projeto leitura e didatização - Editora Saraiva
projeto leitura e didatização - Editora Saraiva
projeto leitura e didatização - Editora Saraiva
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
e a minha aparência. Aquela que eu apresentava diante dos<br />
outros deve ter mudado muito, e de modo bastante cômico,<br />
a julgar pelo espanto e pelas risadas com que fui acolhido.<br />
Todos no entanto continuavam me chamando de Moscarda,<br />
embora a palavra Moscarda agora tivesse para cada um<br />
deles um significado bem diferente daquele de antes, tanto<br />
que eles poderiam ter poupado aquele pobre coitado, barbudo<br />
e sorridente, em tamancos e camisolão azul, do sofrimento<br />
de ter que se voltar todas as vezes que proferiam<br />
aquele nome, como se realmente ainda lhe pertencesse.<br />
Nenhum nome resta, nenhuma lembrança, hoje, do<br />
nome de ontem – ou do nome de hoje, amanhã. Se o nome<br />
é a coisa, se um nome é, em nós, o conceito de cada coisa<br />
situada fora de nós, e se, sem nome, não há o conceito,<br />
ficando em nós a coisa como cega, indistinta e indefinida,<br />
então que cada um grave aquele nome que eu tive entre<br />
os homens, entalhando-o como um epitáfio sobre a fronte<br />
daquela imagem com que lhes apareci, deixando-a em paz<br />
e relegando-a ao esquecimento. Um nome não é mais do<br />
que isso: um epitáfio. Convém aos mortos, aos que concluíram.<br />
Eu estou vivo e sem conclusão. A vida não tem conclusão<br />
– nem consta que saiba de nomes. Esta árvore, respiro<br />
trêmulo de folhas novas. Sou esta árvore. Árvore, nuvem.<br />
Amanhã, livro ou vento: o livro que leio, o vento que bebo.<br />
Tudo fora, errante.<br />
O hospício fica no campo, num lugar ameníssimo.<br />
Saio todas as manhãs ao alvorecer, porque agora quero<br />
conservar o espírito assim, fresco como a aurora, com todas<br />
as coisas recém-descobertas, ainda impregnadas do<br />
gosto cru da noite, antes de o sol as ofuscar e ressecar sua<br />
umidade orvalhada. Aquelas nuvens de água lá em cima,<br />
pesadas de chumbo, amassadas contra os montes lívidos,<br />
que fazem parecer mais largo e mais claro aquele verde<br />
trecho de céu, por entre as manchas de sombra ainda noturna.<br />
E estes fiapos de grama, também tenros de água,<br />
impregnados do vivo frescor das margens do rio. E aquele<br />
burro lá, que passou a noite toda ao relento e agora tem<br />
os olhos apagados e relincha nesse silêncio que está tão<br />
próximo dele, mas que aos poucos parece que vai se afas-<br />
tando, quando começa a clarear ao seu redor, sem causar<br />
espanto, com essa luz que se espalha de leve sobre as planícies<br />
desertas e atônitas. E essa estradinha aqui, cortada<br />
entre colinas escuras e muros gretados, que parece parada<br />
na ruína de seus sulcos, sem levar a lugar nenhum. O ar é<br />
novo. E tudo é o que é, segundo a segundo, iluminado de<br />
vida. Desvio de repente os olhos para não ver cada coisa<br />
se fixar na sua aparência e morrer. Só assim consigo me<br />
manter vivo, renascendo a cada segundo e impedindo que<br />
o pensamento se ponha de novo a trabalhar, reabrindo por<br />
dentro o vazio de suas vãs construções.<br />
A cidade está longe. Às vezes me chega na calma da tarde<br />
o som dos sinos. Mas agora eu ouço esses sinos não mais<br />
por dentro, mas de fora, como se eles tocassem por si, talvez<br />
vibrando de alegria em sua cavidade sonora, suspensos do<br />
belo céu azul, cheios do calor do sol misturado ao som das<br />
andorinhas ou do vento de nuvens pesadas e altas, pairando<br />
sobre os campanários aéreos. Pensar na morte, rezar. Há<br />
ainda os que necessitam disso, e os sinos tocam também por<br />
eles. Eu não preciso mais disso, porque morro a cada segundo<br />
e renasço novo e sem lembranças: vivo e inteiro, não mais<br />
em mim, mas em cada coisa externa.<br />
PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. Tradução de Maurício Santana<br />
Dias. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.<br />
14. Luigi Pirandello, autor italiano que viveu na virada dos<br />
séculos XIX-XX, em sua obra Um, nenhum e cem mil desenvolve<br />
o olhar de um cidadão da elite que, aos poucos, percebe<br />
sua condição social neutra e procura analisar os caminhos<br />
da natureza humana. Logo será considerado um louco. No<br />
trecho destacado lemos já o desfecho da obra e a descrição<br />
do hospício em que está recluso o narrador.<br />
a) Que impressão tem o narrador do local em que se encontra?<br />
b) Como o narrador descreve seu auto-tratamento?<br />
18