18.01.2014 Views

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Publicação Oficial do<br />

<strong>Instituto</strong> <strong>Brasileiro</strong> <strong>de</strong> Ciências <strong>Criminais</strong><br />

8<br />

Especificamente no que tange aos processos que envolvam a<br />

celebração <strong>de</strong> acordo <strong>de</strong> leniência, a celeuma é um pouco diversa, mas<br />

não menos problemática.<br />

Consoante dispunha o art. 35-C da antiga Lei <strong>de</strong> Defesa da Concorrência,<br />

a celebração <strong>de</strong> acordo <strong>de</strong> leniência com a Secretaria <strong>de</strong> Direito Econômico<br />

suspendia o curso do prazo prescricional e o seu cumprimento extinguia a<br />

punibilida<strong>de</strong> dos crimes previstos na Lei 8.137/1990.<br />

Da maneira como era previsto esse benefício penal, não havia<br />

vedação para que o Ministério Público instaurasse uma ação penal em<br />

face do leniente a fim <strong>de</strong> apurar o seu eventual envolvimento no <strong>de</strong>lito <strong>de</strong><br />

quadrilha – em tese, praticado em conjunto com o crime <strong>de</strong> formação <strong>de</strong><br />

cartel –, ainda que tivesse sido <strong>de</strong>clarada extinta a sua punibilida<strong>de</strong> com<br />

relação a este último em <strong>de</strong>corrência do acordo.<br />

Muito embora o conceito do bis in i<strong>de</strong>m impedisse esta prática também<br />

nesses casos, a ativida<strong>de</strong> corriqueira dos órgãos ministeriais <strong>de</strong>monstrava<br />

exatamente o contrário, criando uma imensa insegurança jurídica para<br />

o colaborador que, mesmo após prestar todas as informações acerca da<br />

conduta <strong>de</strong>litiva sob investigação e cumprir com suas obrigações no<br />

acordo, acabava por ser punido na esfera penal.<br />

Ora, era inaceitável que o proponente recebesse imunida<strong>de</strong> apenas<br />

pelos crimes previstos na Lei 8.137/1990, ao passo que as acusações que<br />

envolviam a prática <strong>de</strong> cartel po<strong>de</strong>riam trazer a imputação <strong>de</strong> diversos<br />

outros tipos penais, como o previsto no art. 288 do Código Penal, mesmo<br />

que <strong>de</strong> maneira equivocada.<br />

Atento a essa falha do instituto e consi<strong>de</strong>rando que “os beneficiários<br />

dos acordos <strong>de</strong> leniência vêm sendo processados por crime <strong>de</strong> quadrilha<br />

ou bando, o que po<strong>de</strong> afastar preten<strong>de</strong>ntes à leniência, temerosos <strong>de</strong><br />

que a ‘imunida<strong>de</strong>’ prometida não se revele efetiva em relação a dito<br />

tipo penal”, e ainda “Com o escopo <strong>de</strong> manter o Programa <strong>de</strong> Leniência<br />

nessa trajetória ascen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> celebrada efetivida<strong>de</strong> no âmbito nacional<br />

e internacional”, (9) o legislador propôs mudanças na novel Lei <strong>de</strong> Defesa<br />

da Concorrência quanto aos benefícios penais do acordo <strong>de</strong> leniência.<br />

Com efeito, a Lei 12.529/2011 passou a prever em seu art. 87:<br />

“Art. 87. Nos crimes contra a or<strong>de</strong>m econômica, tipificados na<br />

Lei 8.137, <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1990, e nos <strong>de</strong>mais crimes diretamente<br />

relacionados à prática <strong>de</strong> cartel, tais como os tipificados na Lei 8.666, <strong>de</strong><br />

21 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1993, e os tipificados no art. 288 do Decreto-lei 2.848,<br />

<strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1940 – Código Penal, a celebração <strong>de</strong> acordo <strong>de</strong><br />

leniência, nos termos <strong>de</strong>sta Lei, <strong>de</strong>termina a suspensão do curso do<br />

prazo prescricional e impe<strong>de</strong> o oferecimento da <strong>de</strong>núncia com relação ao<br />

agente beneficiário da leniência. Parágrafo único. Cumprido o acordo <strong>de</strong><br />

leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilida<strong>de</strong> dos<br />

crimes a que se refere o caput <strong>de</strong>ste artigo” (grifos nossos).<br />

À primeira vista, po<strong>de</strong>-se enten<strong>de</strong>r que andou bem o legislador ao<br />

incluir no rol <strong>de</strong> crimes passíveis <strong>de</strong> imunida<strong>de</strong> penal o <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> quadrilha<br />

ou bando e outros diretamente relacionados à prática do cartel. Isso porque<br />

tal previsão certamente trará maior segurança ao participante do cartel<br />

para que forneça às autorida<strong>de</strong>s antitruste todas as informações e <strong>de</strong>talhes<br />

concernentes ao ajuste, ainda que os elementos levados ao conhecimento<br />

da Secretaria <strong>de</strong> Direito Econômico revelem o seu envolvimento em<br />

novos crimes.<br />

Todavia, no que concerne ao <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> quadrilha ou bando, não resolve<br />

a questão do bis in i<strong>de</strong>m. Ao contrário, o legislador parece autorizar o<br />

oferecimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia com imputações concomitantes <strong>de</strong> formação <strong>de</strong><br />

cartel e quadrilha contra aqueles que não celebraram acordo <strong>de</strong> leniência.<br />

Infelizmente, o po<strong>de</strong>r legiferante, no intuito <strong>de</strong> proteger um dos mais<br />

importantes instrumentos <strong>de</strong> combate a cartéis e tentar corrigir as falhas<br />

da legislação anterior, sedimentou interpretação equivocada que já vinha<br />

há tempos sendo explorada pelos representantes do Ministério Público.<br />

O <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> combater as conhecidas imputações excessivas já não<br />

era fácil, sobretudo em casos <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> cartel, infração que, em<br />

razão dos efeitos prejudiciais que produz no mercado, aos consumidores<br />

e aos agentes econômicos, preocupa não só as autorida<strong>de</strong>s concorrenciais<br />

brasileiras, mas órgãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da concorrência <strong>de</strong> todo o mundo, o que<br />

faz alimentar ainda mais a gana acusatória.<br />

Espera-se que com a alteração legislativa essa tarefa não se torne<br />

ainda mais árdua. Até mesmo porque a questão envolve princípios<br />

fundamentais <strong>de</strong> Direito Penal que impe<strong>de</strong>m a prática do bis in i<strong>de</strong>m em<br />

toda e qualquer acusação, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da celebração <strong>de</strong> acordo <strong>de</strong><br />

leniência. Trata-se da regra da especialida<strong>de</strong> que facilmente indica qual<br />

a norma incriminadora a ser aplicada à espécie. Imputação <strong>de</strong> cartel e<br />

quadrilha sobre uma mesma conduta é inaceitável.<br />

Notas<br />

(1) Anexo I da Resolução do CADE 20, <strong>de</strong> 09.06.1999.<br />

(2) Na Ciência Econômica, enten<strong>de</strong>-se por cartel o “(...) grupo <strong>de</strong> empresas<br />

in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes que formalizam um acordo para sua atuação coor<strong>de</strong>nada,<br />

com vistas a interesses comuns. O tipo mais freqüente <strong>de</strong> cartel é o <strong>de</strong><br />

empresas que produzem artigos semelhantes <strong>de</strong> forma a constituir um<br />

monopólio <strong>de</strong> mercado” (Sandroni, Paulo (org. e superv.). Novíssimo<br />

dicionário <strong>de</strong> economia. São Paulo: Best Seller, 2003. p. 84).<br />

(3) Branco, Nelson <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>; Barreto, Celso <strong>de</strong> Albuquerque. Repressão ao<br />

abuso do po<strong>de</strong>r econômico. São Paulo: Atlas, 1964. p. 30.<br />

(4) Sobre o assunto, discorreu <strong>de</strong> maneira brilhante o Professor Miguel Reale<br />

Júnior: “No crime <strong>de</strong> quadrilha ou bando, previsto no art. 288 do Código<br />

Penal, há ações paralelas <strong>de</strong> cada participante com o fim <strong>de</strong> cometer<br />

crimes, sendo cada um autor e não co-autor. No crime <strong>de</strong> cartel igualmente<br />

o concurso é necessário, pois se realiza por meio <strong>de</strong> acordo ou ajuste<br />

entre pessoas que são os sujeitos ativos do crime. No concurso necessário<br />

a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeitos ativos não é uma eventualida<strong>de</strong>, mas sim dado<br />

elementar do tipo penal, sendo um ‘dado técnico-legislativo que expressa<br />

relevo fundante e essencial à lesão real ou potencial ao bem jurídico<br />

tutelado’. Assim, a exigência <strong>de</strong> uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeitos ativos <strong>de</strong>corre<br />

do tipo que por sua vez colhe essa estrutura plural na própria realida<strong>de</strong>,<br />

pois só a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atores principais como assinalados no tipo po<strong>de</strong><br />

criar uma situação <strong>de</strong> ofensa ao bem jurídico.<br />

No plano subjetivo o concurso necessário requer, evi<strong>de</strong>ntemente, que cada<br />

sujeito ativo possua conhecimento da ação do outro, com ciência <strong>de</strong> estarem<br />

realizando <strong>de</strong> um mesmo tipo penal, em condutas que se entrelaçam.” (Cartel<br />

e quadrilha: bis in i<strong>de</strong>m. Revista Ciências Penais, São Paulo: RT, n. 5, p. 139,<br />

jul.-<strong>de</strong>z., 2006).<br />

(5) Hungria, Nelson. Comentários ao Código Penal. 3. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Forense, 1955. v. 1, t. 2.º, p. 418.<br />

(6) Dotti, René Ariel. Curso <strong>de</strong> direito penal. Parte geral. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Forense, 2001. p. 352.<br />

(7) I<strong>de</strong>m, p. 287.<br />

(8) Delmanto, Celso et alli. Código Penal comentado. 10. ed. São Paulo:<br />

Saraiva, 2010. p. 824.<br />

(9) Brasil. Senado. Parecer à Emenda n. 20 aprovada na Comissão <strong>de</strong> ciência,<br />

tecnologia, inovação, comunicação e informática. Note-se que a referida<br />

emenda apresentou sugestão em consonância com a orientação contida no<br />

Relatório da OCDE Lei e Política <strong>de</strong> Concorrência no Brasil – Uma revisão<br />

pelos pares <strong>de</strong> 2010, registrada nos seguintes termos:<br />

“[...] 7.2.1.9. Modificar o Programa <strong>de</strong> Leniência para eliminar a exposição<br />

dos beneficiários da leniência a outros processos penais, para além da<br />

Lei <strong>de</strong> Crimes contra a Or<strong>de</strong>m Econômica. O Programa <strong>de</strong> Leniência do<br />

SBDC está provando ser bem sucedido, e tem gerado diversas candidaturas.<br />

O Programa estipula que os indivíduos que receberem leniência também<br />

receberão imunida<strong>de</strong> na ação criminal sob a Lei <strong>de</strong> Crimes contra a Or<strong>de</strong>m<br />

Econômica. Entretanto, eles não recebem atualmente imunida<strong>de</strong> no âmbito<br />

<strong>de</strong> outras leis criminais que possam ser aplicadas a casos <strong>de</strong> conduta.<br />

Isto po<strong>de</strong> inibir alguns interessados <strong>de</strong> se candidatarem no Programa <strong>de</strong><br />

Leniência.” (OCDE. Lei e política <strong>de</strong> concorrência no Brasil: uma revisão<br />

pelos pares – 2010) (grifos nossos).<br />

Maíra Beauchamp Salomi<br />

Mestre em Direito Penal pela USP.<br />

Advogada.<br />

Pierpaolo Cruz Bottini<br />

Professor-doutor <strong>de</strong> Direito Penal da USP.<br />

Advogado.<br />

Ano 20 - nº 240- novembro/2012 - ISSN 1676-3661

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!