15.07.2013 Views

Em quatrocentos golpes um retrato da juventude em Truffaut - jandre

Em quatrocentos golpes um retrato da juventude em Truffaut - jandre

Em quatrocentos golpes um retrato da juventude em Truffaut - jandre

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

<strong>Em</strong> “Quatrocentos Golpes” <strong>um</strong> <strong>retrato</strong> <strong>da</strong> <strong>juventude</strong> <strong>em</strong> <strong>Truffaut</strong><br />

Regina Zauk Leivas 1<br />

Res<strong>um</strong>o<br />

Neste artigo buscar-se-á estabelecer <strong>um</strong> trânsito entre cin<strong>em</strong>a e concepções de<br />

<strong>juventude</strong> através <strong>da</strong> análise do filme Les Quatre Cents Coups, intitulado no Brasil: Os<br />

Incompreendidos. Por seu caráter de denúncia <strong>em</strong> relação à omissão dos pais e <strong>da</strong>s<br />

escolas na formação dos jovens este filme marcou época sendo <strong>um</strong> precursor do<br />

movimento <strong>da</strong> “Nouvelle Vague”. Tal escolha se deve ao fato deste movimento ter<br />

influenciado sobr<strong>em</strong>aneira o cin<strong>em</strong>a mundial, incluso na América |Latina e no Brasil<br />

especificamente no chamado “Cin<strong>em</strong>a Novo”. Ain<strong>da</strong> hoje o t<strong>em</strong>a permanece palpitante.<br />

A guisa de conclusão buscar-se-á relacionar o modelo de <strong>juventude</strong> apresentado com<br />

o(s) de outras épocas, incluso com o que hoje se pode considerar como <strong>juventude</strong>(s).<br />

Palavras-chave: cin<strong>em</strong>a, filme, <strong>juventude</strong>, educação.<br />

O filme de François <strong>Truffaut</strong>: Les Quatre Cents Coups que pode ser traduzido<br />

como algo s<strong>em</strong>elhante à nossa expressão: “pintando os sete” e, que no Brasil recebeu o<br />

sugestivo título de Os Incompreendidos pode ser considerado <strong>um</strong> marco entre os filmes<br />

que possu<strong>em</strong> como foco a <strong>juventude</strong>.<br />

Pioneiro e fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> Nouvelle Vague este filme recebeu o prêmio de melhor<br />

direção no Festival de Cannes de 1959. É considerado <strong>um</strong> filme autobiográfico e gerou<br />

tamanha polêmica na época, principalmente na França, que os meios de comunicação<br />

abriram espaço para a discussão acerca <strong>da</strong> educação de jovens, na família e na escola,<br />

n<strong>um</strong> tom acusatório que apontava para a omissão <strong>em</strong> relação ao c<strong>um</strong>primento de suas<br />

obrigações.<br />

Analisar este filme sob a ótica dos estudos de Filosofia <strong>da</strong> Imag<strong>em</strong> significa<br />

d<strong>em</strong>arcar <strong>um</strong> território de análise balizado por conceitos, ou melhor por idéias relativas<br />

ao “mundo do cin<strong>em</strong>a” que permit<strong>em</strong> perceber que conquanto a noção de <strong>juventude</strong><br />

possa ter mu<strong>da</strong>do desde o momento histórico <strong>em</strong> que se passa a história há el<strong>em</strong>entos<br />

que permanec<strong>em</strong> e que são recorrentes e que pod<strong>em</strong> ser considerados originários de<br />

atuais <strong>juventude</strong>(s).<br />

Por outro lado cabe d<strong>em</strong>arcar que o cin<strong>em</strong>a v<strong>em</strong> se ocupando do t<strong>em</strong>a<br />

infância/<strong>juventude</strong> desde há muito, mas este foi <strong>um</strong> filme que procedeu <strong>um</strong>a ruptura no<br />

modo como isto era feito explicitando questões proposita<strong>da</strong>mente ocultas e que hoje,<br />

prestes a completar cinqüenta anos permanece atual por ter tratado desse assunto n<strong>um</strong><br />

momento <strong>em</strong> que não era com<strong>um</strong> fazê-lo dessa forma.<br />

<strong>Em</strong> Les Quatre Cents Coups <strong>Truffaut</strong> apresenta o personag<strong>em</strong> considerado por<br />

alguns críticos como alter ego do autor. Ele é Antoine Doinel interpretado por Jean-<br />

Pierre Leaud, <strong>um</strong> garoto de doze anos que vive na Paris do final dos anos cinqüenta.<br />

A cena inicial b<strong>em</strong> d<strong>em</strong>onstra o porquê do título original, afinal é disso que se<br />

trata, dos muitos <strong>golpes</strong> e panca<strong>da</strong>s (coups) que este menino receberá ao longo do filme.<br />

É na escola que o filme inicia, <strong>um</strong>a escola desvela<strong>da</strong> pelos alunos/meninos, sentados <strong>em</strong><br />

suas carteiras velhas e desconfortáveis, que passam de mão <strong>em</strong> mão a foto de <strong>um</strong>a<br />

mulher <strong>em</strong> trajes s<strong>um</strong>ários.<br />

1 Universi<strong>da</strong>de Católica de Pelotas-RS - Doutoran<strong>da</strong> do Programa de Pós-Graduação <strong>em</strong> Letras. e-mail:<br />

rezauk@bol.com.br


Muito rapi<strong>da</strong>mente a foto é requisita<strong>da</strong> pelo professor de francês ao aluno que<br />

malfa<strong>da</strong><strong>da</strong>mente foi pego com ela na mão, o nosso personag<strong>em</strong>, que é colocado de<br />

castigo contra a parede e atrás de <strong>um</strong> quadro negro.<br />

Este professor é <strong>um</strong> personag<strong>em</strong> que age como <strong>um</strong> fiscal de fábrica, veste <strong>um</strong><br />

uniforme que l<strong>em</strong>bra macacão de operário e trata seus alunos com intensa rudeza.<br />

Quando libera os alunos para o recreio não permite a Antoine que saia <strong>da</strong> sala de aula,<br />

alegando que “recreação não é <strong>um</strong> direito é recompensa”.<br />

Os colegas também não parec<strong>em</strong> <strong>em</strong> sua maioria, dignos de confiança, pois,<br />

neste ponto a escola, sábia e maldosamente, transforma alguns <strong>em</strong> fiscais de outros n<strong>um</strong><br />

forte mecanismo de controle.<br />

Desde estas cenas iniciais pod<strong>em</strong>os perceber que é o olhar de Antoine que nos<br />

conduz e ao próprio diretor, a câmara passeia pelas ruas de Paris levando-nos pelos<br />

caminhos de Antoine quando este sai <strong>da</strong> escola.<br />

O mundo desse personag<strong>em</strong> irá se dividir também com a casa, o pequeno e<br />

h<strong>um</strong>ilde apartamento onde mora com a mãe e o pai. Ali Antoine realiza pequenas<br />

tarefas, põe a mesa com cui<strong>da</strong>do, faz compras na mercearia. Neste “lar” são<br />

apresentados os personagens <strong>da</strong> mãe, <strong>um</strong>a bela mulher de gênio irascível e do pai que<br />

pensa quase todo o t<strong>em</strong>po no clube de rali do qual é presidente.<br />

Acuado pelo professor de francês, que lhe impusera como castigo <strong>um</strong>a tarefa<br />

impossível de realizar <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po; escrever quatrocentas vezes a frase: - “Eu<br />

estrago as paredes <strong>da</strong> sala de aula e maltrato a prosódia francesa”, Antoine decide<br />

cabular aula, junto com seu colega René.<br />

Neste primeiro dia <strong>em</strong> que cabula a aula vai a <strong>um</strong>a espécie de parque de<br />

diversões <strong>em</strong> que existe <strong>um</strong> aparelho de diversão que é, na ver<strong>da</strong>de, <strong>um</strong>a réplica <strong>da</strong><br />

antiga “lanterna mágica”, precursora do cin<strong>em</strong>atógrafo. Ali Antoine se diverte girando<br />

fixo ás paredes do aparelho pela força de atração e o v<strong>em</strong>os realmente feliz. Seria, de<br />

fato, <strong>um</strong>a homenag<strong>em</strong> de <strong>Truffaut</strong> a sua grande paixão, o cin<strong>em</strong>a.<br />

N<strong>um</strong> dos dias <strong>em</strong> que não vai a escola, Antoine an<strong>da</strong>ndo com o colega pelas<br />

ruas, encontra a mãe aos beijos com outro hom<strong>em</strong>. Não parece muito abalado com o<br />

fato, como se <strong>da</strong> mãe esperasse qualquer coisa.<br />

Inventa desculpas, falsifica bilhetes, até chegar ao ponto de dizer que não fora às<br />

aulas por motivo de falecimento de sua mãe.Descobertas suas mentiras é seriamente<br />

advertido pelos pais, ameaçado de envio para o “reformatório”. Foge para <strong>um</strong>a<br />

tipografia abandona<strong>da</strong> e n<strong>um</strong>a situação clichê (único momento <strong>em</strong> que v<strong>em</strong>os <strong>um</strong> clichê<br />

de vitimização <strong>da</strong> personag<strong>em</strong>) rouba leite para matar a fome.<br />

Quando o encontram a mãe, ao que parece, toma<strong>da</strong> por alg<strong>um</strong> r<strong>em</strong>orso se<br />

esmera <strong>em</strong> cui<strong>da</strong>dos, lhe dá banho e permite que durma na cama dos pais que é mais<br />

confortável. Conversam, e diante <strong>da</strong> declaração de Antoine de que gostaria de deixar a<br />

escola, a mãe arg<strong>um</strong>enta que a escola é o lugar onde, <strong>em</strong>bora se apren<strong>da</strong> muitas coisas<br />

desnecessárias como Álgebra e Ciências, há a linguag<strong>em</strong> que é muito importante porque<br />

s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong>os cartas para escrever. Faz com ele <strong>um</strong> acordo de que se na próxima<br />

re<strong>da</strong>ção ficasse entre os cinco primeiros <strong>da</strong> classe receberia mil francos.<br />

O acordo funciona e inspirado <strong>em</strong> Balzac, que se torna <strong>um</strong> ídolo para o menino<br />

este busca elaborar <strong>um</strong>a boa re<strong>da</strong>ção. N<strong>um</strong>a espécie de altar improvisado com caixas ele<br />

acende <strong>um</strong>a vela, o que causa <strong>um</strong> princípio de incêndio. Diante <strong>da</strong> bronca do pai, a mãe<br />

propõe <strong>um</strong>a i<strong>da</strong> ao cin<strong>em</strong>a para ver<strong>em</strong> “Paris é Nossa”.<br />

Esta i<strong>da</strong> ao cin<strong>em</strong>a é o único momento de felici<strong>da</strong>de familiar do filme, <strong>em</strong> que<br />

Antoine aparece de mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s com a mãe e o pai, depois de tomar sorvete, n<strong>um</strong> estado<br />

de espírito de profun<strong>da</strong> alegria que permanece mesmo no retorno para casa.


Antoine apresenta sua re<strong>da</strong>ção, mas o professor não acreditando na capaci<strong>da</strong>de<br />

do aluno o acusa de plagio. Ele foge <strong>da</strong> escola e se refugia na casa de René, este lhe diz<br />

que pode ficar por bastante t<strong>em</strong>po porque a casa é tão grande que há peças <strong>em</strong> que os<br />

próprios pais não cost<strong>um</strong>am entrar e, portanto, não perceberão sua presença.<br />

Após roubar<strong>em</strong> <strong>um</strong>a máquina de escrever do escritório <strong>em</strong> que trabalha o<br />

próprio pai, Antoine e o amigo tentam vendê-la a <strong>um</strong> receptador de rua, não o<br />

conseguindo, pois era necessária a nota de compra. O menino decide, então, devolvê-la<br />

ao escritório e aí t<strong>em</strong>os <strong>um</strong>a interessante declaração: - “Vou por <strong>um</strong> chapéu, o porteiro<br />

pensará que viu <strong>um</strong> hom<strong>em</strong>”.. Este menino ao longo do filme proferirá outras frases<br />

como esta de <strong>um</strong>a lógica quase infantil <strong>da</strong><strong>da</strong> sua incompreensão diante do mundo dos<br />

adultos.<br />

Acaba sendo descoberto e seu pai chamado, e aí <strong>Truffaut</strong> b<strong>em</strong> d<strong>em</strong>onstra o<br />

caráter de denúncia de seu filme, mas s<strong>em</strong> fazê-lo de modo panfletário, pois, a situação<br />

acaba por ser decidi<strong>da</strong> na delegacia de polícia para onde é levado pelo próprio pai.A<br />

partir de então sua situação passará a ser considera<strong>da</strong> caso de polícia.<br />

No diálogo que entabula com o delegado o pai explica que ele e a esposa<br />

tentaram de tudo para chegar a <strong>um</strong> entendimento com o menino, menos bater porque<br />

não seria de seu feitio, e declara: “Nós o deixávamos livre, talvez d<strong>em</strong>ais e agora não<br />

posso levá-lo para casa pois logo fugiria... Se pudesse vigiá-lo <strong>em</strong> alg<strong>um</strong> lugar”<br />

Ao que o delegado responde que poderia encaminhá-lo para <strong>um</strong> “Centro de<br />

Observação”, mas que para isso seria necessário <strong>um</strong> “pedido de correção paternal” para<br />

que a “educação vigia<strong>da</strong>” cui<strong>da</strong>sse dele.<br />

Os fortes termos utilizados; “pedido de correção paternal”, “educação vigia<strong>da</strong>”<br />

mostram que o que o espectador vira até então, era ain<strong>da</strong> muito pouco diante do que<br />

seria possível fazer <strong>em</strong> relação a nosso personag<strong>em</strong> no sentido de “corrigi-lo”.<br />

O menino é interrogado e é ele mesmo qu<strong>em</strong> assina o depoimento apresentado<br />

pelo escrivão. Logo a seguir, enquanto aguar<strong>da</strong> para ser levado ao “centro” é colocado<br />

com <strong>um</strong> adulto <strong>em</strong> <strong>um</strong>a cela. Com a chega<strong>da</strong> de duas mulheres prostitutas, transfer<strong>em</strong>no<br />

para <strong>um</strong>a cela individual que possui grades iguais as de <strong>um</strong>a gaiola.<br />

Retrato <strong>da</strong> <strong>juventude</strong> <strong>em</strong> Trufaut<br />

Este filme marcou época <strong>em</strong> vários aspectos não somente por ser pioneiro e<br />

precursor <strong>da</strong> “nouvelle vague”, mas à luz de análises <strong>da</strong>s quais pode se ocupar a<br />

filosofia <strong>da</strong> imag<strong>em</strong> cabe apontar que nele <strong>Truffaut</strong> não se utiliza <strong>da</strong> tradicional idéia de<br />

representação, não realizou esta obra n<strong>em</strong> para ser li<strong>da</strong> nas entrelinhas e/ou decifra<strong>da</strong><br />

através de metáforas, n<strong>em</strong> para a busca de significados ocultos. <strong>Em</strong> Os<br />

Incompreendidos “apresenta” <strong>um</strong>a história que é a sua historia e a <strong>da</strong> <strong>juventude</strong> <strong>da</strong> qual<br />

fez parte, n<strong>um</strong>a denúncia <strong>em</strong> relação ao mundo dos adultos que oprimiam os jovens e<br />

que eram eles próprios como crianças grandes <strong>em</strong> busca de seu próprio prazer.<br />

Na figura <strong>da</strong> mãe é possível perceber que se potencializam os mais fortes<br />

sentimentos. Quando ela vai a <strong>um</strong>a audiência com o juiz, pede a este que “assuste” o<br />

menino para que tome jeito porque ela e o marido não possu<strong>em</strong> autori<strong>da</strong>de. Questiona<strong>da</strong><br />

sobre prováveis omissões de sua parte na educação do menino, contesta dizendo que<br />

possu<strong>em</strong> ela e o marido seus afazeres, e há o caso <strong>da</strong> paixão do marido pelo<br />

automobilismo, enquanto o menino não gosta de esportes preferindo o cin<strong>em</strong>a e<br />

ad<strong>em</strong>ais, o marido não é o ver<strong>da</strong>deiro pai do menino e, portanto, já c<strong>um</strong>priu com muitas<br />

obrigações que n<strong>em</strong> seriam suas.


Quando o juiz decide colocar o menino <strong>em</strong> <strong>um</strong> centro para reabilitação a mãe<br />

entusiasticamente pergunta se não poderia ser n<strong>um</strong> lugar junto ao mar ao que o juiz<br />

contesta explicando que tal lugar não seria <strong>um</strong>a colônia de férias.<br />

Antoine d<strong>em</strong>onstra <strong>um</strong>a lógica que transcende fronteiras do juvenil <strong>em</strong> vários<br />

momentos do filme Se o presente dos adultos que o cercam t<strong>em</strong> algo a ver com seu<br />

futuro ele deixa claro que o recusa, não quer ser amanhã o que são hoje seus pais e<br />

professores.<br />

Enviado ao “Centro de Observação para Menores Delinqüentes”, já na chega<strong>da</strong><br />

leva <strong>um</strong>a bofeta<strong>da</strong> por ter comido <strong>um</strong> pe<strong>da</strong>ço de pão antes que fosse <strong>da</strong><strong>da</strong> ord<strong>em</strong> para<br />

que o fizesse, mas lhe é <strong>da</strong><strong>da</strong> chance de escolha sobre se quer apanhar com a mão<br />

esquer<strong>da</strong> ou com a direita.<br />

É submetido a ver<strong>da</strong>deiro interrogatório por <strong>um</strong>a psicóloga e é seu olhar que fala<br />

por ele mais <strong>um</strong>a vez. N<strong>um</strong>a estratégia magistral o personag<strong>em</strong> <strong>da</strong> psicóloga não é<br />

mostrado <strong>em</strong> cena apenas a escutamos de modo que tudo se possa concentrar <strong>em</strong><br />

primeiro plano no olhar de Antoine. Aí sua percepção se revela mais <strong>um</strong>a vez, n<strong>um</strong>a<br />

mistura de sentimentos infantis e n<strong>um</strong>a desespera<strong>da</strong> tentativa de ser <strong>um</strong> adulto <strong>em</strong> meio<br />

às exigências que lhe faz o mundo <strong>em</strong> que vive.<br />

Quando responde à pergunta sobre porque roubou dinheiro <strong>da</strong> avó o faz com<br />

<strong>um</strong>a pureza infantil alegando que a avó já estava velha, comia pouco, iria morrer <strong>em</strong><br />

breve por ser velha e portanto, não precisava de muito dinheiro. A avó n<strong>em</strong> percebera e<br />

até lhe dera <strong>um</strong> belo livro de presente, mas tanto livro quanto dinheiro foram<br />

confiscados pela mãe, que vendeu o livro e se apropriou do dinheiro. Antoine<br />

simplesmente narra o episódio como se a mãe tivesse o direito de fazer o que fez,<br />

revelando <strong>um</strong> tom de lamento apenas pela per<strong>da</strong> do livro.<br />

In<strong>da</strong>gado sobre se possuía experiência sexual, seu olhar mu<strong>da</strong> rapi<strong>da</strong>mente, de<br />

ingênuo para malicioso, mas explica que não fora além de <strong>um</strong>a grande curiosi<strong>da</strong>de<br />

sobre o assunto e quando fora à <strong>um</strong>a rua de prostituição, as moças brigaram com ele e o<br />

man<strong>da</strong>ram <strong>em</strong>bora por ser ain<strong>da</strong> muito jov<strong>em</strong>.<br />

Quando a psicóloga comenta a afirmação de seus pais de que ele mente s<strong>em</strong>pre<br />

sua resposta é interessante: _ “Eu poderia dizer a ver<strong>da</strong>de , mas não acreditariam, então<br />

prefiro mentir”.<br />

Esta certeza de que dizer a ver<strong>da</strong>de de na<strong>da</strong> adianta explica <strong>um</strong> pouco as atitudes<br />

de Antoine, mas diz muito mais do mundo <strong>em</strong> que ele vive, <strong>um</strong> mundo <strong>em</strong> que ver<strong>da</strong>de<br />

e mentira se misturam e não se diferenciam, <strong>um</strong>a escola que faz de conta que educa,<br />

pais que faz<strong>em</strong> de conta que são felizes e que se omit<strong>em</strong> <strong>da</strong> educação do filho<br />

transferindo-a a qu<strong>em</strong> consideram, tenha o ver<strong>da</strong>deiro poder, a policia e a justiça.<br />

O terço final do filme aponta para esta tensão entre ver<strong>da</strong>de e mentira. Ao<br />

receber a visita <strong>da</strong> mãe, ela está chorosa e reclama acerca de <strong>um</strong>a carta que Antoine<br />

escrevera ao pai e que conseguira abalar seu casamento. Provavelmente o menino<br />

mencionara na carta o mesmo que contara a psicóloga, isto é, que a mãe n<strong>em</strong> queria que<br />

nascesse, que engravi<strong>da</strong>ra muito jov<strong>em</strong> e iria fazer <strong>um</strong> aborto mas fora impedi<strong>da</strong> pela<br />

avó.<br />

A mãe ressalta que é graças ao pai que o menino t<strong>em</strong> <strong>um</strong> nome e que até iriam<br />

levá-lo para casa mas que isto não seria mais possível porque ele se queixara para o<br />

bairro todo, deixando os pais n<strong>um</strong>a situação vergonhosa. A situação do ponto de vista<br />

<strong>da</strong> mãe só era vergonhosa agora, porque se tornara de domínio público.<br />

Dizendo-se vitima de <strong>um</strong> complô a mãe se despede e lhe dá <strong>um</strong> recado do pai<br />

que pediu que dissesse que não mais se importava com ele, e que portanto não adiantava<br />

mais se fazer de vitima.


Mais <strong>um</strong>a vez é o olhar de Antoine que d<strong>em</strong>onstra o quanto ele está triste<br />

lamenta por saber que não mais verá a mãe, pelo menos, não mais <strong>da</strong> maneira que a vira<br />

até então.<br />

Trufaut coloca aí <strong>um</strong>a interessante situação; a mãe é tão patética com seu<br />

discurso vazio seus arg<strong>um</strong>entos inconsistentes, se coloca como vitima de <strong>um</strong> “complô<br />

de imbecis”, mas acusa a Antoine de se fazer de vítima. Ele que Trufaut preserva de<br />

elucubrações malévolas, ele que vive ao sabor <strong>da</strong>s imposições do mundo destes adultos,<br />

também incompreendidos, e que desfer<strong>em</strong> tantos <strong>golpes</strong> <strong>em</strong> <strong>um</strong> jov<strong>em</strong> que mais não fez<br />

do que tentar viver, rejeitando tais <strong>golpes</strong> e se defendendo deles como podia. Parece ser<br />

este o momento <strong>em</strong> que o autor está mais presente no filme.<br />

A <strong>juventude</strong> de os incompreendidos é <strong>um</strong>a <strong>juventude</strong> de pós-guerra. <strong>Truffaut</strong><br />

b<strong>em</strong> sabe que ele e Antoine viv<strong>em</strong> <strong>em</strong> <strong>um</strong> mundo confuso, <strong>da</strong>í os pais ocupados com<br />

coisas vazias, que preench<strong>em</strong> com falsos prazeres o vazio maior de suas vi<strong>da</strong>s. A<br />

situação é de apresentação deste mundo s<strong>em</strong> retoques e de <strong>um</strong> personag<strong>em</strong> que<br />

simplesmente vive e não busca explicar suas ações não sabe por que age, moral ou<br />

imoralmente, pois não parece haver diferença entre estes dois âmbitos. O jov<strong>em</strong> que<br />

roubou a máquina de escrever é o mesmo que a devolveu s<strong>em</strong> saber por que e seu olhar<br />

profundo de <strong>um</strong> negro abissal na<strong>da</strong> revela <strong>em</strong> determinados momentos para tudo revelar<br />

no momento seguinte, há nele <strong>um</strong>a eterna interrogação que é transferi<strong>da</strong> para o<br />

espectador.<br />

Antoine não pede por si, se esconde como defesa, . É na defesa dos <strong>golpes</strong> que<br />

lhe são desfechados que ele existe. Seriam <strong>quatrocentos</strong> <strong>golpes</strong>? Qu<strong>em</strong> sabe Reconhece<br />

que criou <strong>um</strong>a bola de neve <strong>em</strong> relação ás suas atitudes equivoca<strong>da</strong>s e tenta engendrar<br />

<strong>um</strong>a lógica de compreensão deste mundo, costurar para si canais de conexão com os<br />

outros, mas falha s<strong>em</strong>pre pois não lhe diz<strong>em</strong> como pode fazer isto.<br />

Antoine é só, muito sozinho, sua “delinqüência” acontece sob sua própria<br />

responsabili<strong>da</strong>de, o menino que pensa que o chapéu faz <strong>um</strong> hom<strong>em</strong> aproxima-se apenas<br />

de seu colega René, diferent<strong>em</strong>ente dos dias de hoje onde como nos diz Kehl os<br />

adolescentes possu<strong>em</strong> <strong>um</strong>a necessi<strong>da</strong>de visceral de se unir a grupos de pertença que<br />

resultam por vezes <strong>em</strong> ver<strong>da</strong>deiras fratrias, pois “unido por laços de soli<strong>da</strong>rie<strong>da</strong>de e<br />

c<strong>um</strong>plici<strong>da</strong>de ao grupo de amigos, sente-se mais potente e ao mesmo t<strong>em</strong>po mais<br />

protegido para testar os limites impostos pelos adultos”. (Kehl, 2005, p.113)<br />

Um dos finais mais polêmicos desde o início do cin<strong>em</strong>a<br />

Somente no final <strong>Truffaut</strong> se permite trabalhar metaforicamente apostando<br />

talvez no que plantara como canal de compreensão do espectador ao longo de todo o<br />

filme; o olhar de Antoine, <strong>um</strong> dispositivo catalisador.<br />

Depois <strong>da</strong> despedi<strong>da</strong> <strong>da</strong> mãe, aproveitando <strong>da</strong> distração dos carcereiros do<br />

reformatório durante <strong>um</strong> jogo de futebol, consegue fugir e corre s<strong>em</strong> parar, corre muito,<br />

como só <strong>um</strong> menino pode correr, e chega ao mar. É esta chega<strong>da</strong> ao mar que pela<br />

primeira vez no filme d<strong>em</strong>onstra que n<strong>em</strong> tudo está perdido, se <strong>um</strong>a mãe morreu pois<br />

para Antoine a última conversa com a mãe significa a morte <strong>da</strong> mesma, há no mundo<br />

<strong>um</strong>a outra mãe (l<strong>em</strong>brando que a palavra mar <strong>em</strong> francês é do gênero f<strong>em</strong>inino), que lhe<br />

permite correr livre, que não delimita fronteiras, que na<strong>da</strong> impõe e que o acolhe. E<br />

cindindo a metáfora com a necessi<strong>da</strong>de de explicitar <strong>um</strong>a situação, <strong>Truffaut</strong> aposta no<br />

olhar deste menino que tudo nos diz s<strong>em</strong> na<strong>da</strong> dizer que nos olha e transfere para nós<br />

mesmos, os espectadores, to<strong>da</strong>s as dúvi<strong>da</strong>s e to<strong>da</strong>s as certezas, <strong>um</strong> enigma para<br />

permanecer colocado <strong>em</strong> poucos segundos neste que foi <strong>um</strong> dos finais mais marcantes<br />

<strong>em</strong> <strong>um</strong> filme até hoje.


O segredo, <strong>Truffaut</strong> o guar<strong>da</strong>ra para si, o público só soube mais tarde que<br />

Antoine Doinel viveria para contar outras histórias <strong>em</strong> mais cinco filmes.<br />

Com as on<strong>da</strong>s do mar <strong>em</strong> Quatrocentos Golpes as on<strong>da</strong>s <strong>da</strong> nouvelle vague<br />

Característica <strong>da</strong> “Nouvelle Vague” é a ruptura com a estrutura narrativa<br />

tradicional, são os personagens que un<strong>em</strong> <strong>em</strong> si os el<strong>em</strong>entos que se configuram como<br />

fragmentos de <strong>um</strong> discurso. O personag<strong>em</strong> é catalisador de <strong>um</strong> fenômeno discursivo e<br />

na explicitação de seus sentimentos, nas manifestações de sua corporali<strong>da</strong>de, na<br />

profundi<strong>da</strong>de de seus olhares e na liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong><strong>da</strong> à câmara, é que o filme acontece.<br />

Assim é <strong>em</strong> Quatre Cents Coups, <strong>um</strong> filme que acontece pelo confluir de<br />

ambigüi<strong>da</strong>des <strong>em</strong> que Antoine está imerso, por isso o caráter de ruptura deste filme com<br />

to<strong>da</strong> <strong>um</strong>a construção estética tradicional, resultando no que <strong>Truffaut</strong> propunha, a<br />

“superação <strong>da</strong> tirania visual” a que estavam submetidos os cineastas <strong>da</strong>quela época,<br />

tirania a qual ele próprio recusava se submeter.<br />

Neste filme e <strong>em</strong> outros que se seguiriam o drama não está no enredo, está na<br />

existência do personag<strong>em</strong>, existir é <strong>um</strong> drama, <strong>da</strong><strong>da</strong> nossa busca que acontece a todo<br />

instante. São os instantes que determinam a montag<strong>em</strong>, são os instantes que costuram os<br />

fragmentos que brotam <strong>da</strong> alma do personag<strong>em</strong>. Não há mais como seguir os cânones e<br />

por isso o personag<strong>em</strong> (e por que não o espectador?) se deixa levar ao sabor <strong>da</strong> on<strong>da</strong>, <strong>da</strong><br />

vague, <strong>da</strong> “nouvelle vague”.<br />

Nesta on<strong>da</strong> que nos traz <strong>Truffaut</strong>, cabe a representação/apresentação apenas<br />

como tentativa de aproximação plena de <strong>um</strong>a reali<strong>da</strong>de h<strong>um</strong>ana, que não é política e<br />

n<strong>em</strong> mesmo psicológica, é simplesmente h<strong>um</strong>ana e simultaneamente simples e<br />

complexa. Tudo precisa acontecer s<strong>em</strong> envere<strong>da</strong>r pelo caminho <strong>da</strong> autocomiseração e<br />

ain<strong>da</strong> menos <strong>da</strong> denúncia política (ponto de vista que o fez romper com Go<strong>da</strong>rd).<br />

Antoine simplesmente vive, e viver neste caso é improvisar, assim como os<br />

filmes <strong>da</strong> “nouvelle vague” segu<strong>em</strong> os r<strong>um</strong>os de <strong>um</strong>a improvisação ao sabor de <strong>um</strong>a<br />

estética <strong>da</strong> necessi<strong>da</strong>de, onde os custos determinam os limites. Para Antoine viver é<br />

improvisar, diante <strong>da</strong> desord<strong>em</strong> do mundo <strong>em</strong> que vive. Não há fio condutor. Não há,<br />

mesmo, <strong>um</strong>a cor<strong>da</strong>-bamba onde se equilibrar. Para esta <strong>juventude</strong> viver é mergulhar no<br />

vazio do desconhecido.<br />

O drama não é explicitado, não existe como clichê, existe por esta<br />

indeterminação do viver, pela busca pelos fragmentos do amor, pela certeza de que a<br />

morte virá. Diante disso, por que dramatizar? Seria no mínimo redun<strong>da</strong>nte.<br />

E hoje, o que seria de Antoine Doinel?<br />

Visto a luz dos dias de hoje este filme nos apresenta <strong>um</strong>a <strong>juventude</strong> que não<br />

existe mais, a “delinqüência” de Antoine seria risível diante <strong>da</strong> delinqüência de Ken-<br />

Park, de Kids ou dos nossos nacionais, Ci<strong>da</strong>de de Deus e Cama de Gato. Para Antoine<br />

bastaria enviá-lo pelos caminhos dos “mecanismos de correção” mostrados no filme.<br />

Aquele era <strong>um</strong> mundo <strong>em</strong> que adultos mal resolvidos ou não, ditavam as regras e<br />

impunham caminhos. Nosso mundo como explica Abramo(2005) é <strong>um</strong> mundo de<br />

“adultos juvenilizados”.<br />

O olhar de Antoine, que pod<strong>em</strong>os considerar como <strong>um</strong> mote do filme apresenta<br />

traços de doçura, mostra-se feliz nos momentos de aproximação com o cin<strong>em</strong>a. Onde<br />

está o olhar do jov<strong>em</strong> dos filmes de hoje? Há como ver brotar a alma de <strong>um</strong> filme sobre<br />

<strong>juventude</strong>, através do olhar de <strong>um</strong> personag<strong>em</strong> de hoje?


Se para Antoine o dil<strong>em</strong>a se res<strong>um</strong>ia n<strong>um</strong> conflito entre ver<strong>da</strong>de e mentira, entre<br />

agir moralmente ou não, para os jovens dos filmes de hoje o conflito se coloca entre<br />

morte e vi<strong>da</strong>. A fronteira d<strong>em</strong>arca<strong>da</strong> pelos tormentos interiores de Antoine há muito foi<br />

atravessa<strong>da</strong> pelos outros jovens que lhe sucederam.N<strong>um</strong>a associação, n<strong>um</strong> somatório de<br />

conflitos pessoais eles sab<strong>em</strong> que pod<strong>em</strong>, se quiser<strong>em</strong>, devolver a violência ou<br />

simplesmente agir de modo violento.<br />

Para Antoine a sexuali<strong>da</strong>de era algo incipiente, se fosse <strong>um</strong> personag<strong>em</strong> de hoje,<br />

provavelmente, teria experiência sexual, ao que seria fácil aliar a violência. Aquele<br />

menino cometia pequenos furtos e não dizia a ver<strong>da</strong>de mas sabia explicar porque o<br />

fazia, nossos atuais personagens n<strong>em</strong> se <strong>da</strong>riam a este trabalho.<br />

Enfim, buscar comparar aquele jov<strong>em</strong> aos de hoje, assim como o contexto<br />

juvenil <strong>em</strong> que viveram, nos pode servir para corroborar a idéia de que não t<strong>em</strong>os <strong>um</strong><br />

padrão de <strong>juventude</strong>, t<strong>em</strong>os sim <strong>juventude</strong>s, existentes n<strong>um</strong>a diversi<strong>da</strong>de que ocorre no<br />

t<strong>em</strong>po e no espaço.<br />

Parece possível fazer <strong>um</strong>a analogia com as on<strong>da</strong>s que vão e v<strong>em</strong>, com as vagues<br />

tão barulhentas (lê bruit des vagues é também o título de <strong>um</strong>a música francesa que<br />

marcou época), assim é a <strong>juventude</strong>, que v<strong>em</strong> e vai como a on<strong>da</strong> que quebra na praia. O<br />

jov<strong>em</strong> Antoine que correu para o mar, não existe mais, mas a imag<strong>em</strong> de seu olhar<br />

enigmático permanece depois de quase cinqüenta anos e permanecerá enquanto existir<br />

alguém que aprecie <strong>um</strong> ótimo filme.<br />

Referências Bibliográficas<br />

ÁBRAMO, Helena. Condição Juvenil no Brasil Cont<strong>em</strong>porâneo. In: ABRAMO,<br />

Helena & MARTONI, Pedro Paulo (orgs) Retratos <strong>da</strong> Juventude Brasileira: Análises<br />

de <strong>um</strong>a pesquisa nacional. São Paulo: Fun<strong>da</strong>ção Perseu Abramo/Instituto Ci<strong>da</strong><strong>da</strong>nia,<br />

2005.<br />

KEHL, Maria Rita. Juventude como Sintoma <strong>da</strong> Cultura. In: NOVAES, Regina &<br />

VANUCHI, Paulo (Orgs). Juventude e Socie<strong>da</strong>de: trabalho,educação, cultura e<br />

participação. São Paulo: Fun<strong>da</strong>ção Perseu Ábramo, 2005.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!