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Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

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O Direito Penal e o político: do limite do po<strong>de</strong>r<br />

penal ao po<strong>de</strong>r penal sem limite<br />

Vera Regina Pereira <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong><br />

O conceito paradigmático <strong>de</strong> Direito Penal na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é o <strong>de</strong><br />

um Direito i<strong>de</strong>ntificado com a lei (normativida<strong>de</strong>) e a Ciência Penal<br />

dogmática ou dogmática penal, racionalizador do po<strong>de</strong>r punitivo estatal,<br />

e assim sacralizado como Direito garantista.<br />

Abrigado na i<strong>de</strong>ologia normativista e liberal, o Direito Penal é<br />

invariavelmente <strong>de</strong>finido e tratado, até hoje, na manualística dogmática,<br />

como um conjunto <strong>de</strong> normas que <strong>de</strong>finem crimes e impõem penas que,<br />

vertidas em objeto da construção dogmática, objetivam racionalizar o<br />

po<strong>de</strong>r punitivo estatal. No mesmo movimento em que o Direito Penal<br />

aparece como limite normativo e técnico-científico do po<strong>de</strong>r punitivo,<br />

o po<strong>de</strong>r punitivo se converte em jus puniendi, direito estatal <strong>de</strong> punir.<br />

Produz-se, assim, uma extraordinária <strong>de</strong>spolitização e neutralização,<br />

tanto do po<strong>de</strong>r que é visceralmente político (o po<strong>de</strong>r penal do Estado),<br />

quanto do Direito (Penal), que o instrumentaliza e legitima pela<br />

legalida<strong>de</strong>. Consegue-se a proeza <strong>de</strong> apresentar a questão da pena como<br />

não política.<br />

Amalgamado com o conceito normativista e liberal do po<strong>de</strong>r e do<br />

político, radica, a sua vez, na manualística dogmática do Direito Penal,<br />

um conceito consensual <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>, concebida como uma realida<strong>de</strong><br />

atomizada, ficticiamente conformada por sujeitos <strong>de</strong> direito livres e<br />

iguais, para logo a seguir ser maniqueistamente dividida entre o bem<br />

(os cidadãos, os homens “médios” e as mulheres “honestas” do Direito<br />

Penal) versus o mal (bandidos e prostitutas), e cujo único dissenso,<br />

no contrato social assim firmado transita do conflito interindividual à<br />

criminalida<strong>de</strong>. Nessa socieda<strong>de</strong> não se visualizam conflitos <strong>de</strong> classe,<br />

étnicos, raciais ou quaisquer outros, dominações <strong>de</strong> gênero, preconceitos<br />

raciais, assimetrias, subordinações ou discriminações; não se visualizam,<br />

em uma palavra, violências que não a violência individual do crime <strong>de</strong><br />

rua (contra o patrimônio individual e contra os corpos).<br />

Essas concepções servem tanto ao normativismo dogmático<br />

quanto ao positivismo criminológico, tanto ao Direito Penal, quanto<br />

à Criminologia etiológica. Em rigor, não são outros os pressupostos<br />

subjacentes à clássica concepção <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rafael Garofalo (1)<br />

ao distinguir, no século XIX e com força secular, entre crimes naturais e<br />

crimes artificiais: uma distinção que irá entrar para a história do Oci<strong>de</strong>nte<br />

capitalista, consolidando a “naturalização” da criminalida<strong>de</strong>, exceto a<br />

criminalida<strong>de</strong> política. Com efeito, aos <strong>de</strong>nominados crimes políticos se<br />

reconhecia o estatuto <strong>de</strong> artificiais ou artificialmente construídos porque<br />

crimes contra o Estado ou a or<strong>de</strong>m política, dimensão à qual se reduz,<br />

precisamente, o conceito (liberal) <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> político.<br />

No marco do Direito Penal esta i<strong>de</strong>ntificação continua eternizada.<br />

É apenas no marco das Criminologias críticas, <strong>de</strong>senvolvidas com base<br />

no paradigma da reação ou controle social, que o conceito do político<br />

será submetido a um revisionismo, diga-se <strong>de</strong> passagem, bastante tardio.<br />

De fato, nascerá daí uma concepção micropolítica e macrossocial que<br />

reconhecerá finalmente aquilo que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> disciplinas como a História,<br />

a Historiografia, a Teoria Política, a Sociologia, a Economia política e<br />

a Economia política da pena, já havia sido reconhecido há quase um<br />

século antes: a politicida<strong>de</strong> do mecanismo punitivo.<br />

Assim Max Weber, (2) ao caracterizar o Estado mo<strong>de</strong>rno, afirmava<br />

que a pretensão do monopólio da violência física legítima (legitimada<br />

pela legalida<strong>de</strong>) é o que caracteriza o aspecto especificamente político<br />

da dominação numa socieda<strong>de</strong> territorialmente <strong>de</strong>marcada. A pena é o<br />

núcleo do exercício do po<strong>de</strong>r, do controle e do domínio numa socieda<strong>de</strong><br />

e o sistema penal, institucionalização estatalmente centralizada daquela<br />

violência, se refugiará no “reino da lei”.<br />

Demonstrar a politicida<strong>de</strong> do Direito Penal,<br />

para o jurista, talvez tenha sido o legado<br />

mais constrangedor da <strong>de</strong>slegitimação da<br />

pena <strong>de</strong> prisão e do controle penal mo<strong>de</strong>rno,<br />

operada pelas Criminologias <strong>de</strong> base crítica,<br />

tanto na aca<strong>de</strong>mia quanto na empiria (...)<br />

Assim, ao mesmo tempo em que o Estado mo<strong>de</strong>rno encontrou na<br />

pena um núcleo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político, <strong>de</strong> controle e domínio, necessitou<br />

formalmente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu nascimento, <strong>de</strong> discursivida<strong>de</strong>s (normas,<br />

saberes, i<strong>de</strong>ologias) tão aptas para o exercício efetivo <strong>de</strong>ste po<strong>de</strong>r quanto<br />

para a sua justificação e legitimação. (3)<br />

O Direito e a Dogmática penal, com seus discursos do crime e da<br />

pena, constituem uma discursivida<strong>de</strong> central para este exercício <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,<br />

controle e domínio. É plena <strong>de</strong> sentido, nesta perspectiva, a conclusão <strong>de</strong><br />

Cirino dos Santos, (4) <strong>de</strong> que “a teoria da pena coloca o profissional da<br />

justiça penal em contato com as estruturas e os mecanismos do po<strong>de</strong>r<br />

político do Estado, mais do que qualquer teoria jurídica. Descrever a<br />

teoria da pena é <strong>de</strong>finir o discurso e a prática do po<strong>de</strong>r punitivo, na<br />

dupla dimensão da i<strong>de</strong>ologia penal”.<br />

Restitui-se ao Direito Penal e à pena o seu caráter visceralmente<br />

político, a partir, e isso é fundamental, <strong>de</strong> uma visão unitária do<br />

mecanismo punitivo, na qual criação, aplicação e execução da norma<br />

penal são re<strong>de</strong>finidos, cada qual com sua especificida<strong>de</strong> e diferença, no<br />

continuum e na unida<strong>de</strong> funcional do processo <strong>de</strong> criminalização, como<br />

criminalização primária (criação da lei penal), criminalização secundária<br />

(aplicação da lei penal) e estigmatização e construção <strong>de</strong> “carreiras<br />

<strong>de</strong>sviadas” (execução penal) etc.<br />

Criminologicamente, o Direito Penal (norma e técnica ou tecnologia)<br />

não será mais concebido como uma dimensão externa <strong>de</strong> racionalização<br />

da pena e do po<strong>de</strong>r punitivo (discursivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> limite), mas sim como<br />

uma dimensão interna (discursivida<strong>de</strong> e i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> programação,<br />

operacionalização e autolegitimação) do exercício do po<strong>de</strong>r punitivo.<br />

Logo, não paira no camarim da história, mas é constitutivo da construção<br />

social da criminalida<strong>de</strong>, da criminalização seletiva e estigmatizante, da<br />

distribuição <strong>de</strong>sigual e às vezes genocida, que o po<strong>de</strong>r faz do status<br />

social <strong>de</strong> criminosos (e vítimas), e que a socieda<strong>de</strong> e o Estado brasileiro<br />

têm historicamente materializado.<br />

Inferência complementar dá conta, pois, que há uma histórica<br />

violação <strong>de</strong> direitos humanos da qual o Direito Penal <strong>de</strong>claradamente<br />

“garantista” coparticipa, abrigado na neutralização política liberal e<br />

normativista, segundo a qual o problema só se torna político quando se<br />

está diante <strong>de</strong> crimes contra o Estado, que recebem o nome, propriamente,<br />

<strong>de</strong> crimes políticos.<br />

Ao falar do Direito Penal e do político na contemporaneida<strong>de</strong>, em<br />

tempos <strong>de</strong> globalização do capitalismo sob a i<strong>de</strong>ologia neoliberal, somos<br />

remetidos, ainda, a outra e <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>ira questão: a morte <strong>de</strong> uma forma<br />

tradicional <strong>de</strong> fazer política no espaço público <strong>de</strong>mocrático e pluralista,<br />

aquela que passava centralmente pelo Estado e seus mecanismos <strong>de</strong><br />

representação e <strong>de</strong>cisão política. Estamos diante da fragilização e crise<br />

13<br />

Ano 20 - nº 240- novembro/2012 - ISSN 1676-3661

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