sentido de patrocinar os interesses do
ofendido de reparação civil pelo crime.
Nesse particular, é exemplar a lição de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO,
perfeitamente baseada no ordenamento jurídico brasileiro: “Entendemos que a razão de
se permitir a ingerência do ofendido em todos os termos da ação penal pública, ao lado
do Ministério Público, repousa na influência decisiva que a sentença da sede penal exerce
na sede civil. Segundo dispõe o art. 91, I, do CP, constitui um dos efeitos da sentença
condenatória tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime. Por isso
mesmo dispõe o art. 63 do CPP que a sentença penal condenatória com trânsito em
julgado constitui título certo e ilíquido em favor do direito à indenização, e, com esse título
executório, o exeqüente não vai discutir o an debeatur, mas sim o quantum debeatur.
Desse modo, salta aos olhos que o Estado permitiu pudesse o ofendido ingressar no
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Processo Penal nos crimes de ação pública, para velar pelo seu direito à indenização. (...)
Conclui-se, pois, que a função do assistente não é a de auxiliar a acusação, mas a de
procurar defender seu interesse na indenização do dano ex delicto. (…) Já, então, se
pode estabelecer a seguinte regra: se da prática de uma infração advier prejuízo para a
vítima, poderá ela habilitar-se no processo como assistente. Se não, não”. 489
Ainda segundo FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, 490 a base normativa de tal
conclusão é a legitimidade para recorrer do assistente do Ministério Público, sumamente
restringida em relação à do próprio Ministério Público. No caso do recurso em sentido
estrito, conforme dispõe o art. 271, caput, do CPP, o assistente do Ministério Público
somente poderá interpor recurso em sentido estrito de sentença de impronúncia (art. 584,
§ 1º) e de declaração de extinção de punibilidade (art. 581, inciso VIII). No caso do
recurso de apelação, o art. 598 do CPP dispõe que o ofendido (ou qualquer das pessoas
mencionadas no art. 31 do CPP) ainda que não habilitado como assistente poderá
interpô-lo, desde que o Ministério Público não o faça, mas, no caso, o recurso não terá
efeito suspensivo.
Eis o ensinamento de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO: “a lei não diz ‘se da
sentença absolutória não for interposta apelação...’. Assim, poderá parecer que o
assistente, desde que o Ministério Público não tenha interposto o recurso de apelo,
poderá fazê-lo, pouco importando seja a decisão recorrida condenatória ou absolutória.
Entretanto o art. 598 não pode ser interpretado insuladamente. Ao analisá-lo, deverá o
intérprete cotejá-lo com os arts. 63, 271 e 584, § 1º, todos do CPP, e se concluirá que, se
o ofendido ingressa no processo, ao lado do Ministério Público, para preservar seu direito
à satisfação do dano ex delicto, é fora de dúvida que, havendo sentença condenatória,
cessará seu interesse no apelo. Assim, se o juiz condena o réu, por violação do art. 129,
caput, do CP, a 3 meses, o ofendido não poderá interpor apelação para majorar a pena,
porquanto, nesse caso, seu direito à satisfação do dano estará garantido (cf. RTJ, 56/877;
RT, 462/381, 462/382, 376/207, 489/327, 489/329, 520/436)”. 491
Dessa maneira, parece claro que a atividade crítica do assistente do Ministério
Público, na audiência processual penal, em que pese a aparente amplitude do art. 271 do
CPP, é também limitada pelo interesse na reparação do dano sofrido pelo ofendido –
489
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 2, p. 499-500 e 504.
490
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 2, p. 500-503.
491 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo…, v. 2, p. 501-502.
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incluído aí o dano moral – causado pelo crime. Entretanto, para o caso da atuação crítica
do assistente do Ministério Público na audiência processual penal, não há, como no caso
da disciplina recursal, regra positiva que a limite. Em outras palavras, mesmo estando
claro que a atuação processual do assistente do Ministério Público é condicionada ao
interesse de ressarcimento do dano ao ofendido, qualquer consideração sua,
transbordante desse objetivo, não poderá ser tida como não emitida.
c) autor técnico privado
Da mesma maneira do que ocorre com a atividade crítica do assistente do Ministério
Público, a do autor técnico privado, na audiência processual penal, também é marcada
pelo dever profissional de dedicação à causa do cliente.
Além disso, à atividade crítica do autor técnico privado, na audiência processual
penal, soma-se a postulação, em sentido estrito, traduzida pelo expresso pedido de
condenação, obrigatório, sob pena de considera-se perempta a ação penal, conforme
EDUARDO ESPÍNOLA FILHO: “no processo sumário, (...) alegações são expostas oralmente
na audiência de julgamento, de que trata o art. 539, § 2º; nessas alegações é feita a
apreciação da prova, com o pedido circunstanciado de condenação dos responsáveis,
pelo delito, e a menção das agravantes que ocorrem; a circunstância de, em ação penal,
cuja iniciativa era privativa do ofendido ou do seu representante legal, não ser formulado
um pedido de condenação, nas alegações finais do querelante, importa em desistência da
ação penal, cuja perempção deve pronunciar-se, por isso”. 492
Essa obrigatoriedade advém, como dito, da cominação de pena de perempção à
omissão de pedido condenatório, nas alegações finais, orais ou não, no art. 60, inciso III,
última figura, do CPP: “Nos casos em que somente se procede mediante queixa,
considerar-se-á perempta a ação penal (…) quando o querelante (...) deixar de formular o
pedido de condenação nas alegações finais”.
Consiste a perempção na perda do direito do querelante de propor ou de manter uma
determinada demanda no juízo criminal contra o querelado.
Eis a conceituação de JOSÉ FREDERICO MARQUES: “a perempção é o nomen juris dado
à extinção da instância, nos processos de ação penal exclusivamente privada, quando o
querelante descumpre os ônus que lhe são impostos para movimentar o processo ou
492 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 1, n. 145, p. 474-475.
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manter presente o seu animus querelandi”. 493
No processo penal brasileiro, dado que está cominada, é confortável definir-se a
perempção como sanção processual. A fim de que seus efeitos de exclusão de nova
demanda fiquem claros, a perempção é causa de extinção da punibilidade. 494
A postulação, na ação penal de titularidade privada, é formada pela queixa, que
propulsiona inicialmente o processo, bem como por uma conduta que demonstra, de
maneira cabal, que mantém-se vivo o animus querelandi do autor técnico privado. Daí ser
possível qualificar-se a promoção da ação penal de titularidade privada como um ato
postulatório complexo.
De tudo isso decorre a inafastável conclusão de que a atividade do autor técnico
privado, na audiência processual penal, além de crítica, também é postulatória, em
sentido estrito, traço a mais que, como visto, a atividade do Ministério Público não possui.
Essa qualidade que é acrescentada à atuação do autor técnico privado, na ação penal
de titularidade privada, é também presente na ação penal de titularidade privada
subsidiária, posto que com características profundamente diversas.
No caso da ação penal de titularidade privada subsidiária, hoje um direito fundamental
(Constituição, art. 5º, inciso LIX), o querelante também tem o dever de formular pedido de
condenação nas alegações orais proferidas em audiência (CPP, arts. 29 e 60, inciso III,
última figura). Contudo, a conseqüência para a ausência de postulação condenatória, na
ação penal de titularidade privada subsidiária, é tão somente processual: o Ministério
Público deve assumir, excludentemente da pessoa do ofendido, sua posição de autor.
Entretanto, essa conclusão, como dito, não exsurge de norma expressa, como ocorre
com a ação penal exclusivamente privada, mas sim da conjugação de outras regras.
O argumento que justifica essa conjugação é de que, sendo hoje a ação penal de
titularidade privada subsidiária um direito fundamental e prescrevendo o art. 29 do CPP
que o Ministério Público retomará (rectius: tomará) o curso do processo como autor “no
caso de negligência”, é absolutamente indispensável que se tipifique em que casos se
configurará essa negligência.
E isso é imprescindível porque, existindo regra constitucional de instituição de direito
493 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 141.
494 Cf. MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 141: “O descumprimento de (...) ônus seria de
molde a provocar a absolutio ab instantia do querelado, não fosse a regra do art. 108, n. IV, do Código
Penal, que inscreveu a perempção entre as causas de extinção da punibilidade, e a do art. 60, do Código de
Proc. Penal, que fala em perempção da ação penal”.
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fundamental a sua limitação somente poderá decorrer de estrita tipificação legal. Não é
possível, diante do art. 5º, inciso LIX, da Constituição, que se conserve um conceito tão
aberto quanto negligência, a pairar sobre o autor técnico privado de ação penal pública.
Daí porque é necessário que a lei processual penal tipifique os casos que configuram
negligência do autor técnico privado. Esses casos são, precisamente, os cuja prática
causa, na ação penal de titularidade privada, perempção. Eles configuram,
verdadeiramente, negligência do autor técnico privado.
Por essa razão, o autor técnico privado, no comando de ação penal pública dada uma
omissão do Ministério Público, perderá esse comando se não pedir a condenação,
expressamente, nos debates orais da audiência processual penal de instrução e
julgamento do procedimento sumário do art. 539 do CPP. 495 Logo, sua atividade na
audiência processual penal é crítica e, outrossim, postulatória em sentido estrito.
d) defensor técnico
Quanto à atividade do defensor técnico, seja público ou não, 496 é preciso deixar claro
ser ela marcada pela parcialidade, sem dever de objetividade, bem como pelo dever de
buscar sempre a melhor posição processual possível ao seu defendido.
Nesse particular, a atividade processual penal do defensor técnico não há de estar
voltada apenas para a busca de uma posição favorável – diante da concreta ameaça do
constrangimento da sanção criminal – mas, muito mais conseqüentemente, para a busca
da melhor posição processual possível para o imputado.
Essa atividade implica, de maneira essencial, na realização de opções. O defensor
técnico opta por diferentes linhas de defesa, de acordo com as características do caso ou
do processo penal condenatório. Tal opção, por conseguinte, assemelha-se, mutatis et
mutandis, à do funcionário público por alguma das soluções possíveis no domínio dos
atos administrativos impropriamente denominados discricionários.
De fato, a atuação técnica do defensor, dentro da dinâmica de um processo penal
condenatório, não vem estritamente tipificada na lei. A escolha que faz o defensor técnico,
495
Bem assim, está claro, embora não seja o tema do presente estudo, no caso de alegações escritas.
496
As figuras do defensor público e do defensor dativo são sui generis. Quanto ao primeiro, ele é um
servidor público, do prisma do direito administrativo, e um funcionário público, para os fins penais, mas sua
atuação é substancialmente privada. Seu dever, aliás, é atuar como a parte privada no processo penal
condenatório, única maneira de preservar o “elo privado” no processo penal condenatório. Quanto ao
defensor dativo, não é ele servidor público, sob o ponto de vista administrativo, mantendo o caráter de
funcionário público, para os fins penais: sua atuação, portanto, é formal e substancialmente privada.
190

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portanto, da melhor tese para a defesa, bem como a preparação de suas linhas mestras
e, além disso, suas manifestações de vontade na realização de negócios jurídicos
processuais, deve ser no sentido já indicado, valendo como parâmetro as regras objetivas
e os princípios do processo penal.
A dúvida razoável, entre uma linha e outra, subtrai a apreciação da opção por parte do
judiciário, no caso de eventual responsabilização do defensor técnico, nada obstante não
se possa negar que, naquela situação, havia uma solução melhor para a defesa.
Acerca do tema, há a lição de TERESA CELINA DE ARRUDA ALVIM PINTO: “Mesmo no
plano da atividade da administração, a liberdade que há, para o administrador, não existe
senão em tese. O caso concreto faz desaparecer esta liberdade. A circunstância de ao
Judiciário nãocaber a análise quanto a qual seria a melhor solução, dentre duas ou três
possíveis, não significa que uma das três não seja ontologicamente, A MELHOR.
Também a dificuldade do intérprete em saber qual das soluções seria a melhor, em face
do caso concreto, não significa que esta MELHOR solução não exista”. 497
Outrossim, a análise das opções jurídicas do defensor técnico implica também em
perguntar-se a doutrina se a ele é lícito, estabelecida uma linha de defesa, alterá-la
durante o curso de uma audiência processual penal. Em tese, modificação desse tipo é
possível, na medida em que as opções, de início acertadas, podem se mostrar
equivocadas no curso de um momento processual rico como a audiência processual
penal.
A modificação da tese da defesa durante a sessão de instrução e julgamento pelo júri
é possível, segundo certo entendimento jurisprudencial: “Nos debates em plenário do Júri,
é lícito à defesa, no ensejo da tréplica, complementar a tese. Seja por reconhecer a falta
de ressonância nos jurados quanto à linha seguida, ou mesmo a superioridade acusatória
na réplica. Ou, mesmo, ocasionalmente, o surgimento de outra faceta que o
desenvolvimento dos debates acaso suscite. Deve-se ter em conta que os debates
tendem à conformação jurídica dos fatos com fundamento nas provas dos autos. Não há,
portanto, violação ao princípio do contraditório na sustentação de nova tese na tréplica
pela defesa. Ao contrário, constitui prejuízo à defesa, configurador de nulidade, o
indeferimento de quesitos relativos àquela tese”. 498
Se uma modificação desse jaez, durante a sessão de instrução e julgamento do
497
PINTO, Teresa Celina de Arruda Alvim. Medida…, p. 108.
498
Apelação n. 86.091-3 – TJSP – 4ª Turma – Rel. Desembargador Ary Belfort – votação unânime –
julgada em 25.jun.90 – RT n. 661 (nov/1990), p. 269.
191

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procedimento especial do júri, é possível, sendo o conselho de sentença, como é,
extremamente sensível a alterações do discurso das partes técnicas, nada obsta que
semelhante entendimento seja consagrado para a audiência processual penal em
processo desenvolvido perante juiz singular.
§ 4º Riscos de uma publicização excessiva das partes técnicas
Outro aspecto importante da atividade crítica das partes técnicas na audiência
processual penal vem de um fenômeno que se poderia denominar de excesso de
publicização das partes no processo penal.
Trata-se de alguma coisa que aos poucos se vem desenhando no horizonte do
processo penal condenatório e que, de um ponto de vista político, seria motivo de reflexão
e estudo.
Efetivamente, nesta quadra da história do país, é urgente a implementação, por parte
da administração pública, de órgãos públicos de defensoria técnica. Nesse sentido, é
exemplar o alvitre de ROGÉRIO LAURIA TUCCI: “Só mesmo uma, tanto quanto possível,
perfeita regulamentação da Defensoria Pública, com a conjugação de um quadro de
profissionais habilitados e capazes e de elementos estruturais e materiais plenamente
satisfatórios, é que poderá transformar esse acalentado sonho em alvissareira
realidade”. 499
Contudo, a defensoria pública tem um defeito estrutural insolúvel: o de ser pública.
Nesse particular, nada pode ser feito: por mais que se lhes concedessem amplíssimas
garantias e prerrogativas, hoje advogadas, seria ela sempre e sempre um órgão público.
Com tal berço, por assim dizer, a defensoria pública representa mais uma ingerência
estatal na estrutura de partes da relação processual penal: daí a referência a uma
excessiva publicização das partes no processo penal.
Com mais essa ingerência, rompe-se o único elo privado na administração da justiça
criminal, que é precisamente o advogado.
A questão, aqui, é política. Sua sutileza torna-a de difícil tradução, na medida em que
a quadra histórica brasileira apresenta, efetivamente, um quadro pavoroso da defensoria
técnica no processo penal. Não somente não há defensores técnicos em número
suficiente, como também não há suficiente qualidade da grande maioria dos que atuam
no foro criminal, dada a deficientíssima formação profissional ensejada pelas faculdades
499 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos…, p. 108.
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de Direito. Com esse quadro histórico, seria lícito opor qualquer obstáculo, ainda que
teórico, à formação de um quadro de defensores públicos condignamente pagos? Decerto
que não. A colocação teórica que ora se faz tem cunho político, com reflexos sutis, porém
relevantes, na estrutura do próprio ordenamento jurídico-penal.
A presença de um elo privado na discussão criminal é alguma coisa de imprescindível.
Esse é o pressuposto teórico de tal análise.
A visão particular, ou privada, do advogado militante, é extremamente relevante na
democratização do próprio processo penal. Sua visão dissociada, porque independente,
do aparelhamento estatal, concede-lhe a autonomia perfeita para advogar pelo imputado.
O fato de não pertencer, como advogado, a órgão público algum, dá a ele autonomia
e independência e ao processo uma saudável “válvula de escape” particular. A estrutura
da discussão ocorrida no processo penal condenatório, ocorre, num prisma político, entre
o Estado-administração (presentado pelo Ministério Público) e o cidadão, individualmente
considerado (presentado pelo imputado e por seu advogado, que o defende
tecnicamente). Assiste a essa discussão o Estado-Juiz, outro órgão público da relação
processual penal.
A potencialidade vivificadora que uma estrutura assim tem para o processo penal
condenatório, posto que muito pouco percebida, é notável.
Entretanto, figurando também no pólo passivo da relação processual penal, como
defensor técnico, alguém também pago pelos cofres públicos, não resta dúvida que
atenua-se o diálogo que o processo penal pode propiciar entre Estado e cidadão.
Com isso, publiciza-se excessivamente a estrutura de partes da relação processual
penal, o que, politicamente, não deixa de ser preocupante. Com a participação, na
atividade crítica da audiência processual penal, somente de servidores públicos,
latosenso, a própria linguagem do Direito Penal irá empobrecendo, paulatinamente. Por
quê? Porque é necessário, num processo penal democrático, também enformador do
ordenamento jurídico-penal democrático, que o cidadão seja presentado e ouvido,
enquanto instituição política. Não se fala aqui, perceba-se, em ouvir a própria sociedade,
cujos interesses punitivos são defendidos pelo Ministério Público. Trata-se de ouvir o
cidadão, instituição política individual. É politicamente necessário – e cientificamente
vivificante – que o Estado ouça o que o “cidadão-argüido” tem a dizer sobre a
conformação daquele ordenamento jurídico-penal que modificou-lhe o status quo através
de uma persecução penal. Mais do que ouvir, deve dialogar, através do Ministério Público,
com ele.
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Um fenômeno deveras preocupante, nos tempos atuais, vem sendo a sofisticação da
linguagem do Direito Penal. Essa sofisticação tem uma fonte importante. Trata-se da
excessiva profissionalização dos personagens do processo penal. Cada vez mais,
integram o processo penal condenatório profissionais ligados à ciência penal.
Enfraquecem-se os elos privados da estrutura de partes.
É por essa razão, entre outras, que o Tribunal do Júri é tão relevante para a
conformação do Ordenamento jurídico-penal. Contudo, num processo penal perante juiz
singular, profissional, portanto, será necessário que se restabeleça ao menos uma
“válvula de escape” para a visão do particular na discussão e análise do caso.
Que valha como uma indagação problematizante: num caso de sonegação fiscal, a
atuação do defensor público (pago pelos cofres públicos, que são financiados pelos
tributos) seria a mesma de um defensor particular? Difícil de dizer, senão no caso
concreto. Contudo, pergunta-se: não haveria aqui, para o defensor público, um conflito,
ainda que muito sutil, entre os interesses de seu defendido – o “sonegador”, que não quer
pagar impostos – e os seus, de ser bem pago pelos cofres públicos? Não se objete que
em casos de sonegação fiscal os acusados usualmente podem pagar pelos serviços
profissionais de advogados. Conforme é óbvio, a defensoria pública é perfeitamente
acionável nesses casos; na hipótese de revelia, por exemplo.
Parece claro que seria politicamente enriquecedor um diálogo entre o Estado,
representado pelo Ministério Público, que corporifica os interesses da sociedade
politicamente organizada, que quer que todos paguem seus tributos, e o cidadão, que não
quer pagar tantos tributos, ou mesmo secretamente, não desejaria pagar tributo algum.
Como a defensoria pública é, decerto, imprescindível, coloca-se um problema: ou
opta-se por deixar aberta uma “válvula de escape” particular, deixando a descoberto os
interesses dos “argüidos”, ou se lhes concede defensor público, com a conseqüência de
publicizar excessivamente o processo penal condenatório.
A solução, com efeito, parece ser no sentido de viabilizar, sim, a defensoria pública,
pagando condignamente seus profissionais. Contudo, parece certamente necessário que
não seja ela hegemônica na defesa dos menos favorecidos. É preciso que, além dela,
tomem parte nesse mister os advogados liberais, procedendo a defesas de acusados sem
condições de pagá-los. Não se trata de caridade, mas de cumprir, cada um, sua parte na
implementação de uma justiça social mesmo através do processo penal. Seria salutar que
a Ordem dos Advogados do Brasil estimulasse uma efetiva atuação de assistência
judiciária, remunerada ou não, por parte de advogados liberais.
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Por outro lado, parece que também seria interessante adotar um sistema de
remuneração, por caso atendido, aos advogados liberais que atuassem na defensoria
dativa. O importante, de fato, é que se criem mecanismos eficientes de defesa dativa,
preservando o caráter substancialmente dialético do processo penal condenatório.
O caso norte-americano é, uma vez mais, notável. Nesse país, ao longo da história,
foram formadas inúmeras associações não estatais, sem fins lucrativos, dedicadas a
defender as assim chamadas liberdades civis. A mais antiga e mais famosa delas é a
“União Norte-Americana das Liberdades Civis” (American Civil Liberties Union – ACLU).
Com o tempo, outras associações se formaram para trabalhar em campos menos amplos,
ligados às mesmas liberdades. Assim, foram formadas a “Liga das Mulheres Eleitoras”
(League of Women Voters – LWV), para lutar pelos direitos das mulheres, a “Associação
Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor” (National Association of Advancement of
Colored People – NAACP), para lutar pelos direitos dos negros, o “Fundo Becket para a
Liberdade Religiosa” (The Becket Fund for Religious Liberty), para lutar pela liberdade
religiosa, entre outras. Mais recentemente, a pena de morte, que ainda resiste nos
Estados Unidos, motivou o nascimento de associações dedicadas a combater a pena de
morte.
Entre elas se destacam a “Coalizão Nacional para Abolir a Pena de Morte (National
Coalition to Abolish the Death Penalty – NCADP), a “Cidadão Unidos para Alternativas à
Pena de Morte” (Citizens United for Alternatives to the Death Penalty – CUADP), o
“Centro Nacional sobre Instituições e Alternativas” (National Center on Institutions and
Alternatives – NCIA), o “Centro de Informação sobre a Pena de Morte” (Death Penalty
Information Center – DPIC), as “Famílias de Vítimas de Homicídio pró-Direitos Humanos”
(Murder Victims’ Families for Human Rights – MVFHR), entre tantas outras. Pois bem.
Uma das muitas estratégias consideradas por essas associações está, por exemplo, a de
fornecer advogados a sentenciados à pena de morte, com o objetivo de comutar-lhes as
penas. Há até associações de médicos contra a pena de morte, que se oferecem para
realizar, gratuitamente, perícias com a finalidade de reverterem as sentenças capitais.
É exatamente essa a idéia. A defesa dos imputados necessitados não é algo que se
possa resolver através de um único mecanismo; e sobretudo através de um mecanismo
estatal. A defensoria pública é uma das principais alternativas, mas não é a única. Muitas
outras hipóteses devem ser consideradas e implementadas. Somente assim se garante,
ao processo penal, o “oxigênio” necessário para sua sobrevivência.
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§ 5º Ritualismo
a) no inquérito policial
A atividade crítica não está regulada de maneira alguma no inquérito policial, o que
poderia fazer concluir que não existe.
Entretanto, uma constatação importante é de ser registrada: embora não prevista nem
regulada e verdadeiramente submetida ao arbítrio da autoridade policial, a experiência
demonstra que, muitas vezes, os efeitos de uma atividade crítica no inquérito policial são
devastadores para o exercício positivo da opinio delicti. É dizer: mesmo que não prevista,
a oportuna inserção de argumentos na fase investigatória introduz, no mínimo, a dúvida,
que mesmo indevidamente é muitas vezes levantada como argumento para o
arquivamento do inquérito ou para a rejeição da denúncia ou da queixa.
b) nos procedimentos comuns
Não há audiência de instrução e julgamento no procedimento ordinário pleno,
dominado pelo princípio da escritura; daí porque talvez pareça incorreto falar-se em
atividade crítica da audiência nesse procedimento.
Entretanto, alguns juízes nele têm realizado uma audiência de instrução e julgamento,
de lege ferenda, com o objetivo de agilizar a tramitação dos processos penais
condenatórios. Essa praxe, dependendo de como seja levada a efeito, não fere qualquer
dos princípios do processo penal, proporcionando uma visão de conjunto do caso em
julgamento.
Quanto aos debates da audiência de instrução e julgamento do procedimento sumário
em sentido estrito, a regulamentação legal limita-se ao aspecto temporal. É o que fazem o
§ 2º do art. 538 e o § 2º do art. 539 do CPP. Aquele dispõe: “Na audiência (...) será dada
a palavra, sucessivamente, ao órgão do Ministério Público e ao defensor do réu ou a este,
quando tiver sido admitido a defender-se, pelo tempo de 20 (vinte) minutos para cada um,
prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz (...)”; este, por sua vez, estabelece: “Ao
querelante ou ao assistente será, na audiência do julgamento, dada a palavra pelo tempo
de 20 (vinte) minutos, prorrogável por mais 10 (dez), devendo o primeiro falar antes do
órgão do Ministério Público e o último depois”.
Não há regulamentação detalhada dos debates orais produzidos durante a audiência
de instrução e julgamento do procedimento sumário em sentido estrito.
Essa, aliás, é a praxe do CPP. Também com relação aos debates produzidos durante
a sessão de instrução e julgamento do procedimento especial do júri não há
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regulamentação estrita, limitando-se a lei a delimitar-lhes o tempo total.
No caso do procedimento sumário em sentido estrito, essa omissão gera uma falsa
dúvida que, entretanto, tem se mostrado importante: os debates da respectiva audiência
de instrução e julgamento devem ser consignados por escrito no termo?
Falsa dúvida porque, não existindo previsão expressa de que deverão ser reduzidos a
escrito, é porque não precisarão sê-lo, ao menos necessariamente.
A prova disso é de que, em se tratando de atos processuais praticados oralmente no
processo penal, a lei sempre cuida de, sendo o caso, determinar sua transcrição no
termo.
Ademais, nunca se desconfiou de que, na sessão de instrução e julgamento do
procedimento especial do júri, o juiz-presidente estivesse obrigado a transcrever os
debates orais que ali se desenvolvem. Uma das razões dessa atitude é a mesma, isto é, a
ausência de norma que determine a transcrição. A outra, decerto mais importante, é de
que, no procedimento especial do júri a lei garante que, regular a relação processual, uma
decisão de mérito coroará a discussão do caso entre as partes técnicas.
Seja como for, no procedimento sumário em sentido estrito não há regra que
determine que a atividade crítica das partes técnicas deverá ser registrada in totum. Daí
poder se inferir, com segurança, que também nesse procedimento o registro detalhado
dos debates orais na ata da audiência não é necessário.
Isso não implica que os argumentos produzidos nesse debate ficarão sem registro.
Essa conseqüência não seria razoável nem juridicamente válida, pois há o interesse, por
parte do órgão judicial de segundo grau de jurisdição de, em sede de recurso, conhecer a
matéria jurídica alegada pelas partes. Esse interesse é evidentemente maior nos casos de
procedimento sumário em sentido estrito do que nos casos do procedimento especial do
júri, dada a regra da soberania dos veredictos deste último (Constituição, art. 5º, inciso
XXXVIII). Por tal razão, sublinhe-se que o teor dos debates orais deve ser registrado. O
problema é, aqui, de sede e de extensão desse registro.
Salvo a utilização de métodos de gravação sonora e visual, que poderiam solucionar
alguns dos problemas de execução da transcrição, a sede mais apropriada para um
registro escrito e resumido dos debates é, em verdade, a sentença que no procedimento
sumário em sentido estrito deve ser prolatada na audiência ou pouco depois. O art. 381,
inciso II, do CPP, a propósito, determina que conste da sentença “a exposição sucinta da
acusação e da defesa”.
Essa assertiva, está claro, deve ser considerada cum granum salis. Não é válida,
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admita-se, para os casos em que, finda a audiência de instrução e julgamento, o juiz
determina que os autos do processo lhe venham conclusos e leva muito tempo para
prolatar a sentença. Um hiato considerável faria com que o juiz esquecesse das provas
produzidas e de tudo o que foi discutido pelas partes, caso em que a documentação ser-
lhe-ia útil.
Essa atitude, porém, é patológica, pois o § 3º do art. 538 do CPP determina que se o
juiz “não se julgar habilitado a proferir decisão” deve prolatar sentença escrita em cinco
dias, que é um prazo razoável para que o conteúdo do que lhe foi mostrado e dito na
audiência esteja, ainda vívido. Por essa razão, não invalida o raciocínio.
Se na audiência de instrução e julgamento respeitarem-se os princípios da oralidade e
concentração, as alegações orais não precisarão ser consignadas no termo, bastando
que o sejam, resumidamente, no relatório da sentença. Essa providência preservará, para
“consumo” pelo órgão judicial de segundo grau de jurisdição, o conhecimento da matéria
jurídica alegada pelas partes. Dessa maneira, preservar-se-á a oralidade desse momento
processual.
Nesse passo, é exemplar o seguinte entendimento jurisprudencial: “A deliberação do
magistrado, em audiência de instrução e julgamento, para que os debates orais sejam
dirigidos diretamente a ele, cujo resumo será ditado ao escrevente e consignado em ata,
está em perfeita sintonia com a letra da lei (art. 538, § 2º, do CPP). Este é o sistema do
Código, que a praxe forense, pela sobrecarga de serviço, alterou para fazer os debates
diretamente ao escrevente. Esta praxe é aceitável quando os profissionais trabalham em
harmonia e existe confiança recíproca. Perdida essa harmonia, deve-se retornar à letra da
lei, nos seus rígidos conformes, descabida qualquer argumentação no sentido de que tal
providência importa inversão tumultuária da ordem dos atos e fórmulas legais do
processo”. 500
Ainda com relação aos debates, a doutrina é pacífica em que neles não se admite
réplica nem tréplica. 501 O que se tem, unicamente, é a prorrogação dos tempos de
sustentação oral da acusação e da defesa.
500
Correição parcial n. 609.887-3-Taquaritinga – TACrimSP – 2ª Câmara – Rel. Juiz Pedro Gagliardi –
julgada em 10.mai.90 – indeferida – votação unânime – RT n. 659 (set/1990), p. 286-287.
501
Cf. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código…, v. 5, n. 1.060, p. 330 e MIRABETE, Júlio Fabbrini.
Processo…, p. 550.
198

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c) no procedimento especial do júri
Está precisamente nos debates orais da sessão de instrução e julgamento do
procedimento especial do júri sua mais saliente expressão.
Isso ocorre por diversas razões.
Em primeiro lugar, pelo que os debates orais da sessão de instrução e julgamento
desse procedimento representam enquanto “espetáculo”.
Em segundo lugar, porque a estrutura dessa sessão de instrução e julgamento, oral e
altamente concentrada, permite uma visão de conjunto do caso e a perspectiva, geradora
de tensão, para todos os que dela tomam parte, de uma sentença de mérito imediata.
É o que escreve HERMÍNIO ALBERTO MARQUES PORTO: “A cumulação, na instrução em
Plenário e nos debates, dos sistemas de concentração, oralidade e imediatidade, oferece
condições especiais de expressividade às provas produzidas e debatidas à frente dos
jurados, e a coloração envolvedora dos debates em nada é desmerecedora como meio
valorativo das provas”. 502
Mas não é somente nesse momento caracteristicamente acusatório do procedimento
que é “encenado” o caso pelas partes, para melhor intelecção pelos juízes leigos. A
“encenação” se inicia desde os momentos em que, conforme o art. 442 do CPP, o
escrivão procede à chamada dos jurados e que o juiz-presidente, constatando a presença
de ao menos quinze deles, declara instalada a sessão.
Já a partir desse momento inicial passa a ser verdadeiramente “encenado” a causa
em julgamento. Contudo, é no momento do início dos debates orais que essa
“encenação” passa a aumentar, em proporção até então inocorrente, de intensidade
espetacular e emocional.
Está claro que a importância desse momento tem sido freqüentemente exagerada,
sobretudo pelas partes, na experiência do foro criminal. O exagero, nesse caso,
corresponderia a dar um aspecto por demais dramático e retórico a esses debates,
desconsiderando o efeito que a produção direta de provas perante os jurados pode
produzir em termos de convencimento.
Quanto à sua posição durante a sessão de instrução e julgamento do procedimento
especial do júri, os debates orais se situam após a inquirição de testemunhas. É o que diz
o art. 471, caput, do CPP: “Terminada a inquirição das testemunhas, o promotor lerá o
libelo e os dispositivos da lei em que o réu se achar incurso, e produzirá a acusação”.
502 PORTO, Hermínio Alberto Marques. Júri…, p. 120-121.
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Ainda segundo o CPP, os debates orais dividem-se em cinco partes: a leitura do libelo
e dos dispositivos legais fixados pela pronúncia, a acusação, a defesa, a réplica e a
tréplica.
Os limites temporais dessas partes, à exceção da primeira, são estabelecidos pelo art.
474, caput, do CPP: “O tempo destinado à acusação e à defesa será de 2 (duas) horas
para cada um, e de meia hora a réplica e outro tanto para a tréplica”.
A existência de mais de um órgão acusador ou de mais de um órgão defensor, para
um só réu, não excepciona essa regra. É o que diz o § 1º do art. 474 do CPP. A exceção
a essa regra vem estabelecida no § 2º desse mesmo dispositivo, que aumenta em uma
hora os tempos da acusação e da defesa e dobra os de réplica e tréplica no caso de
estarem sendo julgados ao menos dois réus.
A leitura do libelo e dos dispositivos legais fixados pela pronúncia, que precede a
acusação, tem sido considerada uma formalidade não-essencial.
A acusação tem forma oral, mas livre de peias formais. A única peia de caráter formal
tem sido imposta por parte da jurisprudência e se relaciona com a prestação de
testemunho pessoal por parte do órgão acusador.
Diz a jurisprudência que ao órgão acusador e ao órgão defensor não é dado
testemunhar em favor ou contra a parte em julgamento.
Essa regra jurisprudencial tem sua fonte na parte final do art. 258 do CPP, que
estende ao Ministério Público, no que lhe for próprio, as regras de suspeição e
impedimento do juiz. Se revela-se testemunha, pois sabe, por experiência própria, de
dados fáticos do fato criminoso, torna-se impedido de tomar parte dele, sendo nulo o
processo desde quando passou a nele atuar.
Quanto ao autor técnico privado e ao defensor técnico, essa regra não vige, sendo
possível, portanto, que o representante da parte dê seu testemunho sobre o caso em
questão; não há, enfim, nulidade nisso. 503
No mais, há as regras delimitadoras do conteúdo dos debates orais que dizem com o
cometimento de crimes contra a honra, 504 contra a administração da justiça 505 etc., regras
503
RT 517/295, 383/172, 358/229, 444/316, 504/315-616.
504
O art. 142, inciso I, do CP, exclui o caráter criminoso da injúria e da difamação cometidas pelas
partes e seus órgãos técnicos na discussão da causa; a calúnia permanece materialmente típica.
505
O art. 330 e o art. 331 do CP, por exemplo.
200

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que, a toda evidência, não foram revogadas. 506
Está fixado que há conseqüências penais para certas manifestações das partes
técnicas durante os debates orais. Quid iuris se, no sentir do juiz-presidente, qualquer
delas fizer pronunciamentos inexatos, ou mesmo mentir para os jurados? Pode o juiz
togado interferir em qualquer das fases dos debates, esclarecendo os jurados de que
aquela afirmação é imprecisa ou mesmo inverídica? Pode punir o órgão do Ministério
Público ou o advogado?
Para uma resposta, o primeiro dado a ser considerado é o da destacada posição do
juiz-presidente, a qual, aliada à sua condição de imparcialidade, poderia conferir
credibilidade insuperável às suas afirmações, virtualmente condenando ao fracasso a tese
da parte por elas contrariada. Admitir hipóteses amplas de intervenção do juiz nos
debates é assumir riscos de vulnerar direitos e garantias individuais ou de inviabilizar a
aplicação da lei penal.
Contudo, e embora o juiz-presidente deva velar para que os jurados estejam
perfeitamente esclarecidos no momento de julgar, seu prestígio desproporcionalmente
maior do que o das partes técnicas, faz com que qualquer intervenção sua nos debates
seja potencialmente deletéria.
Admitir intervenções, deixando-as ao sabor da maior ou menor habilidade ou
refinamento do juiz-presidente é simplesmente imprudente. Qualquer excesso que
pratique pode desmoralizar a parte técnica que está com a palavra, ou dar-lhe forças
descomunais para seguir adiante, aniquilando a tese da parte contrária.
Além disso, diga-se que há momento processual próprio para comunicação do juizpresidente
com os jurados. Isso advém da competência do juiz-presidente no
procedimento especial do júri. Com a repartição da competência pelo objeto do juízo, o
juiz-presidente é o responsável pela prolatação da sentença e dosimetria da pena, bem
como pelo esclarecimento dos jurados em matéria de fato e pela sua orientação jurídica.
Assim, a resposta para essa questão há de ser negativa. Somente as hipóteses dos
arts. 478, parágrafo único, e 479, primeira parte, do CPP autorizam resposta contrária. No
caso do art. 478, parágrafo único, “se qualquer dos jurados necessitar de novos
esclarecimentos sobre questão de fato, o juiz os dará, ou mandará que o escrivão os dê,
506 Cf., a respeito de normas penais aplicáveis aos advogados, a ADI n. 1.127-DF – STF – Rel. Min.
Marco Aurélio – Rel. para o acórdão Min. Ricardo Lewandowski – julgada em 17.mai.2006 – parcialmente
procedente – votação majoritária – DJU, Seção 1, A respeito dos advogados, em 2006 o STF terminou de
se pronunciar na ADI 1.127, pela aplicabilidade da hipótese de desacato ao advogado em face do juiz.
201

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à vista dos autos”. No caso do art. 479, o código determina que o juiz, antes de cada
votação, leia os quesitos e explique “a significação legal de cada um”.
Aliás, a redação do art. 478, caput, é intuitiva: “Concluídos os debates, o juiz indagará
dos jurados se estão habilitados a julgar ou se precisam de mais esclarecimentos”.
Se a lei autoriza essa comunicação e transmissão de informações do juiz-presidente
para os jurados e vice-versa findos os debates, é porque durante seu desenvolvimento ela
é vedada.
202

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Seção C
Fundamento Político
A atividade crítica realizada na audiência processual penal, pelas partes técnicas,
possui um relevo político dos maiores e que, entretanto, não teve jamais da doutrina
processual penal um tratamento à altura.
Perceba-se que sendo o processo penal, como é, o instrumento de aplicação do
ordenamento jurídico-penal, suas características influenciarão este ordenamento.
Mais do que uma relevância casuística, isto é, limitada a determinados fenômenos, 507-
508 o processo penal terá influência direta, mas nem sempre percebida, sobre a própria
fisionomia do ordenamento jurídico-penal.
É o que ocorre hoje, claramente, com a atividade crítica das partes técnicas no
processo penal brasileiro.
Conforme tem sido repisado freqüentemente, o processo penal brasileiro é misto, isto
é, embora disponha de partes em sentido formal e se desenvolva publicamente, adotou
mecanismos importantes do sistema inquisitório. Algumas das características do sistema
inquisitório que o processo penal brasileiro adotou já foram enumeradas: a adoção de um
procedimento investigatório prévio, de matiz puramente inquisitório; a adoção da
presidencialidade na atividade instrutória; a adoção de um importante “princípio
inquisitório”, que permite ao juiz investigar, em busca da verdade material; a autorização
ao juiz de julgar além do pedido pelo autor.
Somando-se a essas características a adoção, como regra geral, da escritura, que
determina a realização de todos os mais importantes atos processuais por escrito, tem-se,
como resultado, um aspecto amorfo, ou até, se for permitido o termo, insosso do processo
507
Cf., aspectos da influência do processo penal sobre o ordenamento penal substantivo e sobre a
própria dogmática penal em DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 23-36: “Há, na verdade, desde logo,
diretrizes fundamentais do pensamento jurídico-penal – umas já plenamente realizadas, outras que se
afirmam ainda só no plano de lege ferenda – que são, totalmente ou pelo menos em boa parte, o resultado
de necessidades imperiosos feitas sentir ao nível do processo penal. Há, depois, modificações que se
operaram ou se advogam no seio do direito penal e se apresentam como puras conseqüências de
modificações introduzidas no direito processual penal. Há, finalmente, soluções de problemas jurídicoprocessuais
que, quando consideradas em polaridade dialética com o direito penal, podem contribuir de
modo relevante para o esclarecimento de intrincados e discutidos problemas de direito substantivo”.
508
Cf. precisa informação acerca das influências do processo inquisitório sobre o Direito Penal em
GRINOVER, Ada Pellegrini. Liberdades…, p. 36: “Os defeitos do sistema inquisitivo são evidentes; o que
não deve levar ao esquecimento de certos progressos que por seu intermédio o direito processual penal
pôde realizar: uma avaliação mais rigorosa das provas, a separação da fase instrutória da fase de debates,
a importância do elemento psicológico do crime, o encaminhamento para um direito penal livre de
intromissões de origem privada, progressos esses que permaneceram definitivamente adquiridos pela
ciência penalística” [sem grifo no original].
203

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penal condenatório no Brasil.
Essa “ausência de cor” ou “sabor”, por assim dizer, do processo penal brasileiro, tem,
conforme já visto, um fator importante na atividade instrutória, dado que os amplos
poderes-deveres instrutórios do juiz fazem com que não exista uma efetiva autoresponsabilidade
probatória para as partes técnicas, verdadeiramente tuteladas pelo juiz.
Contudo, esse amorfismo tem também um fator igualmente relevante na atividade
crítica das partes técnicas, que no processo penal brasileiro se desenvolve principalmente
por escrito.
Não podem restar dúvidas de que o processo penal brasileiro optou por estruturar-se
com um respeito quase reverencial por algo que, por ora, convém denominar de dogma
do distanciamento. 509
Esse dogma dispõe que na relação processual, o juiz será sempre, além de seu
presidente, o “prisma” através do qual todas as manifestações e atividades deverão
passar. A imediação, no processo penal brasileiro, é deferida ao juiz; somente como
exceção as partes técnicas terão qualquer possibilidade de imediação, seja com as
provas, seja umas relativamente às outras.
No caso da atividade instrutória, está claro que a imediação somente se verifica entre
o juiz e as provas, dela não participando as partes técnicas, com a importante exceção do
júri.
Da mesma maneira essa ausência de intermediação se verifica na atividade crítica
das partes técnicas.
A adoção de alegações finais escritas no procedimento-padrão para os crimes mais
graves, bem como em inúmeros outros procedimentos, é um evidente exemplo desse
distanciamento desejado pela legislação processual penal.
Como subproduto desse distanciamento, tem-se que mesmo em processos relativos a
casos penais de diminuta complexidade as partes técnicas freqüentemente optam por
alegações finais escritas, na forma de memoriais, quando ser-lhes-ia muito mais útil o
oferecimento de alegações orais.
Ainda é um subproduto dessa opção o imenso apego do juiz e das partes técnicas
pela documentação exagerada, que leva a situações de verdadeiro non sense, se o termo
ríspido é permitido. Compreendendo muito mal a oralidade, tanto os juízes quanto as
509
RAMOS, João Gualberto Garcez. “Observações acerca da instrução criminal no Brasil”, em RPGR,
n. 3 (abr-jun/1993), p. 105.
204

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partes técnicas, mesmo diante de alegações orais, pretendem que elas sejam
documentadas à exaustão, em todos as suas palavras, como se as alegações orais das
partes técnicas fossem apenas um ditado para os escreventes.
O debate jurídico direto, franco e aberto em torno do caso, desaparece debaixo de
toneladas de papel. Eis aí onde se perdem a “cor” e o “sabor” do Direito Penal: nos
volumosos autos e nas intermináveis petições e alegações escritas.
A relevância política da atividade crítica das partes técnicas na audiência processual
penal é ensejar um verdadeiro debate jurídico acerca das normas penais e de suas
conseqüências para a sociedade.
É preciso que se compreenda a relação processual penal, no aspecto da atividade
crítica das partes técnicas, como uma verdadeira discussão de todos os aspectos
jurídicos e políticos do respectivo caso. A doutrina processual penal, por muitos anos,
prestigiou o aspecto reconstrutivo do processo penal condenatório, definindo-o como a
“reconstituição histórica do fato pretérito representado pelo crime”.
Nesse prestigiamento, inevitável, aliás, porque não se pode pensar numa relação
processual que não pretendesse a reconstituição histórica do fato criminoso, esqueceu-se
a doutrina processual penal de que o processo penal é, também, discussão. Assim, mais
do que pretender a pura e simples reconstituição histórica do fato criminoso, o processo
penal condenatório também visa o debate jurídico acerca desse fato.
Dir-se-á que o debate gira em torno da reconstituição histórica do fato criminoso,
ensejada pela instrução criminal, razão pela qual a atividade instrutória é, ainda o objetivo
magno do processo. Contudo, embora a preeminência dessa atividade tenha muito de
verdadeiro, é preciso que de uma vez por todas seja assumida pelo Direito Processual
Penal a lição de NILO BAIRROS DE BRUM, no sentido de que a prova também possui o que
denominou de dimensão argumentativa: “a prova pode ser tudo (...) mas o que nos
preocupa (...) é a dimensão argumentativa da prova. É a forma que a prova assume nos
discursos judiciais, principalmente na sentença do juiz. É na forma de argumento que a
prova aparece nos arrazoados da defesa ou da acusação. Nestes, a prova é usada para
convencer o juiz, para persuadi-lo a tomar determinadas decisões. É na forma de
argumento que a prova aparece na fundamentação da sentença, quando o juiz procura
justificar sua decisão perante as partes, os tribunais e a comunidade jurídica. (...) A
reflexão acerca da dimensão retórica da prova leva-nos a concluir que, ao contrário do
que se costuma pensar, a fixação do fato sub judice não está determinada unicamente
por juízos descritivos, mas principalmente por juízos de valor e que a legitimação das
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decisões judiciais passa pela justificação persuasiva também no que se refere à esfera
fática”. 510
Em outras palavras, essa importante lição de NILO BAIRROS DE BRUM implica em
assumir que mesmo a mais evidente reconstituição histórica realizada por um processo
penal condenatório não é completamente imune a uma manipulação argumentativa. Vem
daí a relevância do estudo da atividade crítica das partes técnicas na audiência
processual penal.
É preciso que se compreenda que a audiência processual penal é um momento da
maior importância para um exercício mais efetivo da crítica pelas partes técnicas. O nãoaproveitamento
desse momento processual para o exercício de verdadeira atividade
crítica, consubstanciada no debate franco de idéias, coordenado construtivamente pelo
juiz, enseja um empobrecimento do ordenamento jurídico-penal e da dogmática penal em
diversos e relevantes aspectos. A linguagem do Direito Penal é um deles.
É mais do que preciso que se torne preocupante para a doutrina penal brasileira a
realidade de que a esmagadora maioria das teorias penais veiculadas no Brasil é
importada de dois países, basicamente: Alemanha e Itália. Mais preocupante ainda é que
algumas vezes essas teorias são importadas sem um juízo crítico.
Indo um pouco mais além na análise dessa realidade, tome-se o exemplo da
inexigibilidade de conduta diversa, formada a partir da conjugação das atividades críticas
da doutrina e da jurisprudência alemãs, pouco antes do início deste século. 511
É mister reconhecer que, na evolução de uma ciência aplicada como é o Direito
Penal, o trabalho acadêmico não é suficiente: é preciso que seja ele submetido à
experimentação, bem como a uma avaliação por parte da política criminal.
Especificamente com relação a certa fase da dogmática alemã, precisamente a que
produziu a Teoria Finalista da Ação – alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial,
portanto – WINFRIED HASSEMER, que a denomina de “fase da dogmática abstrata”, escreve
o seguinte: “Os traços marcantes desta etapa, nomeadamente a concentração em
fundamentos práticos da disciplina e a inclinação para a solidificação hermética dos
enunciados científicos, constituíram-se num veneno para qualquer relevância políticocriminal
desse tipo de ciência penal: Política criminal exige não tanto concentração nos
fundamentos teóricos, mas muito mais a sensibilidade para uma “ciência penal total”, aí
510
BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 70-71.
511
Cf. CERNICHIARO, Luiz Vicente e COSTA JÚNIOR, Paulo José. Direito…, p. 13.
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compreendidos os dados empíricos da realidade sancionatória ou do desenvolvimento e
controle sobre as condutas desviantes, aí compreendido também o interesse por
modalidades novas ou alternativas de sanção, pela ação conjunta do Direito e processo
penal, pela integração de Direito Penal, Direito trabalhista e previdenciário, política
habitacional, políticas da juventude e da saúde pública. Para isto a Dogmática
academicista encontrava-se pessimamente equipada”. 512
É indispensável que as teorias penais ganhem o judiciário como terreno à discussão.
Mas é preciso também que o processo penal enseje essa discussão. E, nesse particular,
a honestidade científica se impõe: a escritura tem se revelado insuficiente para possibilitar
uma evolução do Direito Penal em termos aceitáveis.
A fim de, uma vez mais, legitimar politicamente tanto o estudo quanto a experiência da
atividade crítica na audiência processual penal, com a imediatidade e franqueza que
forem de obtenção possível, vale retomar o conceito de castração, aplicado à linguagem,
conforme a precisa colocação de LUIS ALBERTO WARAT: “Ela é, muito mais que corte, (o
seu lado passivo), um direcionamento permanente em todas as formas do cotidiano. Ela
ocupa plenamente todos os lugares através do empanzinamento da linguagem. Daí poder
ser captada como a esteriotipação dos desejos. (...) Somos sujeitos castrados quando
não sentimos a necessidade de um confronto com o instituído, quando não vemos a
importância de expor os poderes estabelecidos frente aos conflitos que os desestabilizam,
quando não podemos fazer (porque não percebemos a necessidade) uma prática
descentralizada e desierarquizada do político e, sobretudo, na medida em que não
sabemos transformar o político e o saber em um espaço simbólico sem proprietários”. 513
Eis aí a tarefa política mais importante do estudo da atividade crítica da audiência
processual penal: superar a castração simbólica operada pela univocidade da linguagem
do Direito Penal e, em grande medida, causada pela experiência com o princípio da
escritura no processo penal condenatório no Brasil.
Em texto já clássico, NELSON HUNGRIA aborda esse tema, intuindo o mesmo
empanzinamento da linguagem de que trata LUIS ALBERTO WARAT. Não há dúvida de que
a sofisticação vazia de conteúdo da linguagem do Direito Penal, contra a qual faz
candente libelo, muito tem de relação com a predominância da escritura no processo
penal condenatório brasileiro. Nesse passo, suas observações são exemplares: “Quando
512
HASSEMER, Winfried. “História das idéias penais na Alemanha do pós-guerra”, em RInfoLeg, n. 118
(abr-jun/1993), p. 251-252.
513
WARAT, Luis Alberto. A ciência…, p. 17.
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hoje se abrem livros de doutrina penal, que parecem representar tramas aracnídeas para
a complicação de idéias como um fim em si mesma, já não mais se reconhece aquele
direito aquecido do calor da alma humana e que era o direito penal na época do
iluminismo e no edificante século XIX. O direito penal hodierno alheou-se à essência e à
lição cotidiana dos fatos humanos e sociais, desligou-se de suas próprias fontes de seiva,
e tende-se a privar-se radicalmente do seu élan emocional, da sua profunda sensibilidade
ética, para abastardar-se na interminável tessitura de deduções silogísticas, de distinções
e subdistinções de uma dogmática que constrói no terreno das abstrações, a milhas de
distância do espetáculo e da efervescência do mundo. (...) Ciência penal não é só a
interpretação hierárquica da lei, mas, antes de tudo e acima de tudo, a revelação do seu
“espírito” e a compreensão do seu “escopo”, para ajustá-la aos fatos humanos, a almas
humanas, a episódios do espetáculo dramático da vida”. 514
Recriar esse “espetáculo dramático”, através da reconstituição dinâmica e não
segmentalizada da ocorrência criminosa, é o que a audiência processual penal pretende.
E, através da atividade crítica acerca desse fato, tão oral e viva quanto sua ocorrência,
reaproxima-se a linguagem jurídica do instrumento de análise, que é o Direito Penal, da
riqueza dramática a que faz menção NELSON HUNGRIA e que se constitui no seu cerne.
514
HUNGRIA, Nelson. “Os pandectistas do Direito Penal”, em HUNGRIA, Nelson e FRAGOSO, Heleno.
Comentários…, p. 357-358 e 368.
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Capítulo 4
A atividade decisória na audiência processual penal
Seção A
Conceitos
Seguindo a sistemática até aqui adotada, impõe-se a tarefa de estabelecer alguns
conceitos básicos. O primeiro deles se refere à sentença penal.
Diversos são as definições com que se pode operar. Por exemplo, segundo EUGENIO
FLORIAN, “em substância, a sentença é a definição da relação jurídica processual (total ou
parcialmente) ou da relação jurídica objeto principal do processo (e das acessórias) ou
das duas conjuntamente”. 515
Já GIAN DOMENICO PISAPIA apresenta uma definição, por assim dizer, “engajada
ideologicamente” e que corresponde à visão tradicional do ato decisório no âmbito do
processo penal: “A sentença é o ato fundamental no qual a jurisdição se exprime em toda
a sua plenitude, porquanto com ela o juiz interpreta e realiza a vontade da lei, com um ato
destinado a adquirir o valor de ‘coisa julgada’ e, portanto, de verdade judicial vinculante
para todos”. 516
No mesmo sentido posiciona-se JOSÉ FREDERICO MARQUES, que a define como sendo
o “instante jurisdicional básico da fase de cognição do processo penal condenatório, (...) o
ato de composição do litígio ou causa penal, em que o preceito normativo, imposto pela
ordem jurídica, se transforma em preceito concreto e específico”. 517
NILO BAIRROS DE BRUM, analisando conceitos como os de GIAN DOMENICO PISAPIA,
JOSÉ FREDERICO MARQUES e E. MAGALHÃES NORONHA, 518 que transcreve, faz-lhes a
seguinte crítica: “embora tenham pretensões de objetividade, seus autores escamoteiam
sentidos retóricos nessas definições. Uma leitura ideológica dessas definições denuncia
que por trás das definições (...) escondem-se tendências formalistas que rejeitam a
pessoa do juiz como órgão criador de direito para sugeri-la como mero canal entre o
515
FLORIAN, Eugenio. Elementos…, p. 400-401. Trecho original: “en substancia, la sentencia es la
definición de la relación jurídica procesal (total o parcialmente) o de la relación jurídica objeto principal del
proceso (y de las accesorias), o de las dos conjuntamente”.
516
PISAPIA, Gian Domenico. Compendio…, p. 406. Trecho original: “La sentenza è l’atto fondamentale
in cui la giurisdizione si esprime in tutta la sua pienezza, in quanto con essa il giudice interpreta e realizza la
volontà della legge, con un atto destinato ad acquistare il valore di “cosa giudicata” e cioè di verità giudiziale
vinculante per tutti”.
517
MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 19.
518 NORONHA, Magalhães. Curso…, p. 203: “Sentença é a declaração judicial do direito no caso
concreto”.
209

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ordenamento jurídico positivo e o fato sub judicie. Tal postura serve à conservação do
modelo social cristalizado no direito positivo legislado”. 519
Assim, acolhendo a crítica, dois passam a ser os critérios de conceituação da
sentença que serão válidos ao estudo da atividade decisória na audiência processual
penal.
O primeiro deles diz com a operação mental subjacente à prolatação da sentença.
Nesse caso, há que se buscar uma definição de sentença que prestigie o elemento
volitivo do juiz, em detrimento, embora não o anule, do seu elemento puramente
intelectivo.
No mesmo sentido segue a análise de PIERO CALAMANDREI, que define a justiça ou,
mais propriamente, a sentença justa como a “criação que (e)mana da consciência viva,
sensível, vigilante, humana. É precisamente esse calor vital, esse sentimento de contínua
conquista, de vigilante responsabilidade que o juiz tem o mister de apreciar e de
desenvolver”. 520
O outro critério prestigia, por sua vez, o aspecto dinâmico da sentença penal,
favorecendo a idéia de atividade decisória. É o caso da definição de FRANCESCO
CARNELUTTI que, partindo do conceito de “deliberação” – vendo-a diferentemente,
conforme seja singular ou colegiada – chega ao de sentença: “A deliberação, seja ela
singular ou colegiada, resulta da solução, afirmativa ou negativa, das diversas questões,
de ordem ou de mérito, de fato ou de direito, em que se decompõe a questão penal, e
assim conduz a uma declaração de certeza, de ordem ou de mérito”. 521
Também para CARLOS J. RUBIANES, “no momento da decisão, o órgão jurisdicional dita
sentença definitiva sobre a existência ou inexistência de um delito e a responsabilidade do
imputado. O juiz declara positiva ou negativamente a certeza do delito, e condena ou
absolve o imputado”. 522
519
BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 7.
520
CALAMANDREI, Piero. “Giustizia e politica: sentenza e sentimento”, em Proceso e democrazia,
Pádua: 1954, p. 43-66 apud CAPPELLETTI, Mauro. “Ideologia en el derecho procesal”, em Proceso…, nota
1, p. 4. Trecho original: “creazión que (e)mana da una conciencia viva, sensible, vigilante, humana. Es
precisamente este calor vital, este sentimento de continua conquista, de vigilante responsabilidad que el
juez ha menester de apreciar e y desarrolar”.
521
CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 4, p. 72. Trecho original: “La deliberación, ya sea singular
o colegiada, resulta de la solución, afirmativa o negativa, de las diversas questiones, de orden o de mérito,
de hecho ou de derecho, en que se descompone la questión penal, y así conduce a una declaración de
certeza, de orden o de mérito”.
522
Cf., também, o conceito de RUBIANES, Carlos J. Manual…, p. 166. Trecho original: “en el momento
de la decisión, el órgano jurisdiccional dicta sentencia definitiva, sobre la existencia o inexistencia de un
210

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O aspecto dinâmico do conceito de FRANCESCO CARNELUTTI verifica-se pela diferença
do tratamento que concede às decisões singulares ou colegiadas. 523 Parte ele do
momento em que, terminando as fases propriamente instrutória e crítica dos processos,
os órgãos jurisdicionais singulares ou colegiados se põe a decidir: “Pois bem, se este é o
momento em que o juiz se separa das duas partes instrumentais, é também aquele em
que, quando é colegiado, se reúne ou, melhor dito, se unifica o colégio: assim como,
enquanto se trata da recolher ou de valorar as provas, operam ao lado do juiz o acusador
ou o defensor, assim enquanto participem dele mais de um juiz, cada um opera por sua
conta; porém quando, ao contrário, se passa à reunião, e da valoração à decisão, convém
que, em um certo modo, a pluralidade dos juízes se unifique, convertendo-se em uma
totalidade. Compreende-se, portanto, que o estudo da decisão deve desenvolver-se,
antes de tudo, sobre duas hipóteses, a da decisão singular e a da decisão colegiada”. 524
Contudo, vistas as coisas sob o aspecto psicológico, percebe-se que, a rigor, não são
tantas nem tão radicais as diferenças se a decisão emanar de órgão jurisdicional simples
ou colegiado. Nas duas situações é possível que se verifiquem tanto o embate de
posições antagônicas, como a remansosa concordância a respeito da situação de fato e
das regras jurídicas a aplicar. O próprio juiz terá que, vez por outra, lutar contra valores
incompossíveis, da mesma maneira que ocorre em órgãos colegiados, até chegar a uma
decisão, necessária para que a prestação jurisdicional ocorra. No caso de um órgão
colegiado, ao contrário, podem ocorrer decisões absolutamente unânimes, por inércia ou
por seus próprios méritos, sem que qualquer debate se verifique.
Quanto à atividade decisória, define-se-a como o procedimento decisório do juiz, no
sentido de chegar seja a uma solução, seja a uma composição, do caso se constituíra no
conteúdo do processo penal condenatório, processo esse iniciado pela demonstração
cabal de que conhece o caso, bem como as provas e os argumentos que se levantaram
em torno dele (demonstração que atende no relatório) que passa pela exposição de
delito y la responsabilidad del imputado. El juez declara positiva o negativamente la certeza del delito, y
condena o absuelve al imputado”.
523
Cf. D’ALIMONTE, Roberto. “Teoria das decisões coletivas”, em A.A.V.V. Dicionário …, p. 309-312.
524
Cf. CARNELUTTI, Francesco. Lecciones…, v. 4, p. 55-71. Trecho original: “Ahora bien, si éste es el
momento en que el juez se separa de las dos partes instrumentales, es también aquel en que, cuando es
colegiado, se reúne o, mejor dicho, se unifica el colegio: así como mientras se trata de recoger o de valorar
las pruebas, operan al lado del juez el acusador o el defensor, así en cuanto participen de ello más de un
juez, cada uno opera por su cuenta; pero cuando, por el contrario, se pasa a la reunión, y de la valoración a
la decisión, conviene que, en un cierto modo, la pluralidad de los jueces se unifique convirtiéndose en una
totalidad. Se compreender por tanto que el estúdio de la decisión deve desarrollarse ante todo sobre dos
hipótesis, la de la decisión singular y la de la decisión colegiada”.
211

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argumentos jurídicos que fundamentem a decisão (motivação) e que termina com a
disposição propriamente dita.
A sentença nada mais é que o produto final, acabado – em linguagem figurada:
“consumível” por terceiros – de uma verdadeira atividade decisória. Não existe sem
aquela.
Preferiu-se um conceito analítico de atividade decisória, pois procura-se, com ele,
problematizar, colocando em evidência alguns de seus aspectos até então inexplorados
pela doutrina processual penal.
212

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Seção B
Caracteres
§ 1º A atividade decisória e os “sistemas”
a) sistema inquisitório
A preferência maior do sistema inquisitório é, com efeito, pela forma escrita. Não há,
conforme HÉLIO TORNAGHI 525 deixa claro, incompatibilidade ontológica do processo
inquisitório com as formasorais, ou do acusatório com as escritas, mas a verdade é que
aquele se compatibiliza mais perfeitamente com estas.
Aliás, conforme observa com precisão FRANCO CORDERO, “no processo reduzido a
uma sondagem introspectiva, as formas constituem um dado secundário ou
absolutamente irrelevante; conta o êxito, obtido seja como for”. 526
É no sistema acusatório que as formas do contraditório gozam, por assim dizer, de um
respeito quase litúrgico.
Contudo, está claro que a preferência do sistema inquisitório sempre foi pelas formas
escritas, seja na atividade instrutória, seja na crítica, seja na decisória. Cabe descobrir as
razões dessa preferência.
Uma razão é o segredo em que se desenvolve o processo inquisitório. Não o favorece
uma sentença prolatada em audiência. No processo de cunho inquisitório, em que hajam
partes e publicidade, essa razão se atenua, posto que não desapareça.
Outra razão que deve ser arrolada é a da mais intensa subjetividade imposta pelo
sistema inquisitório ao juiz, no momento de decidir. Os “labirintos introspectivos”, a que
vivamente faz menção FRANCO CORDERO, 527 impõem um “mergulho mais fundo”, por parte
do juiz, em aspectos subjetivos do crime e de seu autor. Nesse caso, porque autoriza uma
dedicação mais intensa e permite uma atenção maior aos detalhes, a forma escrita é
usualmente preferida no sistema inquisitório ou no sistema misto, como o brasileiro. 528
525
TORNAGHI, Hélio. Instituições…, v. 3, p. 468-469.
526
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 290. Trecho original: “nel processo ridotto a scandaglio
introspettivo le forme costituiscono un dato secondario o addirittura irrilevante; conta l’esito, comunque
ottenuto”.
527
CORDERO, Franco. Procedura…, p. 610.
528
No foro, essa preferência é usual, sobretudo nos casos considerados “muito complexos”. Irreal ou
não a complexidade dos casos penais, a verdade é que freqüentemente os juízes evitam prolatar a
sentença na audiência.
213

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b) sistema acusatório
O sistema acusatório, ao contrário do que ocorre com o inquisitivo, prefere
desenvolver oralmente a atividade decisória.
Como no caso anterior, aqui a questão é de preferência e não de exclusividade.
Impende descobrir as razões dessa preferência.
A razão que talvez mais avulte é a de que, desenvolvendo-se o procedimento
acusatório em função da atividade probatória e principalmente crítica das partes técnicas
– basta conferir o relevo que os debates orais têm no procedimento especial do júri – a
conclusão rápida do processo é algo exigido pelas suas características: ao esforço das
partes técnicas em instruir o julgador e em analisar oralmente os elementos de convicção
e provas produzidas deverá, quase que naturalmente, corresponder o esforço do juiz em
pronunciar oralmente sua decisão. Sendo assim, a tendência natural do processo
acusatório, é a da prolatação pública e oral da sentença.
§ 2º Princípios e regras
a) concentração
Obviamente, a concentração da audiência processual penal é o primeiro dos
princípios atendidos pelo desenvolvimento da atividade decisória na própria audiência
processual penal.
O conceito mesmo do princípio da concentração envolve a reunião do maior número
possível de atos processuais num só momento, reunião essa que é coroada com a
prolatação da sentença definitiva. Em síntese, o princípio da concentração determina que
a audiência processual penal será de instrução e julgamento e quando isso não se puder
realizar, os atos instrutórios serão praticados no menor número possível de audiências,
separadas por pequeno espaço de tempo.
É a lição de JORGE FIGUEIREDO DIAS: “Tomado em sua mais ampla acepção, (...) o
princípio da concentração do processo penal exige uma prossecução tanto quanto
possível unitária e continuada de todos os termos e atos processuais, devendo o
complexo destes, em todas as fases do processo, desenvolver-se na medida do possível
concentradamente, seja no espaço, seja no tempo. Tomado neste contexto amplo, o
princípio enforma, com efeito, todo o decurso ou prossecução do processo penal e é, em
geral, fundado pela necessidade de que se não suscitem obstáculos ou impedimentos ao
214

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exercício do processo”. 529
Daí porque se compreende que a concentração é o primeiro dos princípios
processuais penais atendido pela atividade decisória desenvolvida na audiência.
b) publicidade e oralidade
Os princípios da publicidade e da oralidade, verificando-se a atividade decisória na
audiência processual penal, são conjuntamente prestigiados, posto que por razões
levemente diversas. Trate-se primeiro do princípio da publicidade.
O prestigiamento desse princípio não ocorre somente porque, ao ser pronunciada em
audiência, a sentença penal torna-se pública. Essa seria uma razão muito simples e
justamente seria considerada pueril. Está claro que, sendo a sentença escrita publicada
nas mãos do escrivão, também ela adquire publicidade.
Também não há aqui uma diferença de grau, de maior ou menor publicidade da
sentença proferida em audiência ou fora dela. Ambas adquirem, em tese, a mesma
publicidade.
O princípio da publicidade é mais eficazmente atendido pela atividade decisória
desenvolvida em audiência processual penal porque, nesse caso, não é somente a
sentença acabada que é levada imediatamente à consideração das partes técnicas, mas
também o seu processo de formação. Eis aí o relevo maior da atividade decisória
desenvolvida em audiência.
Há publicidade completa, por assim dizer, que se refere não somente à sentença
acabada – produto “consumível” – mas que também abarca todo o seu processo de
formação.
Também não seria demasiado afirmar que o aspecto intrínseco da sentença
oralmente proferida em audiência é também influenciado pela sua completa publicidade.
Analisando o quadro sob o prisma psicológico, não parece caberem dúvidas de que,
sendo compelido a proferir publicamente sua sentença, o juiz criminal age diferentemente
do que o faria ao prolatar sua sentença por escrito, no recôndito de seu lar ou de seu
gabinete de trabalho.
Isso não quer significar, absolutamente, que o juiz proferiria duas sentenças diversas,
conforme estivesse só ou acompanhado no momento de sentenciar. Essa afirmação,
sendo impossível de ser comprovada teoricamente, não apresenta cientificidade.
529 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito…, p. 183.
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O que é perfeitamente possível afirmar é que, sendo exposto enquanto elabora sua
decisão, o juiz posta-se diferentemente diante das partes e, assim, o produto de seu labor
há de apresentar diferentes características.
Assim, apenas para exemplificar, é possível afirmar que, proferindo sua sentença
publicamente, diante das partes técnicas e do acusado, para não citar as testemunhas
(que nesse momento já haveriam de ter sido retiradas do recinto) seus auxiliares e
eventuais espectadores, o juiz acabaria por prestigiar pontos do caso que interessassem
ao público da audiência, mas que, exclusivamente para ele, juiz, parecessem
desimportantes.
Não significa que, por covardia, intrepidez ou frieza, a situação de estar sendo
fiscalizado no processo de formação de sua sentença, levasse o juiz a decidir
diferentemente. Significa apenas que, publicizando-se esse momento, o procedimento
argumentativo do juiz teria relevantes diferenças em relação ao mesmo procedimento
aplicado à sentença escrita.
Já o princípio da oralidade coordena-se com o da publicidade no acrescentar algumas
motivações novas às que normalmente animariam o juiz na prolatação da sentença por
escrito.
É importante complemento ao princípio da publicidade, na medida em que a audiência
processual penal pública poderia ser utilizada para a mera publicação de uma sentença
escrita adrede preparada, como, aliás, ocorre no processo trabalhista, caso em que as
vantagens da publicidade quedariam anuladas.
A sentença penal prolatada oralmente, se de um lado expõe a figura do juiz à análise
imediata das partes técnicas presentes na audiência, de outro fortalece a atividade
jurisdicional, na medida em que salvaguarda-a de protelações, hoje vistas de maneira
assaz negativa pela opinião pública.
c) contraditório
Na atividade decisória desenvolvida pública e oralmente, durante a tramitação de
audiência processual penal, há mais um princípio processual amplamente atendido: o do
contraditório.
Essa característica é de enorme sutileza, na medida em que não se encontra
positivada qualquer manifestação do contraditório na fase estritamente decisória do
processo penal condenatório. Se a contraditoriedade das atividades instrutória e crítica
das partes técnicas da audiência processual penal é perfeitamente assimilada, a
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contraditoriedade da atividade decisória parecerá estranha. Contudo, sendo desenvolvida
pública e oralmente, ela também estimula o contraditório. A razão é simples e se vincula
às já vistas.
Perceba-se que, sendo proferida por escrito a sentença, as partes técnicas não têm a
oportunidade de assistir, ao menos, o processo de formação da decisão. Têm contato
com os argumentos do juiz prolator apenas depois que ele os deposita, efetivamente,
junto com o dispositivo da sentença, nas mãos do escrivão. Esse contato verifica-se de
uma vez, desde logo com o produto final do labor intelectual do juiz.
Justifica-se plenamente, nesse passo, o pessimismo manifestado por NILO BAIRROS DE
BRUM: “Em um sistema processual baseado no livre convencimento, não é fácil (diríamos
que é absolutamente impossível) reconstituir os reais motivos que levaram um juiz a
decidir conforme decidiu. No que se refere à avaliação da prova, os códigos são
lacônicos; a doutrina, extremamente plástica, e a jurisprudência, vacilante. Com tais
instrumentos, os juízes podem manipular os fatos segundo seu temperamento, sua
formação pessoal, sua ideologia, enfim, o que não implica que isso seja feito de forma
consciente ou premeditada. A única garantia que o sistema oferece é a imposição legal
que obriga os juízes a fundamentarem suas decisões, permitindo, assim, que os
inconformados possam atacá-las, voltando contra elas os mesmos instrumentos
oferecidos pelo sistema”. 530
No caso da sentença proferida oralmente, ainda que o juiz procure esconder os “reais
motivos” de sua decisão, através do uso de argumentos retóricos, e ainda que consiga, ao
menos o processo de criação da sentença é exposto às partes técnicas. Com isso, os
argumentos jurídicos trazidos à baila pelo juiz são fiscalizados no momento mesmo de
sua emissão e antes da publicação do dispositivo, pelas partes técnicas.
Sendo assim, abre-se a possibilidade de contestação. Não é preciso dizer mais para
revelar que, desenvolvendo-se atividade decisória no seio da audiência processual penal,
e expondo-se os argumentos do juiz às partes técnicas, que também dominam a
linguagem em que o juiz se comunica, nasce a possibilidade, senão jurídica, ao menos
temporal, da contradita.
A preocupação da presente argumentação não é especificamente com a lei
processual penal vigente no Brasil. Com o afirmar que o princípio do contraditório é
prestigiado pela atividade decisória desenvolvida em audiência, não se quer dizer que há
530 BRUM, Nilo Bairros de. Requisitos…, p. 71.
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regra ou princípio jurídico que expressamente permita às partes técnicas transformar o
labor argumentativo do juiz, no momento em que está a proferir uma decisão, em debate
oral.
Com efeito, o iniciar-se a atividade decisória (rectius: “fase decisória”) do processo
penal condenatório, implica o término, no fechamento da fase processual imediatamente
antecedente, a da crítica ou da discussão. Significa que, iniciado o momento decisório, o
debate já se encerrou.
Contudo, e para início de argumentação, esse fechamento ou preclusão, por assim
dizer, não é senão formal, procedimental. Não poderia, dada a relevância da matéria
discutida no processo penal condenatório, ser vista com caráter absoluto e incontrastável.
Além disso, a atividade decisória desenvolve-se oral e publicamente e diante das
partes técnicas, que dominam o discurso jurídico do juiz profissional. Sendo assim, e
porque se protrai no tempo, diante dessas partes técnicas, é possível dizer que elas estão
“na hora e na vez” de, eventualmente, contestar os argumentos do juiz, mormente no que
eles têm de faticamente correto ou faticamente incorreto. A regra positiva, aqui, é menor
importância.
Imagine-se a hipótese do juiz estar decidindo uma causa penal, prolatando, por
exemplo, uma sentença condenatória. Em dado momento, enquanto expõe seus
argumentos, afirma que o réu confessou a autoria do crime, sendo essa uma veemente
prova de sua culpabilidade. Ao perceber o equívoco, o defensor o contesta, através de
uma questão de ordem, afirmando que jamais houve confissão do crime.
Colocada uma situação desse jaez e mesmo que o juiz chegasse, por absurdo, ao
ponto de procurar punir o defensor “impertinente”, mesmo assim remanesceria, para ele,
a necessidade psicológica de superar a contestação ao seu argumento. Nesse afã, vendo
ser impossível a contestação – por perceber não ter ocorrido, de fato, a confissão –
poderia ser levado, inclusive, a modificar seu entendimento anterior. Vendo o quadro sob
o prisma psicológico, é possível que, dependendo do temperamento do juiz, a decisão
não se modificasse, de qualquer maneira. Mas a probabilidade, menor embora, de
modificação, convidaria a parte técnica a opor o argumento.
Nesses casos, bem como em outros, que se poderia imaginar, ad infinitum, percebese
como e em que grau o criador da sentença é submetido explicitamente à fiscalização
das partes técnicas. Não resta dúvida de que o contraditório, na espécie, é firmemente
ativado.
Se a hipótese, referida a processo penal desenvolvido perante juiz singular, parece
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por demais imaginativa, basta conferir o que ocorre nos julgamentos colegiados dos
tribunais. Nesses casos, as intervenções das partes técnicas ocorrem com muito mais
freqüência e, por essa razão, entre outras, são mais comumente recebidas pelos juízes
como verdadeira colaboração a uma mais perfeita prestação jurisdicional.
d) a questão da identidade física do juiz
Outro aspecto importante da audiência de instrução e julgamento do procedimento
sumário em sentido estrito é a quaestio iuris acerca da existência ou não, no nosso
processo penal condenatório, do princípio da identidade física do juiz.
A esse respeito, escreve JOSÉ FREDERICO MARQUES: “Findos os debates, na audiência,
fica vinculado para proferir a sentença, o juiz que presidiu a esta? A esse respeito,
vacilante se apresentava a jurisprudência de nossos tribunais (...). E, de nossa parte, já
sustentamos o entendimento de que tal vinculação não se forma, uma vez que impera,
em nosso procedimento penal, o princípio da escritura e não o da oralidade (...). O
Supremo Tribunal Federal, no entanto, em acórdão relatado pelo Ministro EVANDRO LINS E
SILVA, firmou o princípio da identidade física do juiz, para os casos do procedimento
sumário, sob o fundamento de que se assim não fosse, haveria substancial prejuízo ao
direito de defesa. Reexaminando o problema, também acabamos por adotar a diretriz do
Excelso Pretório. Realmente, as partes (defesa e acusação) poderiam ficar sumamente
prejudicadas, se o juiz da sentença fosse outro diverso daquele que presidiu a audiência.
Nesta, houve, apenas debates orais, sem que as partes tenham outro meio de comunicar
ao julgador os argumentos que entendem dever apresentar em prol de seus respectivos
interesses. Proferida a sentença, por um outro juiz, diferente do que presidiu a audiência,
as alegações que as partes expenderam oralmente em nada irão pesar, uma vez que o
julgador as desconhece e ignora, dado que não as ouviu serem proferidas. Ante os
termos com que o art. 538, §§ 2º e 3º, do Cód. de Proc. Penal, estruturou a audiência de
julgamento e estabeleceu a forma de ser da sentença, não temos dúvida em rever a
posição que antes sustentávamos para seguir, agora a opinião dos que afirmam existir
vinculação para o juiz que presidiu à audiência, no sentido de fazê-lo o único juiz
competente para proferir a sentença”. 531
531 MARQUES, José Frederico. Elementos…, v. 3, p. 119-120.
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Essa opinião foi sustentada inicialmente por E. MAGALHÃES NORONHA 532 e adotada,
mas sempre de maneira vacilante, pelo Supremo Tribunal Federal. JULIO FABBRINI
MIRABETE manifesta opinião contrária a ela. 533
Com efeito, esse princípio não foi adotado entre nós. O argumento de que o juiz que
receber os autos e não tiver ouvido os debates não saberá o que neles se discutiu não
resiste a uma análise breve. Quaisquer registros dos debates da audiência, ainda que não
previstos pela lei processual penal, cientificarão facilmente o juiz do que foi alegado pelas
partes.
Além disso, o princípio da identidade física do juiz, no processo civil, decorre de
norma expressa (CPC, art. 132). Não existindo norma expressa que o consagre para o
processo penal, seria demasia dizê-lo existente.
§ 3º Ritualismo
a) no inquérito policial
Parecerá estranho, numa primeira avaliação, falar-se em atividade decisória no
inquérito policial, tipicamente um procedimento de caráter informativo e não decisório.
Contudo, sua estruturação como procedimento, com um presidente e objetivos a
alcançar, fazem com que, indevida e até inconscientemente, haja um arremedo de
atividade decisória no inquérito policial. Não em qualquer audiência realizada no
procedimento investigatório, mas em todo e principalmente ao final de seu iter.
Trata-se de uma verdadeira necessidade psicológica do presidente do inquérito
policial concluí-lo de maneira a decidir acerca do conteúdo da matéria investigada.
É o que ocorre, por exemplo, com a questão do indiciamento.
No processo penal brasileiro não existe a figura do indiciamento formal. Não há um
ato processual que modifique o status quo do imputado, transformando-o em indiciado,
fenômeno que ocorre ao ser recebida a denúncia. O art. 6º, inciso V, do CPP, inclusive,
deixa claro que o indiciado preexiste à própria instauração do inquérito policial.
532
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso…, p. 307: “Em seguida aos debates, proferirá o Juiz a
sentença, ditando-a ao escrivão. Pode ser que não se julgue habilitado a prolatá-la no momento e, então,
determinará que os autos lhe sejam conclusos imediatamente e a dará no prazo de cinco dias, consoante o
§ 3º do art. 538. Nesta hipótese, o Juiz prolator há de ser o mesmo que presidiu à audiência, sob pena de
nulidade da sentença, pois os debates são orais e, conseqüentemente, se outro for o Juiz, não os ouviu
nem sabe qual a defesa. Nesse sentido se têm pronunciado os Tribunais do País (Darci A. Miranda,
Repertório de Jurisprudência do Código de Processo Penal. vol. VIII, ns. 7056 e 7056-A). Deve,
conseqüentemente, o novo juiz realizar outra audiência, em que haja novos debates”.
533
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo…, p. 550.
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Mesmo assim, tanto há uma tendência da autoridade policial no sentido de exercer
atividade decisória mesmo no inquérito policial, que criou-se, na jurisprudência, a idéia de
que existe um ato de indiciamento formal. Esse ato é o objeto de decisão da autoridade
policial. Através dele a autoridade policial – até por necessidade psicológica, diga-se – dá
sua contribuição construtiva ao que entende ser o caminho para o restabelecimento da
verdade real.
Reforça-se uma indevida atividade decisória, que tem como conteúdo esse “ato de
indiciamento” – defendida, inclusive, por SÉRGIO M. MORAES PITOMBO 534 – a sistemática
violação do parágrafo único do art. 20 do CPP. Através da publicidade não-autorizada
sobre os antecedentes criminais do indiciado, esse arremedo de atividade decisória, no
inquérito policial, torna-se alguma coisa de relevante.
b) nos procedimentos comuns
A atividade decisória no procedimento ordinário pleno, conforme dispõe o art. 502,
caput, do CPP, é escrita, até porque não está prevista uma audiência de julgamento
nesse procedimento.
De relevo, nesse caso, é a experiência do foro, dado que em alguns casos juízes –
infelizmente não a maioria deles – têm ensejado a realização de audiência de instrução e
julgamento, ao estimularem as partes técnicas a, após desistirem de qualquer
requerimento de diligências, previsto no art. 499 do CPP, exercerem oralmente atividade
crítica, a fim de propiciar o exercício, também oralmente, de atividade decisória.
Tendo em vista que o objetivo, aqui, é de tornar mais pronta a prestação jurisdicional,
não há sequer que se cogitar de qualquer nulidade nessa subversão do procedimento
ordinário pleno, escrito por natureza. Sublinhe-se apenas que essa modificação não pode
ser imposta às partes técnicas. Como não se trata de matéria legalmente disciplinada, só
pode ser implementada através de verdadeiro negócio jurídico processual.
Quanto à atividade decisória no procedimento sumário em sentido estrito, a lei
processual determina que seja exercida oralmente, na própria audiência de instrução
(parcial) e julgamento, ou pouco depois, por escrito, “se o juiz não se julgar habilitado a
proferir decisão” (CPP, § 3º do art. 538).
Caso não se entenda em condições de proferir logo a sentença, o juiz o fará por
534 PITOMBO, Sérgio M. Moraes. Inquérito…, p. 37: “(...) no inquérito policial, o indiciamento há de
ostentar-se como ato do procedimento, que resulta do encontro de um ‘feixe de indícios convergentes’, que
apontam o suposto autor da infração penal (...). Dimana, pois do foco incriminador”.
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escrito, não sendo necessário continuar a audiência apenas para publicar a sentença.
Vale aqui o magistério de ARRUDA ALVIM, concebido para o processo civil, mas
inteiramente válido para o procedimento sumário em sentido estrito do CPP: “A sentença
deve, regra geral, ser proferida em audiência (art. 456). Segundo o sistema do Código de
Processo Civil a audiência deve ser aquela em que se tenham tentado inicialmente a
conciliação, quando for o caso, produzido as provas orais e debatido a causa, dado que a
audiência deve ser contínua, evitando-se adiamentos (art. 455). Se, todavia, o adiamento
for inevitável, nem por isto se deverá deixar de prolatar, regra geral, a sentença em
audiência. Se a sentença não for proferida na própria audiência em continuação (art. 455),
porque o juiz não se sinta em condições de prolatá-la, a lei atribui-lhe o prazo de dez dias
para proferi-la (art. 456), que evidentemente poderá ser dilatado, motivadamente. Desde
que o juiz encerre a audiência de instrução, nesta última hipótese, não está obrigado a,
prolatada a sentença, publicá-la em audiência. Inexiste esta exigência no novo
sistema”. 535
Não há dúvidas do acerto da lição mesmo para o processo penal. Uma audiência
especial para a publicação da sentença seria uma demasia inútil.
c) no procedimento especial do júri
Complexa é a atividade decisória do juiz profissional no procedimento especial do júri.
Dada a cisão da competência pelo objeto do juízo, juiz profissional e jurados dividem a
atividade decisória, não sendo possível, senão no caso concreto, perceber exatamente
onde começa uma atividade e termina outra e vice-versa.
Dir-se-á que a atividade decisória dos jurados se inicia com a votação dos quesitos
em sala secreta. Não é verdade. Pode começar, de fato, antes disso. É exteriorizada
oficialmente na sala secreta, mas tudo leva a crer que muitos jurados decidem antes
desse momento.
Outro dado complicador dessa análise é o de que o juiz profissional, por dominar um
discurso que os jurados desconhecem, influencia, mesmo sem querer e ignorando-o as
partes técnicas, as decisões dos juízes leigos.
Seja como for, a atividade decisória no procedimento especial do júri é fragmentada
entre o juiz que preside a sessão de instrução e julgamento e os jurados. Em ambos os
535
ALVIM, Arruda. “Sentença no processo civil: as diversas formas de terminação do processo em
primeiro grau”, em RePro, n. 2 (abr-jun/1976), p. 84.
222

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casos, é marcada por limitação da publicidade às partes técnicas. Mesmo com essa
limitação, a atividade decisória desse procedimento é superior à de outros procedimentos
perante juiz singular.
O defeito maior da atividade decisória do procedimento especial do júri é sua
complexidade extrema. Dá-se através de votação de quesitos, seja em sala especial, seja
no plenário esvaziado; o importante é que seja garantido o sigilo desse momento da
sessão, constitucionalmente ordenado (Constituição, art. 5º, inciso XXXVIII, letra “b”. Essa
votação é minuciosamente disciplinada pela lei (CPP, arts. 478 a 491), o que, ao invés de
impedir, estimula toda sorte de equívocos de parte do juiz-presidente e dos jurados e
mesmo das partes técnicas.
Mais do que um defeito, essa característica é seu verdadeiro “calcanhar de Aquiles”.
Não há estatísticas a respeito, mas certamente muitos jurados decidiram equivocados,
condenando quando queriam absolver ou absolvendo quando queriam condenar, apenas
porque não entenderam a pergunta formulada pelo juiz- presidente.
Para a própria sobrevivência do procedimento especial do júri, urge uma simplificação
da atividade decisória.
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Seção C
Fundamento Político
O fundamento político do exercício de atividade decisória em audiência processual
penal é justamente o de proporcionar às partes e à sociedade uma decisão imediata para
o caso em julgamento.
Sublinhe-se, ademais, que a legitimidade política do exercício da atividade decisória
em audiência também está na atitude de proporcionar às partes técnicas um acesso mais
imediato às fases do labor judicial na elaboração da decisão.
Por fim, outro fundamento político, mas aqui mais de política jurídica, por assim dizer,
dessa atividade decisória imediatamente exercida, é o de aproximar o juiz do contexto
fático e argumentativo da causa em julgamento.
Através da atividade decisória exercida na audiência, os fatos tornam-se, quase
automaticamente, o centro do processo penal condenatório, mais do que quaisquer outros
princípios e conceitos jurídicos, reduzidos à categoria de verdadeiros topoi.
É esse o espaço juridicamente adequado para o desenvolvimento e experiência de
uma verdadeira tópica, definida por EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA como sendo “um
pensamento que opera por ajustes concretos para resolver problemas singulares partindo
de diretrizes ou de guias que não são princípios lógicos que se podem deduzir com
resolução, senão simples loci comunes de valor relativo e circunscrito revelados pela
experiência”. 536
A propósito, também escrevi: “Assim, em resumo, a tópica serve para atribuir aos
juristas suas verdadeiras responsabilidades. Se o método lógico-jurídico levava o jurista a
uma certa preguiça mental (...) e, pior, a uma certa sensação de irresponsabilidade diante
das conseqüências de seu atuar, a tópica faz exatamente o contrário. O juiz que condena
é o responsável pela condenação; não é o Código Penal. O juiz que determina a saída
dos sem-terra da área invadida é o responsável por tal decisão; não é o Código Civil. E
será o tirocínio do jurista em utilizar os topoi que determinará a justiça da decisão
tomada”. 537
Desenvolvendo-se oralmente a atividade decisória, até por imperativo de ordem
536
ENTERRÍA, Eduardo García de. “Prólogo al libro de Theodor Viehweg, Tópica y jurisprudencia”, em
Reflexiones…, p. 77: Trecho original: “un pensamiento que opera por ajustes concretos para resolver
problemas singulares partiendo de directrices o de guías que non son principios lógicos desde los que poder
[SIC] deducir con resolución, sino simples loci comunes de valor relativo y circunscrito revelados por la
experiencia”.
537
Cf., também, RAMOS, João Gualberto Garcez. A inconstitucionalidade…, p. 75.
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prática, o caso passa a ter efetiva preeminência no atuar do juiz. Utilizando os conceitos
jurídicos de que dispõe, diante e sob a fiscalização das partes técnicas, o juiz tem um
parâmetro concreto para a sua decisão: solucionar precisamente aquele caso em
julgamento.
Dir-se-á que sendo escrita ou oral a sentença isso pode ocorrer da mesma maneira,
bem como o seu contrário, isto é, o apego do juiz à coerência intrínseca do sistema.
Está certo, mas ocorrendo atividade decisória na mesma audiência processual penal,
há um efetivo coroamento de todas as outras atividades nela realizadas, bem como o
respeito aos seus princípios estruturais e dinâmicos. Através da combinação de todos os
princípios, tem-se uma audiência processual penal que permite ao julgador e às partes
técnicas uma mais perfeita – ou menos imperfeita – avaliação crítica de todos os aspectos
da causa em julgamento.
Mais do que isso, o exercício louvável da atividade decisória na audiência pressupõe
a prática anterior, no mesmo momento processual, no mínimo, da atividade crítica das
partes técnicas, visto que não se concebe, sequer de lege ferenda, uma audiência
convocada simplesmente para a publicação da sentença ou mesmo para o
desenvolvimento da atividade decisória.
Sendo assim, a oralidade, concentração e imediação acabam delimitando os topoi do
julgamento: embora o juiz possa se utilizar de argumentos outros, a tendência natural é
que decida utilizando-se do material crítico que lhe tenha sido fornecido pelas partes
técnicas. Se buscar outros, ao menos deverá ter dado conta dos argumentos levantados.
Seja como for, nesse particular, a atitude do juiz ao decidir, a realização de um
momento processual como a audiência, tão rico em aspectos fáticos, jurídicos e políticos,
predispõe as partes a decidir conforme os dados produzidos. Se não for por outra razão,
será porque muito provavelmente eles serão suficientemente amplos.
Essa orientação para o fato, cientificamente consentânea com a tendência moderna
do Direito Penal, é estimulada pela audiência processual penal. E, se assim ocorre, a
tendência é de uma solução para o caso mais ajustada às suas peculiaridades.
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