DIADORIM: SEREIA SILENCIOSA E SILENCIADA DO ... - pucrs
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1 O silêncio<br />
<strong>DIA<strong>DO</strong>RIM</strong>: <strong>SEREIA</strong> <strong>SILENCIOSA</strong> E <strong>SILENCIADA</strong> <strong>DO</strong> SERTÃO<br />
Camila Canali Doval 1<br />
De todos, menos vi Diadorim: ele era o em silêncios. Ao de que triste; e<br />
como eu ia poder levar em altos aquela tristeza? Aí – eu quis: feito a<br />
correnteza. Daí, não quis, não, de repentemente. Desde que eu era o chefe,<br />
assim eu via Diadorim de mim mais apartado. Quieto; muito quieto é que a<br />
gente chama o amor: como em quieto as coisas chamam a gente.<br />
(ROSA, 2001, p.662)<br />
Há silêncio em Diadorim. O jagunço bonito e valente, travessia e margem de<br />
Riobaldo, mais olha do que fala, mais cala do que mostra, mais se transfigura do que<br />
propriamente se esconde. As palavras de Diadorim são sempre poucas, mas nunca poucos os<br />
seus significados. Diadorim escreve com os olhos tudo o que o coração orgulhoso – e ingênuo<br />
– de Riobaldo não o permite ler. Entre as palavras, nas pausas, na respiração que se<br />
atravessa... Eis Diadorim. Nos olhos de mar, no sabão de coco com que se banha, na cabeça<br />
que se ergue para acompanhar o vôo do manoelzinho-da-crôa... Eis a mulher.<br />
É no silêncio que o ser feminino se esconde, no entanto, é no silêncio que ele significa.<br />
Diadorim silencia a mulher para legitimar a violência. Mas a violência não é masculina:<br />
apesar de se travestir, é fruto do ódio, que não tem sexo.<br />
A mulher silenciada não desaparece. Ela se movimenta no silêncio. Riobaldo, diante<br />
das ―calças de vaqueiro, em couro de veado macho, curtido com aroeira-brava e campestre‖<br />
(ROSA, 2001, p.241) e da ―torta-cruz das cartucheiras‖ (ROSA, 2001, p.822), apenas<br />
enxerga; esquece de escutar.<br />
Sobre o jagunço quase sempre silencioso está a mulher silenciada. Ela fala para o<br />
homem que ama, ela lhe mostra as belezas, desperta seu amor. Diadorim canta para atrair<br />
Riobaldo, como as sereias cantam para atrair Ulisses. Riobaldo pressente o perigo e se amarra<br />
no medo.<br />
Diadorim me pôs o rastro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza.<br />
Sei como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no<br />
1 Mestranda em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do<br />
Sul — PUCRS.
elume das brasas. Quase que a gente não abria boca; mas era um delem que me<br />
tirava para ele – o irremediável extenso da vida. Por mim, não sei que tontura de<br />
vexame, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto. Quase que sem menos<br />
era assim: a gente chegava num lugar, ele falava para eu sentar; eu sentava. Não<br />
gosto de ficar em pé. Então, depois, ele vinha sentava, sua vez. Sempre mediante<br />
mais longe. Eu não tinha coragem de mudar para mais perto. Só de mim era que<br />
Diadorim às vezes parecia ter um espevito de desconfiança; de mim, que era o<br />
amigo! (ROSA, 2001, p.44)<br />
Estranho jogo se arma aqui: Diadorim sabe que ao se entregar ao sentimento, Riobaldo<br />
assumiria a homossexualidade – o que jamais faria. Segura pelos códigos masculinos, ela<br />
transita entre suas identidades: justifica a fúria na jagunçagem – ―Como era que era: o único<br />
homem que a coragem dele nunca piscava; e que, por isso, foi o único cuja toda coragem às<br />
vezes eu invejei. Aquilo era de chumbo e ferro.‖ (ROSA, 2001, p.444); liberta o amor na<br />
amizade – ―Diadorim e eu, nós dois. A gente dava passeios.‖ (ROSA, 2001, p. 44)<br />
1.1 O silêncio que significa<br />
O que escondem as roupas de jagunço? Na figura de Diadorim, a mulher não está<br />
implícita; está silenciada. Conforme Orlandi, ―O silêncio, tal como o concebemos, não remete<br />
ao dito; ele se mantém como tal, permanece silêncio.‖ (2007, p. 45) É preciso diferenciar,<br />
portanto, a forma implícita da forma silenciada:<br />
Para o implícito assim definido, o recorte que se faz entre o dito e o não-dito é o que<br />
se faz entre significação atestada e significação manifesta (Ducrot, 1972): o não dito<br />
remete ao dito. Não é assim que concebemos o silêncio. Ele não remete ao dito; ele<br />
se mantém como tal; ele permanece silêncio e significa. (ORLANDI, 2007, p.66)<br />
Tudo se dá na linguagem. Diadorim não se insinua mulher a Riobaldo através de sua<br />
fala ou mesmo de seus gestos; sua condição de mulher não transparece no que diz para não<br />
dizer. Diadorim é mulher, mas de forma alguma quer manifestar isso. Trata-se justamente do<br />
contrário. Para perceber sua condição, é preciso observar o seu movimento no silêncio: lá vive<br />
o ser feminino. Segundo Orlandi,<br />
1. há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo de estar no sentido<br />
e, de certa maneira, as próprias palavras transpiram silêncio. Há silêncio nas<br />
palavras; 2. O estudo do silenciamento (que já não é silêncio, mas ―pôr em silêncio‖)<br />
nos mostra que há um processo de produção de sentidos silenciados que nos faz<br />
entender uma dimensão do não-dito absolutamente distinta da que se tem estudado<br />
sob a rubrica do ―implícito‖. (ORLANDI, 2007, p.12)
Partindo da perspectiva do silêncio, Diadorim, personagem de Guimarães Rosa em<br />
Grande Sertão: Veredas, se presta a pelo menos duas análises distintas, identificadas na<br />
iminência do texto: há o silêncio a que ela mesma se submete, a fim de transfigurar-se de<br />
homem; há o silêncio implicado por ser ela personagem da fala de Riobaldo. É através dele<br />
que o leitor tem acesso a Diadorim: um narrador apaixonado, confuso, manipulador da<br />
derradeira verdade; se não culpado, acima de tudo suspeito: ―Para nosso contexto histórico-<br />
social, um homem em silêncio é um homem sem sentido. Então, o homem abre mão do risco<br />
da significação, da sua ameaça e se preenche: fala. Atulha o espaço de sons e cria a ideia de<br />
silêncio como vazio, como falta.‖ (ORLANDI, 2007, p.35)<br />
Riobaldo sabe a verdade sobre Diadorim desde o princípio da narração, assim, o<br />
silêncio transpassa as palavras do narrador e o contar se torna dificultoso:<br />
Silêncio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido<br />
pode ser sempre outro, ou ainda que aquilo que é mais importante nunca se diz,<br />
todos esses modos de existir dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o<br />
silêncio é ―fundante‖. (ORLANDI, 2007, p.13)<br />
Desta forma, tem-se como material de análise tanto o movimento de Diadorim no<br />
silêncio quanto a fala de Riobaldo a respeito da companheira. Torna-se necessário, aqui,<br />
conceituar o silêncio de acordo com a visão adotada, visto que dizer e não-dizer serão<br />
interpostos em constante ir e vir, já que ―todo dizer é uma relação fundamental com o não-<br />
dizer.‖ (ORLANDI, 2007, p.12) Para Orlandi,<br />
Pensar o silêncio é colocar questões a propósito dos limites da dialogia. Pensar o<br />
silêncio nos limites da dialogia é pensar a relação com o Outro como uma relação<br />
contraditória. (...) A intervenção do silêncio faz aparecer a falta de simetria entre os<br />
interlocutores. A relação de interlocução não é nem bem-comportada, nem obedece<br />
a uma lógica preestabelecida. Ela é atravessada, entre outros, pela des-organização<br />
do silêncio. (ORLANDI, 2007, p.48)<br />
Em certo momento da narrativa, Riobaldo ensaia versos para Diadorim, nos quais diz:<br />
Buriti, minha palmeira,/lá na vereda de lá/casinha da banda esquerda,/olhos de onda do<br />
mar... (ROSA, 2001, p.65) Mais de uma vez Riobaldo compara os olhos verdes de Diadorim<br />
ao movimento do mar. Mesma metáfora Orlandi aproveita para ilustrar a forma como o<br />
silêncio faz emergir a significação:<br />
O mar: incalculável, disperso, profundo, imóvel em seu movimento monótono, do<br />
qual as ondas são as frestas que o tornam visível. Imagem.<br />
(...)
Como para o mar, é na profundidade, no silêncio, que está o real do sentido. As<br />
ondas são apenas o seu ruído, suas bordas (limites), seu movimento periférico<br />
(palavras).<br />
A linguagem supõe pois a transformação da matéria significante por excelência<br />
(silêncio) em significados apreensíveis, verbalizáveis. Matéria e<br />
formas. A significação é um movimento. Errância do sujeito, errância dos sentidos.<br />
(ORLANDI, 2007, p.33)<br />
Apesar do cenário localizado no sertão, o mar se faz excelente ilustração para a relação<br />
entre Diadorim e a mulher silenciada em sua profundeza. As palavras denunciam o sentido,<br />
mas é no interior, no silêncio, que se dá a real significação.<br />
Um outro aspecto do deslocamento que procuramos produzir desemboca no fato de<br />
que o silêncio não se reduz à ausência de palavras. As palavras são cheias, ou<br />
melhor, são carregadas de silêncio. Não se pode excluí-lo das palavras assim como<br />
não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do silêncio só pela verbalização.<br />
(ORLANDI, 2007, p.67)<br />
Observamos, pois, o que está a nosso alcance – o contar de Riobaldo sobre o silenciar<br />
de Diadorim – a fim de captar o sentido oceânico, mas não é suficiente. Ondas são mero<br />
chamariz para engolir incautos. Assim como o canto das sereias.<br />
1.2 O silêncio que não se rende<br />
Há em Diadorim um silêncio para além do dito e do não-dito. Partindo do desfecho de<br />
Grande Sertão: Veredas, em que se revela que Diadorim é mulher, analisa-se a personagem<br />
como tal. Ao mesmo tempo em que é possível perscrutar seus movimentos e destrinchar suas<br />
palavras em busca do que ela silencia e do que nela é silenciado, há um sentido que não se<br />
rende, talvez o próprio sentido do feminino. Conforme Fuentes, em sua tese ―As mulheres e<br />
seus nomes: Lacan e o feminino‖,<br />
(...) Lacan afirma que ―A mulher não existe‖ – ao que acrescenta posteriormente:<br />
―Não digo que as mulheres não existam‖ (1974, p.559). Lacan assim radicaliza a<br />
tese freudiana de que não há no inconsciente a inscrição da mulher, indicando que o<br />
feminino permanece como uma ausência que não cessa de não se escrever na<br />
linguagem, mas que insiste como um real em relação ao qual as mulheres estão mais<br />
afetadas, mas com o qual os homens também se confrontam. (FUENTES, 2009,<br />
p.23)<br />
Em todas as palavras de Riobaldo, Diadorim é distância, mistério, neblina. Visão turva<br />
do paraíso, lugar em que ele quer estar, mas não compreende como, nem onde. Riobaldo não<br />
se crê homossexual, mas deseja o jagunço amigo. Diadorim impele Riobaldo a duvidar de si<br />
mesmo. A se perder. É fato que Riobaldo nunca soube bem para onde ir, mas decide seguir
Diadorim, que não é rumo nem resposta, é canto que o leva às profundezas mesmo sem querer<br />
levar, ―Diadorim, de meu amor – põe o pezinho em cera branca, que eu rastreio a flôr de tuas<br />
passadas.‖ (ROSA, 2001, p.450)<br />
Em vestes de homem, munida de ódio, Diadorim se embrenha entre os jagunços e<br />
aspira passar despercebida como mulher. No entanto, apagadas as marcas aparentes da mulher<br />
na obsessão da guerra e na impiedade ao inimigo, o feminino transborda no silêncio.<br />
Como localizar a beleza feminina? Se o poeta adverte que a beleza está nos olhos<br />
daquele que vê e depende do que é projetado no objeto apreciado, para Freud é o<br />
narcisismo da mulher que se quer contemplada pelo olhar de admiração do homem,<br />
que funciona como isca para que ele efetivamente a deseje. Mas para Lacan (1960),<br />
o narcisismo da mulher não é primário, mas responde ao desejo da mulher de querer<br />
ser tomada como objeto de desejo do homem, para quem ela se reveste<br />
narcisicamente, visando, contudo, para além do desejo masculino, alcançar Outra<br />
coisa. (FUENTES, 2009, p.44)<br />
Diadorim, então, mulher silenciada e sereia silenciosa do sertão, cujo canto é tão<br />
proposital quanto necessidade do sentido asfixiado, faz-se intercaladamente presença e<br />
ausência para Riobaldo, tornando-se peça central da angústia do narrador, visto que até o fim<br />
não se revela mulher, mas também não é capaz de completamente transmutar o feminino em<br />
silêncio. Fuentes afirma que<br />
Enquanto os homens gravitam em torno da linguagem, cujas palavras se unem<br />
afirmam-se em torno de um mesmo sentido, entre as mulheres, para Benjamin (ibid.,<br />
p. 186) – [...] o silêncio se ergue majestoso, sobre o seu falar. A linguagem não<br />
confina a alma das mulheres [...]: ela gira em torno delas, tocando-as. A linguagem<br />
das mulheres não foi criada. Assim, o silêncio na linguagem é a mulher, guardiã<br />
dessa linguagem comumente banida do logos da razão masculina, e é precisamente<br />
pelo amor à mulher que é possível, para Benjamin, um conhecimento outro que não<br />
se reduza à cultura da verdade científica de dominação e da pragmática do cálculo e<br />
do lucro, que refuta Eros do logos e da vida. (2009, p.52)<br />
Definir o feminino pode ser tão complexo quanto definir o canto de uma sereia.<br />
Presença ausente, ausência presente, um defeito, uma falha, uma falta. O feminino se<br />
movimenta no silêncio em Diadorim, e do silêncio canta para atrair Riobaldo.<br />
Há um jogo interposto à narrativa, que se faz também narração. Não simplesmente<br />
Riobaldo se apaixona por um jagunço e desgraçadamente o descobre mulher apenas no final<br />
da história, quando, então, não há mais razão de ser. Na superfície do contar, está Diadorim<br />
dissimulando sua identidade, a fim de não se desviar dos seus objetivos. Abaixo disso, em<br />
algum ponto mais profundo e não identificável no movimento das ondas, está o ser feminino<br />
buscando respirar. É ele que canta para atrair Riobaldo, é ele que movimenta a ação, embora
silêncio e imobilidade. A voz de Diadorim é promessa, Riobaldo é desejo. Faz-se pertinente o<br />
questionamento de Blanchot:<br />
De que natureza era o canto das Sereias? Em que consistia seu defeito? Por que esse<br />
defeito o tornava tão poderoso? Alguns responderam: era um canto inumano – um<br />
ruído natural, sem dúvida (existem outros?), mas à margem da natureza, de qualquer<br />
modo estranho ao homem, muito baixo e despertando, nele, o prazer extremo de<br />
cair, que não pode ser satisfeito nas condições normais da vida. (2005, p.4)<br />
―Prazer extremo de cair‖ é uma definição pertinente para a atração de Riobaldo. Sua<br />
devoção a Diadorim ultrapassa as questões do amor carnal, ou homossexual. Riobaldo não<br />
atravessa os limites: jamais declara, jamais toca. Seu amor é construído na linguagem e dela<br />
subsiste. Amar Diadorim não se equivale à aventura de amar Diadorim, e de adiar o encontro,<br />
e de infinitamente caminhar até ele.<br />
Não devemos esquecer que esse canto se destinava a navegadores, homens do risco<br />
e do movimento ousado, e era também ele uma navegação: era uma distância, e o<br />
que revelava era a possibilidade de percorrer essa distância, de fazer, do canto, o<br />
movimento em direção ao canto, e desse movimento, a expressão do maior desejo.<br />
(BLANCHOT, 2005, p.4)<br />
Eis o silêncio que nunca será quebrado, o sentido que não se rende. O real do amor<br />
entre Riobaldo e Diadorim é o estar-lá; não chegar-lá. Por isso é possível a jornada, a guerra,<br />
a chefia, a obediência. Por isso é possível contar, apesar de toda a dificuldade. Por isso, pela<br />
constante de amor, pelo não-hoje do desfecho, é que é possível viver, embora tão perigoso.<br />
2 A mulher dentro do homem dentro de outro homem: Diadorim<br />
Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele era para tanto carinho: minha repentina<br />
vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a<br />
dureza do queixo, do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o<br />
formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para destino destinar...<br />
E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra. Ele<br />
fosse uma mulher, e à-alta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer<br />
paixão e no fazer – pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! Mas, dois<br />
guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação – por<br />
detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. (ROSA,<br />
2001, p.593)<br />
Para Galvão, em sua análise sobre Grande Sertão: Veredas, ―Nas linhas mais gerais<br />
tem-se o conto no meio do romance, assim como o diálogo dentro do monólogo, a<br />
personagem dentro do narrador, o letrado dentro do jagunço, a mulher dentro do homem, o<br />
Diabo dentro de Deus.‖ (1986, p.13)
A partir dessa premissa de uma coisa dentro da outra, entende-se Diadorim não só<br />
como a mulher dentro do jagunço Reinaldo: ela é, também e acima disso, construção do narrar<br />
de Riobaldo.<br />
A Riobaldo cabe a tarefa de conduzir o leitor à verdade de Diadorim. Verdade que ele<br />
dissimula durante todo o relato, a fim de causar as devidas sensações ao final. Na ânsia de<br />
traduzir o vivimento em palavras, o narrador vai conduzindo o interlocutor de forma que ele<br />
possa viver a sua exata mesma surpresa – e dor – ao descobrir a identidade feminina de<br />
Diadorim. Conforme Schwarz,<br />
Diadorim flutua pelo mistério de suas predileções pouco jagunças – pássaro, flor e<br />
limpeza – e traz ambigüidade ao sertão. É só o avançar do romance que nos dará seu<br />
retrato claro, e no entanto, desde a primeira entrada em cena a sua presença é total...<br />
(1960, p.386)<br />
Mistério e ambiguidade são termos exatos para serem relacionados a Diadorim. No<br />
entanto, a clareza do retrato talvez não se dê com mesma exatidão. Pode ser claro àqueles que<br />
veem na revelação final explicação para tudo: por isso tão sensível, por isso tão arredio, por<br />
isso tão limpo. Quem sabe, ainda, é exatamente a essa sensação que o narrar de Riobaldo leva.<br />
Mas não é o sentimento final, o que resta de Diadorim quando Diadorim é morta e enterrada<br />
no Paredão, e é preciso afirmar o fim, certificar-se, declará-lo pela linguagem: ―O céu vem<br />
abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha<br />
verdade. Fim que foi. Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba.‖<br />
(ROSA, 2001, p.863)<br />
Acaba?<br />
Para Schwarz, ainda,<br />
Através de sucessivos flash-backs vai-se compondo o seu papel na vida do herói,<br />
desde a fascinação infantil nas margens do São Francisco, até a transmissão da<br />
vendeta de honra, que leva Riobaldo a procurar forças no pacto diabólico, meio de<br />
vingar o assassinato de Joca Ramiro, pai de Diadorim. (1960, p.387)<br />
Analisar a história de Grande Sertão: Veredas é organizar a fala confusa de Riobaldo,<br />
ordenar os acontecimentos, para então compreender por que cada qual se deu. Nesse refazer<br />
do percurso, encontramos Diadorim desde o princípio, menino, segurando a mão de Riobaldo,<br />
e o ensinando a ter coragem. Este é o papel de Diadorim: ser travessia, caminho de Riobaldo,<br />
mas ser também sua margem, seu objetivo, seu chegar-lá. Não da mesma forma que Otacília,<br />
a noiva-prêmio, o felizes-para-sempre. Diadorim é objetivo enquanto alvo do orgulho de<br />
Riobaldo: é por Diadorim que Riobaldo se coloca em constante superação.
Afinal, quem é Diadorim?<br />
Enquanto Riobaldo corre sob os olhos do leitor, todo ele sua angústia e sua culpa, sua<br />
história confessa, Diadorim é palavra retorcida em sua boca, que mais distancia do que<br />
aproxima, mais cala do que exprime Diadorim: ―Diadorim me adivinhava: – ―Já sei que você<br />
esteve com a moça filha dela...‖ – ele respondeu, seco, quase num chio. Dente de cobra. Aí,<br />
entendi o que pra verdade: que Diadorim me queria tanto bem, que o ciúme dele por mim<br />
também se alteava.‖(ROSA, 2001, p.62, grifos nossos); ―Diadorim soube o que soube, me<br />
disse nada menos nada.‖ (ROSA, 2001, p.208, grifo nosso); Diadorim não me acusava, mas<br />
padecia. (ROSA, 2001, p.208, grifo nosso); ―Gritei, disse, mesmo ofendendo. Ele saiu para<br />
longe de mim; desconfio que, com mais, até ele chorasse. E era para eu ter pena? Homem não<br />
chora!‖ (ROSA, 2001, p.208, grifo nosso); ―Diadorim firme triste, apartado da gente, naquele<br />
arraial, me lembro.‖ (ROSA, 2001, p.209, grifo nosso); ―Desde esse primeiro dia, Diadorim<br />
guardou raiva de Otacília. E mesmo eu podia ver que era açoite de ciúme.” (ROSA, 2001, p.<br />
207, grifo nosso); ―Diadorim me veio, de meu não-saber e querer. Diadorim – eu adivinhava.<br />
Sonhei mal?‖ (ROSA, 2001, p.437, grifo meu) De acordo com Galvão, a destreza maior de<br />
Riobaldo<br />
(...) é negacear a respeito do sexo de Diadorim, nomeando-o sempre como homem<br />
ao mesmo tempo que semeia incontáveis pistas de sua feminilidade: a revelação para<br />
o interlocutor, e para o leitor igualmente, só eclode no final da narração, quando o<br />
narrador assim o deseja, para isso chamando a atenção de seu ouvinte.‖ (1986, p.87)<br />
É claro que uma segunda leitura da obra revelará algumas pistas evidentes – ou<br />
explícitas. Enquanto por um lado Riobaldo tempera com toques de feminilidade Diadorim<br />
rival de Otacília: ―Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim adivinhava, sabia,<br />
sofria.‖ (ROSA, 2001, p. 214); por outro deixa claro para quem quiser ou – conforme<br />
Candido – souber ler:<br />
2.1 Diadorim conhece o caminho<br />
(...) E Diadorim? Me fez medo. Ele estava com meia raiva. O que é dose de ódio –<br />
que vai buscar outros ódios. Diadorim era mais do ódio do que do amor? Me<br />
lembro, lembro dele nessa hora, nesse dia, tão remarcado. Como foi que não tive um<br />
pressentimento? O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e<br />
virgem de moça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da<br />
boca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio<br />
fechados? E essa moça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda<br />
esperança em sua vida?! Ah, Diadorim... E tantos anos já se passaram. (ROSA,<br />
2001, p. 207)
Mas o diabo cumpre o prometido com as tramóias que a tradição lhe atribui, ou seja,<br />
da maneira mais dolorosa e mais inesperada para aquele que lhe vendeu a alma:<br />
Riobaldo acaba com o Hermógenes, mas no mesmo ato Diadorim morre. Afinal, foi<br />
Riobaldo o instrumento da morte de Diadorim: ele, adquirindo mediante o pacto a<br />
certeza de Diadorim e eficazmente pondo-a em prática, conduziu-a para a morte. Daí<br />
a culpa que menciona desde o início da narração: culpa de ter vendido a alma ao<br />
Diabo e assim ter levado o amigo à morte. (GALVÃO, 1986, p.132)<br />
Assim Galvão (1986) finaliza seu estudo sobre Grande Sertão: Veredas. Talvez seja<br />
mesmo correto afirmar que a culpa que Riobaldo menciona desde o início da narração seja a<br />
de ter sido instrumento da morte de Diadorim. Mas, talvez, haja outras possibilidades para<br />
essa culpa.<br />
No mesmo texto, alguns parágrafos antes, Galvão afirma que ―A certeza do ódio é a<br />
causa da morte de Diadorim, e morte dupla: obriga-o a desperdiçar a vida e o amor de<br />
Riobaldo, proibindo-o de assumir seu ser de mulher, e leva-o diretamente para a destruição de<br />
si mesmo.‖ (GALVÃO, 1986, p.131) Caminhos paralelos, portanto, os de Riobaldo e<br />
Diadorim: ele se culpa por ter levado Diadorim à morte; ela morre destruída pelo próprio<br />
ódio.<br />
Coloca-se, aqui, a seguinte questão: se não houvesse pacto, e consequentemente não<br />
houvesse certeza, se Riobaldo nunca fosse chefe, se nunca levasse o bando até o Paredão, se<br />
não tivesse assumido o ódio de Diadorim como seu, Diadorim não teria morrido?<br />
Conforme Galvão, Diadorim é responsável por sua própria destruição. Riobaldo, por<br />
sua vez, é claro:<br />
– ―Ta que, mas eu quero que esse dia chegue!‖ – Diadorim dizia. – ―Não posso ter<br />
alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma, enquanto aqueles dois monstros não<br />
forem bem acabados...‖ E ele suspirava de ódio, como se fosse por amor; mas, no<br />
mais, não se alterava. De tão grande, o dele não podia mais ter aumento: parava<br />
sendo um ódio sossegado. Ódio com paciência; o senhor sabe? (...) E eu tinha medo.<br />
Medo em alma.<br />
Não respondi. Não adiantava. Diadorim queria o fim. Para isso a gente estava indo.<br />
(ROSA, 2001, p.44)<br />
Diadorim não precisava do pacto para ter certezas. Seu ódio era certo e palpável. Seu<br />
ódio movia. Embora Diadorim sonhasse com o futuro: ―– ...Riobaldo, o cumprir de nossa<br />
vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou<br />
contar a você...‖ (ROSA, 2001, p.731) e em algum momento a caminho da vingança tenha<br />
hesitado: ―(...) com os olhos limpos, limpos, ele me olhou muito contemplado. Vagaroso, que<br />
dizendo: – Riobaldo, hoje-em-dia eu nem sei o que sei, e, o que soubesse, deixei de saber o
que sabia...‖ (ROSA, 2001, p.764), pouco além disso o texto dá a entender que ele não levaria<br />
sua vingança a cabo.<br />
Ficam assim, Riobaldo e Diadorim, silêncio sobre silêncio, os dois querendo o um,<br />
mas ao mesmo tempo cada um querendo o seu. O feminino que se movimenta silencioso nas<br />
profundezas do mar-Diadorim não é capaz de vencer a tempestade de ódio que o sobrevoa.<br />
Diadorim é mulher, mas também é humano, e há no humano alguns sentimentos que<br />
esmagam outros.<br />
(...) O amor? Pássaro que põe ovos de ferro. Pior foi quando peguei a levar cruas<br />
minhas noites, sem poder sono. Diadorim era aquela estreita pessoa – não dava de<br />
transparecer o que cismava profundo, nem o que presumia. Acho que eu também era<br />
assim. Dele eu queria saber? Só se queria e não queria. Nem para se definir calado,<br />
em si, um assunto contrário absurdo não concede seguimento. Voltei para os frios da<br />
razão. (ROSA, 2001, p.77)<br />
Mesmo, portanto, que a culpa de Riobaldo esteja em ter ido até o fim, igual seria a sua<br />
culpa se tivesse desistido, rumado precipitadamente em busca de Otacília e jamais descoberto<br />
o segredo, ficando para sempre envolto na neblina do que poderia ter sido.<br />
2.2 Diadorim: inteira nos fragmentos<br />
O silêncio de Diadorim exaspera o falante Riobaldo, que se justifica: ―E tudo conto,<br />
como está dito. Não gosto de me esquecer de coisa nenhuma. Esquecer, para mim, é quase<br />
igual a perder dinheiro.‖ (ROSA, 2001, p.579) Para ele, não há sentido no silêncio; o silêncio<br />
é neblina. Para Diadorim, o silêncio é respiração: espaço em que pode ser o que é.<br />
Por conta do silêncio do companheiro, Riobaldo oscila entre o amor e a raiva; entre a<br />
adoração e o nojo. Não compreende por que se sente tão atraído por outro homem, nem por<br />
que o outro lhe desperta tamanho fascínio. Tudo em Diadorim prende a atenção de Riobaldo e<br />
o desnorteia a ponto de beirar a obsessão:<br />
Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma<br />
beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos – vislumbre meu – que cresciam<br />
sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se<br />
sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas<br />
do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da<br />
Abadia! A santa... reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e<br />
mais realce de alguma coisa que o entender da gente em si não alcança. (ROSA,<br />
2001, p.511)<br />
E Diadorim? Como responde ao apelo de Riobaldo?
Na posição de jagunço, Diadorim é calado, rude, determinado. Porém, em relação a<br />
Riobaldo, se fragmenta em diferentes versões de si, dispersa o que é.<br />
Diadorim é homem quando se veste de ódio: ―A tristeza, por Diadorim: que o ódio<br />
dele, no fatal, por uma desforra, parecia até ódio de gente velha – sem a pele do olho.<br />
Diadorim carecia do sangue do Hermógenes e do Ricardão, por via‖; ―Diadorim queria<br />
sangues fora de veias.‖; ―O ódio de Diadorim forjava as formas do falso.‖ Mas é mulher<br />
quando se deixa levar pelo amor: ―– Riobaldo, você sempre foi o meu chefe sempre...‖<br />
(ROSA, 2001, p.582)<br />
Quando se depara cuidando de Riobaldo: ―Diadorim veio para perto de mim, falou<br />
coisas de admiração, muito de afeto leal. Ouvi, ouvi, aquilo, copos a fora, mel de melhor. Eu<br />
precisava. (ROSA, 2001, p.101); ―Quem me ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi<br />
Diadorim...‖ (ROSA, 2001, p.42); ―Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha<br />
roupa: duas camisas e um paletó e uma calça, e outra camisa, nova, de bulgariana. Às vezes<br />
eu lavava a roupa, nossa; mas quase mais quem fazia isso era Diadorim.” (ROSA, 2001, p.51)<br />
Quando permite que o ciúme extrapole: – ―... Ou quem sabe você resolve melhor<br />
mandar de dádiva para aquela mulherzinha especial, a da Rama-de-Ouro, filha da feiticeira...<br />
Arte que essa mais serve, Riobaldo, ela faz o gozo do mundo, dá açúcar e sal a todo<br />
passante...‖;<br />
Deitado quase encostado em mim, Diadorim formava um silêncio pesaroso. Daí,<br />
escutei um entredizer, percebi que ele ansiava raiva. De repente. – ―Riobaldo, você<br />
está gostando dessa moça?‖<br />
Aí era Diadorim, meio deitado meio levantado, o assopro do rosto dele me<br />
procurando. Deu para eu ver que ele estava branco de transtornado? A voz dele<br />
vinha pelos dentes. (ROSA, 2001, p.211)<br />
Quando deixa escapar o feminino: ―Esses meninozinhos, todos, queriam todo o tempo<br />
ver nossas armas, pediam que a gente desse tiros. Diadorim gostava deles, pegava um por<br />
cada mão, até carregava os menorzinhos, levava para mostrar a eles os pássaros das ilhas do<br />
rio.‖; ―A gente outorgava a ele o dinheiro, cada um encomendava o que queria. Diadorim<br />
mandou comprar um quilo grande de sabão de coco de macaúba, para se lavar corpo.‖<br />
Quando manipula por baixo dos panos: ―– Riobaldo, tu comanda. Medeiro Vaz te<br />
sinalou com as derradeiras ordens...‖ (ROSA, 2001, p.96); ―Deixou de me medir, vigiou o ar<br />
de todos. Aí ele era mestre nisso, de astuto se certificar só com um rabeio ligeiro de mirada –<br />
tinha gateza para contador de gado.‖
Quando lamenta sua condição: – ―Mulher é gente tão infeliz...‖ – me disse Diadorim,<br />
uma vez, depois que tinha ouvido as estórias. (ROSA, 2001, p.188)<br />
Essas são as formas de Diadorim se movimentar no silêncio que se autoinfligiu.<br />
3 À procura de certos silêncios<br />
Os limites de Diadorim são impostos a partir do que ela se permite como mulher<br />
silenciada e do que os códigos masculinos permitem a ela travestida de homem. Limitada,<br />
Diadorim equilibra-se silenciosamente entre o amor despertado por Riobaldo e o desejo de<br />
vingar a morte do pai. Mas o disfarce veio antes de Riobaldo e da orfandade. O disfarce vem<br />
desde que Diadorim era o Menino.<br />
Qual o sentido de Diadorim querer ser homem? A admiração pelo pai, um abuso, a<br />
natureza. O que for.<br />
Há um ser incompleto em Diadorim, que a faz silêncio e busca, que a faz odiar além<br />
do homem e amar além da mulher, que a faz protagonista da história dentro da história:<br />
Riobaldo:<br />
A incompletude é uma propriedade do sujeito (e do sentido), e o desejo de<br />
completude é que permite, ao mesmo tempo, o sentimento de identidade, assim<br />
como, paralelamente, o efeito de literalidade (unidade) no domínio do sentido: o<br />
sujeito se lança no seu sentido (paradoxalmente universal), o que lhe dá o<br />
sentimento de que esse sentido é uno. (ORLANDI, 2007, p 78)<br />
Da incompletude latente de Diadorim advém seu silêncio, e com ele o admirar de<br />
De todos, menos vi Diadorim: ele era o em silêncios. Ao de que triste; e como eu ia<br />
poder levar em altos aquela tristeza? Aí – eu quis: feito a correnteza. Daí, não quis,<br />
não, de repentemente. Desde que eu era o chefe, assim eu via Diadorim de mim mais<br />
apartado. Quieto; muito quieto é que a gente chama o amor: como em quieto as<br />
coisas chamam a gente.<br />
As pistas que Riobaldo espalha pelo texto, a respeito da feminilidade de Diadorim,<br />
nada mais são do que movimentos do silêncio. Na cena em que Joca Ramiro se une ao bando<br />
e Riobaldo irá conhecê-lo, Diadorim mal disfarça a felicidade, como a noiva que intermedeia<br />
o encontro entre sogro e genro:<br />
– ―Este aqui é o Riobaldo, o senhor sabe? Meu amigo. A alcunha que alguns dizem é<br />
Tatarana...‖ Isto Diadorim disse. A tento, Joca Ramiro, tornando a me ver, fraseou:<br />
―Tatarana, pêlos bravos... Meu filho, você tem as marcas de conciso valente.<br />
Riobaldo... Riobaldo...‖ Disse mais: – ―Espera. Acho que tenho um trem, para<br />
você...‖ Mandou vir o dito, e um cabra chamado João Frio foi lá nos cargueiros, e
trouxe. Era um rifle reiúno, peguei: mosquetão de cavalaria. Com aquilo, Joca<br />
Ramiro me obsequiava! Digo ao senhor: minha satisfação não teve beiras. Pudessem<br />
afiar inveja em mim, pudessem. Diadorim me olhava, com um contentamento.<br />
(ROSA, 2001, p.265)<br />
Da mesma forma o feminino extrapola o jagunço quando Diadorim, frente à ânsia de<br />
demonstrar rastro do seu sentimento a Riobaldo, de burlar as regras do silêncio, de selar a<br />
amizade transcendente, confia-lhe seu verdadeiro nome: ―– ―Pois então: o meu nome,<br />
verdadeiro, é Diadorim... Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver,<br />
é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo...‖ (ROSA, 2001, p.172)<br />
Há algo no revelar-se em partes que permite a Diadorim vislumbrar a unidade do seu<br />
ser fragmentado pelo disfarce. O jogo entre Riobaldo e Diadorim se dá neste nível: Riobaldo<br />
se compraze pelo silêncio, visto que para ele o silêncio é Diadorim; Diadorim escapa no<br />
entredizer, visto que para ela cifrar-se é uma forma de respirar.<br />
Diadorim estava indo lá, modo de caçar e recolher o revólver, que de minha mão<br />
tinha caído. Num repousozinho de coração, calado eu agradeci à amizade dele essa<br />
fineza. Daí, vim. Sempre longe em frente, portanto que meu cavalo soberbo não<br />
dava alcance para ele se emparelhar. Daí, cantei. Mesmo mal, me cantei por causa<br />
que via que, medeando tão grandes silêncios, era que Diadorim tomava mais<br />
sorrateiro poder em meu afeto, que não era possível concernente.<br />
Nesses momentos elaboradamente descritos por Riobaldo é que se vislumbra o<br />
sentimento que os une. Por serem dois homens jagunços, nada mais pode haver, e o que há já<br />
é muito: ―Homem com homem, de mãos dadas, só se a valentia deles for enorme. Aparecia<br />
que nós dois já estávamos cavalhando lado a lado, par a par, a vai-a-vida inteira. Que:<br />
coragem – é o que o coração bate; se não, bate falso. Travessia – do sertão – a toda travessia.‖<br />
(ROSA, 2001, p.518) Riobaldo, homem e livre, mantém à parte do amor seu plano futuro:<br />
Otacília. Diadorim, refém de sua condição esdrúxula, não planeja além do que Riobaldo pode<br />
suportar: ―vou lhe contar um segredo‖. Ambos se movem quase sempre em acordo triste e<br />
conformado dentro do que lhes é permitido.<br />
O que não digo, o senhor verá: como é que Diadorim podia ser assim em minha vida<br />
o maior segredo? De manhã, naquele mesmo dia, ele tinha conversado, de me dizer:<br />
– ―Riobaldo, eu gostava que você pudesse ter nascido parente meu...‖ Isso dava para<br />
alegria, dava para tristeza. O parente dele? Querer o certo, do incerto, coisa que<br />
significava. Parente não é o escolhido – é o demarcado. Mas, por cativa em seu<br />
destinozinho de chão, é que árvore abre tantos braços. Diadorim pertencia à sina<br />
diferente.<br />
Riobaldo sonda Diadorim durante todo o livro. O que falta, o que sobra, o que não se<br />
resolve naquela personalidade inviolável: tudo de Diadorim interessa a Riobaldo. Diadorim
não colabora diretamente: suas mensagens são cifradas; sua amizade, refreada; seu amor,<br />
intocável. Toda fala de Riobaldo sobre Diadorim é apelo e busca por um pedaço qualquer que<br />
seja de verdade. E ela fornece esses pedaços, mas aos poucos, aos trancos, em silêncios.<br />
Perceber mais de Diadorim do que pôde o apaixonado Riobaldo fica, então, a cargo do<br />
leitor, que observa de fora o diálogo entre os dois personagens, e desse atrito procura extrair<br />
sentidos.<br />
Se o sentimento de ―unidade‖ permite ao sujeito identificar-se, por outro lado, sem a<br />
incompletude e o conseqüente movimento, haveria asfixia do sujeito e do sentido,<br />
pois o sujeito não poderia atravessar os diferentes discursos e não seria atravessado<br />
por ele, já que não poderia percorrer os deslocamentos (os limites) das diferentes<br />
formações discursivas. O Outro (e os outros) é o limite mas é também o possível.<br />
(ORLANDI, 2007, p.79)<br />
Orlandi trata aqui da análise do discurso entre sujeitos, mas nada impede que trate de<br />
literatura. No caso da ficção, se não há incompletude, não há enredo válido, não há<br />
personagem que se salve. Como seres narrativos, as pessoas enxergam a vida através da<br />
estrutura, do narrar, do linear. Transcrever o vivimento em palavras que se enfileiram é se<br />
fazer verdade palpável e infinita. Assim também o contrário: Riobaldo conta, conta, conta,<br />
mas preferiria não contar até o fim, preferiria rasgar a página da morte como escritor que erra<br />
a mão, e recomeça, do zero, folha branca, destino livre, ―Não escrevo, não falo! – para assim<br />
não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...‖ E Riobaldo, no instante antes da<br />
Diadorim, finalmente, silencia: ―O que vendo, vi Diadorim – movimentos dele. Querer mil<br />
gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno<br />
daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz.‖<br />
Por sua vez, no silêncio absoluto, desprovida do disfarce, da palavra, da própria<br />
incompletude, Diadorim, enfim, é: ―Diadorim – nu de tudo. E ela disse: – A Deus dada.<br />
Pobrezinha...‖<br />
4 Canta, Diadorim, sereia silenciosa!<br />
É possível guiar-se diante das marcas deixadas pelo movimento da mulher silenciada.<br />
São marcas perceptíveis para um observador atento. Mas como agir diante do existir sem<br />
forma de um ser ele mesmo atravessado pelo silêncio?<br />
Como dito no início deste texto, há um silêncio em Diadorim que não se rende:<br />
trancafia o sentido, infinitamente adia-o, mantém-no inviolável no porvir. Foi dito, ainda,
sobre a indefinição do canto das sereias, talvez proposital, talvez necessidade do sentido<br />
asfixiado.<br />
Diadorim é uma sereia do sertão. Metade mulher, metade jagunço, canta para<br />
Riobaldo porque o ama e o quer carregar para as suas profundezas – espaço em que ela<br />
finalmente é. Porém, carregá-lo significa matá-lo, e Diadorim oscila entre a consciência do<br />
desejo e a inconsciência do desejar.<br />
As Sereias: consta que elas cantavam, mas de uma maneira que não satisfazia, que<br />
apenas dava a entender em que direção se abriam as verdadeiras fontes e a<br />
verdadeira felicidade do canto. Entretanto, por seus cantos imperfeitos, que não<br />
passavam de um canto ainda por vir, conduziam o navegante em direção àquele<br />
espaço onde o cantar começava de fato. Elas não o enganavam, portanto, levavamno<br />
realmente ao objetivo. Mas, tendo atingido o objetivo, o que acontecia? O que era<br />
esse lugar? (BLANCHOT, 2005, p.3)<br />
Desafinada pela surpresa de se encontrar amando em pleno ódio, Diadorim não resiste<br />
ao instinto de sereia e canta. Canta para atrair Riobaldo ao que há de mais profundo em si<br />
mesma. Mas nem Diadorim se conhece a ponto de saber para onde o está levando: ―–<br />
...Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e<br />
refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...‖ Ele disse, com o amor no fato das<br />
palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido.‖ Para Blanchot, é como na epopéia de Ulisses:<br />
É verdade que Ulisses navegava realmente e, um dia, em certa data, encontrou o<br />
canto enigmático. Ele pode portanto dizer: agora, isto acontece agora. Mas o que<br />
aconteceu agora? A presença de um canto que ainda estava por vir. E o que ele tocou<br />
no presente? Não o acontecimento do encontro tornado presente, mas a abertura do<br />
movimento infinito que é o próprio encontro, o qual está sempre afastado do lugar e<br />
do momento em que ele se afirma, pois ele é exatamente esse afastamento, essa<br />
distância imaginária em que a ausência se realiza e ao termo da qual o<br />
acontecimento apenas começa a ocorrer, ponto em que se realiza a verdade própria<br />
do encontro, do qual, em todo caso, gostaria de nascer a palavra que o pronuncia.<br />
(BLANCHOT, 2005, p.12)<br />
Diadorim, ao convocar Riobaldo para o encontro futuro, dá início ao acontecimento,<br />
que nunca chega. São linhas paralelas, Riobaldo e Diadorim. Lado a lado pelo grande sertão,<br />
percorrendo as mesmas trilhas, sob as sombras dos mesmos buritis, não convergindo em<br />
nenhuma vereda. Por isso há história.<br />
A narrativa não é o relato do acontecimento, mas o próprio acontecimento, o acesso<br />
a esse acontecimento, o lugar aonde ele é chamado para acontecer, acontecimento<br />
ainda por vir e cujo poder de atração permite que a narrativa possa esperar, também<br />
ela, realizar-se. (BLANCHOT, 2005, p.8)
Sob o silêncio de Diadorim, não há razão para viver. Enquanto ela não se revelar, não<br />
haverá paz possível no ser de Riobaldo. É atrás exatamente deste momento que ele se move e<br />
se morre toda a sua narrativa, o momento do encontro, sempre por vir, que quando vem, já<br />
não é mais, ―(...) encontro que ocorre agora e que está ao mesmo tempo sempre por vir, de<br />
modo que ele não cessa de ir em sua direção, numa busca teimosa e desordenada (...)‖<br />
(BLANCHOT, 2005, p.12)<br />
E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava, consumido. Eu não tinha<br />
competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento de respirar me<br />
sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me desse repouso;<br />
nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha negado em mim<br />
aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o amor, e a pessoa<br />
dela, mesma, ela tinha me negado. Para que eu ia conseguir viver?<br />
Diadorim e Riobaldo, ―Cada uma das partes quer ser tudo, quer ser o mundo absoluto,<br />
o que torna impossível sua coexistência com o outro mundo absoluto; e, no entanto, o maior<br />
desejo de cada um deles é essa coexistência e esse encontro.‖ (BLANCHOT, 2005, p.10),<br />
encontro consumido pelo silêncio de Diadorim, sentidos que só se revelam na morte, e mesmo<br />
assim não fecham. Encontro que Riobaldo busca incansável nos olhos de Diadorim: ―Aquele<br />
verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice, querendo me contar coisas<br />
que a idéia da gente não dá para se entender – e acho que é por isso que a gente morre.‖<br />
(ROSA, 2001, p.304) Encontro fixado pela imagem do devir: ―Minha mãe estava lá no porto,<br />
por mim. Tive de ir com ela, nem pude me despedir direito do Menino. De longe, virei, ele<br />
acenou com a mão, eu respondi. Nem sabia o nome dele. Mas não carecia. Dele nunca me<br />
esqueci, depois, tantos anos todos.‖ (ROSA, 2001, p.147) Encontro perseguido pela palavra,<br />
impotente para defini-lo:<br />
Como vou contar, e o senhor sentir em meu estado? O senhor sobrenasceu lá? O<br />
senhor mordeu aquilo? O senhor conheceu Diadorim, meu senhor?!... Ah, o senhor<br />
pensa que morte é choro e sofisma-terra funda e ossos quietos... O senhor havia de<br />
conceber alguém aurorear de todo amor e morrer como só para um. O senhor devia<br />
de ver homens à mão-tente se matando a crer, com babas raivas! Ou a arte de um: tátá,<br />
tiro – e o outro vir na fumaça, de à-faca, de repelo: quando o que já defunto era<br />
quem mais matava... O senhor... Me dê um silêncio. Eu vou contar.<br />
Encontro, enfim, para sempre adiado pela morte, para sempre repetido pelo viver:<br />
―Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria<br />
saber, meus olhos marejaram.‖ (ROSA, 2001, p.612)<br />
Conforme Arrigucci, o final de Grande Sertão: Veredas
É decerto um dos pontos mais altos a que chegou a ficção brasileira; uma cena que<br />
faz o livro alçar-se à altura dantesca do sublime trágico, onde pode mais a surpresa<br />
da revelação do que a dor de Riobaldo. Índices disseminados por toda a obra ali se<br />
juntam para reforçar-lhe a unidade poderosa da forma, momento de anagnórisis, em<br />
que fulgura, com toda a pujança, o brilho sensível da ideia. (1994, p.25)<br />
Por que, afinal, valeria mais ―a surpresa da revelação do que a dor de Riobaldo‖?<br />
Porque na revelação, parte do silêncio de Diadorim é quebrado.<br />
Enxerga-se, afinal, a outra parte do seu ser incompleto.<br />
Mas uma parte que não fecha exatamente com a parte que se tinha.<br />
Não há sentido que se feche completamente em Diadorim. Essa é sua sina e seu canto.<br />
Essa é a história de Riobaldo, o mote que faz dele herói. A luta dele é por Diadorim. Há<br />
Nhorinhá, há Otacília. Há mulheres da vida e na vida; mas toda vida há Diadorim. Desde o<br />
princípio, ele aceitou buscar o encontro. Quando diante do canto que chamava ao silêncio<br />
profundo, não recuou. Mas também não se amarrou a nenhum mastro: foi. Cartucheira no<br />
peito, palavra em punho. Em Grande Sertão: Veredas o sertão é mar, Riobaldo é Achab, e seu<br />
monstro, uma sereia silenciosa.<br />
Referências<br />
Não se pode negar que Ulisses tenha ouvido um pouco do que Achab viu, mas ele se<br />
manteve firme no interior dessa escuta, enquanto Achab se perdeu na imagem. Isso<br />
quer dizer que um se recusou à metamorfose no qual o outro penetrou e desapareceu.<br />
Depois da prova, Ulisses se reencontra tal como era, e o mundo se reencontra talvez<br />
mais pobre, mas mais firme e seguro. Achab não se reencontra e, para o próprio<br />
Melville, o mundo ameaça constantemente afundar naquele espaço sem mundo ao<br />
qual o atrai o fascínio de uma única imagem. (BLANCHOT, 2005, p.10)<br />
ARRIGUCCI Jr., Davi. O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa. In:<br />
Novos Estudos, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), n. 40, nov. de 1994,<br />
pp. 7-29<br />
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005.<br />
FUENTES, Maria Josefina Sota. As mulheres e seus nomes: Lacan e o feminino. Tese de<br />
doutorado, Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia, São Paulo, 2009.<br />
GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo: Perspectiva, 1986.<br />
ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas:<br />
Editora da Unicamp, 2007.<br />
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SCHWARZ, Roberto. Grande Sertão: Estudos. (1960) In: A sereia e o desconfiado. Rio de<br />
Janeiro: Civ. Brasileira, 1965.