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Leia um trecho do livro em PDF - Editora Objetiva

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PARTE I


21<br />

O RITO DE PASSAGEM<br />

Não acreditava <strong>em</strong> sonhos e mais nada.<br />

Apenas a carne me ardia e nela eu me encontrava.<br />

Paulo, o intelectual de Terra <strong>em</strong> transe<br />

A crônica da época não lhe dedicou mais <strong>do</strong> que magras 15 linhas. Nos registros<br />

existentes, ele consta apenas como <strong>um</strong>a das inúmeras festas que marcaram<br />

a entrada daquele distante 1968. E, no entanto, para os que viveram o que seria<br />

<strong>um</strong> banal acontecimento, ele permanece como <strong>um</strong> misterioso marco cujos<br />

símbolos e significa<strong>do</strong>s ocultos a m<strong>em</strong>ória e o t<strong>em</strong>po vão-se encarregan<strong>do</strong> de<br />

descobrir, ou de criar, até obter o material com que se faz<strong>em</strong> os mitos.<br />

Não terá ocorri<strong>do</strong> com o “réveillon da casa da Helô” o que ocorreu com<br />

outros aparent<strong>em</strong>ente insignificantes mas m<strong>em</strong>oráveis acontecimentos? Afinal,<br />

o Último Baile da Ilha Fiscal não mereceu da imprensa, de imediato, o<br />

justo destaque que lhe reservaria a História — ou a lenda.<br />

Ele foi <strong>do</strong>s “melhores”, assegura <strong>um</strong>a das colunas sociais da época, s<strong>em</strong><br />

porém lhe dar a correspondente importância, preferin<strong>do</strong> cont<strong>em</strong>plar as razões<br />

mais fúteis: “o scotch era legítimo”, dizia a colunista Léa Maria; o som<br />

“combinava carnaval com iê-iê-iê” e os trajes se apresentavam varia<strong>do</strong>s —<br />

“smok ings, longos formais, curtos míni, roupas hippies de luxo”. Além disso,<br />

o elenco de convida<strong>do</strong>s era atraente: “Metade gente de cin<strong>em</strong>a e teatro novo;<br />

a outra metade, grupos de jovens assessores lacerdistas.”<br />

Ah, sim, havia também a casa: <strong>um</strong>a bela construção no alto <strong>do</strong> Jardim<br />

Botânico, toda feita com sucata de d<strong>em</strong>olição — <strong>um</strong> estilo que a audácia


O rito de passag<strong>em</strong><br />

arquitetônica de <strong>um</strong> certo Zanine inventara para se transformar logo n<strong>um</strong>a<br />

moda chique.<br />

A casa parecia <strong>um</strong>a locação cin<strong>em</strong>atográfica especialmente escolhida para<br />

aquele espetáculo. Entrava-se por <strong>um</strong> portão e logo à esquerda começava a<br />

perna mais longa <strong>do</strong> L que lhe dava forma; aí ficavam os quartos. A grande<br />

sala completava o L e fechava o terreno ao fun<strong>do</strong>. Com o muro à direita,<br />

tinha-se a impressão de estar n<strong>um</strong> pátio interno espanhol. Do portão até a<br />

sala, devia-se percorrer <strong>um</strong> grande retângulo grama<strong>do</strong>, com <strong>um</strong>a bela e cinquentenária<br />

árvore. Cada <strong>um</strong> desses detalhes topográficos ou arquitetônicos<br />

iria ter <strong>um</strong> papel importante na noite.<br />

Mas a festa, evident<strong>em</strong>ente, não foi importante apenas pelo décor. O<br />

réveillon promovi<strong>do</strong> pelo casal Luís-Heloisa Buarque de Hollanda foi muito<br />

mais <strong>do</strong> que suger<strong>em</strong> as descrições feitas no calor da hora — pelo menos para<br />

a história que se vai contar. Não que tivesse muda<strong>do</strong> o destino <strong>do</strong> país, longe<br />

disto. Mas talvez porque condensasse e antecipasse <strong>um</strong> esta<strong>do</strong> de espírito e <strong>um</strong><br />

clima que seriam pre<strong>do</strong>minantes no perío<strong>do</strong>.<br />

A sua significação para 68 talvez seja idêntica à da famosa sequência da<br />

festa de Terra <strong>em</strong> transe — então, a referência cultural obrigatória. S<strong>em</strong> ela,<br />

o filme de Glauber Rocha provavelmente não iria deixar de ganhar o prêmio<br />

especial da crítica <strong>em</strong> Cannes n<strong>em</strong> perderia o carisma de obra-prima <strong>do</strong> cin<strong>em</strong>a<br />

brasileiro. Mas certamente não seria o mesmo; da mesma forma, <strong>um</strong> <strong>do</strong>s<br />

presentes à festa, o jornalista Elio Gaspari, acha que, “depois <strong>do</strong> réveillon da<br />

Helô, o Rio nunca mais foi o mesmo”.<br />

Por sua composição, que incluía mais facções sociais, políticas e ideológicas<br />

<strong>do</strong> que as citadas nas colunas, a festa de Helô, tanto quanto a de Glauber,<br />

foi vivida como a alegre metáfora — ou paródia? — de <strong>um</strong>a ampla e variada<br />

aliança política, algo assim como a que o VI Congresso <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista<br />

propusera, meses antes, para unir as “forças progressistas” a fim de lutar contra<br />

a ditadura e qu<strong>em</strong> a sustentava: o imperialismo. Acreditava-se — não só nas<br />

festas — que derrubar <strong>um</strong>a era atingir o outro, e nada melhor contra os <strong>do</strong>is<br />

<strong>do</strong> que juntar no mesmo saco a esquerda tradicional, os intelectuais, os operários,<br />

os estudantes e a chamada burguesia nacional que, por nacional, seria<br />

naturalmente anti-imperialista.<br />

A luta de classes que esperasse.<br />

22


1968 – O ano que não terminou<br />

Pode-se alegar que nas representações festivas faltava o ator principal — a<br />

classe operária. Mas era assim mesmo: era como se as forças progressistas tivess<strong>em</strong><br />

chega<strong>do</strong> mais ce<strong>do</strong> à festa ou ao processo histórico. Estavam guardan<strong>do</strong><br />

lugar — se não na festa, ao menos na História — até a entrada <strong>do</strong>s verdadeiros<br />

protagonistas, os operários.<br />

Qu<strong>em</strong>, por achá-las inadequadas, não concordar com essas analogias<br />

metafóricas tão ao gosto da época, pode recorrer a outras. Nesses vinte anos,<br />

O “réveillon da casa da Helô” acabou viran<strong>do</strong> <strong>um</strong> depósito de sugestões e<br />

referências. Ele pode ter si<strong>do</strong>, por ex<strong>em</strong>plo, a versão festiva da Frente Ampla,<br />

o movimento que o ex-governa<strong>do</strong>r Carlos Lacerda conseguira articular meses<br />

antes, atrain<strong>do</strong> como alia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is ferozes ex-inimigos, os ex-presidentes Juscelino<br />

Kubitschek e João Goulart. Por que não?<br />

Mais <strong>do</strong> que buscar diferenças ideológicas e pessoais, era hora de procurar os<br />

seus pares, acertar o passo e dançar conforme a música. O tropicalismo permitia<br />

as combinações mais esdrúxulas. Esse desejo de alianças improváveis era visível<br />

até <strong>em</strong> acontecimentos como o célebre casamento de Nara Leão e Cacá Diegues,<br />

cujos padrinhos foram Danuza/Samuel Wainer e Maria Clara/Sérgio Lacerda —<br />

<strong>do</strong>is sobrenomes que ninguém pensaria <strong>em</strong> juntar antes n<strong>em</strong> <strong>em</strong> enterro.<br />

Como <strong>em</strong> toda passag<strong>em</strong>, havia na casa de Helô <strong>um</strong>a mistura de frustração<br />

e esperança. Algo se tinha movi<strong>do</strong> <strong>em</strong> 67, ainda que parecesse que se movera<br />

para continuar igual. De qualquer maneira, a ditadura havia troca<strong>do</strong> de<br />

dita<strong>do</strong>r, a legislação revolucionária fora substituída por <strong>um</strong>a Constituição —<br />

tu<strong>do</strong> b<strong>em</strong>, mas já era <strong>um</strong>a Constituição —, <strong>um</strong> presidente bonachão se dizia<br />

preocupa<strong>do</strong> com a “normalização d<strong>em</strong>ocrática” e <strong>um</strong>a nova geração parecia<br />

disposta a deixar a marca de sua presença <strong>em</strong> to<strong>do</strong>s os campos da História.<br />

Muitas vezes, o ano iria dar a impressão, repetin<strong>do</strong> Millôr Fernandes, de que<br />

o país corria o risco de cair n<strong>um</strong>a d<strong>em</strong>ocracia.<br />

Com alg<strong>um</strong> otimismo, encontravam-se boas razões para se esperar <strong>um</strong><br />

feliz 68. A efervescência criativa de 67 não era por certo <strong>um</strong> mau sinal. Terra<br />

<strong>em</strong> transe, Quarup, o Tropicalismo, Alegria, alegria, O rei da vela talvez foss<strong>em</strong><br />

só o começo. Além <strong>do</strong> mais, o movimento estudantil, cujas entidades haviam<br />

si<strong>do</strong> postas fora da lei pelo golpe de 64, vinha se reorganizan<strong>do</strong> e mobilizan<strong>do</strong><br />

a massa de secundaristas e universitários.<br />

Havia — que a distância não nos deixe esquecer — a ameaça incansável<br />

da censura e de outras forças obscurantistas. Mas esses riscos de retrocesso<br />

23


O rito de passag<strong>em</strong><br />

encontravam o setor cultural vigilante e cada vez mais consciente da necessidade<br />

e da possibilidade de resistência. Havia, enfim, como s<strong>em</strong>pre, a situação<br />

social e política carregada de probl<strong>em</strong>as — o arrocho salarial, os sindicatos<br />

sob intervenção, <strong>um</strong>a insuportável inflação de 40% ao ano que Delfim Netto<br />

prometia reduzir para 25% —, mas o segun<strong>do</strong> governo militar anunciava que<br />

queria restabelecer o diálogo com a sociedade e com a classe política. Só por<br />

isso o ano de 68 já seria <strong>um</strong> avanço.<br />

Um personag<strong>em</strong> que viveu intensamente aqueles t<strong>em</strong>pos, o diretor de teatro<br />

Flávio Rangel, achava que houve entre 67 e 68 <strong>um</strong> mal percebi<strong>do</strong> clima de<br />

abertura, <strong>um</strong>a “primavera” — que l<strong>em</strong>brava <strong>um</strong>a outra, cont<strong>em</strong>porânea, a de<br />

Praga, e que, como esta, seria abortada, ainda que s<strong>em</strong> invasão de tanques. No<br />

depoimento que deu para este <strong>livro</strong>, <strong>em</strong> dez<strong>em</strong>bro de 1987, ele disse que só<br />

experimentaria clima s<strong>em</strong>elhante nos anos 80.<br />

Mas voltan<strong>do</strong> ao réveillon dessa frustrada abertura: encontrava-se ali <strong>um</strong>a parte<br />

considerável da inteligência brasileira que produzira, ou iria produzir, <strong>do</strong><br />

bom e <strong>do</strong> melhor. Com aqueles talentos, era possível organizar <strong>um</strong>a preciosa<br />

antologia. Com as vontades políticas ali presentes, poder-se-ia fazer a Revolução,<br />

isto é, a grande utopia daqueles t<strong>em</strong>pos. Isso, evident<strong>em</strong>ente, se o processo<br />

revolucionário dependesse apenas das condições subjetivas — e os anos<br />

seguintes iriam d<strong>em</strong>onstrar dramaticamente que não, que volição e revolução<br />

às vezes não passam de <strong>um</strong> trocadilho.<br />

Como o Brasil de então, o réveillon de Helô tinha tu<strong>do</strong> para dar certo, a<br />

começar pela <strong>do</strong>na da casa. A professora Heloisa Buarque de Hollanda, bonita,<br />

culta e de esquerda, era mito e ícone da intelectualidade carioca <strong>do</strong>s anos<br />

60. Com esses t<strong>em</strong>pos a “Bela Mestra” iria fazer a matéria-prima de sua tese de<br />

<strong>do</strong>utora<strong>do</strong> <strong>um</strong>a década depois. Misturan<strong>do</strong> duas viagens — a sua e a da História<br />

—, o seu trabalho ensinaria ao meio acadêmico que saber e competência<br />

não precisam ser chatos.<br />

A organização da festa, entregue a <strong>um</strong>a comissão, ou a <strong>um</strong> “coletivo”,<br />

como era de bom-tom dizer, parecia perfeita. Na verdade não foi: havia mais<br />

motivação <strong>do</strong> que competência, como aliás <strong>em</strong> tu<strong>do</strong> o que se organizava então.<br />

É b<strong>em</strong> verdade que os convites eram à prova de falsificação. Um <strong>do</strong>s<br />

organiza<strong>do</strong>res, o editor Sérgio Lacerda, na época o principal diretor da Da-<br />

24


1968 – O ano que não terminou<br />

tamec, <strong>um</strong>a <strong>em</strong>presa de processamento de da<strong>do</strong>s, informatizou os ingressos,<br />

personalizan<strong>do</strong>-os. Mas n<strong>em</strong> isso adiantou. Lá pelas tantas, Luís Buarque,<br />

diante da iminente invasão, baixou <strong>um</strong>a ord<strong>em</strong> para o porteiro:<br />

— Se não estiver nu, deixa entrar.<br />

A anfitriã e <strong>um</strong> elenco de outras estrelas da época — Maria Clara, Marília,<br />

Maria Lúcia, Glória, Dílmen — tomaram as providências indispensáveis.<br />

O som foi aluga<strong>do</strong> na Josias. Para entrar, além <strong>do</strong> convite personaliza<strong>do</strong>, ficou<br />

decidi<strong>do</strong> que cada casal deveria levar <strong>um</strong>a garrafa de scotch, ou <strong>um</strong>a quantia<br />

correspondente a ser usada na preparação da comida e no conserto de<br />

eventuais estragos patrimoniais.<br />

Alguém, no início da noite, porém, teve a intuição de que <strong>um</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is<br />

— a festa, não ainda o país — corria <strong>um</strong> certo risco. O jov<strong>em</strong> advoga<strong>do</strong> Rui<br />

Solberg, que ajudara na organização, chegou ce<strong>do</strong>, com sua mulher Glória<br />

Mariani, e pediu <strong>do</strong>is uísques. Era só “para começar”, <strong>um</strong>a espécie de entrada<br />

a <strong>um</strong>a noite que se anunciava longa e promissora. Quan<strong>do</strong> atenderam ao<br />

pedi<strong>do</strong>, ocupan<strong>do</strong>-lhe as mãos com duas garrafas de uísque escocês, ele levou<br />

susto. Pensou: “Isto não vai dar certo.” Veterano de festas, Rui não se l<strong>em</strong>brava<br />

de jamais, <strong>em</strong> qualquer delas, ter si<strong>do</strong> presentea<strong>do</strong> com duas garrafas ao pedir<br />

duas <strong>do</strong>ses.<br />

Apesar <strong>do</strong> exagero da oferta, Rui não devolveu as garrafas, graças ao quê<br />

guarda apenas l<strong>em</strong>branças vagas <strong>do</strong> que fez naquela noite — ou, mais precisamente,<br />

<strong>do</strong> que lhe fizeram.<br />

Recorda-se confusamente, por ex<strong>em</strong>plo, de que foi “sequestra<strong>do</strong>” para<br />

<strong>um</strong> canto deserto da casa por <strong>um</strong>a das jovens mais atraentes da festa e daqueles<br />

t<strong>em</strong>pos. S<strong>em</strong> esforço, quase contra a vontade — se a expressão no caso não<br />

fosse <strong>um</strong>a impropriedade —, Rui fora pr<strong>em</strong>ia<strong>do</strong> com <strong>um</strong> <strong>do</strong>s tesouros da<br />

noite, mas não só ele. Muitas das r<strong>em</strong>iniscências da festa registram o mesmo<br />

episódio repetin<strong>do</strong>-se com outras b<strong>em</strong>-aventuradas vítimas.<br />

N<strong>em</strong> to<strong>do</strong>s, porém, se <strong>em</strong>briagaram. Glauber Rocha, por ex<strong>em</strong>plo, que<br />

não dançava e quase não bebia — as drogas, mesmo a maconha, ainda não<br />

frequentavam oficialmente as reuniões sociais —, preferiu se divertir atiçan<strong>do</strong><br />

discussões entre os grupos. A sua cabeça estava ocupada <strong>em</strong> parte com<br />

a infindável polêmica suscitada por Terra <strong>em</strong> transe e <strong>em</strong> parte com o novo<br />

projeto para 68, O dragão da maldade contra o santo guerreiro. Seria difícil<br />

repetir o sucesso artístico <strong>do</strong> ano anterior, mas, qualquer que fosse a qualidade<br />

25


O rito de passag<strong>em</strong><br />

<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>, tinha-se a garantia de alguns meses de apaixonadas discussões<br />

e generalizadas controvérsias. Ninguém depois de Glauber, n<strong>em</strong> mesmo José<br />

Celso Martinez Corrêa, n<strong>em</strong> Caetano Veloso, <strong>do</strong>is mestres na arte da agitação<br />

cultural, possuiu idêntica capacidade de desarr<strong>um</strong>ar convicções estabelecidas<br />

— e de aglutinar ódios e paixões. Ele era <strong>um</strong> <strong>do</strong>s principais polos de atração<br />

da festa e <strong>do</strong> país naquele momento, e até morrer, <strong>em</strong> 81.<br />

Outros, apesar da importância, eram menos nota<strong>do</strong>s, como Geral<strong>do</strong><br />

Vandré. Esbarrava-se com o ainda pouco conheci<strong>do</strong> compositor s<strong>em</strong> se desconfiar<br />

de que ele viria a ser <strong>um</strong> <strong>do</strong>s personagens mais notórios <strong>do</strong> ano que começava.<br />

Ao contrário <strong>do</strong> que ensinaria sua famosa canção — “qu<strong>em</strong> sabe faz a<br />

hora, não espera acontecer” —, ele não soube fazer a sua na festa. Imobilizou<br />

Millôr durante horas n<strong>um</strong> canto da sala, com <strong>um</strong>a discussão meio s<strong>em</strong> senti<strong>do</strong>,<br />

e foi por isso o responsável pelo h<strong>um</strong>orista ter si<strong>do</strong>, como brinca, “o único<br />

a não arranjar ninguém naquela festa”. Em compensação, Millôr sentia prazer<br />

<strong>em</strong> dizer: “Ele é o autor da nossa Marselhesa, o nosso autêntico hino nacional.”<br />

N<strong>um</strong> canto da sala, o editor Ênio Silveira parecia se exaltar com o artista<br />

plástico Carlos Vergara. Não era preciso estar perto para adivinhar o conteú<strong>do</strong><br />

de <strong>um</strong>a discussão que envolvia <strong>um</strong> prócer <strong>do</strong> PC — responsável por alguns<br />

<strong>do</strong>s mais significativos lançamentos da época — e <strong>um</strong> jov<strong>em</strong> enragé, líder<br />

político de sua categoria, que por suas posições radicais era chama<strong>do</strong> de “Che<br />

Vergara”. O bate-boca <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anunciava <strong>um</strong> antagonismo que iria se ampliar<br />

com o t<strong>em</strong>po: a discussão entre comunismo e anticomunismo de esquerda.<br />

Regada pelo legítimo e generoso scotch, a d<strong>em</strong>orada troca de ideias —<br />

talvez mais de insultos <strong>do</strong> que de ideias — encerrou-se com <strong>um</strong> edificante<br />

diálogo que muitos puderam apreciar:<br />

— Os novos t<strong>em</strong>pos vão exigir muita macheza política — foi mais ou<br />

menos o que disse Vergara.<br />

— O probl<strong>em</strong>a não é mostrar os testículos, mas a cabeça — revi<strong>do</strong>u<br />

Ênio.<br />

A discussão quase inicia a primeira briga da noite. O metabolismo ideológico<br />

da época não admitia a convivência com a incerteza. Era <strong>um</strong> t<strong>em</strong>po<br />

s<strong>em</strong> meios-tons.<br />

O <strong>do</strong>no da Civilização Brasileira fazia parte da “turma da observação”<br />

— Fernan<strong>do</strong> Gasparian, José Colagrossi, Eurico Ama<strong>do</strong> —, <strong>um</strong> grupo que<br />

viera de outro réveillon e ainda não se conformara com o que estava ven<strong>do</strong>.<br />

26


1968 – O ano que não terminou<br />

“Espanta<strong>do</strong>s, eles estavam completamente out <strong>do</strong> clima da festa”, recorda-<br />

-se Maria Clara Mariani. Não era fácil para os representantes da “burguesia<br />

nacional” assistir a tantas liberalidades, principalmente quan<strong>do</strong> volta e meia a<br />

luz se apagava. Esses instantes se repetiam regularmente para que os casais se<br />

apertass<strong>em</strong> mais, se beijass<strong>em</strong>, fizess<strong>em</strong> enfim tu<strong>do</strong> o que faz<strong>em</strong> hoje à luz <strong>do</strong><br />

dia — na praia, nos bares, na rua.<br />

Quan<strong>do</strong> Ênio Silveira foi <strong>em</strong>bora, cruzou na entrada com Elio Gaspari,<br />

acompanha<strong>do</strong> da artista plástica Regina Vater. Longe ainda de ser o jornalista<br />

mais competente de sua geração, Gaspari era então <strong>um</strong> jov<strong>em</strong> repórter que<br />

acabara de fazer sua iniciação na coluna de Ibrahim Sued. Ele chegou mais ou<br />

menos às 11h, com a preocupação de não beber muito; não queria ficar de<br />

porre, queria ver e aproveitar to<strong>do</strong>s os momentos da festa.<br />

Durante anos a lenda recolheu pedaços de conversas, <strong>trecho</strong>s de matérias,<br />

frases, para construir <strong>um</strong> brilhante e imaginário ensaio sobre o réveillon<br />

da Helô, com o título “O último baile da Ilha Fiscal”. O cronista Roberto<br />

Marinho de Azeve<strong>do</strong> e a professora Heloisa s<strong>em</strong>pre estiveram entre os leitores<br />

dessa obra-prima. Atrás <strong>do</strong> pseudônimo Charles Perifort, o autor da antológica<br />

peça jornalística, escondia-se Elio Gaspari.<br />

“Não escrevi esse artigo simplesmente porque não vi a festa”, esclareceu<br />

Gaspari. Apesar <strong>do</strong>s sanduíches e da água que bebeu para cortar o porre que<br />

começava, Elio sentiu de repente que ia apagar e pediu a Helô <strong>um</strong> canto para<br />

<strong>do</strong>rmir. Quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>u, a festa tinha acaba<strong>do</strong>.<br />

“No dia seguinte, na praia”, l<strong>em</strong>brou Elio, “eu morri de vergonha: to<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> só falava <strong>do</strong> réveillon e eu com cara de idiota.”<br />

A praia era então o lugar onde se passavam a limpo os acontecimentos da<br />

véspera, e onde se escolhiam as versões que seriam veiculadas dali para a frente.<br />

Infelizmente, também, <strong>um</strong>a das mais cintilantes estrelas da noite ficou<br />

pouco t<strong>em</strong>po no réveillon. A “princesa”, como a tratavam seus incontáveis<br />

vassalos, chegou antes da meia-noite, como se fosse <strong>um</strong>a aparição. Os cabelos<br />

louros, naturalmente escorri<strong>do</strong>s, tinham-se transforma<strong>do</strong> <strong>em</strong> “mil cachos”, conforme<br />

exigência que fizera ao cabeleireiro. A calça, de seda preta, fora comprada<br />

<strong>em</strong> Paris, <strong>um</strong> modelo patte d’éléphant, preso por <strong>um</strong>a fivela de strass. O collant<br />

cor de carne sob a blusa de crochê prateada, transparente, dava <strong>um</strong>a perturba<strong>do</strong>ra<br />

ilusão de nudez aos seios. Naquele t<strong>em</strong>po, o corpo f<strong>em</strong>inino não exibia<br />

ainda seus mistérios <strong>em</strong> público, apenas sugeria. Vivia-se apenas o começo das<br />

27


O rito de passag<strong>em</strong><br />

mutações antropológicas que se iam tornar nítidas mais adiante: a ambiguidade<br />

sexual, os cabelos masculinos mais compri<strong>do</strong>s, a confusão de papéis, <strong>um</strong>a certa<br />

indiferenciação <strong>do</strong>s signos aparentes <strong>do</strong>s sexos, o declínio <strong>do</strong> macho.<br />

Maria Lúcia falou com alg<strong>um</strong>as pessoas, distribuiu sorrisos, mas n<strong>em</strong><br />

to<strong>do</strong>s puderam admirá-la mais d<strong>em</strong>oradamente. Pouco depois da meia-noite,<br />

sangran<strong>do</strong>, era conduzida por <strong>um</strong> amigo para a farmácia Noite e Dia, <strong>em</strong><br />

Copacabana.<br />

Foi tu<strong>do</strong> muito rápi<strong>do</strong>. A aparição dançava com a novidade daquele verão<br />

carioca, <strong>um</strong> forasteiro egípcio que, por ser também judeu, ganhou <strong>do</strong>s<br />

seus rivais <strong>um</strong> apeli<strong>do</strong> retira<strong>do</strong> da incom<strong>um</strong> combinação étnica: “contradição<br />

ambulante”. Dizia-se que era muito rico e contavam-se histórias mirabolantes<br />

a seu respeito. Ao certo, sabia-se que tinha <strong>um</strong>a cara estranhamente bela e <strong>um</strong><br />

nome com rima e aliteração, desde que pronuncia<strong>do</strong> à francesa: Soli Levi.<br />

Até onde se podia ver, o par dançava como se estivesse disputan<strong>do</strong> <strong>um</strong><br />

concurso de bom comportamento; n<strong>em</strong> de rostos cola<strong>do</strong>s estava. De repente,<br />

ela avistou o mari<strong>do</strong> vin<strong>do</strong> <strong>em</strong> sua direção. Estava transtorna<strong>do</strong>. S<strong>em</strong> dizer<br />

<strong>um</strong>a palavra, puxou-a pelo braço e desferiu-lhe <strong>um</strong>a bofetada — a mais sonora<br />

e indevida de <strong>um</strong>a noite que iria assistir a muitas outras. Além de sonoro e<br />

indevi<strong>do</strong>, o bofetão fora sobretu<strong>do</strong> inespera<strong>do</strong>.<br />

A bela atriz e o mari<strong>do</strong>, o cineasta Gustavo Dahl, formavam o primeiro<br />

“casal moderno” surgi<strong>do</strong> no olimpo carioca. Por “moderno”, devia-se entender a<br />

disposição para experiências existenciais que poderiam incluir casos e aventuras<br />

extraconjugais. Como to<strong>do</strong>s os segui<strong>do</strong>res desta seita de vanguarda, que procurava<br />

com <strong>um</strong> comportamento novo subverter as bases <strong>do</strong> casamento burguês, a<br />

atriz e seu diretor haviam estabeleci<strong>do</strong> <strong>um</strong> pacto que previa e preservava a autonomia<br />

de cada <strong>um</strong>. Os <strong>do</strong>is se davam o direito ao que a convenção chamava de<br />

infidelidade, desde que confessada, s<strong>em</strong> mentiras e segre<strong>do</strong>s. A infidelidade não<br />

deveria suprimir a lealdade, mas não deveria também incluir a paixão.<br />

S<strong>em</strong> as noções de ciúme e de traição, valores considera<strong>do</strong>s fetiches da<br />

moral burguesa, as relações amorosas ganhariam <strong>em</strong> consistência e solidez; se<br />

não ganhass<strong>em</strong>, era porque estavam baseadas <strong>em</strong> laços de convenção e preconceito,<br />

logo, não valiam a pena. Essa geração iria experimentar os limites não<br />

apenas na política, mas também no comportamento.<br />

Daí a surpresa da agressão. “Logo eles!?” — foi o que mais ou menos<br />

to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> comentou.<br />

28


1968 – O ano que não terminou<br />

Antes de saír<strong>em</strong> de casa, o mari<strong>do</strong> tentara impor <strong>um</strong>a restrição: que ela<br />

não dançasse com aquele egípcio que, nos últimos meses, vinha operan<strong>do</strong><br />

<strong>um</strong>a devastação nos corações que frequentavam a praia na altura da rua Montenegro<br />

e à noite iam ver Godard no Paissandu. Mas essa era <strong>um</strong>a cláusula de<br />

última hora, <strong>um</strong> casuísmo posterior ao verdadeiro pacto. De mais a mais, ela<br />

acabara de surpreender o mari<strong>do</strong> beijan<strong>do</strong> <strong>um</strong>a moça na cozinha.<br />

Mais tarde, já <strong>em</strong> 83, o belo alvo da talvez primeira bofetada <strong>do</strong> ano de<br />

1968 transporia o incidente para o seu primeiro <strong>livro</strong> — Qu<strong>em</strong> não ouve o seu<br />

papai, <strong>um</strong> dia... balança e cai —, <strong>um</strong>a deliciosa mistura de m<strong>em</strong>ória e ficção.<br />

Naquelas jovens cabeças revolucionárias, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre ao discurso libertário<br />

correspondia <strong>um</strong>a prática liberal. Tentava-se <strong>do</strong>minar a <strong>em</strong>oção como<br />

se ela fosse <strong>um</strong> animal <strong>do</strong>mesticável. O resulta<strong>do</strong> cost<strong>um</strong>ava se apresentar<br />

carrega<strong>do</strong> de contradições, como as <strong>do</strong> incidente daquela noite. Mas não seria<br />

tu<strong>do</strong> isso natural? Não era próprio das revoluções, inclusive as comportamentais,<br />

a convivência n<strong>um</strong>a etapa inicial <strong>do</strong> novo que se impõe com o arcaico<br />

que resiste?<br />

O fato é que o casamento moderno da atriz com o cineasta terminou ao<br />

som daquela bofetada e nunca mais pôde ser refeito.<br />

Ficou como <strong>um</strong> marco: foi o primeiro de <strong>um</strong>a série de 17 casamentos<br />

— modernos ou não — que se desfizeram naquela noite ou <strong>em</strong> consequência<br />

dela.<br />

Essa não foi, como se disse, a única briga da festa. Houve <strong>um</strong> momento <strong>em</strong><br />

que quase to<strong>do</strong>s os presentes, de alg<strong>um</strong>a maneira, apanharam ou bateram — e<br />

até hoje não sab<strong>em</strong> b<strong>em</strong> por quê. Sabe-se que a briga começou por causa de<br />

<strong>um</strong> desentendimento bobo entre o cineasta Afonso Beato e o jornalista Henrique<br />

Coutinho, com <strong>um</strong>a pequena e involuntária sobra para Luci Barreto,<br />

que dançava. Seu mari<strong>do</strong>, Luís Carlos, estava no jardim quan<strong>do</strong> lhe disseram<br />

qualquer coisa como: “Sua mulher está lá dentro apanhan<strong>do</strong>.” O primeiro<br />

safanão foi para o próprio informante.<br />

“Eu entrei no salão feito <strong>um</strong> trator, baten<strong>do</strong> <strong>em</strong> to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e apanhan<strong>do</strong><br />

de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>”, recordaria Barreto. “Não sei <strong>em</strong> qu<strong>em</strong> bati, n<strong>em</strong> qu<strong>em</strong><br />

me bateu.”<br />

Uma das poucas pessoas sóbrias da festa era o jov<strong>em</strong> Antônio Calmon,<br />

assistente de Glauber Rocha. Como bebia pouco e não ousava levar maconha<br />

29


O rito de passag<strong>em</strong><br />

para <strong>um</strong> lugar daqueles, pôde ser <strong>um</strong> bom observa<strong>do</strong>r. O que mais o impressionou<br />

foi o comportamento de <strong>um</strong>a das suas duas acompanhantes, <strong>um</strong>a líder<br />

estudantil, da AP, organização de tendência maoista que ainda iria dar muito<br />

trabalho.<br />

A bebida teve sobre ela <strong>um</strong> efeito libera<strong>do</strong>r que atuou mais sobre a linguag<strong>em</strong><br />

<strong>do</strong> que sobre a libi<strong>do</strong>. Boa parte da festa ela passou deitada no chão,<br />

gritan<strong>do</strong> s<strong>em</strong> sucesso: “Eu quero trepar! Eu quero trepar!” A briga ia até a<br />

porta, voltava, atropelava a líder da AP e a oferta continuava. Se já estivesse <strong>em</strong><br />

voga a citação de clichês psicanalíticos, alguém certamente catalogaria a cena<br />

como o desejo da fala suplantan<strong>do</strong> o <strong>do</strong> falo. Aliás, a presença <strong>do</strong> palavrão nos<br />

teatros, nos salões, nos <strong>livro</strong>s foi <strong>um</strong> <strong>do</strong>s fenômenos de 68. Ziral<strong>do</strong> chegou a<br />

usar o marketing da raridade para lançar <strong>um</strong>a peça: “É a única peça s<strong>em</strong> palavrão<br />

<strong>do</strong> teatro brasileiro”, anunciou. Ao contrário da seguinte, aquela era <strong>um</strong>a<br />

geração tagarela, como se verá n<strong>um</strong> capítulo desta história.<br />

O <strong>do</strong>no da casa, por outras razões, também não bebeu: ficou o t<strong>em</strong>po<br />

to<strong>do</strong> tentan<strong>do</strong> salvar o aparelho de som aluga<strong>do</strong> e o seu patrimônio, s<strong>em</strong> sucesso.<br />

“A casa ficou inteiramente destruída”, lamentou Luís. Ainda b<strong>em</strong> que<br />

as cerca de mil pessoas que ele calcula ter<strong>em</strong> passa<strong>do</strong> por lá naquela noite,<br />

quebran<strong>do</strong> móveis e danifican<strong>do</strong> a reserva ecológica da casa, a árvore, não<br />

foram suficientes para liquidar to<strong>do</strong> o uísque. Sobraram <strong>um</strong>as c<strong>em</strong> garrafas,<br />

que foram vendidas para pagar parte da reforma geral.<br />

Às seis da manhã, duas horas antes de a festa acabar, Luís assistiu à repetição<br />

da cena da amiga de Calmon: <strong>um</strong>a outra moça expressava idêntico desejo,<br />

deitada na grama, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> de fora. Se não fosse o perigo de duplo senti<strong>do</strong>,<br />

podia-se dizer que ela estava reclaman<strong>do</strong> de barriga cheia. A personag<strong>em</strong> era a<br />

mesma que horas antes sequestrara Solberg, entre outros.<br />

Mais insólita <strong>do</strong> que estas cenas, só a que Marília Carneiro surpreendeu,<br />

ao abrir <strong>um</strong> grande armário, também não se sabe para quê. Dentro, <strong>um</strong> casal<br />

tentava desajeitadamente fazer alg<strong>um</strong>a coisa que, só com muita dificuldade,<br />

<strong>um</strong> hom<strong>em</strong> e <strong>um</strong>a mulher consegu<strong>em</strong> fazer quan<strong>do</strong> escolh<strong>em</strong> <strong>um</strong> armário<br />

como cama.<br />

Mas o grande choque — antropológico, visual e sociológico — ocorreu<br />

com a entrada da atriz Florinda Bolkan, com <strong>um</strong>a minissaia vermelha que lhe<br />

cobria apenas alguns centímetros da região que se estende ao sul da cintura. A<br />

seu la<strong>do</strong>, aquela que passaria a ser nos anos seguintes <strong>um</strong>a companhia insepa-<br />

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1968 – O ano que não terminou<br />

rável: a condessa Cicogna. Este, sim, era <strong>um</strong> casal moderno. Pelo ineditismo,<br />

a exposição pública da hetero<strong>do</strong>xa união foi <strong>um</strong> acontecimento à parte.<br />

Por incrível que possa parecer, houve t<strong>em</strong>po também para a dança. Ao<br />

som de Roberto Carlos, Beatles, Caetano, Chico, dançou-se muito. Quan<strong>do</strong><br />

o baile ameaçava desanimar, punha-se Miriam Makeba, <strong>um</strong> sucesso musical e<br />

político da época. Proibida de entrar no seu país, a África <strong>do</strong> Sul, Makeba iria<br />

casar-se naquele ano com <strong>um</strong> <strong>do</strong>s líderes <strong>do</strong> Poder Negro americano, Stokely<br />

Carmichael. O seu hit era Pata-Pata, irresistível. Quan<strong>do</strong> o baile ameaçava<br />

desanimar, bastava repetir: “Sacundunga, sacundenga, auê pata-pata.”<br />

Houve muitas hipóteses para tentar explicar aquela explosão de sexualidade,<br />

violência, prazer e ansiedade, que marcou tanto as r<strong>em</strong>iniscências da época. É<br />

possível realmente que o “réveillon da casa da Helô” tenha condensa<strong>do</strong>, como<br />

<strong>um</strong>a metonímia, o país de então.<br />

Ênio Silveira achava que aquela grande libação significou “o fim de <strong>um</strong>a<br />

época e não, infelizmente, o começo de <strong>um</strong>a nova”.<br />

“Foi <strong>um</strong> delírio coletivo”, explicou Calmon. “Todas as crises internas<br />

explodiram ali. Pessoas com probl<strong>em</strong>as sexuais, como eu, que não conseguiam<br />

transar com isso, uniões infelizes, fantasias não realizadas, violências reprimidas,<br />

a perda na fé política, veio tu<strong>do</strong> à tona.”<br />

O som, a bebida, a euforia desorientada, <strong>um</strong>a excitação meio agônica,<br />

não deixavam, porém, que se percebesse isso. N<strong>em</strong> isso, n<strong>em</strong> o que iria ocorrer<br />

com o país.<br />

O nosso Titanic começava a sua viag<strong>em</strong>.<br />

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