Scripta 9_2_link_final.pdf - Uniandrade
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<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 1
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
SCRIPTA UNIANDRADE<br />
Volume 9 Número 2 Jul. - Dez. 2011<br />
ISSN 1679-5520<br />
Publicação Semestral da Pós-Graduação em Letras<br />
UNIANDRADE<br />
Reitor: Prof. José Campos de Andrade<br />
Vice-Reitora: Prof. Maria Campos de Andrade<br />
Pró-Reitora Financeira: Prof. Lázara Campos de Andrade<br />
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão:<br />
Prof. M.Sc. José Campos de Andrade Filho<br />
Pró-Reitora de Planejamento: Prof. Alice Campos de Andrade Lima<br />
Pró-Reitora de Graduação: Prof. M.Sc. Mari Elen Campos de Andrade<br />
Pró-Reitor Administrativo: Prof. M.Sc. Anderson José Campos de Andrade<br />
Editoras: Brunilda T. Reichmann e Anna Stegh Camati<br />
CONSELHO EDITORIAL<br />
Anna Stegh Camati, Brunilda T. Reichmann<br />
Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo<br />
CONSELHO CONSULTIVO<br />
Prof. Dr. Maria Sílvia Betti (USP), Prof. Dr. Anelise Corseuil (UFSC), Prof. Dr. Carlos<br />
Dahglian (UNESP), Prof. Dr. Laura Izarra (USP), Prof. Dr. Clarissa Menezes Jordão<br />
(UFPR), Prof. Dr. Munira Mutran (USP), Prof. Dr. Miguel Sanches Neto (UEPG), Prof.<br />
Dr. Thaïs Flores Nogueira Diniz (UFMG), Prof. Dr. Beatriz Kopschitz Xavier (USP),<br />
Prof. Dr. Graham Huggan (Leeds University), Prof. Dr. Solange Ribeiro de Oliveira<br />
(UFMG), Prof. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Prof. Dr. Aimara da<br />
Cunha Resende (UFMG), Prof. Dr. Célia Arns de Miranda (UFPR), Prof. Dr. Simone<br />
Regina Dias (UNIVALI), Prof. Dr. Claus Clüver (Indiana University), Prof. Dr. Helena<br />
Bonito Couto Pereira (Universidade Presbiteriana Mackenzie).<br />
Projeto gráfico, capa e diagramação eletrônica: Brunilda T. Reichmann<br />
Revisão: Anna S. Camati, Sigrid Renaux, Mail Marques de Azevedo,<br />
Brunilda T. Reichmann<br />
2
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong> / Brunilda T. Reichmann / Anna Stegh<br />
Camati – v. 9 - n. 2 – jul.-dez. 2011<br />
Curitiba: UNIANDRADE, 2011<br />
Publicação semestral<br />
ISSN 1679-5520<br />
1. Linguística, Letras e Artes – Periódicos<br />
I. Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE<br />
– Programa de Pós-Graduação em Letras<br />
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<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
SUMÁRIO<br />
Apresentação 06<br />
DOSSIÊ TEMÁTICO: INTERTEXTOS / INTERARTES / INTERMÍDIAS II<br />
Ekphrasis in Girl with a Pearl Earring 10<br />
Miriam de Paiva Vieira<br />
A construção de um espaço mítico/nacional em "Paraíso filosófico",<br />
de João Guimarães Rosa 29<br />
Waldir Batista Pinheiro de Barcelos<br />
Léa Dutra Costa<br />
Em nome do pai: texto de Gerry Conlon na tela de Jim Sheridan 45<br />
Maria Inês Chaves<br />
Brunilda T. Reichmann<br />
Transposição midiática: a representação da memória no texto<br />
dramático de Margaret Edson e no filme de Mike Nichols 74<br />
Simone Sicora Poleto<br />
Anna Stegh Camati<br />
Prospero's Books: Peter Greenaway's intersemiotic transcreation<br />
of Shakespeare 97<br />
Célia Guimarães Helene<br />
Maria Luiza Atik<br />
Romeo and Juliet: a tragedy retold in the shanty towns of Rio 115<br />
Elizabeth Ramos<br />
Shakespeare em português do Brasil: as traduções em verso<br />
de José Roberto O'Shea 127<br />
Paulo Henriques Britto<br />
Marcia A. P. Martins<br />
As convenções do gênero detetivesco no romance gráfico<br />
Paul Auster´s City of Glass 143<br />
Camila Augusta Pires de Figueiredo<br />
Thaïs Flores Nogueira Diniz<br />
4
Textos intermidiáticos na literatura infanto-juvenil<br />
de Neil Gaiman e Dave McKean 158<br />
Chantal Herskovic<br />
Alice in Sunderland: a linguagem dos quadrinhos em revista 174<br />
Chantal Herskovic<br />
Akemi Ishihara Alessi<br />
Literatura e cibercultura: um olhar sobre os textos<br />
multimidiáticos na internet 191<br />
Elaine Cristina Carvalho Duarte<br />
Simone Silveira de Alcântara<br />
liter@tur@eletronica.com 209<br />
Verônica Daniel Kobs<br />
Dossiês temáticos das próximas edições 230<br />
Normas para apresentação de trabalhos 231<br />
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<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Apresentação<br />
O número 2 do volume 9 da <strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong> (2011), cujo dossiê<br />
temático é Intertextos / Interartes / Intermídias II, dá continuidade<br />
ao conjunto de artigos que discute abordagens teóricas e/ou estudos de<br />
casos que envolvem as relações entre diversas artes e mídias, tais como<br />
combinações, integrações, mediações e transformações.<br />
Os dois primeiros ensaios analisam textos que utilizam o recurso<br />
retórico da ecfrase, cujo âmbito foi ampliado por influentes críticos na<br />
contemporaneidade. O artigo de Miriam de Paiva Vieira, “Ekphrasis in<br />
Girl with a Pearl Earring”, mostra que o texto Moça com brinco de pérola, título<br />
da obra em português, da escritora estadunidense Tracy Chevalier, é<br />
constituído de construções ecfrásticas que remetem à vida e obra do mestre<br />
holandês Johannes Vermeer, interpretadas de forma romanceada pela<br />
protagonista Griet, a modelo fictícia do retrato homônimo. Na sequência,<br />
a visão mítica do universo poético roseano é descrita no estudo de Waldir<br />
Batista Pinheiro de Barcelos e Léa Dutra Costa, “A construção de um<br />
espaço mítico/nacional em ‘Paraíso filosófico’, de João Guimarães Rosa”.<br />
O autor salienta que o processo de construtividade ecfrástico utilizado na<br />
composição do poema, inspirado em um significante pictural, poderia ser<br />
percebido como uma espécie de hipotipose, ou seja, uma descrição viva de<br />
algo que se apresentou à vista do observador-poeta e que foi relacionado<br />
utopicamente ao cenário brasileiro.<br />
Teorias recentes sobre adaptação fílmica são utilizadas como<br />
abordagem teórica nos dois artigos seguintes. Maria Inês Chaves e<br />
Brunilda T. Reichmann, com base nas premissas teóricas de Robert Stam,<br />
Linda Hutcheon e outros, estabelecem um diálogo entre um acontecimento<br />
da história da Irlanda e Inglaterra durante a atuação terrorista do IRA (Irish<br />
Republican Army), na década de 1970, e as versões autobiográfica e fílmica<br />
do mesmo episódio, no início da década de 1990, no artigo “Em nome do<br />
pai: o texto de Gerry Conlon na tela de Jim Sheridan”. O relato da narrativa<br />
autobiográfica Proved Innocent (1990), de Gerry Conlon – um dos envolvidos<br />
no caso – foi transposto para a grande tela pelo cineasta Jim Sheridan em<br />
1993, em pareceria com outro irlandês, Terry George, sob o título In the<br />
Name of the Father. O filme teve repercussão internacional e causou arrefecida<br />
polêmica na Inglaterra por adaptar a história de quatro pessoas inocentes<br />
que, por um erro do sistema judicial inglês, foram condenadas à prisão<br />
6
perpétua por suspeita de terem praticado atos terroristas. Em “Transposição<br />
midiática: a representação da memória no texto dramático de Margaret<br />
Edson e no filme de Mike Nichols”, Simone Sicora Poleto e Anna Stegh<br />
Camati analisam a representação dos mecanismos da memória<br />
transformados em técnicas de construtividade textual na peça Wit (1993),<br />
de Margaret Edson, e a apropriação e transcodificação dessas estratégias<br />
na versão fílmica homônima, que em português recebeu o título de Uma<br />
lição de vida (2001), com direção de Mike Nichols. O estudo comparativo é<br />
realizado à luz de estudos filosóficas, sociológicos e de crítica literária de<br />
Henri Bergson, Maurice Halbwachs, Ecléa Bosi e Samuel Beckett, que se<br />
dedicaram a perscrutar os meandros da memória, e de considerações teóricas<br />
sobre as especificidades do cinema de Marcel Martin e outros críticos.<br />
Filmes inspirados nas peças de Shakespeare e traduções dos textos<br />
do bardo para o português formam o eixo de discussão dos três artigos<br />
seguintes. No ensaio “Prospero’s Books: Peter Greenaways’s transcreation of<br />
Shakespeare”, Célia Guimarães Helene e Maria Luiza Atik argumentam<br />
que no filme Prospero’s Books (1991), recriação cinematográfica da peça A<br />
tempestade (1611), Peter Greenaway distancia-se do viés utilizado por vários<br />
diretores no processo de adaptação de textos literários, criando um mosaico<br />
poético de imagens, vozes e textos, repleto de alusões, referências e recriações<br />
em diálogo com o universo pictórico barroco e renascentista. A seguir, a<br />
tragédia shakespeariana sobre os amantes de Verona é revisitada por<br />
Elizabeth Ramos em “Romeo and Juliet: a tragedy retold in the shanty towns<br />
of Rio”. A partir do enfoque dos estudos de tradução, a autora examina o<br />
filme Maré, nossa história de amor, com direção de Lucia Murat, que estreou<br />
no Brasil em 2007. A narrativa é transposta para a favela de Maré, no Rio<br />
de Janeiro do século XXI, envolvendo o drama no manto da criminalidade,<br />
do tráfico de drogas e da violência urbana, tão frequente nas regiões<br />
metropolitanas do Brasil contemporâneo. Murat, na condição de diretora e<br />
roteirista, entende o processo de tradução como resultado de uma<br />
interpretação conduzida a partir de outro lugar de fala. O terceiro artigo<br />
dessa sequência, escrito por Paulo Henriques Britto e Marcia A. P.<br />
Martins, intitulado “Shakespeare em português do Brasil: as traduções em<br />
verso de José Roberto O’Shea”, apresenta, inicialmente, a estratégia global<br />
adotada por O’Shea nas três primeiras traduções anotadas que realizou de<br />
peças de William Shakespeare: Antônio e Cleópatra, Cimbeline, rei da Britânia e<br />
O conto do inverno. Em seguida, os autores examinam um aspecto formal<br />
dessa estratégia, que é a métrica ancorada em decassílabos brancos ou<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 7
imados, de acordo com a distribuição do original. A análise focaliza<br />
especialmente as soluções encontradas pelo tradutor para recriar em<br />
português o pentâmetro iâmbico branco que é o metro mais característico<br />
da poesia dramática shakespeariana.<br />
As linguagens das histórias de quadrinhos e do romance gráfico são<br />
focalizadas em três ensaios, a partir de óticas contemporâneas teorizadas,<br />
principalmente, por Claus Clüver e Leo Hoek. Em “As convenções do<br />
gênero detetivesco no romance gráfico Paul Auster’s City of Glass”, Camila<br />
Augusta Pires de Figueiredo e Thaïs Flores Nogueira Diniz descrevem<br />
os processos de criatividade, de Karasik e Mazzucchelli, na transposição da<br />
primeira novela de Paul Auster, publicada em The New York Trilogy, para a<br />
linguagem dos quadrinhos. As autoras mostram, por meio da comparação<br />
das duas obras, como a narrativa quadrinizada expande e modifica as ideias<br />
em “City of Glass”, de Auster. No estudo “Textos intermidiáticos na<br />
literatura infanto-juvenil de Neil Gaiman e Dave McKean”, Chantal<br />
Herskovic discorre sobre duas obras da literatura infanto-juvenil, Os lobos<br />
dentro das paredes e Cabelo doido, de Neil Gaiman e do ilustrador e artista<br />
gráfico Dave McKean, que podem ser consideradas textos intermidiáticos<br />
e mistos por fundirem texto escrito e imagem. Em ambas as obras, as<br />
palavras complementam as imagens e vice-versa, de forma a criar uma<br />
narrativa visual que explora o uso da ilustração, da colagem e da topografia.<br />
No artigo “Alice in Sunderland: a linguagem dos quadrinhos em revista”,<br />
Chantal Herskovic e Akemi Ishihara Alessi, após uma breve exposição<br />
da história das histórias em quadrinhos, se debruçam sobre o romance<br />
gráfico Alice in Sunderland, de Brian Talbot, esclarecendo que o autor se<br />
inspira na vida e obra de Lewis Carroll e em fatos e histórias da cidade de<br />
Sunderland, manipulando várias referências intertextuais e intermidiáticas.<br />
As pesquisadoras também ressaltam que Talbot se apropria de imagens e<br />
ilustrações, em transposições intersemióticas, fusões e sobreposições,<br />
explorando a composição das páginas e outras especificidades da linguagem<br />
dos quadrinhos, de modo a criar uma obra contemporânea multifacetada<br />
e complexa.<br />
A questão das novas mídias derivadas de mídias já consagradas<br />
constitui o foco do ensaio de Elaine Cristina de Carvalho Duarte e<br />
Simone Silveira de Alcântara, intitulado “Literatura e cibercultura: um<br />
olhar sobre textos multimidiáticos na internet”. O estudo aborda a publicação<br />
e a leitura literária na era do texto digital, tendo em vista que a mídia virtual<br />
tem influenciado significativamente os hábitos dos escritores e leitores. Os<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
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textos sob enfoque, de publicação exclusiva na internet, de Samir Mesquista<br />
e Victor Az, são analisados sob a perspectiva das teorias de medialidade,<br />
atos de leitura, hibridismo, dentre outras. Em “liter@tur@eletronica.com”,<br />
Verônica Daniel Kobs, com base nos conceitos de Gérard Genette,<br />
Umberto Eco e Denise Guimarães, reflete sobre a arte literária que encontra<br />
novas formas de expressão na mídia digital, como resultado da utilização<br />
de um suporte eletrônico, associado a um espaço híbrido e,<br />
consequentemente, aos processos de reciclagem que envolvem conceitos<br />
de texto e autoria. Por meio de análises de cibertextos, videopoemas e<br />
hipertextos, o estudo demonstra que a literatura se tornou eletrônica, para<br />
adaptar-se à sociedade contemporânea, apresentando as mesmas<br />
características que o ciberespaço oferece: imediatez, interação e tecnologia.<br />
Na era da tecnologia digital e eletrônica, o foco da discussão entre<br />
artes e mídias foi ampliado devido à mudança de paradigmas engendrada<br />
pelos estudos intermidiáticos que incluem não apenas as relações<br />
interartísticas, mas também as manifestações midiáticas da cultura popular<br />
e de massa e as produções do ciberespaço. Os artigos dos autores do<br />
número 2, volume 9 da revista, evidenciam o amplo interesse por esse<br />
campo de estudos, cujas raízes históricas se encontram na estética, filosofia,<br />
semiótica, literatura comparada e estudos interartes.<br />
As editoras<br />
Voltar para o Sumário<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 9
EKPHRASIS IN GIRL WITH A PEARL EARRING<br />
Abstract: Ekphrasis is the term used to<br />
define verbal descriptions of non-verbal<br />
sign systems, generally poetry. This essay<br />
aims to use the concept of ekphrasis<br />
within the universe of intermediality to<br />
analyse the novel Girl with a Pearl Earring,<br />
by the American author Tracy Chevalier,<br />
who lives in London at present. The<br />
literary work, built by means of<br />
ekphrastic descriptions, is a type of novel<br />
called Künstlerroman. The life and artwork<br />
of the Dutch painter Johannes Vermeer<br />
are blended with fiction and told by the<br />
invented model of the portrait Girl with<br />
a Pearl Earring, Griet, who also happens<br />
to be the protagonist of this novel.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Miriam de Paiva Vieira<br />
miriamvieira@gmail.com<br />
Art does not reproduce the visible, rather, it makes visible.<br />
Paul Klee<br />
Resumo: Ecfrase é um termo usado<br />
para definir descrições verbais de signos<br />
não verbais, na maioria das vezes, poesia.<br />
Este ensaio tem como objetivo utilizar<br />
o conceito de ecfrase, dentro do universo<br />
da intermidialidade, para analisar o<br />
romance Moça com brinco de pérola, da<br />
autora americana, radicada em Londres,<br />
Tracy Chevalier. A obra literária que se<br />
constrói em torno de descrições ecfrásticas<br />
é um tipo de romance conhecido como<br />
Künstlerroman. A vida e obra do mestre<br />
holandês Johannes Vermeer são<br />
interpretadas de forma romanceada por<br />
Griet, a modelo fictícia do retrato Moça<br />
com brinco de pérola, que é também<br />
protagonista do romance.<br />
Key words: Intermediality. Johannes Vermeer. Ekphrasis. Literature and painting.<br />
Palavras-chave:. Intermidialidade. Johannes Vermeer. Ecfrase. Literatura e pintura.<br />
10
In the mid-nineties, 1995/96, an art exhibit, gathering all known oil<br />
paintings by the Dutch master Johannes Vermeer, took place simultaneously<br />
in two venues, the National Gallery, Washington D.C., and the Mauritshuis,<br />
The Hague. This exhibit produced a catalogue, symposia, and seminars. As<br />
a consequence of such interest a boom of intersemiotic translations having<br />
Vermeer’s work as inspiration for literature, in the form of poetry, novels,<br />
and movies happened. Vermeer’s work “really made a hit-fiction-wise”<br />
through novels, poems, and movies. 1<br />
Johannes Vermeer (1632-1675) was born in Delft, Netherlands,<br />
and was died practically unknown at the early age of 43. According to<br />
Norbert Schneider, very little is known about his life. Vermeer’s family<br />
lived on the first floor of his mother-in-law’s house, Maria Thins. He kept<br />
his studio on the second floor, which was furnished with a heavy wooden<br />
table and the lion chairs present in many of his paintings. The painter also<br />
used his wife’s clothes and jewels in his compositions (SCHNEIDER, 2005,<br />
p. 7-10). Svetlana Alpers mentions Vermeer’s very strong trademark: the<br />
representation of women as the object of male attention. There were no<br />
children in his scenes, for instance, different from the domestic context of<br />
Italian art. He preferred to represent women reading, writing, getting dressedup<br />
and working alone on daily housework. Repetitively isolating women as<br />
his main theme, Vermeer’s art is essentially descriptive. He passionately<br />
proposes a non-violated, self-sufficient world in which he exists through<br />
these women (ALPERS, 1999, p. 398-400).<br />
The portrait Girl with a Pearl Earring (1665-67) has been called the<br />
Gioconda of the North because of its “enigmatic nature depicted under<br />
subtle chromatic harmony” (SLIVE, 1998, p. 151). There is no record of<br />
who the model was. The girl is wearing a maid’s clothes in contrast to the<br />
pearl earring, a symbol of wealth and chastity at the time. Schneider suggests<br />
that the pearl earring might be a reference to the biblical passage in which<br />
Isaac sends Rebecca a pair of pearl earrings as a sign of his love. So, the<br />
portrait might have been commissioned as the model’s wedding gift.<br />
(SCHNEIDER, 2005, p. 69-72). Its original Dutch title is Meisje met de parel,<br />
which literally translated into English is “Girl with the Pearl”. For Arthur<br />
Wheelock (2004), the portrait “is one of Vermeer’s most lucid paintings”<br />
(p. 92). Nowadays the portrait resides at the Mauritshuis Gallery in The<br />
Hague, Netherlands.<br />
In 1999, Tracy Chevalier, an expatriate American living in London,<br />
inspired by the portrait Girl with a Pearl Earring (1665-67), released a novel<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 11
with the same title based on Vermeer’s painting blending fiction, his life and<br />
other historical facts. This kind of literary work, in which “a work of art or<br />
the figure of an artist – painter, sculptor, musician, it does not matter – is<br />
the backbone element” 2 (OLIVEIRA, 1993, p. 40) of the novel, is known<br />
as Künstlerroman. The Künstlerroman or the novel of the artist, from the<br />
German Künstler meaning “artist” and Roman meaning “novel”, was<br />
developed in Germany in the 19th century and became a mode of literary<br />
representation of the artist. According to Linda Hutcheon, this literary<br />
tradition came “out of the Bildungsroman 3 [...] with its preoccupation with<br />
the growth of the artist” (HUTCHEON, 1984, p. 12), in which the internal<br />
creative experience is filtered through the character or the narrator.<br />
Solange Oliveira explains that the Künstlerroman is a narrative in which<br />
aesthetic and technical aspects are part of the plot, and the creative artistic<br />
solutions affect other aspects of the artist’s life. Moreover, she defines as<br />
Künstlerroman “any kind of narrative in which the figure of the artist or a<br />
piece of artwork, real or fictitious, plays an essential structural role, also<br />
encompassing literary works which pursue a stylistic equivalent based on<br />
the other arts” 4 (OLIVEIRA, 1993, p. 05). Oliveira calls attention to how<br />
helpful it is to delve into the relationship between literature and the other<br />
arts in Horace’s ut pictura poesis tradition (OLIVEIRA, 1993, p. 05-06), so<br />
that literary criticism can be enriched by borrowing semiotic elements from<br />
the different art forms. We shall see Künstlerroman qualities in the study of<br />
the protagonist of Girl with a Pearl Earring, who is not the master Vermeer,<br />
but his assistant and muse, the maid Griet. The novel is told in the first<br />
person by Griet who as narrator both plays the role of the author of the<br />
narrative and functions as Vermeer’s collaborator.<br />
In the painting there are only two characters, the model and the<br />
painter. There is no historical account of this specific model as it happens<br />
with the models of several other oil paintings, but only speculations about<br />
who she could have been.<br />
Chevalier, chooses to create a fictional character, Griet, a Dutch<br />
Protestant teenager who becomes a maid in the house of the painter Johannes<br />
Vermeer. Her calm and perceptive manner not only helps her in her<br />
household duties, but also attracts the painter’s attention. Though different<br />
in upbringing, education and social standing, they have a similar way of<br />
looking at things.<br />
The two main characters first meet at Griet’s house while she is<br />
preparing some salad. Her awareness of color in doing such an ordinary<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
12
task attracts the painter’s attention. The painter and his wife, Catharina, need<br />
a maid to clean the master’s studio. Griet needs a job because her father, a<br />
tile artisan, has just lost his sight in a work accident and cannot support his<br />
family anymore. The Vermeers are there to settle the <strong>final</strong> details of her<br />
hiring. After Griet starts working in their house, Vermeer slowly draws her<br />
into the world of his paintings: the still, luminous images of solitary women<br />
in domestic settings. A bond between maid and master is formed as she<br />
becomes responsible for cleaning his studio – a place so private that not<br />
even his wife is allowed to enter. On the verge of womanhood, Griet also<br />
contends with the attentions both from the butcher’s son, Pieter, and from<br />
Vermeer’s patron, van Ruijven. She has to find her way through this new<br />
and strange life outside the loving Protestant family she grew up in, now<br />
fragmented by accident and death, as her father becomes blind as mentioned<br />
above, her sister dies of the plague and her brother moves to another town<br />
to find work.<br />
The growing intimacy between master and maid creates disruption<br />
and jealousy. At first, Griet describes the artworks to her father, who has<br />
always been a great admirer of the master’s work, when visiting her family<br />
over the weekends. Griet leaves her maid status behind when elevated to<br />
master’s assistant by helping him with the preparation of the colors by<br />
mixing pigments and they start discussing his art pieces as he finishes a<br />
painting and starts a new one. Van Ruijven gets interested in Griet since the<br />
very first time he sees her. He is determined to have the wide-eyed maid, as<br />
he likes to call her. Besides van Ruijven, no one else agrees with Griet’s<br />
modeling, because of rumors involving the maid who last did so for the<br />
painting The Girl with a Wine Glass and became pregnant even before the<br />
painting was finished. Van Ruijven’s obsession leads to the climax of the<br />
story when Griet becomes Vermeer’s muse, culminating in her sitting for<br />
the portrait Girl with a Pearl Earring. The novel can be considered a<br />
Künstlerroman because the core of its narrative is built on Vermeer’s real life<br />
and the story of the mysterious girl he painted. The literary work is enriched<br />
by borrowing elements from painting shown by ekphrastic descriptions<br />
through Griet’s reading of Vermeer’s work.<br />
Chevalier makes vast use of descriptions of Vermeer’s paintings in<br />
the narrative of the novel Girl with a Pearl Earring, which is named after the<br />
portrait. Griet, the female protagonist, lays out the core of the story through<br />
a series of descriptions. This ancient descriptive device, which became<br />
rather popular during the Romantic Movement in the nineteenth century, is<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 13
known as ekphrasis. The term is used to define verbal descriptions of nonverbal<br />
signs, frequently in form of poetry. Concerning the universe of<br />
intermediality, Irina Rajewsky (2005) claims that ekphrasis is an intermedial<br />
phenomenon within the larger category “intermedial references” (p. 52).<br />
James Heffernan (1991) proposed the definition: “verbal<br />
representation of graphic representation” (p. 299). However, this definition<br />
“emphatically excluded as objects of ekphrastic representation all nonrepresentational<br />
paintings and sculptures and all architecture” (CLÜVER,<br />
1998, p. 13). Claus Clüver, therefore, proposes to define ekphrasis as “the<br />
verbal representation of a real or fictitious text composed in a non-verbal<br />
sign system” (1997, p. 26) which, according to him, is a broader, yet less<br />
elegant, definition. In a later article (2007), he defines ekphrasis as “verbal<br />
representations of texts composed in non-verbal sign systems” in order to<br />
broaden the forms of representations to media other than painting and<br />
sculpture (p. 23-25). Clüver’s proposal, therefore, opens the door to the<br />
study of ekphrasis within different semiotic systems.<br />
For Tamar Yacobi (1995), ekphrasis, “the literary evocation of spatial<br />
art, is an umbrella term that subsumes various forms of rendering the<br />
visual object into words” (p. 600). Although her view limits ekphrasis to<br />
literary texts and visual arts, Yacobi develops a helpful chart showing<br />
ekphrastic relations between visual sources, which she calls a representation<br />
of artworks, and its verbal targets, which she calls the artworks representation<br />
in literature. The former is one-to-one, from a visual source to<br />
a verbal target, i.e., the traditional ekphrastic relation, with one artwork<br />
inspiring one verbal text typically in the form of poetry. The latter is from<br />
one to many; it takes place when one image is the source of many verbal<br />
texts, such as the dozen poems inspired by Breughel’s Icarus. This relationship<br />
is “usually considered the limit of ekphrasis.” Its reverse is the many-to-one<br />
relation – a kind of “cumulative text … that covers a group of works<br />
produced by some artist, often as an act of homage.” The last one, the<br />
many-to-many relation takes place “when a writer, a school, or an age<br />
revisits a certain image common to various paintings” (p. 602-03). I should<br />
also mention the ‘pregnant moment.’ It is the moment right before the<br />
climax of the novel which stimulates the reader’s imagination in a two-way<br />
interart movement between source artwork and verbal target (p. 612).<br />
Another contribution is from the French theoretician Liliane Louvel.<br />
She proposes seven levels of pictorial saturation culminating in ekphrasis<br />
(LOUVEL, 2001, p. 175-89). In two of her articles, Peindre les nuages pour<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
14
evoquer la lune and Seeing Dutch, Louvel uses ekphrastic excerpts from the<br />
novel Girl with a Pearl Earring to illustrate how literature has been borrowing<br />
elements from different semiotic systems. Louvel’s levels of pictorial<br />
saturation are the following:<br />
1. Tableau Effect: produced by the most diluted memory, herefore the<br />
most subjective of the levels, in which a “suggestive effect is so strong<br />
that the painting seems to be haunting the text” 5 (LOUVEL, 2001, p.<br />
177).<br />
2. Picturesque View: 6 The scene is detailed, the background and the form<br />
are distinguished; the repertoire of shapes, colors and dimensions turn<br />
the scene into a tableau.<br />
3. Hypotypose: Descriptive narrative, direct reference to the painting. It is up<br />
to the reader to make, or not, the association.<br />
4. Tableaux vivants: The characters reproduce a painting or a historical scene<br />
presented by the narrator.<br />
5. Aesthetic or Artistic Arrangement: 7 Composition which leads the character<br />
to contemplation, such as a still-life; there is no direct reference to a<br />
specific painting. This arrangement favors the reflexive effect.<br />
6. Pictorial Description: 8 “The text frames the description of a painting” 9<br />
(LOUVEL, 2006, p. 204). The narrator’s linguistic competence is tested,<br />
as it highlights his ability to paint with words (LOUVEL, 2006, p. 202-<br />
03). A description is like an expansion of the narrative. It justifies the<br />
character’s gaze by leading the readers through his eyes (HAMON. n.d.,<br />
p. 58). A pictorial description takes place “when the text dreams with<br />
the image” 10 (LOUVEL, 2006, p. 217).<br />
7. Ekphrasis: “The highest level of pictorial saturation. . . . It is a high level<br />
literary exercise in which a work of art evolves from the visible to the<br />
readable” 11 (LOUVEL, 2001, p. 184).<br />
I chose to divide the novel’s ekphrastic moments into three different<br />
categories of description in order to optimize my analysis. These categories<br />
are in accordance with recurrent patterns I identified among the ways the<br />
characters describe the paintings. I call the first category ‘Post-work<br />
Descriptions’, they refer to existing artworks being described by one of the<br />
characters. The female protagonist, Griet, describes some works to her<br />
blind father, a great admirer of the master. I chose to use two examples<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 15
here: one of them is the description of the painting A View of Delft, the<br />
other is The Girl with a Wine Glass.<br />
The first ekphrastic moment, the painting A View of Delft (see Fig.<br />
1) is described at the very beginning of the novel when Griet and her father<br />
are talking about her new job in which she will be in charge of cleaning<br />
Vermeer’s studio. The father is telling her who Vermeer is by recalling one<br />
of his famous paintings they had seen together:<br />
“It was a view of Delft, from the Rotterdam and Schiedam Gates.<br />
With the sky that took up so much of the painting, and sunlight on<br />
some of the buildings.”<br />
“And the paint had sand in it to make the brickwork and the roofs<br />
look rough,” [Griet] added. “And there were long shadows in the<br />
water, and tiny people on the shore nearest us.”<br />
“That’s the one.” Father’s sockets widened as if he still had eyes<br />
and was looking at the painting again. (CHEVALIER, 1999, p. 7-8)<br />
Fig. 1 – Johannes Vermeer, A View of Delft – Gezicht op Delft – (Delft, 1660-61), oil<br />
painting, 38¾ x 46¼ in. Mauritshuis, The Hague; rpt. in A Complete Catalogue of<br />
Johannes Vermeeer’s Paintings. Essential Vermeer. Available at: . Access in: 28 Aug. 2011. 1<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
16
The second ekphrastic description, the painting The Girl with a Wine Glass<br />
(see Fig. 2), is described by several characters. The most relevant description<br />
is given by Pieter, the butcher’s son. Pieter makes the rumors about the<br />
maid clear to Griet while verbally describing the scene:<br />
It was several years ago now. It seems van Ruijven wanted one of his<br />
kitchen maids to sit for a painting with him. They dressed her in one of his<br />
wife’s gowns, a red one, and van Ruijven made sure there was wine in the<br />
painting so he could get her to drink every time they sat together. Sure<br />
enough, before the painting was finished she was carrying van Ruijven’s<br />
child. (CHEVALIER, 1999, p. 126)<br />
Fig. 2 – Johannes Vermeer, The Girl with the Wine Glass – Dame en twee heren – (Delft,<br />
1659-60), oil painting, 30 ¾ x 26 3/8 in. Herzog Anton Ulrich-Museum, Brunswick.<br />
The second category, ‘Pre-work ekphrastic moments’, occurs when<br />
there is a discussion of how a certain scene should be depicted: the theme,<br />
the disposition of objects, the figures, the colors, and even the intended<br />
intensity of light. There are several long dialogues between Griet and her<br />
master, most of them are also discussed throughout the painting execution<br />
in the following section.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 17
The most relevant illustration, that plays a great role on the central<br />
plot, is a brief dialogue during a dinner party between van Ruijven and<br />
Maria Thins on Vermeer’s next commission. Van Ruijven notices the “wideeyed<br />
maid,” as he likes to call Griet, while she is serving them. Maria Thins<br />
recalls how pleased he was with the painting The Music Lesson (see Fig. 3)<br />
and suggests “another with a musical setting. After a lesson, a concert, perhaps<br />
with more people in it, three or four musicians, an audience” (CHEVALIER,<br />
1999, p. 154). Van Ruijven is against an audience but likes the idea and<br />
shows his interest in being in the painting with Griet. Maria Thins agrees at<br />
first and even compares it to The Girl with a Wine Glass. After all, she is<br />
aware of how interested the patron is in Griet and how much money he<br />
could be willing to spend on her. However, later on Maria Thins agrees<br />
with Vermeer that Griet should not be in the group scene, because she<br />
wants to avoid problems with her daughter, Catharina Bolnes, who is<br />
pregnant and could not bear the idea of the maid modeling for her husband.<br />
Van Ruijven insists that he wants his wide-eyed maid even if it cannot be in<br />
flesh but rather on a piece of canvas for him to admire her beauty. They all<br />
agree to keep it a secret in order to protect Catharina from her self-destructive<br />
jealousy. Van Ruijven, his wife and daughter end up sitting together in the<br />
group scene: the painting The Concert (see Fig. 4). The <strong>final</strong> result of the<br />
commission negotiation is the portrait Girl with a Pearl Earring.<br />
Griet also describes the setting for the painting when she finds<br />
herself in the picture scene before modeling for Vermeer. She actually<br />
describes the painting The Procuress by Dirck van Baburen (see Fig. 5):<br />
As I waited I studied the paintings he had hung on the back wall that<br />
would form part of the concert painting. There was a landscape on the left,<br />
and on the right a picture of three people – a woman playing a lute, wearing<br />
a dress that revealed much of her bosom, a gentleman with his arm around<br />
her, and an old woman. (168-69)<br />
In spite of being brief, it is important to discuss this illustration of<br />
ekphrastic description for this category – pre-work descriptions – as it<br />
displays relevant details concerning plot development which will conduct<br />
to the climax of the story.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
18
Fig. 3 – Johannes Vermeer, The Music Lesson – De muziekles – (Delft, 1664-67), oil<br />
painting, 28 7/8 x 25 3/8 in. The Royal Collection, Buckingham Palace.<br />
Fig. 4 – Johannes Vermeer, The Concert – Het concert – (Delft, 1664-67), oil painting, 28<br />
½ x 25 ½ in. Isabella Gardner Museum, Boston (stolen).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 19
Fig. 5 – Dirck van Baburen, The Procuress (1622), oil painting, 39 ¾ x 42 ¼ in. Museum<br />
of Fine Arts, Boston.<br />
The last category, ‘Descriptions of Works in Progress’, refers to<br />
dialogues during the painting process. There are several dialogues between<br />
Griet, Vermeer and Van Leeuwenhoek, Vermeer’s friend known for having<br />
invented the camera obscura. The paintings Woman with a Pearl Necklace, Young<br />
Woman with a Water Jug, A Lady Writing and the portrait Girl with a Pearl<br />
Earring are thoroughly described in the book. 1<br />
In addition to the paintings by Vermeer mentioned throughout the<br />
novel, there is also the question of the biblical imagery present in paintings<br />
by other painters hanging on the walls. Since the Vermeers are Catholic and<br />
Griet is Protestant, it is difficult for her to understand and accept their<br />
worship of religious images.<br />
The most elaborate ekphrastic description, the portrait Girl with a<br />
Pearl Earring (see Fig. 6), is the climax of the novel. The whole plot conspires<br />
in favor of this moment. Nevertheless, this description is different from all<br />
the others. Its focus is on the protagonist’s feelings while she is being<br />
portrayed, as well as on her interaction with the master during the negotiation<br />
of the portrait. Many of the ekphrastic descriptions studied here are<br />
interwoven with this one. The reader not only identifies the portrait but also<br />
easily visualizes it in the novel.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
20
The excerpt starts from van Ruijven’s obsession with Griet expressed<br />
in the description of The Girl with a Wine Glass. During the negotiation of<br />
Vermeer’s next commission, The Concert, it is agreed that Griet will be<br />
portrayed alone, and not beside van Ruijven, in order to avoid pregnant<br />
Catharina’s jealousy. Griet, though relieved and excited, is aware of the<br />
drawbacks her proximity to Vermeer might bring her.<br />
According to the novel, they start the project on the first day of the<br />
year. Vermeer had already laid the first coat of paint on the canvas, no<br />
“reddish marks,” “false colors,” or even the luminous spots as usual. The<br />
canvas is an empty “yellowish white” (CHEVALIER, 1999, p. 177). Vermeer<br />
asks Griet to read a letter. She considers telling him that the paper is blank,<br />
but chooses to stay quiet. He suggests a book, but concludes that the problem<br />
is in her clothes. She suggests that he paint her as a maid but he refuses:<br />
“What do you want, sir?” I asked, sitting. I was puzzled – we never sat<br />
together. I shivered, although I was not cold.<br />
“Don’t talk.” He opened a shutter so that the light fell directly on my face.<br />
“Look out of the window.” He sat down in his chair by the easel.<br />
I gazed at the New Church tower and swallowed. I could feel my jaw<br />
tightening and my eyes widening.<br />
“Now look at me.” (CHEVALIER, 1999, p. 168-69)<br />
Griet turns her head over her shoulder to face the painter. He asks<br />
her to sit still. She realizes that she is actually being painted by Vermeer.<br />
Only a month later did they continue the modeling. After much negotiation<br />
over the composition of the painting, the master states that he “will paint<br />
[her] as [he] first saw [her], Griet. Just [her]” (CHEVALIER, 1999, p. 179-80).<br />
The painter and the model negotiate the composition of the portrait:<br />
the clothes, the blue and yellow turban instead of the traditional maid’s cap,<br />
the body turned towards the window, the gaze of her wide open eyes, the<br />
glossy lips, and, <strong>final</strong>ly, the pearl earring. The painter worries in particular<br />
about the way the light is reflected on the model’s face. Griet, the fictional<br />
model, was highly aware of it the whole time; she knows that what really<br />
matters to him is the <strong>final</strong> result as requested by his patron. The girl is<br />
important only as his muse and not as a woman. While she does not fight<br />
her feelings towards the painter, Griet follows the natural course of her life<br />
outside of the studio, as evidenced in the excerpt below:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 21
Soon it became easier to keep my eyes on his. He looked at me as if he were<br />
not seeing me, but someone else, or something else – as if he were looking<br />
at a painting.<br />
He is looking at the light that falls on my face, I thought, not at my face<br />
itself. That is the difference.<br />
It was almost as if I were not there. Once I felt this I was able to relax a little.<br />
As he was not seeing me, I did not see him. My mind began to wander –<br />
over the jugged hare we had eaten for dinner, the lace collar Lisbeth had<br />
given me, a story Pieter the son had told me the day before. After that I<br />
thought of nothing. (CHEVALIER, 1999, p. 180)<br />
Griet only agrees to pierce her ears after Vermeer shows her the<br />
work in progress. She continues the description:<br />
The painting was like none of his others. It was just of me, of my head and<br />
shoulders, with no tables or curtains, no windows or powder-brushes to<br />
soften and distract. He had painted me with my eyes wide, the light falling<br />
across my face but the left side of me in shadow. I was wearing blue and<br />
yellow and brown. The cloth wound round my head made me look not like<br />
myself, but like Griet from another town, even from another country<br />
altogether. The background was black, making me appear very much alone,<br />
although I was clearly looking at someone. I seemed to be waiting for<br />
something I did not think would ever happen.<br />
He was right – the painting might satisfy van Ruijven, but something was<br />
missing from it. (CHEVALIER, 1999, p. 191)<br />
One afternoon while Catharina is out, Maria Thins lends the pair<br />
of earrings to Griet and asks her help to have the painting finished as soon<br />
as possible. Vermeer includes the earring in the portrait. Griet asks him to<br />
place the jewel in her ears. Griet leaves the studio, without even taking a last<br />
look at the canvas, and proudly returns the earrings to her mistress. After<br />
all, she had accomplished the task.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
22
Fig. 6 – Johannes Vermeer, Girl with a Pearl Earring – Meisje met de parel – (Delft, 1665-<br />
67), oil painting, 18¼ x 15¾ in. Mauritshuis, The Hague.<br />
The character Griet convinces as a proud model sitting for her<br />
master with whom she is deeply involved. The pearl earring, besides balancing<br />
the light of the composition, has another prime role in the plot: it is the<br />
central element which connects and pushes muse and master away from<br />
each other. Here we encounter the novel’s ‘pregnant moment’ since the very<br />
moment before the climax of the novel does connect the reader’s mind<br />
with the two media involved, the painting as the source and the literary text<br />
as the verbal target.<br />
Finally, the description below is part of the novel’s introduction<br />
when Vermeer meets Griet for the first time: “I always laid vegetables out<br />
in a circle, each with its own section like a slice of pie. There were five slices:<br />
red cabbage, onions, leeks, carrots, and turnips. I had used a knife edge to<br />
shape each slice, and placed a carrot disc in the center.” (CHEVALIER,<br />
1999, p. 5). According to Liliane Louvel, the fifth level of pictorial saturation<br />
is called aesthetic or artistic arrangement and it is found in a character’s gaze.<br />
Although the pictorial lexis is evident in the description above, there is no<br />
direct reference to a specific painting (LOUVEL, 2001, p. 182). The text<br />
serves as a frame for the description of the painting. The narrator works<br />
with words the way a painter would work with a brush on canvas. The<br />
description expands the narrative, extending the protagonist’s view and<br />
enabling the reader to perceive it through the character’s eyes while “the<br />
text dreams with the image” 1 (LOUVEL, 2006, p. 217).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 23
Tracy Chevalier builds her narrative on ekphrastic descriptions of<br />
Vermeer’s artwork. The painter always uses the same elements of<br />
composition in his work: clothing, ornaments, furniture and props on the<br />
table; the corner of his studio and its decoration; industrious silent women<br />
in quotidian activities as theme; the way the light is reflected and attracts the<br />
eye of the observer as style. Through words, the author is able to reproduce<br />
these same elements in the ekphrastic descriptions in the novel.<br />
The analyses of the ekphrastic moments confirm my assumption<br />
that Griet does not play the role of a victim, or a radical protofeminist as<br />
some critics, such as Debora Cibelli and Aruna D’ Souza, have suggested.<br />
Without the ekphrastic descriptions, the master’s artwork would probably<br />
not be so relevant. Through her intermedial references and discussions with<br />
her master, she is the one who verbalizes Vermeer’s silent artwork enabling<br />
the readers visualize his paintings with her words.<br />
The ekphrastic relations in Yacobi’s chart of visual source and verbal<br />
target can be identified in the novel. All of the individual descriptions of<br />
paintings fit the one-to-one relationship. The one-to-many relationship is<br />
seen in descriptions of the same painting by different characters, such as<br />
Girl with a Wine Glass, described and commented on by van Ruijven, Tanneke<br />
and Pieter, among others. Its reverse, the many-to-one relationship, is the<br />
homage paid to Vermeer not only by Chevalier’s work, but also by the<br />
director of its movie adaptation, Peter Webber. Finally the many-to-many<br />
relationship can be found in the boom of transpositions inspired by<br />
Vermeer, which took place in the nineties.<br />
When Chevalier creates the fictional character Griet to verbalize<br />
Vermeer’s work, she chooses to make her outspoken. Griet is able to express<br />
her feelings and is not afraid of the possible repercussions of her actions<br />
and remarks, such as when she slaps the mischievous Cornelia<br />
(CHEVALIER, 1999, p. 22), or when she bluntly refuses the piece of meat<br />
given her by the butcher (CHEVALIER, 1999, p. 40). Furthermore, she<br />
always talks back to her mistress, Maria Thins, who does not put the maid<br />
back in her place partly because she enjoys dealing “with a bit of cleverness”<br />
(CHEVALIER, 1999, p. 45). As time goes by, Griet starts filtering the kind<br />
of information she gives her family during her Sunday visits. In order to be<br />
close to the master, Griet learns to manipulate not only what she says, but<br />
especially to whom, when and how she uses words. She refers to Vermeer<br />
only as “he,” which suggests to the reader how close they are. She starts to<br />
use the same demanding tone as Catharina, e.g., during her visit to her<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
24
other Frans at his new job (CHEVALIER, 1999, p. 68). The change in<br />
her personality leads her to lying. Eventually she acknowledges how she<br />
“began to get used to lying” (CHEVALIER, 1999, p. 107) in order to<br />
avoid enemies and avoid talking about the closeness between her and her<br />
master. Griet stands up for herself whenever necessary, e.g., when she makes<br />
it clear to Maria Thins that she does “not wish to sit with van Ruijven”<br />
(CHEVALIER, 1999, p. 157). Finally, when she leaves the house after<br />
Catharina sees the finished portrait, she is very aware of all the choices she<br />
had made so far and all the possibilities that lay ahead of her.<br />
In short, the female writer gives voice to the silent women in<br />
Vermeer’s work. Chevalier brings a fictional female character, Griet, from<br />
the margins to the center of the narrative making her the voice that tells the<br />
story, blending fiction and historical facts in a different type of Künstlerroman,<br />
since the main character is the fictional muse instead of the real-life artist.<br />
Notes<br />
1 The Music Lesson by Katharine Weber, 2000; The Dance of Geometry by Brian Howell,<br />
2002; Chasing Vermeer by Blue Balliett and The Irish Game: A True Story of Crime and<br />
Art by Matthew Hart, 2004; the poems in the books In Quiet Light: Poems on<br />
Vermeer’s Women by Marilyn Chandler McEntyre, 2000; La pared amarilla by Carlos<br />
Pujol, 2002; the book Music on the Time of Vermeer by Constantijn Huygens, 2000;<br />
and the movie Brush with Faith, 2002, starring Glenn Close, based on the novel Girl in<br />
Hyacinth Blue by Susan Vreeland, 2000; can be cited.<br />
2 My translation from Portuguese: “a obra de arte, ou a figura de um artista – pintor,<br />
escultor, músico, não importa – aparece como elemento estruturador” (OLIVEIRA, 1993, p.<br />
40).<br />
3 Bildungsroman meaning the novel of formation.<br />
4 My translation from Portuguese: “qualquer narrativa onde uma figura de artista ou uma<br />
obra de arte (real ou fictícia) desempenhe função estruturadora essencial, e, por extensão, obras<br />
literárias onde se procure um equivalente estilístico calcado em outras artes” (OLIVEIRA,<br />
1993, p. 05).<br />
5 My translation from French:“L’effet-tableaux: effet de suggestion si fort que la peinture<br />
semble hanter le texte” (“Nuances du pictural” 177).<br />
6 My translation from French: Vue pittoresque (LOUVEL, 2001, p. 178).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 25
7 My translation from French: L’arrangement esthétique ou artistique (LOUVEL, 2001, p.<br />
182).<br />
8 My translation from French:Description picturale (LOUVEL, 2001, p. 183).<br />
9 My translation from Portuguese: “O texto emoldura a descrição de uma pintura”<br />
(LOUVEL, 2006, p. 204).<br />
10 My translation from Portuguese:: “O texto se põe a sonhar com a imagem” (LOUVEL,<br />
2006, p. 217).<br />
11 My translation from French:“haut degré de picturalisation du texte … était un exercice<br />
littéraire de haute volée décrire une oeuvre d’art, à effectuer le passage entre le visible et lisible”<br />
(LOUVEL, 2001, p. 184).<br />
12 All paintings reproduced here are available at “A Complete Catalogue of Johannes<br />
Vermeeer’s Paintings”. Essential Vermeer. . Access<br />
in: 28 Aug. 2011.<br />
13 CHEVALIER, 1999, p. 167-69; p. 178-83; p. 189-91; p. 214-16.<br />
14 My translation from Portuguese: “O texto se põe a sonhar com a imagem” (LOUVEL,<br />
2001, p. 217).<br />
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______. Nuances du pictorial. Poétique, 126, p.175-89, 2001.<br />
______. Seeing Dutch Painting. Unpublished manuscript, 2006. 33 pars.<br />
RAJEWSKY, Irina. Intermediality, Intertextuality, and Remediation: A Literary<br />
Perspective on Intermediality. In: Intermédialités/Intermedialities, n. 6, Montreal: Centre<br />
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contemporânea. Ouro Preto: UFOP, 1993.<br />
SCHNEIDER, Norbert. Vermeer: a obra completa. Trans. Carlos Sousa de Almeida.<br />
Lisboa: Paisagem, 2005.<br />
SLIVE, Seymour. Pintura Holandesa 1600-1800. Trans. Miguel Lana e Otacílio<br />
Nunes. São Paulo: Cosac and Naify, 1998.<br />
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______. A View of Delft. Delft, 1660-61. Mauritshuis, The Hague; rpt. in Janson 12.<br />
______. Girl with a Pearl Earring. Delft, 1665-67. Mauritshuis, The Hague; rpt. in<br />
Janson 22.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 27
______. The Concert. Delft, 1664-67. Isabella Gardner Museum, Boston (stolen);<br />
rpt. in Janson 23.<br />
______. The Girl with the Wine Glass. Delft, 1659-60. Herzog Anton Ulrich-Museum,<br />
Brunswick; rpt. in Janson 10.<br />
______. The Music Lesson. Delft, 1664-67. The Royal Collection, Buckingham Palace;<br />
rpt. Janson 13.<br />
______. Woman with a Pearl Necklace. Delft, 1664. Staatliche Museen Preußischer<br />
Kulturbesitz, Gemäldegalerie, Berlin; rpt. in Janson 18.<br />
______. Young Woman with a Water Jug. Delft, 1664-65. The Metropolitan Museum<br />
of Art, New York, Marquand Collection; rpt. in Janson 16.<br />
YACOBI, Tamar. Pictorial Models and Narrative Ekphrasis. Poetics Today, v. 16, n. 4,<br />
p.599-649, 1995.<br />
Miriam de Paiva VIEIRA<br />
Mestre em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG.<br />
Colaboradora autônoma do grupo de pesquisa Intermídia: Estudos sobre a<br />
Intermidialidade, UFMG. Professora da Cultura Inglesa BH.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Artigo recebido em 30 de agosto de 2011.<br />
Aceito em 26 de setembro de 2011.<br />
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28
A CONSTRUÇÃO DE UM ESPAÇO MÍTICO/<br />
NACIONAL EM “PARAÍSO FILOSÓFICO”,<br />
DE JOÃO GUIMARÃES ROSA<br />
Resumo: João Guimarães Rosa, em<br />
Magma, recria espaços do interior do<br />
Brasil, em consonância com uma<br />
visão identitária nacionalista,<br />
concernente a aspectos do<br />
Modernismo brasileiro, e, no poema<br />
“Paraíso filosófico”, em processo<br />
ecfrástico, tais espaços associam-se<br />
ao locus grego, delineando a visão<br />
mítica que o poeta imprimirá em<br />
seus versos.<br />
Waldir Batista Pinheiro de Barcelos<br />
waldirbarcelos@gmail.com<br />
Léa Dutra Costa<br />
lea.dutra@gmail.com<br />
Résumé: João Guimarães Rosa,<br />
dans Magma, recrée les espaces<br />
intérieurs du Brésil, en consonance<br />
avec une vision nationaliste d’identité<br />
concernant les aspects du<br />
Modernisme brésilien, et, dans le<br />
poème “Paradis Philosophique”, en<br />
processus ecfrastique, ces espaces<br />
s’associent avec le locus grec,<br />
délimitant la vision mythique que le<br />
poète imprimera dans ses vers.<br />
Palavras-chave: Modernismo brasileiro. Écfrase. Poesia. Pintura.<br />
Mots-clés: Le Modernisme brésilien. Ecfrasis. Poésie. Peinture.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 29
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
1<br />
Vencedor, em 1936, de concurso promovido pela Academia<br />
Brasileira de Letras, Magma somente foi publicado em 1997, trinta anos<br />
após a morte de João Guimarães Rosa. Embora haja indícios de que<br />
intentasse publicá-lo (LEONEL, 2000, p. 33), o fato de permanecer inédito,<br />
pela vontade do autor, colocou o livro como um espectro, no vasto universo<br />
da obra rosiana, a ponto de ser percebido como texto que não mereceria a<br />
mesma atenção dada à sua prosa. Era considerada obra menor, sequer<br />
obra de estreia, que conteria uma poética que não reflete a profundidade<br />
de linguagem de Grande sertão: Veredas e dos contos do escritor mineiro;<br />
obra inferior à poesia dos primeiros modernistas, ou daqueles que, a partir<br />
da década de 1930, transformariam a poesia brasileira, como Carlos<br />
Drummond de Andrade, Murilo Mendes e, posteriormente, João Cabral<br />
de Melo Neto.<br />
Em Magma, o poeta percorreu geografias e paisagens e fundiu<br />
florestas, rios, bichos e lendas, sentimentos e amores interioranos com a<br />
imagem e o modo de vida do homem dos sertões brasileiros. Sem<br />
experimentalismos verbais, sem profusão de emoções pessoais e sem<br />
transparecer um projeto poético consistente que os ancorassem às propostas<br />
revolucionárias de Mário de Andrade ou de Oswald de Andrade, os poemas<br />
de Magma, numa primeira leitura, aparentemente apenas refletem a visão<br />
modernista da primeira fase, já explorada em obras como Macunaíma, de<br />
Mário de Andrade, Cobra Norato, de Raul Bopp, ou no Manifesto da<br />
Antropofagia, de Oswald de Andrade.<br />
Maria Célia Leonel, em seu estudo Guimarães Rosa: Magma e gênese<br />
da obra, considera, entretanto, que<br />
Magma não é caso à parte na produção rosiana, mas ponto de ligação entre os<br />
seus textos (...) – livro menor de autor maior – interessa aos estudiosos do<br />
texto rosiano por ser um elo na cadeia da obra. Permite verificar a permanência,<br />
a transformação ou o abandono de elementos temáticos, de motivos, de<br />
recursos linguísticos de toda sorte. (LEONEL, 2000, p. 37)<br />
Nesse sentido, “Paraíso Filosófico”, constante em Magma, 1 é um<br />
poema que interessaria por conter, em gênese, um procedimento de<br />
composição que viria a ser reiterado por Guimarães Rosa: a utilização de<br />
uma obra pictural como motivo poético, como então, diante de obras<br />
30
medievais e clássicas, na Europa, iria compor os poemas d’O burro e o boi no<br />
presépio (ROSA, 1985, p. 198-210).<br />
Rosa projetou, em “Paraíso Filosófico”, uma imagem que se<br />
distingue dos demais poemas do livro, por situar sua mensagem em um<br />
espaço e em um tempo além do território físico e do tempo histórico<br />
brasileiro: tempo e espaço ancorados no mito grego das Hespérides, ou<br />
Hespéridas, como grafou o poeta.<br />
O poema é composto por quatro estrofes, sendo as três primeiras<br />
de cinco versos e a última de nove. Os versos, livres e brancos, sintaticamente<br />
estruturam-se em uma linguagem prosaica na qual, à parte o destaque dado<br />
aos adjuntos adverbiais de lugar – no início da primeira e da segunda<br />
estrofe –, predominam a coordenação e a ordem direta. A melodia lastreiase<br />
em assonâncias e aliterações (/r/ e /s/, sobretudo) e nas vogais nasalizadas<br />
ou abertas das penúltimas sílabas dos versos, marcando-se um ritmo sem<br />
nuances de exagero ou altissonância. Mesmo na terceira estrofe, em que<br />
mais se percebem elementos da poesia simbolista, a musicalidade não se<br />
sobrepõe ao sentido da frase. Os substantivos concretos sustentam a temática<br />
(jardim, homens, relógio, dedos, anciãos, olhos e outros), mas a determinação<br />
de adjetivos e locuções adjetivas e as comparações tornam abstratas as<br />
ideias imediatas de concretude: “jardim” transforma-se no espaço mítico<br />
“das Hespéridas”, “sem flores”; “homens” usam túnicas longas, “como os<br />
magos da Rosa-Cruz”; “dedos” estão “superpostos,/como o dia e a noite”;<br />
“anciãos perpassam/intérminos terraços” e seus olhos são “tranquilos” e<br />
“gelados, de tanto olharem o sol”. Dessa forma, a ação de “personagens”<br />
reduz-se à descrição, conformando um espaço estático no qual – mesmo<br />
de ação – os verbos passear, perpassar, tatear, mergulhar e esculpir retratam<br />
figuras num movimento congelado em um tempo e em um espaço etéreos.<br />
O próprio título do poema imediatamente remete à diafaneidade de um<br />
paraíso no qual vigora a filosofia. Não se percebe um rebuscamento ou<br />
excesso de figuras de estilo e o paradoxo – quase um oxímoro – “olhos<br />
gelados,/de tanto olharem o sol”, bem como a sinestesia presente nos<br />
dedos que mergulham “a translucidez de uma água”, associados às<br />
comparações, inscrevem no texto as impressões de um observador que se<br />
coloca fora da cena descrita.<br />
Segundo Junito de Souza Brandão (2002, p. 23), a mitologia grega<br />
chegou ao mundo moderno somente através da escrita – literária e histórica<br />
– e por meio da arte figurada. Devido à organização em cidades-estado e<br />
à liberdade de culto religioso, circunscrito inicialmente às famílias, chega a<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 31
ser impróprio, em certos aspectos, entender tal mitologia como estruturada<br />
em uma unidade totalmente coesa. Além dos cultos aos mortos – e deuses<br />
– praticados em casa, restritos às famílias, diante do fogo sagrado, mesmo<br />
em uma única cidade, as características de um deus poderiam ser atribuídas<br />
a outros. A hegemonia econômica e política de cidades e territórios, bem<br />
como a apropriação que dessa mitologia se fez pelo império romano – e<br />
do que se fixou em obras como a Odisseia ou a Ilíada –, fizeram com que<br />
tenham prevalecido, no mundo contemporâneo, a impressão de narrativas<br />
e imagens marcadas por essa ideia de coesão e unidade. Deuses e heróis<br />
conservaram-se, porém, como se em um repositório do qual se retiram<br />
desde motivos artísticos, até argumentos e ideias para a filosofia ou a<br />
psicanálise.<br />
As Hespérides, filhas de Atlas, seriam as “Ninfas do poente” e,<br />
ligadas ao ciclo dos Doze trabalhos de Hércules, guardavam, com o auxílio de<br />
um dragão, as maçãs de ouro, frutos da imortalidade. Os nomes Egle,<br />
Ericia e Hesperaretusa designariam o princípio, o meio e o fim do percurso<br />
<strong>final</strong> do sol. “Habitavam o extremo Ocidente, não longe da Ilha dos Bem-<br />
Aventurados, bem junto ao oceano (...) e (em) seu jardim maravilhoso elas<br />
cantam em coro, junto a flores, cujos repuxos têm o perfume da ambrosia...”<br />
(BRANDÃO, 2002, p. 229).<br />
A representação artística das Hespérides, tanto na pintura como na<br />
literatura, foi comum, a partir do século XVI, na Europa atravessada pela<br />
Cultura Greco-Latina. Na literatura portuguesa, Camões coloca-as n’Os<br />
lusíadas, como criaturas que salvam os portugueses de uma cilada dos mouros.<br />
Nas imagens, de modo geral, tem realce a beleza física das ninfas, imersas,<br />
sob árvores e entre flores, em belos jardins. O espaço – e o que ele guarda<br />
– é configurado dessa forma como idealização de um passado distante,<br />
entrecruzando tempos que se projetariam para um tempo futuro utópico.<br />
Como texto poético que se insere em Magma e se relaciona com outros<br />
poemas em que se busca representar uma totalidade – no caso, as regiões<br />
do país, e o próprio país –, diferentemente de outros poemas nos quais a<br />
geografia e o homem podem ser reconhecidos como miméticos, o poeta<br />
teria selecionado um significante pictural e o teria descrito como algo que<br />
se sobrepõe e significa uma realidade. Rosa estruturou seu texto de modo<br />
ecfrástico, redimensionando a mitologia do jardim das Hespérides e<br />
alojando-a no que concebia devesse ser a realidade brasileira.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
32
Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina, ao sintetizar “o estudo<br />
Descritivo que Patrick Charaudeau [empreendeu] em sua Grammaire Du<br />
sens et de l’expression”, afirma que<br />
[o] processo descritivo permite ao sujeito satisfazer seu desejo de possessão<br />
do mundo: assim, ele singulariza o mundo, especifica-o, dá-lhe substância e<br />
forma particulares, em função de sua própria visão das coisas que passa por<br />
sua racionalidade, mas também por seus sentidos e seus sentimentos. (2005,<br />
p. 71-72)<br />
O processo ecfrástico que se apresenta nos versos de “Paraíso<br />
filosófico” poderia ser percebido como uma espécie de hipotipose, como<br />
uma descrição viva de algo que se apresentou à vista do observador-poeta,<br />
um objeto no qual, por semelhança, o Brasil foi concebido utopicamente.<br />
Ao ter como base o significante pictural para compor seu texto, Guimarães<br />
Rosa realçou e fundiu duas linguagens.<br />
Comparar poema e quadro seria, na perspectiva de análise proposta<br />
por Liliane Louvel, explicitar “a relação de analogia” que se constituiria em<br />
uma forma particular de comparação, “um ‘gênero’ de comparação habitual<br />
aos poetas que praticam a inclusão textual que se poderia chamar o ‘tropo<br />
pictural’, ‘figura de figura’ “ (LOUVEL, 2006, p. 193). Esse tropo<br />
se distinguiria no texto explicitamente pela comparação, a ekphrasis, ou mais<br />
discretamente por um trabalho metafórico, metonímico ou sinedóquico, na<br />
hipotipose, e mesmo em uma oscilação metafórico-metonímica, a imagem<br />
no texto funcionando como metonímia (ou sinédoque) e/ou metáfora.<br />
(LOUVEL, 2006, p. 193)<br />
Nesse sentido, “Paraíso filosófico” oscila entre a representação de<br />
uma metáfora pictórica e a metonímia do que o escritor concebe como<br />
seja sua nação. O texto representa o quadro e o quadro contém, além de<br />
sua estrutura pictórica, um significado que o poeta desloca e do qual se<br />
apropria.<br />
2<br />
Sibele Paulino e Paulo Astor Soethe, em sua pesquisa Artes visuais e<br />
paisagem em Guimarães Rosa, junto ao Instituto de Estudos Brasileiros da<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 33
Universidade de São Paulo (IEB/USP) salientam, por meio de consulta ao<br />
material do acervo do escritor, a existência de ampla documentação que<br />
comprovaria o interesse de Guimarães Rosa pelas artes visuais. Anotam<br />
que o escritor estudou conceitos de desenho e pintura e teria utilizado, ao<br />
recriar paisagens em obras literárias, diversas anotações sobre obras picturais,<br />
feitas à margem de livros, em cadernos, cadernetas e catálogos (PAULINO;<br />
SOETHE, 2005, p. 42). Além disso, tinha conhecimento de autores de<br />
crítica de artes, entre eles da obra e da crítica de John Ruskin, 2 autor do<br />
quadro no qual Guimarães Rosa se baseou para compor seu poema.<br />
Nascido em Londres, em 1819 e falecido em 1900, Ruskin foi<br />
poeta, escritor, crítico e ensaísta de arte, desenhista e pintor. Em suas obras,<br />
valorizava a sensibilidade e a subjetividade em contraponto à razão. A<br />
respeito de suas atividades, Ivan Junqueira vincula-o ao pré-rafaelismo e a<br />
um momento artístico, no século XIX, em que se buscava motivação no<br />
misticismo e nas doutrinas esotéricas, entre elas a Rosa-Cruz:<br />
Não se trata aqui de precursores do movimento (simbolista), mas dos<br />
elementos que o informaram, como é o caso da arte dos pintores prérafaelitas<br />
ingleses (Dante Gabriel Rossetti, também poeta, William Holman<br />
Hunt, John Everett Millais, William Dyce e o crítico de arte John Ruskin),<br />
(...). Uma das características básicas da arte simbolista foi o papel representado<br />
pelo inconsciente na vida afetiva, o que levou os poetas do movimento a<br />
buscarem motivação no misticismo e nas doutrinas esotéricas.<br />
(JUNQUEIRA, 2001)<br />
O quadro de John Ruskin, Goddess of Discord Choosing the Apple of<br />
Contention in the Garden of Hesperides, é um óleo sobre tela, pintado em 1895,<br />
e mede 1.895 x 2.510 mm. 3 Nele, as Hespérides, aos pés do Monte Atlas,<br />
entregam a Éris, a deusa da discórdia na mitologia grega, a maçã – aqui, o<br />
pomo da discórdia. Predominam os tons de verde-musgo e, na base, na<br />
lateral esquerda e no fundo, as cores claras realçam em luminosidade a cena<br />
central – um pouco deslocada do centro da base –, as figuras femininas à<br />
esquerda e a paisagem, preenchida por grandes formas maciças da montanha<br />
de pedra, banhada pela luz do sol, em uma explosão de tons claros. São<br />
dez as figuras femininas: as quatro, do lado esquerdo, vestidas, aparentemente<br />
realizam um trabalho, à beira de um lago, para o qual se servem de vasos;<br />
do lado direito, Éris e cinco ninfas seminuas. A vegetação é formada por<br />
tufos de plantas, sem realce para flores. No alto da montanha, que forma<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
34
uma bifurcação, do lado esquerdo, sobressai em repouso uma mão decepada;<br />
do lado direito, um dragão. No sopé da montanha, ao fundo, entre grandes<br />
tufos de árvores, o pintor colocou figuras diminutas, mínimas. 4 Percebe-se<br />
dinamismo na cena retratada, devido à posição e ao movimento dos corpos<br />
das mulheres; prevalece, porém, a impressão de uma cena congelada, devido<br />
provavelmente à oposição entre as figuras separadas pelo lago. Além disso,<br />
distintamente de outras pinturas em que se representam as Hespérides, os<br />
corpos e a cena são quase consumidos pela paisagem. Há no quadro uma<br />
simbologia própria do mito, bem como de um ambiente marcado pela<br />
espiritualidade e misticismo que se percebem na inserção de imagens<br />
estranhas à paisagem, na triangulação estrutural de montagem das cenas, no<br />
deslocamento do ponto de fuga para o fundo direito, ou no contraste<br />
entre as cores e na luminosidade.<br />
Na primeira estrofe de “Paraíso filosófico”, ressalta-se o local em<br />
que transcorre a cena da pintura descrita no texto. Aqui, como no quadro<br />
de Ruskin, há um jardim “sem flores” onde passeiam “homens de túnica<br />
longa”, “na discrição dos tufos de folhagem”. A comparação das figuras<br />
masculinas, reduzidas, com magos da Rosa-Cruz, poderia ser relacionada<br />
ao conhecimento de Guimarães Rosa dos estilos artísticos, no caso, a ligação<br />
mística e esotérica de pintores da época em que foi concebido o quadro.<br />
O primeiro verso da segunda estrofe faz remissão aos “pomos<br />
das luzes do Capricórnio aceso”. O olhar do poeta se deslocara para o<br />
fundo da cena e para a luminosidade do céu. Observara “o relógio do<br />
tempo” que parou “há muito” e percebera as montanhas – ou os dedos da<br />
mão decepada – como “dedos superpostos”, e não há nem dia, nem noite,<br />
uma vez que a luz do poente é interregno, momento exato entre o princípio<br />
e o fim.<br />
A terceira estrofe do poema é composta por uma frase nominal,<br />
pela repetição de termos e pela exacerbação das assonâncias e aliterações, o<br />
que coaduna com uma impressão que se pode ter, em uma visão panorâmica,<br />
um pouco afastada, do quadro de Ruskin: “Ar parado,/ lagos vidrados/ e<br />
vasos,/ muitos vasos,/ vasos vazios...”<br />
As figuras reduzidas do fundo esquerdo do quadro, os anciãos,<br />
são retomadas e fecham o poema. Percebe-se nessa estrofe, mais uma vez,<br />
a marca de subjetividade deixada por Guimarães Rosa em sua écfrase.<br />
Dada a redução, somente uma leitura significativamente pessoal atribuiria<br />
aos anciãos, que “perpassam/ intérminos terraços”, as ações descritas, ou<br />
os olhos “tranquilos” e “gelados”.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 35
Outro aspecto importante: no poema, Guimarães Rosa omite as<br />
figuras femininas. Não há referência às ninfas – além do que se deduz do<br />
próprio título –, à deusa da discórdia, ou às mulheres postadas do lado<br />
esquerdo do quadro. Os versos “e vasos,/ muitos vasos,/ vasos vazios...”,<br />
se não se referem a essas últimas, ao menos as referenciam, uma vez que os<br />
vasos, na cena, ligam-se a elas. Além de se poder considerar tal fato como<br />
mais uma das marcas de subjetividade do olhar do poeta – que entre todos<br />
os objetos escolheu alguns para compor o seu “quadro” –, destacam-se no<br />
texto a paisagem potencializada e o que nela se coloca como figura de<br />
estranhamento: os “dedos”, as “luzes do Capricórnio aceso”, os magos/<br />
anciãos diminutos, em “intérminos terraços”. A cena em si, a anedota pictural<br />
torna-se (in)-significante para o poeta.<br />
A transposição intersemiótica, segundo Leo H. Hoek, faz-se mais<br />
frequentemente “de uma obra de arte a outra, verbal; entre elas existe uma<br />
relação transmidial” (HOEK, 2006, p. 171) e consiste na atualização de um<br />
sentido pictural nos textos, a écfrase, a transposição de arte. Segundo ele,<br />
[a] poesia “transposicional” buscaria transferir a imagem para a escrita; ela se<br />
serve dos mesmos temas que a arte para imitá-la e, mais comumente, para<br />
rivalizar com ela. Em geral, a poesia se esforça em exprimir verbalmente as<br />
mesmas emoções provocadas pela obra de arte. (HOEK, 2006, p. 172)<br />
A transposição feita por Guimarães Rosa possui um elemento<br />
suplementar. Tomado o poema, no contexto de Magma, correlacionandoo<br />
com outros poemas e lendo-o na perspectiva pictural e mitológica,<br />
percebe-se uma transferência de sentidos e significados: o espaço mítico,<br />
paraíso e local da filosofia, o jardim no qual se guardam os pomos da vida<br />
eterna, por semelhança, seria também uma imagem, um locus de idealização<br />
do país.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
3<br />
A América nasceu sob o signo da utopia, alicerce para a exploração<br />
econômica e para a ação evangelizadora de católicos e protestantes. Ao<br />
longo de quinhentos anos, o continente serviu de palco para experiências<br />
financeiras, aventuras políticas, ideais revolucionários, planos e plataformas<br />
que compuseram um esplêndido mosaico que sempre remeteu para o futuro<br />
a conclusão de projetos nunca plenamente realizados.<br />
36
Como consequência, essa utopia, assimilada aqui, sofreu um processo<br />
de inversão. O pensamento, a política e as artes contiveram, ao menos até<br />
as drásticas mudanças ocorridas na pós-modernidade, o elemento utópico:<br />
a Europa era um ideal a ser alcançado. A imagem que aqui fora decalcada<br />
se invertera. Para Fernando Ainsa (1984):<br />
El estudio de los diferentes modelos e intenciones utópicas subyacentes en<br />
la historia de América Latina debe encararse con una perspectiva<br />
“enciclopedica”, donde se rescate con “voracidad antropológica” todo lo<br />
iniciado y no consumado en el pensamiento, la política y la cultura americana.<br />
Este rico panorama permite entender el vigor que ha tenido la función<br />
utópica en los diferentes modos de expresión en que se ha traducido: de la<br />
filosofía a las artes, de las plataformas políticas a las experiencias alternativas<br />
llevadas a cabo en su territorio. “No se puede entender América si se olvida<br />
que somos un capítulo de la historia de las utopías europeas”, propone<br />
Octavio Paz. (p. 106)<br />
Diferentemente dos Estados Unidos e Canadá, colonizados por<br />
Inglaterra e França, o processo civilizatório ibérico será conformado, no<br />
centro e no sul, pela miscigenação, gerando aqui um homem contido pelo<br />
índio, o europeu e o negro africano. Os libertadores centro e sul americanos,<br />
eles mesmos mestiços, reconheceram-se como filhos abandonados pelo<br />
velho continente, pretenderam a unificação da América e a construção de<br />
uma identidade dialógica que se mostrasse ao mundo.<br />
No Brasil, circunscrito ao litoral e com uma imensa barreira de<br />
florestas e pântanos a separá-lo do restante da América – e por isso menos<br />
suscetível àquelas influências externas –, a independência será fruto da<br />
composição de interesses de classes ligadas a Portugal. O incipiente<br />
sentimento nacionalista do <strong>final</strong> do século XVIII, percebido na literatura<br />
árcade, será ampliado, após 1822, nos elementos naturais e na concepção<br />
cavalheiresca do indígena do Romantismo – elementos que seriam já o<br />
indício de uma busca de identidade, mesmo que delineada pelas concepções<br />
de homem e de universo fundadas na Europa. A ideia de país novo, a ser<br />
construído – país do futuro –, que se encontra latente nas obras românticas,<br />
cederá lugar à ideia de país subdesenvolvido, no <strong>final</strong> do século XIX<br />
(CANDIDO, 1989, p. 158), quando então se acreditava dever buscar a<br />
superação do atraso e atingir a evolução econômica e cultural europeia.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 37
Mestiçagem e raça, sinais de atraso, no início do século XX, são<br />
substituídas pelas ideias de civilização e cultura. Os modernistas de São<br />
Paulo encontrarão no passado elementos culturais com que valorizar o<br />
presente, movidos em parte por certa desilusão com o continente europeu,<br />
que destruíra nas trincheiras valores universais, e pela urgência de uma<br />
construção da identidade nacional – nas artes. É o que marca o projeto<br />
construtivo de Mário de Andrade, a Antropofagia de Oswald e mesmo a<br />
miopia integralista/fascista.<br />
Na década de 1930, ocorreu a passagem do projeto estético<br />
modernista para o ideológico (LAFETÁ, 1974, p. 13-29) e frutificou o<br />
romance regionalista, cujos personagens se construíram de modo a superar<br />
os determinismos históricos e sociais. A utopia, produto sobretudo do<br />
marxismo, universalizou-se na perspectiva da revolução mundial que<br />
libertaria o homem da exploração capitalista. O Estado Novo, ao mesmo<br />
tempo em que agia com mão de ferro na política, buscava a inserção do<br />
país na economia mundial, investindo na construção de uma indústria de<br />
base, na educação e na saúde. Essa época foi de nacionalismos e da<br />
construção de identidades.<br />
Silviano Santiago, em artigo no qual comenta a correspondência<br />
entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade, anota:<br />
Abrasileirar o Brasil, referir ao presente o passado nacional, significa, em<br />
primeiro lugar, entrar em terreno minado, onde o inimigo é o eurocentrismo<br />
machadiano, na sua forma veladamente racista, que é a defendida com unhas<br />
e dentes por Graça Aranha nos anos de 1920. Significa, em seguida, voltar à<br />
lição recebida da vanguarda européia, buscando agora não mais a<br />
modernidade técnica dos futuristas, mas um ponto de apoio no<br />
questionamento dos padrões eurocêntricos de arte, que dadaístas e<br />
surrealistas colocam em prática. Apoiada na desconstrução do eurocentrismo,<br />
a indagação sobre o passado nacional significa aqui o “desrecalque localista”<br />
pelo cosmopolitismo vanguardista, tarefa efetivamente realizada pelos<br />
modernistas brasileiros. (SANTIAGO, 2006, p. 75)<br />
Leonel (2000, p. 150-156), ao analisar Magma, no contexto de época<br />
de sua composição – o Modernismo das décadas de 1920/1930 –, afirma<br />
que, ao se fixar em aspectos da vida nacional, Guimarães Rosa procedeu a<br />
recortes na realidade brasileira (a natureza, os animais, o homem do campo);<br />
entretanto, sem demonstrar ufanismo, possuir um tipo de “nacionalismo<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
38
programático”, nos moldes de Mário de Andrade, e, mesmo, sem revelar<br />
“a percepção das tensões nacionais” (LEONEL, 2000, p. 151). Em<br />
acréscimo, é oportuna a transcrição de trecho do ensaio de Cléa Corrêa de<br />
Mello, A construção discursiva do nacional em Guimarães Rosa (2000):<br />
(...) Guimarães Rosa (...) ativou uma representação alegórica da identidade<br />
nacional, oportunizando a incorporação da diferença, de diferentes vozes –<br />
de forma estrategicamente diversa daquela até então veiculada pelas narrativas<br />
afiliadas à “pedagogia nacionalista”. (...) Negar o regionalismo tradicional<br />
significa negar todo e qualquer esquematismo, implica assumir o caráter<br />
dinâmico relacional dos elementos da narrativa. (p. 154)<br />
A linguagem literária de Guimarães Rosa, além do léxico, da sintaxe<br />
e de formas de significação particularíssimas, elaborada por meio de muitas<br />
e sutis estratégias discursivas, conserva em latência muitos procedimentos<br />
que talvez estejam ainda por serem plenamente desvendados. Seus processos<br />
de construção intertextual – e auto-intertextual, como considera Leonel –<br />
apoia-se em textos de literatura clássica, brasileira e de outros países, em<br />
narrativas interioranas, e ancoram-se também nas artes plásticas. Ao se utilizar<br />
do quadro de John Ruskin e da mitologia do jardim das Hespérides, o<br />
escritor mineiro criou uma alegoria de seu próprio país, uma utopia<br />
nacionalista.<br />
É, ainda, Leonel (2000)que, ao concluir seu trabalho, afirma sobre<br />
Magma:<br />
Os poemas, em geral, goraram como poesia de qualidade ou inovadora. No<br />
entanto, deram sementes para frutos de pequeno porte com sabor<br />
concentrado, de fina e delicada poesia, como em Primeiras estórias e páginas<br />
de Tutaméia. E de tamanho maior, desdobrando-se em cachos maduros de<br />
pura polpa poética, como em Corpo de baile ou Grande sertão: veredas. (p. 275)<br />
Acrescente-se a isso que uma das sementes dará frutos, como<br />
assinalado anteriormente, no procedimento de construção dos poemas d’O<br />
burro e o boi no presépio, nos quais o escritor-poeta exercitou seu olhar e sua<br />
subjetividade diante de pinturas de artistas medievais e clássicos 5 . Além do<br />
fato de, por meio de tais procedimentos, João Guimarães Rosa, já na gênese<br />
de sua obra, experimentar, no texto literário, a aproximação com as artes<br />
plásticas.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 39
Notas<br />
1 Ver, nos anexos, o poema em sua integralidade.<br />
2 Segundo os pesquisadores: “No Caderno de estudos para a obra – filosofia/idéias (f. 18)<br />
encontra-se uma anotação de Guimarães Rosa sobre o escritor, crítico e artista plástico<br />
inglês John Ruskin (1819-1900), qual seja a caracterização que dele faz R. de Sizeranne<br />
(...) Rosa menciona o ensaio de Ruskin ‘Turner e os Antigos’ (...) Consta ainda, na<br />
mesma folha, menção a um comentário da escritora Charlotte Brontë (1816-1855)<br />
sobre o livro de Ruskin (...)” (PAULINO; SOETHE, 2005, p. 45).<br />
3 Anexos I e II.<br />
4 Anexo III.<br />
REFERÊNCIAS<br />
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marcha sin fin de las utopias en América Latina. La Habana: Editorial Arte Y Literatura,<br />
1984, p. 94-121.<br />
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poético de João Guimarães Rosa. In: Diálogo entre literatura e outras artes. Org. Marly<br />
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200.<br />
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Ateliê Editorial, 2004.<br />
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Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Márcia Arbex (org.). Belo Horizonte:<br />
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, Faculdade de Letras da<br />
UFMG, 2006, p. 167-189.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
40
JUNQUEIRA, Ivan. Simbolismo: origens e irradiação internacional. Disponível em:<br />
http://www.academia.org.br/abl/media/prosa3. Acesso em: 20 ag. 2011.<br />
LAFETÁ, João Luiz. 1930 – a crítica e o modernismo. São Paulo: Duas Cidades, 1974.<br />
LEONEL, Maria Célia, Guimarães Rosa: Magma e gênese da obra. São Paulo: Editora<br />
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LOUVEL, Liliane. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto. In: Poéticas<br />
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PAULINO, Sibele e SOETHE, Paulo Astor. Artes visuais e paisagem em Guimarães Rosa.<br />
Disponível em: http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letras/article/view/5526/<br />
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_______. O BURRO E O BOI NO PRESÉPIO (Catálogo esparso). In: Ave, palavra.<br />
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Janeiro: Salamandra, 1983.<br />
SANTIAGO, Silviano. Ora (direis) puxar conversa!: ensaios literários. Belo Horizonte:<br />
Editora UFMG, 2006.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 41
ANEXOS*<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
I<br />
Goddess of Discord Choosing the Apple of Contention in the Garden of Hesperides.<br />
II<br />
II<br />
*As imagens constantes deste trabalho foram obtidas no site , de amplo domínio público – Acesso em: 15 ago. 2011.<br />
42
III<br />
III<br />
Goddess of Discord Choosing the Apple of Contention in the Garden of Hesperides.<br />
IV<br />
Paraíso Filosófico<br />
No jardim das Hespéridas, sem flores<br />
na discrição dos tufos de folhagem,<br />
passeiam passos lentos<br />
homens de túnica longa,<br />
como os magos da Rosa-Cruz.<br />
Sob os pomos das luzes do Capricórnio aceso,<br />
o relógio do tempo<br />
há muito que parou, os dedos superpostos,<br />
como o dia e a noite,<br />
porque não há mais noite e nem dia...<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 43
Ar parado,<br />
lagos vidrados,<br />
e vasos,<br />
muitos vasos,<br />
vasos vazios...<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Os anciãos perpassam<br />
intérminos terraços,<br />
com olhos tranqüilos, olhos gelados,<br />
de tanto olharem o sol.<br />
E as mãos tateiam calmas,<br />
como se os dedos mergulhassem<br />
a translucidez de uma água,<br />
esculpindo<br />
invisíveis e impossíveis formas novas...<br />
João Guimarães Rosa<br />
Waldir Batista Pinheiro de BARCELOS<br />
Mestre em Literatura Brasileira pelo Poslit/Fale/UFMG. Doutorando em Literatura<br />
Comparada pelo Poslit/Fale/UFMG.<br />
Léa Dutra COSTA<br />
Mestra em Linguística pelo Poslin/Fale/UFMG. Doutoranda em Letras/Linguística<br />
do Texto e do Discurso pelo Poslin/Fale/UFMG. Professora da EBAP/UFMG.<br />
Artigo recebido em 02 de setembro de 2011.<br />
Aceito em 03 de outubro de 2011.<br />
Voltar para o Sumário<br />
44
EM NOME DO PAI: O TEXTO DE GERRY CONLON<br />
NA TELA DE JIM SHERIDAN<br />
Resumo: Este artigo tem como objetivo<br />
estabelecer um diálogo entre um episódio<br />
da história da Irlanda e Inglaterra durante<br />
a extensiva atuação terrorista do IRA<br />
(Irish Republican Army) na década de<br />
1970 e suas versões autobiográfica e<br />
fílmica no início da década de 1990. O<br />
episódio é relatado na narrativa<br />
autobiográfica Proved Innocent (1990), de<br />
Gerry Conlon, um dos envolvidos, e<br />
reeditada com o título da adaptação<br />
fílmica realizada pelo cineasta irlandês Jim<br />
Sheridan, em parceria com outro irlandês,<br />
Terry George, em 1994. A adaptação<br />
fílmica In the Name of the Father (1993)<br />
repercutiu internacionalmente, tendo<br />
sido premiada na Itália e Alemanha, além<br />
de ter sido indicada para premiação em<br />
sete categorias da Academy Award<br />
(Oscar). O filme relata a história de Gerry<br />
Conlon, Paul Hill, Paddy Armstrong e<br />
Carole Richardson (The Guildford Four),<br />
que foram, por um erro do sistema<br />
judicial inglês, condenados a prisão por<br />
terem, supostamente, praticados atos<br />
terroristas no bar Horse and Groom,<br />
localizado em Guildford, nos arredores<br />
de Londres.<br />
Maria Inês Chaves<br />
michaves@yahoo.com<br />
Brunilda T. Reichmann<br />
brunilda9977@gmail.com<br />
Abstract: This study has the purpose<br />
of establishing a dialog between an<br />
episode in the history of Ireland and<br />
England during extensive activities by the<br />
terrorist Irish Republican Army – IRA –<br />
in the 1970s and its autobiographical and<br />
filmic versions in the 1990s. This episode<br />
is described in the autobiographical<br />
narrative Proved Innocent (1990), by Gerry<br />
Conlon, one of those involved, and<br />
republished with the title of the film<br />
adaptation by Jim Sheridan, in<br />
partnership with another Irishman, Terry<br />
George, in 1994. The film In the Name of<br />
the Father (1993) had international<br />
repercussion, receiving awards in Italy and<br />
Germany, besides being nominated for<br />
seven Academy Awards (Oscar). The film<br />
tells the story of Gerry Conlon, Paul Hill,<br />
Paddy Armstrong and Carole Richardson<br />
(The Guildford Four), who were, by an error<br />
of the English judicial system, falsely<br />
convicted because they had, supposedly,<br />
committed acts of terrorism in the Horse<br />
and Groom pub, situated in Guildford,<br />
in the outskirts of London.<br />
Palavras-chave: História inglesa e irlandesa. Autobiografia. Cinema. Adaptação.<br />
Key words: English and Irish History. Autobiography. Cinema. Adaptation.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 45
Introdução<br />
O processo de transposição de uma linguagem artística para outra,<br />
como afirma Linda Hutcheon (2006), não é uma prática contemporânea.<br />
Há vários séculos, diz ela, poemas, romances, óperas, pinturas, músicas,<br />
danças e peças teatrais são adaptadas de uma linguagem para outra. Na<br />
atualidade, o fenômeno continua, com a vantagem extra da disponibilidade<br />
de novos materiais e mídias (p. xi). Segundo Hutcheon, o fenômeno da<br />
adaptação está em todos os lugares: na televisão, nas telas de cinema, em<br />
musicais, em peças de teatro, na internet, em romances, em gibis, parques<br />
temáticos e videogames (p. 2), porém, é possível constatar que, na linguagem<br />
audiovisual, o processo de adaptação desperta maior interesse, tanto dos<br />
cineastas como do público, constituindo-se o que Linda Seger (2007) acredita<br />
ser “a força vital da televisão e do cinema” (p. 11).<br />
Falando sobre a noção de adaptação em si, Hutcheon (2006)<br />
entende que adaptação é “repetição sem replicação” (p. 7). Ela repete essa<br />
afirmação em várias passagens de seu livro. Para ela, a adaptação envolve a<br />
habilidade de repetir sem copiar, encaixar diferença e similaridade, ser ao<br />
mesmo tempo o “eu” e o “outro” (p. 174). Acredita que a adaptação<br />
almeja a repetição e a mudança. Sua definição de adaptação leva em<br />
consideração três perspectivas distintas, que ela sumariza da seguinte maneira:<br />
transposição de uma ou mais obras literárias de uma mídia para outra; ato<br />
criativo e interpretativo de apropriação/resgate; compromisso intertextual<br />
com o texto fonte (p. 8-9).<br />
Adaptação fílmica da literatura<br />
Desde a instituição das premiações da Academia de Artes e Ciências<br />
Cinematográficas de Hollywood [The Academy Awards of Merit], em 1927-<br />
28, o percentual dos prêmios concedidos na categoria de melhor filme<br />
para obras adaptadas é alto. Seger (2007) demonstra estaticamente o fato,<br />
mencionando, ainda, as premiações do Emmy, filmes e minisséries realizados<br />
para televisão. Segundo ela<br />
85% dos premiados pelo Oscar na categoria melhor filme são adaptações;<br />
45% de todos os filmes feitos especialmente para a TV são adaptações, e<br />
70% dos ganhadores do Emmy vêm desses filmes;<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
46
83% de todas as minisséries são adaptações, e 95% das minisséries<br />
vencedoras do Emmy são escolhidas dentre essas adaptações. (p. 11)<br />
Seger (2007) explica que a opção pela adaptação deve-se ao fato<br />
de que alguns executivos e produtores de cinema acreditam que é difícil<br />
encontrar bons roteiros originais e que “comercialmente é mais viável<br />
trabalhar com um material que já tenha público” (p. 13). A literatura é,<br />
portanto, apontada como sendo a principal fonte de inspiração para as<br />
adaptações realizadas para o cinema. Timothy Corrigan (2009), de certo<br />
modo, resume a questão da relação histórica da presença da literatura no<br />
cinema quando afirma que<br />
A história do relacionamento entre filme e literatura é uma história de<br />
ambivalência, confrontação e dependência mútua. Desde o <strong>final</strong> do século<br />
XIX até os dias de hoje, esses dois modos de ver e descrever o mundo têm,<br />
em diferentes épocas, desprezado um ao outro, redimido um ao outro,<br />
aprendido um com o outro, e distorcido a autoproclamada integridade um<br />
do outro [p. 1, nossa tradução]<br />
Ele destaca ainda que, no passado, presente ou futuro, o<br />
relacionamento entre a literatura e o cinema não é somente sobre o papel<br />
individual dessas duas linguagens na sociedade, mas também como cada<br />
uma delas muda significados e valores individuais, abrindo possibilidades<br />
para amplos debates e questionamentos sobre história, estética e valores<br />
humanos (CORRIGAN, 2009, p. 76).<br />
Brian McFarlane (1996) também afirma que a relação entre o<br />
romance e o filme é um campo fértil e aberto à exploração; o que ambos<br />
têm em comum tem menos importância do que aquilo que os separa. Ele<br />
aponta duas razões para a realização de adaptações baseadas em obras<br />
literárias: o respeito pelos textos literários e o interesse comercial. Para ele a<br />
popularidade e a respeitabilidade obtidas pela mídia escrita influem no<br />
reconhecimento do trabalho produzido pela mídia audiovisual (p. 6-7).<br />
Porém, o caminho inverso também é possível. Hutcheon (2006) lembra<br />
que frequentemente a versão fílmica aumenta as vendas de livros, e os editores<br />
aproveitam a oportunidade para lançar novas edições com fotos do filme<br />
na capa (p. 90).<br />
Em relação ao sucesso obtido pela obra adaptada, Seger (2007)<br />
acredita ser o resultado de uma boa adaptação (p. 13). Segundo ela,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 47
[...] Só existe um tipo de adaptação impossível: aquela na qual o escritor e o<br />
produtor não tenham licença criativa, pois mudanças são absolutamente<br />
essenciais para se fazer a transição de uma mídia para outra. [...] se os<br />
adaptadores nutrissem um respeito exagerado por cada palavra ou cada<br />
vírgula da literatura que lhes serve de base, não seriam capazes de traduzir o<br />
material para a linguagem do cinema. (p. 25)<br />
Lembra, ainda, que “muitas adaptações bem sucedidas valeram-se<br />
do material original simplesmente como ponto de partida” (p. 25) e explica<br />
que, quando uma obra adaptada resulta de obras não ficcionais, “os<br />
roteiristas geralmente tiram algumas idéias do livro e criam linhas de ação<br />
que possam expressar o tema” (p. 25). Dessa forma, a análise de uma obra<br />
não deve ser realizada somente em relação à (in)fidelidade ao texto original,<br />
a adaptação deve ser analisada levando-se em conta a falta de criatividade e<br />
de habilidade em torná-la uma obra autônoma (HUTCHEON, 2006, p. 20).<br />
Para McFarlane (1996), ao selecionar o que será utilizado na obra a<br />
ser adaptada, o cineasta pode sentir a necessidade de inserir novas situações.<br />
Assim, quando se toma a decisão de alterar drasticamente os elementoschave<br />
do enredo do texto fonte, o resultado pode vir a superar as expectativas<br />
iniciais (p. 196). Cabe ressaltar que, no processo de adaptação, personagens<br />
são eliminadas, condensadas, adicionadas ou modificadas, bem como<br />
algumas situações são priorizadas, eliminadas ou alteradas em detrimento<br />
de outras (STAM, 2006, p. 40-44). Em relação ao assunto, Seger (2007)<br />
explica que as alterações no texto fonte exigem coragem, porém, enfatiza<br />
ela, se não houver mudanças a transposição não acontece. Para ela<br />
A adaptação exige escolha. Isso significa que muito do material que você<br />
aprecia deve ser deixado de lado. Acontecimentos poderão ter de receber um<br />
novo foco. Personagens que tenham um peso considerável no livro podem<br />
precisar receber uma ênfase menor na adaptação. Se uma trama importante<br />
não ajuda a dinâmica da história, deve ser excluída. Todas essas alterações<br />
podem afetar a repercussão do original, embora o foco da história principal<br />
possa ter sido fortalecido. Pode ser necessário sacrificar determinado tema<br />
para que outros temas fiquem mais claros e acessíveis. (p. 26-27)<br />
Vale ressaltar que, no relacionamento entre a literatura e o cinema,<br />
a reação do público em relação à obra adaptada é previsível. Quando um<br />
filme adaptado é lançado, seja o resultado bom ou ruim para uma ou para<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
48
ambas as mídias envolvidas, a comparação entre as duas é inevitável. Há<br />
um consenso entre teóricos a respeito da reação negativa do público sobre<br />
a questão da (in)fidelidade da transposição de uma obra literária para a<br />
linguagem cinematográfica. Segundo Hutcheon (2006), a reação negativa é<br />
causada pela frustração da expectativa do público, que espera fidelidade<br />
entre o texto fonte e o texto adaptado (p. 4). McFarlane (1996) explica que<br />
o leitor cria sua própria imagem mental do que acontece no romance e tem<br />
o interesse de comparar essas imagens com as criadas pelos cineastas.<br />
Segundo ele, embora o público reclame sobre a violação do texto fonte,<br />
existe por parte deste mesmo público um desejo de assistir à representação<br />
do texto escrito na linguagem audiovisual (p. 7). Todavia, a imagem criada<br />
pelo leitor é diferente da criada pelo cineasta o que acaba gerando,<br />
inevitavelmente, a comparação e o (des)contentamento.<br />
De acordo com Stam (2006), a crítica, com frequência, sugere que<br />
o cinema “faz um desserviço à literatura” (p. 19). Alega que “termos como<br />
infidelidade, traição, deformação, violação, abastardamento, vulgarização e<br />
profanação proliferam nos discursos sobre adaptações” (p. 19), no entanto,<br />
há inúmeros termos positivos que poderiam ser atribuídos ao resultado de<br />
uma adaptação. Ele constata que há uma preferência por lamentar o que<br />
foi perdido e ignorar o que foi ganho no processo de adaptação (p. 20).<br />
Ressalta que, em vez de usar termos negativos,<br />
[...] poder-se-ia falar em um modelo Pygmalion [...] pelo qual a adaptação<br />
traz o romance “à vida”, ou de um modelo “ventriloqual”, onde o filme<br />
“empresta voz” aos personagens mudos do romance, ou de modelo<br />
“alquímico”, onde a adaptação se transforma em ouro. Ou, bebendo na<br />
fonte da tradição religiosa da África Ocidental, poder-se-ia falar em modelo<br />
de “possessão”, pelo qual o orixá (espírito) do texto literário desce até o<br />
corpo/cavaleiro da adaptação cinematográfica. (STAM, 2006, p. 27)<br />
Julie Sanders (2006), por outro lado, entende que a infidelidade é o<br />
mais criativo ato da adaptação (p. 20). Para ela, na transição de um gênero<br />
textual para outro, o texto existente é reinterpretado para um novo contexto<br />
e/ou há realocação cultural ou temporal do cenário, que pode ou não<br />
envolver mudança. Para ela, frequentemente a adaptação oferece um<br />
comentário sobre o texto fonte, que é obtido através de um ponto de vista<br />
revisado, inserindo-se motivações adicionais ou dando voz a personagens<br />
silenciosos e marginalizados (p. 18-19).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 49
Sabemos que a adaptação passa por um processo de escolhas em<br />
que vários fatores são levados em consideração – as convenções de gênero<br />
e mídia e os compromissos políticos, históricos e pessoais. A adaptação<br />
deve ser realizada tanto de forma criativa como interpretativa, num contexto<br />
ideológico, social, histórico, cultural, pessoal e estético; a adaptação pode<br />
ser usada para realizar uma crítica social ou cultural. Obviamente o adaptador<br />
tem uma razão pessoal para decidir por uma obra em detrimento de outra,<br />
sendo que o seu ponto de vista pessoal, fatores culturais e históricos<br />
condicionam a escolha da obra a ser adaptada e a forma de realização<br />
(HUTCHEON, 2006, p. 92-108). Para Hutcheon, o apelo da adaptação<br />
reside na mistura entre a repetição e a diferença, bem como entre a<br />
familiaridade e a inovação (p. 114). Em relação ao assunto, Stam (2006)<br />
afirma que<br />
O termo para adaptação enquanto “leitura” da fonte do romance sugere que<br />
assim como qualquer texto pode gerar uma infinidade de leituras, qualquer<br />
romance pode gerar um número infinito de leituras para adaptação, que<br />
serão inevitavelmente parciais, pessoais, conjunturais, com interesses<br />
específicos. (p. 27)<br />
O conceito proposto por Stam (2006) parece complementar a<br />
posição dos teóricos apresentadas anteriormente, particularmente quando<br />
ele se posiciona em relação às adaptações de romances. Afirma que,<br />
No caso das adaptações cinematográficas dos romances, [...], o romance<br />
original ou hipotexto é transformado por uma série complexa de operações:<br />
seleção, amplificação, concretização, atualização, crítica, extrapolação,<br />
popularização, reacentuação, transculturalização. O romance original, nesse<br />
sentido, pode ser visto como uma expressão situada, produzida em um<br />
meio e em um contexto histórico e social e, posteriormente, transformada<br />
em outra expressão, igualmente situada, produzida em um contexto diferente<br />
e transmitida em um meio diferente. O texto original é uma densa rede<br />
informacional, uma série de pistas verbais que o filme que vai adaptá-lo<br />
pode escolher, amplificar, ignorar, subverter ou transformar. A adaptação<br />
cinematográfica de um romance faz essas transformações de acordo com os<br />
protocolos de um meio distinto, absorvendo e alterando os gêneros<br />
disponíveis e intertextos através do prisma dos discursos e ideologias em<br />
voga, e pela mediação de uma série de filtros: estilo de estúdio, moda<br />
ideológica, constrições políticas e econômicas, predileções autorais, estrelas<br />
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carismáticas, valores culturais e assim por diante. Uma adaptação consiste<br />
em uma leitura do romance e a escrita de um filme. (p. 50)<br />
Stam (2006) afirma ainda que, em razão de o processo de<br />
adaptação envolver o discurso do momento em que é produzida, ela acaba<br />
por tornar-se um barômetro das tendências ideológicas do momento em<br />
questão. Para ele, a transposição de obras literárias para o cinema desvenda<br />
características do período e da cultura em que a obra foi originariamente<br />
produzida, bem como do momento em que está sendo adaptada (p. 48).<br />
Muitas das mudanças entre a fonte do romance e a adaptação cinematográfica<br />
têm a ver com ideologia e discursos sociais. Nesse sentido, a questão é se<br />
uma adaptação empurra o romance para a “direita”, ao naturalizar e justificar<br />
hierarquias sociais baseadas em classe, raça, sexualidade, gênero, religião e<br />
nacionalidade, ou para a “esquerda” ao questionar ou nivelar as hierarquias.<br />
Há também “desenvolvimentos desiguais” a esse respeito, por exemplo,<br />
em adaptações que empurram o romance para a esquerda em algumas<br />
questões (como classe) mas para a direita em outras (como gênero e raça).<br />
(STAM, 2006, p. 44)<br />
Dudley Andrew (2009) argumenta que a adaptação é uma forma<br />
peculiar de discurso, que deve ser usada para entender o mundo de onde<br />
ela se origina e o caminho que ela indica. Ele enfatiza que filmes devem ser<br />
estudados como um ato de discurso, em que é necessário haver uma<br />
sensibilidade em relação a esse discurso e às forças que o motivaram. Para<br />
ele, embora a adaptação seja uma constante na história do cinema, a sua<br />
função no momento em que é produzida não o é. Ele postula que as<br />
escolhas para se realizar uma adaptação sugerem muita coisa sobre o<br />
entendimento da indústria cinematográfica, sobre seu papel e aspirações<br />
num dado momento (p. 269-271). O entendimento de Andrew corrobora<br />
o de McFarlane, que postula que a obra adaptada não é meramente uma<br />
adaptação, é também um produto do seu tempo, e esse fato irá marcar o<br />
tipo de adaptação realizada (p. 200).<br />
Qualquer que seja a razão para se realizar uma adaptação, o processo<br />
é um ato de apropriação ou resgate, que envolve um processo de<br />
interpretação e de criação de algo novo (HUTCHEON, 2006, p. 20). A<br />
adaptação significa mais do que simplesmente imitar algo uma vez que ela<br />
“cria uma nova situação áudio-visual-verbal”, moldando novos mundos,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 51
não simplesmente retratando ou traindo mundos antigos (STAM, 2006, p.<br />
26). Em suma, entende-se que os conceitos, os posicionamentos que<br />
envolvem o processo de adaptação fílmica apresentados acima<br />
complementam-se. Nota-se também o consenso desses teóricos quanto ao<br />
fato de que a adaptação exige mudança. Não há como realizá-la sem que<br />
alterações ocorram.<br />
O filme Em nome do pai, inspirado em uma obra autobiográfica,<br />
não foge a esse padrão. A recriação cinematográfica mostra os principais<br />
acontecimentos – os que constam em registros históricos e/ou os que são<br />
relatados por Conlon na sua autobiografia. No entanto, também há<br />
mudanças, omissões e invenções, inerentes ao processo da transposição<br />
fílmica inspirada em obras literárias. Assim, é possível inferir que a afirmação<br />
de Seger (2007), “a adaptação é um novo original, onde o adaptador busca<br />
o equilíbrio entre preservar o espírito do original e criar uma nova forma”<br />
(p. 26), capta o foco central da definição do processo em questão.<br />
Representações da história irlandesa no filme Em nome do pai<br />
Filmes baseados em fatos históricos criam ricas imagens, sequências<br />
e metáforas visuais que ajudam o espectador a ver e pensar sobre o que<br />
aconteceu. As “verdades” neles contidas, contudo, são metafóricas e<br />
simbólicas, não literais (ROSENSTONE, 2006, p. 164). Esse entendimento<br />
permite inferir que os filmes constituem fonte inesgotável para análises e<br />
reflexões. Neste sentido, pretende-se apresentar possibilidades de leitura<br />
para algumas sequências do texto autobiográfico e do filme Em nome do pai<br />
em relação à História irlandesa.<br />
Em nome do pai leva para as telas do cinema a história de Gerry<br />
Conlon que, em 1974, foi preso por ter praticado atos terroristas em<br />
Guildford, na Inglaterra. Na prisão, após ter sido torturado e ameaçado,<br />
confessa a participação no crime, pelo qual é condenado à prisão perpétua<br />
juntamente com três amigos. Giuseppe, pai de Gerry, e membros de sua<br />
família também são acusados e condenados, recebendo penas diferenciadas.<br />
Giuseppe morre na prisão, devido a problemas de saúde, em 1980. Gerry<br />
e seus amigos obtêm a liberdade em 1989, com o surgimento de novas<br />
evidências sobre o caso.<br />
A transposição desses fatos para as telas do cinema foi realizada<br />
pelo consagrado diretor Jim Sheridan, que também escreveu o roteiro, em<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
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parceria com Terry George. Tanto Sheridan 1 como George 2 são irlandeses,<br />
de Dublin e Belfast, respectivamente, o que torna possível inferir que, por<br />
terem morado na Irlanda durante o período das ações mais radicais do<br />
IRA, vivenciaram e/ou testemunharam algumas delas. Dessa forma, ambos<br />
têm condições de retratar os fatos com maior precisão. Além do mais, o<br />
próprio George, em entrevista concedida a Robert Brent Toplin (1999),<br />
afirma que, na condição de cineasta, é impossível manter uma postura<br />
neutra. Segundo ele, o idealizador de um filme tem um forte entendimento<br />
sobre algo e tenta ao máximo retratar isso em sua obra. Afirma, ainda, que<br />
tanto ele quanto Sheridan são irlandeses e não há como manter-se neutro<br />
em relação ao que acontecia na Irlanda do Norte sendo irlandês.<br />
O filme Em nome do pai é o terceiro dirigido por Sheridan e o<br />
primeiro a ser financiado por um estúdio de Hollywood – Universal Pictures.<br />
Ruth Barton (2002) explica que o filme em questão marca o início da trilogia<br />
de filmes baseados em temas da Irlanda do Norte, realizados através da<br />
parceria Sheridan e George 3 . Ela explica, ainda, que essa trilogia teve um<br />
forte impacto na opinião pública sobre a questão irlandesa. Segundo ela,<br />
até então era difícil discutir temas relacionados aos problemas políticos da<br />
Irlanda na linguagem fílmica: a divulgação de matérias e entrevistas sobre as<br />
organizações paramilitares eram censuradas. Os cineastas relutavam em<br />
mostrar a política da Irlanda do Norte uma vez que acreditavam que ela<br />
não despertaria o interesse do público e, consequentemente, não traria retorno<br />
financeiro (BARTON, 2002, p. 64-66). O próprio Sheridan, em uma<br />
entrevista concedida a Barton (2002), afirma que todos acreditavam que o<br />
IRA não podia estar na TV, que não se podia fazer nada a respeito. Assim,<br />
quando o filme foi lançado, parecia ser algo “de outro mundo” (SHERIDAN<br />
citado em BARTON, 2002, p. 146).<br />
O lançamento do filme foi um sucesso, superando as expectativas<br />
de público. Na Irlanda foi considerado um evento nacional, e, nos Estados<br />
Unidos, onde há um grande número de imigrantes irlandeses, a recepção<br />
foi favorável e entusiasta. No Reino Unido, contudo, gerou críticas acirradas<br />
sobre as “inverdades” apresentadas. Levantaram-se questionamentos quanto<br />
à veracidade do filme, apontando-se omissões e invenções em relação aos<br />
acontecimentos reais e ao que foi apresentado na tela (BARTON, 2002, p.<br />
74). Richard Grenier (1999) destaca que o filme foi recebido com frieza<br />
pela imprensa britânica, que houve, inclusive, quem dissesse que o filme<br />
retrata tantas inverdades que o erro judicial, largamente defendido, torna-se<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 53
questionável (p. 321). Barton (2002), por sua vez, acredita que o filme não<br />
foi bem recebido na Inglaterra por ter mostrado que os ingleses eram<br />
capazes de praticar atos tão repreensíveis quanto os que eram praticados<br />
pelos grupos paramilitares (p. 74).<br />
As críticas, no entanto, não desmerecem a qualidade cinematográfica<br />
do filme, que, conforme mencionado anteriormente, recebe premiações<br />
na Itália, Alemanha e é indicado para sete premiações do Oscar em 1993.<br />
As premiações possivelmente resultaram da adequação do filme aos padrões<br />
da indústria cinematográfica americana. Em consonância com Michael<br />
Brunton (1994), Hollywood exige que os filmes tenham heróis, vilões e um<br />
enredo inteligível. O próprio Sheridan constata essa necessidade quando<br />
diz “Eu compreendi que para fazer um filme ambientado na Irlanda ou na<br />
Inglaterra e fazê-lo ser aceito na América ou no mundo, você tem que ter<br />
um tema ou uma subestrutura que seja atrativa em um nível profundo”<br />
[nossa tradução] 4 . Na visão de Sheridan, o filme não teve nenhum significado<br />
especial para o público americano. Para ele, nos EUA o interesse foi gerado<br />
apenas pela história do relacionamento entre pai e filho. No seu entender,<br />
ninguém tem um interesse real em uma história de injustiça (SHERIDAN<br />
citado em BARTON, p. 71).<br />
É comum Hollywood representar o indivíduo como alguém que<br />
luta contra o sistema. Características pessoais e psicológicas do indivíduo<br />
não são necessariamente condicionadas por aspectos sociais ou históricos<br />
(BARTON, 2002, p. 73). Martin McLoone (1994) explica que, a fim de<br />
satisfazer as normas cinematográficas de Hollywood, a obra cinematográfica<br />
tem que deixar de lado a política. Assim, o relacionamento entre pai e filho<br />
domina a narrativa, negligenciando a política e a História, que são deixadas<br />
em segundo plano (McLOONE, 1994, citado em BARTON, 2002, p. 71).<br />
O filme, objeto deste artigo, é baseado na narrativa autobiográfica<br />
de Gerald Patrick Conlon, mais conhecido como Gerry Conlon. A obra<br />
teve sua primeira edição em 1989, com o título Proved Innocent. Em 1993, a<br />
obra foi reeditada com o título In the Name of the Father. Como de costume,<br />
a capa da nova edição do livro exibe uma foto do filme, e o título passa a<br />
ser o título do filme. O título anterior da autobiografia – Proved Innocent –<br />
sugere a inocência dos acusados, no entanto, a decisão <strong>final</strong> do juiz é a de<br />
anular o julgamento e não inocentá-los do crime (GUDJONSSON &<br />
MACKEITH, 2003, p. 448). Não é admitida a inocência dos implicados,<br />
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como sugere o nome do livro, em sua primeira edição; o processo é anulado,<br />
assim como não há culpados, não há inocentes.<br />
A narrativa textual abrange aproximadamente 35 anos da vida de<br />
Conlon. Inicia-se com o prólogo e é dividida em 30 capítulos. No prólogo,<br />
Gerry narra sua expectativa e dos três amigos à espera do resultado da<br />
apelação judicial realizada em função de novas evidências no caso<br />
relacionado aos atentados à bomba ocorridos em Guildford. Ao proclamarse<br />
a sentença “anulado”, ele comemora com sua família. Quer deixar o<br />
local, mas os policiais querem impedi-lo de fazê-lo. Ao lhe ser solicitado<br />
permanecer na cela em razão do tumulto da multidão que o espera do<br />
lado de fora, Conlon revolta-se e diz que irá sair pela porta da frente, pois<br />
é um homem livre. Ele deixa o tribunal com as duas irmãs, e a multidão<br />
festeja. Ele fala com a imprensa, dizendo<br />
Eu passei 15 anos na prisão por um crime que eu não cometi, por uma coisa<br />
sobre a qual nada sei. Vi meu pai morrer na prisão por uma coisa que ele não<br />
fez. Ele é inocente, a família Maguire é inocente, os seis de Birmingham são<br />
inocentes. Espero que eles sejam os próximos a serem libertados. 5 [nossa<br />
tradução]<br />
Do capítulo 1 ao 29 Conlon narra fatos relacionados aos acontecimentos<br />
anteriores à acusação do atentado a Guildford e os ocorridos<br />
posteriormente, durante o tempo que passou em diversas prisões da<br />
Inglaterra. Nos capítulos 29 e 30 são relatados os acontecimentos posteriores<br />
à sua libertação, sendo que o capítulo 29 dá continuidade ao prólogo.<br />
Não foram encontrados dados em relação à recepção da obra<br />
literária em 1990. No entanto, o fato de ter sido lançada uma segunda<br />
edição indica que obteve uma boa aceitação. McFarlane (1996) postula que,<br />
quando uma obra literária é considerada um clássico, a versão fílmica,<br />
inevitavelmente, irá atrair a atenção do público (p. 202). Ainda que a obra<br />
em questão não seja considerada um clássico, os fatos nela abordados eram<br />
de conhecimento público, estavam na mídia. Assim, possivelmente, o drama<br />
pessoal de Conlon despertou o interesse dos leitores uma vez que, conforme<br />
detalhado anteriormente, há por parte das pessoas uma atração por histórias<br />
de indivíduos que superam adversidades (SMITH & WATSON, 2010, p.<br />
124).<br />
Torna-se pertinente explicar que o presente estudo não pretende<br />
comparar linguagem literária e fílmica, detalhando as diferenças entre o<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 55
elato autobiográfico e o filme de Sheridan. Entretanto, cabe esclarecer que<br />
a narrativa de Conlon apresenta a sua interpretação pessoal dos<br />
acontecimentos, que constitui, inclusive, uma forma de denunciar as injustiças<br />
sofridas e a situação desumana dos prisioneiros irlandeses nas prisões<br />
britânicas, que levaram a uma greve de fome, em 1981, como forma de<br />
protesto, e que resultou na morte de aproximadamente 10 prisioneiros<br />
(ENGLISH, 2003, p. 187-212). A versão de Conlon não espelha necessariamente<br />
a “verdade” dos fatos, uma vez que a percepção do protagonista-narrador<br />
pode alterar, omitir e/ou selecionar informações, não podendo assim ser<br />
entendida como “verdade absoluta” (ALBERTI, 1991; SMITH & WATSON,<br />
2010). Pode, todavia, por ter sido produto de experiência resultante de<br />
repressão política, ser parte importante do contexto histórico e coletivo<br />
(HARLOW citada em SMITH & WATSON, 2010, p. 277).<br />
A autobiografia de Conlon (1994) corrobora as incongruências<br />
entre os fatos divulgados e os mostrados na versão fílmica. Kate Domaille<br />
(2001) sumariza as principais modificações, particularmente as que foram<br />
o alvo dos posicionamentos desfavoráveis ao filme. Segundo ela<br />
• o álibi de Gerry poderia ter sido fornecido por Charlie Burke, um amigo que ele<br />
conheceu na Inglaterra, no período que morou e trabalhou lá – no filme Charles<br />
Burke é um mendigo irlandês, que Gerry e Paul conheceram em um parque;<br />
• os quatro acusados pelos atentados a Guildford e à família Maguire, incluindo<br />
Giuseppe Conlon, tiveram julgamentos separados – no filme todos os<br />
envolvidos foram sentenciados no mesmo julgamento;<br />
• Gerry, pelo seu comportamento, foi transferido para várias prisões, sendo que o<br />
contato que teve com o pai na prisão foi limitado, uma vez que não permaneceram<br />
por um longo tempo na mesma prisão – no filme Gerry e o pai ocuparam a<br />
mesma cela durante todo o filme, sendo retratada uma relação afetiva conflituosa<br />
entre ambos;<br />
• embora a advogada Gareth Pierce tenha encontrado evidências que contribuíram<br />
para que a pena dos quatro de Guildford tenha sido anulada, ela não chegou a<br />
conhecer o pai de Gerry – no filme a advogada não só conhece o pai de Gerry,<br />
como é por intermédio dele que ela se interessa pelo caso. (DOMAILLE, 2001,<br />
p. 67)<br />
A narrativa fílmica recria os principais fatos divulgados pela mídia<br />
– instituição do Ato de Prevenção ao Terrorismo; atentados terroristas a<br />
Guildford; prisão e condenação dos quatro acusados de terem praticado<br />
os atentados, da família Maguire e do pai de Gerry; morte de Giuseppe na<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
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prisão; anulação da sentença imposta aos quatro acusados, após<br />
cumprimento de 15 anos da pena.<br />
Além dos fatos divulgados, a narrativa fílmica (re)cria algumas<br />
experiências vivenciadas por Conlon, relatadas por ele em sua autobiografia:<br />
o roubo de dinheiro da casa de uma prostituta, a explicação da origem do<br />
nome do pai, o fato de ter praticado pequenos roubos na Irlanda, o fervor<br />
religioso do país, a falta de oportunidades de trabalhos na Irlanda, o<br />
problema de saúde do pai, a atitude dos oficiais britânicos em relação à<br />
população irlandesa, a decisão de mudar-se para a Inglaterra, o retorno a<br />
Belfast, o envolvimento com drogas, a violência a ele infringida pelos oficiais<br />
britânicos durante o interrogatório, a ameaça durante o interrogatório ao<br />
bem-estar de sua família, o comportamento despreocupado dos quatro<br />
acusados durante o primeiro julgamento, a declaração do juiz de que, se<br />
existisse a pena de morte por traição, não hesitaria em aplicá-la ao caso, a<br />
convivência na prisão com os responsáveis pelo ato terrorista em Guildford,<br />
a rebelião dos presos, os transtornos psicológicos, a consequência da injustiça,<br />
o preconceito em relação aos prisioneiros irlandeses nas prisões inglesas e a<br />
decisão de Conlon de sair do tribunal pela porta da frente.<br />
Em relação ao processo de transposição fílmica, vale lembrar que<br />
as mudanças realizadas – uso de ficção, alteração e invenção são elementos<br />
inerentes ao processo de adaptação fílmica. Estudos realizados sobre o<br />
assunto (HUTCHEON, 2006; McFARLANE, 1996; SANDERS, 2006;<br />
SEGER, 2007; STAM, 2006) enfatizam que o sucesso de uma adaptação é<br />
obtido através da ousadia dos idealizadores do filme em (re)criar. Ao fazer<br />
isso, o resultado é, inevitalmente, parcial, pessoal, conjuntural e resultado de<br />
interesses específicos (STAM, 2006, p. 27).<br />
Como a média de duração dos longa-metragens contemporâneos<br />
é de 90 minutos (DOMAILLE, p. 27, 2001), seus realizadores são obrigados<br />
a fazer escolhas, que, em consonância com Hutcheon (2006, p. 95), são<br />
realizadas levando-se em conta o ponto de vista pessoal do adaptador,<br />
fatores culturais e históricos. Isso ocorre em Em nome do pai, que conta a<br />
história de 15 anos da vida de uma pessoa em 133 minutos, de modo que<br />
é necessário eliminar, condensar, adicionar e/ou alterar situações, temas e<br />
personagens.<br />
Além do mais, a adaptação tem a ver com ideologias e discursos<br />
sociais podendo tornar-se, conforme é explicado por STAM (2006, p. 48),<br />
um barômetro das tendências ideológicas do momento. O filme não espelha<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 57
a sociedade, mas dialoga com ela, mesmo que inconscientemente, reflita e<br />
reformule ideias que circulam dentro de um contexto maior (BARTON,<br />
2002, p. 12).<br />
Nesse contexto teórico sobre adaptação, entende-se que as alterações<br />
realizadas sobre fatos são necessárias e indispensáveis para realizar uma<br />
versão fílmica que desperte o interesse do público e seja comercialmente<br />
viável. Todavia, tendo em vista a nacionalidade dos principais idealizadores<br />
do filme e o fato de ser lançado durante o período em que a Inglaterra e a<br />
Irlanda do Norte estavam em negociações pela paz, quando recebia apoio<br />
da população e da comunidade internacional, é possível inferir, embora o<br />
tema do filme priorize a relação familiar e a injustiça cometida pelo poder<br />
judicial britânico, que questões históricas e políticas sejam apresentadas<br />
simbolicamente através da reincidência de circunstâncias que permeiam a<br />
relação entre Giuseppe e o seu filho, Gerry, bem como através de técnicas<br />
cinematográficas.<br />
Esse entendimento origina-se no pressuposto de Seger (2007), que<br />
explica que “As imagens trazem em si certos significados” (p. 178), sendo<br />
que as que são mostradas “são justamente as que ajudam a transmitir uma<br />
idéia” (p. 179). Para ela, as imagens são geralmente construídas com a<br />
repetição de alguns elementos e tornam-se importantes para a comunicação<br />
do tema.<br />
Antes de iniciar as considerações sobre a narrativa fílmica, cabe<br />
explicar que o desenrolar da trama não segue uma estrutura linear e<br />
frequentemente usa o flashback para representar os fatos que são narrados<br />
em voice over. A narração, em alguns momentos, é simultânea ao aparecimento<br />
da personagem Gareth Pierce, e em outros ocorre enquanto os<br />
acontecimentos estão sendo representados.<br />
Antes do início do filme propriamente dito, o prólogo representa<br />
a explosão que ocorreu no bar londrino, Horse and Grom, em 1974. A<br />
cena mostra a alegria de dois casais, rindo e brincando, enquanto caminham<br />
em direção ao bar. No interior do bar, cumprimentam amigos. De repente<br />
há uma explosão. Uma bolsa é lançada para fora. A imagem escurece (fade<br />
out). Os créditos do filme são apresentados, inclusive a data do acontecimento<br />
– 05 de outubro de 1974, ao som da música In the Name of the Father, de<br />
Bono, Gavin Friday e Maurice Seezer. O ritmo da música é típico da Irlanda,<br />
e a letra evoca o pai, pessoas, entidades e desejos.<br />
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Na sequência, aparece a advogada Gareth Pierce, que dirige<br />
enquanto ouve a gravação de uma fita cassete 6 , na qual a voz de Gerry<br />
Conlon narra sua história 7 . A partir desse ponto, há uma alternância de<br />
imagens – a de Pierce dirigindo enquanto escuta a gravação de Conlon<br />
com a descrição dos eventos que o levaram à condenação. Gerry fala sobre<br />
acontecimentos anteriores e posteriores à sua prisão. Sequencialmente, há<br />
alternâncias entre as imagens das situações narradas por Gerry com as<br />
imagens relacionadas à representação de vários acontecimentos – a<br />
organização dos atentados à Guildford e a sua efetivação, a conduta dos<br />
policiais nos bastidores do interrogatório de Gerry, a confissão do<br />
responsável pelos atentados à Guildford, a conduta dos oficiais em relação<br />
a essa confissão e as providências da advogada para obter a liberdade de<br />
Gerry.<br />
O início do filme não permite identificar o tempo das sequências<br />
em que Gareth aparece dirigindo, o que só ocorre na cena em que ela pede<br />
a liberdade condicional de Giuseppe Conlon, pai de Gerry. Essa inferência<br />
é possível em função de que o cabelo, as roupas e os adornos que ela usa<br />
são os mesmos apresentados em todas as cenas em que ela aparece dirigindo.<br />
Além disso, na última sequência, ela estaciona, sai do carro e dirige-se a um<br />
prédio. Assim, evidencia-se que ela tomou conhecimento do detalhamento<br />
dos acontecimentos durante o trajeto até o local onde intercede, na condição<br />
de advogada, pela liberdade de Giuseppe, um pouco antes de ele falecer.<br />
A alternância de imagens, particularmente entre a imagem de Pierce<br />
e a representação dos acontecimentos é uma constante. No início essa<br />
alternância é marcada pela escuridão de um túnel através do qual Pierce<br />
dirige e ouve a narração de Gerry sobre os acontecimentos que marcaram<br />
a vida dele. A escuridão inicial sugere que, até aquele momento, ela ignorava<br />
os detalhes dos acontecimentos. A cena que segue é a do início do relato de<br />
Gerry, que ocorre à luz do dia, o que indica que a partir daquele momento<br />
a narração propiciará a elucidação do caso.<br />
Nas cenas seguintes, a alternância entre a imagem de Gareth e a<br />
representação dos fatos dá-se nos momentos que ela dirige pelas ruas de<br />
Londres e pela representação de experiências vivenciadas por Gerry no<br />
período em que esteve preso. Algumas cenas são mostradas através da<br />
técnica de filmagem iris, muito usada na época do cinema mudo. Essa<br />
técnica consiste em expandir ou diminuir a imagem dentro de um círculo.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 59
A parte externa do círculo é escurecida de modo que apenas a parte central<br />
da imagem pode ser vista pelo público.<br />
Como se pode verificar na sequência das imagens retiradas do<br />
filme, da figura 1 à 8, se analisada em conjunto, permite inferir o momento<br />
histórico e os momentos decisivos da injustiça vivenciada por Gerry e seus<br />
familiares. A Fig. 1 mostra o contexto político vivenciado pela Irlanda no<br />
início dos anos 70. O IRA empreende uma forte campanha contra o controle<br />
inglês, que havia se instalado na Irlanda com o objetivo de conter as rebeliões<br />
dos que contestavam e desafiavam a presença do Império Britânico em<br />
território irlandês. As Figs. 2 e 3 registram o local em que os problemas de<br />
Gerry e, consequentemente, os de sua família, iniciaram. A presença de<br />
Gerry em um telhado, em um momento em que faz uma brincadeira, leva<br />
os oficiais britânicos a confundi-lo com um militante do IRA e a perseguilo<br />
pelas ruas de Belfast. Ele não é preso, mas, por precaução, é enviado<br />
pelo pai à Inglaterra. Permanece um tempo lá, mas logo retorna para casa<br />
dos pais, onde é preso pouco tempo depois, acusado de praticar atos<br />
terroristas na Inglaterra.<br />
Fig. 1 – Cartaz de protesto contra presença dos ingleses na Irlanda do Norte.<br />
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60
Fig. 3 – Gerry Conlon em um telhado, em Belfast.<br />
Fig. 2 – Imagem dos telhados de Belfast.<br />
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Os meios, utilizados pelos cineastas, para fazer com que Gerry<br />
confesse sua participação nos atentados podem ser vistos nas Figs. 4 e 5. A<br />
tortura, as ameaças contra a sua família, bem como a confissão do amigo,<br />
Paul Hill, envolvendo-o como participante nos atentados, acabam minando<br />
sua resistência e ele confessa ter feito algo que não fez.<br />
Fig. 5 – Pressão psicológica, durante o interrogatório.<br />
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Fig. 4 – Tortura impetrada a Gerry Conlon.<br />
62
As Figs. 6, 7 e 8 fixam o momento do filme em que a injustiça<br />
cometida é sentida por Gerry de maneira intensa. A Fig. 6 retrata o desespero<br />
pelas condições de saúde do pai, a Fig. 7 a desolação e a preocupação e,<br />
<strong>final</strong>mente, a raiva por tudo que vem passando e a determinação em lutar,<br />
na Fig. 8.<br />
Fig. 6 – Gerry socorre o pai, que passa mal, na cela.<br />
Fig. 7 – Gerry enquanto aguarda notícias do pai, que foi levado para o hospital.<br />
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<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Fig. 8 – Gerry, após saber da morte do pai.<br />
Como mencionado anteriormente, o fio condutor da narrativa<br />
fílmica é a relação entre Gerry e o pai. Todavia essa relação é uma criação<br />
fílmica. A narrativa autobiográfica de Gerry não faz menção a conflitos<br />
entre ele e o pai. Pelo contrário, ele conta que o pai foi uma influência<br />
positiva em sua vida. Além do mais, a convivência entre pai e filho foi<br />
quase inexistente na prisão; poucas vezes tiveram oportunidade de conversar.<br />
A conjuntura do processo de adaptação, explicada anteriormente, envolve<br />
escolhas. Assim, os idealizadores do filme optam por priorizar o drama<br />
familiar, em que o pai tenta proteger e orientar o filho, que, por sua vez,<br />
não aceita a interferência do pai em sua vida.<br />
Desde o início do filme, evidencia-se que o pai tenta controlar as<br />
atitudes do filho. Quando Gerry é mantido preso pelo IRA, tão logo é<br />
informado da situação, Giuseppe deixa o trabalho para ir até onde o filho<br />
está e suplicar para que o libertem. Ao saber do envolvimento do filho em<br />
roubos, decide enviá-lo a Londres, para mantê-lo longe da milícia britânica<br />
e do IRA. Imediatamente após a prisão, vai para a Inglaterra para ajudá-lo<br />
e acaba sendo preso sob a acusação de cumplicidade na ação terrorista. No<br />
julgamento, ao tomar conhecimento, através da confissão do filho, que Gerry<br />
roubou dinheiro da casa de uma prostituta, Giuseppe o repreende, mas<br />
destaca a importância da sua confissão. Na prisão frequentemente exterioriza<br />
ao filho as suas inquietações em relação ao seu comportamento. Quando<br />
64
percebe que o filho está usando drogas, consegue, através de uma greve de<br />
silêncio, que o filho prometa que irá parar de drogar-se. Enfim, na condição<br />
de pai aceita o filho “como ele é”, mas quer afastá-lo das “más influências”.<br />
Gerry, por sua vez, de natureza rebelde, ignora os conselhos do pai<br />
e opta por viver a vida à sua maneira. Rouba, mente e acaba sendo acusado<br />
de praticar atos terroristas. Na prisão, mantém relações de amizade com<br />
pessoas de caráter duvidoso, mas não compactua com suas ações. Embora<br />
tenha feito amizade com um militante do IRA, Joe McAndrew, quando<br />
este ateia fogo em um oficial inglês, por vingança, Gerry se revolta e declara<br />
ironicamente sua total rejeição pela violência do ato praticado dizendo “Foi<br />
um bom trabalho. Um bom trabalho. Não quer me olhar nos olhos?<br />
Também sei encarar sem piscar. Nunca tive vontade de matar alguém até<br />
agora. É muito corajoso, Joe” (Legenda em português – 1h36min37sec).<br />
Embora a divergência entre pai e o filho seja uma constante, Gerry<br />
preocupa-se com o bem-estar do pai. Durante o interrogatório sobre os<br />
atentados terroristas, ele nega qualquer envolvimento. Todavia, quando<br />
ameaçam a vida do pai, desespera-se e confessa um crime que não cometeu.<br />
Na prisão, após a ação praticada por McAndrew, preocupa-se com a saúde<br />
do Giuseppe e o ajuda com a medicação.<br />
Essa relação entre pai e filho, entendida pelos teóricos como conflito<br />
de gerações, pode, simbolicamente, representar o conflito entre a Inglaterra<br />
e a Irlanda do Norte. A Inglaterra domina a Irlanda por séculos, mas essa<br />
dominação não é aceita pela sua população, gerando confrontos violentos<br />
entre as duas nações. O império britânico 8 , como um pai, estabelece as<br />
normas, que, no entanto, são rejeitadas pelo povo irlandês, que, como os<br />
filhos, recusam-se a viver sob as normas e a autoridade paterna. Nessa<br />
perspectiva, pode-se inferir, ainda, que o desejo de controlar o filho é o<br />
mesmo que a Grã Bretanha tem em relação à Irlanda do Norte. A natureza<br />
rebelde do filho, rebelando-se em aceitar a proteção paterna, por sua vez,<br />
espelha a revolta do povo dominado.<br />
No filme, a morte do pai fortalece a determinação do filho em<br />
lutar para provar a sua inocência. Ele assume o controle da campanha<br />
iniciada pelo pai e acaba obtendo êxito. Nesse contexto, é possível inferir<br />
que a morte do pai teve resultado positivo sobre a conduta do filho. Por<br />
analogia, o fim do domínio britânico na Irlanda representaria para o país a<br />
oportunidade de controlar seus interesses, no âmbito social, econômico,<br />
cultural e religioso.<br />
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Dois personagens de destaque – Joe McAndrew e Robert Dixon –<br />
que, embora importantes para o desenrolar da trama, são fictícios<br />
(GRENIER, 1999, p. 319), são interpolações feitas pelo cineasta. McAndrew<br />
é ativista do IRA e, dentre inúmeros atos terroristas, confessa ser o<br />
responsável pelos atentados a Guildford, e Dixon é o oficial britânico<br />
responsável pelas investigações do caso.<br />
A criação desses dois personagens pode ser justificada pela<br />
preocupação com questões legais uma vez que, se fosse usado o nome real<br />
dos policiais e/ou dos que assumiram a culpa pelos atentados, mesmo que<br />
esses nomes tenham sido divulgados pela imprensa, essas pessoas poderiam,<br />
eventualmente, processar os idealizadores do filme. Em relação a essa<br />
questão, Seger (2007, p. 220-221) explica que as fontes de domínio público,<br />
ou seja, o material publicado pela imprensa e os documentos legais de<br />
julgamento podem ser usados como fonte de informação para a adaptação.<br />
Todavia, ressalta ela, isso não garante que não haja processo por parte da<br />
pessoa retratada, caso ela ou seu representante legal entendam que haja<br />
motivo para tal. Dessa forma, a opção pela ficção constitui-se a solução<br />
para o problema. Qualquer que seja a razão para o uso da ficção em relação<br />
a esses dois personagens, não se pode deixar de constatar que cada um deles<br />
retrata um lado da questão do conflito entre Inglaterra e Irlanda do Norte.<br />
Dixon representa a força policial que foi enviada para a Irlanda do<br />
Norte, na década de 70, com o objetivo de conter os movimentos<br />
revolucionários pela independência do país, utilizando os meios que fossem<br />
necessários. Os registros históricos relatam que a atuação da força policial<br />
inglesa não foi pacificadora, pelo contrário, as ordens eram para conter as<br />
rebeliões, concedendo aos policiais, inclusive, maior poder de ação<br />
(COHILL, 2009; McCAFREY, 2006).<br />
McAndrew representa o Exército Republicano Irlandês (IRA), uma<br />
organização paramilitar criada para lutar pela independência da Irlanda do<br />
Norte, que encontrou na prática terrorista um meio para se firmar<br />
politicamente, como já mencionado (COOGAN, 2009; ENGLISH, 2003).<br />
As ações de McAndrew na prisão, dentre elas atear fogo em um policial,<br />
não são diferentes das relatadas pela mídia da época. A edição do The Irish<br />
Times, do dia 18 de maio de 1974, cinco meses antes do atentado cometido<br />
em Guildford, contém notícias sobre o atentado que matou 27 pessoas e<br />
deixou mais de 100 feridos em um atentado à bomba em Dublin, Irlanda.<br />
Dentre as vítimas, na sua maioria civis, havia mulheres e crianças, sendo que<br />
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destaque foi dado à foto de uma criança morta na ação terrorista (citado<br />
em NUNES, 2009), cuja manchete Picture of the Death in a Dublin Street<br />
[Retrato da morte em uma rua de Dublin] causou horror e indignação na<br />
população.<br />
A prisão é o local no qual se desenvolve a maior parte da trama. A<br />
restrição à liberdade e a submissão às normas pré-estabelecidas são<br />
características inerentes ao local. Essas normas, contudo, são contestadas<br />
pelos prisioneiros. O filme mostra a rebelião dos detentos, liderada por<br />
McAndrew, e a intervenção imediata e violenta dos oficiais britânicos para<br />
contê-la. O contexto apresentado sugere que a prisão representa o domínio<br />
inglês na Irlanda do Norte. A insatisfação dos presos simboliza o<br />
descontentamento do povo irlandês frente aos que mantêm o controle<br />
supremo sobre o país. Todavia, o IRA, no filme McAndrew, confronta o<br />
poder britânico e luta para acabar com a dominação, usando os meios que<br />
forem necessários – o protesto coletivo, representado pela rebelião dos<br />
presos, ou a ação terrorista, caracterizada por McAndrew ao atear fogo no<br />
diretor da prisão.<br />
Em relação ao título do filme, Sheridan afirma em uma entrevista<br />
“Eu gosto do título Em nome do pai porque ele pressupõe ‘e do filho’”<br />
[nossa tradução] 9 . Essa pressuposição justifica-se pelo fato de que Em nome<br />
do pai evoca o sinal da cruz uma vez que, na religião católica, essas são as<br />
primeiras palavras utilizadas simultaneamente ao gestual usado, seguidas<br />
por do Filho e do Espírito Santo. O sinal em questão é realizado através do<br />
movimento das mãos, em forma de cruz, para mostrar respeito por Deus<br />
e/ou para proteger-se do mal (LONGMAN, 2006, p. 1431).<br />
Importante destacar que, no filme, questões históricas e políticas<br />
são relegadas para segundo plano, não sendo explicadas ao público, o que<br />
inviabiliza, para muitos, o entendimento do contexto vivenciado. A<br />
representação da violência das rebeliões – nas prisões e entre a população<br />
irlandesa e os ingleses – a explosão, as atitudes da polícia inglesa, do IRA e<br />
a animosidade dos presos em relação aos prisioneiros irlandeses seriam<br />
melhor compreendidas com o conhecimento prévio da História irlandesa.<br />
Mesmo assim, as imagens dos confrontos entre oficiais ingleses e a<br />
população da Irlanda do Norte, da saída de Gerry do tribunal, da sua declaração<br />
para a imprensa e da aglomeração de pessoas comemorando a sua libertação,<br />
embora (re)criadas, mantêm proximidade com o que aconteceu na época,<br />
conforme material de vídeo disponível na internet 10 (Ver Figs. 09 e 10).<br />
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Fig. 9 – Momento em que Gerry Conlon é libertado na vida real.<br />
Fig. 10 – Cena <strong>final</strong> do filme. Momento em que o personagem é libertado.<br />
Com base no posicionamento teórico sobre adaptação fílmica,<br />
constata-se que há várias possibilidades para que os idealizadores de um<br />
filme optem por recriar os relatos do autor de uma obra literária de distintas<br />
maneiras. A obra autobiográfica de Conlon, por exemplo, apresenta dois<br />
relatos que são transportados para as telas de forma inusitada.<br />
Primeiro, Conlon (1994, p. 120-121) faz uma breve menção ao<br />
fato de que Paul Hill matou um soldado inglês antes de ter sido envolvido<br />
no caso de Guildford, crime pelo qual foi condenado à prisão perpétua.<br />
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Na narrativa fílmica, contudo, não há menção explícita a esse fato. Observase,<br />
entretanto, que Gerry, Paddy, Paul e Caroline usam no pescoço uma<br />
corrente. Na corrente de Gerry, Caroline e Paddy é possível visualizar o<br />
pingente – no de Gerry e Caroline uma cruz, na do de Paddy um peixe,<br />
sendo que tanto a cruz como o peixe são símbolos da religião católica. No<br />
caso de Paul, todavia, não é possível visualizar o pingente. A corrente é<br />
mostrada, mas não é possível identificar o que está pendurado nela, o que<br />
pode ser indício de que os idealizadores não se pronunciam abertamente<br />
sobre a condenação anterior de Paul, mas fazem isso através da ausência de<br />
símbolos que são vinculados aos personagens considerados “inocentes”.<br />
Segundo, a cena em que Joe McAndrew executa a sua vingança contra<br />
o oficial inglês ocorre durante o momento em que os prisioneiros estão<br />
assistindo ao filme O poderoso chefão [The Godfather (1972)], cujo tema central<br />
gira em torno da máfia italiana. Na narrativa autobiográfica, Conlon (p.<br />
118) menciona esse filme quando fala da semelhança do advogado dele<br />
com Michael Corleone. Os idealizadores do filme, por sua vez, fazem uso<br />
da cena em que Michael conversa com seu pai, Don Corleone. Durante a<br />
cena ouve-se Don Corleone dizendo “Eu nunca desejei isso para você”<br />
[nossa tradução], enquanto a câmera enquadra Giuseppe, pai de Gerry, que<br />
está em sua cela.<br />
Considerações finais<br />
As considerações detalhadas neste trabalho são fundamentadas<br />
basicamente na História irlandesa. No entanto, o filme Em nome do pai<br />
apresenta possibilidades para várias interpretações. Além do mais, se o filme<br />
for analisado em relação aos dois outros filmes que constituem a trilogia<br />
sobre as experiências vivenciadas pela população da Irlanda do Norte,<br />
realizados por Sheridan e George – Some Mother’s Son (1996) e The Boxer<br />
(1997) – é possível constatar que, além de acontecimentos históricos, são<br />
recriadas situações que, como no filme Em nome do pai, envolvem a família<br />
dos militantes do IRA e/ou pessoas que acabam por envolver-se com eles.<br />
Some Mother’s Son, por exemplo, recria o sofrimento e a luta das mães dos<br />
prisioneiros políticos no período das greves de fome realizadas no início<br />
dos anos 80. The Boxer recria a situação das esposas de prisioneiros<br />
republicanos, as quais, por normas estabelecidas pelas comunidades em<br />
que viviam, eram forçadas a permanecer fiéis e leais aos maridos.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 69
A questão política alicerça os dramas pessoais. Levando isso em<br />
consideração, entende-se que a posição dos idealizadores dos filmes não<br />
está relacionada à militância política, mas às consequências dela no âmbito<br />
familiar, em que seus membros são involuntariamente envolvidos e forçados<br />
a superar as adversidades resultantes da atuação de entes queridos na luta<br />
contra o domínio inglês. Em suma, percebe-se que a trilogia de filmes<br />
sobre as questões da Irlanda do Norte retrata a preocupação com a situação<br />
dos familiares irlandeses, vítimas da “guerra” entre o IRA e a milícia britânica.<br />
Verifica-se, ainda, na trilogia, a importância e a força das personagens<br />
femininas para manter a união familiar. No filme Em nome do pai, a mãe e as<br />
irmãs de Gerry estão presentes nos momentos decisivos de sua vida e fica<br />
implícito que elas ajudaram na campanha pela sua libertação. Nos filmes<br />
Some Mother’s Son e The Boxer, respectivamente, são mostradas situações que<br />
envolvem as mães e as esposas dos prisioneiros políticos. O que foi escrito<br />
até aqui permite inferir que o filme Em nome do pai abre um leque de<br />
possibilidades para leituras e pesquisas, isoladamente ou em conjunto, dos<br />
filmes que compõem a trilogia realizada pela parceria Jim Sheridan e Terry<br />
George.<br />
Notas<br />
1 Sheridan inicia sua carreira artística como diretor teatral na Irlanda. Em 1981, mudase<br />
com a família para os Estados Unidos e, em 1989, lança seu primeiro longa metragem<br />
– Meu pé esquerdo [My Left Foot], que recebe a indicação para cinco categorias do Oscar<br />
de 1990 – melhor filme, melhor diretor, melhor ator, melhor atriz coadjuvante e<br />
melhor roteiro adaptado, recebendo duas estatuetas – melhor ator e melhor atriz<br />
coadjuvante (BARTON, 2002, p. xiii).<br />
2 George foi ativista político na Irlanda, passou três anos na prisão e, após a morte do<br />
seu mentor político, imigra, ilegalmente, para os Estados Unidos (BARTON, 2002,<br />
p. 1-14).<br />
3 A trilogia em questão é composta pelos seguintes filmes – In the Name of the Father<br />
(1993), Some Mother’s Son (1996), e The Boxer (1997).<br />
4 Versão em inglês: “[...] I realised that making a film set in Ireland or England and<br />
trying to make it work in America or the rest of the world, you had to have a them or<br />
a sub-structure that would appeal on a deeper level” (SHERIDAN quoted in<br />
BARTON, 2002, p. 144).<br />
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5 Versão em inglês: “I’ve spent fifteen years in prison for something I haven’t done,<br />
for something I knew nothing about. I watched my father die in prison for something<br />
he didn’t do. He’s innocent, the Maguires are innocent, the Birmingham Six are<br />
innocent. Let’s hope they’re next” (CONLON, p. 4, 1993).<br />
6 Quando Gerry aceita Gareth Pierce como sua advogada, ela pede para ele escrever<br />
tudo que ele lembrar sobre os acontecimentos pelo qual ele foi acusado. Porém, ele<br />
tem dificuldades em expressar por escrito tudo o que lhe aconteceu. Por essa razão o<br />
pai presenteia-o com um gravador. Cabe explicar que não fica claro no filme quais<br />
foram os meios usados pelo pai de Gerry para conseguir o gravador.<br />
7 Após a explosão, retratada no prólogo, os eventos do tempo presente são interligados<br />
pelas explicações da voz de Gerry, em voice over.<br />
8 O império britânico é reconhecido como sendo o que obteve maior sucesso em suas<br />
empreitadas colonialistas. Onyiaorah (2000) aponta a Inglaterra como a grande potência<br />
colonizadora do século XIX e Said (1996) afirma que por volta de 1880 o domínio<br />
imperial britânico era uma extensão ininterrupta do Mediterrâneo à Índia.<br />
9 I like the title In the Name of the father because it implies “and of the son” (quoted<br />
in BARTON, 2002, p. 76).<br />
10 No You Tube é possível encontrar vários vídeos com reportagens sobre os conflitos<br />
em questão. Um em particular, mostra uma reportagem na qual são explicados os<br />
fatos relacionados aos atentados de Guildford, bem como mostra imagens de Gerry<br />
deixando o tribunal e a sua entrevista aos jornalistas. Disponível em: http://<br />
www.youtube.com/watch?v=faeLDn3Lzhc&feature=related. Acesso em: 10 ago. 20.<br />
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Maria Inês CHAVES<br />
Mestre em Teoria Literária pela <strong>Uniandrade</strong>, PR.<br />
Professora/Supervisora de Cursos Extensionistas na Universidade Estadual de Ponta<br />
Grossa.<br />
Brunilda T. REICHMANN<br />
PhD em Literaturas de Língua Inglesa pela UNL, EUA. Professora Titular do Curso<br />
de Letras da UFPR (aposentada). Professora Titular do Mestrado em Teoria Literária<br />
da <strong>Uniandrade</strong>, PR. Fundadora e editora da revista <strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>.<br />
Artigo recebido em 29 de setembro de 2011.<br />
Aceito em 17 de outubro de 2011.<br />
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<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 73
TRANSPOSIÇÃO MIDIÁTICA:<br />
A REPRESENTAÇÃO DA MEMÓRIA<br />
NO TEXTO DRAMÁTICO DE MARGARET EDSON<br />
E NO FILME DE MIKE NICHOLS<br />
Resumo: Os estudos filosóficos,<br />
sociológicos e de crítica literária de Henri<br />
Bergson, Maurice Halbwachs, Ecléa Bosi<br />
e Samuel Beckett, que se debruçam sobre<br />
os mecanismos da memória, e as<br />
pesquisas sobre as especificidades do<br />
cinema de Marcel Martin são utilizados<br />
para a análise da transcodificação das<br />
técnicas memorialísticas que formam o<br />
eixo de referências para o estudo<br />
comparativo do texto, Wit (1993), da<br />
dramaturga estadunidense Margaret<br />
Edson, e da adaptação cinematográfica<br />
homônima (2001), com direção de Mike<br />
Nichols, objetivando mostrar como o<br />
texto de partida foi transcriado da página<br />
à tela.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Simone Sicora Poleto<br />
simonepoleto@yahoo.com.br<br />
Anna Stegh Camati<br />
anniesc@bol.com.br<br />
Abstract: The philosophical, sociological<br />
and literary studies by Henri Bergson,<br />
Maurice Halbwachs, Ecléa Bosi and<br />
Samuel Beckett, which investigate the<br />
mechanisms of memory, and the critical<br />
concepts on cinema specificities by Marcel<br />
Martin are taken into account for the<br />
analysis of the transcodification of the<br />
memorialistic devices that were taken as<br />
reference for the comparative study of the<br />
text Wit (1993), by the USA playwright<br />
Margaret Edson, and the homonymous<br />
film adaptation (2001), directed by Mike<br />
Nichols, aiming at showing how the<br />
source-text has been transcreated from<br />
page to screen.<br />
Palavras-chave: Wit. Dramaturgia da memória. Apropriação. Adaptação fílmica.<br />
Intermidialidade.<br />
Key words: Wit. Memory play. Appropriation. Film adaptation. Intermediality.<br />
74
Introdução<br />
Wit (1993) é a primeira e única peça da dramaturga estadunidense<br />
Margaret Edson, que atualmente vive em Atlanta, Geórgia, onde é professora<br />
em um jardim de infância. Em entrevista concedida ao jornalista Jim Lehrer,<br />
do jornal Online News Hour 1 , Edson revela que iniciou a escrita do texto<br />
no verão de 1991, enviando-o, em 1993, para diversos teatros do país. O<br />
texto foi rejeitado por todos, com exceção do South Coast Repertory<br />
Theater, em Costa Mesa, Califórnia, onde a peça estreou em 1995. A<br />
dramaturga recebeu o Prêmio Pulitzer na categoria drama em 1999.<br />
O texto aborda o tema da desumanização no ambiente hospitalar<br />
por meio da história da narradora-protagonista Vivian Bearing, professora<br />
universitária, especialista nos Sonetos sacros de John Donne, que descobre,<br />
aos cinquenta anos de idade, ser portadora de câncer ovariano em estágio<br />
avançado e que se submete a tratamentos experimentais oferecidos pelo<br />
hospital.<br />
Em maio de 2000, Wit estreou no Teatro Leblon, Rio de Janeiro,<br />
com direção de Diogo Vilela, tendo como protagonista a atriz Glória<br />
Menezes. Nesse mesmo ano, a peça foi traduzida para o português, por<br />
José Almino, como Wit: jornada de um poema. Pela dificuldade de<br />
encontrar um correspondente em português, foi mantido o título originário<br />
do texto, acrescido do subtítulo mencionado, visto que os diversos sentidos<br />
do vocábulo “wit” 2 fornecem a chave para o entendimento da peça. O<br />
subtítulo faz referência à jornada memorialística da protagonista que, na<br />
iminência da morte, utilizando como fio condutor o tema da transcendência<br />
que permeia o poema “Morte não sejas orgulhosa”, do poeta metafísico<br />
John Donne, revisita os principais eventos de sua vida.<br />
Essa obra foi adaptada para a TV em 2001, sob a direção de Mike<br />
Nichols. É classificada no gênero dramático e, em seu elenco, destacam-se Emma<br />
Thompson, como a narradora/protagonista Professora Vivian Bearing, e outros<br />
atores consagrados como Christopher Lloyd, Eileen Atkins, Audra<br />
McDonald, Jonathan M. Woodward e Harold Pinter. Partindo da premissa<br />
de que o texto dramático é verbal, enquanto o filme pode ser considerado<br />
verbal-áudio-visual, trata-se de uma adaptação criativa para a televisão da<br />
obra de Edson, em que essas modalidades artísticas dialogam entre si.<br />
Neste artigo pretende-se priorizar a adaptação para TV, de Mike<br />
Nichols, sob o viés comparativo do texto ao filme, salientando, principalmente,<br />
a tradução das técnicas memorialísticas para a pequena tela.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 75
1 Considerações teóricas sobre a memória e a peça memorialística<br />
Sob o ponto de vista filosófico, Henri Bergson, ainda no <strong>final</strong> do<br />
século XIX, foi um dos primeiros autores a estudar o funcionamento da<br />
memória, tratando-a como uma forma de representação individual, ou<br />
seja, como o lado subjetivo de nosso conhecimento das coisas (BERGSON,<br />
1990, p. 23). Em sua obra The Creative Mind: An Introduction to Metaphysics,<br />
publicada pela primeira vez em 1910, Bergson aponta dois modos de<br />
atividade da mente para apreender a realidade: a consciência intelectual, que<br />
capta a aparência do objeto; e a consciência intuitiva-instintiva, capaz de<br />
penetrar na essência do objeto. O filósofo francês também argumenta que<br />
nossos sentimentos e pensamentos presentes são sempre mediados e<br />
modificados pela memória de eventos ocorridos no passado e que estes,<br />
por sua vez, também irão repercutir no futuro, uma vez que presente e<br />
passado coexistem na mente. Desse modo, percepção e lembrança sempre<br />
se interpenetram, o que permite centrar a memória não no passado, mas sim<br />
em constante circulação entre o passado e o presente (CAMATI, 2005, p. 34).<br />
Em relação à crítica literária, a introdução do termo “peça<br />
memorialística” é atribuída a Paul T. Nolan que, no artigo intitulado Duas<br />
peças de memória, analisa os textos À margem da vida, de Tennessee Wiliams, e<br />
Depois da queda, de Arthur Miller. Ele ressalta que essa modalidade dramática<br />
tenta extrapolar os limites do drama tradicional (que mostra a ação) para<br />
chegar ao centro da ação, ou seja, a consciência. No mesmo artigo, Nolan<br />
também articula uma definição do gênero:<br />
A nova “peça de memória”, diferentemente da peça onírica e do drama<br />
expressionista, é uma projeção da consciência e, diferentemente do drama<br />
tradicional de ação, focaliza apenas a ação tal qual é entendida e filtrada pela<br />
mente do protagonista. (NOLAN citado em CAMATI, 2005, p. 36, nossa<br />
tradução)<br />
Tanto na peça Wit: jornada de um poema, quanto na adaptação<br />
fílmica Uma lição de vida, título atribuído ao filme em português, tudo o que<br />
é revelado para o leitor/espectador é filtrado pela mente da narradoraprotagonista<br />
Vivian Bearing, que ora exerce o papel de personagemprotagonista<br />
e ora o de narradora de sua história de vida.<br />
Margaret Edson contribuiu para a revitalização da dramaturgia da<br />
memória com a criação de técnicas inovadoras para a representação dos<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
76
mecanismos da mente, em sua peça Wit: jornada de um poema, que serão<br />
discutidas ao longo da análise. No texto de Edson, as reminiscências da<br />
narradora-protagonista são atualizadas pela constante ação de alternância<br />
da memória voluntária e involuntária, conceitos filosóficos teorizados por<br />
Bergson (1910), apropriados por Marcel Proust para representar os<br />
processos de atividade da mente em sua obra Em busca do tempo perdido,<br />
publicada entre 1913 e 1927, e problematizados por Samuel Beckett em<br />
seu ensaio intitulado Proust (1930) 3 . A narradora-protagonista,<br />
voluntariamente, se esforça para rememorar os acontecimentos do passado<br />
para reavaliar o presente e projetar o futuro. Ao mesmo tempo, os estímulos<br />
exteriores, palavras, situações, objetos, dentre outros, desencadeiam a<br />
memória involuntária. Os mecanismos da memória foram representados<br />
de maneira diferente por Edson, em Wit, e por Nichols, em Uma lição de<br />
vida, por se tratar de suportes regidos por códigos, convenções e signos<br />
distintos.<br />
2 A representação da memória no texto dramático e no filme<br />
Wit: jornada de um poema relata a história das duas últimas horas<br />
de vida de Vivian Bearing. No hospital, enquanto paciente em estágio<br />
terminal de câncer, Vivian, a professora de literatura, especialista nos sonetos<br />
sacros de John Donne, percorre os principais lugares e eventos de sua<br />
trajetória nos labirintos da memória.<br />
No prólogo, com a introdução da ideia do tempo escoando<br />
rapidamente como a areia de uma ampulheta, a narradora-protagonista<br />
expressa consciência temporal em virtude da proximidade da morte e, será<br />
nesse curto espaço de tempo, que os momentos-chave mais marcantes de<br />
sua vida serão passados em revista. A maneira como a passagem do tempo<br />
é vivida e sentida em circunstâncias diversas, é problematizada por Bergson:<br />
[...] a medida do tempo nunca trata da duração como duração e a medida de<br />
duração a que nós nos referimos não é a própria duração, […] pois esta<br />
duração que não é considerada pela ciência e que é tão difícil de ser conceituada<br />
e expressa, é aquela que todos sentem e vivem. (BERGSON, 1999, p. 13)<br />
O texto cênico é caracterizado pelo jogo da dupla temporalidade,<br />
no qual a mente de Vivian é o espaço do livre trânsito entre o presente e o<br />
passado. No texto também há indicações cênicas sobre o cenário composto<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 77
por poucos objetos que devem deslizar em determinados momentos da<br />
representação, fazendo as transições da memória entre presente e passado.<br />
Em Uma lição de vida, Vivian Bearing também desenvolve dois papéis<br />
no enredo – o de protagonista e o de narradora – e já no ínicio percebe-se<br />
que a concretização do filme se dá com uma inversão de cenas e cortes de<br />
algumas falas: o que no texto cênico ou hipotexto seria a segunda cena<br />
passa a ser a primeira no filme ou hipertexto; assim como a terceira cena<br />
do texto teatral é intercalada com a primeira, que passa a ser a segunda cena<br />
na adaptação fílmica. Enquanto, no texto cênico, a ação se desenrola<br />
inteiramente na mente da personagem que, nas duas últimas horas de sua<br />
vida rememora partes de sua existência, no texto fílmico, a ação se estende<br />
por alguns meses, que correspondem à estadia de Vivian no hospital,<br />
intercalada por incursões memorialísticas em forma de flashback.<br />
Diferentemente do texto dramático, que se inicia por um prólogo,<br />
no filme, sob um pano de fundo pictural de uma cidade desfocada, a<br />
primeira cena inicia com um close-up 4 do rosto do Dr. Kelekian revelando o<br />
diagnóstico à Vivian, informando de maneira fria e direta que ela está com<br />
câncer (Fig. 1) 5 . Essa técnica de focalização é conceituada por Marcel Martin<br />
(2007, p. 39) como plano de rosto humano, sendo “sem dúvida a que manifesta<br />
melhor o poder de significação psicológico e dramático do filme, e é esse<br />
tipo de plano que constitui a primeira, e no fundo a mais válida, tentativa de<br />
cinema interior”. De acordo com o autor, o primeiro plano revela um<br />
significado psicológico preciso e não apenas um papel descritivo. No filme,<br />
ambos os rostos, do médico e de Vivian são focalizados alternadamente<br />
em primeiro plano, veiculando a forte tensão mental das personagens, sendo<br />
que a câmera passa a ser o olhar de ambos (Fig. 2) e do espectador.<br />
A iluminação, nessa primeira sequência, com uma claridade<br />
exagerada, de acordo com Martin, “serve para definir e modelar [...], para<br />
produzir uma atmosfera emocional e mesmo certos efeitos dramáticos”<br />
(MARTIN, 2007, p. 57). A música estridente que inicia o filme vem de<br />
encontro à atmosfera dramática da cena, que “intervém como contraponto<br />
psicológico para fornecer ao espectador um elemento útil à compreensão<br />
da tonalidade humana do episódio” (MARTIN, 2007, p. 125), ou seja, ela<br />
vem sustentar momentos de revelação da narradora-protagonista ao longo<br />
do filme.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
78
Fig. 1 – 00:00:35<br />
Fig. 2 – 00:00:40<br />
Transcrevo, abaixo, as falas das personagens que pontuam a cena<br />
de abertura descrita anteriormente 6 :<br />
DR. KELEKIAN<br />
Você tem câncer.<br />
Sra. Bearing, você tem um câncer metastático avançado nos ovários.<br />
SRA. BEARING<br />
Continue.<br />
DR. KELEKIAN<br />
É professora, Sra. Bearing?<br />
SRA. BEARING<br />
Sim. Tal como você, Dr. Kelekian.<br />
DR. KELEKIAN<br />
Muito bem.<br />
O seu câncer, infelizmente, não foi detectado no primeiro, segundo e<br />
terceiro estágio.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 79
Agora é um adenocarcinoma insidioso.<br />
SRA. BEARING<br />
Insidioso?<br />
DR. KELEKIAN<br />
Insidioso significa indetectável em fases iniciais...<br />
SRA. BEARING<br />
Insidioso quer dizer traiçoeiro.<br />
DR. KELEKIAN<br />
Continuo?<br />
SRA. BEARING<br />
Por favor.<br />
(00:00:35 – 00:01:12)<br />
No texto dramático, a representação desta cena difere<br />
substancialmente: o Dr. Kelekian explica os procedimentos hospitalares para<br />
Vivian, enquanto esta faz reflexões sobre as palavras proferidas pelo médico,<br />
tentando entender o que elas significam:<br />
KELEKIAN<br />
[...] Então vejamos. A senhora é portadora<br />
de um tumor que, infelizmente não foi<br />
detectado nos estágios um, dois e três.<br />
Veja bem, trata-se de um adenocarcinoma<br />
que se espalhou a partir de um foco<br />
primário nos anexos.<br />
VIVIAN<br />
“insidioso”?<br />
[...]<br />
KELEKIAN<br />
Devo continuar?<br />
VIVIAN<br />
Certamente, por favor.<br />
KELEKIAN<br />
VIVIAN<br />
Ótimo. No caso de um carcinoma<br />
epitelial, a modalidade de tratamento<br />
mais eficaz é a aplicação de um<br />
agente quimioterápico.<br />
Nós estamos desenvolvendo uma<br />
combinação experimental de<br />
drogas, projetadas para o foco<br />
primário, localizado no ovário [...]<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Insidioso. Hummm... maneira curiosa<br />
de escolher as palavras.<br />
Câncer. Cancelamento.<br />
“No câncer, a natureza desnuda muda<br />
o seu curso.”<br />
Não...não é isso.<br />
80
Estou indo muito rápido?<br />
Ótimo.<br />
A senhora ficará internada para<br />
tratamento em cada ciclo. Depois<br />
das aplicações quimioterápicas,<br />
durante três dias, será submetida<br />
aos exames e mensurações<br />
necessários para o monitoramento<br />
das suas funções renais. No <strong>final</strong><br />
dos oito primeiros ciclos, passará<br />
por mais uma bateria de testes.<br />
O antineoplásico afetará<br />
inevitavelmente algumas células<br />
saudáveis, incluindo, por exemplo,<br />
aquelas situadas ao longo do<br />
sistema gastrintestinal, dos lábios<br />
até o ânus e os folículos capilares.<br />
Nós contamos, naturalmente,<br />
com a sua determinação para<br />
enfrentar alguns dos efeitos<br />
colaterias mais perniciosos.<br />
(EDSON, 2000, p. 18-20)<br />
(Para Kelekian.) Não.<br />
Tenho de ler alguma coisa sobre câncer.<br />
Tenho que arranjar uns livros, artigos...<br />
organizar uma bibliografia.<br />
Quem está fazendo uma pesquisa sobre<br />
o câncer?<br />
...me concentrar<br />
Antineoplásico. Anti: contra. Neo: novo.<br />
Plásico...plasi...do grego plasis, ação de dar<br />
forma, moderlar.<br />
Contra uma nova forma.<br />
Folículos capilares.<br />
Minha determinação.<br />
“Perniciosos”, isso não me parece...<br />
A mente humana está em constante atividade, por isso Vivian<br />
associa as palavras do seu médico com o conhecimento e a percepção de<br />
mundo que ela já tem armazenados na memória. Ela examina o discurso<br />
do Dr. Kelekian, com rigor científico, como se estivesse analisando um<br />
texto literário.<br />
Essa estratégia de representação do pensamento de Vivian,<br />
procurando entender o significado dos termos técnicos proferidos pelo<br />
médico, é uma invenção de Margaret Edson, ou seja, uma adaptação das<br />
técnicas do fluxo da consciência para o teatro. Esse recurso cênico de<br />
representação simultânea das falas do médico e das reações de Vivian ao<br />
ouvir o diagnóstico é eliminado na adaptação fílmica, pois a linguagem<br />
cinematográfica permite mostrar, por meio da expressão facial, a<br />
perplexidade da personagem frente ao significado das palavras (Fig. 3).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 81
Fig. 3 – 00:01:41<br />
Ao fim da consulta, após explicar todos os procedimentos à Vivian,<br />
o médico a alerta dizendo que ela precisa ser muito forte e determinada.<br />
Vivian, sem saber ainda todo o sofrimento pelo qual passará, afirma que<br />
sempre enfrentou problemas com tenacidade e coragem.<br />
Em seguida, há um fade-out 7 e a música que acompanha essa<br />
sequência é a mesma do início da narrativa fílmica, assinalando um momento<br />
de revelação para o receptor. É apenas nesse momento que o espectador,<br />
através da fala de Vivian, percebe que ao que havia assistido era uma cena<br />
em flashback (Fig. 4):<br />
VIVIAN<br />
Devia ter feito mais perguntas. Porque eu sabia que isso seria um teste.<br />
(00:04:11 – 00:04:16)<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Fig. 4 – 00:04:15<br />
82
Essa fala é o primeiro marcador que nos alerta sobre dupla<br />
temporalidade da narrativa fílmica. As ações que se reportam ao tratamento<br />
ao qual Vivian se submete no hospital são representadas através da<br />
linearidade, entrecortadas pelas constantes revisitações de tempos e lugares<br />
sedimentadas na memória pela narradora-protagonista. A estrutura temporal<br />
da narrativa assume aqui o tempo revertido 8 , que<br />
justifica-se através de razões psicológicas, pois “ao invés de<br />
desenrolar a ação fazendo com que o herói intervenha como um<br />
de seus elementos, é mais adequado concentrar nele o drama,<br />
consistindo a maior parte do filme na materialização de sua<br />
lembrança. Assim, ao atingir o paroxismo do seu drama, o herói<br />
revive as circunstâncias tumultuosas que o levaram a uma situação<br />
de desespero e solidão. (MARTIN, 2007, p. 227)<br />
Na adaptação fílmica, Vivian narra sua condição olhando fixamente<br />
para a câmera, como se estivesse conversando com o espectador (Fig. 4).<br />
Aqui o enquadramento da câmera é um grande aliado no processo de<br />
criação, objetivando apagar “a distância e o tempo que separam personagem<br />
e espectador-interlocutor” (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 109).<br />
No segundo flashback do filme, ao lembrar ter sido aluna da grande<br />
professora E. M. Ashford, especialista em John Donne, Vivian rememora<br />
a crítica feita por sua professora sobre a pontuação usada inadequadamente<br />
no poema “Morte não sejas orgulhosa”.<br />
Nesta cena, há uma fusão de espaços – quarto hospitalar e sala da<br />
professora Ashford – e percebe-se que Vivian revive esta cena com tanta<br />
intensidade que chega a sentir a presença da professora Ashford no quarto<br />
do hospital. Segundo Martin (2007, p. 208), o cinema tem o privilégio de<br />
ser “uma arte do tempo que goza igualmente de um domínio do espaço”. A<br />
dominação que Nichols exerce sobre o tempo, e a vigorosa representação<br />
que torna sensível a duração, cria “um espaço vivo e intimamente integrado<br />
ao tempo, a ponto de torná-lo um continuum espaço-duração absolutamente<br />
específico” (Figs. 5-8).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 83
Fig. 5 – 00:07:09:01<br />
Fig. 7 – 00:07:39:00<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Fig. 6 – 00:09:31:22<br />
Fig. 8 – 00:08:35:10<br />
84
Este é um momento muito importante, pois representa uma reviravolta<br />
na vida de Vivian, tanto é que ela parece se lembrar com detalhes do<br />
diálogo travado com a professora:<br />
PROFESSORA E. M. ASHFORD<br />
Oh, sim.<br />
O seu trabalho sobre o soneto religioso VI é um melodrama com uma<br />
aparência acadêmica da qual não é merecedora. Refaça-o. Comece pelo texto,<br />
Sra. Bearing, e não pelo sentimento.<br />
[...]<br />
Trata-se de poesia metafísica e não do romance moderno. As regras de<br />
leitura que se aplicam a outros textos, aqui são ineficazes. O esforço deve ser<br />
total para que os resultados sejam significativos.<br />
Acha que a pontuação do último verso é apenas um detalhe insignificante?<br />
[...]<br />
BEARING<br />
[...] Entendo. Um conceito metafísico, sagacidade. Vou voltar à biblioteca<br />
e...<br />
PROFESSORA E. M. ASHFORD<br />
Não é sagacidade, é verdade. A questão não é o trabalho.<br />
BEARING<br />
Não?<br />
PROFESSORA E. M. ASHFORD<br />
Vivian, você é uma jovem inteligente. Utilize a sua inteligência. Não volte<br />
para a biblioteca, saia. Divirta-se com os seus amigos, sim?<br />
BEARING<br />
Fui para a rua. Estava um dia quente. Havia alunos rindo no jardim e<br />
falando de coisas insignificantes.<br />
A simples verdade humana. Modelos acadêmicos intransigentes estão<br />
ligados.<br />
Eu não conseguia... Voltei para a biblioteca.<br />
Bem... Muito bem. ‘’Contribuição significativa para o conhecimento.’’<br />
‘’Oito ciclos de quimioterapia.’’<br />
Me dê a dose total. A dose total, sempre.<br />
(00:06:29 – 00:10:51)<br />
Apesar de a professora Ashford criticar o trabalho feito por Vivian,<br />
percebe-se que esta demonstrou afeto ao dizer que o trabalho não era a<br />
coisa mais importante naquele momento. Vivian não reconhece o sinal dado<br />
pela professora de que mais importante seria viver a vida.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 85
Nesta cena, segundo Martin (2007), percebe-se a fusão 9 , sugerida<br />
por uma espécie de ligação entre dois planos de realidade, como se o<br />
passado invadisse pouco a pouco o presente da consciência, convertendose<br />
também em presente. A câmera aqui avança até se deter sobre o rosto<br />
da protagonista Vivian, em primeiro plano; logo a transição visual é<br />
sublinhada pela trilha sonora: enquanto Vivian rememora sua passagem<br />
pelo campus da faculdade até chegar à biblioteca, passam por ela jovens<br />
estudantes que riem e conversam sobre outros assuntos. Enquanto isso um<br />
tema musical sublime entra em contraste com o sentimento de tristeza<br />
sobreposto ao plano.<br />
Saindo do plano da memória, Vivian diz que por meio da dedicação<br />
exclusiva ela acreditava contribuir de modo significativo para o conhecimento.<br />
Nesse momento, ela começa a estabelecer o jogo de descobertas da sua<br />
condição de ser, pois segundo Rüdiger Dahlke (2000, p. 30), a doença<br />
começa a atuar no sentido de induzir Vivian a compreender seu próprio<br />
adoecimento e realizar a reinterpretação de seus valores, levando a<br />
personagem a crescer internamente, pois o modelo de vida “racionalizado”<br />
por Vivian vinha prejudicando suas relações humanas.<br />
Outra cena que merece destaque por apresentar a demonstração<br />
do funcionamento da memória é o momento em que, logo após ser<br />
examinada pelo Dr. Kelekian e por seus assistentes, Vivian revela que teve a<br />
preocupação em buscar no dicionário o significado de cada um dos termos<br />
médicos usados por eles. Essa ação desencadeia outra lembrança em sua<br />
memória. Ela se lembra de um episódio de quando era criança que explica<br />
seu atual fascínio pelas palavras. Essa incursão memorialística a transporta a<br />
um passado remoto, e ela afirma lembrar, com precisão, do momento em<br />
que descobriu que iria dedicar sua vida às palavras. Segundo as considerações<br />
teóricas de Maurice Halbwachs (2006, p. 30), essa lembrança deve ser um<br />
produto da memória coletiva, pois muitas das nossas lembranças da infância<br />
são episódios e situações lembrados por outros. Possivelmente, de tanto o<br />
pai contar essa história para ela, ela acaba se convencendo de que de fato se<br />
lembra desse episódio e ainda acaba inventando que naquele momento ela<br />
sabia que iria dedicar sua vida às palavras.<br />
Enquanto, no texto-fonte, há uma justaposição dos dois papéis<br />
desempenhados por Vivian, o de narradora e protagonista, como já foi<br />
mencionado anteriormente, no filme, há uma sobreposição dos tempos<br />
passado e presente quando personagens do passado invadem o presente, e<br />
vice-versa, e tempos diferentes se fundem em cena. O texto teatral revela<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
86
que a descoberta se deu no aniversário de cinco anos, mas não especifica o<br />
local em que Vivian e seu pai estão conversando; no filme, o cenário da<br />
rememoração parece ser uma biblioteca ou sala de leitura da casa em que<br />
Vivian morava, e mostra uma garotinha daquela idade lendo um livro de<br />
histórias infantis ao lado de seu pai (Fig. 9). Segue a transcrição do diálogo<br />
entre pai e filha:<br />
VIVIAN<br />
Gosto mais desse.<br />
SR. BEARING<br />
Leia outro.<br />
VIVIAN<br />
Acho que vou ler... “A História dos Coelhinhos Saltitantes”. Tem uns<br />
coelhinhos desenhados na capa. “A História dos Coelhinhos Saltitantes”,<br />
por Beatrix Potter.<br />
“Dizem... que... o... efeito provocado por comer... muita alface... é...’’ Que<br />
palavra é esta?<br />
SR. BEARING<br />
Fale por partes.<br />
VIVIAN<br />
‘’So-por-í-fico.’’<br />
O que significa?<br />
(00:33:45 – 00:34:53)<br />
Novamente, aqui, a referência ao significado das palavras<br />
desencadeia o plano da memória. Segundo Martin (2007, p. 235), “a<br />
montagem (da cena) se baseia na transição ao passado pelo enunciado das<br />
causas dos fatos presentes”. Nesse flashback, “as configurações do espaço<br />
não se delineiam como pano de fundo, mas sim como pontos de significação<br />
e conteúdo, porque o espaço é interiorizado pela personagem, em cuja<br />
mente misturam-se as emoções do presente e as reminiscências do passado”<br />
(CAMATI; LEVISKI; ROCHA, 2007, p. 75). A fusão de ambientes, assim<br />
como na cena anterior, é efetivada pela memória da narradora-protagonista<br />
(Fig. 10). Percebe-se que a emoção dessa vivência do passado remoto,<br />
progressivamente, se funde com o presente. Provavelmente, foi esse o<br />
momento em que compreendeu que seu fascínio pelas palavras começou<br />
na infância.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 87
SR. BEARING<br />
Soporífico? Que dá sono.<br />
– Dá vontade de dormir.<br />
VIVIAN<br />
Que dá sono.<br />
[..]<br />
SR. BEARING<br />
Muito bem. Excelente. Continua.<br />
VIVIAN<br />
“Dizem que o efeito provocado por comer muita alface é soporífico.’’ Os<br />
coelhos do desenho estão dormindo. Estão dormindo como você disse,<br />
por causa do soporífico. A ilustração confirmou o significado da palavra,<br />
tal como ele explicara.<br />
SR. BEARING<br />
Muito bem. Excelente. Continua.<br />
VIVIAN<br />
No momento, me pareceu magia. Então... imaginem o efeito que as<br />
palavras de John Donne tiveram em mim: raciocínio, concatenação.<br />
Coruscação. Tergiversão.<br />
Os termos médicos são menos evocativos. Quero saber o que dizem os<br />
médicos quando me examinam. A minha única defesa é a aquisição de<br />
vocabulário.<br />
(00:34:53 – 00:36:44)<br />
No filme, a expressão do olhar, após a descoberta realizada revela<br />
o estado de excitação da criança. Segundo Williams, fatos que marcaram<br />
muito o passado fazem com que as pessoas idealizem o ocorrido:<br />
A cena é evocada pela memória e é, portanto, não-realista. A memória<br />
toma muitas liberdades poéticas. Ela omite alguns detalhes, outros são<br />
exagerados, de acordo com o valor emocional dos elementos em que ela<br />
toca, uma vez que a memória está, predominantemente, localizada no<br />
coração. (WILLIAMS, 1964, p. 25)<br />
Depois de reviver esse momento-chave de sua vida, gradualmente<br />
Vivian volta a se dar conta que está no hospital. O espectador, que tem<br />
algum conhecimento sobre os meandros da memória, irá compreender<br />
que não foi naquele momento, no passado longínquo, que ela se deu conta<br />
de que o incentivo de seu pai foi determinante na escolha de sua carreira.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
88
Foi no atual momento de rememoração dessas lembranças que ela constatou<br />
a importância daquele episódio no qual seu pai lhe conferiu atenção. Esse<br />
mecanismo de lembranças é comentado por Ecléa Bosi (2003), em sua<br />
obra Memória e sociedade, quando diz que a memória admite “a relação do<br />
corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo<br />
‘atual’ das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das<br />
águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também<br />
empurra, ‘desloca’ estas últimas, ocupando o espaço todo na consciência”<br />
(p. 46- 47).<br />
Na cena apresentada, vemos que Vivian se recorda do passado –<br />
um passado que pode ser inteiramente desconhecido por parte do<br />
espectador, mas que está vivo na memória dela – os acontecimentos não<br />
são sequenciais, mas ligam-se à cena presente mediante uma transição. Essa<br />
técnica da produção dessas transições graduais de uma imagem para outra<br />
e do retorno à imagem inicial abre naturalmente amplas perspectivas no<br />
cenário da adaptação.<br />
A representação do fluxo da consciência de Vivian nas cenas<br />
permite que seja criado um tempo psicológico, contrastado com a realidade<br />
do tempo cronológico. A emoção antiga dos tempos da infância é<br />
rememorada tão intensamente que por um momento sente-se transportada<br />
ao seu corpo de menina, associando os coelhinhos da gravura que estavam<br />
dormindo com o efeito soporífero da alface. Durante essa cena, as imagens<br />
da protagonista adulta e criança são intercaladas (Figs. 9 e 10), assim como<br />
a imagem do pai se intercala com o ambiente do escritório e do hospital<br />
(Fig. 11).<br />
Fig. 9 – 00:35:56:60<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 89
Fig. 11 – 00:34:28:50<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Fig. 10 – 00:34:00:00<br />
Na cena seguinte, a história infantil do coelhinho fujão pode ser<br />
associada à história da narradora-protagonista e à trajetória de John Donne,<br />
pois ambos procuram esconder-se para fugir da tomada de consciência de<br />
seu último destino. A professora Ashford aparece no hospital para visitar<br />
sua ex-aluna. A narradora-protagonista mostra uma expressão de surpresa,<br />
a<strong>final</strong> aquela era a única pessoa que a visita durante todo o seu tratamento.<br />
Vivian, revelando toda sua fragilidade, recebe o carinho de Ashford, que se<br />
deita na cama ao lado da paciente, e propõe-se a recitar um dos poemas de<br />
John Donne. Vivian recusa-se a ouvir poemas metafísicos, pois o que mais<br />
deseja, naquele momento, é a simplicidade, proteção e companhia, coisas<br />
que faltaram a ela ao longo da vida.<br />
90
Da mesma forma que o pai havia lhe dado atenção em relação à<br />
descoberta das palavras quando ela tinha cinco anos de idade, a professora,<br />
agora amorosa, lhe dispensa alguns minutos de seu tempo, lendo em voz<br />
alta uma história sobre “coelhinhos” de um livro que havia comprado para<br />
seu neto que estava fazendo cinco anos. Estes momentos com a professora<br />
são de grande importância para Vivian. Percebe-se que a idade e o tema<br />
das histórias são significativos, uma vez que “trata-se da alegoria da alma,<br />
pois onde quer que o homem se esconda, Deus o achará” (EDSON, 2000,<br />
p. 107). Por um instante, a protagonista volta a ser aquela criança<br />
deslumbrada com as palavras, revivendo aquele momento mágico que<br />
marcou sua vida. É assim que ela se despede da vida.<br />
Mike Nichols potencializa essa cena através da introdução de uma<br />
melodia que desperta as sensações de calma e leveza, fazendo inclusive a<br />
narradora-protagonista chorar enquanto ouve a história. Essa técnica da<br />
produção gradual de uma imagem para outra e do retorno à imagem<br />
inicial exige muita precisão e é mais difícil do que uma mudança brusca de<br />
cena, pois, segundo Martin (2007), é necessário combinar dois conjuntos<br />
de imagens exatamente correspondentes, para que o efeito realmente<br />
simbolize o aparecimento e o desaparecimento de uma reminiscência.<br />
Outras incursões memorialísticas potencializadas quando<br />
transpostas ao filme são aquelas em que Vivian, de maneira irônica, nos<br />
convida a observar como ela, enquanto professora titular, recusava-se a<br />
qualquer toque de simpatia humana. Vivian recorda-se do modo como<br />
tratou um aluno em uma de suas aulas ao perceber que este não sabia a<br />
resposta sobre o poema que havia apresentado aos alunos.<br />
VIVIAN<br />
(Falando para o público) Por acaso, eu disse: (Carinhosamente) “Você<br />
tem dezenove anos. É tão jovem. Você é incapaz de diferenciar<br />
um soneto de um sanduíche de filé”?<br />
(Pausa) De maneira nenhuma.<br />
(Dura com o Estudante 1) Venha preparado para a aula ou dispense<br />
de uma vez este curso, o departamento e esta universidade. Não<br />
pense nem por um instante sequer que eu tolerarei qualquer coisa.<br />
(Para o público, defensiva) Eu estava lhe dando uma lição.<br />
(EDSON, 2000, p. 82)<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 91
No texto fílmico, a cena inicia-se com um close-up, em primeiro<br />
plano, focalizando, logo em seguida, um dos alunos de Vivian, para o qual<br />
ela fez uma pergunta sobre o soneto. A seguir, a imagem, com o<br />
deslocamento da câmera em direção à Vivian em movimento, faz o<br />
espectador perceber que houve, novamente, uma inversão de diálogos,<br />
pois primeiramente a professora dá a “lição no aluno” e somente depois,<br />
voltando ao presente, reflete sobre a imaturidade do estudante em questão.<br />
Nessa sequencia, vários diálogos são suprimidos na adaptação do texto<br />
cênico para o filme. Marcel Martin chama essa supressão de fatos de elipse<br />
objetiva, e explica que ela “pode ser exigida para uma sustentação dramática<br />
do enredo, evitando assim uma ruptura da unidade de tom omitindo um<br />
incidente que não se adapta ao clima geral da cena” (MARTIN, 2007, p. 78).<br />
Nesse caso, o debate, presente no texto cênico, entre Vivian e o<br />
Estudante 2 sobre o exemplo de sagacidade de espírito presente em John<br />
Donne e a ironização de alguns estudantes sobre a escansão silábica dos<br />
poemas ficam omitidos, de modo a evitar a quebra de sentimento e o<br />
clima de silêncio. Após essa omissão, a adaptação fílmica apresenta como<br />
continuidade da cena, a explicação do poema pela professora universitária.<br />
É possível visualizar o rosto de Jason estudando, o que reafirma a condição<br />
dele como ex-aluno e conhecido de Vivian (Fig. 12). Ao fim da aula, um<br />
estudante pede um adiamento de prazo para a entrega de um trabalho<br />
devido à morte de sua avó, pedido que é sumariamente recusado por<br />
Vivian (Figs. 13 e 14).<br />
Nesta cena, percebe-se que, após Vivian voltar de seu estado<br />
memorialístico, sente remorso por ter tratado o estudante daquela forma,<br />
pois agora entende como feriu seus sentimentos. O posicionamento da<br />
câmera em plongée 1 contribui para reforçar a ideia de reavaliação de sua<br />
condição existencial (Fig. 15).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Fig. 12 – 00:55:20:60<br />
92
Fig. 14 – 00:56:53:00<br />
Fig. 13 – 00:56:20:10<br />
Fig. 15 – 00:57:14:03<br />
Percebe-se que, tanto no texto teatral como na adaptação fílmica,<br />
Vivian revela para o público apenas os fatos e impressões que são importantes<br />
para ela. As personagens do passado são uma projeção da sua mente e não<br />
importa o que elas realmente são, mas o que elas representaram na sua vida.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 93
Considerações finais<br />
O texto dramático de Margaret Edson, aparentemente revestido<br />
de simplicidade, oferece uma visão profunda da natureza e do<br />
comportamento humano, uma vez que trata do descaso dos médicos para<br />
com seus pacientes, da importância dos nossos atos diários, assim como o<br />
valor das relações humanas. Através da combinação de estratégias como a<br />
ironia, a metáfora, a metalinguagem e técnicas memorialísticas diversas, a<br />
dramaturga, a partir das experiências vivenciadas em um hospital onde<br />
realizou trabalho voluntário, constrói um texto que revitaliza a dramaturgia<br />
memorialística ao criar técnicas diferentes daquelas desenvolvidas por seus<br />
precursores.<br />
Como já foi mencionado, a literatura e o cinema possuem<br />
especificidades, códigos e convenções diferentes. Mike Nichols, ao trabalhar<br />
na transposição midiática do texto de Margaret Edson para a tela,<br />
apropriou-se de recursos funcionais, técnicos e operacionais, tais como<br />
flashbacks, fusão de espaços e tempos, sons, posicionamentos da câmera,<br />
entre outros, que apenas o cinema tem ao seu dispor e que são capazes de<br />
aproximar o público da problemática abordada na narrativa.<br />
O livre transitar, entre presente e passado, é representado no texto<br />
pela memória voluntária e a irrupção quase obsessiva da memória<br />
involuntária da narradora-protagonista que são desencadeadas por situações<br />
ou palavras. No filme, a constante alternância de temporalidades é realizada<br />
pela justaposição de tomadas e fusão de imagens que mostram a personagem<br />
no passado e no presente: de um lado temos o plano da realidade em<br />
tempo cronológico, enquanto que de outro temos o plano da memória em<br />
tempo psicológico.<br />
Ambas as modalidades artísticas, a literária e a fílmica são<br />
palimpsestos na medida em que estabelecem entre si um constante e continuo<br />
diálogo, completando e ressignificando-se a cada momento.<br />
Notas<br />
1 Entrevista disponível em . Acesso em: 20 jan. 2011.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
94
2 [wit] s. Juízo m.; razão, habilidade f.; perspicácia f.; engenho m.; imaginação f.; graça<br />
f.; humor m.=s sabedoria f.; habilidade f. para pensar rápida e astutamente (Michaelis:<br />
pequeno dicionário inglês-português, português-inglês. 44ª ed. São Paulo:<br />
Melhoramentos, 2006).<br />
3 Ver ensaio, intitulado Proust (2003), no qual Samuel Beckett problematiza as<br />
experimentações a respeito dos mecanismos da memória (voluntária e involuntária)<br />
sintetizados por Marcel Proust, na obra Em busca do tempo perdido.<br />
4 O close-up, ou primeiro plano/plano pormenor é o plano que acentua um detalhe da<br />
cena.<br />
5 As imagens foram gentilmente cedidas pela HBO Latin America Group.<br />
6 As falas das personagens, que serão assinaladas em termos de hora, minuto e<br />
segundo, foram transcritas em forma de roteiro a partir do filme em DVD pelas<br />
autoras deste artigo.<br />
7 Fade-out – representa uma sensível interrupção da narrativa e é acompanhado de um<br />
corte na trilha sonora, que servem para marcar uma importante mudança de ação<br />
secundária, ou uma passagem de tempo, ou ainda uma mudança de lugar (MARTIN,<br />
2007, p. 87).<br />
8 Baseado no retorno ao passado ou flashback (MARTIN, 2007, p. 226).<br />
9 Termo utilizado por Martin, para representar a combinação de dois planos (MARTIN,<br />
2007, p. 230).<br />
10 Plongée (filmagem de cima para baixo) – “tende, com efeito, apequenar o indivíduo,<br />
a esmagá-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele um objeto<br />
preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade” (MARTIN, 2007,<br />
p. 41).<br />
REFERÊNCIAS<br />
BECKETT, S. Proust. Trad. Arthur Nestrovski. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.<br />
BERGSON, H. Matéria e memória. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes,<br />
1999.<br />
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
1994.<br />
CAMATI, A. S. The Concepts of Time, Memory and Identity in Beckett’s Essay on<br />
Proust. ABEI Journal: The Brazilian Journal of Irish Studies. São Paulo, nº 7, 2005, p.<br />
33-40.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 95
CAMATI, A.; LEVISKI, C. E.; ROCHA, P. F. Lavoura arcaica: O cinema da crueldade<br />
de Luiz Fernando Carvalho. In: REICHMANN, B. T. Relendo Lavoura arcaica. Curitiba,<br />
2007, p. 57-86.<br />
DAHLKE, R. A doença como linguagem da alma: os sintomas como oportunidades de<br />
desenvolvimento. Trad. Dante Pignatari. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2000.<br />
EDSON, M. Wit: Jornada de um poema. Trad. José Almino. São Paulo: Peixoto<br />
Neto, 2000.<br />
HALBWACHS, M. A memória coletiva. Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro,<br />
2006.<br />
MARTIN, M. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense,<br />
2007.<br />
VANOYE, F.; GOLIOT-LÉTÉ, A. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus,<br />
1994.<br />
WILLIAMS, T. À margem da vida. Rio de Janeiro: Edições Block, 1964.<br />
UMA LIÇÃO de vida. Direção de Mike Nichols. EUA: HBO Films; Flashstar, 2001.<br />
1 DVD (99 min); son.<br />
Simone Sicora POLETO<br />
Mestre em Teoria Literária pela <strong>Uniandrade</strong>. Professora de Língua Portuguesa na<br />
FACEL, SESI e SEED.<br />
Anna Stegh CAMATI<br />
Pós-Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutora em Língua<br />
Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de São Paulo<br />
(USP). Professora Titular do Mestrado em Teoria Literária da <strong>Uniandrade</strong>. Editora da<br />
revista <strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Artigo recebido em 30 de setembro de 2011.<br />
Aceito em 07 de novembro de 2011.<br />
Voltar para o Sumário<br />
96
Abstract: In Prospero’s Books (1991), a<br />
cinematographic re-creation of<br />
Shakespeare’s play The Tempest (1611),<br />
Greenaway eschews the literary bias of<br />
many directors in the process of<br />
adaptation of literary texts, creating a<br />
mosaic of images, voices and texts,<br />
replete with allusions, references and recreations<br />
in a dialogue with the Baroque<br />
and Early Modern pictorial universe. To<br />
show the superimpositions of this<br />
mosaic, enriched with elements of other<br />
semioses, media and hypermedia, in the<br />
transposition of the Shakespearean play,<br />
is our challenge in this paper.<br />
PROSPERO’S BOOKS:<br />
PETER GREENAWAY’S INTERSEMIOTIC<br />
TRANSCREATION OF SHAKESPEARE<br />
Célia Guimarães Helene<br />
celia.helene@uol.com.br<br />
Maria Luiza Atik<br />
vatik@uol.com.br<br />
Resumo: Em Prospero’s Books (1991),<br />
recriação cinematográfica da peça A<br />
tempestade (1611), de William Shakespeare,<br />
Greenaway distancia-se do viés utilizado<br />
por muitos diretores no processo de<br />
adaptação de textos literários, criando um<br />
mosaico poético de imagens, vozes e<br />
textos, repleto de alusões, referências e<br />
recriações em diálogo com o universo<br />
pictórico barroco e renascentista.<br />
Demonstrar as imbricações desse<br />
mosaico, enriquecido com elementos de<br />
outras semioses, mídias ou hipermídias,<br />
na transposição da peça shakesperiana, é<br />
o desafio ao qual nos lançamos neste<br />
trabalho.<br />
Key words: Dramaturgy. Cinema. Transcodification. Arts. Media.<br />
Palavras-chave: Dramaturgia. Cinema. Transcodificação. Artes. Mídias.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 97
Peter Greenaway belongs to a group of filmmakers who do not<br />
adhere to the conventional forms of cinematographic discourse. To his<br />
education as a painter at the Whalthamstour School of Arts, he added other<br />
accomplishments such as the production of videos for television, the staging<br />
of operas and plays and the organization of exhibitions and installations,<br />
which, fused in his cinematography, reveal the director’s hybrid vocation.<br />
Ivana Bentes points out this vocation when she affirms that<br />
the cinema appears in Greenaway as a virtualization of all the arts, especially<br />
painting, a kind of post-cinema from which the filmmaker/paintervideoartist-installer<br />
looks backwards to a 2500-year-old heritage of images,<br />
painted, drawn, photographed, decorated in sgraffito or decalcomania,<br />
finding in the cinema and in the new technologies not a rupture with what<br />
has been done but a continuity. This structuring and encyclopedic eye<br />
surpasses any narrative desire. (2004, p. 17) 1<br />
In Motivações pictóricas e multimediais na obra de Peter Greenaway (Pictorial<br />
and Multimedial Motivations in Peter Greenaway’s Work), Rosa Cohen, discussing<br />
the filmmaker’s aesthetic universe, corroborates Bentes’s words, showing<br />
that it “has been characterized by the dynamics of the images escaping<br />
delimitations, willing to cross boundaries […], to transpose elements across<br />
films”(2008, p. 24), 2 weaving a network of references among films, stages,<br />
art galleries and museums, by means of different languages, transmitted in<br />
different ways.<br />
Those who watch the film Prospero’s Books (1991), a cinematographic<br />
re-creation of William Shakespeare’s play The Tempest (1611), without having<br />
a previous knowledge of English director Peter Greenaway’s other works,<br />
will find it difficult to immediately apprehend in all its complexity this<br />
product that blends art and technology.<br />
Eschewing the literary bias of several directors in the process of<br />
adaptation of classic literary texts, Peter Greenaway does not reconstitute<br />
imagetically the narrative thread of the Shakespearean matrix, but, instead,<br />
transfigures it, creating a mosaic of images, voices and texts. Our aim in this<br />
brief study is, thus, to demonstrate the imbrications of this mosaic, enriched<br />
with elements from other semioses, media or hypermedia, in their dialogue<br />
with the Shakespearean text.<br />
The Tempest, the last play written by Shakespeare before he accepted<br />
the collaboration of John Fletcher, was performed for James I’s court at<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
98
Whitehall Palace and, probably because of its great success at the time,<br />
opens the First Folio as the first of the Shakespearean comedies. Published<br />
after the writer’s death, in 1623, due to the efforts of the actors John<br />
Heminges and Henry Condell, the First Folio is the first collection of<br />
Shakespeare’s dramatic work. Of a total of thirty-six texts in the Folio, eighteen<br />
had not been published before.<br />
The plot of The Tempest consists of a story of vengeance, love and<br />
conspiracies that accompany the fate of Prospero, the Duke of Milan.<br />
Dedicating a great deal of his time to books, especially those of magic, he<br />
withdraws from the state affairs and has his dukedom usurped by his own<br />
brother, Antonio, who, in his search for power, begins to persecute Prospero,<br />
aiming at destroying him. With the help of Gonzalo, a counselor to the king<br />
of Naples, Prospero flees to a Mediterranean island with his daughter<br />
Miranda. Gonzalo supplies the vessel with provisions, clothes and books.<br />
On the enchanted island, at Prospero’s service, are the slave Caliban, a<br />
creature half-human, half-monster, and Ariel, a servile spirit, who can be<br />
metamorphosed into water, air and fire. Prospero’s main objective is to<br />
take revenge on his traitors. Twelve years later, Alonso, king of Naples, and<br />
his retinue travel for the wedding of Alonso’s daughter Claribel. On their<br />
voyage back from Tunis, a great tempest causes Alonso’s vessel to go adrift,<br />
forcing everybody on board to abandon the boat. The shipwrecked survive<br />
and find shelter on Prospero’s island. They do not know, however, that the<br />
storm, caused by magic with Ariel’s aid, and the voyagers’ dispersal were<br />
part of Prospero’s vengeance plan. Even so, instead of subjugating his<br />
enemies, Prospero forgives them, thereby regaining his dukedom.<br />
Peter Greenaway’s film, Prospero’s Books, is viewed by many critics<br />
as an eccentric or extravagant adaptation of Shakespeare’s The Tempest.<br />
Although Greenaway’s aesthetic artifact approaches Shakespeare’s classic<br />
text with due respect, the images that appear on the screen do not have the<br />
function of reproducing faithfully the succession of events in the dramatic<br />
text. In other words, the filmmaker visually transforms certain passages of<br />
the source text, superimposing images to actor John Gielgud’s reading of<br />
the play’s original version. Thus, the five acts of Shakespeare’s text make<br />
themselves literally audible.<br />
While Greenaway’s earlier works consisted in a reflection on an<br />
artistic form, Prospero’s Books is the first film where he brings someone else’s<br />
argument to the cinema screen. The very choice of the film’s title points at<br />
the procedure adopted by Greenaway in his rereading of the Shakespearean<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 99
text, that is, the play is recreated starting from Prospero’s “books.” All of<br />
them have an “infinite or monstrous character” and, assembled, “make up<br />
a kind of fantastic library,” an “abridged version of the ‘Library of Babel’”<br />
(MACIEL, 2002). 3 Thus, it is from the description of the twenty-four<br />
fantastic books in the protagonist’s library that the cinematographic discourse<br />
is constructed, visually transfiguring passages from the source text. The artifice<br />
of cinematic animation and manipulation of images enables the books to<br />
acquire life on Prospero’s enchanted island.<br />
According to the director, the film, in its organizational process,<br />
was divided into Past, Present and Future: the Past corresponds to Prospero´s<br />
long explanation of his history, the Present deals with Prospero´s various<br />
real-time plotting and the Future concerns those plans Prospero makes to<br />
guarantee the success of his dynastic ambitions for his daughter<br />
(GREENAWAY, 1991, p. 13). The narrated events which occurred in the<br />
first part reappear in the two subsequent ones, deliberately resulting in an<br />
amalgam of memory and fantasy, by means of the superimposition of<br />
images.<br />
To the visual reproductions derived from Shakespeare’s text, images<br />
extracted from the canonical repertoire of western art history are added,<br />
composing a dynamic whole that encompasses and expands the various<br />
elements amalgamated in the source text: spirits, phantoms, witches, monsters,<br />
magical symbols and elements pertaining to the medieval universe, which<br />
are interwoven with the humanistic values and Prospero’s early modern<br />
mentality and Gonzalo’s utopian dream of the creation of an ideal<br />
community.<br />
The books in this fantastic library function as instrument of both<br />
Prospero’s isolation and his interaction with the outer world, in his double<br />
role of creator and creature. In Herbert Klein’s words,<br />
Prospero’s Books is an ideal portrayal of cognitive and pragmatic change. The<br />
crucial precondition for this process is Prospero’s dual role as writer and<br />
protagonist. Whilst the writer can only move within the world of the<br />
imagination, the protagonist can change the world by his imagination.<br />
Writing […] is the “conditio sine qua non” for the existence of this world<br />
and the audience is constantly reminded of the fact that the production of<br />
a literary work is taking place by the image of a pen or by its scratching noise<br />
on paper. The activities of writing and imagining are located in Prospero’s<br />
writing cell (Frame 1): a transportable box located within the library, his<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
100
etreat where he can shut out the external world. In his writing cell there are<br />
also his books, which form his most important <strong>link</strong> to the external world<br />
and are also his instrument to control it. […] Although Prospero rules over<br />
the island inhabitants with the aid of his books, he still withdraws to his<br />
writing cell and continues to write more books which fill up his library.<br />
Thus the books have a dual role as the instrument of isolation and of<br />
interaction, of total unrelatedness and at the same time, of connec tedness.<br />
(KLEIN, 1996, our emphasis)<br />
Frame 1 – Prospero’s writing cell.<br />
The twenty-four books shown throughout the filmic projection<br />
are described by Peter Greenaway in his work Prospero’s Books: a film of<br />
Shakespeare’s The Tempest, a composite of different textual modalities. Besides<br />
the filmscript of Prospero’s Books, it presents an essay by the director on the<br />
film’s creation process, fictional micro-narratives built around themes<br />
extracted from The Tempest and reproductions of Shakespeare’s own text.<br />
As for the structure of the filmic organization, differently from<br />
what happens in most cinematographic adaptations, it is not a transposition<br />
of the chronology of the source text, that is, act after act, scene after scene.<br />
The sequence of acts and scenes follows the successive and chronological<br />
presentation of the twenty-four books that form Prospero’s library.<br />
Greenaway modeled the books making use of the technology of<br />
high definition television, which, according to Jorge Gorostiza (1995, p.<br />
177-178), made it possible,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 101
[…] to superimpose three images at the same time or the texts which are<br />
being said about each one of the characters, in such a way that metaphor<br />
and reality can be seen at the same time. The director relates this narrative<br />
procedure, which he had already employed in Death in the Seine, to cubism,<br />
in which several different aspects of the same object are represented at the<br />
same time. 4<br />
The books, introduced by means of superimposed images and by<br />
a narrator’s voice-over, during the narrative pauses, reveal themselves as an<br />
extensive compilation of Renaissance knowledge, which ranges from<br />
astrology to geometry, architecture, cosmography, and other sciences.<br />
The fact that the books that Shakespeare’s Prospero studies are<br />
mostly of magic and that it is from them that he derives his power has<br />
probably inspired Greenaway to conceive of the books in his Prospero’s<br />
library not as ordinary ones but as living, magical (and at times even<br />
phantasmagoric) books in which colors change, liquids ooze and glow, sounds<br />
and voices are heard, three-dimensional objects can be seen to move and<br />
spring out of the pages, plants, animals and mythological beings surround<br />
the words, showing that books reflect all that exists “outside a library context”<br />
(GREENAWAY, 1991, p. 107). For instance, as it is opened, the pages of<br />
the book called A Primer of Small Stars “twinkle with travelling planets,<br />
flashing meteors and spinning comets. The black skies pulsate with red<br />
numbers. New constellations are repeatedly joined together by fast-moving,<br />
dotted lines” (GREENAWAY, 1991, p. 17; 20).<br />
They are books with which the reader can interact. As Prospero<br />
turns the pages of Vesalius’ Anatomy of Birth, his “fingers appear to become<br />
covered in blood … the organs of the body become three-dimensional<br />
[…] then red ink floods the paper. There is the sound of babies crying”<br />
(GREENAWAY, 1991, p. 70). In The Alphabetical Inventory of the Dead, “a<br />
voice chants their names with a sonorous but rapid whispering monotone.<br />
[…] We hear the doleful scratching of a hundred pens and the deep tolling<br />
of bells” (GREENAWAY, 1991, p. 76). When you open the smaller books,<br />
inside The Book of Languages, many languages are released: “… words and<br />
sentences and paragraphs gather like black tadpoles or flocking<br />
starlings…accompanied by a great noise of babbling voices”<br />
(GREENAWAY, 1991, p. 96).<br />
Three books are related to the natural sciences, among which we<br />
can mention The Book of the Earth, which is described as follows: “its pages<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
102
are impregnated with the minerals, acids, alkalis, elements, gums, poisons,<br />
balms and aphrodisiacs of the earth. […]. With this book Prospero savoured<br />
the geology of the island” (GREENAWAY, 1991, p. 20-21). In it, also,<br />
when Prospero runs his thumbnail diagonally across the page, “[…] the<br />
page – and the book – ignite with a bright pink flame” (GREENAWAY,<br />
1991, p. 80).<br />
A Harsh Book of Geometry is number six. It is a book bound in<br />
leather, with engraved golden numbers, which, “when opened, complex<br />
three-dimensional geometrical diagrams rise up out of the pages like models<br />
in a pop up book. [...] Angles are measured by needle-thin metal pendulums<br />
that swing freely, activated by magnets concealed in the thick paper”<br />
(GREENAWAY, 1991, p. 20). Plans and diagrams also spring out of the<br />
pages of the Book of Architecture and Other Music: “There are definitive models<br />
of buildings constantly shaded by moving cloud-shadow. Noontime piazzas<br />
fill and empty with noisy crowds, […] and music is played in the halls and<br />
towers. With this book, Prospero rebuilt the island into a palace of libraries<br />
that recapitulate all the architectural ideas of the Renaissance”<br />
(GREENAWAY, 1991, p. 21). Renaissance architecture is present in the film<br />
settings, in the decorative elements, in the columns that delimit the scenic<br />
space or, in other words, in the labyrinthine space of the island-palace, as<br />
one can observe in the following scene (Frame 2).<br />
Frame 2 – Prospero and Miranda.<br />
The mirror images, recurrent in the director’s works, expand the<br />
network of references. In Prospero’s Books, Greenaway makes use of mirrors<br />
to reveal what goes on behind the camera, breaking, in this way, with the<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 103
cinematographic illusion and with the narrative schemes of traditional cinema.<br />
Exposing the artifices of filmic language, he highlights, to the spectator’s<br />
eyes, the simulacrum implicit in every representation.<br />
The mirror images are recaptured in The Book of Mirrors and establish<br />
an enticing interplay between the real and the imaginary, the stable and the<br />
transient, the reader and his double, as can be observed in the following<br />
fragment:<br />
Bound in a gold cloth and very heavy, this book has some eighty shining<br />
mirrored pages. Some mirrors simply reflect the reader, some reflect the<br />
reader as he was three minutes previously, some reflect the reader as he will<br />
be in a year’s time, as he would be if he were a child, a woman, a monster,<br />
an idea, a text or an angel. […] One mirror simply reflects another mirror<br />
across a page. There are ten mirrors whose purpose Prospero has yet to<br />
define. (GREENAWAY, 1991, p. 17)<br />
The image of the first mirror the spectator sees appears in the<br />
same water where Prospero is seen in the opening sequence of the film.<br />
The reflected image is not only that of Prospero but also of the shipwrecks<br />
imagined by him. In this game of reflections, a drop of water, shot in close<br />
up and slow motion, falls into a dark swimming-pool. Other drops fall,<br />
successively, alternating with the first credits, shown on a black background.<br />
Then, the first book appears, the Book of Water, replete with “drawings of<br />
every conceivable watery association – seas, tempests, rain, snow, clouds,<br />
lakes, waterfalls, streams, canals, water-mills, shipwrecks, floods and tears.<br />
As the pages are turned, the watery elements are often animated. There are<br />
rippling waves and slanting storms. Rivers and cataracts flow and bubble”<br />
(GREENAWAY, 1991, p. 17).<br />
Concomitantly with the images of the Book of Water, the associations<br />
established with water, with Prospero’s Roman bath, with Ariel’s interminable<br />
urine jet (shown in the three phases in which this character is presented – as<br />
a child, an adolescent and a youth) and with the toy boat facing a storm<br />
refer us back to the opening scene of the Shakespearean text, in which one<br />
hears “a tempestuous noise of thunder and lightning” (Act I, Scene i) and<br />
the shipmaster and the boatswain enter, urging the mariners to “Bestir. Bestir”<br />
(Act I, Scene i, l.4) because shipwreck seems imminent (Frames 3 and 4).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
104
Frame 3 – Prospero and Ariel as a child. Frame 4 – Prospero / “boatswain”.<br />
The verbal images suggested in Shakespeare’s play, sometimes<br />
evoke, in Greenaway’s intersemiotic translation, the storm and Prospero’s<br />
desire for revenge, and sometimes symbolize Prospero’s forgiveness, as the<br />
good sovereign of the enchanted island: “The trajectory ranges from the<br />
overwhelming images, the vortex of superimpositions on the screen, to<br />
milder images, which approach the conventional narrativity of the cinema”<br />
(VIEIRA; DINIZ, 2000, p.78). 5<br />
It was owing to the 24 books that Prospero was able to reign<br />
absolutely over the magical island during twelve years. The last book, Thirty-<br />
Six Plays, is given to Prospero by Ariel and in described thus:<br />
This is a thick, printed volume of plays dated 1623. All thirty-six plays are<br />
there save one – the first. Nineteen pages are left blank for its inclusion. It is<br />
called The Tempest. The folio collection is modestly bound in dull green<br />
linen with cardboard covers and the author’s initials are embossed in gold<br />
on the cover – W.S. (GREENAWAY, 1991, p. 25)<br />
In the film’s <strong>final</strong> scene there is the following sequence: first, we<br />
read on the screen the dedication: “To the reader.” Immediately following,<br />
the initials WS appear on the leather cover and, on a sheet of paper, the<br />
word “boatswain.” We hear a voice that utters the word “boatswain.” A<br />
voice-off refers us back to the initial speech. “And this is the thirty-sixth<br />
play, The Tempest.” Stripped of his duke’s robes, Prospero solemnly throws<br />
the volume into the sea. Caliban retrieves the book. And Prospero frees<br />
Ariel.<br />
All the books are closed and thrown, one by one, into the water.<br />
The acid explosions and the fireworks which visually compose the scene,<br />
represent the destruction and dispersion of knowledge. “The whole sequence<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 105
has been accompanied by Prospero’s magic music – orchestrating the<br />
destruction of the books” (Greenaway, 1991, p.162). However, two books<br />
are recovered, the collection of Shakespeare’s plays and a thin book, which<br />
was being written by Prospero.<br />
Shakespeare’s Prospero abjures magic and says that he will “break<br />
[his] staff ” and “bury it certain fathoms in the earth” (Act V, Scene i, ll. 54-<br />
55) and that he will “drown [his] book”, “deeper than did ever plummet<br />
sound” (Act V, Scene i, ll. 56-57). In Harold Bloom’s words, Prospero’s<br />
gesture means throwing into the sea “the work of a lifetime,” since the<br />
book was “the fruit of hard work, involving reading, reflection and practice,<br />
in what concerns the control of spirits” (2000, p. 811). 6<br />
Greenaway’s Prospero, in his turn, figures as a composite of his<br />
readings. His body is shown, in various scenes, covered with words, thanks<br />
to the visual effect of superimposition of screens (Frame 5). The written<br />
word symbolizes his superior erudition as well as an instrument of power<br />
which he possesses over his enemies and over the savage and illiterate slave<br />
Caliban.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Frame 5 – Prospero covered with words.<br />
The materialization of the written word can be apprehended since<br />
the first scene. The director presents the credits in two parts. In the opening<br />
scene, when Prospero puts on his magic cloak, the names of the actors and<br />
technical staff are superimposed on the image. A close-up of the cloak’s<br />
embroidered cloth, in shades of blue, serves as a transition to the insertion<br />
of the remaining credits. Next, in a slow side travelling, the camera follows<br />
Prospero’s steps, when he traverses an arched gallery, accompanied by his<br />
106
subjects. The film’s title appears first, followed by the <strong>final</strong> credits. A new<br />
close-up of the cloak’s cloth indicates the end of the credits. But, this time,<br />
the color blue changes gradually and the cloak acquires a reddish hue. At the<br />
end of the film, only the words The End are seen, in the middle of the<br />
image, and the reference to the author’s copyright appears in small characters,<br />
in the lower part of the screen (BOUCHY, 2008).<br />
The blue cloak and the red cloak serve, in their turn, to highlight<br />
the protagonist’s dual role: Prospero, the playwright, who acts as the author<br />
of the play staged throughout the film, and Prospero, the actor, who, like<br />
the other characters, performs under the dramatist’s pen and command.<br />
Prospero the writer (or dramatist) establishes a relationship between the<br />
image built by Prospero and Shakespeare’s creation process. Resorting to<br />
the manuscript word, materialized on the screen, and its relation to the very<br />
writing process, the filmmaker shows in close-up objects such as the ink,<br />
the quill and the inkpot (VIEIRA; DINIZ, 2000, p. 77) 7<br />
With ink, quill and inkpot, Greenaway pays homage to the copyists<br />
of the Middle Ages, while visually evoking the process of cultural<br />
transmission from past to present. The graphic richness of calligraphy is<br />
explored by the filmmaker in the very process of the construction of images<br />
(Frame 6).<br />
Frame 6 – The materialization of the written word.<br />
According to Karine Bouchy (2008), “Greenaway had a precise<br />
idea of the role he wanted to give to the manuscript letter in movement. It<br />
was for this reason that he needed a collaborator.” 8 Greenaway’s meeting<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 107
with Brody Neuenschwand, thus, allowed for the exploration of new filmic<br />
possibilities. The filmmaker wished to inscribe, in the diegetic space, a<br />
handwriting similar to Shakespeare’s. Neuenschwand’s training in art history<br />
and his studies of manuscripts at the university made it possible for him to<br />
analyze and reproduce Shakespeare’s hand. However, as Karine Bouchy<br />
(2008) points out,<br />
the only documents on which the calligrapher could be based are limited to<br />
some signatures, which is far from being sufficient to establish a style and a<br />
whole alphabet. But, for Peter Greenaway, the cinema is not a matter of<br />
reproduction, of realism or of authenticity. Shakespeare’s writing was only<br />
a starting point to determine a graphic rhythm. It was even more important<br />
that this writing be legible since Greenaway’s main intention was to explore<br />
the interactions among the movement of the strokes, the read word, the<br />
same word pronounced in voice-off and the image. 9<br />
So, in the form of an allegorical tempest of words, images and<br />
voices, Greenaway proposes an interminable game of puzzles, a labyrinth<br />
of signs in movement which leads the spectator to the discovery or<br />
identification of allusions, quotations, dislocations, words beneath words,<br />
one text beneath another text, images beneath other images. In this labyrinth,<br />
however, nothing is fortuitous, all the elements have their function.<br />
A careful examination of Prospero’s Books as a whole invites us to<br />
another relational reading. Beneath a profusion of freezes, of frames within<br />
frames, of a multiplicity of representational forms, there is a recreation of<br />
the Baroque pictorial universe in dialogue with inscriptions of Renaissance<br />
images. Denise D. Guimarães (2008, p. 65) points out that, although the<br />
sculptural and architectonic elements, such as “the setting with arches, columns<br />
and domes,” refer us back “to Renaissance constructions”, “the film explores<br />
this environment in semi-obscurity, re-creating the Baroque chiaroscuro.” 10 As<br />
Guimarães (2008, p. 58) suggests, this is<br />
[…] a typical procedure of the post-modern aesthetic propositions, in their<br />
predilection for eclectic, disjunctive and parodic forms. The <strong>link</strong> between the<br />
two periods becomes irrefutable in the presence of the ambivalence cherished<br />
by the filmmaker, both in the technical rupture with contemporary ways of<br />
cinema making and in the deliberately intertextual composition, which brings<br />
a new dimension to filmic semiosis, imposing a constant dialogue with the<br />
other arts. 11<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
108
In Greenaway’s characterization of Prospero, one can also observe<br />
the play between these two aesthetic languages. Prospero’s face shows similar<br />
traits to those of Georges de La Tour’s “Saint Jerome”, resorting to the<br />
technique of Baroque chiaroscuro, while his garments resemble those of a<br />
Venetian doge, in this case, those of “Doge Loredan” by Renaissance painter<br />
Giovanni Bellini (Figures 1, 2, and 3).<br />
Fig. 1- Greenaway’s<br />
Prospero.<br />
Fig. 2 – Georges de La<br />
Tour´s Saint Jerome<br />
(1630-1635).<br />
Fig. 3 – Giovanni Bellini´s<br />
Doge Leonardo Loredan<br />
(1501).<br />
In the compositional process of scenes and settings, paintings by<br />
Botticelli, Rubens and Raphael Sanzio are transcribed by the filmmaker,<br />
with striking similarity, among other visual appropriations or quotations. In<br />
Florence Besson’s words, “the tempest in Prospero’s library is blown by the<br />
Boticelli winds (from The Birth of Venus), the library itself pays homage to<br />
Michelangelo’s Laurenziana Library, and Prospero’s writing room comes<br />
from St Jerome’s by Da Messina” (BESSON, 2006). In their turn, the<br />
Baroque canvases, ornamented with figures, flowers and fruit, “like those<br />
of Rubens in the Louvre on Maria de Medicis’ life,” function, according to<br />
Gorostiza (1995, p. 167), “to furnish the interior.” 12<br />
Other imagetic influences contributed to build the visual universe<br />
of Prospero’s Books. Greenaway admits to having been inspired “by the magic”<br />
of filmmaker Georges Méliès as well as by George Lucas’s film Star Wars<br />
and “above all by the images created by Cocteau for Beauty and the Beast and<br />
The Testament of Orpheus” (Gorostiza, 1995, p. 167). 13<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 109
Greenaway’s film is an artistic object difficult to classify within the<br />
limits of a particular genre. It is the fruit of experimental work, which<br />
proposes the valorization of cinematographic adaptation as a “hybrid<br />
construction”. In Prospero’s books, such construction makes possible the<br />
dissolution of the boundaries among the languages of different sign systems<br />
and supports, establishing a unique network of intertextual and intersemiotic<br />
relations. Thus, it is in this borderline locus that theater, cinema, visual arts,<br />
electronic technology, computer graphics and digital media converge to recreate,<br />
together, the drama of the Shakespearean Prospero.<br />
Notes<br />
1 Our translation from Portuguese: “o cinema surge em Greenaway como virtualização<br />
de todas as artes e especialmente da pintura, uma espécie de pós-cinema de onde o<br />
cineastapintor-videoartista-instalador olha para trás, para uma herança de 2.500 anos<br />
de imagens, pintadas, desenhadas, fotografadas, esgrafiadas e decalcadas, encontrando<br />
no cinema e nas novas tecnologias não uma ruptura com o que foi feito, mas uma<br />
linha de continuidade. Esse olho estruturador e enciclopédico se sobrepõe a qualquer<br />
desejo narrativo” (BENTES, 2004, p. 17).<br />
2 Our translation from Portuguese: “tem se caracterizado pela dinâmica das imagens<br />
a escapar de delimitações, dispostas a avançar limites [...], migrar elementos entre<br />
filmes” (COHEN, 2008, p. 24).<br />
3 Our translation from Portuguese: “caráter infinito ou monstruoso” […] compõem<br />
uma espécie de biblioteca fantástica” [...] “versão resumida da ‘Biblioteca de Babel’<br />
“(MACIEL, 2002).<br />
4 Our translation from Spanish: “superponer tres imágenes al mismo tiempo o los<br />
textos que se están diciendo sobre cada uno de los personajes, de forma que la<br />
metáfora y la realidad se puedan ver al mismo tiempo. El director relaciona este<br />
procedimiento narrativo, que ya había empleado en Death in the Seine, con el cubismo<br />
donde se representan al mismo tiempo varios aspectos diferentes de un mismo<br />
objeto” (GOROSTIZA, 1995, p. 177-178).<br />
5 Our translation from Portuguese: “O percurso vai desde as imagens avassaladoras,<br />
do turbilhão de sobreposições na tela, até outras imagens mais amenas, que se<br />
aproximam da narratividade convencional do cinema” (VIEIRA; DINIZ, 2000, p.<br />
78).<br />
6 Our translation from Portuguese: “a obra de toda a vida” […] fruto de trabalho<br />
árduo, envolvendo leitura, reflexão e prática, no que concerne ao controle de espíritos”<br />
(BLOOM, 2000, p. 811).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
110
7 Our translation from Portuguese: “Próspero-escritor (ou dramaturgo) estabelece<br />
uma relação entre a imagem construída por Próspero e o processo de criação de<br />
Shakespeare. Utilizando-se da palavra manuscrita materializada na tela e de sua relação<br />
como o próprio processo de escrita, o cineasta mostra em ‘close-up’ objetos como a<br />
tinta, a pena e o tinteiro (VIEIRA; DINIZ, 2000, p. 77).<br />
8 Our translation from French: “Greenaway avait une idée precise du rôle qu’il voulait<br />
donner à la lettre manuscrite en movement. C’est pourquoi il lui fallait un collaborateur”<br />
(BOUCHY, 2008).<br />
9 Our translation from French: “les seuls documents sur lesquels le calligraphe pouvait<br />
se baser se limitent à quelques signatures, ce qui est loin d’être suffisant pour établir<br />
un style et un alphabet entier. Mais pour Peter Greenaway, le cinéma n’est pas affaire<br />
de reproduction, de réalisme ou d’authenticité. L’écriture de Shakespeare n’était qu’un<br />
point de départ pour determiner un rythme graphique. Il était plus important encore<br />
que cette écriture soit lisible, car l’intention première de Greenaway était d’explorer les<br />
interactions entre le movement du trace, le mot lu, le même mot prononcé en voixoff<br />
et l’image” (BOUCHY, 2008).<br />
10 Our translation from Portuguese: “o cenário com seus arcos, colunas e abóbadas”<br />
[...] “às construções da Renascença” [...] “o filme explora este ambiente na semiobscuridade,<br />
recriando o chiaroscuro barroco” (GUIMARÃES, 2008, p. 65).<br />
11 Our translation from Portuguese: “um procedimento típico das propostas estéticas<br />
pós-modernas, em sua predileção por formas ecléticas, disjuntivas e paródicas. A<br />
ligação entre as duas épocas torna-se irrefutável, diante da ambivalência cultivada pelo<br />
cineasta, tanto na ruptura técnica com os modos contemporâneos de fazer cinema,<br />
quanto na composição deliberadamente intertextual, que vai redimensionar a semiose<br />
fílmica, impondo-lhe um diálogo constante com as outras artes” (GUIMARÃES,<br />
2008, p. 58).<br />
12 Our translation from Spanish: “Como los del Louvre de Rubens sobre la vida de<br />
María de Medicis sirven para ambientar los interiores”(GOROSTIZA, 1995, p. 167).<br />
13 Our translation from Spanish: “en la magia” […] “sobre todo en las imágenes que<br />
ideó Cocteau para La bella y la bestia y El testamento de Orfeo” (GOROSTIZA, 1995, p.<br />
167).<br />
REFERENCES<br />
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GREENAWAY, Peter. Cinema is dead, long live cinema? Available at: www.sescsp.org.br/<br />
.../20080326_202040_Ensaio_PGreenaway_CadVB3_P. <strong>pdf</strong>. This is an abridged<br />
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in 2003, which was summarized by the author especially for Caderno Videobrasil, 03.<br />
______. Prospero’s Books: a film of Shakespeare’s The Tempest. London: Chatto &<br />
Windus, 1991.<br />
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112
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução de Fernando Mascarello.<br />
Campinas, São Paulo: Papirus, 2003.<br />
VIEIRA, Erika V. C.; DINIZ, Thaís F. N. “A Última Tempestade, uma tradução<br />
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Frame 1 – Prospero’s writing cell. Available at: http://www.floornature.com/projectslearning/project-wunderkammern-and-the-birth-of-the-museum-as-we-know-it-<br />
4176/. Access on: 26/09/2011.<br />
Frame 2 – Prospero and Miranda. Available at: http://www.nineravens.com/archives/<br />
living-one-night/. Access on: 26/09/2011.<br />
Frame 3 – Prospero and Ariel as a child. Available at: http://novelactivist.com/blog/<br />
peter-greenaway/imgp0512-4/. Access on: 26/09/2011.<br />
Frame 4 – Prospero / “boatswain”. Available at: http://www.themoviedb.org/<br />
movie/5048. Access on: 26/09/2011.<br />
Frame 5 – Prospero covered with words. Available at: http://mubi.com/films/<br />
prosperos-books. Access on: 26/09/2011.<br />
Frame 6 – The materialization of the written word. Available at: http://<br />
www.brodyneuenschwander.com/Prospero.php. Access on: 26/09/2011.<br />
ILLUSTRATIONS<br />
Figure 1 – Greenaway’s Prospero. Available at: https://www.editorsguild.com/<br />
Magazine.cfm?ArticleID=937. Access on: 26/09/2011.<br />
Figure 2 – Georges de La Tour´s Saint Jerome (1630-1635). Available at: http://<br />
www.wga.hu/art/l/la_tour/georges/1/04jerome.jpg. Access on: 26/09/2011.<br />
Figure 3 – Giovanni Bellini´s Doge Leonardo Loredan (1501). Available at: http://<br />
www.oilpaintingshop.com/bellini/. Access on: 26/09/2011.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 113
Célia Guimarães HELENE<br />
Mestre em Língua Inglesa e Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de<br />
São Paulo<br />
Professora do Curso de Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie.<br />
Maria Luiza Guarnieri ATIK<br />
Doutora em Letras Modernas: Língua e Literatura Francesas pela Universidade de São<br />
Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras e do Curso de Letras da<br />
Universidade Presbiteriana Mackenzie.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Artigo recebido em 15 de setembro de 2011.<br />
Aceito em 17 de outubro de 2011.<br />
Voltar para o Sumário<br />
114
ROMEO AND JULIET:<br />
A TRAGEDY RETOLD IN THE SHANTY TOWNS OF RIO<br />
Abstract: In 2007, the film Maré, nossa<br />
história de amor was launched in Brazil<br />
under Lucia Murat’s direction. The trailer,<br />
the teasers in the Internet, and the ads in<br />
the newspapers referred to it, at that time,<br />
as “Another Romeo. Another Juliet.<br />
Another love story”, and also as “Lucia<br />
Murat’s Romeo and Juliet”. Starting from<br />
those ads, this article brings adaptation<br />
as one of the many possible dialogues<br />
with a previous idea, understanding the<br />
translation process as the result of a rewriting<br />
performed at a different place of<br />
speech. Lucia Murat’s rereading shifts the<br />
Shakespearean lovers to the shanty towns<br />
of Maré, in Rio de Janeiro, in the 21 st<br />
century, involving the drama in the<br />
mantle of criminality, traffic dealing, and<br />
urban violence so frequently found in<br />
many Brazilian contemporary<br />
metropolitan areas. The director and<br />
screenplay writer, in her condition of<br />
translator, makes her choices, based on<br />
the fact that the act of interpretation is<br />
endless. By doing so, she supplements<br />
one of the most popular plays by<br />
William Shakespeare.<br />
Elizabeth Ramos<br />
beth_ramos49@hotmail.com<br />
Resumo: Em 2007, o filme Maré, nossa<br />
história de amor, com direção de Lucia<br />
Murat, estreou no Brasil. O trailer, os<br />
teasers na Internet, e os anúncios nos<br />
jornais referiam-se, na época, a “Um<br />
outro Romeu. Uma outra Julieta. Uma<br />
outra história de amor”, ou ainda ao<br />
“Romeu e Julieta de Lucia Murat”. A<br />
partir desses anúncios, o presente artigo<br />
discute a adaptação como apenas uma das<br />
muitas possibilidades de diálogo com<br />
uma ideia anterior, compreendendo o<br />
processo de tradução como resultado de<br />
uma interpretação conduzida a partir de<br />
outro lugar de fala. A releitura de Lucia<br />
Murat desloca os amantes<br />
shakespearianos para a favela de Maré, no<br />
Rio de Janeiro do século XXI,<br />
envolvendo o drama no manto da<br />
criminalidade, do tráfico de drogas e da<br />
violência urbana tão frequente nas regiões<br />
metropolitanas do Brasil contemporâneo.<br />
A diretora e roteirista, na condição de<br />
tradutora, faz suas escolhas baseada no<br />
fato de que o ato de interpretação é<br />
infindável. Assim procedendo,<br />
suplementa uma das mais populares<br />
peças de William Shakespeare.<br />
Key words: William Shakespeare. Lucia Murat. Romeo and Juliet. Intersemiotic<br />
translation.<br />
Palavras-chave: William Shakespeare. Lucia Murat. Romeu e Julieta. Tradução<br />
intersemiótica.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 115
In 2007, the film Maré, nossa história de amor (Maré, our Love Story)<br />
was launched in Brazil having Lucia Murat as the director. The trailer, the<br />
teasers in the Internet, and the ads in the newspapers referred to it, at that<br />
time, as “Another Romeo. Another Juliet. Another love story”, and also as<br />
“Lucia Murat’s Romeo and Juliet”. Such calls made it clear that among the<br />
several possible interpretations of a work of art, the audience would come<br />
across one particular rewriting.<br />
Lucia Murat, a former journalist, a political activist during the<br />
Brazilian dictatorship period in the 70s, and a classical ballet graduate, shifts<br />
the Shakespearean lovers to the shanty towns of Maré, in Rio de Janeiro, in<br />
the 21 st century, involving the drama in the mantle of crime, drug traffic,<br />
and urban violence so frequently found in many metropolitan areas around<br />
the world these days. The conflict between the Montecchios and the Capulets<br />
is re-written in a war between two factions which dominate the drug traffic<br />
in the community of Maré. Analídia, the “other Juliet”, is the daughter of<br />
the traffic leader who is in jail, and Jonathan, her “Romeo”, is the brother of the<br />
opposing faction leader. The two lovers are separated by an environment of<br />
extreme violence, and find in the community dance group a refuge for their<br />
dreams, love, art and the possibility of a decent life, away from criminality.<br />
The film turns the Elizabethan play into a musical, depicting an environment<br />
where dance practices are the only possibility for fascination and freedom,<br />
not only for the lovers, but for the youth of these fictionalized slums.<br />
Right at the beginning, along the seven long minutes of the film<br />
opening, Vinicius D’Black, the actor who interprets the protagonist Jonathan,<br />
sings a hip-hop hit – Favela – which means ‘shanty towns’ in Portuguese. All<br />
along, the camera moves through the alleys of Maré, where the dance group<br />
moves rhythmically, in different settings. The song refers to icons of Brazilian<br />
music – Sinhô, Candeia, Noel, Cartola – and the lyrics sung by the chorus<br />
set the scene: “Go and tell her that Rio de Janeiro is all a set of shanty<br />
towns”. “Go and tell her that the song I sing comes from the shanty towns”.<br />
The breaking from the Shakespearean canon and from the<br />
intellectual elite who ultimately claims ownership over the play is clearly<br />
announced. Sacralization of the myth of authorship is bound not only to<br />
the English source. It is shared with recognized composers in the reception<br />
culture. Lucia Murat appropriates the previous text, shifts it and re-signifies<br />
it, creating new characters inserted in another setting, time, languages,<br />
permeated by other values, decoupling the source-work of its traditional<br />
value.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
116
In one of the takes that follows, still in the opening of the film, the<br />
camera goes through a wall covered by graffiti, where one reads: “Art is<br />
what the world will turn itself into. Not what the world is now.” Here,<br />
interpretation and creativity get intertwined in the expression ‘turn into’,<br />
leading the audience back to the re-signifying of the 16th century play, and<br />
to the future possibility of social transformation through the arts. In fact,<br />
despite the shocking scenes of violence, the film gradually builds up in the<br />
spectator the hope for the triumph of an energetic dancing youth over the<br />
rule of crime. Art is clearly the antidote for determinism, and the hope for<br />
better days is often also built through dialogues and statements. When<br />
Analídia, the new Juliet Capulet, refuses to visit her father in jail, she says:<br />
“I’ve got no obligation to visit an outlaw in jail”. She also refuses marrying<br />
her father’s second man in traffic dealings – the metamorphosed Paris – by<br />
saying: “I don’t want to marry a criminal. I am not marrying a criminal” –<br />
statements which relate to Juliet’s break as concerns paternal authority in<br />
Shakespeare’s 16th century play Romeo and Juliet.<br />
The prohibition of a woman to act on the Elizabethan stages has<br />
to do with Analídia, whose integrity, determination, and female dignity are<br />
expressed by her vigorous dance movements on the narrow alleys of Maré,<br />
where young men pass by casually holding rifles and pistols. Here, the<br />
Renaissance paternal authority is shifted to the law imposed by the Red and<br />
the Blue factions of drug trafficking which fight for the control of the<br />
actions in the area, defining what is acceptable and what is prohibited.<br />
Romeo Montecchio is shifted to Jonathan, the community MC,<br />
whose dream is to have his CD released. Divided between his two older<br />
brothers – Paulo, a peaceful and idealist worker, who enjoys singing samba<br />
songs with his friends in his spare time, and Dudu, the adopted brother,<br />
leader of the Blue faction that also fights for the drug traffic control in the<br />
slums – Jonathan lives the dilemma of accepting or not the help of his<br />
transgressing brother who promises to financially support his career with<br />
money earned from drug dealing.<br />
Thus, the migration of signs and canonical resources, reconfigured<br />
into the mass culture in Maré, nossa história de amor, brings the themes of<br />
Romeo and Juliet closer to the spectator, supplementing and revitalizing the<br />
canonical work of art, by presenting to the audience a universe which is<br />
much closer to their own issues, allowing the public to seek “in the walls of<br />
their confinement […] their mental images of the world” (SANTIAGO,<br />
2004, p.125). Those, who have traditionally been excluded from the live<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 117
performances carried out in fancy play houses, can find themselves as<br />
cosmopolitan beings in contact with re-readings of canonical artistic<br />
expressions, historically limited to the rich and well educated cosmopolitan<br />
individuals. Therefore, artistic productions can and must be enjoyed by a<br />
greater public, and may be “delivered to the contemporary consumer in<br />
his/her contemporaneity” (SANTIAGO, 2004, p. 116).<br />
The Shakespearean Romeo and Juliet contains creative figures of speech,<br />
such as puns and metaphors which subtly and humorously build images of<br />
sexual content, often suppressed in the translations produced in the 18 th<br />
and 19 th centuries for being considered obscene, and meant for the less<br />
privileged classes who lack refined taste. For instance, immediately after the<br />
Prologue, in Act I, Scene i, the play reader finds:<br />
Sampson: […] I will show myself a tyrant: when I have fought with the<br />
men I will be civil with the maids, I will have cut off their heads.<br />
Gregory: The heads of the maids?<br />
Sampson: Ay, the heads of the maids, or their maidenheads; take it in what<br />
sense thou wilt.<br />
Gregory: They must take it in sense that feel it.<br />
Sampson: Me they shall feel while I am able to stand, and ’tis known I am<br />
a pretty piece of flesh. (SHAKESPEARE, 2006a, p. 83)<br />
Still in Act I, Scene i, one finds another example of humorous<br />
wordplay with sexual connotation coming from Lady Capulet with reference<br />
to her husband’s sexual performance:<br />
Capulet: What noise is this? Give me my long sword, ho!<br />
Lady Capulet: A crutch, a crutch! Why call you for a sword?<br />
Enter old Montague and Lady Montague.<br />
Capulet: My sword, I say. Old Montague is come,<br />
And flourishes his blade in spite of me. (SHAKESPEARE, 2006a, p. 86)<br />
In Scene iii, Act I, samples of obscene language can be found in the<br />
conversation the nurse has with Lady Capulet and Juliet.<br />
Nurse: [...] She could have run and waddled all about;<br />
For even the day before, she broke her brow,<br />
And then my husband – God be with his soul,<br />
A was a merry man – took up the child,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
118
‘Yea’, quoth he, ‘dost thou fall upon thy face?<br />
Thou wilt fall backward when thou hast mor wit,<br />
Wilt thou not, Jule?’ And by my holydame,<br />
The pretty wretch left crying, and said ‘Ay’. […]<br />
Lady Capulet: Enough of this, I pray thee, hold thy peace.<br />
Nurse: Yes, madam, yet I cannot choose but laugh<br />
To think it should leave crying, and say ‘Ay’;<br />
And yet I warrant it had upon its brow<br />
A bump as big as a young cockerel’s stone,<br />
A perilous knock, and it cried bitterly.<br />
‘Yea’, quoth my husband, ‘fall’st upon thy face?<br />
Thou wilt fall bakward when thou comest to age,<br />
Wilt thou not, Jule?’ It stinted, and said ‘Ay’.<br />
Juliet: And stint thou too, I pray thee, Nurse, say I. (SHAKESPEARE,<br />
2006a, p. 102)<br />
The reader/spectator who is not familiar with Romeo and Juliet tends<br />
to be surprised with the use of such language, as much as Lucia Murat’s<br />
film will startle the audience with the use of a language filled with cursing.<br />
Obviously, the environment to which Shakespeare’s play has been shifted<br />
does not allow for subtleties and the obscene language reveals itself as quite<br />
blunt. It is worth mentioning that in lieu of the romantic language found in<br />
the lovers’ dialogues in the bard’s text, the film brings movements of dance<br />
often to the sound of Prokofiev.<br />
The change in perception generates a new approach to translated<br />
literary works, leading us to understand that if a work of art is part of a<br />
tradition, it is alive and open to transformation by means of different<br />
interpretations and different intertextual dialogues, which expand into<br />
multiple readings. In a paradoxical move, the translator undresses the work<br />
of art of its sacred mantle and popularizes it, even though the removal of<br />
such mantle results precisely from the recognition of the aura of sacralization.<br />
Respect and recognition motivate the translation. The work of art loses<br />
something when it is technically produced and reproduced, but it acquires,<br />
as a consequence, the infinite places and contexts of its reproduction. And,<br />
if it loses its cult value, it acquires another function, adopting a non-specialized<br />
social practice […] (SANTIAGO, 2004, p. 114).<br />
Maré, nossa história de amor keeps its theme ties with the play which<br />
originated it, bringing traces of such precedence, even though, simultaneously,<br />
erasing them. The shifting of the previous idea implies, necessarily, forgetting,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 119
even under the mantle of the debt. Here, I recall Roland Barthes’ S/Z,<br />
reminding us that it is precisely because we forget that we read.<br />
With her filmic re-reading, Murat not only confirms the plurality<br />
of meanings of cultural productions, but also endorses the non-existence<br />
of the so-called unique and crystallized meaning which some critics try to<br />
attach to canonical works of art. The film director affirms in an interview:<br />
“[...] I must admit that the technical rigor of classical dancing has always<br />
fascinated me. But life has also shown me that the same rigor can be found<br />
in the set of drum players of Mocidade Independente, in a Broadway<br />
show or in a good Swan Lake performance.” The film maker thus decouples<br />
the concepts of originality and quality of the work of art, and confirms<br />
that the demands from the critics and other patronage groups, who define<br />
what should be culturally accepted, are based on subservience and in the<br />
erasing of the translator’s point of view – when faced with the “purity”<br />
and the “truth” of the “unreachable” “original” text. Such expressions<br />
underline cultural inequality and, simultaneously, the subalternity of translation.<br />
The resistance to adaptations of canonical works reflect a remainder of the<br />
beliefs which held true in the 16th century, when the minimal interpretation<br />
unit was similarity, that is, the idea of an origin coupled to truth, ignoring<br />
that the beginning always results from a choice on the part of the interpreter<br />
in light of the unfinished feature of the act of interpretation, a feature<br />
which also led, the canonical William Shakespeare to adapt most of his<br />
plays. After all, his Romeo and Juliet has its roots in 3 rd century Greece, goes<br />
on to the Italian Renaissance, and gets to the English poet Arthur Brooke,<br />
who in his poem The Tragical History of Romeo and Juliet, aimed at alerting<br />
youth to the need for controlling their impulses, in order not to be<br />
overwhelmed by passion.<br />
I refer to Gilles Deleuze, in his The Logic of Sense, when he claims<br />
that the precedent work, in its condition of original, should not grant it a<br />
status of fundament. The feature of uniqueness of the source-text will also<br />
apply to the reproduced text, since each translation will build “its own”<br />
reproduction. The model defined by the source-text will never be copied,<br />
for translation or re-creation will be built at another place of reception and<br />
production. In its position of a false suitor, it will have to kill the model, so<br />
that it can survive and, because it turns out a criminal, it will never be covered<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
120
with the original’s aura of sacralization, intrinsic to the perennial model, the<br />
truth, the origin, and image of perfection. The translated work does not<br />
want the aura, it does not intend to be a faithful copy. Its value lies in being<br />
another work of art, re-created out of a process resulted from a critical<br />
plunge into the source-text, inserted in another milieu, and sometimes through<br />
another medium. In the case of her re-reading of Romeo and Juliet, Lucia<br />
Murat herself confirms that “any attempt to simply copy the rigor of the<br />
high brow culture would fatally result – more so for those who enjoy and<br />
are experts in dancing – in ridicule”. Thus, by removing from the previous<br />
text its aura of an unreachable work for the monolingual and excluded<br />
reader/spectator, translation takes away from the original its feature of<br />
supreme and sole truth, in order to allow those who get in contact with the<br />
new text to approach it with fresh looks. However, translation does that<br />
without fully breaking away from the text which came before. There will<br />
always be some kind of tie, to a lesser or greater extent, between the source<br />
and the translated text. In the case of interlingual translations of literary<br />
texts, for instance, the tie between the source-text and translation can be<br />
closer than in intersemiotic translations of literary texts into film.<br />
The task of the translator is thus performed on a palimpsest, that<br />
is, translation is re-written over the traces of a manuscript which has been<br />
washed and scraped. That does not imply though that a translated text will<br />
be less original and unique. The themes of violence and death are not only<br />
present in Maré, nossa história de amor. They also permeate the play Romeo and<br />
Juliet. Violence in Maré is apparently worse because it is part of our daily<br />
lives, constituting the subject matter of daily news on TV and in the<br />
newspapers. As one of the characters of the film puts it, after watching the<br />
Romeo and Juliet ballet danced to the sound of Prokofiev on a DVD: “In the<br />
past, killing was at the point of a sword. Today, it is at the point of a gun”.<br />
Once the long presentation of the film ends, and the audience has<br />
been acquainted with the re-signifying features of space and culture, the<br />
chorus of rappers announces the prologue of the Shakespearean translation:<br />
“Our love story begins in a funk dance […] eternal love born in the sparkle<br />
of an instant […] Trusting the immortality of the actor. Trusting the<br />
immortality of love.” The re-signified prologue inserts hope for an ever<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 121
living love story, in opposition to the Shakespearean prologue which<br />
announces death:<br />
Two households, both alike in dignity,<br />
In fair Verona, where we lay our scene,<br />
From ancient grudge break to new mutiny,<br />
Where civil blood makes civil hands unclean.<br />
From forth the fatal loins of these two foes<br />
A pair of star-cross’d lovers take their life,<br />
Whose misadventur’d piteous overthrows<br />
Doth with their death bury their parents’ strife.<br />
The fearful passage of their death-mark’d love<br />
And the continuance of their parents’ rage,<br />
Which, but their children’s end, naught could remove,<br />
Is now the two hours’ traffic of our stage;<br />
The which, if you with patient ears attend,<br />
What here shall miss, our toil shall strive to mend. (SHAKESPEARE,<br />
2006a, p. 81)<br />
The film spectator is then taken amidst an audience who dances to<br />
the sound of a pregnant funk singer, and comes across young men who<br />
also dance while holding in their hands different kinds of guns as if they<br />
were soda glasses. In this scenario, Jonathan, the DJ of the evening, spots<br />
Analídia on the dance floor. Fascinated, he goes down to dance with the<br />
girl. Indifferent to the eyes of the others and to the music, they turn round<br />
and round, plunged into each other’s eyes, in a profound state of fascination.<br />
The scene of passion on the screen is shown in suspension over the previous<br />
scene. Only silence and fascination involve the loving couple, who is suddenly<br />
drawn apart by armed members of both factions, in a mix of street dance,<br />
capoeira and martial art movements.<br />
The balcony where the two lovers meet after that first encounter<br />
on the dance floor is Analidia’s primitive terrace of an unfinished<br />
construction of a small house in the area. She breaks through the security<br />
control of the Red faction, and runs down to Jonathan. The chorus of<br />
rappers announces, then, that the two lovers “live in the limits between fear<br />
and the desire to love”, following William Shakespeare’s play, when the<br />
chorus enters at the end of Act I:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
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Now old desire doth in his death-bed lie,<br />
And young affection gapes to be his heir;<br />
That fair for which love groan’d for and would die,<br />
With tender Juliet match’d, is now not fair.<br />
Now Romeo is belov’d, and loves again,<br />
Alike bewitched by the charm of looks;<br />
But to his foe suppos’d he must complain,<br />
And she steal love’s sweet bait from fearful hooks.<br />
Being held a foe, he may not have access<br />
To breathe such vows as lovers use to swear;<br />
And she as much in love, her means much less<br />
To meet her new beloved anywhere.<br />
But passion lends them power, time means, to meet,<br />
Tempering extremities with extreme sweet. (SHAKESPEARE, 2006a, p. 122)<br />
By bringing rappers as a chorus, and forming a dance group made<br />
of several dance groups in Rio de Janeiro, thus working with the Brazilian<br />
ethnical and cultural diversity, the film re-configures William Shakespeare’s<br />
tragedy. Just as the English playwright brings to his play “plenty of<br />
information on Italy, Verona, social habits and many other details which are<br />
useful for the building up of the play” 1 (HELIODORA, 2006b, p. 124),<br />
Lucia Murat leads the spectator to visit the odd universe of the parallel<br />
power settled in the slums of Maré. As film director and screen play writer,<br />
she takes up her role of interpreter of one of the best known Shakespearean<br />
plays. In this sense, her intersemiotic translation of Romeo and Juliet can play a<br />
role of major importance, allowing for democratization and popularization<br />
of a Shakespearean text brought into contexts which are more familiar to<br />
the socially excluded spectator.<br />
In the filmic translation, the brand of exclusion is inscribed in the<br />
separation of both worlds: the organized urban legal universe versus the<br />
transgressive and entropic universe of the slums. The ruptures generate<br />
astonishment on both parts, making translation between discourses nearly<br />
impossible. Fernanda, the ballet instructor, who comes from the legal world,<br />
believes it is possible to reestablish peace and dignity by means of dancing.<br />
But she is not able to reason with Dudu, her “protector”, leader of the<br />
Blue faction, Jonathan’s brother. Fernanda’s involvement with the community<br />
is not seen with good eyes by her friend who’s also a ballet dancer, a typical<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 123
high-brow culture representative coming from the fancy neighborhoods<br />
of Rio. “You have always had marginal taste”, she tells Fernanda, who<br />
promptly responds: “Good marginal taste, by the way”. Once more, the<br />
filmic text breaks with the aesthetics of the hegemonic centers who define<br />
the quality of an art work.<br />
Analidia and Jonathan‘s wedding is performed by Fernanda in a<br />
warehouse, where Carnival decorations and wagons are stored. There they<br />
pledge mutual love, before the eyes of their dance instructor, who blesses<br />
them just like the Shakespearean Friar Lawrence. On a pile of silver shredded<br />
paper – in a clear allusion to the star-crossed lovers – the couple makes<br />
love to the sound of Prokofiev’s Romeo and Juliet. Art clearly takes over<br />
religion, for in the Shakespearean play Friar Lawrence’s words to the lovers,<br />
at the closing of Act II, are:<br />
Come, come with me, and we will make short work,<br />
For, by your leaves, you shall not stay alone<br />
Till holy church incorporate two in one. (SHAKESPEARE, 2006a, p. 158)<br />
In the film, the union of both lovers is translated by the pas-de-deux<br />
which they dance before the obliging eyes of the other members of the<br />
dance group and Fernanda. Their skills as dancers result in the possibility of<br />
a scholarship abroad which is promptly denied by Jonathan’s brother Dudu.<br />
The young man is forbidden to leave the limits of Maré. In an intertext<br />
with Hamlet, the chorus of rappers announces: “Love puts us in weird<br />
situations. To face or not to face them is the question”.<br />
In order to make possible the opportunity of personal development<br />
for the young dancers and lovers, allowed by the new horizon, Fernanda<br />
simulates Jonathan’s death. The idea is to have him escape in a coffin, but<br />
the young man in charge of alerting Analídia about the plan is intercepted<br />
by the opposite faction. The only information she gets from her friends is<br />
that Jonathan has been killed.<br />
She immediately dashes off to see her husband’s dead body, running<br />
desperately to the sound of Prokofiev’s Romeo and Juliet. As she crosses a<br />
shooting field between the two factions, she is killed. Meanwhile, Dudu, is<br />
told of his brother‘s death and is taken by anger and wrath. Not knowing<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
124
that his brother is alive in the coffin, Dudu shoots towards it. Also, to the<br />
sound of Prokofiev, the spectator sees then a thread of blood running<br />
through an invisible crack in the coffin.<br />
From there, the camera moves through the unorganized architectural<br />
compound of the shanty town, where we see a waving flag of a popular<br />
soccer team. In voice-over the spectator is told: “The Community of Maré<br />
Radio Station now closes its daily activities”. The image of a solitary rooster,<br />
who will probably announce brighter mornings, is also brought to the screen,<br />
associated to the voice-over.<br />
And so ends this story of another Romeo and another Juliet, or<br />
Lucia Murat‘s Romeo and Juliet. I have not attempted to build a critical study<br />
of the film. I have just argued that intersemiotic translation of canonical<br />
works of art, that is, “performances of mass media which remain excluded<br />
from the universities and museums, ‘uncapable’ of reading and looking at<br />
the high brow cultures because they ignore the history of knowledge and<br />
styles” (CANCLINI, 2008, p. 205) can help in the education of today’s socalled<br />
plain individual. After all, as Silviano Santiago reminds us, in a peripheral<br />
country such as Brazil, it will not be through the painful exercise of a mere<br />
teaching of basic reading and writing skills that the excluded illiterate<br />
individual will assimilate information and use it in the understanding of<br />
society and the world where he/she lives (SANTIAGO, 2004, p.129).<br />
Translation reaches the public through the cinema, television, comic<br />
strips, cartoons, books not as another model, but as a producer of instability<br />
which speaks for itself, is unfaithful, and does not submit itself to the ‘essence’<br />
of an origin. It sets its own logic. And through this very logic it offers a<br />
chance for democratization of the arts, bringing the outside world closer<br />
to the contemporary individual, in a country where a huge mass of culturally<br />
excluded people do not have access to the live performances or to texts<br />
published in a foreign language.<br />
REFERENCES<br />
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas híbridas. Trad. Heloísa Pezza Cintrão; Ana Regina<br />
Lessa. 4ª. ed. São Paulo: EDUNESP, 2008.<br />
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DELEUZE, Gilles. Platão e o simulacro. In: Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto<br />
Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2006.<br />
MURAT, Lucia. Maré, nossa história de amor. Genre: Musical. Length: 105 minutes. Released<br />
in Brazil / France / Uruguay), 2007.<br />
SANTIAGO, Silviano. O cosmopolitismo do pobre: crítica literária e crítica cultural. Belo<br />
Horizonte: Editora UFMG, 2004.<br />
SHAKESPEARE, William. Romeo and Juliet. Brian Gibbons (Ed.). The Arden<br />
Shakespeare. Second Series. Singapore: Thomson, 2006a.<br />
________. William Shakespeare: tragédias e comédias sombrias. Trad. Barbara<br />
Heliodora. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006b.<br />
STAM, Robert. Literature and film: a guide to the theory and practice of film adaptation.<br />
Oxford: Blackwell, 2005.<br />
______. Literatura através do cinema: realismo, magia e a arte da adaptação. Trad. Marie-<br />
Anne Kremer e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.<br />
Elizabeth RAMOS<br />
Doutora em Letras pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).<br />
Professor Adjunto III do Instituto de Letras (UFBA).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Artigo recebido em 16 de setembro de 2011.<br />
Arceito em 24 de outubro de 2011.<br />
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SHAKESPEARE EM PORTUGUÊS DO BRASIL:<br />
AS TRADUÇÕES EM VERSO DE JOSÉ ROBERTO O’SHEA<br />
Resumo: Este artigo faz, inicialmente,<br />
uma apresentação da estratégia global<br />
adotada por José Roberto O’Shea nas<br />
três primeiras traduções anotadas que<br />
realizou de peças de William Shakespeare:<br />
Antônio e Cleópatra, Cimbeline, rei da<br />
Britânia e O conto do inverno. A seguir,<br />
dedica-se a examinar um aspecto formal<br />
dessa estratégia, que é uma métrica<br />
ancorada em decassílabos brancos ou<br />
rimados, de acordo com a distribuição<br />
do original. A análise focaliza<br />
especialmente as soluções encontradas<br />
pelo tradutor para recriar em português<br />
o pentâmetro iâmbico branco, que é o<br />
metro mais característico da poesia<br />
dramática shakespeariana. A partir dos<br />
trechos analisados pode-se observar que<br />
a tendência de O’Shea tem sido a de<br />
recorrer cada vez menos aos metros<br />
pouco convencionais. Sua escolha do<br />
decassílabo com acento na quinta sílaba,<br />
afirmada no paratexto de Antônio e<br />
Cleópatra, parece ter sido deixada de lado<br />
nas duas traduções seguintes, em que<br />
predominam os versos de corte mais<br />
tradicional, com acento tônico na sexta<br />
sílaba, caso do martelo-agalopado e o<br />
heroico.<br />
Paulo Henriques Britto<br />
phbritto@hotmail.com<br />
Marcia A. P. Martins<br />
mmartins@puc-rio.br<br />
Abstract: The article begins with a<br />
presentation of the global strategy<br />
adopted by José Roberto O’Shea in his<br />
first three annotated translations of<br />
Shakespeare’s plays: Anthony and<br />
Cleopatra; Cymbeline, King of Britain; and<br />
The Winter’s Tale. Following that, a<br />
specific formal aspect of his strategy is<br />
discussed: his use of decasyllables,<br />
unrhymed or rhymed in accordance with<br />
the original. Particular emphasis is given<br />
to the different ways how O’Shea<br />
translates blank verse, the unrhymed<br />
iambic pentameter that is the most<br />
characteristic meter of Shakespearean<br />
drama. The passages analyzed indicate<br />
that in his later translations O’Shea relies<br />
less and less on unconventional stress<br />
patterns. His tendency to use<br />
decasyllables stressed on the fifth syllable,<br />
which he comments on his paratext to<br />
Antony and Cleopatra, seems to decrease<br />
in the two later translations, where the<br />
predominant forms of the decasyllable<br />
are the more traditional martelo-agalopado<br />
and heroico, stressed on the sixth syllable.<br />
Palavras-chave: Shakespeare. Tradução teatral. Versificação. Métrica.<br />
Key words: Shakespeare. Drama translation. Versification. Metrics.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 127
A obra dramática shakespeariana, produzida há mais de<br />
quatrocentos anos, continua viva e atual no mundo inteiro, como<br />
demonstram as inúmeras encenações e adaptações para outros meios, que<br />
vão do cinema aos HQ e videogames. As peças que compõem esse cânone<br />
têm sido constantemente relidas e reinterpretadas à luz de diferentes teorias<br />
e abordagens, com reflexos sobre as traduções, que vêm sendo feitas em<br />
um ritmo bastante intenso e que podem, naturalmente, trazer marcas de<br />
tais insights e concepções.<br />
No Brasil não tem sido diferente: a voz de Shakespeare se faz<br />
constantemente presente nos palcos sob forma de montagens que oscilam<br />
entre tradicionais e vanguardistas, sem falar nas adaptações, imitações e<br />
paródias; nas novelas de televisão, particularmente em sua temática; e na<br />
indústria editorial, por meio tanto do lançamento de novas traduções e<br />
adaptações para o público jovem, quanto de reimpressões e reedições de<br />
antigas, que vêm sendo apresentadas sob os mais diversos formatos, como<br />
caixas com vários volumes ou edições únicas com obras selecionadas. Dentre<br />
os tradutores em atividade, destacam-se, pelo número de peças traduzidas<br />
e pelo projeto tradutório consistente, Barbara Heliodora, que recentemente<br />
terminou a transposição para o português das 37 peças do cânone dramático<br />
tradicional; Beatriz Viégas-Faria, que entre 1998 e 2011 já publicou pela<br />
L&PM 18 traduções de comédias, tragédias e romances, tendo ainda uma<br />
<strong>final</strong>izada e outra no prelo; e José Roberto O’Shea, que desenvolve há mais<br />
de 20 anos um projeto de pesquisa em traduções shakespearianas, tendo<br />
quatro publicadas, uma no prelo e uma em elaboração. Esses tradutores,<br />
juntamente com outros como Elvio Funck, Aíla Gomes, Aimara Cunha<br />
Resende e Erick Ramalho, marcam uma tendência recente no Brasil: são<br />
todos estudiosos e pesquisadores, com profundo conhecimento de<br />
dramaturgia. Os poetas-tradutores que tanto marcaram as versões brasileiras<br />
da poesia dramática shakespeariana desde o seu início, em 1933, até meados<br />
dos anos 1990 — Onestaldo de Pennafort, Péricles Eugenio da Silva Ramos,<br />
Jorge Wanderley, Manuel Bandeira e Anna Amélia Carneiro de Mendonça,<br />
dentre outros — dão lugar, agora, aos shakespearianistas com posição de<br />
destaque na academia, que se dedicam não só ao estudo e à exegese da<br />
obra original mas também à sua transposição para o português do Brasil<br />
em traduções com graus variados de aparato crítico que resultam de projetos<br />
tradutórios sólidos e bem fundamentados.<br />
Diante da importância da contribuição desses estudiosos na difusão<br />
do cânone dramático shakespeariano em português a partir de uma visão<br />
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scholarly mas nem por isso erudita ou inacessível, examinaremos, neste artigo,<br />
um importante aspecto da poética tradutória de um deles — José Roberto<br />
O’Shea — que é o emprego de decassílabos brancos ou rimados.<br />
A poética tradutória de José Roberto O’Shea<br />
O’Shea já verteu para o português a tragédia Antônio e Cleópatra<br />
(Mandarim, 1999, em edição bilíngue), as peças finais Cimbeline, rei da Britânia<br />
(Iluminuras, 2002), O conto do inverno (Iluminuras, 2006) e Péricles, príncipe de<br />
Tiro (no prelo) e a versão de Hamlet a partir do chamado Primeiro In-<br />
Quarto (Hedra, 2010); seu projeto atual é a tradução de Two Noble Kinsmen,<br />
até o momento inédito em português do Brasil. Professor Titular da<br />
Universidade Federal de Santa Catarina desde 1992, leciona na graduação e<br />
na pós-graduação disciplinas vinculadas às áreas de literatura inglesa<br />
(especialmente teatro shakespeariano) e norte-americana; teoria da<br />
performance; teatro e interculturalismo. Vem desenvolvendo pesquisa<br />
acadêmica nas áreas de tradução de teatro e para o teatro, dramaturgia e<br />
literatura dramática (texto e cena, e teoria da performance dramática), com<br />
dois estágios pós-doutorais no Reino Unido — em 1997, em Stratfordupon-Avon,<br />
na condição de Pesquisador Honorário e em 2004, no<br />
Departamento de Drama, na University de Exeter, e um estágio como<br />
fellow da Folger Shakespeare Library, em Washington, DC, em 2010. Suas<br />
traduções shakespearianas são realizadas no âmbito do seu projeto de<br />
pesquisa Tradução Anotada da Dramaturgia Shakespeariana, desenvolvido<br />
desde 1994 com apoio do CNPq e que vem resultando em produtos<br />
tradutórios com aparato crítico, que inclui textos introdutórios e notas que<br />
abordam e esclarecem questões lexicais, semânticas (explicação de<br />
trocadilhos), culturais, históricas e cênicas. Como esclarece o tradutor, no<br />
ensaio que acompanha a edição de Antônio e Cleópatra da Mandarim<br />
(O’SHEA, 1997, p. 27):<br />
Para atender ao objetivo acadêmico-pedagógico do projeto e, decerto, para<br />
auxiliar a análise temática da peça por parte de gente de teatro, direta ou<br />
indiretamente ligada a determinada montagem, a tradução inclui comentário<br />
crítico, em forma de anotação. No total, são cerca de 350 notas, em que<br />
procuro esclarecer questões de texto, abordando, principalmente, aspectos<br />
lexicais específicos ao inglês elizabetano, bem como problemas de<br />
interpretação e tradução; e questões de contexto, fornecendo, prioritariamente,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 129
informações sobre o momento histórico e político em que transcorre a ação<br />
da peça.<br />
No caso das traduções já publicadas, além das exatas 357 notas<br />
que aparecem no <strong>final</strong> dos respectivos atos de Antônio e Cleópatra, na edição<br />
de Cimbeline há 39 notas de rodapé que fornecem informações culturais e<br />
linguísticas importantes para a compreensão do texto e que apresentam as<br />
escolhas tradutórias; na de O conto do inverno, 146 notas que, assim como na<br />
primeira peça traduzida, vêm ao término de cada ato; e na do Primeiro<br />
Hamlet, 114 notas de rodapé com variados esclarecimentos.<br />
A escolha dos títulos a serem traduzidos tem seguido o critério de<br />
privilegiar peças menos conhecidas, ou menos encenadas. Enquanto tragédias<br />
como Rei Lear, Otelo, Macbeth e Romeu e Julieta circulam em português do<br />
Brasil em pelo menos oito traduções diferentes cada uma, três das peças<br />
trabalhadas por O’Shea que se inserem entre os chamados “romances” ou<br />
“peças finais” só eram encontradas, na época em que ele escolheu traduzilas,<br />
no conjunto da obra completa de Shakespeare, em traduções produzidas<br />
nas décadas de 1950 e 1960 (por, respectivamente, Carlos Alberto Nunes e<br />
Cunha Medeiros/Oscar Mendes).<br />
Em linhas gerais, O’Shea, sempre levando em conta que as peças<br />
de Shakespeare foram escritas originalmente para o palco — embora tenham,<br />
ao longo do tempo, adquirido o duplo estatuto de obra dramática e literária<br />
—, procura produzir um texto igualmente teatral, que respeite a distribuição<br />
de prosa/verso e versos brancos/versos rimados do original, empregando<br />
decassílabos para as passagens em verso. Como ressaltam os estudiosos, o<br />
pentâmetro iâmbico usado por Shakespeare reproduz a cadência da fala<br />
em língua inglesa, fazendo com que o verso soe natural aos ouvidos do<br />
público. O desafio dos tradutores é obter um efeito igualmente familiar em<br />
língua portuguesa, reproduzindo a musicalidade da fala brasileira. A opção<br />
pelo verso, no entanto, torna o processo de tradução muito mais complexo,<br />
artesanal, na medida em que é preciso encontrar soluções ao mesmo tempo<br />
concisas e precisas, dirigidas a um público muito distante no tempo e no<br />
espaço da Inglaterra elisabetana. Assim explica O’Shea a sua opção pelo<br />
verso:<br />
Decidi manter em prosa os trechos que em prosa constam do original,<br />
traduzir o blank verse em decassílabos, com ictos marcando, preferencialmente,<br />
a sexta (ou a quinta) e a décima sílabas, e reproduzir os couplets, que<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
130
frequentemente fecham as cenas, em dísticos aproximados. (O’SHEA, 1997,<br />
p. 26)<br />
Como exemplo, ele próprio cita o <strong>final</strong> da cena 11 do terceiro ato,<br />
quanto Antônio se consola com Cleópatra, após ter fugido da batalha de<br />
Ácio para encontrá-la:<br />
Some wine within there, and our viands! Fortune knows,<br />
We scorn her most, when most she offers blows.<br />
O couplet foi assim traduzido, com rima incompleta:<br />
Vinho e víveres, vamos! Sabe a sorte,<br />
Quanto mais nos golpeia, tão mais fortes.<br />
No que diz respeito a estilo e dicção, O’Shea busca uma linguagem<br />
simples mas não empobrecedora, cuidando para evitar cacófatos, repetindo<br />
as aliterações e imagens, recriando os trocadilhos e jogos de palavras,<br />
mantendo a mistura de tratamentos (tu/vós). Como ele próprio observa,<br />
“[a]o reescrever Shakespeare para um público distante do dramaturgo inglês<br />
em termos de tempo, espaço e cultura, fiz a opção por um léxico e por<br />
padrões de fala, espero, acessíveis ao público-alvo e inseridos na cultura de<br />
chegada: o Brasil no <strong>final</strong> do século XX e início do século XXI” (O’SHEA,<br />
2002, p. 38).<br />
O’Shea explicita seu projeto tradutório global e comenta soluções<br />
pontuais nos dois ensaios que integram, respectivamente, as edições de<br />
Antônio e Cleópatra e Cimbeline, rei da Britânia. Intitulados “Antony and Cleopatra<br />
em tradução” (Mandarim, 1997) e “Performance e inserção cultural: Antony<br />
and Cleopatra e Cymbeline, King of Britain em português” (Iluminuras, 2002),<br />
esses paratextos são particularmente reveladores do processo de tradução<br />
de peças teatrais escritas em verso, que seguem um padrão métrico diferente<br />
do nosso (acentual, em vez de silábico), e utilizam um vocabulário<br />
extremamente variado e novo para a época. E se o tradutor se preocupou,<br />
por um lado, com o aspecto comunicativo do texto, empregando estratégias<br />
há pouco mencionadas, por outro procurou “evitar simplificações retóricas<br />
que emprestarão coerência a discurso, em Shakespeare, ‘coerentemente<br />
incoerente’” (O’SHEA, 2002, p. 38), fazendo alusão a expressão empregada<br />
pelo estudioso Graham Bradshaw em palestra intitulada “Shakespeare’s<br />
peculiarity” proferida no Shakespeare Institute em 1997.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 131
Em ambos os ensaios O’Shea apresenta e justifica algumas soluções<br />
tradutórias que evidenciam a coerência do seu projeto. Em “Antony and<br />
Cleopatra em tradução” (1997, p. 30), destacamos o relato a respeito de um<br />
trocadilho que foi possível reproduzir (Ato I, cena 5):<br />
[...] debatendo-se no tédio da ausência de Antônio, Cleópatra provoca<br />
Mardiano, o eunuco, com a pergunta: “Hast thou affections?” O eunuco<br />
responde, timidamente, “Yes, gracious madam.” E Cleópatra diz, “Indeed?”<br />
A resposta de Mardiano revela sua percepção de double entendre nas palavras<br />
da rainha: “Not in deed, madam, for I can do nothing / But what indeed is honest<br />
to be done”. Valendo-me da insinuação à condição no eunuco sugerida pela<br />
expressão “de fato”, que remete sonora e semanticamente à noção de ‘ato”,<br />
espero ter preservado o trocadilho de Cleópatra:<br />
Cleo. . . . conheces o desejo?<br />
Mard. Sim, gentil senhora.<br />
Cleo. De fato?<br />
Mard. De fato, não senhora; nenhum ato<br />
Posso cometer que não seja casto.<br />
No ensaio que acompanha Cimbeline, Um exemplo é a tradução<br />
proposta para a fala de Cecílio, pai de Póstumo, na cena 5 do quinto ato,<br />
quando se refere à águia de Júpiter:<br />
His royal bird<br />
Preens the immortal wing.<br />
Como explica o tradutor, a forma literal — “Sua ave real” — não<br />
seria adequada, por criar uma elisão que resulta foneticamente no adjetivo<br />
“suave”. Sua opção foi, então, omitir o pronome possessivo, visto que o<br />
contexto já esclarece qual é o referente; a solução escolhida foi “A ave<br />
nobre”.<br />
Já a edição de O conto do inverno (Iluminuras, 2007) não inclui um<br />
ensaio do tradutor, mas traz notas bastante esclarecedoras no que diz respeito<br />
a estratégias e soluções tradutórias. A nota 3 (p. 39), por exemplo, informa<br />
que “[o] nome do jovem príncipe [Mamillius] permanece na forma original,<br />
a fim de ser evitada a cacofonia flagrante da opção aportuguesada Mamílio”.<br />
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Todo esse cuidado e dedicação à tarefa tem sido devidamente<br />
reconhecido e valorizado: O’Shea foi um dos dez <strong>final</strong>istas do Prêmio<br />
Jabuti 2008 na categoria “Tradução literária” com a peça O conto do inverno<br />
e menção honrosa na mesma categoria em 2003 com Cimbeline, rei da Britânia.<br />
Um dos aspectos de seu trabalho bastante responsável por esse<br />
reconhecimento é, sem dúvida, a sua maestria no que diz respeito à métrica,<br />
como será analisado a seguir, a partir de um corpus composto por suas três<br />
primeiras traduções publicadas: Antônio e Cleópatra, Cimbeline, rei da Britânia e<br />
O conto do inverno.<br />
O decassílabo nas traduções de José Roberto O’Shea<br />
Antônio e Cleópatra<br />
Em sua primeira tradução shakespeariana publicada, O’Shea<br />
mantém a divisão entre verso e prosa do original, adotando o decassílabo<br />
para traduzir o pentâmetro iâmbico. Nas passagens em verso, para não ser<br />
obrigado a fazer muitos cortes no material semântico, o tradutor adota a<br />
estratégia de aumentar o número de versos por fala — recurso já utilizado<br />
por Manuel Bandeira em sua tradução de Macbeth (v. Martins e Britto, 2009,<br />
p. 140). Para estudar o decassílabo utilizado por O’Shea, escolhemos duas<br />
passagens para análise: (a) a famosa fala de Enobarbus (II, ii) em que o<br />
personagem descreve o primeiro encontro de Antônio com Cleópatra, e<br />
(b) a fala de Cleópatra que fecha o quarto ato.<br />
No texto introdutório de sua tradução de Antônio e Cleópatra, como<br />
já vimos, O’Shea afirma que acentua, “preferencialmente, a sexta (ou a<br />
quinta) e a décima sílaba”. Curiosa a opção pelo icto na quinta sílaba, que<br />
não é acentuada nos dois padrões tradicionais do decassílabo no português,<br />
o heroico (acentos em 6 e 10, com apoio em 2 ou 4) e o sáfico (4, 8 e 10),<br />
nem no martelo-agalopado (3, 6 e 10, com possível apoio em 8), contribuição<br />
brasileira ao repertório de formas do idioma. Vejamos a análise da primeira<br />
passagem, iniciada com o verso “Ao desembarque, Antônio enviou-lhe”<br />
(p. 113). Os números entre parênteses indicam a colocação mais provável<br />
dos acentos secundários nos versos em que temos mais de três sílabas átonas<br />
juntas.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 133
Nº do Escansão Comentários<br />
verso<br />
1 2-5-7-10<br />
2 2-6-10<br />
3 3-6-8-10<br />
4 2-6-10 Diérese entre “batido” e “a”<br />
5 2-(5)-7-10<br />
6 1-4-7-10 Diérese entre “prata” e “ao”.<br />
7 3-6-10<br />
8 3-6-10<br />
9 3-6-8-10 Sinérese: pronúncia monossilábica de “sua”<br />
10 2-5-7-10<br />
11 2-5-8-10<br />
12 3-(6)-8-10 Enjambement forte (“Vênus / retratada”)<br />
13 3-6-(8)-10<br />
14 2-6-10<br />
15 3-6-10<br />
16 3-6-10 Diérese entre “risonho” e “abanava”<br />
17 2-6-10<br />
18 3-6-8-10<br />
19 3-6-10<br />
Dos dezenove versos da passagem, quatro são heroicos tradicionais<br />
(os de número 2, 4, 14 e 17) e nada menos que nove são martelos-agalopados<br />
(3, 7, 8, 9, 13, 15, 16, 18 e 19). Um verso (6) pode ser classificado como<br />
gaita-galega: tendo ictos na quarta e na sétima sílabas, ele começa com<br />
ritmo quaternário e termina com ritmo ternário; sua distribuição de acentos<br />
é, portanto, o contrário do martelo-agalopado, que começa com duas células<br />
ternárias e termina com uma quaternária (ou duas binárias). Não há nenhum<br />
sáfico, e apenas três têm icto na quinta sílaba (1, 10 e 11). Dois versos são<br />
de classificação duvidosa: os de número 5 e 12, que relutamos em classificar<br />
como verso com acento na quinta e martelo-agalopado, respectivamente,<br />
porque os ictos definidores são na verdade acentos secundários, e portanto<br />
podem não ser marcados por alguns falantes. Ou seja, quase metade dos<br />
versos são martelos-agalopados — o que é compreensível, dada a natureza<br />
narrativa da passagem, quando se leva em conta que este metro é muito<br />
empregado na poesia popular brasileira de teor narrativo. Somando-se os<br />
heroicos aos martelos-agalopados, temos que treze dos dezenove versos<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
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— quase 70% do total — de fato apresentam icto na sexta sílaba, e apenas<br />
três (quatro, se contarmos o verso 5) têm acento na quinta. Observe-se que<br />
para se chegar à contagem de dez sílabas fomos obrigados, em três versos<br />
(4, 6 e 16), a não combinar a vogal átona <strong>final</strong> de uma palavra com a vogal<br />
inicial da próxima, como seria natural em português. O caso do verso 4 é<br />
particularmente problemático porque o hiato forçado ocorre no mesmo<br />
verso que uma fusão natural entre vogais átonas de palavras contíguas.<br />
Examinemos a passagem (b). O verso que aqui aparece com o<br />
número 1 é “Não mais que uma mulher qualquer, domada” (p. 299).<br />
Nº do Escansão Comentários<br />
verso<br />
1 2-6-8-10<br />
2 2-6-7-10 Enjambement forte (“jovem / leiteira”)<br />
3 2-6-8-10<br />
4 3-6-8-10 Enjambement forte (“contra / os deuses”)<br />
5 2-6-10<br />
6 3-6-10<br />
7 2-4-8-10<br />
8 1-4-6-10<br />
9 3-6-10 Enjambement forte (“cão / danado”)<br />
10 2-5-7-10<br />
11 2-5-7-10<br />
12 1-5-7-10<br />
13 2-6-10<br />
14 3-6-10 Enjambement forte (“nobres / meninas”)<br />
15 2-6-10<br />
16 2-5-7-10<br />
17 1-4-6-10<br />
18 3-6-10<br />
19 2-5-7-10<br />
20 2-6-10<br />
21 1-6-10 Diérese entre “o” e “invólucro”<br />
22 3-6-10<br />
23 3-6-10<br />
24 3-5-7-10<br />
25 2-6-8-10<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 135
Nesta passagem temos onze heroicos (1, 2, 3, 5, 8, 13, 17, 20, 21 e<br />
25), sete martelos-agalopados (4, 9, 14, 18, 22 e 23), nada menos que seis<br />
versos com icto na quinta e na sétima sílabas (10, 11, 12, 19 e 24) e um<br />
único sáfico (7), que aliás pode ser lido como um verso perfeitamente<br />
iâmbico se a sílaba tônica de “nossa” receber acento primário, o que é<br />
possível. Aqui O’Shea cumpre o que promete: 72% dos versos têm icto na<br />
sexta — ou 76 %, se “nossa” receber acento primário no verso 7 — e nos<br />
restantes o acento recai na quinta. A menor presença do martelo-agalopado<br />
nessa passagem, em comparação com a anterior, é de se esperar: este ritmo<br />
costuma ser acionado na poesia narrativa, o que não é o caso aqui. Nesta<br />
fala de Cleópatra, o tradutor recorre bem menos aos hiatos forçados — há<br />
apenas um, no verso 21. Por outro lado, ele foi obrigado a utilizar quatro<br />
enjambements fortes, quando na passagem original encontramos apenas um,<br />
ao <strong>final</strong> do sétimo verso da fala (“Patience is sottish, and impatience does /<br />
Become...”)<br />
Cimbeline, rei da Britânia<br />
Na sua tradução de Cimbeline, O’Shea, como antes, traduz em<br />
decassílabos brancos as passagens em pentâmetro iâmbico e em prosa o<br />
que está em prosa no original. Além disso, as canções do original, com<br />
metro mais curto e rimas, foram recriadas de modo análogo. Tal como<br />
fizemos com Antonio e Cleópatra, selecionamos duas passagens em<br />
decassílabos para a análise formal. Por questões de espaço, não<br />
examinaremos o tratamento dado por O’Shea ao verso rimado das canções.<br />
O primeiro trecho em decassílabos que examinaremos é a fala de<br />
Imogênia, rechaçando a tentativa de sedução de Giácomo (I, vi), na p. 82<br />
da tradução de O’Shea. Iniciada com “Afasta-te! Condeno meus ouvidos”,<br />
a passagem termina com um verso dividido entre Imogênia e Giácomo:<br />
“Pisânio, corre aqui! Feliz Leonato!”<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
136
Nº do Escansão Comentários<br />
verso<br />
1 2-6-10<br />
2 2-4-6-10<br />
3 3-6-10 Enjambement forte (“terias / relatado”)<br />
4 3-6-10<br />
5 1-3-6-10<br />
6 (1)-2-4-6-10<br />
7 3-6-8-10 Enjambement forte (“distante / do”)<br />
8 4-6-8-10<br />
9 2-6-10<br />
10 2-6-8-10<br />
11 2-4-6-(7)-10<br />
12 1-3-6-(9)-10<br />
13 2-6-10<br />
14 2-6-10 Enjambement forte (“bordel / romano”)<br />
15 2-4-6-10<br />
16 3-6-8-10<br />
17 4-7-10<br />
18 2-4-6-8-10<br />
A análise desta passagem nos revela uma situação muito diversa da<br />
que vimos em Antônio e Cleópatra. Com exceção do verso 17, uma gaitagalega,<br />
todos aqui têm icto na sexta sílaba, sendo dez heroicos, seis martelosagalopados<br />
e um (18) perfeitamente iâmbico, com acentos primários em<br />
todas as sílabas de número par, e só nelas. Desapareceram os versos com<br />
acento na quinta sílaba que eram frequentes em Antônio e Cleópatra. Observese<br />
que desapareceram também as diéreses (hiatos forçados) cuja presença<br />
foi apontada nas duas passagens estudadas da tradução anterior, e o número<br />
de enjambements fortes é inferior aos do original (sete, em quinze versos). O<br />
verso nesta passagem de Cimbeline é, portanto, bem mais regular do que o<br />
das passagens estudadas de A&C — regular tanto por utilizar pautas acentuais<br />
mais tradicionais quanto por recorrer menos a diéreses.<br />
Para verificar se esta tendência a uma maior regularidade de fato<br />
caracteriza esta segunda tradução shakespeariana de O’Shea, examinemos<br />
outra passagem em decassílabos, escolhida por acaso. Em IV, ii, tomemos<br />
a fala de Belário iniciada por “Ó deusa, Ó divina natureza” (p. 159), que<br />
termina com um verso dividido por Belário e Guidério (“Poderá nos causar.<br />
E meu irmão?”)<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 137
Nº do Escansão Comentários<br />
verso<br />
1 2-4-6-10<br />
2 4-8-10<br />
3 3-6-10 Enjambement forte (“soprando / Na”)<br />
4 3-6-10 Enjambement forte (“agitar / A”)<br />
5 3-6-10<br />
6 2-6-8-10 Sinérese (hiato de “real” passa a ditongo)<br />
7 2-6-8-10<br />
8 2-6-10<br />
9 2-4-6-10<br />
10 3-6-10 Diérese entre “instinto” e “invisível”<br />
11 1-4-6-10<br />
12 3-6-10 Diérese entre “cultivo” e “um”<br />
13 3-6-10<br />
14 2-6-(7)-10<br />
15 4-8-10<br />
16 2-6-10 Enjambement forte (“presença / De”)<br />
17 2-6-10<br />
18 3-6-10<br />
A análise desta segunda passagem reforça a conclusão que tiramos<br />
da primeira. Nove dos versos são heroicos, 7 são martelos-agalopados e 2<br />
são sáficos. Mais uma vez, não encontramos um único verso com icto na<br />
quinta sílaba. Porém temos aqui algumas diéreses — mas uma delas, a do<br />
verso 12, é em parte justificada pela presença da vírgula. O número de<br />
enjambements fortes, mais uma vez, é próximo dos do original (dois).<br />
O conto do inverno<br />
Para verificar nossa hipótese de que, em suas traduções mais<br />
recentes 1 , O’Shea adota os padrões de acentuação do decassílabo mais<br />
convencionais no idioma, examinemos duas passagens de sua tradução de<br />
The winter’s tale escolhidas de modo aleatório. Comecemos com o trecho da<br />
segunda cena do segundo ato em que Hermione reage após a ordem de<br />
prisão dada por Leontes, iniciado com o verso “É influência negativa de<br />
algum astro” (p. 72). O original contém onze versos — ou melhor, dez, se<br />
considerarmos que a fala de Hermione começa no terceiro pé de um verso<br />
e termina no terceiro pé de um verso. A tradução tem doze versos e meio.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
138
O primeiro verso da fala é completo (embora venha após um verso<br />
incompleto de Leontes, com apenas seis sílabas), e o último termina na<br />
sexta sílaba, sendo completado pela fala seguinte de Leontes. Eis a análise<br />
métrica do trecho:<br />
Nº do Escansão Comentários<br />
verso<br />
1 2-6-10<br />
2 1-3-6-8-10<br />
3 3-6-10<br />
4 3-7-10<br />
5 3-7-10<br />
6 2-4-8-10<br />
7 2-5-7-10<br />
8 3-6-8-10<br />
9 2-6-10<br />
10 3-6-10<br />
11 2-6-(7)-10<br />
12 4-6-8-10<br />
13 3-6-8-10<br />
Temos aqui três versos com a acentuação na sétima sílaba (os vv. 4,<br />
5 e 7), sendo que um deles tem também acento na quinta (o v. 7). No mais,<br />
temos cinco martelos-agalopados (os vv. 2, 3, 8, 10 e 13) e quatro heroicos<br />
(1, 9, 11 e 12). Um único verso — o de número 6 — não apresenta acentuação<br />
na sexta sílaba, e sim na quarta, devendo portanto ser classificado como<br />
sáfico. Aqui, ao contrário do que vimos em Cimbeline, reaparecem os versos<br />
com acento na sétima sílaba, porém apenas um também é acentuado na<br />
quinta. Mas o que mais chama a atenção no trecho em questão é a ausência<br />
de hiatos, sinéreses e enjambements fortes (no original, há um único enjambement,<br />
relativamente suave, em “but I have / That honourable grief ”).<br />
Examinemos mais uma passagem, a fala de Leontes que encerra a<br />
peça. No original, a fala tem vinte versos e meio — o primeiro verso<br />
começa no quarto pé do pentâmetro. A tradução é bem mais longa que o<br />
original, com 26 versos:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 139
Nº do Escansão Comentários<br />
verso<br />
1 1-4-7-10 Diérese entre “Paulina” e “aceita”<br />
2 2-6-8-10<br />
3 3-(4)-6-10 Diérese entre “esposa” e “é”, e enjambement forte (“É<br />
o contrato / Que com juras”)<br />
4 3-6-10<br />
5 2-6-10<br />
6 1-4-6-(9)-10<br />
7 2-4-6-10<br />
8 3-6-8-10<br />
9 2-4-8-10<br />
10 4-6-8-10<br />
11 1-2-4-6-10<br />
12 2-6-10 Diérese (hiato do segundo “sua” passa a ditongo)<br />
13 2-6-(9)-10 Enjambement forte (“por dois reis / Confirmadas”)<br />
14 3-6-10<br />
15 1-4-8-10 Sinérese em “perdoai”<br />
16 1-4-6-10 Diérese (hiato entre “dia” e “interposto”)<br />
17 3-6-8-10<br />
18 2-4-6-8-10<br />
19 1-4-6-10<br />
20 2-4-6-8-10 Sinérese em “boa”<br />
21 2-6-10 Enjambement forte (“p’ra um lugar / onde”)<br />
22 1-3-6-8-10<br />
23 3-6-10<br />
24 2-6-8-10 Enjambement forte (“longo / intervalo”)<br />
25 3-6-8-10<br />
26 4-6-10<br />
Podemos classificar os versos da passagem como se segue: quinze<br />
(mais da metade) heroicos (os vv. 5-7, 10-13, 16, 18, 19, 21, 24-26); sete<br />
martelos-agalopados (3, 4, 8, 14, 17, 22, 23); dois sáficos (9 e 15); um verso<br />
perfeitamente jâmbico, com o acento recaindo em todas as sílabas pares<br />
(20), e um verso com acento na sétima sílaba, o primeiro da passagem,<br />
uma gaita-galega. Ao contrário do que vimos na passagem anterior, portanto,<br />
aqui temos apenas um verso com acentuação pouco comum, o primeiro;<br />
por outro lado, aqui temos várias licenças poéticas no plano da métrica —<br />
diéreses, sinéreses e enjambements fortes — tal como tínhamos visto antes em<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
140
Antônio e Cleópatra; observe-se, porém, que o número de enjambements na<br />
tradução — três — é o mesmo do original (“many” / “a prayer”, “justified”<br />
/ “by us”, “since first” / “we were”).<br />
Resumamos nossas conclusões, utilizando percentagens. Deixaremos<br />
de lado as sinéreses, diéreses e enjambements, limitando-nos à classificação<br />
métrica dos versos.<br />
Peça A & C C CI<br />
Passagem (a) (b) (a) (b) (a) (b)<br />
Total de vv. 19 25 18 18 13 26<br />
Heroicos (%) 21 44 55,6 50 30,8 57,7<br />
Martelos (%) 47,4 28 33,3 38,9 38,5 27<br />
Sáficos (%) 0 4 0 11,1 7,7 7,7<br />
Iâmbicos (%) 0 0 5,6 0 0 3,8<br />
Gaitas (%) 5,3 0 5,6 0 0 3,8<br />
Outros (%) 26,3 24 0 0 23.1 0<br />
Ainda que talvez seja precipitado tirar conclusões com base numa<br />
amostra tão pequena, se considerarmos de um lado os metros mais<br />
tradicionais — heroicos, martelos-agalopados, sáficos e iâmbicos perfeitos<br />
— e de outro as gaitas-galegas e versos de difícil classificação, parece claro<br />
que a tendência de O’Shea tem sido a de recorrer cada vez menos aos<br />
metros pouco convencionais. Apenas o primeiro trecho analisado de Conto<br />
de inverno parece destoar dessa tendência; nos outros três fragmentos das<br />
duas traduções posteriores a Antônio e Cleópatra, a preferência do tradutor<br />
recai nos versos com icto na sexta sílaba: o martelo-agalopado e o heroico.<br />
Sua escolha um tanto excêntrica do decassílabo com acento na quinta sílaba,<br />
afirmada no de Antônio e Cleópatra, parece ter sido deixada de lado nas duas<br />
traduções seguintes, em que predominam os versos de corte mais tradicional.<br />
Nota<br />
1 Sem contar O primeiro Hamlet - In-Quarto de 1603 (2010), que não foi contemplado na<br />
análise por estar ainda no prelo no momento de elaboração do artigo.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 141
REFERÊNCIAS<br />
MARTINS, Marcia A. P.; BRITTO, Paulo H. “O verso de Manuel Bandeira em sua<br />
tradução de Macbeth”. <strong>Scripta</strong>, n. 7, p. 133-150, 2009.<br />
O’SHEA, José Roberto. “Antony and Cleopatra em tradução”. In: William<br />
Shakespeare. Antônio e Cleópatra. Tradução e notas José Roberto O’Shea. São Paulo:<br />
Mandarim, 1997, p. 21-33.<br />
______. “Performance e inserção cultural: Antony and Cleopatra e Cymbeline, King of<br />
Britain em português”. In: William Shakespeare. Cimbeline, rei da Britânia. Tradução e<br />
notas José Roberto O’Shea. São Paulo: Iluminuras, 2002. p. 29-43.<br />
SHAKESPEARE, William. The Winter’s Tale. Ed. Ernest Schanzer. The New Penguin<br />
Shakespeare. London: Penguin, 1986.<br />
______. Antony and Cleopatra. The Complete Works. Eds. Stanley Wells; Gary Taylor.<br />
Compact Edition. Oxford: Clarendon Press, 1988.<br />
______. Antônio e Cleópatra. Tradução e notas José Roberto O’Shea. São Paulo:<br />
Mandarim, 1997.<br />
______. Pericles. Ed. Stephen Orgel. The Pelican Shakespeare. London: Penguin,<br />
2001.<br />
______. Cimbeline, rei da Britânia. Tradução e notas José Roberto O’Shea. São Paulo:<br />
Iluminuras, 2002.<br />
______. O conto do inverno. Tradução, notas e bibliografia José Roberto O’Shea. São<br />
Paulo: Iluminuras, 2006.<br />
Paulo Henriques BRITTO<br />
Mestre em Língua Portuguesa pela PUC-Rio. Notório Saber, titulo concedido pela<br />
PUC-Rio, em 2002. Tradutor literário, escritor e organizador com Caetano W. Galindo<br />
de um número temático de Tradução em revista (2011). Professor Associado de tradução,<br />
literatura brasileira e criação literária na graduação (Tradução e Produção Textual) e<br />
pós-graduação (Estudos da Linguagem) em Letras da PUC-Rio.<br />
Marcia A. P. MARTINS<br />
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Tradutora técnica e pesquisadora<br />
responsável pela criação e atualização da base de dados "Escolha seu Shakespeare"<br />
(http://www.dbd.puc-rio.br/shakespeare). Professora Assistente do Departamento<br />
de Letras da PUC-Rio, na graduação (habilitação em Tradução) e pós-graduação (Estudos<br />
da Linguagem).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Artigo recebido em 12 de setembro de 2011.<br />
Aceito em 14 de outubro de 2011.<br />
Voltar para o Sumário<br />
142
AS CONVENÇÕES DO GÊNERO DETETIVESCO<br />
NO ROMANCE GRÁFICO<br />
PAUL AUSTER’S CITY OF GLASS<br />
Resumo: Este artigo analisa o romance<br />
gráfico Paul Auster’s City of Glass, dos<br />
artistas Karasik e Mazzucchelli, uma<br />
transposição de 1994 da primeira novela<br />
de Paul Auster em The New York Trilogy.<br />
O objetivo deste texto é propor um<br />
estudo sobre como a narrativa<br />
quadrinizada expande e modifica as<br />
idéias em “City of Glass” 1 , de Auster.<br />
Comparando as duas obras, observa-se a<br />
maneira como o romance gráfico lida com<br />
alguns elementos das histórias de<br />
detetives tradicionais, especialmente a<br />
estrutura e personagens. Meu argumento é<br />
que a versão do romance gráfico, em alguns<br />
momentos, reforça e, em outros, subverte<br />
as convenções do gênero literário conhecido<br />
como ficção de detetive.<br />
Camila Augusta Pires de Figueiredo<br />
camilafigueiredo82@hotmail.com<br />
Thaïs Flores Nogueira Diniz<br />
tfndiniz@terra.com.br<br />
Abstract: This article analyzes the<br />
graphic novel Paul Auster’s City of Glass,<br />
by artists Paul Karasik and David<br />
Mazzucchelli, a 1994 transposition of<br />
Paul Auster’s first novella in The New<br />
York Trilogy. The aim of this text is to<br />
examine how the comics form expands<br />
and modifies the ideas in Auster’s<br />
“City of Glass”. By comparing the two,<br />
I observe the way the graphic novel<br />
deals with certain elements of classical<br />
detective stories, especially structure<br />
and characterization. My argument is<br />
that the graphic version both reinforces<br />
and subverts the conventions of<br />
detective fiction.<br />
Palavras-chave: City of Glass. Romance gráfico. Transposição de mídia. Ficção de<br />
detetive.<br />
Keywords: City of Glass. Graphic novel. Media transposition. Detective fiction.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 143
Introdução<br />
Desde suas origens, histórias de crime e de detetives sempre tiveram<br />
grande apelo popular. Datadas do início do século XIX, as primeiras ficções<br />
vitorianas de detetives coincidem com o crescimento acelerado das cidades<br />
e com os consequentes problemas dessa nova vida urbana, particularmente<br />
a violência. Por conseguinte, data dessa época também o surgimento de<br />
uma polícia investigativa para combater o avanço da criminalidade nas<br />
cidades.<br />
Desde Edgar Allan Poe, considerado o precursor do gênero, as<br />
ficções de detetives tradicionais – em especial a ramificação clássica britânica<br />
de influência de Arthur Conan Doyle – enfatizam as habilidades de<br />
investigação e interpretação do protagonista racional. Os pontos centrais<br />
dessas histórias vêm geralmente ao <strong>final</strong>, quando o detetive reconstrói o<br />
crime, explicando o método lógico que utilizou para observar e interpretar<br />
as misteriosas e muitas vezes falaciosas pistas que o conduziram à solução<br />
do mistério que envolve o crime. Nos Estados Unidos, a ficção detetivesca<br />
tomou rumos diferentes. Raymond Chandler e Dashiel Hammett são<br />
considerados os principais autores da corrente hard-boiled, em que o trabalho<br />
do detetive/policial “durão” envolve perseguições e armadilhas em uma<br />
cidade dominada pela corrupção. Além disso, o protagonista envolve-se<br />
fisicamente no combate ao crime, participando de lutas e, muitas vezes,<br />
obedecendo ao seu próprio senso de justiça.<br />
Tanto a narrativa clássica inglesa como a americana hard-boiled<br />
satisfazem ao leitor, uma vez que o detetive/policial consegue, com sucesso,<br />
alcançar seu objetivo, posicionando de forma coerente as peças do quebracabeça.<br />
Madeleine Sorapure (1995) explica que, ao reconstruir a narrativa<br />
do crime de maneira lógica e correta, tanto o detetive quanto o leitor alcançam<br />
a posição metafísica do autor, que transcende os eventos apresentados no<br />
texto (p. 72).<br />
No entanto, na chamada ficção detetivesca anti ou meta-ficcional, essa<br />
busca pelo conhecimento autoral é frustrado; os papéis do autor, do detetive<br />
e do leitor tendem a se misturar. Nesse tipo de ficção, o mundo real não<br />
consegue explicar os mistérios da narrativa, dando lugar àquilo que é<br />
racionalmente incompreensível, ao caos, ao fantástico e ao mágico. Essa<br />
subversão das convenções do gênero da ficção de detetives está presente<br />
nas obras de autores pós-modernos como Pynchon, Borges e Auster.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
144
Publicada como volume à parte em 1985, “City of Glass” é a<br />
primeira novela do livro de Paul Auster intitulado A Trilogia de Nova York<br />
(1987). “City of Glass” conta a história de Daniel Quinn, um escritor viúvo<br />
que, sob o pseudônimo de William Wilson, relata as aventuras do detetive<br />
Max Work. Ao atender uma ligação para o número errado, Quinn assume<br />
a identidade de outra pessoa, um detetive chamado Paul Auster, e acaba<br />
sendo contratado para seguir o suspeito Sr. Stillman a fim de evitar que um<br />
crime aconteça. Não há um crime a ser desvendado, nem um criminoso a<br />
ser capturado, somente a suspeita de um crime que pode vir a acontecer.<br />
Em 1994, David Mazzucchelli e Paul Karasik transpuseram “City of Glass”<br />
para a mídia dos quadrinhos, do tipo denominado romance gráfico. Ao<br />
contrário da obra de Paul Auster, a adaptação não teve grande repercussão<br />
e obteve apenas uma crítica da Newsweek e uma do The New York Times 2 .<br />
Isso reflete a tendência de depreciação do texto adaptado em<br />
relação à obra “original”. A segunda é geralmente considerada uma cópia<br />
malfeita do primeiro texto, de onde sempre se perde algo. No entanto,<br />
nesse aspecto, concordo com Linda Hutcheon (2006), em A Theory of<br />
Adaptation, que observa que o fato de uma obra “ser a segunda não significa<br />
que seja secundária ou inferior” (p. xiii) 3 . Especialmente quando se trata de<br />
transposições de mídia 4 , ou seja, quando um texto é transposto de uma<br />
mídia para outra – por exemplo, de romances para os quadrinhos ou de<br />
jogos de vídeo games para o cinema – as mudanças são inevitáveis, mas<br />
não necessariamente negativas. Assim, ao transpor “City of Glass”, foi<br />
necessário respeitar as convenções formais da mídia dos quadrinhos, suas<br />
restrições e possibilidades. Da mesma forma, é importante esclarecer que<br />
meu propósito neste artigo não é o de demonstrar o que se perdeu na<br />
transposição feita por Karasik e Mazzucchelli em relação à prosa de Auster.<br />
Ao contrário, interessa-me mais analisar o ato de transposição propriamente<br />
dito, em particular as estratégias usadas pelos artistas para transpor certos<br />
excertos do texto-fonte, observadas as especificidades da mídia quadrinizada.<br />
Nesse sentido, City of Glass demonstra ser um ótimo exemplo de<br />
uma adaptação que soube lucrar com as práticas midiáticas específicas dos<br />
quadrinhos. Mais do que simples paralelos entre os textos verbal e visual<br />
(como em um manual de instruções), City of Glass expande a narrativa de<br />
Paul Auster, acrescentando ironia e metáforas. Neste artigo, analisarei como<br />
o romance gráfico enfatiza, mais do que a prosa em alguns momentos, as<br />
convenções das histórias clássicas de detetives – sua estrutura e personagens.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 145
A estrutura do gênero detetivesco<br />
1 O método de investigação<br />
Ao contrário das narrativas clássicas, que são regidas pelo método<br />
da detecção e da razão, “City of Glass” mostra como o acaso afeta o<br />
desenrolar da história. Não apenas as escolhas do detetive, mas todos os<br />
eventos da narrativa acontecem de maneira arbitrária. É de modo totalmente<br />
arbitrário, por exemplo, que o protagonista Daniel Quinn se torna o detetive<br />
da estória. Quinn atende a um telefonema para número errado. A pessoa<br />
do outro lado da linha pergunta se ele é Paul Auster, o detetive. Compelido<br />
pela curiosidade e pela necessidade de dar sentido à sua vida insípida, Quinn<br />
responde como se fosse o detetive e aceita trabalhar no caso. O narrador<br />
reconhece o papel do acaso nesse episódio:<br />
Mais tarde, quando ele pode pensar sobre as coisas que aconteceram com ele,<br />
concluiria que nada era real, exceto o acaso. (...) Se pudesse ter acontecido de<br />
um modo diferente, ou se tudo estivesse predestinado com a primeira<br />
palavra que saiu da boca daquele estranho, essa não era a questão. (AUSTER,<br />
2004, p. 3) 5<br />
É também o acaso que vai definir a escolha de Quinn, em uma<br />
estação de trem, ao se deparar com duas versões praticamente iguais do<br />
suspeito que deveria seguir, um certo Professor Stillman: “Por um momento,<br />
Quinn achou que era uma ilusão, um tipo de aura lançada pelas correntes<br />
eletromagnéticas no corpo de Stillman. (...) Não havia nada que ele pudesse<br />
fazer agora que não seria um erro. Qualquer escolha que fizesse – e ele tinha<br />
de fazer alguma – seria arbitrária, uma submissão ao acaso (p. 56) 6 .”<br />
Portanto, ao contrário do que se espera de uma narrativa de<br />
investigação tradicional, em “City of Glass”, os eventos fogem ao controle do<br />
detetive. Apesar da habilidade de observação de Quinn no episódio da estação<br />
de trem, é impossível identificar o suspeito correto empregando os famosos<br />
métodos clássicos de detecção e indução típicos das narrativas de detetives.<br />
No romance gráfico, o acaso é representado por imagens<br />
duplicadas ou semelhantes, que oferecem ao leitor mais do que uma<br />
possibilidade icônica para um único evento. Para o primeiro exemplo dado,<br />
o leitor é levado a crer que o telefone que aparece nas imagens dos primeiros<br />
quadrinhos é o telefone que Quinn atende. Porém, nos quadrinhos seguintes,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
146
descobrimos que o telefone que aparece é apenas um desenho na capa de<br />
uma lista telefônica, debaixo do verdadeiro telefone que toca. No segundo<br />
exemplo, à medida que um “Stillman” se abaixa para pegar sua maleta, o<br />
outro aparece atrás, no mesmo quadro.<br />
As pistas que aparecem ao longo da narrativa também obedecem<br />
à lógica do acaso em “City of Glass”. Nas histórias tradicionais, tais como<br />
as protagonizadas por Auguste Dupin e Sherlock Holmes, existem pistas<br />
falsas e verdadeiras. A astúcia do detetive consiste em encaixar as pistas<br />
certas para a solução do mistério, eliminando as outras. Desta forma,<br />
verdadeiras ou falsas, as pistas sempre nos levam a algum lugar na história.<br />
Ou abrem novas possibilidades em direção à solução do mistério ou elas<br />
eliminam falsas suposições. Nas ficções detetivescas metaficcionais, há uma<br />
multiplicidade de possibilidades e pistas sem que haja uma correspondência<br />
lógica entre a pista e o seu significado. A conseqüência dessa pluralidade de<br />
possibilidades e significados é que, ao <strong>final</strong>, há sempre questões não<br />
respondidas e a solução do mistério dá lugar à não-solução e ao caos.<br />
Por causa disso, Quinn decide comprar um caderno vermelho para<br />
anotar todos os detalhes do caso que está investigando, na esperança de que<br />
“[d]esta maneira, talvez, as coisas não saiam do controle” (p. 38) 7 , numa<br />
tentativa de limitar as possibilidades suscitadas pelas múltiplas pistas e para<br />
estabelecer conclusões coerentes daquilo que observa. Apenas no romance<br />
gráfico podemos ver o tema da duplicidade neste episódio. Separados por<br />
mais de trinta páginas, o leitor observa que o caderno em que Stillman<br />
escreve as novas palavras do idioma que está inventando é bastante similar<br />
ao caderno que Quinn comprara para escrever suas observações.<br />
Quinn acredita que sua experiência como escritor de histórias de<br />
ficção de mistério e crime o ajudaria a incorporar o papel do detetive, uma<br />
vez que ele já estaria familiarizado com as convenções desse tipo de histórias.<br />
No entanto, no mundo ficcional onde Quinn se encontra, seu método de<br />
investigação falha: “Era tudo uma questão de método. Se o objetivo era<br />
entender Stillman, conhecê-lo bem o suficiente para antecipar o que ele<br />
faria em seguida, Quinn havia falhado” (p. 61) 8 . Na narrativa pós-moderna<br />
de Auster, os métodos e hipóteses convencionais não levam a resultados<br />
satisfatórios: “Ele sempre imaginou que a chave para um bom trabalho de um<br />
detetive era uma atenta observação dos detalhes. (...) Mas depois de lutar para<br />
analisar todos esses efeitos superficiais, Quinn não se sentia mais perto de Stillman<br />
do que quando começou a segui-lo” (p. 67) 9 .<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 147
No romance gráfico, uma grade “três-por-três” – uma convenção<br />
da mídia dos quadrinhos – é usada mais de uma vez para representar<br />
simbolicamente o fracasso, a limitação e o aprisionamento. A grade “trêspor-três”<br />
é usada como se fossem as grades da janela do apartamento de<br />
Quinn, representando a limitação das habilidades interpretativas do<br />
personagem (Fig. 1). Em outros dois momentos, as grades ilustram a infância<br />
cruel de Peter Stillman Jr., trancado em um quarto escuro por nove anos<br />
(KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p. 27, 45).<br />
Fig. 1 – Grades como convenção (KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p. 61).<br />
2 A identidade dos personagens<br />
Em “City of Glass”, Quinn aceita investigar o caso como se fosse<br />
um detetive e sente que é capaz de fazer isso com base em sua experiência<br />
como escritor de histórias de detetives, sob o pseudônimo de William Wilson.<br />
Por isso, ele sabe que nas histórias de detetives tradicionais, existem certos<br />
papéis que são típicos, como o do criminoso, da vítima e do detetive. No<br />
entanto, na novela de Paul Auster, qualquer tentativa de definir a identidade<br />
dos personagens é caótica. Essas identidades não são previsíveis e há várias<br />
possibilidades: identidades distorcidas, perda de identidade, identidades<br />
trocadas e dupla identidade.<br />
Assim que decide comprar um caderno vermelho, Quinn passa a<br />
registrar todas as suas impressões a respeito das pessoas envolvidas no<br />
caso. Ele chega à conclusão de que Stillman corresponde à idéia do criminoso<br />
carismático: “(…) esse não é o rosto de um louco. Ou isso não é uma<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
148
afirmação legítima? Aos meus olhos, pelo menos, parece benigno, se não<br />
agradável” (p. 39) 10 . De acordo com suas anotações, Peter, filho de Stillman,<br />
seria a vítima desprotegida, mas não totalmente confiável: “Pequeno Peter.<br />
Seria necessário imaginar, ou posso acreditar nisso?” (p. 39) 11 . Virgínia, a<br />
esposa de Peter, guarda semelhanças com a figura da femme fatale das histórias<br />
de detetives: “E ainda: por que sinto que não posso confiar nela?” (p. 40) 12 .<br />
Entretanto, percebemos mais tarde que as identidades das pessoas envolvidas<br />
no caso não correspondem às expectativas de Quinn. Depois de conversar<br />
com Stillman, Quinn conclui que não se trata de um criminoso, mas um<br />
idoso desequilibrado. Apesar de sua pouca habilidade em expressar<br />
verbalmente, Peter Stillman aparentemente conta a Quinn toda a verdade<br />
sobre sua infância cruel. Da mesma maneira, Virginia acaba não<br />
correspondendo à figura da femme fatale. O colapso das identidades também<br />
se aplica ao protagonista, uma vez que Quinn não consegue executar com<br />
sucesso seu trabalho como detetive.<br />
No início da história, Quinn nos é apresentado como se não<br />
possuísse uma identidade, ou como se uma parte desta tivesse sido perdida<br />
com a morte da esposa e do filho: “Quinn não era mais aquele que podia<br />
escrever livros, e apesar de que Quinn continuava a existir de várias maneiras,<br />
ele não existia para mais ninguém além dele mesmo” (p. 4) 13 . Ele então<br />
tenta assumir outras identidades na tentativa de preencher o vazio em sua<br />
existência. Primeiramente, ele se esconde na figura de William Wilson, seu<br />
pseudônimo como autor, e depois se identifica com Max Work, o detetive<br />
das histórias escritas por William Wilson. Mais tarde, quando começa a<br />
investigar o caso, ele assume a identidade de Paul Auster, o detetive:<br />
“Lembrar a sensação de vestir as roupas de outras pessoas. (…) Tudo o<br />
que posso dizer é isso: escutem-me. Meu nome é Paul Auster. Não é o meu<br />
verdadeiro nome” (p. 40) 14 .<br />
Além disso, a identidade de Quinn é também construída através de<br />
metáforas visuais. Assim como as metáforas verbais, as metáforas visuais<br />
“tendem a representar o desconhecido, não-resolvido ou problemático em<br />
termos de algo mais familiar e mais facilmente imaginável” (EL REFAIE,<br />
2003, p. 84) 15 . No entanto, ao contrário das verbais, as metáforas visuais<br />
lidam com dois sistemas semióticos: palavras e imagens. Elas geralmente<br />
envolvem imagens que metaforicamente ecoam os temas centrais da história<br />
e podem fazer referência a episódios anteriores da narrativa ou até mesmo<br />
a eventos da vida real.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 149
Em entrevista ao The Comics Journal, em 1997, David Mazzucchelli<br />
explica que a metáfora visual foi a maneira que encontraram de expressar<br />
questões presentes na obra de Auster – como a estrutura da linguagem e da<br />
identidade – sem que fosse preciso manter toda a parte verbal do texto.<br />
Desta forma, as metáforas foram soluções necessárias para representar o<br />
não-visual. O emprego das metáforas visuais cria um subtexto dentro da<br />
história, acrescentando valores simbólicos e psicológicos à narrativa.<br />
No romance gráfico, o recurso da metáfora visual é usado com o<br />
propósito de se referir a aspectos da identidade de Quinn em dois<br />
momentos. No início da história, ao apresentar-nos ao protagonista, o<br />
romance de Auster diz que Quinn estava “[p]erdido, não apenas na cidade,<br />
mas em si mesmo também” (p. 4) 16 . Nos quadrinhos, esse mesmo trecho é<br />
ilustrado com os prédios de Nova Iorque se transformando em um<br />
labirinto; em seguida, esse labirinto se transforma na impressão digital de<br />
Quinn na janela de sua casa (Fig. 2). Portanto, podemos dizer que, no<br />
romance gráfico, uma metáfora visual interliga duas idéias diferentes de<br />
perda: o fato de Quinn se sentir perdido em Nova Iorque (representado<br />
pelo labirinto) e o fato de ter perdido a sua identidade (representado pela<br />
impressão digital).<br />
Fig. 2 – A metáfora do labirinto (KARASIK & MAZZUCCHELLI, 1994, p. 4).<br />
Mais tarde, quando Quinn perde Stillman de vista e já não há mais<br />
nenhuma pista a ser seguida, ele perde também a sua identidade como<br />
detetive. A metáfora do labirinto repete-se, mas desta vez ao contrário. A<br />
partir da imagem da digital de Quinn na janela, vemos o labirinto. No <strong>final</strong><br />
de um dos corredores deste, uma porta com um cadeado representa a<br />
impossibilidade de solução para o caso (KARASIK & MAZZUCCHELLI,<br />
1994, p. 85). É uma metáfora visual do fracasso de Quinn como detetive.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
150
Por fim, depois de falhar como detetive e passar vários meses<br />
vivendo nas ruas, Quinn acaba se tornando outra pessoa,<br />
surpreendentemente parecida com Stillman, o suspeito do caso que<br />
investigava. No romance gráfico, além da já mencionada semelhança do<br />
caderno vermelho, outra cena aproxima os dois personagens. Após<br />
perambular pela cidade, Stillman descansa no parque, deitado na grama.<br />
No <strong>final</strong> do romance gráfico, temos imagem semelhante de Quinn, deitado<br />
na grama do parque para descansar (Fig. 3).<br />
Fig. 3 – Stillman e Quinn (KARASIK & MAZZUCHELLI, 1994, p. 58 e 116).<br />
O motivo da dupla identidade também está presente em Auster.<br />
Tanto o filho falecido de Quinn quanto o filho do Professor Stillman<br />
chamam-se Peter. O filho de Paul Auster (tanto o do personagem quanto o<br />
do autor de “City of Glass”) chama-se Daniel. O primeiro nome de Quinn<br />
também é Daniel. Em um episódio em particular, a questão das identidades<br />
duplas encontra uma forma distinta nos quadrinhos. Ao visitar o personagem<br />
Paul Auster, Quinn conhece Daniel, filho de Auster. A princípio, o garoto<br />
guarda uma grande semelhança física com o filho falecido de Quinn. Mas,<br />
além disso, vemos que o filho de Auster segura um ioiô. Não há menção<br />
deste detalhe na novela de Auster. No romance gráfico, esse detalhe é<br />
relevante porque somos remetidos a uma passagem anterior no romance<br />
gráfico, onde o filho falecido de Quinn aparece em um retrato de família,<br />
segurando um ioiô. Neste sentido, podemos ver como o texto visual<br />
acrescenta significados à prosa de Auster, complicando o tema da<br />
duplicidade e chamando à nossa atenção os sentimentos de saudade da<br />
família e de vazio, que Quinn tenta preencher assumindo a vida de outra<br />
pessoa.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 151
3 A figura do detetive<br />
Nas narrativas detetivescas tradicionais, a cobrança de honorários<br />
pelo detetive é um hábito. No romance gráfico, isto é ilustrado de maneira<br />
interessante. No momento em que o pagamento é mencionado, Quinn se<br />
transforma em Max Work, o detetive criado por ele, sob o pseudônimo<br />
de William Wilson. Max Work é o típico protagonista das histórias de<br />
detetives tradicionais. Suas roupas – capa e chapéu – e seu rosto de linhas<br />
angulosas lembram o personagem Dick Tracy, de Chester Gould, estereótipo<br />
do detetive tradicional nas histórias em quadrinhos. A figura de Max Work<br />
nos quadrinhos é mais marcante do que na história de Auster. Por exemplo,<br />
enquanto Quinn ainda pondera sobre a possibilidade de atender ao telefone<br />
e se passar pelo detetive Paul Auster, em sua imaginação Work toma a<br />
iniciativa e aceita investigar o caso. Em outro momento, enquanto aguarda<br />
Stillman na estação de trem, Quinn busca inspiração em um verdadeiro<br />
detetive. Na novela, a inspiração vem de Paul Auster, o personagem-detetive:<br />
“Ele perambulava pela estação, então, como se estivesse dentro do corpo<br />
de Paul Auster, esperando Stillman aparecer” (AUSTER, 2004, p. 51) 17 . Porém,<br />
nos quadrinhos, a figura de Auster é substituída pela de Max Work (Fig. 4).<br />
Fig. 4 – Quinn como Max Work (KARASIK & MAZZUCCHELLI,<br />
1994, p. 47)<br />
Nas narrativas detetivescas metaficcionais como City of Glass, a<br />
realidade da narrativa mistura-se à ficção em diversos momentos. Em duas<br />
situações, os personagens da novela se tornam autores e dão vida a outros<br />
personagens ficcionais. Stillman cria o personagem Henry Dark para<br />
propagar as suas controversas idéias de uma nova língua; Quinn cria Max<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
152
Work que, em certas ocasiões, parece mais real do que seu próprio criador:<br />
“Há muito tempo, é claro, Quinn parou de pensar em si mesmo como real.<br />
Se ele vivesse agora no mundo, seria somente uma cópia, através da pessoa<br />
imaginária de Max Work. Seu detetive precisava ser real. A natureza dos<br />
livros exigia isso” (AUSTER, 2004, p. 9) 18 .<br />
Madeleine Sorapure (1995) explica que, em “City of Glass”, há<br />
uma busca frustrada do detetive por conhecimento autoral (p. 72). Essa<br />
busca é ainda mais frustrante para o leitor que, ao <strong>final</strong> da história, percebe<br />
que não há autor e não há conhecimento autoral em que possa confiar: O<br />
narrador da história permanece anônimo até o <strong>final</strong>, quando <strong>final</strong>mente se<br />
revela, dizendo que sabe apenas parte da história, a parte escrita por Quinn<br />
no caderno vermelho. Da mesma forma, não há como localizar os autores<br />
ficcionais: Quinn desaparece quando as páginas do caderno acabam e<br />
Stillman faz o check-out de um hotel e também desaparece. Lembrando o<br />
autor Barthesiano, no mundo pós-moderno de “City of Glass”, há várias<br />
figuras autorais, mas todas morrem ou desaparecem no <strong>final</strong>.<br />
Ao <strong>final</strong> da narrativa, é evidente que o “real” e o ficcional se misturam<br />
na cabeça de Quinn, debilitado por permanecer durante vários meses nas<br />
ruas, em busca do Professor Stillman. Por várias vezes, o protagonista se<br />
questiona se o que estava acontecendo era real. Ao <strong>final</strong> da investigação,<br />
diante da não-solução do mistério, Quinn rememora seus passos,<br />
procurando falhas em seu método e questionando a própria sanidade.<br />
Stefano Tani explica que, em narrativas metaficcionais, “o confronto não é<br />
mais entre um detetive e um assassino, mas entre o detetive e a realidade, ou<br />
entre a mente do detetive e seu senso de identidade, o que está<br />
desmoronando, entre o detetive e o ‘assassino’ em si mesmo” (citado em<br />
SORAPURE, 2004, p. 76) 19 . Assim, uma vez que o protagonista é pouco<br />
confiável, não sabemos se os eventos da narrativa realmente aconteceram<br />
ou se foram um produto de sua imaginação.<br />
Além disso, tal como em Marco Polo e Robinson Crusoé, o narrador<br />
de “City of Glass” clama pela fidelidade e veracidade dos fatos. No entanto,<br />
é preciso lembrar que o narrador é, antes de tudo, um leitor que vai conferir<br />
sua própria interpretação à história do caderno vermelho, conforme escrita<br />
por Quinn. É ele(a) quem vai projetar sentido e organizar o texto. Tornamonos,<br />
portanto, leitores de segunda-mão da história de Quinn.<br />
No romance gráfico, à medida que a narrativa se aproxima do<br />
<strong>final</strong>, o desenho se torna mais primário, quase um rascunho, como se Quinn<br />
tivesse a visão embaçada ou como se tivesse perdido o foco no caso<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 153
misterioso. Nesse momento, o narrador intervém tanto na porção verbal<br />
quanto na visual do texto: a imagem de uma máquina de escrever e letras<br />
como as de uma máquina de escrever revelam o narrador por detrás da<br />
história, no exato momento em que Quinn “começava a perder seu controle”<br />
(KARASIK AND MAZZUCCHELLI, 1994, p. 107) 20 . Nas últimas páginas,<br />
os quadrinhos se soltam da grade três-por-três e se transformam em páginas<br />
individuais, que flutuam e se vão como se levadas por um redemoinho.<br />
Essas páginas individuais não possuem imagens, somente palavras escritas<br />
com a fonte comics sans. A última abandona completamente essas duas<br />
convenções de quadrinhos: a página dividida em quadros é substituída por<br />
uma página em branco, onde as imagens e o texto são colocados de maneira<br />
solta, e a fonte comic sans é substituída por um texto escrito com letras como<br />
as de uma máquina de escrever.<br />
Considerações finais<br />
No processo de transposição de um sistema de signos para outro<br />
ou mesmo de uma mídia para outra, é bastante comum que se obedeça à<br />
hierarquia da primazia, em que a primeira obra é mais apreciada. Isso acontece<br />
porque o processo de transposição geralmente ocorre da mídia menos<br />
popular para a mais popular como, por exemplo, na transposição de<br />
romances para o cinema e deste para jogos de vídeo game. Nas<br />
transposições, é também comum que haja uma preferência da palavra sobre<br />
a imagem. A primeira é sempre considerada mais complexa e subjetiva.<br />
Em qualquer caso de transposição, tende-se a cobrar fidelidade da<br />
obra transposta à obra que lhe serviu de inspiração. Entretanto, conforme<br />
as mais recentes críticas sobre adaptação apontam, ainda que a proximidade<br />
entre o texto-fonte e o texto-alvo seja necessária para que o leitor/<br />
espectador/jogador reconheça a transposição como tal, as modificações<br />
são inevitáveis, já que as adaptações sempre estarão sujeitas ao contexto em<br />
que estão inseridas, sejam esses midiáticos ou culturais.<br />
Quando transpuseram “City of Glass”, David Mazzucchelli e Paul<br />
Karasik tiveram de lidar com as cobranças típicas feitas às transposições.<br />
Tais cobranças, no entanto, certamente foram agravadas pelo fato de que<br />
as histórias em quadrinhos sempre foram consideradas literatura infantojuvenil,<br />
de fácil interpretação. Este artigo procurou mostrar a importância<br />
de considerarmos as possibilidades e restrições de cada mídia. Para isso,<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
154
utilizamos uma abordagem que buscou ressaltar positivamente as diferenças<br />
entre a prosa de Auster e o romance gráfico. Ao analisarmos a maneira<br />
como cada mídia aborda as convenções do gênero das tradicionais histórias<br />
de detetives, concluímos que ambas mencionam o método de investigação,<br />
as pistas e os personagens típicos, mas tratam essas convenções de maneiras<br />
diferentes em cada obra. Em relação ao modo de utilização das imagens<br />
nos quadrinhos, observamos como os elementos visuais acrescentam<br />
significados e subtextos à narrativa de Auster. Desta forma, podemos dizer<br />
que cada obra proporciona ao leitor experiências distintas, mas igualmente<br />
interessantes e ricas.<br />
Notas<br />
1 Esclareço que, enquanto “City of Glass” (entre aspas) se refere a uma das novelas<br />
que compõem o livro The New York Trilogy, da autoria de Paul Auster, o romance<br />
gráfico Paul Auster’s City of Glass será referido neste artigo como City of Glass (em<br />
itálico).<br />
2 De acordo com Martha Kuhlman, em “The Poetics of the Page: City of Glass, the<br />
Graphic Novel”, 2004, s/n.<br />
3 Neste artigo, todas as traduções são minhas, exceto quando explicitado. Minha<br />
tradução de “to be second is not to be secondary or inferior”.<br />
4 Conforme explica Irina O. Rajewsky, transposição de mídia é “a transformação de<br />
um dado produto midiático (um texto, um filme, etc.) ou de seu substrato em outra<br />
mídia”. Nesta categoria, “o texto, filme, etc. original, é a ‘fonte’ do recém-formado<br />
produto midiático (2005, p. 51). As outras duas categorias da intermidialidade são:<br />
combinação de mídias e referência intermidiática.<br />
5 Todas as referências a esta obra serão documentadas no corpo do trabalho apenas<br />
com o número da página.Versão em inglês:“Much later, when he was able to think<br />
about the things that happened to him, he would conclude that nothing was real<br />
except chance. (…) Whether it might have turned out differently, or whether it was all<br />
predetermined with the first word that came from the stranger’s mouth, is not the<br />
question”.<br />
6 Versão em inglês: “For a second Quinn thought it was an illusion, a kind of aura<br />
thrown off by the electromagnetic currents in Stillman’s body. (... ) There was nothing<br />
he could do now that would not be a mistake. Whatever choice he made – and he had<br />
to make a choice – would be arbitrary, a submission to chance”.<br />
7 Versão em inglês: “[i]n that way, perhaps, things might not get out of control”.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 155
8 Versão em inglês: “It was all a question of method. If the object was to understand<br />
Stillman, to get to know him well enough to be able to anticipate what he would do<br />
next, Quinn had failed”.<br />
9 Versão em inglês: “He had always imagined that the key to good detective work was<br />
a close observation of details. (…) But after struggling to take in all these surface<br />
effects, Quinn felt no closer to Stillman than when he first started following him”.<br />
10 Versão em inglês: “(…) this is not the face of a madman. Or is this not a legitimate<br />
statement? To my eyes, at least, it seems benign, if not downright pleasant”.<br />
11 Versão em inglês: “Little Peter. Is it necessary for me to imagine it, or can I accept it<br />
on faith?”<br />
12 Versão em inglês: “And yet: why do I feel she is not to be trusted?”<br />
13 Versão em inglês: “Quinn was no longer part of him that could write books, and<br />
although in many ways Quinn continued to exist, he no longer existed for anyone<br />
but himself ”.<br />
14 Versão em inglês: “To remember what it feels like to wear other people’s clothes.<br />
(…) All I can say is this: listen to me. My name is Paul Auster. That is not my real<br />
name”.<br />
15 Versão em inglês: “tend to represent the unknown, unresolved or problematic in<br />
terms of something more familiar and more easily imaginable”.<br />
16 Versão em inglês: “[l]ost, not only in the city, but within himself as well”.<br />
17 Versão em inglês: “He wandered through the station, then, as if inside the body of<br />
Paul Auster, waiting for Stillman to appear”.<br />
18 Versão em inglês: “He had, of course, long ago stopped thinking of himself as<br />
real. If he lived now in the world at all, it was only at one remove, through the<br />
imaginary person of Max Work. His detective necessarily had to be real. The nature of<br />
the books demanded it”.<br />
19 Versão em inglês: “the confrontation is no longer between a detective and a murderer,<br />
but between the detective and reality, or between the detective’s mind and his sense<br />
of identity, which is falling apart, between the detective and the “murderer” in his<br />
own self ”.<br />
20 Versão em inglês: “began to lose his grip”.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
156
REFERÊNCIAS<br />
AUSTER, P. City of Glass. The New York Trilogy. London: Faber and Faber, 2004, p.<br />
1-158.<br />
EL REFAIE, E. Understanding visual metaphor: the example of newspaper cartoons.<br />
Visual Communication, v. 2, p. 75–95, 2003. Disponível em: http://vcj.sagepub.com/<br />
cgi/content/abstract/2/1/75. Acesso em: 18 ago 2009.<br />
HUTCHEON, L. A Theory of Adaptation. New York and London: Routledge, 2006.<br />
RAJEWSKY, I. O. Intermediality, intertextuality, and remediation. A literary<br />
perspective on intermediality. Intermédialités: histoire et théorie des arts, des lettres et<br />
des techniques / Intermedialities: history and theory of the arts, literature and techniques,<br />
n. 6, p. 43-64, 2005.<br />
KARASIK, P., MAZZUCCHELLI, D. Paul Auster’s City of Glass. New York: Avon<br />
Books, 1994.<br />
MAZZUCCHELLI, David. David Mazzucchelli. Entrevista concedida a Christopher<br />
Brayshaw. Comics Journal, n. 194 p. 40–84, 1997.<br />
KUHLMAN, M. The Poetics of the Page: City of Glass, the graphic novel. Indy<br />
Magazine, Spring 2004. Disponível em: . Acesso em: 29 dez 2008.<br />
SORAPURE, M. The Detective and the Author: City of Glass. BARONE, D. (Ed.)<br />
Beyond the Red Notebook: Essays on Paul Auster. Philadelphia: University of Pennsylvania<br />
Press, 1995.<br />
Camila Augusta Pires de Figueiredo<br />
Mestre em Literatura Inglesa pela UFMG.<br />
Thaïs Flores Nogueira Diniz<br />
Pós-doutora pela University of London. Doutora pela UFMG e Indiana University<br />
at Bloomington. Professora Associada da FALE/UFMG.<br />
Artigo recebido em 08 de agosto de 2011.<br />
Aceito em 03 de outubro de 2011.<br />
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<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 157
TEXTOS INTERMIDIÁTICOS NA LITERATURA<br />
INFANTO-JUVENIL DE NEIL GAIMAN<br />
E DAVE MCKEAN<br />
Resumo: O presente estudo visa analisar<br />
duas obras infanto-juvenis de Neil<br />
Gaiman e do ilustrador e artista gráfico,<br />
Dave McKean. As obras são Os lobos<br />
dentro das paredes e Cabelo doido, cujas<br />
características são os textos<br />
intermidiáticos e mistos que fundem<br />
texto escrito e imagem. Em ambas as<br />
obras, as palavras fazem parte das<br />
imagens, se complementando, de forma<br />
a criar uma narrativa visual que explora o<br />
uso da ilustração, da colagem e da<br />
tipografia. Para trabalhar os conceitos de<br />
intermidialidade serão utlizadas as<br />
perspectivas teóricas de Claus Clüver e Leo<br />
Hoek sobre o texto misto (mixed media) e<br />
texto intermidiático, por aprofundarem<br />
as definições sobre a relação texto e<br />
imagem das histórias em quadrinhos e<br />
da literatura infanto-juvenil.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Chantal Herskovic<br />
chantalh.geo@gmail.com<br />
Abstract: This paper analyses two<br />
juvenile literature books written by Neil<br />
Gaiman and illustrated by Dave McKean,<br />
entitled The Wolves in the Walls and Crazy<br />
Hair. Both books present intermediatic<br />
and mixed texts in which the fusion of<br />
texts and images constitutes a basic<br />
characteristic. Text and image complement<br />
each other as the words are an integral<br />
part of the images, creating a visual<br />
narrative that uses illustration, collage and<br />
typography combined. Furthermore, the<br />
theoretical perspectives of Claus Clüver<br />
and Leo Hoek will be considered<br />
throughout the paper, as they have<br />
discussed key concepts concerning the<br />
relationship between text and image in<br />
both comics and juvenile literature, such<br />
as intermediatic and mixed media texts.<br />
Palavras-chave: Literatura infanto-juvenil. Intermidialidade. Livro ilustrado.<br />
Ilustração. Tipografia.<br />
Key words: Juvenile literature. Intermediality. Picture book. Illustration. Typography.<br />
158
Introdução<br />
O presente estudo visa refletir sobre textos intermidiáticos de duas<br />
obras do escritor Neil Gaiman e do ilustrador e artista gráfico Dave McKean.<br />
Conhecidos por seus trabalhos em histórias em quadrinhos voltadas para<br />
um público jovem e adulto, os autores criaram alguns títulos voltados para<br />
o universo infanto-juvenil, com imagens angulosas, cores contrastantes e<br />
fusão de textos com imagens.<br />
Na literatura infanto-juvenil do início do século XXI, há uma<br />
profusão de títulos para diversas idades e para diversos dispositivos. Houve<br />
uma grande evolução desde os livros impressos com poucas ilustrações<br />
feitas em bico de pena e aquarelas, para os livros infanto-juvenis da<br />
contemporaneidade. Enquanto na época de Lewis Carroll, na Inglaterra<br />
vitoriana, as ilustrações, em geral em preto e branco, acompanhavam o<br />
texto – com o advento das evoluções técnicas de produção gráfica surgiram<br />
livros sofisticados para crianças que se abrem em esculturas de papel de<br />
castelos e dinossauros, em pop ups de monstros e navios, de acordo com as<br />
histórias. Em alguns casos, o texto funde-se com as imagens – que são<br />
criadas com as mais variadas técnicas e estilos artísticos e, com o surgimento<br />
dos livros digitais e dos tablets, há livros com sons, movimentos e animações.<br />
O livro Alice no País das Maravilhas, adaptado em formato de aplicativo e<br />
lançado em 2011 para o tablet da Apple, o Ipad 1 , é cheio de novidades.<br />
Mesmo composto com as ilustrações originais de John Tenniel, elas foram<br />
coloridas e adaptadas para terem movimentos e sons, inclusive relacionadas<br />
à posição física do suporte: se ele balança, pílulas caem ao virar de um lado<br />
para o outro, Alice também se transforma, aumentando e diminuindo em<br />
determinada página da história.<br />
Há livros sobre os mais diversos temas, como os de aventuras<br />
marítimas, por exemplo, que incluem diversos dados sobre navios, bússolas<br />
e mapas, até livros que possuem cheiros. As imagens são muito exploradas<br />
na literatura infanto-juvenil, assim como os textos, sendo apreciados por<br />
seu estilo, pela narrativa sofisticada e pela inovação. No mercado editorial,<br />
alguns títulos infantis são sucessos editoriais como as séries As aventuras do<br />
Capitão Cueca (1997), de Dav Pilkey, e Diário de um banana (2007), de Jeff<br />
Kinney. Editores, escritores, ilustradores, pais e educadores voltam sua<br />
atenção para a literatura infantil, de forma a trazer para as crianças um<br />
material de qualidade para o incentivo e o desenvolvimento do hábito da<br />
leitura, criando futuros leitores.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 159
Palavra e imagem<br />
A ligação entre palavra e imagem está presente na maioria dos<br />
livros infanto-juvenis e, em alguns casos, uma forma depende da outra<br />
para contar a história – o que revela a criação de textos intermidiáticos, em<br />
que um texto complementa o outro em mais de uma forma de combinação<br />
de mídias – sendo o texto escrito uma mídia e a imagem, a outra.<br />
Segundo Walter Benjamin (2002), o livro infantil entra no universo<br />
da criança por suas cores, imagens e trabalhos cuidadosos com a tipografia.<br />
A forma do livro ilustrado e o modo como a história é contada fazem<br />
parte do jogo em que a criança é participante:<br />
Nesse mundo permeável, adornado de cores, em que a cada passo as coisas<br />
mudam de lugar, a criança é recebida como participante. Fantasiada com<br />
todas as cores que capta lendo e contemplando, a criança se vê em meio a<br />
uma mascarada e participa dela. Lendo – pois se encontraram as palavras<br />
apropriadas a esse baile de máscaras, palavras que revolteiam confusamente<br />
no meio da brincadeira como sonoros flocos de neve. (p. 70)<br />
Alguns livros ilustrados integram as letras do texto junto com as<br />
imagens relacionadas: “De repente as palavras vestem seus disfarces e num<br />
piscar de olhos estão envolvidas em batalhas, cenas de amor e pancadarias.<br />
Assim, as crianças escrevem, mas assim elas também lêem seus textos”<br />
(BENJAMIN, 2002, p. 70). É o caso dos textos mistos e intermidiáticos<br />
que fundem palavras com imagens, transpondo-se em movimentos e<br />
emoções que criam uma brincadeira visual ao mesmo tempo que um texto<br />
escrito. Tratam-se de textos e linguagens visuais que estimulam o hábito da<br />
leitura.<br />
Os livros ilustrados, até o início do século XX, em geral,<br />
combinavam texto escrito e imagens, em que a imagem ilustrava o texto. A<br />
relação palavra e imagem é um dos aspectos da intermidialidade e nos<br />
livros ilustrados encontram-se presentes três tipos de textos: o texto<br />
multimídia, o misto e o intermidiático. Segundo Claus Clüver (2001), o<br />
texto multimídia é caracterizado por “combinações de textos separáveis e<br />
separadamente coerentes compostos em media diferentes” (p. 341). O texto<br />
misto, ou mixed media é aquele que “contém signos complexos em media<br />
diferentes que não alcançariam coerência ou auto-suficiência fora daquele<br />
contexto” (p. 8). E o texto intermidático ou “O texto intermídia recorre a<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
160
dois ou mais sistemas de signos e/ou media de uma forma tal que os<br />
aspectos visuais e/ou musicais, verbais, cinéticos e performativos dos seus<br />
signos se tornam inseparáveis” (p. 8).<br />
Muitos livros ilustrados ainda são textos multimídias, porém, há<br />
inúmeros outros títulos em que uma mídia complementa a outra, criando<br />
textos mistos. Na contemporaneidade, em que a imagem recebe um certo<br />
destaque, há diversas experiências de integração de texto com imagem,<br />
criando uma fusão, em que uma mídia faz parte da outra, tornando-se<br />
inseparáveis, ou seja, um texto intermidiático. Considerando-se que<br />
antigamente os livros eram feitos separando os textos das imagens devido<br />
ao seu processo de produção, em que se utilizavam impressões em chapas<br />
de cobre, litografias ou xilogravuras para as ilustrações, na<br />
contemporaneidade é possível integrar as ilustrações com os textos e também<br />
fotos, colagens, recortes e materiais especiais como transparências, tecidos,<br />
colas, envelopes, plásticos, dentre outros.<br />
Os objetos deste estudo são dois livros do escritor Neil Gaiman e<br />
do artista gráfico e ilustrador, Dave McKean – Os lobos dentro das paredes, de<br />
2003, e Cabelo doido, de 2009. Os livros inovam por suas imagens angulosas,<br />
a integração entre texto e imagem e cuidados com as tipografias utilizadas,<br />
assim como com o projeto gráfico das obras. Ambos os autores são<br />
conhecidos por seus trabalhos em histórias em quadrinhos, como a série<br />
Sandman, nos anos 1990, de Neil Gaiman, e outros trabalhos da dupla<br />
como Mr. Punch: a comédia trágica ou a tragédia cômica de Mr. Punch<br />
(1994), Violent Cases (1987) e Signal to Noise (1992). Neil Gaiman escreveu<br />
diversos livros, entre eles a obra infanto-juvenil, publicada em 2002, e<br />
adaptada para o cinema em 2009 – Coraline e o mundo secreto e, também,<br />
Stardust (1999) e Belas maldições (1990). Os autores são conhecidos por uma<br />
temática, para o público jovem adulto, de criaturas sinistras, assassinos,<br />
mistérios, ocultismo, feitiçaria e universos mágicos que permeiam suas<br />
histórias, criadas com um visual no estilo próprio de Dave McKean, que<br />
mistura desenhos, colagens, fotografias, pinturas e esculturas em várias<br />
sobreposições, texturas e tipografias especiais.<br />
Nos livros infanto-juvenis de Neil Gaiman, o autor traz um pouco<br />
do universo de seres sinistros, como é o caso de Coraline, em que explora o<br />
medo da criança de perder os pais. Ele explora também o inusitado e a<br />
fantasia, como em The Day I Swapped My Dad for Two Goldfish [O dia em que<br />
troquei meu pai por dois peixinhos dourados] (1996), no qual um menino<br />
troca seu pai por dois peixinhos dourados.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 161
No livro Os lobos dentro das paredes, apesar do toque de humor e<br />
divertimento que há nas situações e nos diálogos, ainda há um toque sinistro,<br />
pelo fato de surgirem lobos enormes saindo de dentro das paredes. Os<br />
lobos fazem parte do imaginário popular e estão presentes em várias<br />
histórias infantis, em geral, associados ao mal. Entre as mais conhecidas<br />
histórias com lobos está Chapeuzinho Vermelho, em que, na história original, o<br />
lobo devora Chapeuzinho Vermelho e sua avó. Porém, apesar dos lobos<br />
serem grandes e sinistros, na obra de Neil Gaiman, eles são também<br />
engraçados e bagunceiros: correm pela casa, dão uma festa, batem todos<br />
os recordes do videogame e fazem buracos nas roupas do armário para<br />
poderem passar suas caudas, comem direto dos potes de geleia e sujam as<br />
paredes.<br />
Na história, Lucy, a menina da família, diz escutar ruídos estranhos<br />
dentro das paredes e avisa toda a família, ou seja, seu pai, sua mãe e seu<br />
irmão, de que há lobos dentro das paredes. Mas ninguém acredita, cada um<br />
alega que no caso da existência de lobos dentro das paredes, se um dia eles<br />
saírem, estaria tudo acabado. E Lucy pergunta novamente sobre o que<br />
estaria acabado e eles reiteram que seria simplesmente “tudo”. Esse tipo de<br />
diálogo provoca humor dentro da situação inusitada e vira um jogo – algo<br />
pelo que o leitor pode esperar: o que será que está acabado? Ou como as<br />
coisas acabam se os lobos saírem de dentro das paredes e o que eles farão.<br />
Lucy conversa, então, com seu porquinho de pelúcia que é inspirado em<br />
fotografias e colagens do Porco Número 1 Especial e do dublê Porco<br />
Número 2 da coleção de porquinhos do filho de Dave McKean (GAIMAN,<br />
2006, p. 3). O porquinho é o único que acredita em Lucy, até que uma noite<br />
os lobos de fato saem de dentro das paredes. E como o leitor pode esperar,<br />
alguma coisa vai mudar, pois os personagens advertiram que estaria tudo<br />
acabado na ocasião do surgimento de lobos. Há, também, dentro da ideia<br />
da brincadeira do livro infantil, o efeito surpresa do virar das páginas.<br />
Quando Lucy diz que escutou ruídos no meio da noite, a forma como a<br />
tipografia do texto foi colocada em negrito, e em tamanhos diferentes,<br />
indica que algo irá acontecer e isso faz parte da brincadeira de passar as<br />
páginas do livro e ver qual é a surpresa (Fig. 1). A surpresa são os lobos que<br />
aparecem, invadindo toda a página seguinte e a próxima, em uma ilustração<br />
de página dupla, com olhos amarelos e bocas enormes (Fig. 2).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
162
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 1 – Lucy e seu porquinho de pelúcia<br />
Fonte: GAIMAN, 2006, p. 17.<br />
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 2 – Os lobos saem de dentro das paredes.<br />
Fonte: GAIMAN, 2006, p. 18-19.<br />
A posição do texto e dos diálogos, com diferentes tipografias sugerem<br />
movimento. Quando os lobos descem, escorregando pelo corrimão da<br />
escada, o texto também está inclinado, integrando-se com a imagem. As<br />
palavras “paredes” e “lobos” estão sempre em destaque e na mesma<br />
tipografia (Fig. 3). Os cuidados com a tipografia, e a sua relação com a<br />
imagem, transformam algumas páginas em textos mistos, pois, ainda é<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 163
possível, em parte, separar uma mídia da outra, porém, com perda de<br />
significado, por ambas se complementarem. E em outras páginas, estão os<br />
textos intermidiáticos que surgem fundidos nas imagens.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 3 – Os lobos sobem e descem as escadas.<br />
Fonte: GAIMAN, 2006, p. 36.<br />
Na sequência da história, a família é expulsa de casa pelos lobos e<br />
fica ao relento. Porém, o frio da noite os incentiva a voltar para dentro de<br />
casa e morar dentro das paredes. Na página (Fig. 3), os lobos estão em<br />
destaque, pois neles está concentrada a ação desse momento da história e a<br />
família está em segundo plano. Isso é mostrado visualmente através do uso<br />
da tipografia, em que uma frase aparece ao pé da página, como algo menos<br />
importante: “a família foi dormir dentro das paredes”. No meio da noite,<br />
a família acorda com ruídos e eis novamente o efeito surpresa de virar as<br />
páginas – no caso, as páginas ímpares – e encontrar uma ilustração de<br />
página dupla ocupando as duas páginas seguintes (Fig. 4): “Os lobos estavam<br />
dando uma festa” (GAIMAN, 2003, p. 36-37). A família fica indignada<br />
com a atitude dos lobos e a bagunça que fazem, pois comeram pipocas e<br />
as espalharam pelo chão, deixando-as grudarem em pedaços de torradas<br />
com geleia que ali derrubaram enquanto viam televisão, dentre muitas outras<br />
coisas como tocar a segunda melhor tuba do pai de Lucy (foi o lobo maior<br />
e mais gordo). Por causa dessa situação a família decide, então, sair de<br />
dentro das paredes. Mais uma vez o jogo aparece, porém, agora invertido<br />
(Fig. 4), e o lobo maior e mais gordo grita “E quando as pessoas saem de<br />
164
dentro das paredes – berrou o maior e mais gordo dos lobros, se livrando<br />
da tuba –, está tudo acabado” (GAIMAN, 2003, p. 44-45). Esse diálogo<br />
aparece dentro da boca do lobo, integrado com a imagem em um texto<br />
intermidiático.<br />
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 3 – Os lobos estavam dando uma festa.<br />
Fonte: GAIMAN, 2006, p. 36-37.<br />
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 4 – Lobos gritam.<br />
Fonte: GAIMAN, 2006, p. 44-45.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 165
Em outras páginas, há o uso de elementos próprios das histórias em<br />
quadrinhos como os balões e os requadros. Os autores criaram inúmeras<br />
obras dentro dessa linguagem e se apropriaram desses elementos,<br />
incorporando-os aos livros ilustrados, fundindo texto e imagem com<br />
sugestões de balões de fala. Uma vez caracterizada como forma de<br />
linguagem, convém pontuar o conceito de histórias em quadrinhos sugerido<br />
por Waldomiro Vergueiro (1998):<br />
Em termos conceituais, pode-se também afirmar que elas constituem um<br />
meio de comunicação de massa que agrega dois códigos distintos para a<br />
transmissão de uma mensagem: o lingüístico, presente nas palavras<br />
utilizadas nos elementos narrativos, na expressão dos diversos personagens<br />
e na representação dos diversos sons, e o pictórico, constituído pela<br />
representação de pessoas, objetos, meio ambiente, idéias abstratas e /ou<br />
esotéricas, etc. Além desses dois códigos, as histórias em quadrinhos<br />
desenvolveram também diversos elementos que lhes são hoje característicos,<br />
como o balão, as onomatopéias, as parábolas visuais, etc. (p. 120)<br />
Leo Hoek, em “La transpositions intersemiotique: Pour une<br />
classification pragmatique”, diz que as histórias em quadrinhos seriam um<br />
discurso misto, uma vez que utilizam duas mídias diferentes, texto escrito e<br />
imagem, e não separáveis fisicamente. Porém, os autores vão além do texto<br />
misto, criando textos intermidáticos com o entrelaçamento da palavra e da<br />
imagem, assim como dos balões e da escolha da tipografia.<br />
Nas páginas, os diálogos são mostrados em uma tipografia distinta<br />
da escolhida para o texto, porém, em alguns momentos há sugestões de<br />
balões em finos traços atrás do texto, indicando a fala do personagem. Em<br />
outras páginas, a história está dividida em requadros em uma narrativa<br />
visual e sequencial (Fig. 5). A tipogafia, o uso do negrito, e o tamanho da<br />
fonte indicam som e movimento na história, criando uma relação da palavra<br />
como imagem em um objeto intermidiático, destacando e ligando a ação<br />
do texto com o desenho dos personagens.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
166
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 5 – Sugestão de requadros.<br />
Fonte: GAIMAN, 2006, p. 27.<br />
O livro, portanto apresenta dois tipos de textos, o misto, ou mixed<br />
media, e o intermidiático, nas páginas em que entrelaça palavras e imagens, e<br />
ainda explora os recursos da linguagem dos quadrinhos como uso de<br />
requadros e de balões. Dave McKean inova na linguagem dos quadrinhos<br />
quando integra texto e imagem e faz o mesmo em seus trabalhos visuais<br />
nos livros ilustrados para crianças, fazendo da tipografia parte do jogo da<br />
narrativa visual, da arte sequencial e da história, que é transformada em<br />
uma experiência imagética.<br />
Outra obra infanto-juvenil de Neil Gaiman e Dave McKean que<br />
explora os textos mistos e intermidáticos é Cabelo doido, lançado no formato<br />
de livro ilustrado em 2009. Inspirado em um poema que havia, até então,<br />
sido publicado apenas em uma coletânea de áudio, em forma de CD em<br />
2004, com contações de histórias pelo próprio Neil Gaiman, o poema fez<br />
sucesso e acabou sendo transformado em livro. Para acompanhar o ritmo<br />
do poema de forma visual, e pela temática que é o cabelo doido do<br />
personagem, a tipografia, no caso, com serifa e em itálico, acompanha o<br />
que seria uma sugestão de movimento dos fios de cabelo (Figs. 6 e 7), junto<br />
com linhas, enquanto que a outra parte do texto aparece em uma outra<br />
tipografia e sem serifa.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 167
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 6 – Linhas e setas remetendo a balões de fala dos quadrinhos, sugerindo<br />
movimentos, uso de cores contrastantes e de diferentes tipografias.<br />
Fonte: GAIMAN, 2009, p. 4-5.<br />
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 7 – Linhas que remetem a fios de cabelo e setas que sugerem balões de fala da<br />
linguagem dos quadrinhos. A estampa da camiseta acompanha o movimento da<br />
personagem.<br />
Fonte: GAIMAN, 2009, p. 24-25.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
168
O poema é sobre a menina Bonnie que encontra um homem que<br />
tem um cabelo doido. E esse personagem começa a lhe contar tudo o que<br />
existe em seu cabelo em um mundo de fantasia, pois há tigres e caçadores,<br />
papagaios e gorilas, balões e navios piratas e polvos gigantescos que lá<br />
habitam, assim como tesouros perdidos e leões:<br />
No meu cabelo<br />
Gorilas saltitam,<br />
Tigres perseguem<br />
E preguiças cochilam.<br />
Bandos de leões<br />
Atentos aos inimigos<br />
No meu cabelo doido fazem seus abrigos. (GAIMAN, 2005. p. 12-13)<br />
Cada virar de páginas é um jogo de surpresas e expectativas de<br />
como será a página seguinte e a continuação da história, pois as imagens<br />
são chamativas e coloridas e há todo tipo de surpresas no cabelo doido. Há<br />
outras formas tipográficas especiais como, por exemplo, com a palavra<br />
“estrondo” na página 33, que é tremida e embaçada, sugerindo o movimento<br />
da própria ação. Na página 29, surgem olhos dentro da letra “d” e da letra<br />
“a”, da expressão “cabelo doido”, e logo abaixo há fios de cabelo que<br />
sugerem o esboço de um personagem para aqueles olhos. O texto das<br />
páginas acompanha o movimento das imagens, pois é inclinado e espiralado,<br />
como que indicando as exclamações e a aventura dos personagens, assim<br />
como riscos sublinhados, setas e fios embaraçados que se fundem com as<br />
palavras. A estampa da camiseta de Bonnie também interage com os<br />
acontecimentos e se transforma de círculo, para forma estrelada, depois<br />
para pássaro e enfim, para um urso azul, que remete a um outro urso azul<br />
idêntico, que moraria no cabelo doido e que, certa vez, devorou um pente.<br />
À medida que Bonnie é atraída pela narrativa do cabelo doido, ela se deixa<br />
conquistar e a forma da camiseta muda, indicando uma afinidade maior<br />
com os acontecimentos mirabolantes. Por fim, depois de tentar colocar<br />
ordem no cabelo doido, lavando e escovando-o, Bonnie é puxada para<br />
dentro dele e lá acaba por se divertir, ensinando os leões a rimar, costurando<br />
coletes dos piratas, cavando e encontrando tesouros, dentre outras coisas.<br />
Segundo a história, ela fica escondida com o urso – por isso a imagem dele<br />
em sua camiseta na última página – e lá, ela viveria feliz e protegida.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 169
O próprio título da obra, aparece em uma tipografia especial, criada<br />
com o que seriam fios de cabelo, como se os cabelos cortados tomassem<br />
a forma das letras. Além do título trabalhado, o nome dos autores aparecem<br />
em linhas que sugerem um fio apenas, ocupando as duas páginas do título.<br />
Trata-se de um texto intermidiático, pois as letras também são imagens<br />
(Fig. 8).<br />
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 8 – Tipografia remetendo a fios de cabelo.<br />
Fonte: GAIMAN, 2009, p. 4-5.<br />
As imagens dos personagens e dos cenários, na obra, são<br />
compostos por desenhos angulosos com pinturas, colagens, fotografias e<br />
texturas trabalhadas em cores contrastantes (Fig. 9). Junto aos desenhos, o<br />
texto é integrado em voltas e redemoinhos, com linhas que aparentam fios<br />
de cabelo e formas que seriam partes de balões de histórias em quadrinhos,<br />
sugerindo o diálogo entre os personagens e movimentos. As tipografias se<br />
misturam de acordo com as palavras, a história e a ação, transformando-se<br />
em texto com serifa e em itálico e texto sem serifa, em outra família<br />
tipográfica, porém, se complementando. Em algumas páginas, os textos<br />
também se transformam em linhas e setas indicando a fala dos personagens.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
170
REPRODUÇÃO / HARPER COLLINS<br />
Fig. 9 – Tipografia integrada com imagem que explora texturas,<br />
fotografias e formas angulosas.<br />
Fonte: GAIMAN, 2009, p. 22-23.<br />
A ideia do poema surgiu de uma história que Neil Gaiman fez<br />
para sua filha, que um dia o chamou de Mr. Crazy Hair (senhor cabelo<br />
doido), por causa de seu cabelo despenteado. Os autores aproximam um<br />
pouco de sua intimidade em suas histórias como no livro Os lobos dentro das<br />
paredes, em que há a presença dos porquinhos de pelúcia do filho de Dave<br />
McKean.<br />
Considerações finais<br />
As obras tratam de textos mistos e intermidiáticos devido à<br />
integração texto e imagem e, também, sua fusão. Uma forma complementa<br />
a outra para desenvolver a narrativa visual e não é possível separá-las<br />
fisicamente. Explorando a linguagem das histórias em quadrinhos e o uso<br />
das letras como imagens em textos intermidiáticos, e a integração imagem<br />
e texto em formas coloridas que misturam fotos, colagens e desenhos em<br />
bicos de pena, os autores inovam, indo além dos livros ilustrados com<br />
histórias e imagens suaves e desenhos arredondados. Eles exploram a fantasia<br />
e o inusitado, revelando contrastes através das imagens cheias de texturas,<br />
fotografias, colagens e cores chamativas, e também integrando tipografias<br />
que sugerem movimentos e ações.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 171
Além de trabalhar as imagens e as palavras, integrando-as em ações<br />
e diálogos, com o uso de alguns elementos da linguagem dos quadrinhos, é<br />
criada uma narrativa dinâmica com uma estética interessante que sugere<br />
formas de balões de fala e setas, assim como requadros. Outros cuidados<br />
são as posições das palavras, das imagens e os momentos surpresa nas<br />
ações das histórias, de modo a criar o efeito surpresa ao virar as páginas,<br />
construindo, então, um jogo, do qual a criança participa, pois cabe a ela<br />
virar a página e entrar na aventura e ver o que acontecerá a seguir.<br />
As duas obras são livros ilustrados que fundem palavra e imagem,<br />
porém, transformando tipografias em imagens, além de incorporarem<br />
elementos próprios de outras formas como quadrinhos e colagens. Enquanto<br />
no passado os livros ilustrados eram textos com imagens, e as imagens<br />
apenas acompanhavam os textos, na contemporaneidade, os textos mistos<br />
e intermidiáticos fazem parte da literatura infanto-juvenil, criando<br />
justaposições, misturas e fusões entre mídias. Neil Gaiman e Dave McKean,<br />
exploram os recursos da tipografia e das imagens para contar suas histórias<br />
de modo interessante e divertido, em que palavras ganham vida e imagens<br />
complexas mostram seus personagens e mundos fantásticos, de modo a<br />
incentivar o hábito da leitura e a atenção pelo objeto livro.<br />
Nota<br />
1 Demonstração do livro. Disponível em: <br />
REFERÊNCIAS<br />
BENJAMIN, Walter. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Editora<br />
34 / Duas Cidades, 2002.<br />
CLÜVER, Claus. Estudos Interartes: introdução crítica.. In: BUESCU, Helena et al.<br />
(orgs.). Floresta encantada: novos caminhos da literatura comparada. Lisboa: Dom<br />
Quixote, 2001, p. 333-362.<br />
______. Estudos interartes: conceitos, termos, objetivos. Literatura e sociedade. São<br />
Paulo: USP/FFLCH, 1997, v. 2, p. 37-55.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
172
GAIMAN, Neil ; MCKEAN, Dave. The wolves in the walls. New York: Harper<br />
Collins, 2006.<br />
______. Os lobos dentro das paredes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.<br />
______. Crazy hair. New York: HarperCollins, 2009.<br />
______. Cabelo doido. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.<br />
HOEK, Leo H. La Transposition intersémiotique: pour une classification<br />
pragmatique. In: HOEK, Leo; MEERHOFF, Kees (Ed.). Rhétorique et image: texts<br />
en homage à A. Kibédi Varga. Amsterdam: GA; Atlanta: Rodopi, 1995. p. 65-80.<br />
KINNEY, Jeff. Diário de um banana: não é fácil ser criança. São Paulo: Vergana & Riba,<br />
2008.<br />
MEERHOFF, Kees (ed.). Rhétorique et image: textes en homage à A. Kibédi Varga.<br />
Amsterdam GA; Atlanta: Rodopi, 1995, p. 65-80.<br />
PILKEY, Dav. As aventuras do capitão cueca. São Paulo: Cosac Naif, 2001.<br />
Chantal HERSKOVIC<br />
Mestre em Artes Visuais – Escola de Belas Artes – Universidade Federal de Minas<br />
Gerais – UFMG. Especialista em Comunicação: novas tecnologias e hipermídia pelo<br />
Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH. Designer gráfica e ilustradora –<br />
Jornal Estado de Minas, Editora Leitura e Editora Dimensão. Professora de linguagem<br />
dos quadrinhos – Fundação Municipal de Cultura e de Design editorial e Ilustração<br />
gráfica – Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH.<br />
Artigo recebido em 05 de setembro de 2011.<br />
Aceito em 03 de outubro de 2011.<br />
Voltar para o Sumário<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 173
ALICE IN SUNDERLAND:<br />
A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS EM REVISTA<br />
Resumo: O presente estudo visa<br />
demonstrar como a linguagem das<br />
histórias em quadrinhos mudou<br />
desde seus precursores até a<br />
contemporaneidade, a partir da<br />
análise, através dos conceitos da<br />
intermidialidade e da intertextualidade,<br />
da obra Alice in Sunderland,<br />
de Bryan Talbot. O autor se inspira<br />
na vida e obra de Lewis Carroll e<br />
em fatos e histórias da cidade de<br />
Sunderland, trabalhando várias<br />
referências intertextuais e intermidiáticas.<br />
Talbot apropria-se também<br />
de imagens e ilustrações, em<br />
transposições intersemióticas, fusões<br />
e sobreposições, explorando a composição<br />
das páginas e a linguagem<br />
dos quadrinhos, de modo a criar uma<br />
obra contemporânea.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Chantal Herskovic<br />
chantalh.geo@gmail.com<br />
Akemi Ishihara Alessi<br />
akemi.i.a@gmail.com<br />
Abstract: This study intends to<br />
discuss the development of language<br />
in comics, which has changed since<br />
the inception of the genre, through<br />
the analysis of Alice in Sunderland, by<br />
Bryan Talbot. The author was<br />
inspired both by Lewis Carroll’s life<br />
and work, and by facts and stories<br />
relating to the city of Sunderland,<br />
working with several intertextual and<br />
intermedial references. Images and<br />
illustrations are incorporated in the<br />
book, such as intersemiotic transpositions,<br />
fusions and superpositions,<br />
exploring the composition of the<br />
pages and the language of comics,<br />
creating a contemporary work.<br />
Palavras-chave: História em quadrinhos. Linguagem. Intertextualidade.<br />
Intermidialidade. Literatura.<br />
Key words: Comics. Language. Intertextuality. Intermediality. Literature.<br />
174
Introdução<br />
Aceitas na contemporaneidade como produções inteligentes, as<br />
histórias em quadrinhos fazem parte dos currículos acadêmicos, e<br />
determinadas obras já foram adotadas por escolas e instituições públicas e<br />
particulares, ao contrário dos anos 1950, em que ainda eram consideradas<br />
manifestações da cultura popular e vistas de forma pejorativa, submetidas<br />
a selos especiais de aprovação como o Comic Code Authority. Nesse período,<br />
foi publicado e difundido o livro Seduction of the Innocent (1954), de Frederic<br />
Wertham, que relacionava as histórias em quadrinhos com a delinquência<br />
infanto-juvenil, o que acarretou um preconceito contra essa forma de<br />
linguagem que se estendeu durante alguns anos (SABIN, 1996, p. 68).<br />
Obras de conteúdo sofisticado e narrativa visual bem trabalhada,<br />
as histórias em quadrinhos são difundidas na mídia e algumas são, também,<br />
adaptadas para o cinema, como Persépolis. Outras fazem o papel de crítica à<br />
sociedade ou chamam atenção para determinadas questões, sociais e/ou<br />
históricas, como Maus, de Art Spiegelman, que aponta os horrores do<br />
holocausto e da guerra, ou as obras de Joe Sacco, consideradas como<br />
quadrinhos jornalísticos, como Palestina, uma nação ocupada e área de segurança<br />
Gorazde: a guerra na Bósnia Oriental, que também revela histórias e situações<br />
em áreas de conflito. Algumas obras tratam de biografias dos próprios<br />
artistas, como Fun Home, de Alison Bechdel, e outras, conteúdo mais<br />
fantástico, misturado com questões culturais e espirituais como O chinês<br />
americano, de Gene Luen Yang, e O gato do rabino, de Joan Sfarr. São diversos<br />
assuntos manifestados em formato de histórias em quadrinhos, tanto para<br />
o público infanto-juvenil quanto adulto.<br />
A profusão de títulos mostra um mercado desenvolvido e leitores<br />
habituados com imagens ligadas a textos. O surgimento da graphic novel em<br />
1978, com a obra de Will Eisner, Contrato com Deus, marcou uma etapa<br />
importante das histórias em quadrinhos como uma forma de literatura,<br />
que mostra mais possibilidades do que o espaço das tiras de jornais<br />
permitiria, ou mesmo, das revistas de quadrinhos, uma vez que surge em<br />
forma de livro. Surgem histórias com amplo conteúdo e narrativa sofisticada<br />
para um público leitor de histórias em quadrinhos ou familiarizado com o<br />
uso de imagens como parte de uma narrativa. Na Europa, há também a<br />
cultura dos álbuns de quadrinhos – com seu formato “álbum” específico e<br />
em geral, em cores – com um mercado editorial considerável. A linguagem<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 175
das histórias em quadrinhos, sua narrativa visual e sua apresentação, fazem<br />
uso de texto e imagem simultaneamente, de forma a se complementarem<br />
ou, até mesmo, se fundirem. Uma definição para o conceito de histórias<br />
em quadrinhos é feita por Waldomiro Vergueiro (1998):<br />
Em termos conceituais, pode-se também afirmar que elas constituem um<br />
meio de comunicação de massa que agrega dois códigos distintos para a<br />
transmissão de uma mensagem: o lingüístico, presente nas palavras utilizadas<br />
nos elementos narrativos, na expressão dos diversos personagens e na<br />
representação dos diversos sons, e o pictórico, constituído pela representação<br />
de pessoas, objetos, meio ambiente, idéias abstratas e /ou esotéricas, etc.<br />
Além desses dois códigos, as histórias em quadrinhos desenvolveram<br />
também diversos elementos que lhes são hoje característicos, como o balão,<br />
as onomatopéias, as parábolas visuais, etc. (p. 120)<br />
As histórias em quadrinhos, no início do século XXI, tornaram-se<br />
uma forma de literatura amplamente difundida, comercializada e, em alguns<br />
casos, até mesmo cultuada, com convenções próprias como a San Diego<br />
Comic Con (EUA) e o Festival international de la bande dessinée d’Angoulême (França),<br />
análises acadêmicas, listas de discussão, adaptações para o cinema, dentre<br />
inúmeras outras manifestações culturais, como fanzines e sites na internet<br />
de conteúdo relacionado.<br />
Este estudo pretende demonstrar, a partir da análise da obra Alice<br />
in Sunderland, de Bryan Talbot, como a estrutura da linguagem dos quadrinhos<br />
passou por modificações. A obra explora o uso de requadros e também<br />
sua ausência, cria páginas com fusões de diversos tipos de imagens, como<br />
desenhos, fotografias, colagens, páginas de livros e mapas. Trabalha também<br />
a sobreposição de painéis, o jogo intertextual e intermidiático de referências<br />
e, no caso, a transposição intersemiótica de elementos das obras de Lewis<br />
Carroll, inclusive das ilustrações originais do próprio autor e de John Tenniel,<br />
assim como das diversas capas, ilustrações e adaptações posteriores das<br />
obras Alice no país das maravilhas (1865) e Alice através do espelho (1871).<br />
Bryan Talbot desenvolve os elementos gráficos e verbais, traçando<br />
um breve panorama histórico tanto da mídia como da história de<br />
Sunderland e de Lewis Carroll através de uma narrativa gráfica. O autor<br />
também faz referência a produções anteriores de quadrinhos, nas quais a<br />
linguagem – até então consolidada em requadros bem demarcados, do<br />
mesmo tamanho e lado a lado, característica de uma época em que a<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
176
linguagem dos quadrinhos ainda estava em desenvolvimento –, evolui para<br />
a sobreposição de quadros e fusão de imagens e textos. As referências<br />
aparecem tanto como homenagens, quanto como sátiras ou relações sobre<br />
estilos próprios de outros autores, questões do processo criativo, desde o<br />
roteiro até a <strong>final</strong>ização da história, incluindo elementos do desenvolvimento<br />
da própria obra Alice in Sunderland, em forma de metalinguagem.<br />
Para aprofundar as questões sobre a linguagem dos quadrinhos é<br />
necessário uma breve introdução sobre sua história, assim como de algumas<br />
características próprias de sua linguagem. As histórias em quadrinhos,<br />
difundidas até este início de século, impressas em papel – revistas, livros ou<br />
jornais –, com desenhos e textos, surgiram no <strong>final</strong> do século XIX. Um dos<br />
precursores dessa mídia é Wilhelm Busch, criador de Juca e Chico (Max und<br />
Moritz), em 1865, que serviu de inspiração para a série Os sobrinhos do capitão<br />
(Katzenjammer Kids), de Rudolph Dirks, em 1897. Antes disso, em 1895,<br />
surgiu a série O menino amarelo (The Yellow Kid), de Richard F. Outcault que,<br />
segundo Álvaro de Moya é: “considerada a primeira história em quadrinhos<br />
continuada, com personagem semanal, aos domingos, em cores, no Sunday<br />
New York Journal” (MOYA, 1993, p. 17). Até então, havia caricaturas, charges<br />
e ilustrações, porém, sem personagens com histórias em série.<br />
Outra obra importante da história das histórias em quadrinhos é<br />
Little Nemo in Slumberland, de Winsor McCay. O autor publica nas páginas<br />
dominicais desenhos surrealistas. Mas nessa obra do início da década de<br />
1910, os balões ainda não estão totalmente consolidados na forma de traço<br />
bem definido que viria a se transformar ao longo dos anos, e acabam<br />
sendo contornos dos diálogos. Porém, nesse período, já existe uma grande<br />
preocupação estética em relação aos desenhos, aos requadros, ao uso das<br />
cores e composição da página. Mesmo em se tratando de um trabalho<br />
estético próprio do estilo do artista, já é o início do pensar sobre a forma<br />
da linguagem visual dos quadrinhos de um ponto de vista mais sofisticado<br />
e, no caso, surrealista.<br />
Desde 1865, tendo como base cronológica obras precursoras dos<br />
quadrinhos, muitas modificações ocorreram e algumas formas estruturais<br />
da linguagem se consolidaram até a década de 1930, como a narrativa<br />
sequencial, personagens de histórias seriadas, balões arredondados ou<br />
retangulares, legendas, onomatopeias, tipografias especiais, diversos tipos<br />
de requadros, dentre outras. A ligação texto e imagem, ao longo dos anos,<br />
à medida que os artistas estabeleciam o que seria a linguagem das histórias<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 177
em quadrinhos, tornava-se cada vez mais entrelaçada com palavras e imagens<br />
de forma a explorar a narrativa visual. Segundo Will Eisner, que desenvolveu<br />
o conceito da arte sequencial como forma de narrativa visual, a relação<br />
palavra e imagem deve ser feita com atenção, pois ambas devem se<br />
complementar: “Na arte seqüencial, as duas funções estão irrevogavelmente<br />
entrelaçadas. A arte seqüencial é a arte de urdir um tecido” (EISNER, 1989,<br />
p. 122). Eisner explorou e aplicou seus conceitos de inter-relação entre<br />
imagem e texto verbal, assim como adaptou a linguagem cinematográfica<br />
para os quadrinhos, sendo a série The Spirit (1940), a primeira na qual aplicou<br />
suas experiências intermidiáticas, que fundiam textos e imagens.<br />
Com a tecnologia digital, outras propostas surgem, como<br />
programas específicos para leituras de histórias em quadrinhos em formato<br />
digital, comunidades na internet para compartilhamento de arquivos – nem<br />
sempre respeitando direitos autorais –, e aplicativos para telefones celulares<br />
e tablets que permitem adquirir pelo aparelho, alguns títulos de quadrinhos.<br />
Ou seja, desde as histórias do <strong>final</strong> do século XIX, quando ainda não havia<br />
balões ou uma narrativa sequencial que entrelaçasse palavras e imagens,<br />
ocorreram mudanças significativas: os textos passaram de textos de<br />
justaposição – textos escritos com imagens que os ilustravam –, para textos<br />
mistos, que combinam palavras e imagens, e textos intermidiáticos, que<br />
entrelaçam palavras e imagens, de modo a contar uma história ou mesmo<br />
sugerir som e movimento.<br />
1 Relações intertextuais e intermidiáticas, o jogo das referências<br />
As histórias em quadrinhos são apresentadas como um texto<br />
misto. É importante expor aqui esses conceitos para compreender a relação<br />
entre as mídias e como Bryan Talbot explora textos mistos e intermidiáticos<br />
em sua obra. Claus Clüver exemplifica os textos misto e multimedia, usando<br />
o quadro de René Magritte, La trahison des images:<br />
Se definirmos um texto multimedia como conjunto de textos individualmente<br />
coerentes e separáveis em diferentes tipos de mídia; e um texto mixed-media<br />
[texto misto], como contendo sinais complexos de tipos distintos de mídia<br />
que não seriam coerentes ou auto-suficientes fora de um contexto. La trahison<br />
des images parece ficar no meio termo, porque as palavras e as imagens são<br />
claramente separadas, mas não podem ser removidas da animação sem<br />
mudar ou perder seu significado. (CLÜVER, 2000, p. 26)<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
178
Como o quadro de Magritte, analisado por Clüver, Bryan Talbot<br />
também explora as imagens de forma mista e multimídia, assim como<br />
intermídia. A obra Alice in Sunderland é uma história em quadrinhos<br />
contemporânea que explora a linguagem dos quadrinhos para contar uma<br />
história que não poderia ser feita de outra forma. Também considerada<br />
um romance gráfico, a experiência da fusão das mídias a caracteriza como<br />
um exemplo de textos intermidiáticos que não são separáveis fisicamente,<br />
ou como textos mistos, em que a menor alteração acarretaria em perda de<br />
significado.<br />
Outro aspecto que destaca a obra por sua sofisticação é o uso de<br />
elementos intertextuais. O autor, inspirado nos livros e na biografia de Lewis<br />
Carroll, assim como nas histórias da região da cidade de Sunderland, criou<br />
uma obra visual com vários níveis de leitura. O leitor precisa estar atento<br />
para as várias menções à vida e obra de Carroll, assim como às informações<br />
sobre manifestações culturais locais. O leitor que conhece as histórias das<br />
aventuras de Alice e outros fatos da vida do autor, provavelmente achará<br />
interessante a forma como o jogo de referências ocorre – jogo próprio de<br />
produções contemporâneas com várias citações de diferentes obras e autores.<br />
Segundo Umberto Eco, o jogo das referências não é percebido pelo leitor<br />
de primeiro nível, ou leitor ingênuo, que faz uma leitura mais superficial,<br />
mas sim, pelo leitor de segundo nível, ou seja, o leitor crítico, que percebe<br />
as referências presentes no texto.<br />
O primeiro usa a obra como um dispositivo semântico e é vítima das<br />
estratégias do autor que o conduz passo a passo ao longo de uma série de<br />
previsões e expectativas; o outro avalia a obra como produto estético e avalia<br />
as estratégias postas em ação pelo texto para construí-lo justamente como<br />
leitor de primeiro nível. O leitor de segundo nível é que se empolga com a<br />
serialidade da série e se empolga não tanto com o retorno do mesmo (que<br />
o leitor ingênuo acreditava ser outro), mas pela estratégia das variações, ou<br />
seja, pelo modo como o mesmo inicial é continuamente elaborado de modo<br />
a fazê-lo parecer diferente. (ECO, 1989, p. 129)<br />
O jogo das referências ocorre em forma de homenagens ou<br />
citações, mas também como paródias, explorando relações intertextuais e<br />
intermidiáticas. Apesar de não se tratar de um livro de humor, a obra é<br />
repleta de referências bem humoradas aos livros de Carroll, assim como<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 179
aos fatos da vida do escritor e também do ilustrador, criando diversos<br />
intertextos.<br />
A intertextualidade é vista da seguinte forma na<br />
contemporaneidade: “[...] todo texto é um mosaico de citações, todo texto<br />
é uma retomada de outros textos. Tal apropriação pode-se dar desde a<br />
simples vinculação a um gênero, até a retomada explícita de um determinado<br />
texto” (PAULINO; WALTY; CURY, 1995, p. 22). O que ocorre em Alice<br />
In Sunderland é um grande jogo intertextual. Em diversos momentos, o<br />
autor não apenas faz referência aos textos “originais”, mas também se<br />
apropria de Carroll, tanto da história, como das ilustrações de John Tenniel,<br />
o ilustrador dos livros da personagem Alice. As referências intertextuais<br />
inseridas na narrativa gráfica, dentre elas diversos elementos de outras obras<br />
como textos literários, ilustrações e quadrinhos, revelam uma história<br />
complexa e repleta de informações. Essa apropriação intertextual, no caso,<br />
é uma transposição intersemiótica em que imagens e textos são inseridos<br />
em uma nova obra.<br />
A transposição intersemiótica é uma das formas de intermidialidade<br />
que possibilita a apropriação de elementos de uma obra para a adaptação<br />
e transformação dos mesmos em outro texto, criando uma nova produção.<br />
Ou seja, ocorre a “interpretação de signos verbais por meio de signos nãoverbais”,<br />
ou ainda, como afirma Claus Clüver:<br />
[...] um texto que se aproxima do texto-fonte de ‘traduction intersémiotique’,<br />
como um caso especial de ‘tranposição intersémiotique’ que normalmente<br />
abrange itens mais autônomos. [...] o conceito de tradução intersemiótica<br />
soa melhor se restringido a textos (em qualquer sistema sígnico) que, em<br />
primeiro lugar, oferecem uma reapresentação relativamente ampla (mesmo<br />
que jamais completa) do texto-fonte composto num sistema sígnico<br />
diferente, numa forma apropriada, transmitindo certo sentido de estilo e<br />
técnica e incluindo equivalentes de figuras retóricas; e, em segundo lugar,<br />
que acrescentem relativamente poucos elementos, sem paralelo no textofonte.<br />
(CLÜVER, 1997, p. 42-43)<br />
Como exemplo dessas transposições há desenhos de Alice, capas<br />
dos livros, ilustrações de John Tenniel incorporadas em várias páginas da<br />
obra e, em alguns momentos, os desenhos de Tenniel estão entrelaçados<br />
aos de Bryan Talbot (Fig. 1). Em outros, os desenhos de Bryan Talbot são<br />
transformados, em parte, no estilo de Tenniel e ainda em outras páginas, o<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
180
texto de Carroll é transposto e ilustrado pelo autor (frases ou diálogos dos<br />
personagens), e o que surge é um amálgama de informações em vários<br />
níveis de significado. Apenas o leitor crítico é capaz de perceber as referências,<br />
ou mesmo, o modo de desenvolvimento da narrativa visual. Porém, o<br />
leitor ingênuo, devido à característica explicativa da obra em determinados<br />
trechos, também lerá a história, mas com uma experiência diversa da do<br />
leitor crítico.<br />
REPRODUÇÃO / JONATHAN CAPE<br />
Fig. 1 – Fusão de várias imagens, entre elas, ilustrações de John Tenniel.<br />
Fonte: TALBOT, 2007, p. 29.<br />
Todas as imagens têm relevância na obra de Bryan Talbot, nada é<br />
inserido ao acaso em uma obra visual que explora a narrativa gráfica e a<br />
arte sequencial. O livro Alice in Sunderland, com suas páginas repletas de<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 181
cartazes, fotos, textos, desenhos, cria um texto imagético no qual um objeto<br />
complementa o outro, mesmo que esteja no plano de fundo das páginas.<br />
Todas as imagens têm relação, seja para complementar os textos ou as<br />
imagens que surgem em primeiro plano. Segundo Roland Barthes: “Não<br />
há dúvida de que, na ordem da percepção, a imagem e a escrita, por<br />
exemplo, não solicitam o mesmo tipo de consciência; e a própria imagem<br />
propõe diversos modos de leitura (...)”, e ainda acrescenta: “A imagem, se<br />
transforma numa escrita, a partir do momento em que é significativa: como<br />
a escrita, ela exige uma lexis” (BARTHES, 2003, p. 200-201). O que, mais<br />
uma vez, remete a ideia de leitor modelo de Umberto Eco.<br />
O jogo intertextual e intermidiático das referências, próprio de<br />
produções contemporâneas, cria uma narrativa visual com detalhes para o<br />
leitor atento, que aprecia também os jogos narrativos da obra. Nesse caso<br />
específico, quando o autor cria quatro versões de si próprio ao apresentar<br />
a história como um espetáculo ou ao brincar com a linguagem dos<br />
quadrinhos em suas fusões visuais e intermidiáticas. Além das referências<br />
intertextuais, há também as referências metalinguísticas, em que o autor<br />
revela etapas da criação da própria obra e da produção da história em<br />
quadrinhos. Em alguns momentos, aparecem fotos de seu próprio estúdio<br />
e imagens dos rascunhos, do roteiro e da arte <strong>final</strong>, além dos comentários<br />
do autor sobre seu processo de criação.<br />
2 Por trás de Alice<br />
Como mencionado, a obra Alice in Sunderland, de Bryan Talbot, é<br />
um trabalho sofisticado de fusão de imagens, textos em um amálgama de<br />
fotografias, colagens, pinturas, cartazes, capas e ilustrações. Alguns requadros,<br />
como os conhecemos da linguagem própria dos quadrinhos ainda estão<br />
presentes em algumas páginas, porém, em outras, há uma grande fusão de<br />
informações. O texto aparece em balões e legendas, mas as informações<br />
dos cartazes, capas, placas e mapas (Fig. 2) também fazem parte desse<br />
texto. Não é possível separar os textos e as imagens, pois ambas se<br />
complementam em um processo intermídiatico.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
182
REPRODUÇÃO / JONATHAN CAPE<br />
Fig. 2 – Fusão de várias imagens como fotografias, placas, cartazes, mapas, textos,<br />
desenhos e balões de quadrinhos.<br />
Fonte: TALBOT, 2007, p. 16.<br />
Bryan Talbot utiliza como fonte de inspiração para sua obra, além<br />
dos livros de Lewis Carroll e sua biografia, a história da cidade de Sunderland<br />
e da região circundante, assim como seus personagens ilustres, que viveram<br />
ou por lá passaram, como escritores, atores, religiosos e artistas.<br />
Lewis Carroll é o pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson,<br />
inspirado em seu próprio nome, em um jogo com as iniciais e as letras. Em<br />
1851, Dodgson entrou para o Christ Church College em Oxford, iniciando<br />
uma relação com a universidade que duraria toda sua vida. Em 1856, Henry<br />
Liddell, o novo reitor chegou a Oxford com sua família – sua esposa e<br />
suas três filhas pequenas: Lorina, Edith e Alice. Dodgson se afeiçoou à<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 183
família e foi em uma tarde em que saiu para um piquenique com as crianças<br />
que criou a história de Alice e suas aventuras fantásticas. Convencido a<br />
escrever a história, entregou o manuscrito a uma editora e o livro foi<br />
publicado em 1865 com ilustrações de John Tenniel. Apreciador do humor<br />
nonsense e de jogos de lógica e matemática, o autor das aventuras de Alice,<br />
insere em suas obras, brincadeiras sobre formas, tempo e espelhos.<br />
A aventura de Alice começa quando ela segue o coelho branco<br />
para um buraco no chão e vai parar no país das maravilhas, um mundo<br />
fantástico com personagens extraordinários. Alice diminui, depois cresce,<br />
depois diminui novamente e, à medida que vai se aventurando no mundo<br />
mágico, descobre seus personagens e lugares.<br />
REPRODUÇÃO / JONATHAN CAPE<br />
Fig. 3 – O cartaz do espetáculo Alice in Sunderland que será apresentado no Sunderland<br />
Empire por Bryan Talbot.<br />
Fonte: TALBOT, 2007, p. 3.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
184
Na obra de Bryan Talbot, o personagem também se encontra em<br />
uma aventura, porém, dentro de um espetáculo. Ele se depara com o coelho<br />
branco, na verdade, dois coelhos, o desenhado por John Tenniel e outro –<br />
um homem mascarado de coelho branco – que é o próprio autor e<br />
apresentador do espetáculo Alice in Sunderland no Sunderland Empire. Assim<br />
como Alice se transforma e muda de forma, o personagem “apresentador”<br />
e autor também muda. No próprio cartaz (Fig. 3) que anuncia o espetáculo,<br />
no início da obra, há a informação de que ele é apresentado por Bryan<br />
Talbot que aparece como o “plebeu”, o “ator”, e o “peregrino” e há o<br />
quarto, aquele que escreve e desenha a obra. Bryan Talbot, o anfitrião dessa<br />
apresentação, tem como seu único público, além do leitor, ele próprio, o<br />
Bryan Talbot, “plebeu” como anuncia o cartaz – que entrava no teatro<br />
quando passa pelo coelho branco e lá dentro, no palco, encontra outro<br />
coelho branco. O coelho, que é o autor e ator Bryan Talbot com uma<br />
máscara, apresentará uma peça interpretada e narrada por mais um Bryan<br />
Talbot, o “peregrino” – que é o escritor, pesquisador e roteirista desse livro<br />
que está nas mãos do leitor. E um quarto Bryan Talbot surge depois,<br />
discutindo com seu personagem Bryan Talbot “apresentador” da peça.<br />
Cada Bryan Talbot tem uma forma diferente – o primeiro que entra no<br />
Sunderland Empire, o “plebeu”, é mais corpulento e mais jovem e é o<br />
único que usa o anel gravado com a letra “B”, anel que o próprio e,<br />
verdadeiro, Bryan Talbot sempre usa. O segundo, o “apresentador” com a<br />
máscara de coelho branco, e camisa de mangas bufantes, é o Bryan Talbot<br />
mais fantasioso, contador de histórias. O autor verdadeiro possui uma<br />
coleção dessas camisas antigas. O terceiro Bryan, o “peregrino”, está em<br />
seu estúdio, quando convida a “audiência” a conhecer Sunderland e fatos<br />
sobre Lewis Carroll e sobre a região. E o quarto Bryan é o próprio autor<br />
em desenhos e fotos aquareladas (Fig. 4) do artista em sua casa e em seu<br />
estúdio.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 185
REPRODUÇÃO / JONATHAN CAPE<br />
Fig. 4 – Bryan Talbot “apresentador”, o “plebeu” e o autor<br />
Fonte: TALBOT, 2007, p. 185.<br />
Em certo momento da história o Talbot que assiste ao espetáculo<br />
acaba adormecendo e acorda no mundo de Alice, com as ilustrações de<br />
John Tenniel e com os personagens de Lewis Carroll. O Talbot que sonha,<br />
encontra Humpty Dumpty que também está dormindo e, depois, aparecem<br />
os irmãos Tweedle-Dee e Tweedle-Dum.<br />
À medida que vai desenvolvendo a narrativa, o terceiro Talbot, o<br />
“peregrino”, tece comentários sobre suas atividades e suas publicações<br />
enquanto narra a história de Sunderland, das histórias em quadrinhos e de<br />
Lewis Carroll. Ele leva a “audiência”, ou o leitor, até o Reading Museum de<br />
Berkshire, o museu que exibe uma cópia da tapeçaria Bayeux, uma antiga<br />
obra de arte sequencial, pois conta uma história através de imagens, como<br />
as histórias em quadrinhos. Segundo o autor, seria a primeira história em<br />
quadrinhos inglesa. Ao longo do livro há referências a outras histórias em<br />
quadrinhos e sua forma de linguagem e narrativa visual, como quando<br />
exibe uma estátua de um projeto de residência artística que revela a produção<br />
da própria estátua – um pássaro estilizado de metal em três momentos de<br />
sua produção.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
186
Além das referências aos quadrinhos, Bryan Talbot argumenta que<br />
Alice no país das maravilhas e Alice através do espelho remetem à linguagem dos<br />
quadrinhos, em que as imagens complementam os textos, pois, as ilustrações<br />
de John Tenniel são únicas para ilustrar a obra de Carroll. Por exemplo, não<br />
há descrição do Chapeleiro Louco (Fig. 4) no texto, a única descrição que<br />
há, é a ilustração que acompanha o texto, portanto um depende do outro.<br />
O desenho de John Tenniel influenciou as obras posteriores e futuras<br />
adaptações das histórias de Alice.<br />
REPRODUÇÃO / JONATHAN CAPE<br />
Fig. 5 – Bryan Talbot peregrino dialogando com o “seu” Chapeleiro Louco adaptado<br />
das ilustrações de John Tenniel.<br />
Fonte: TALBOT, 2007, p. 57.<br />
O autor também argumenta como que as histórias em quadrinhos<br />
são mágicas e revela seu próprio conflito de escritor sobre construção de<br />
sua obra, quando confessa seu receio, de estar criando uma história em<br />
quadrinhos que não é propriamente uma “história” de ficção, mas de um<br />
conjunto de variedades em torno de fatos, histórias e imagens sobre a<br />
região de Sunderland e fatos relacionados a Lewis Carroll. Nesse momento,<br />
em uma referência, surge uma caricatura de Scott McCloud, chamado pelo<br />
artista de Venerable Scott McComics-Expert, remetendo a um ser divino envolto<br />
em luz, que alerta que as histórias em quadrinhos podem ser sobre qualquer<br />
coisa, estilo ou assunto – que o autor não deve confundir o gênero com a<br />
mídia. No caso, trata-se de uma paródia ao escritor do livro Desvendando os<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 187
quadrinhos (1993). O ser “divino” também acrescenta: “Vá em paz meu<br />
filho e não se esqueça de fazer um bom acordo de direitos autorais”<br />
(TALBOT, 2007, p. 188). Há um certo humor sobre a produção de<br />
quadrinhos e seu processo de criação; o autor brinca com a estrutura da<br />
linguagem dos quadrinhos saindo da página, pois no caso, ela seria o “palco”<br />
do Sunderland Empire e, em seguida, vai para os bastidores e começa a<br />
trabalhar em uma página de quadrinhos no estilo do belga Hergé, criador<br />
de Tintim (1929). Em outros momentos, há um intervalo, como em uma<br />
apresentação teatral e também histórias em quadrinhos incorporadas à obra,<br />
porém, em outros estilos, como de revistas de aventuras e textos satíricos.<br />
O autor explora a linguagem dos quadrinhos, utilizando sua estrutura<br />
de requadros, que são sobrepostos em painéis, fundos trabalhados, fusões<br />
e colagens de imagens diversas, de vários estilos, para contar, ou melhor,<br />
“apresentar” esse espetáculo de variedades, inovando com sua narrativa<br />
visual, em que as imagens complementam o texto, e em alguns momentos,<br />
estão entrelaçadas em cartazes, fotos e capas e páginas de livros e mapas.<br />
Considerações finais<br />
A obra Alice in Sunderland é feita de imagens entrelaçadas e textos,<br />
explorando a linguagem dos quadrinhos. Enquanto outras obras em<br />
quadrinhos deixam o fundo da página em branco ou em alguma cor neutra,<br />
nessa obra, todo o espaço é utilizado. São mapas, ilustrações, fotos, colagens<br />
que ocupam todo o espaço, em sobreposição de painéis e requadros ou<br />
em grandes fusões, criando uma grande obra visual. Nenhuma outra forma<br />
de mídia poderia contar essa história da mesma forma como foi feito por<br />
Bryan Talbot, como uma história em quadrinhos que funde várias<br />
informações para complementar seu texto e fazer parte dele. Nada passa<br />
despercebido, há uma variedade de informações de formas verbais e<br />
imagéticas. A linguagem dos quadrinhos evoluiu profundamente desde seus<br />
precursores e uma obra como Alice in Sunderland mostra essa evolução em<br />
um texto misto e intermídiatico com diversos personagens, jogos de<br />
narrativa, referências intertextuais, intermidiáticas e de metalinguagem. É<br />
uma obra contemporânea, sofisticada, que se presta a vários níveis de leitura.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
188
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Chantal HERSKOVIC<br />
Mestre em Artes Visuais – Escola de Belas Artes – Universidade Federal de Minas<br />
Gerais – UFMG. Especialista em Comunicação: novas tecnologias e hipermídia pelo<br />
Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH. Designer gráfica e ilustradora –<br />
Jornal Estado de Minas, Editora Leitura e Editora Dimensão. Professora de linguagem<br />
dos quadrinhos – Fundação Municipal de Cultura e de Design editorial e Ilustração<br />
gráfica – Centro Universitário de Belo Horizonte – UNI-BH.<br />
Akemi Ishihara ALESSI<br />
Especialista em Novas Tecnologias em Educação pelo Centro Universitário de Belo<br />
Horizonte – UNI – BH. Especialista em Gestão dos processos da Produção Gráfica<br />
pela FIEMG/Newton Paiva. Designer gráfica e professora de linguagens e design<br />
gráfico nas Faculdades Promove, Sete Lagoas e no Centro Universitário de Belo Horizonte<br />
– UNI-BH.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Artigo recebido em 05 de setembro de 2011.<br />
Aceito em 06 de novembro de 2011.<br />
Voltar para o Sumário<br />
190
Resumo: O presente trabalho se propõe<br />
a lançar um olhar sobre o texto digital de<br />
publicação na internet, objetivando<br />
abordar a poesia eletrônica, tendo em<br />
vista os processos de intermidialidade,<br />
hibridização de meios e linguagens.<br />
Partindo do princípio de que o e-texto 1 é<br />
mais que somente um gênero literário,<br />
assumindo também papel relevante<br />
como representante de uma nova prática<br />
cultural, será feita uma reflexão acerca da<br />
importância das mídias 2 na construção<br />
do imaginário poético eletrônico e na<br />
postura dos leitores frente a esses formatos<br />
textuais, buscando um entendimento dos<br />
elementos determinantes da poesia<br />
eletrônica no contexto cultural<br />
contemporâneo. Serão enfocados textos<br />
literários eletrônicos, a teoria da<br />
medialidade, o hibridismo e a cibercultura.<br />
LITERATURA E CIBERCULTURA:<br />
UM OLHAR SOBRE<br />
OS TEXTOS MULTIMIDIÁTICOS<br />
NA INTERNET<br />
Elaine Cristina Carvalho Duarte<br />
naneduarte@hotmail.com<br />
Simone Silveira de Alcântara<br />
enomisalcantara@gmail.com<br />
Abstract: The present work intends to<br />
reflect on the digital text published in<br />
the internet, aiming to examine electronic<br />
poetry, mainly as concerns the processes<br />
of intermediality, hybridization of media<br />
and languages. Starting from the<br />
principle that the e-text is more than just<br />
a literary genre, also assuming a relevant<br />
representative role in new cultural practice,<br />
the importance of media in the<br />
construction of the electronic poetic<br />
imaginary and the response of the<br />
readers facing these textual formats will<br />
be investigated, searching for an<br />
understanding of the determinant<br />
elements of electronic poetry in the<br />
contemporary cultural context. Electronic<br />
literary texts, the theory of mediality,<br />
hybridism and cyberculture will be<br />
focused.<br />
Palavras-chave: Internet. Ciberliteratura. Texto eletrônico. Mídia. Literatura digital.<br />
Key words: Internet. Cyberliterature. Eletronic text. Media. Digital literature.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 191
Introdução<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
www.caricartoons.com<br />
É inegável a importância da tecnologia na contemporaneidade que,<br />
em todas as suas formas, tornou-se uma extensão do homem. O acesso<br />
imediato à informação nos aproximou do mundo e tem nos proporcionado<br />
inúmeros benefícios. “Acessar, em tempo real, informações sobre quase<br />
tudo que existe no mundo e poder estabelecer contato direto com as fontes<br />
de de informação, representa uma drástica mudança de paradigma na<br />
sociedade humana” (VILLAÇA, 2006. p. 3). Se o mundo ganhou uma<br />
nova dimensão, a literatura, que é uma representação do homem,<br />
acompanhou essa mudança. A arte se faz com os meios de seu tempo, e<br />
nesse sentido as artes midiáticas são a expressão da criação artística atual<br />
exprimindo a sensibilidade e o conhecimento do homem do início do<br />
terceiro milênio, como afirma Arlindo Machado (2007, p. 10).<br />
Desde que a internet e a digitalização de textos passaram a fazer<br />
parte da vida cotidiana das pessoas 1 , o assunto tomou conta de reportagens<br />
jornalísticas, livros, publicações acadêmicas e uma série de outros meios.<br />
Entretanto, há uma lacuna que precisa ser preenchida dentro dessa variedade<br />
de textos. Nota-se que, em sua maioria, os artigos tratam de digitalização<br />
de obras já existentes e consagradas e não de um novo modo de se fazer<br />
literatura, utilizando-se dos recursos que a tecnologia oferece. Como constata<br />
Denise Azevedo Duarte Guimarães,<br />
Percebemos claramente, no entanto, que a ampliação do espaço da<br />
ciberliteratura tem esbarrado na mera transferência de obras do papel para a<br />
tela, sem que haja a devida consciência dos recursos multimidiáticos e/ou<br />
hipertextuais. Ainda há muito a fazer no que tange à criação de textos literários,<br />
192
cuja realização plena só se dá nos multimeios ou na internet. Trata-se de<br />
textos pensados exclusivamente para os novos suportes, e não pura e<br />
simplesmente transferidos para as telas... (2005, p. 18)<br />
Em um outro viés, o discurso teórico acaba centrado muito mais<br />
em dados superficiais, estatísticos e matemáticos, do que em um estudo<br />
mais aprofundado sobre a arte e o uso das tecnologias especificamente.<br />
Segundo Arlindo Machado, as discussões estéticas foram amplamente<br />
substituídas “pelo discurso técnico e questões relativas a algoritmos, hardware,<br />
software tomaram grandemente o lugar das ideias criativas, da subversão das<br />
normas e da reinvenção da vida” (MACHADO, 2007, p. 54).<br />
Nesse sentido, fazem-se cada vez mais necessários estudos que<br />
objetivem discutir a literatura digital e seus elementos determinantes. Este<br />
trabalho abordará algumas questões sobre a e-poesia, que é uma das formas<br />
de e-textos disponíveis online, refletindo sobre o seu lugar na crítica literária<br />
e no contexto cultural atual e sobre questões relacionadas à intermidialidade,<br />
hibridização de meios e linguagens.<br />
Imagens, sons e letras<br />
Vivemos em um mundo de imagens, ou seria mais correto dizer<br />
que vivemos em um mundo de hibridismos, em um mundo de mixologias,<br />
como afirma Nizia Villaça (2010). Não há como escapar, para onde quer<br />
que se olhe as imagens estão a nos espreitar. A TV, o cinema, a fotografia<br />
dos outdoors, os vídeos da internet, os celulares, os palmtops, todos os meios<br />
de comunicação de massa nos acenam e nos lembram que estamos na era<br />
das imagens e das mixologias. Para muitos esse é o fim dos tempos, fim da<br />
arte, fim da literatura, para outros (esse) é o início de uma nova era, em que<br />
arte e tecnologia se juntam para formar um novo conceito artístico.<br />
Segundo Arlindo Machado:<br />
... os intelectuais de formação tradicional resistem à tentação de vislumbrar<br />
um alcance estético em produtos de massa, fabricados em escala industrial.<br />
(...) para esses intelectuais, falar em criatividade ou qualidade estética a<br />
propósito da produção midiática só pode ser uma perda de tempo.<br />
Os defensores da artemídia, entretanto, costumam ser menos arrogantes e<br />
mais espertos. Eles defendem a ideia de que a demanda comercial e o contexto<br />
industrial não necessariamente inviabilizam a criação artística, a menos que<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 193
identifiquemos a arte como artesanato ou com a aura do objeto único.<br />
(2007, p. 24)<br />
Walter Benjamin afirma que na era da reprodutibilidade técnica a<br />
arte perde sua aura, pois deixa de ter caráter ritualístico. Por essa razão, para<br />
muitos é difícil aceitar que a arte do novo milênio assume uma outra forma<br />
que não a tradicionalmente conhecida.<br />
Com o texto literário não é diferente. A literatura digital, especialmente<br />
a de publicação na internet, sofre com o preconceito da crítica literária.<br />
Apesar disso ela é uma realidade e está cada vez mais presente na formação<br />
dos novos leitores e escritores. Essa resistência ao novo é gerada pelo medo<br />
eterno de que uma nova tecnologia possa matar algo que seja considerado<br />
precioso, “o convencional é desfrutado sem críticas, o que é verdadeiramente<br />
novo é criticado com aversão 2 ” (BENJAMIN, 2011, p. 20).<br />
O estranhamento gerado pelas publicações literárias na internet tem<br />
fundamento quando se toma a leitura como um processo construído pelo<br />
hábito e pela experiência. Leva-se tempo para formar um hábito social e<br />
por essa razão torna-se difícil desmistificá-lo. Entretanto, a literatura virtual<br />
é uma realidade e tem formado costumes, sendo assim merecedora de<br />
atenção e pesquisa.<br />
É salutar lembrar que tanto a fotografia como o cinema já foram<br />
vistos um dia com desconfiança pelo público e pelos críticos. Acreditava-se<br />
que essas artes eram inferiores à pintura. O mesmo aconteceu com o texto<br />
escrito. Em Fedro, Platão objetou que a escrita, que havia surgido<br />
recentemente, iria revolucionar a cultura para pior. “Dos muitos clichês que<br />
circulam na crescente espiral que são os estudos dos meios, o mais persistente<br />
pode ser a certeza de que todas as coisas detestáveis que podemos dizer<br />
sobre os computadores já eram enunciadas na crítica que Platão fez sobre<br />
a escrita em Fedro” (WINTHROP-YOUNG, 1986, p. xiii) 3 . É da natureza<br />
do homem o constante processo de transformação e isso acaba por gerar<br />
insegurança, pois o surgimento de algo novo pode significar o<br />
desaparecimento de algo já existente. Entretanto, nem sempre isso acontece.<br />
A criação da fotografia não significou o fim da pintura e é prematuro<br />
afirmar que a popularização do texto digital significará o fim do texto<br />
impresso, ou que o romance tende a desaparecer com o surgimento dos<br />
novos gêneros literários criados no ciberespaço. Não cabe aos pesquisadores<br />
prever o futuro, mas sim analisar o presente e as mudanças causadas pelas<br />
mídias virtuais no mundo literário.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
194
Vilém Flusser (2008, p.15), um dos mais importantes críticos sobre<br />
a cibercultura, afirma que estamos vivendo o fim da linearidade textual. A<br />
informação que antes chegava até nós via texto escrito, agora nos chega via<br />
fotografias, filmes, vídeos, computadores, TV. “Não mais vivenciamos,<br />
conhecemos e valorizamos o mundo graças a linhas escritas, mas agora<br />
graças a superfícies imaginativas.”<br />
O mundo digital não é um mundo concreto. Quando desenhamos<br />
em um papel com uma caneta ou quando datilografamos algo em uma<br />
máquina de escrever, estamos nos utilizando de tecnologia mecânica e para<br />
sabermos como a caneta e a máquina datilográfica funcionam, basta abrilas<br />
e observar seu funcionamento. Com a tecnologia digital é muito diferente.<br />
O mundo se apresenta a nós em forma de código, mais especificamente o<br />
código binário, e só através dele é possível formar imagens e escrever na<br />
tela do computador. Esse novo mundo que se apresenta é um mundo<br />
totalmente abstrato. Essas imagens técnicas são frutos de hardwares e softwares<br />
que estão em crescente desenvolvimento na sociedade moderna e que tem<br />
propiciado o surgimento de novos gêneros literários, como as poesias visuais<br />
eletrônicas.<br />
Quando as imagens e as palavras saem do papel e são visualizadas em uma<br />
tela, a obra poética deixa de ser estática e incorpora o movimento e as<br />
sonoridades graças aos recursos de um software específico que configura um<br />
discurso virtual, eletrônico-digital e, portanto, diferenciado. O hibridismo<br />
entre palavra, imagem, som e tecnologia é uma experiência anterior a<br />
popularização da internet. Na primeira metade da década de 90, autores<br />
como os irmãos Campos, Arnaldo Antunes, Décio Pignatari e Julio Plaza,<br />
desenvolveram um trabalho intitulado “Vídeo poesia – Poesia visual”, que<br />
tinha como objetivo incorporar a computação gráfica na criação poética.<br />
(DUARTE, 2010, p. 59)<br />
De acordo com Ricardo Araújo, esse projeto, sediado no Laboratório de<br />
Sistemas Integrados da Escola Politécnica da USP, incluiu a criação de cinco<br />
poemas resultantes do “esforço conjunto de pesquisadores das áreas de<br />
Engenharia Eletrônica, Arquitetura e do grupo de poetas ligados à Poesia<br />
Concreta” (ARAÚJO citado em DUARTE, 2010, p. 59).<br />
Graças à popularização da computação gráfica, atualmente qualquer<br />
pessoa é capaz de criar seu próprio poema e publicá-lo na internet em<br />
questão de horas. Evidentemente apenas o domínio da tecnologia “não<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 195
transforma ninguém em artista ou grande poeta”, como afirma Augusto<br />
de Campos (Citado em ARAÚJO, 1999, p. 28), porém é inquestionável<br />
que, com a facilidade de acesso às novas mídias, o poeta marginal tem<br />
encontrado seu espaço, que antes era de domínio exclusivo das editoras.<br />
Friedrich Kittler (1999, p. xxxix) afirma que “os meios determinam<br />
nossa situação”. 4 São eles quem determinam o imaginário de uma época.<br />
Asa Briggs e Peter Burke (2006, p. 83) afirmam que não seria um exagero<br />
atribuir o sucesso da Reforma de Lutero ao aparecimento da impressão<br />
gráfica. Uma vez que seus escritos já haviam sido reproduzidos e quatro<br />
mil cópias já haviam sido vendidas, de nada adiantaria se a igreja católica<br />
tivesse queimado Lutero sob a acusação de heresia, pois suas ideias<br />
continuariam chegando à nação alemã graças à era da “reprodutibilidade<br />
técnica”.<br />
A era das tecnologias digitais tem afetado diretamente a literatura<br />
contemporânea. A internet tem possibilitado uma interatividade entre leitor<br />
e autor. O leitor virtual é disperso e não quer apenas ler, mas também<br />
interagir com a obra e se transportar pelos hipertextos, tendo a possibilidade<br />
de navegar por infinitos textos simultaneamente. Por essa razão, os textos<br />
virtuais exigem mais agilidade do que os textos impressos, propiciando o<br />
surgimento de novos gêneros literários, como as e-poesias. Guilhermo<br />
Orozco-Gomez (Citado em DUARTE, 2010, p. 59) afirma que “o texto<br />
escrito requer uma abstração que faz com que a linguagem escrita, mas<br />
especificamente a palavra, passe primeiro pela razão para depois aguçar os<br />
sentidos. Ao contrário da linguagem visual que se conecta de forma<br />
automática aos sentidos através da visão.” Esse processo acaba por dificultar<br />
a leitura de textos extensos pela internet e propicia o surgimento de textos<br />
mais concisos e híbridos. Segundo Heidrun Olinto e Karl Schollhammer<br />
(2002, p. 16):<br />
A literatura hoje não preserva a ilusão clássica da pureza dos gêneros, nem<br />
da romântica da autonomia criadora do espírito, mas encontra-se sempre<br />
hibridamente articulada em contato com gêneros não-literários e com meios<br />
de comunicação e expressão não-discursivos. Nesse sentido, o hibridismo é<br />
hoje o fundamento e a regra para o escritor e não a exceção.<br />
Tomando o hibridismo como fenômeno cada vez mais constante<br />
na literatura, vê-se que os textos eletrônicos não são apenas um gênero<br />
literário ou um meio de propagação de um gênero, mas sim uma prática<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
196
cultural, uma vez que não somente abarcam o fazer literário da modernidade,<br />
mas também representam o homem contemporâneo inserido nesse jogo<br />
cultural artístico.<br />
Como ocorreu no <strong>final</strong> do século XV com as mudanças culturais, sociais e<br />
econômicas que o advento da imprensa trouxe; na contemporaneidade,<br />
também se percebe a crescente interferência de novas mídias no<br />
desenvolvimento da sociedade e as consequentes mudanças que geram.<br />
Hoje, as mídias que surgem não podem ser consideradas como simples<br />
modelos de reprodução, pois, além de absorverem as mídias já existentes,<br />
como havia observado Marshall McLuhan, de certa forma, são necessidades<br />
comunicativas criadas por nossa época, o que as torna responsáveis,<br />
mutuamente, pela geração incessante de outras necessidades, co-responsáveis<br />
pela criação de realidades. Nesse contexto, mudanças tecnológicas estão<br />
diretamente ligadas a mudanças semânticas e as artes, de uma forma geral,<br />
também se apropriam dessa circunstância, da atuação dos meios e os colocam<br />
em diálogo, criando múltiplas possibilidades de comunicação e, portanto,<br />
de percepção estética. (...) Nessa perspectiva, tem-se a compreensão de que as<br />
obras literárias são parte de uma constelação social, isto é, configuram-se em<br />
um campo de atuação entre produção, distribuição, recepção e processamento,<br />
conforme afirma o teórico alemão Siegfried J. Schmidt. Assim, os objetos<br />
de estudo da literatura não podem ser interpretados isoladamente, são<br />
apreendidos a partir da forma como se apresentam materialmente, tornando<br />
os suportes mais importantes que os conteúdos, uma vez que o primeiro<br />
acaba por determinar o segundo. (ALCÂNTARA, 2010, p. 230-231)<br />
Pode-se afirmar então que o poema digital é um acontecimento,<br />
isto é, ele é “a percepção de que, a partir de algum instante, houve um<br />
evento que transformou e transtornou a maneira de as coisas do mundo se<br />
disporem ao redor dele, poema e diante de nós” (SANTOS, 2009, p. 1). O<br />
que se vê é o despertar de uma nova realidade, a realidade multimidiática,<br />
que requer adesão às sensações, à fusão dos sentidos, que dá lugar a um<br />
conhecimento que estabelece uma nova perspectiva acerca do mundo.<br />
Heterogeneidade parece ser a palavra de ordem do novo universo<br />
que se desvenda. A literatura eletrônica atravessa palavras, linguagens visuais<br />
e sonoras, movimentos corporais, atribuindo a esses elementos o mesmo<br />
valor, propiciando uma significação que se revela a partir do entrecruzamento<br />
dessas linguagens, de novas posturas sociais e corporais.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 197
A história da leitura nos mostra que o ato de ler envolve muito mais<br />
que o simples deslizar de olhos sobre o objeto de leitura, ele denota uma<br />
prática social. Ler, para alguns povos, demandava esforço físico, trabalho<br />
corporal, para outros momentos de relaxamento e de confraternização. Os<br />
atos de leitura estão envoltos em movimentos corporais e sociais desde a<br />
prática antiga de segurar as tabuletas de argila para leitura pública; o desenrolar<br />
dos rolos de pergaminho pelos Gregos e Romanos; o movimento de<br />
mudança de páginas do códex dos povos medievais e modernos, que<br />
transformaram a prática de leitura em um ato individual e privado; aos<br />
atos contemporâneos de ler no computador, usando o mouse, abrindo janelas,<br />
clicando em ícones, usando o teclado e controlando sons.<br />
Segundo Adalberto Müller (2011, p. 114), quando nos relacionamos<br />
com as mídias elas são como “amputações”, ou seja, as usamos como se<br />
fossem extensões de nosso corpo, mas fingimos que elas não estão ali, não<br />
as aceitando como parte de nosso corpo. Nesse sentido, “ao invés de<br />
percebermos as mídias (os meios), percebemos o seu conteúdo e a ele<br />
damos toda a importância. Esse é o sentido da famosa frase “the medium is<br />
the message” (o meio é a mensagem), que deve ser entendida a partir do pólo<br />
do sujeito (‘o meio’), e não do objeto (‘a mensagem’)”.<br />
Partindo dessa perspectiva pode se afirmar que a literatura digital é<br />
um produto das mídias das quais ela se vale. Todo o processo de hibridismo<br />
presente nos e-textos é decorrente dos suportes disponíveis para que esses<br />
textos se façam híbridos. A comprovação disso é que a idealização da<br />
poesia visual é anterior ao surgimento dos recursos multimídia 5 , entretanto,<br />
a concretização dos poemas “verbivocovisuais” só foram possíveis com o<br />
surgimento dos aparelhos multimidiáticos, ou seja, há uma relação de<br />
interação entre autor e leitor com os recursos tecnológicos que determinam<br />
a construção de uma poética eletrônica.<br />
Na busca de definir uma estética para o e-texto, Jan Baetens e Jan<br />
Van Looy (2011, p. 6) afirmam que a e-poesia não implica em mera<br />
digitalização do texto impresso transferido para o computador, mas sim<br />
em textos pensados especificamente para se ler em um suporte eletrônico.<br />
Analisar os textos eletrônicos sob a ótica dos textos tradicionais digitalizados<br />
é olhar para o presente através de um “espelho retrovisor”, ou seja, é pôr<br />
em prática “nossa tendência de interpretar o novo à luz do velho, marchando<br />
de costas para o futuro 6 ”.<br />
Partindo dessa afirmação, Baetens e Looy se valem de três elementos<br />
que caracterizariam o texto eletrônico: a interação, a multimidialidade e a<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
198
mobilidade. No plano interativo, o ciberleitor é convidado a participar do<br />
texto abrindo e fechando janelas, clicando em ícones e controlando o som.<br />
Em alguns casos ele se torna ao mesmo tempo escritor e espectador da<br />
obra, podendo interferir no processo criativo 7 . No plano da intermidialidade,<br />
o leitor é convidado não somente a ler o texto, mas também a experimentálo,<br />
participando de um jogo que explora todos os sentidos, como por<br />
exemplo, o tato ao clicar do mouse, a visão ao abrir e fechar de janelas, a<br />
audição ao controlar o som. No que se refere à mobilidade, o e-texto é<br />
móvel, dinâmico e “multi-formal”, tornando-se, em alguns casos, até mesmo<br />
evanescente e momentâneo, como os poemas feitos exclusivamente para<br />
apresentações em bienais e exposições de arte, durando o tempo<br />
determinado do evento. Como não há um material concreto, um meio<br />
físico como o papiro, o pergaminho ou o papel, que delegue à literatura<br />
digital o caráter de “eterno”, ela se torna elemento de inconstância e<br />
abstração. Não há garantias de futuro e imortalidade para os textos digitais.<br />
Aí reside a diferença entre a e-poesia e a poesia concretista e<br />
meramente visual. Apesar do cerne desse texto híbrido eletrônico ser a<br />
poesia concreta e a poesia visual, o e-texto se destaca por suas especificidades,<br />
transformando-se em algo atrativo para o ciberleitor, que é um leitor<br />
disperso, ativo e multimidiático, pois não se contenta em fazer uso de uma<br />
única mídia, mas deseja todas as mídias ao mesmo tempo e apreende o<br />
mundo via multiplicidade de sentidos.<br />
Para o homem da Antiquidade e da Idade Média, a audição era o<br />
sentido que suplantava todos os outros. O mesmo aconteceu com o sentido<br />
da visão, que marcou a Idade Moderna até fins do século XX. Tendo em<br />
vista que o homem contemporâneo não se contenta mais em fazer uso de<br />
apenas um sentido, a literatura, que é uma representação do homem, não<br />
poderia deixar de acompanhar essa mudança de postura, tornando-se um<br />
representante cultural do homem do início novo milênio.<br />
Pode-se afirmar que os meios eletrônicos 8 envolvem todos os<br />
sentidos, uma vez que eles englobam todas as mídias em um único aparelho.<br />
A internet por sua vez “é um ambiente, uma incubadora de instrumentos<br />
de comunicação”, pois “quando falo que estou lendo um livro, assistindo<br />
TV ou ouvindo rádio, todos sabem o que estou fazendo. Mas quando digo<br />
que estou na internet, posso estar fazendo todas essas coisas ao mesmo<br />
tempo”, além de ler e enviar e-mails, comentar em blogs, conversar em<br />
chats (LEMOS, 2003, p. 15).<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 199
O homem é um ser técnico e tecnológico 9 . Desde o surgimento dos<br />
primeiros utensílios de caça, até a invenção dos mais avançados aparatos<br />
eletrônicos, os instrumentos e os meios estão inseridos em nossas vidas,<br />
funcionando com uma extensão de nossos corpos. Para o homem pósmoderno,<br />
os dispositivos eletrônicos tornaram-se indispensáveis, uma vez<br />
que são fundamentais para manter a sociedade da informação do início do<br />
século XXI. No mundo da literatura, esses dispositivos também se tornaram<br />
uma regra, até mesmo para os mais tradicionais. Hoje em dia, nenhum<br />
artigo ou livro é publicado sem que passe pelos recursos da computação.<br />
Cada letra, cada palavra que lemos no nosso dia a dia são concebidas na<br />
linguagem das máquinas, pois o mundo moderno é matemático, as imagens<br />
e as letras são matemáticas. Esse fenômeno é reflexo do “universo das<br />
imagens técnicas”, que existe a partir do código binário. As letras não são<br />
letras, como em uma máquina de escrever, mas são combinações que,<br />
decodificadas por um programa de computador, tornam-se letras.<br />
Julio Plaza (Citado em ARAÚJO, 1999, p. 128) atesta que esses<br />
equipamentos eletrônicos que determinam o homem da sociedade pósindustrial<br />
tem modificado significativamente a arte, a poesia e a literatura<br />
de forma geral. Os conceitos de multimídia e de hipertexto são bastante<br />
significativos para esse novo universo literário que se abre. “A tecnologia<br />
tende a fazer uma síntese polifônica de várias linguagens como o som, a<br />
holografia, o desenho, a imagem de vídeo, de cinema, a palavra: todos os<br />
códigos da História são aglutinados e estão embutidos em memórias.”<br />
A poesia da argentina Ana María Uribe 10 é uma prática condizente<br />
com a estética dos e-textos, uma vez que se utiliza de tecnologia multimídia<br />
para existirem. Seus poemas agregam som, letras, imagens e movimentos.<br />
É interessante observar que a poeta se vale das letras se locomovendo para<br />
significar o texto. Em “Disciplina” por exemplo, a letra “H” aparece em<br />
várias cores diferente e em uma sequência, como se estivessem enfileiradas<br />
de forma organizada, dando sentido ao título do poema.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
200
Porém, o texto está muito além do mero enfileirar das letras. Ao<br />
assistirmos ao poema 11 , as letras se locomovem, como que em uma marcha<br />
militar. Ao fundo, uma voz reproduz um som semelhante aos discursos de<br />
Hitler no rádio na época do nazismo alemão. Esses dados transformam<br />
totalmente a significação do poema. De simples letras enfileiradas elas se<br />
tornam soldados de Hitler enfileirados. Não há de ser mero acaso que a<br />
letra escolhida é o “H”. A diferença de cores representa a individualidade<br />
dos soldados dentro de uma coletividade que gera a igualdade. Durante<br />
todo o poema, que dura cerca de 1 minuto e 30 segundos, as letras marcham<br />
em ordem ao som de uma música repetitiva que dá ritmo ao movimento<br />
dos soldados em perfeita sincronia. Ao fundo a voz metafórica de Hitler<br />
dá ordens ao seu exército. Ao <strong>final</strong> do texto a música dá lugar ao som de<br />
uma tropa marchando descompassada, ao mesmo tempo em que os “Hs”<br />
se rebelam em movimento desordenado, acompanhados da voz do<br />
comandante que muda para um tom aflitivo ao notar a indisciplina dos<br />
soldados.<br />
Os alemães são conhecidos por sua organização, assim como Hitler<br />
ficou famoso por se utilizar dos meios de comunicação, em especial o<br />
rádio, para propagar suas ideias nazistas e também para convocar o povo<br />
germânico para a batalha. A Alemanha nazista teve como base de governo<br />
o militarismo, que é considerado a disciplina por excelência. Entretanto, a<br />
indisciplina ao <strong>final</strong> do poema pode significar uma rebelião, causada pelo<br />
excesso de pressão quando se quer atingir a ordem. Em um plano mais<br />
metafórico, uma vez que o poema fala do Nazismo, a desordem dos<br />
soldados pode representar a insurgência daqueles que se rebelaram contra<br />
Hitler.<br />
Todos esses elementos históricos, aliados aos elementos formais<br />
do poema, dão sentido ao texto, tornando-o objeto dotado de significação.<br />
Entretanto é importante ressaltar que essa significação só se desvela dentro<br />
do conjunto, ou seja, quando um elemento extratextual se relaciona com<br />
todos os princípios do texto (imagem, som e texto escrito) e se interpenetram.<br />
Sem os recursos multimídia, o poema não passaria de “Hs” enfileirados.<br />
Em um outro poema, intitulado “Tenis” 12 , Uribe se utiliza do sinal<br />
“@”, também em diferentes cores.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 201
As “@s” representam rostos, como em uma arquibancada de um<br />
jogo de tênis. No decorrer do poema os rostos se movimentam olhando<br />
de um lado para o outro, como que acompanhando a bola de tênis no<br />
jogo que assistem. Aliado a isso, há um som bastante característico da partida<br />
de tênis, o quicar da bola na quadra e o rebater da raquete. Apesar de se<br />
tratar de um jogo, não há nenhum outro som além desses. Os espectadores<br />
não emitem som algum, o que também é bastante peculiar nessas ocasiões.<br />
O tênis é conhecido por ter uma plateia silenciosa e só se ouvir o som da<br />
bola.<br />
Como no poema anterior, observa-se que a utilização dos recursos<br />
multimídia são fundamentais para a significação do poema. As “@s”<br />
dispostas na tela, imóveis, mais parecem clipes de papel. Quando o texto<br />
ganha movimento e som é que o sentido se revela ao leitor.<br />
No poema, “Volat Irrevocabile Tempus” – “ O tempo voa<br />
irrevogavelmente” – de Erthos Albino de Souza 13 , o texto é baseado apenas<br />
no código binário e na imagem. Segundo Ivete Walty (2001, p. 90), esse<br />
tipo de construção poemática são “signos abertos à decodificação”.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
202
Imagens, sons, gestos, cores, expressões corporais, tornam-se signos abertos<br />
à decodificação. Nesse sentido, reitere-se, a recepção desses bens simbólicos<br />
pode ser vista como leitura, na medida em que todo recorte na rede de<br />
significações é considerado um texto. Pode-se, pois, ler o traçado de uma<br />
cidade, a moda, o corpo humano em suas várias posturas, um filme, um<br />
livro. Colocar imagem e escrita em campos opostos e excludentes é, no<br />
mínimo, ingenuidade, já que, mesmo à nossa revelia, tais códigos se<br />
encontram em constante interação.<br />
O poema corrobora o conceito de Walty sobre leitura, pois é somente<br />
visual, propiciando uma leitura de imagens. Erthos brinca com o uso do<br />
código binário, iniciando em uma tela preta com um pequeno cursor verde<br />
no canto inferior direito. Em seguida aparecem intercalados na tela os<br />
números binários 0 e 1 que dão lugar à figura digital de uma mulher que<br />
aos poucos vai desaparecendo, trazendo à baila a consciência do texto digital<br />
como uma combinação matemática. As combinações de 0, 1 e vazio dão<br />
forma ao rosto da mulher. O poema utiliza-se do código binário, como se<br />
quisesse mostrar ao leitor a verdadeira linguagem por trás dos textos digitais.<br />
Pode-se dizer que é um poema feito para uma máquina, pois essa linguagem<br />
só é reconhecida pelas máquinas, que decodificam o código para linguagem<br />
humana. Sem um programa que faça a interface entre o código e a linguagem<br />
decodificada, o mundo virtual não passaria de uma sequência dos números<br />
0 e 1. Entretanto o rosto da mulher aparece mostrando o produto <strong>final</strong> da<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 203
linguagem computacional: a imagem formada por pontos. O texto nos<br />
remete ao conceito de Flusser (2008, p. 15) de que “as imagens tradicionais<br />
são superfícies abstraídas de volumes, enquanto as imagens técnicas são<br />
superfícies construídas por pontos.”<br />
Considerações finais<br />
Finalizando, é importante refletir criticamente e analisar parte dos<br />
conjuntos de expressões textuais que a internet propõe, uma vez que a<br />
quantidade de textos da web é ilimitada. O mundo virtual tem nos<br />
proporcionado novas interfaces literárias, como o entrecruzamento de<br />
linguagens e a interatividade textual. Da mesma forma que no passado o<br />
mundo da literatura se viu transformado com o advento do texto impresso,<br />
o texto digital tem revolucionado as práticas literárias do homem<br />
contemporâneo e representado esse homem dentro da sua pluralidade<br />
contemporânea. Os atuais paradigmas textuais têm sofrido modificações<br />
significativas com o surgimento do livro digital e da internet. Novas<br />
possibilidades de textos se revelam a nós no ciberespaço, influenciando na<br />
construção de um leitor com perfil mais ativo frente ao que se lê. Para que<br />
a obra faça sentido é preciso a interação direta do leitor, interação que nos<br />
tira do mero papel de leitores e nos apresenta como exploradores de um<br />
mundo de infinitas navegações.<br />
Notas<br />
1 Jan Baetens e Jan Van Looy utilizam-se da expressão e-poetry para se referir aos<br />
poemas digitais. Por essa razão, tomaremos aqui a liberdade de nos utilizarmos não<br />
somente dessa expressão, como também de outras, para nos referirmos aos textos<br />
digitais.<br />
2 Segundo Adalberto Müller (2011, p. 112), no Brasil usa-se a expressão mídia com<br />
dois sentidos: no singular, quando se refere aos meios de comunicação de massa; no<br />
singular e no plural referindo-se ao suporte físico para transmissão de um conteúdo.<br />
Neste artigo, a palavra é usada nas duas acepções.<br />
3 Nos anos 90, a internet era privilégio de poucos. A televisão juntamente com os<br />
jornais, as revistas e os livros impressos eram, sem dúvida, os maiores meios de<br />
comunicação. De acordo com dados da Computer Industry Almanac, de 1999, os<br />
Estados Unidos eram o país com maior número de usuários da rede, 110.825.000.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
204
No Japão, segundo lugar no ranking, o número de usuários era de 18.156.000. O<br />
Brasil ocupava o sétimo lugar com 6.790.000 internautas e a China vinha logo em<br />
seguida com 6.308.000. Dados recentes do site Internet World Status mostram que, no<br />
ano de 2008, a China ultrapassou os Estados Unidos, apresentando 253.000.000 de<br />
usuários contra 220.141.969. O Japão caiu para a terceira posição, com 94.000.000 de<br />
internautas e o Brasil passou a ser o sexto país com maior número de usuários,<br />
50.000.000. A soma de usuários da Web desses quatro países era de 142.079.000 em<br />
1999. Já em 2008, essa soma é de 671.141.969, quase cinco vezes mais internautas<br />
viajando pelas teias virtuais. Esse crescimento trouxe uma mudança de hábitos na<br />
vida do homem atual. Por exemplo, o número de leitores de revistas e jornais impresso<br />
caiu, mas isso não significa necessariamente prejuízo para os jornais. Muitos dos<br />
leitores passaram a usar esses mesmos serviços pela web, uma vez que esses meios de<br />
comunicação passaram a disponibilizar seus textos via internet.<br />
4 “Das Konventionelle wird kritiklos genossen, das wirklich Neue kritisiert man mit<br />
Widerwillen.”<br />
5 “Of the many learned clichés circulating in the widening gyre of media studies, the<br />
most persistent may be the assurance that all the nasty things we can say about<br />
computers were already spelled out in Plato´s critique of writing in Phaedrus”.<br />
6 “Media determine our situation.”<br />
7 Augusto de Campos afirma que “a idéia de conjugar palavras, som e imagens esteve<br />
presente nas propostas da Poesia Concreta desde o início. Nós usávamos a expressão<br />
verbivocovisual, que é uma palavra extraída do vocabulário de James Joyce, para sintetizar<br />
essa conjugação. Embora, em geral, se acredite que a Poesia Concreta só possua este<br />
aspecto visual privilegiado, ela, desde o início, pensava em utilizar som ao lado da<br />
imagem. Tanto que meus primeiros poemas desta fase da Poesia Conreta, da série<br />
‘Poetamenos‘, foram apresentados no Teatro de Arena, em 55, por um grupo musical<br />
que interpretava várias vozes, correspondendo às várias cores do poema” (Citado em<br />
ARAÚJO, 1999, p. 126).<br />
8 “...our tendency to interpret the new in light of the the old, marching backwards<br />
into the future.”<br />
9 “Em maio de 2000, o escritor Mario Prata começou a escrever um romance online,<br />
Anjos de babar. Ou seja, todo o processo criativo era visto na tela do computador do<br />
leitor, como se fosse a tela do próprio escritor. Todos os que estavam conectados no<br />
momento em que o autor estava trabalhando, acompanhavam o nascimento da obra.<br />
O interessante dessa experiência é que havia um fórum de discussão para interação<br />
entre o autor e os leitores, e o público se sentiu, mais do que nunca, dono da obra.<br />
‘Após vencer a timidez, todos estavam palpitando, questionando, querendo tomar<br />
conta da obra e até escrevendo como se fossem também autores do livro junto com<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 205
o Mario Prata’ afirma Beto Muniz, um dos seguidores do projeto de Prata” (DUARTE,<br />
2010, p. 58).<br />
10 Por meios eletrônicos nos referimos aos Personal Computers (PCs), Notebooks,<br />
Netbooks, Tablets, Palmtops, E-readers e todos os demais aparelhos que<br />
possibilitem ao leitor estabelecer uma interação com os multimeios.<br />
11 “Técnica é o meio encontrado pelo homem para transformar e interferir na natureza<br />
usando-a a seu favor. Da mesma raiz etimológica, mas com sentido mais amplo, a<br />
tecnologia é a capacidade de unir a técnica ao conhecimento, ou seja, utilizar as<br />
habilidades mais primárias do homem aliadas à ciência. Se por um lado a técnica surge<br />
para resolver os problemas mais fundamentais do homem, por outro a tecnologia<br />
tem o intuito de realizar os desejos e facilitar as atividades humanas, sendo capaz de<br />
aliviar e simplificar os esforços físicos e mentais do ser humano” (DUARTE, 2010, p.<br />
56).<br />
12 Disponível em: http://amuribe.tripod.com/anipoemas.html.<br />
13 Disponível em: http://amuribe.tripod.com/disciplina/disciplina.html.<br />
14 Disponível em: http://amuribe.tripod.com/2002/tenis.html.<br />
15 Disponível em: http://www.arteria8.net/.<br />
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Elaine Cristina Carvalho DUARTE<br />
Doutoranda em literatura. Departamento de Teoria Literária e Literaturas da<br />
UnB.Bolsista da CAPES.<br />
Simone Silveira de ALCÂNTARA<br />
Doutora pelo Departamento de Teoria Literária e Literaturas da<br />
Universidade de Brasília. Professora titular na Faculdade de Artes Dulcina<br />
de Morais.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
Artigo recebido em 24 de agosto de 2011.<br />
Aceito em 07 de outubro de 2011.<br />
Voltar para o Sumário<br />
208
Resumo: Este artigo demonstra as<br />
influências positivas do ciberespaço sobre<br />
a literatura. Por meio da mídia digital, a<br />
arte literária encontra novas formas de<br />
expressão, como resultado da utilização<br />
de um suporte eletrônico, associado a um<br />
espaço híbrido e, consequentemente, às<br />
relações interartísticas. Baseado em<br />
conceitos de Gérard Genette, Umberto<br />
Eco e em reflexões de Denise Guimarães<br />
sobre esse processo de reciclagem que<br />
envolve os conceitos de texto, autoria,<br />
estatuto da arte e leitura, este estudo<br />
apresenta exemplos de cibertextos,<br />
videopoemas e hipertextos como<br />
resultados do espaço múltiplo e híbrido<br />
da internet. As breves análises objetivam<br />
demonstrar que a literatura tornou-se<br />
eletrônica, para se adaptar à sociedade<br />
contemporânea, que apresenta as mesmas<br />
características que o ciberespaço oferece:<br />
imediatez, interação e tecnologia.<br />
LITER@TUR@ELETRONICA.COM<br />
Verônica Daniel Kobs<br />
anfib@ibest.com.br<br />
Abstract: This article presents the<br />
positive influences of cyberspace on<br />
literature. Through digital media, literary<br />
art acquires new forms of expression as a<br />
result of electronic support, associated to<br />
hybrid space and, consequently, to<br />
interartistic relationships. Based on<br />
Gérard Genette’s and Umberto Eco’s<br />
concepts, and on Denise Guimarães’<br />
considerations about that recycling<br />
process that involves the concepts of text,<br />
authorship, artistic statute, and reading,<br />
this article presents cybertexts,<br />
videopoems and hypertexts as the results<br />
of the multiple and hybrid space of the<br />
internet. Brief analyses aim at<br />
demonstrating that literature became<br />
electronic in order to adapt itself to<br />
contemporary society, which presents the<br />
same characteristics that cyberspace offers:<br />
speed, interaction, and technology.<br />
Palavras-chave: Literatura. Mídia eletrônica. Ciberespaço. Hipertexto. Interatividade.<br />
Hibridação.<br />
Key words: Literature. Electronic media. Cyberspace. Hipertext. Interactivity.<br />
Hybridization.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 209
Introdução<br />
Na contemporaneidade, as artes ganharam um espaço que<br />
privilegia a multiplicidade e que possibilita um maior equilíbrio entre arte e<br />
cotidiano. O ciberespaço da internet torna acessíveis alguns tipos de arte que<br />
antes eram para poucos, assim como potencializa o acesso às artes mais<br />
“populares”, como música, cinema e literatura. Trilhas sonoras, shows, clipes,<br />
filmes e livros são oferecidos gratuitamente aos internautas. O ciberespaço<br />
democratiza o acesso às artes e ao conhecimento específico que elas exigem<br />
de seus espectadores. Além disso, a internet ajuda a acentuar a dissolução das<br />
fronteiras que, hoje, impulsiona as relações interartísticas.<br />
Em sites e em blogs, é cada vez mais frequente o fato de imagens e<br />
textos dividirem espaço e importância. Imagens e textos se complementam<br />
e se aproximam, pela facilidade de se pesquisar figuras, palavras e até<br />
arquivos inteiros, nos mais diversos formatos, nos sites de busca. No<br />
ciberespaço, a criação também se faz pela associação de objetos, que, sob a<br />
forma de justaposição pura e simples, de análise comparativa ou de um<br />
breve comentário, ganha imensa repercussão, razão pela qual a exposição e<br />
a acessibilidade são talvez as principais vantagens das redes sociais.<br />
O ciberespaço é uma vitrine cobiçada por artistas e expressões<br />
artísticas e a justificativa para isso é bastante convincente. Os títulos e os<br />
nomes que fazem parte da rede têm o consumo impulsionado, no mercado<br />
formal, assim como têm a garantia de que serão associados à modernidade,<br />
tecnologia e inovação estética. Além disso, é preciso enfatizar que os recursos<br />
oferecidos pelo computador, on-line ou off-line, possibilitam novos modos<br />
de expressão artística, pelos efeitos que podem ser criados com as novas<br />
ferramentas ou a partir do intercâmbio de recursos e linguagens que a relação<br />
interartística, inerente ao ciberespaço, oferece. Os limites de todas as artes<br />
são testados e a conclusão é sempre a mesma: não existem limites. Toda<br />
expressão artística sempre encontra novas formas, novas tendências, novos<br />
estilos, próprios à superação:<br />
[…] em grande parte da arte contemporânea, os recursos tecnológicos<br />
propiciam uma investigação criativa, tanto dos meios quanto dos<br />
processos, auxiliando a desenvolver visões mais adequadas ao mundo<br />
pós-moderno, uma vez que libertam os artistas do atrelamento a modelos<br />
e conceitos preexistentes. […] tal liberdade, inclusive, pode viabilizar<br />
interessantes trocas sígnicas entre arte e tecnologia. (GUIMARÃES, 2007,<br />
p. 39)<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
210
Quando o computador e a internet começaram a ser usados como<br />
ferramentas importantes na criação de textos informativos ou artísticos, na<br />
pesquisa e na comunicação, a sociedade reacendeu o debate que surge,<br />
sempre que aparece um novo tipo de mídia. A exemplo do que ocorreu<br />
quando surgiu a televisão, quando todos se perguntavam se o novo aparelho<br />
ia decretar o fim do rádio, o predomínio do ciberespaço fez ressurgir esse<br />
tipo de dúvida. Na nova era, a televisão, o livro e até mesmo o mercado<br />
formal estariam fadados ao fracasso? O trecho transcrito acima, de Denise<br />
Guimarães, dá a mesma resposta que já foi dada há tempos, a cada vez que<br />
o mesmo questionamento surgia. Nenhuma mídia substitui inteiramente a<br />
outra. Elas se complementam e participam de um processo evidente de<br />
evolução, possibilitado pelas “trocas sígnicas entre arte e tecnologia”.<br />
Para acentuar essa relação de reciprocidade, em que a tecnologia<br />
dá visibilidade e ferramentas que revitalizam as expressões artísticas e em<br />
que a arte, por sua vez, integra-se ao cotidiano dos internautas, passando a<br />
servir de contraponto aos produtos não artísticos, veja-se este trecho de<br />
Comunicação tecnoestética nas mídias audivisuais:<br />
[…] a obra de arte contemporânea, se acaso perdeu sua hegemonia,<br />
aproxima-se da tecnologia não apenas como estratégia de sobrevivência,<br />
mas sim de enriquecimento expressivo. Desse modo, em interface com as<br />
máquinas, a arte busca nova energia no universo cibernético, naquele<br />
mundo híbrido e perturbador, no qual impera a conexão entre natural e<br />
artificial. (GUIMARÃES, 2007, p. 39)<br />
Evidente que, com o advento da Informática, a sociedade mudou<br />
e a consequência natural dessa transformação foi a reivenção das expressões<br />
artísticas. Entretanto, assim como a arte é fortemente influenciada pelo<br />
aspecto social, ela também influencia, estabelecendo novos paradigmas e<br />
novos tipos de comportamento do espectador, diante de um objeto artístico.<br />
Novo espaço, novo texto, novo leitor<br />
No universo cibernético, os processos de leitura e de interpretação<br />
são bastante específicos e exigem um perfil diferenciado do espectador. A<br />
autonomia é característica determinante e relaciona-se fortemente ao aspecto<br />
criativo. Na leitura, emprestando a nomenclatura da Estética da Recepção,<br />
o leitor passa de receptor a co-autor, sobretudo quando é possível que ele<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 211
manipule o texto, interagindo com hyper<strong>link</strong>s que lhe oferecem percursos<br />
diferentes, além da oportunidade de expandir ou não o texto. Além disso,<br />
o ciberespaço também é um convite à criação e, nesse caso, o receptor<br />
torna-se autor, motivado pela interação com textos e com ferramentas que<br />
facilitam a (re)produção. Com base nessa ideia, é importante destacar a<br />
multiplicidade de sites e, principalmente, de blogs, que existem na internet.<br />
Tanto sites como blogs são exemplos de narrativas eletrônicas e, para serem<br />
criados ou acessados e lidos, exigem competências específicas, as quais<br />
muitos consideram partes de um processo de realfabetização. Nas palavras<br />
de Umberto Eco (1980), “o processo retórico (que em certos casos se<br />
assimila ao estético) torna-se uma forma autorizada de conhecimento, ou<br />
pelo menos um modo de pôr em crise o conhecimento adquirido” (p.<br />
240). E essa crise ocorre justamente pelo fato de o leitor/espectador perceber<br />
que a tecnologia exige, por fornecer novas possibilidades de expressão a<br />
um produto artístico, também na apreensão desse novo tipo de arte, outra<br />
gramática, mais específica e adaptada àquelas inovações. Por consequência,<br />
é nesse instante que o leitor/espectador se dá conta da limitação de seus<br />
conhecimentos e da necessidade de aprender coisas novas, para reavaliar<br />
conceitos, reciclar formas e modelos, enfim, para integrar-se de vez no<br />
ciberespaço:<br />
O poder de recriar e operacionalizar simultâneas conexões sem ordem<br />
preestabelecida gera a emancipação do leitor, que trilha os próprios<br />
caminhos e sente-se mais instigado a aprender e interpretar os assuntos<br />
uma vez que pode utilizar não só a leitura, mas diversas outras mídias que<br />
auxiliam e facilitam esse processo. (MATOS; SILVA, 2008, p. 213)<br />
Essa liberdade é dada ao leitor não apenas pelo computador,<br />
mas também pelos textos que apresentam hyper<strong>link</strong>s. Umberto Eco já<br />
comparou o videocassete ao livro, pelo fato de o aparelho permitir que o<br />
espectador avance, retroceda ou congele imagens. Do mesmo modo, durante<br />
a leitura de um livro, pode-se interromper o processo, avançar páginas ou<br />
voltar aos techos já lidos. O processo de leitura na mídia eletrônica segue as<br />
mesmas regras, razão pela qual se relaciona a um “tempo interativo”:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
212
[…] a grande revolução propiciada pelo tempo virtual está na inserção do<br />
papel a ser desempenhado pelo usuário nos destinos da imagem. Graças<br />
às mudanças de parâmetros da imagem infográfica que ficam disponíveis<br />
ao usuário, um poder impensável lhe é conferido para interferir, em<br />
brevíssimos lapsos de tempo, no tempo de enunciação da imagem, um<br />
tempo sem começo, meio e fim, tempo de perpetuum mobile. (SANTAELLA;<br />
NÖTH, 1998, p. 85)<br />
Essa mesma autonomia o espectador tem, no ciberespaço, onde<br />
ele pode: controlar o tempo de duração do texto ou da cena (nos casos em<br />
que o texto apresenta palavras e imagens ou somente imagens); otimizar<br />
seu tempo e acessar vários sites simultaneamente (o que ocorre com<br />
frequência, nos acessos a páginas que carregam os arquivos muito lentamente);<br />
e definir o nível de sua colaboração com o texto (ao aceitar ou recusar os<br />
convites feitos pelos hyper<strong>link</strong>s).<br />
Neste artigo, serão comentados dois tipos de produtos<br />
cibernéticos: o cibertexto e o hipertexto. De acordo com Luís Arata, a<br />
diferença entre esses dois modelos de texto depende essencialmente da<br />
participação do leitor e de sua interação com o texto. O autor classifica<br />
como cibertexto a narrativa que utiliza um suporte eletrônico e que, por<br />
esse motivo, exige um leitor ativo tecnologicamente. O hipertexto o autor<br />
usa para classificar os textos em que o leitor é livre para definir o percurso<br />
de leitura:<br />
Interactivity tends to evoke mostly images of the digital media. In literature,<br />
digital interactivity is commonly associated with hypertext and more recently<br />
with cybertext. George Landow traces the origins of this term to Theodor<br />
Nelson who used it in the 1960s to refer to non-sequential writing on a<br />
computer. Hypertext gives the reader choices to branch out among chunks<br />
of text <strong>link</strong>ed by multiple pathways. (ARATA, 2011, p. 1)<br />
Como o nome já diz, nesse caso, os hyper<strong>link</strong>s são fundamentais,<br />
pois são eles que potencializam o aspecto ativo do leitor. Em um hipertexto,<br />
não basta que o leitor esteja por dentro dos avanços tecnológicos. Ele precisa<br />
também interagir de modo mais direto com o texto, respondendo aos seus<br />
estímulos, ao decidir expandir a narrativa, por meio dos hyper<strong>link</strong>s, assim<br />
determinando a duração da leitura e a sequência do texto:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 213
Deve-se destacar também, que não há uma completa falta de linearidade<br />
nesse meio cibernético, um mínimo de conexão deve existir entre os elos<br />
para que haja coerência, tão importante para compreensão de qualquer<br />
assunto em qualquer veículo de informação. Cabe ao hipertexto […] o<br />
papel da formação de cidadãos mundiais, uma vez que ele insere seu leitor<br />
num ambiente repleto de informações atuais e de todo o globo (tal leitor<br />
é para Paulo Freire o leitor ideal, aquele que sabe pensar o mundo).<br />
(MATOS; SILVA, 2008, p. 224)<br />
Ao passo que, no cibertexto, o leitor visualiza modos de<br />
digitalização de um texto literário, no hipertexto essa experiência vai além,<br />
fazendo com que o leitor perceba as infinitas possibilidades de leitura e a<br />
relação dessa multiplicidade com o suporte eletrônico utilizado.<br />
Bons exemplos de cibertextos podem ser encontrados em muitos<br />
sites. Neste estudo, porém, serão apresentados três deles, de Elson Fróes,<br />
Wilton Azevedo e Augusto de Campos, respectivamente.<br />
Autópsia das utopias, de Elson Fróes, é uma sequência de quadros<br />
que inicia com o verso “Dreams never end” (FRÓES, 2011) sobre um<br />
fundo amarelo. Em seguida, aproveitando a similaridade gráfica entre as<br />
palavras “utopia” e “autópsia”, o autor faz uma oposição, reforçando-a,<br />
inclusive, com as cores que servem de fundo. A palavra “utopia” aparece<br />
sobre um fundo verde e “autópsia”, sobre o vermelho. Entretanto, nos<br />
quadros posteriores, as palavras aparecem inscritas sobre um fundo duplo,<br />
que apresenta as cores verde e vermelho. De antagônicas, elas passam a ser<br />
complementares. A partir dessa inter-relação, formam-se palavras novas<br />
(“utopsia” e “autopia”). Além disso, dos oito quadros em que ocorre a<br />
mistura das cores representativas de uma e de outra palavra, o termo<br />
“autópsia” aparece em cinco deles, de modo que é possível estabelecer,<br />
entre as palavras, uma relação de causa (“utopia”) e efeito (“autópsia”). A<br />
destruição da utopia e a prevalência da autópsia, que metaforiza a morte,<br />
ficam claras com os últimos quadros que compõem o texto. Um deles<br />
mostra a palavra “autópsia” sobre uma tarja vermelha, em meio ao espaço<br />
verde, que antes era associado à utopia. O outro apresenta um fundo<br />
amarelo, mesma cor do primeiro quadro, e o verso: “Ends never dreamed”<br />
(FRÓES, 2011):<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
214
Penúltimo quadro do texto Autópsia das utopias, de Elson Fróes.<br />
Imagem disponível em: <br />
Último quadro do texto Autópsia das utopias, de Elson Fróes.<br />
Imagem disponível em: <br />
O cibertexto Secret, de Wilton Azevedo, é em forma de vídeo, o<br />
que permite a inserção de som e movimento no texto. Considerado também<br />
um “videopoema”, nomenclatura que, segundo Denise Guimarães, tem<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 215
sido usada, “no Brasil e em Portugal, desde os anos 80 […], viabilizando as<br />
primeiras obras poéticas que se valem da exploração de novas tecnologias<br />
e reiterando a busca de um movimento que vá além da bidimensionalidade<br />
da página impressa” (GUIMARÃES, 2007, p. 51 e 52), Secret é uma narrativa<br />
em movimento que alterna lentidão e rapidez (inclusive usando o recurso<br />
cinematográfico do traveling), e cenas em cores com cenas em preto e branco.<br />
A música de fundo reforça o aspecto contemplativo do videopoema, que<br />
inicia com investigações sobre o segredo — onde encontrá-lo? o que ou<br />
quem o mantém? — e termina com imagens que parecem desfocadas, mas<br />
que mostram o passeio da câmera por uma rua, mostrada em close, até<br />
parar em um bueiro: metáfora para os segredos insondáveis e silenciados,<br />
ou indicação de que os segredos são efêmeros, escoam rapidamente e<br />
desaparecem, assim que são revelados?<br />
Também considerado um videopoema, Bomba, de Augusto de<br />
Campos, apresenta um diferencial importante em relação a Secret, de Wilton<br />
Azevedo. Bomba insere-se também em outras categorias de cibertexto: a<br />
poesia migrante e a infopoesia. “Poesia migrante”, porque se trata de uma<br />
adaptação digital de um texto impresso:<br />
Poesia migrante - […]. São procedimentos que têm por objetivo fazer<br />
uma releitura, no meio digital, da poesia visual (bi e tridimensional), da<br />
poesia concreta e grande parte das poesias modernistas (vanguardas),<br />
principalmente, aproveitando uma certa “vocação” digital, ou seja, aqueles<br />
fazeres poéticos que já prenunciavam o uso das tecnologias. (ANTONIO,<br />
2011, p. 14)<br />
Bomba foi publicado em 1994, no livro Despoesia, e, em um segundo<br />
momento, ganhou uma versão digital. Nessa transposição, o efeito do texto<br />
é potencializado pela imagem de uma mancha amarelada sobre o fundo<br />
vermelho, em intervalos regulares, de modo a simular várias pequenas<br />
explosões em sequência. Esse artifício dá movimento ao texto e reforça o<br />
significado da palavra “bomba”, que literalmente vai pelos ares. A palavra<br />
torna-se coisa, objeto, transformação que os artifícios do ciberespaço, no<br />
videopoema, tornam mais evidente.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
216
Bomba, de Augusto de Campos.<br />
Imagem disponível em: <br />
O termo “infopoesia”, totalmente relacionado ao conceito de<br />
“poesia migrante”, faz menção às imagens criadas a partir de palavras:<br />
“[…] o conceito de infopoesia firma-se como produção de imagens com<br />
palavras, através do uso de um editor de imagens. Desse modo, um<br />
microcomputador produz um texto digital cuja intencionalidade é<br />
especificamente poética” (GUIMARÃES, 2007, p. 90). Ao fazer a palavra<br />
“bomba” explodir, Augusto de Campos utiliza o signo verbal como matériaprima<br />
para um signo não-verbal, a imagem da explosão de uma bomba,<br />
daí a classificação de seu texto como “infopoesia”.<br />
Quanto ao hipertexto, o exemplo que será aqui brevemente<br />
comentado é o site My boyfriend came back from war, de Olia Lialina, disponível<br />
na internet desde 1996. “Trata-se de um site interativo, congregando texto e<br />
fotos artísticas em preto e branco, que são exploradas com movimentos de<br />
troca de posição na tela” (LIMA, 2011, p. 7). A narrativa se inicia com dois<br />
períodos apenas: “My boyfriend came back from the war. After dinner<br />
they left us alone” (LIALINA, 2011). A partir deles, a interação do leitor<br />
com o texto é fundamental, para que a história se desenvolva. Frases esparsas<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 217
dividem espaço, na tela, com desenhos que apresentam o cenário e os<br />
personagens, como demonstram os exemplos a seguir:<br />
Imagem disponível em: <br />
Imagem disponível em: <br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
218
Totalmente composto em preto e branco, esse texto faz com que<br />
o leitor busque a continuação da história, clicando incessantemente sobre as<br />
palavras e imagens. A cada movimento, outra parte da narrativa é revelada.<br />
Esse tipo de interação desencadeia o processo que une alheamento e imersão.<br />
O leitor faz da leitura sua prioridade, a ponto de colocar a realidade em<br />
segundo plano e sucumbir às surpresas da narrativa que se constrói, à medida<br />
que ele interage com ela. Sendo assim, a construção e a apreensão do texto<br />
ocorrem simultaneamente, realizando-se em camadas. O resultado do<br />
processo de alheamento e imersão é o desenvolvimento de uma narrativa<br />
encadeada, que se completa toda vez que um hyper<strong>link</strong> é ativado, fazendo<br />
com que a tela atual dê lugar a outra, e depois a outra, e a outra…<br />
Gérard Genette associa esse efeito de múltiplos desdobramentos,<br />
essencial ao hipertexto, à metáfora do palimpsesto, justamente porque a<br />
leitura se faz em planos distintos, mas inter-relacionados: “O hipertexto<br />
nos convida a uma leitura relacional cujo sabor, tão perverso quanto<br />
queiramos, se condensa muito bem neste adjetivo inédito que Philippe<br />
Lejeune inventou recentemente: leitura palimpsestuosa. […]” (GENETTE,<br />
2005, p. 91 e 93). Mais adiante, o autor refere-se à expressão “leitura<br />
relacional”, assim definida por ele: “[…] ler dois ou vários textos, um em<br />
função do outro” (GENETTE, 2005, p. 93).<br />
A história de Olia Lialina fala dos horrores da guerra, das mudanças<br />
que a guerra causa na vida das pessoas, sobre amor, casamento, falta de<br />
comunicação e de atenção, entre outras coisas. Várias páginas de narrativa<br />
podem ou não ser construídas, a partir dos dois períodos que iniciam o<br />
texto, dependendo do grau de cooperação do leitor com o texto. E, ao<br />
<strong>final</strong>, quando as possibilidades de expansão da narrativa se esgotam, uma<br />
tela totalmente preta aparece. Esse é o aviso de que o texto terminou.<br />
Nesse instante, os hyper<strong>link</strong>s ficam inativos, impossibilitando a ação do leitor<br />
sobre eles e fazendo restar, na tela, apenas as imagens do homem, da mulher<br />
e da janela, estáticas, sobre o fundo preto. Dessa forma, a experiência de<br />
leitura do texto My boyfriend came back from war ajuda a demonstrar a<br />
importância do leitor colaborativo para o hipertexto:<br />
Somente através de uma ampliação do conceito de texto ( e de textualidade)<br />
pode-se abarcar as novas experiências do que se denomina […] hipertexto<br />
literário. Esses textos podem ser, ao mesmo tempo, verbais e não verbais,<br />
cinematográficos e musicais, figurativos e abstratos, artesanais e<br />
tecnológicos, fotográficos e pictóricos, etc. São fusões (e confusões) de<br />
linguagens. (LIMA, 2011, p. 9 e 10)<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 219
Além de agir e escolher um percurso literário a seguir, o leitor do<br />
ciberespaço tem de aceitar a hibridação como característica inerente aos<br />
textos apresentados na mídia eletrônica. Entretanto, se o perfil e a função<br />
do leitor sofrem mudanças, com esse tipo de literatura, também o status de<br />
autor passa por transformações. O autor é desinvestido da autoridade que<br />
antes o separava do leitor e que o tornava hierarquicamente superior e às<br />
vezes até inatingível, incomunicável. Na internet, o autor torna-se acessível e<br />
a distância que o separa do público leitor é de apenas um clique. Isso, aliás,<br />
fica evidente, ao <strong>final</strong> do texto de Olia Lialina, quando o internauta é<br />
surpreendido com as possibilidades de acessar inúmeras adaptações do<br />
texto e de ser direcionado para o Outlook, canal que torna possível a<br />
comunicação com o autor do texto, se o leitor quiser buscar mais<br />
informações sobre o artista ou sobre a obra.<br />
O (ciber)espaço de todas as artes<br />
No espaço cibernético, voltam a ser importantes questionamentos<br />
já conhecidos. As relações arte/coletividade e arte/estatuto, debatidas, dentre<br />
tantos, por Mallarmé e Duchamp ganham, novamente, importância. Podese<br />
mesmo afirmar que elas se complementam, já que o estatuto do autor é<br />
relativizado, pelo fato de o texto admitir e até exigir maior participação do<br />
leitor. Desse modo, uma narrativa que apresenta hipertextos será também<br />
múltipla em significado, como qualquer texto escrito, mas com a diferença<br />
de o texto se fazer, a partir da colaboração do leitor, que rompe com a<br />
linearidade que, no texto escrito, é previamente ditada pelo autor e que,<br />
portanto, acaba induzindo a leitura. O hipertexto é uma obra sempre em<br />
progresso e com pelo menos duas instâncias ligadas à autoria: o leitor e o<br />
próprio autor. Completando a série de relativização de conceitos que a<br />
questão do estatuto provoca, é imprescindível citar o status da obra de arte,<br />
que, contemporaneamente, é muito diferente da concepção tradicional. A<br />
arte, hoje, é incompleta, dinâmica e também permeável a interferências<br />
externas, sem a mínima necessidade de que essa seja especializada.<br />
O site privilegia<br />
as imagens e a interatividade, ao apresentar, na tela, um grande espaço em<br />
branco, uma pequena lista de <strong>link</strong>s, à esquerda, a figura de um carro com o<br />
porta-malas aberto e uma pergunta:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
220
Ilustração da página inicial do site: <br />
A pergunta desencadeia a curiosidade do leitor e o espaço em<br />
branco serve como convite à interação. No comando do mouse e do<br />
processo de leitura, a cada clique uma imagem é revelada. Esse tipo de<br />
interação demonstra muito bem a relativização do estatuto do autor e, por<br />
consequência, da arte, bem como estabelece a importância da coletividade.<br />
São esses ingredientes que tornam cada acesso ao site do Superbad uma<br />
experiência, nova, diferente, completamente inusitada, a<strong>final</strong>, cada internauta<br />
pode fazer aparecer no porta-malas o que achar mais interessante. Além<br />
disso, é importante enfatizar que o jogo proposto pelo site não respeita a<br />
lógica. In the trunck, cabem bonecas, bolas, estátuas e até caminhões inteiros.<br />
Desse modo, a interatividade, com as imagens que possibilitam as mais<br />
diversas combinações, não apenas promove a criatividade da autoria;<br />
também é um convite à imaginação do leitor/espectador.<br />
Nesse tipo de jogo, feito a partir de <strong>link</strong>s que desencadeiam imagens<br />
ou textos, a multiplicidade mistura-se com a rapidez, que é outra<br />
característica importante das expressões artísticas atuais, especificamente<br />
daquelas feitas para serem veiculadas no ciberespaço. Essa qualidade faz<br />
parte da produção, da veiculação, em muitos casos, e do consumo (ou<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 221
ecepção, para usar um sinônimo mais conhecido). Sobretudo em blogs que<br />
foram criados com a intenção de divulgar textos e objetos de arte e, que,<br />
portanto, não se restrinjem a um caráter meramente informativo, as postagens<br />
são diárias e, em alguns casos, semanais. Essa aceleração na produção indica<br />
o desejo de aproveitar o mercado informal, uma das grandes oprtunidades<br />
da internet, e, ao mesmo tempo, visa a atender à grande demanda dos leitores,<br />
que buscam novos produtos.<br />
Na era cibernética, o tempo é contado em minutos. As coisas<br />
envelhecem mais rapidamente e, por isso, precisam ser atualizadas e<br />
substituídas com a mesma celeridade. O próprio veículo de comunicação<br />
exige essa urgência. On-line, o usuário rompe barreiras de espaço e tempo,<br />
já que a comunicação se faz de modo indireto, por meio do suporte<br />
eletrônico. Natural, então, que os textos também incorporem essa necessidade<br />
de imediatez. O hipertexto, aliás, cumpre um pouco esse papel, a<strong>final</strong>,<br />
quando o leitor aciona um <strong>link</strong>, uma tela aparece isntantaneamente, dando<br />
a impressão de que o texto foi criado naquele instante. Em termos de<br />
espaço, também, o hipertexto é ilusório. À primeira vista, poucos podem<br />
imaginar que de uma simples tela e de pouquíssimas linhas pode surgir um<br />
texto cuja leitura dure quase uma hora e que, se fosse transcrito, renderia<br />
páginas e mais páginas…<br />
Outra função do hipertexto que usa um suporte eletrônico é a<br />
demonstração de que as distâncias entre as diferentes expressões de arte<br />
podem ser diminuídas ou eliminadas. No ciberespaço cabem todas as artes.<br />
Imagem e texto se acumulam, à espera da colaboração do leitor, que os<br />
combina e os organiza. Nesse processo, qualquer semelhança com a<br />
montagem cinematográfica não é mera coincidência. Apenas neste exemplo,<br />
a hibridação se fez pela combinação de elementos verbais e pictóricos e<br />
pela associação de três artes: literatura, pintura (ou qualquer outra arte<br />
predominantemente visual, como a fotografia, por exemplo) e cinema.<br />
No site , o projeto<br />
Noigandres – VerbiVocoVisual, de 2007, com curadoria de Cid Campos,<br />
João Bandeira, Leonora de Barros e Waler Silveira, apresenta transposições<br />
de diversos poemas concretos para a música, dentre as quais se destaca a de<br />
número 7, do poema Life, de Décio Pignatari. O texto foi composto em<br />
1957:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
222
Life, de Décio Pignatari, disponível em: <br />
O texto parte de um ideograma que é estilizado pelo autor e que<br />
reúne as letras da palavra life, apresentada, no poema, primeiro na forma<br />
vertical e com as letras fora de ordem, depois na forma sintétíca sugerida<br />
pela estilização e, por fim, mostrada na horizontal.<br />
A versão musical do texto, disponível no site , veio apenas em 1991. Com voz do próprio poeta<br />
e música de Cid Campos, a transposição musical de Life chama a atenção,<br />
pelo fato de expandir o embaralhamento das letras sugerido no texto. Dessa<br />
forma, apesar do fato de a sequência alterada permitir a criação de outras<br />
palavras, todas as combinações levam a uma só palavra, life. Como a palavra<br />
é escrita e falada em inglês, as letras são pronunciadas na mesma língua: “e,<br />
f, i, l… life/ i, e, l, f… life/ f, l, e, i… life/ l, i, f, e… life/ e, f, i, l… life/ i,<br />
e, l, f… life/ f, l, e, i… life” (PIGNATARI, 2011). Sem importar a sequência<br />
das letras, life é sempre life. Na transcrição acima, estão reproduzidos todos<br />
os versos da música, que apresenta seis combinações, todas diferentes uma<br />
da outra, mas, ao <strong>final</strong>, o sétimo verso repete a ordem das letras do terceiro<br />
verso. A arbitrariedade demonstrada na ordem das letras pode ser comparada<br />
à unidade e à imutabilidade do ideograma estilizado pelo poeta, em uma tentativa<br />
de pensar e usar a língua ocidental sob a perspectiva da cultura oriental.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 223
Em outras transposições do mesmo texto, porém, a literatura não<br />
ganha apenas voz e som, mas também cara, movimento e até cor. Acessando<br />
o <strong>link</strong> , é possível<br />
assistir a um vídeo de Life. Essa transposição, entretanto, ainda usa o preto<br />
sobre o branco, pouco se distanciando do texto-base, se comparada com<br />
outro vídeo, disponível no site . Nesse exemplo, criado por Augusto de<br />
Campos, em 1996, a animação digital usa cores, criando um efeito de maior<br />
movimento, reforçado pela sobreposição de sons.<br />
A pergunta desencadeia a curiosidade do leitor e o espaço em<br />
branco serve como convite à interação. No comando do mouse e do<br />
processo de leitura, a cada clique uma imagem é revelada. Esse tipo de<br />
interação demonstra muito bem a relativização do estatuto do autor e, por<br />
consequência, da arte, bem como estabelece a importância da coletividade.<br />
São esses ingredientes que tornam cada acesso ao site do Superbad uma<br />
experiência, nova, diferente, completamente inusitada, a<strong>final</strong>, cada internauta<br />
pode fazer aparecer no porta-malas o que achar mais interessante. Além<br />
disso, é importante enfatizar que o jogo proposto pelo site não respeita a<br />
lógica. In the trunck, cabem bonecas, bolas, estátuas e até caminhões inteiros.<br />
Desse modo, a interatividade, com as imagens que possibilitam as mais<br />
diversas combinações, não apenas promove a criatividade da autoria;<br />
também é um convite à imaginação do leitor/espectadoAlém de apresentar<br />
transposição de textos literários para a música, o site oficial de Arnaldo<br />
Antunes traz diversos exemplos de vídeos, caligrafias, poemas, instalações,<br />
artes plásticas e artes gráficas, dentre outras formas de expressão artística.<br />
Tal multiplicidade evidencia bem a hibridação que caracteriza as obras do artista<br />
e o ciberespaço como um todo. É claro que a transposição musical desempenha<br />
papel importante na carreira do artista, a<strong>final</strong>, desde o tempo dos Titãs, Arnaldo<br />
Antunes associava a letra ou o poema visual à música. Depois, já seguindo<br />
carreira solo, não foi diferente: a arte gráfica que aparece na capa do CD Ninguém<br />
inspirou a música de mesmo nome:<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
224
Ninguém, de Arnaldo Antunes.<br />
Imagem disponível em: <br />
Nesse espaço de trocas constantes (o site, em sentido estrito, e o<br />
ciberespaço, em um sentido mais amplo), a palavra convive com sons e<br />
imagens, razão pela qual o processo de negociação e de evolução estética é<br />
inevitável. O suporte eletrônico abrange todos esses elementos distintos, de<br />
sistemas sígnicos diferentes, e oferece ao internauta, em uma única tela,<br />
opções de mídias também variadas: livro, música, filme... O que elas têm<br />
em comum, a<strong>final</strong>, além de serem expressões de arte? Elas dividem o<br />
mesmo espaço e são reproduzidas por uma grande mídia, maior, alternativa,<br />
digital e eletrônica, que incorpora as demais, fazendo-as parte de um todo<br />
virtual (mas não inimaginável): “Tudo ao mesmo tempo agora.”<br />
Considerações finais<br />
A questão do tempo ou a falta dele é tão essencial, na sociedade<br />
contemporânea, que muitas pessoas, atualmente, usam o ciberespaço para<br />
encurtar distâncias e dispensar alguns trâmites que atrasam a vida cotidiana.<br />
Evidentemente, isso representa uma facilidade extrema. Entretanto, o<br />
problema é que, por conta disso, alguns procedimentos estão dispensando<br />
qualquer tipo de contato pessoal. Com isso, a individualidade sai fortalecida,<br />
pois a mediação se faz eletronicamente. Exemplos de sites associados a essa<br />
ideia multiplicam-se, dia após dia. São oferecidos vídeos explicativos, aulas<br />
de todos os tipos, testes vocacionais, entre outros serviços. As pessoas,<br />
hoje, podem até mesmo se confessar pela internet. Para isso, basta acessar o<br />
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site e ler as telas de apresentação, que<br />
convidam o internauta à reflexão e explicam de modo breve a importância<br />
da confissão:<br />
In the next few pages you are invited to spend a few moments in reflection.<br />
You will now be shown a series of promises from the Bible concerning the act of<br />
confessing your sins to God. As there are many such promises, you are likely to be<br />
shown a different combination each time you use ‘The Confessor’.<br />
Imagem e texto disponíveis em: <br />
Depois dessa introdução, basta seguir as instruções que aparecem<br />
sob a forma de comandos, como “click here to start”, e o processo todo se<br />
desencadeia como se fosse uma confissão normal. A diferença é a mediação<br />
eletrônica.<br />
Existem também sites que ensinam brincando. Uma boa dica para<br />
se divertir on line é fazer uma “aula” com o Paul, clicando sobre o <strong>link</strong>:<br />
. Nesse espaço, o internauta escolhe as<br />
luzes, o cenário, o ritmo, os passos, a música e até decide se Paul deve<br />
dançar mexendo apenas os braços, ou os braços e as pernas ao mesmo<br />
tempo, usando todo o seu suingue.<br />
No campo dos sites mais sérios, é possível encontrar exemplos que<br />
oferecem a possibilidade de experimentações variadas. No endereço , voltado à pintura, o internauta pode<br />
brincar com a variação de tonalidades usando uma tela de Picasso; pode<br />
simular os diferentes efeitos da luminosidade ou da ausência dela sobre um<br />
objeto representado, tendo como base uma pintura de Monet; assim como<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
226
também pode fazer um retrato de Marilyn Monroe, seguindo o estilo de<br />
Andy Warhol e da pop art:<br />
Imagem criada pela autora deste artigo, a partir dos recursos disponíveis em:<br />
<br />
Interagindo com as propostas relacionadas à pintura, o internauta,<br />
dependendo do interesse que tem pela pintura, pode apenas fazer uma<br />
simples experimentação, usando os recursos disponibilizados no site de<br />
modo totalmente lúdico. Em contrapartida, é possível também aprender<br />
noções básicas de pintura, pela facilidade de associar a teoria à prática,<br />
processo que celebra o autodidatismo e demonstra a importância que têm<br />
hoje a individualidade e a praticidade.<br />
Em um primeiro momento, a conclusão deste trabalho pode<br />
aparentar certo ressentimento, pela sua obviedade. Entretanto, a redundância<br />
é uma qualidade, quando utilizada para ressaltar coisas que são de fato<br />
fundamentais e para permitir o entendimento ou a apreensão do mundo<br />
que nos cerca, na tentativa de se adquirir plena consciência dos processos<br />
que caracterizam a sociedade contemporânea. É nessa categoria que se insere<br />
a citação abaixo, que sintetiza boa parte das idéias desenvolvidas no presente<br />
estudo:<br />
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A grande revolução-evolução, hoje vivida por toda humanidade, está<br />
acontecendo na esfera da cultura (da mente, do espírito, do pensamento, da<br />
reflexão, do ser interior) e, evidentemente, em conflito com a esfera da<br />
civilização em que ainda predominam as formas consagradas ontem, mas já<br />
superadas pelas novas formas emergentes com a revolução tecnológicacibernética<br />
que vem mudando a face do mundo, pela anulação das distâncias<br />
geográficas e da ruptura de todos os antigos limites (espaciais, temporais,<br />
mentais, éticos, estéticos...). (COELHO, 2007, p. 1)<br />
Fazemos parte dessa revolução. Somos agentes e também objetos<br />
dessa mudança. Nosso tempo, talvez, no futuro, seja citado como um marco,<br />
a<strong>final</strong>, quantos de nós imaginou fazer parte do futuro? O futuro de avanços<br />
tecnológicos e científicos da ficção científica parecia distante, há algumas<br />
décadas; era apenas uma previsão, quase uma vidência. E, agora, fazemos<br />
parte dele.<br />
REFERÊNCIAS<br />
ANTONIO, J. L. Poesia eletrônica: Negociações com os processos digitais. Disponível<br />
em: . Aces- so em: 20 jun. 2011.<br />
ANTUNES, A. Ninguém. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2011.<br />
ARATA, L. O. Reflections about interactivity. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2011.<br />
CAMPOS, A. de. Bomba. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2011.<br />
COELHO, N. N. Literatura: um olhar aberto para o mundo. Disponível em:<br />
. Acesso em: 02 jun. 2007.<br />
ECO, U. Tratado geral de semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1980.<br />
FRÓES, E. Autópsia das utopias. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2011.<br />
GENETTE, Gérard. Palimpsests: Literature in the Second Degree. Trad. Channa<br />
Newman & Claude Doubinsky. Lincoln & London: University of Nebraska Press,<br />
1997.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
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GUIMARÃES, D. A. D. Comunicação tecnoestética nas mídias audiovisuais. Porto Alegre:<br />
Sulina, 2007.<br />
LIALINA, O. My boyfriend came back from war. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2011.<br />
LIMA, L. R. O hipertexto literário na internet: Apenas o poema em tela ou uma nova<br />
arte verbal cibernética? Disponível em: . Acesso em: 22 jun. 2011.<br />
MATOS, M. R.; SILVA, D. C. S. e. Poesia e hipertexto em Arnaldo Antunes:<br />
Reinventando a página poética. Ícone, São Luís de Montes Belos, v. 2, p. 211-227, jul.<br />
2008.<br />
PIGNATARI, D. Life. Disponível em: . Acesso em: 26 jun. 2011.<br />
_____. Life. Disponível em: . Acesso em: 27 jun. 2011.<br />
SANTAELLA, L.; NÖTH, W. Imagem: Cognição, semiótica, mídia. São Paulo:<br />
Iluminuras, 1998.<br />
SUPERBAD. What’s in the trunk? Disponível em: Acesso em: 22 jun. 2011.<br />
THE CONFESSOR. The confessor. Disponível em: . Acesso em: 11 jun. 2011.<br />
WEBEXHIBITS. Andy Warhol’s Marilyn prints. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2011.<br />
Verônica Daniel KOBS<br />
Doutora em Estudos Literários pela UFPR.<br />
Professora Titular e Coordenadora do Curso de Mestrado em Teoria Literária<br />
(UNIANDRADE). Professora Titular do Curso de Graduação de Letras (FACEL).<br />
Artigo recebido em 29 de agosto de 2011.<br />
Aceito em 25 de setembro de 2011.<br />
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<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 229
DOSSIÊS TEMÁTICOS DAS PRÓXIMAS EDIÇÕES<br />
2012, v. 10, n. 1: Escrituras femininas brasileiras<br />
2012, v. 10, n. 2: Escrituras femininas de expressão inglesa<br />
2013, v. 11, n. 1: Representações do sujeito pós-moderno<br />
2013, v. 11, n. 2: Representações de alteridades<br />
2014, v. 12, n. 1: Textualidades memorialísticas<br />
2014, v. 12, n. 2: Releituras contemporâneas do gótico<br />
Datas de submissão de trabalhos<br />
número 1: 30 de maio<br />
número 2: 30 de setembro<br />
Endereços eletrônicos para envio de trabalhos<br />
brunilda9977@gmail.com<br />
anniesc@bol.com.br<br />
Endereço para correspondência<br />
Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE<br />
Cidade Universitária<br />
Mestrado em Teoria Literária<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong><br />
Rua João Scuissiato, n. 1, Santa Quitéria<br />
80310-310 Curitiba, PR<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011<br />
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NORMAS DA REVISTA<br />
1 Os trabalhos entregues para apreciação e possível publicação na revista <strong>Scripta</strong><br />
<strong>Uniandrade</strong> do Centro Universitário Campos de Andrade – <strong>Uniandrade</strong> – deverão<br />
seguir os seguintes parâmetros:<br />
· Ser preferencialmente inéditos.<br />
· Ser redigidos em português, espanhol, francês ou inglês.<br />
· Ter no mínimo 10 páginas (cerca de 4000 palavras) e no máximo 20 páginas (cerca<br />
de 8000 palavras).<br />
· Incluir dois resumos (de 100 a 120 palavras cada um), antes do início do texto,<br />
um em português e outro em língua estrangeira.<br />
· Incluir, após os resumos, palavras-chave (de três a seis) em português e na língua<br />
estrangeira.<br />
· Ser digitados em folha A4, com espaçamento 1,5, fonte Arial, 11.<br />
· Incluir no corpo do trabalho, entre aspas, citações de até quatro linhas. Citações<br />
com mais linhas devem ser destacadas do texto, alinhadas pela margem de<br />
parágrafo, digitadas com espaçamento simples, fonte Arial, 10, e não conter<br />
aspas.<br />
· Incluir referências às citações no próprio texto, entre parênteses. Exemplo:<br />
(MILLER, 2003, p. 45-47). As notas explicativas devem ser incluídas no <strong>final</strong> do<br />
texto.<br />
· Seguir as normas da ABNT quanto à digitação das referências a serem incluídas<br />
depois da conclusão do texto.<br />
· Para livros, a entrada deverá ter o seguinte formato: GOMES, C. Metodologia<br />
científica. 2. ed. São Paulo: Atlântica, 2002.<br />
· Para artigos publicados em revistas e periódicos, a entrada deverá ter o seguinte<br />
formato: ALMEIDA, R. Notas sobre redação. A palavra, 2. série, Rio de<br />
Janeiro, v. 1, n. 4, p. 101-124, abr. 2003.<br />
· Para citação eletrônica, a entrada deverá ter o seguinte formato: LIMA, G.<br />
Referências de fonte eletrônica. Disponível em: Acesso em: 21 set. 2006.<br />
· Ser enviadas aos editores, como anexo, via e-mail, sem identificação. A<br />
identificação deve ser enviada em outro anexo e conter o título do trabalho,<br />
o nome do autor, a titulação, a instituição da titulação, a instituição à qual<br />
está vinculado, o cargo que ocupa, o e-mail e o número do telefone.<br />
2 Os autores deverão encaminhar parecer do Comitê de Ética de sua Instituição ou<br />
submeter seu trabalho ao Comitê de Ética da <strong>Uniandrade</strong>, se o Conselho Editorial<br />
achar necessário.<br />
<strong>Scripta</strong> <strong>Uniandrade</strong>, v. 9, n. 2, jul.-dez. 2011 231
3 O Conselho Editorial poderá recusar trabalhos que não atendam às normas<br />
incluídas acima.<br />
4 Depois de aceitos pelo Conselho Editorial, os trabalhos de pesquisa serão<br />
submetidos ao Conselho Consultivo para leitura, análise e parecer.<br />
5 Por via eletrônica ou postal, o Conselho Editorial comunicará ao autor a avaliação<br />
feita por membros do Conselho Consultivo.<br />
6 Os artigos aprovados com restrições serão encaminhados para a correção dos<br />
autores. Nestes casos, a Comissão Editorial se reserva o direito de recusar o<br />
artigo, caso as alterações neles introduzidas não atendam às solicitações dos<br />
consultores.<br />
7 Os autores dos artigos aprovados e publicados receberão dois exemplares da<br />
revista.<br />
8 O direito de cópia referente aos artigos publicados pertence a <strong>Uniandrade</strong>.<br />
9 O envio do artigo para publicação implica a aceitação das condições acima citadas.<br />
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