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A Guerra do Paraguai lida na chave da retórica ... - IFCS - UFRJ

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A <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> <strong>li<strong>da</strong></strong> <strong>na</strong> <strong>chave</strong> <strong>da</strong> retórica testemunhal: a publicação de <strong>na</strong>rrativas<br />

memorialísticas <strong>na</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro (1882 – 1888).<br />

Rodrigo Perez Oliveira – mestran<strong>do</strong> em história social (PPGHIS/<strong>UFRJ</strong>)<br />

O principal objetivo desse artigo é a<strong>na</strong>lisar a maneira como a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> foi<br />

abor<strong>da</strong><strong>da</strong> <strong>na</strong>s pági<strong>na</strong>s <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro, o periódico oficial <strong>do</strong> exército entre<br />

1882 e 1888 1 . Os militares que formavam o comitê editorial <strong>da</strong> REB autorizaram a publicação<br />

de duas longas <strong>na</strong>rrativas de <strong>do</strong>is veteranos <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>: “As memórias <strong>da</strong><br />

campanha <strong>do</strong> Paraguay” de autoria <strong>do</strong> capitão reforma<strong>do</strong> Miguel Calmon, publica<strong>da</strong><br />

paulati<strong>na</strong>mente entre março de 1884 e abril de 1885, e “O combate de 1° de outubro de 1868”<br />

de autoria <strong>do</strong> tenente Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga, publica<strong>da</strong> entre dezembro de 1886 e janeiro de 1888.<br />

Foram <strong>do</strong>is longos textos que tematizaram a atuação <strong>do</strong> exército brasileiro <strong>na</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Paraguai</strong>.<br />

O conflito no Rio <strong>da</strong> Prata esteve claramente presente <strong>na</strong> maioria <strong>da</strong>s manifestações<br />

simbólicas oficiais <strong>do</strong> exército até a déca<strong>da</strong> de 1990 2 . Os militares que ocuparam o mais alto<br />

posto <strong>da</strong> hierarquia simbólica <strong>do</strong> exército tinham seu status de herói relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>, de alguma<br />

maneira, à suas participações <strong>na</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>. Assim foi com Manoel Luís Osório, o<br />

marquês de Herval (1808-1879), e com Luis Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias (1803-<br />

1880). Ou seja, grande parte <strong>do</strong>s conflitos simbólicos pela representação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> militar<br />

desenvolvi<strong>do</strong>s no exército até um perío<strong>do</strong> bem avança<strong>do</strong> <strong>do</strong> século XX teve um palco<br />

comum: a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> 3 . Estamos diante de uma memória que teve um impacto<br />

simbólico perene e, segun<strong>do</strong> a fenomenologia <strong>da</strong> memória proposta por Paul Ricouer, to<strong>da</strong><br />

“lembrança que dura” apóia-se em um grande esforço de elaboração de uma representação<br />

prévia. Ou seja, a longa duração de uma memória é basea<strong>da</strong> em um precedente trabalho de<br />

significação e re-significação <strong>da</strong> experiência que se deseja rememorar 4 . É nessa <strong>chave</strong> de<br />

leitura que propomos a análise <strong>da</strong> longevi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> memória <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>. Somente<br />

foi possível a permanência em longo prazo dessa memória por conta de uma representação<br />

prévia que serviu como fertiliza<strong>do</strong>ra para a memória que a posteri<strong>da</strong>de militar construiu. Essa<br />

1 To<strong>do</strong>s os volumes <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro estão disponíveis para consulta <strong>na</strong> Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l.<br />

2 Em 1923 Luís Alves de Lima e Silva, o duque de Caxias, foi proclama<strong>do</strong> o patrono <strong>do</strong> exército. A partir <strong>da</strong>í a<br />

principal <strong>da</strong>ta <strong>do</strong> calendário simbólico <strong>do</strong> exército deixou de ser o 24 de maio, aniversário <strong>da</strong> Batalha <strong>do</strong> Tuiuti,<br />

e passou a ser o 25 de agosto, <strong>na</strong>talício de Caxias.<br />

3 O lugar central <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> no imaginário militar vem sen<strong>do</strong> substituí<strong>do</strong> <strong>na</strong>s últimas déca<strong>da</strong>s pela<br />

Batalha <strong>do</strong>s Guararapes (1640). Sobre essa mu<strong>da</strong>nça ver: Celso Castro. A invenção <strong>do</strong> exército brasileiro. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2002<br />

4 Paul Ricouer. Memória, a história, o esquecimento. Campi<strong>na</strong>s: Ed Unicamp, 2007.<br />

1


epresentação prévia consistiu no trabalho <strong>do</strong>s editores <strong>da</strong> REB, que apresentaram ao público<br />

leitor – forma<strong>do</strong> por militares – duas longas <strong>na</strong>rrativas memorialísticas de <strong>do</strong>is veteranos <strong>da</strong><br />

<strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>. Ou seja, foi a partir <strong>do</strong> desenvolvimento de um tipo de retórica<br />

testemunhal que foi cria<strong>do</strong> o campo semântico que alimentou o potencial rememorativo <strong>da</strong><br />

<strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>.<br />

Acreditamos que a iniciativa <strong>do</strong> comitê editorial <strong>da</strong> REB em publicar essas <strong>na</strong>rrativas<br />

representou o começo <strong>do</strong> esforço em construir uma memória oficial acerca <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Paraguai</strong>, algo que somente foi concluí<strong>do</strong>, depois de muitas disputas simbólicas, em 1901, no<br />

governo de Campos Sales, quan<strong>do</strong> o dia 24 de maio, aniversário <strong>da</strong> Batalha <strong>do</strong> Tuiuti (1867),<br />

foi declara<strong>do</strong> a principal <strong>da</strong>ta <strong>do</strong> calendário simbólico <strong>do</strong> exército. E mais, esse esforço<br />

simbólico <strong>do</strong>s editores <strong>da</strong> REB foi central para a constituição <strong>do</strong> campo semântico que<br />

possibilitou o sucesso <strong>da</strong> construção simbólica em questão. Antes de focar nossa análise <strong>na</strong>s<br />

<strong>na</strong>rrativas de Miguel Calmon e Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga e ensaiar uma hipótese explicativa acerca <strong>do</strong>s<br />

motivos pelos quais os editores <strong>da</strong> REB aprovaram a publicação desses textos é interessante<br />

pensar com mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong> o perfil editorial <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> periódico.<br />

A publicação <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro começou a ser planeja<strong>da</strong> em 1881 5 ,<br />

quan<strong>do</strong> o ministro <strong>da</strong> guerra era o conselheiro Franklin Américo de Menezes Dória. A revista<br />

contou com publicação mensal e foi o primeiro periódico científico-militar oficial <strong>do</strong> exército<br />

brasileiro. A direção <strong>da</strong> revista era forma<strong>da</strong> pelos majores Alfre<strong>do</strong> Ernesto Jacques Ourique e<br />

Antônio Vicente Ribeiro Guimarães e pelo capitão Francisco Agostinho de Mello Souza<br />

Menezes. Os diretores relataram que a idéia <strong>da</strong> publicação <strong>do</strong> periódico foi “unicamente <strong>do</strong>s<br />

espíritos militares” e que a corporação ain<strong>da</strong> necessitava <strong>do</strong> apoio <strong>do</strong> ministro <strong>da</strong> guerra<br />

quan<strong>do</strong> este deixou o poder junto com o ministério de que fazia parte. É possível perceber a<br />

estima que Franklin Américo de Menezes Dória gozava junto aos editores <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong><br />

Exército Brasileiro. Menezes Dória é caracteriza<strong>do</strong> como o “ilustra<strong>do</strong> ci<strong>da</strong>dão, que hoje se<br />

acha afasta<strong>do</strong> <strong>da</strong> administração militar” 6 . Ao mesmo tempo a direção faz uma crítica aos<br />

“parti<strong>do</strong>s que se digladiam no império em busca <strong>do</strong> poder supremo” e se declara,<br />

Isenta <strong>da</strong> paixão partidária. Não será, entretanto, indiferente aos<br />

destinos <strong>da</strong> pátria; mas no campo <strong>da</strong> política inter<strong>na</strong>, terá em mira,<br />

tão somente, a elevação moral <strong>do</strong> grande corpo coletivo a que<br />

pretende servir. Não criará tropeços a marcha <strong>da</strong> administração<br />

superior; não terá jamais palavras- nem de louvor nem de censura<br />

5 A Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro (1882-1889). To<strong>do</strong>s os volumes <strong>do</strong> periódico estão disponíveis para a consulta<br />

<strong>na</strong> Biblioteca Nacio<strong>na</strong>l.<br />

6 Ver o editorial <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro: Janeiro de 1883. p. 02.<br />

2


para os atos oficiais. Seu fim é to<strong>do</strong> <strong>do</strong>utrinário e somente nesse<br />

terreno aceitará discussão 7 .<br />

Os militares envolvi<strong>do</strong>s com o projeto <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro manifestaram<br />

o desejo de neutra<strong>li<strong>da</strong></strong>de em relação aos conflitos partidários que marcaram a política<br />

imperial. Entretanto, como consta no editorial de 1882, neutra<strong>li<strong>da</strong></strong>de partidária não significa<br />

indiferença política. Os textos publica<strong>do</strong>s pelo periódico teriam – segun<strong>do</strong> seus editores- os<br />

objetivos de divulgar a organização <strong>da</strong>s forças militares estrangeiras, transmitir as últimas<br />

novi<strong>da</strong>des relativas às táticas e estratégias de combate e<br />

informar aos mais jovens os grandes feitos <strong>da</strong> história militar<br />

brasileira, deduzin<strong>do</strong> os ensi<strong>na</strong>mentos a<strong>da</strong>ptáveis ao nosso meio 8 .<br />

Esse ultimo objetivo é o que mais nos interessa. Para a equipe editorial <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong><br />

Exército Brasileiro, falar de história militar é falar <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>. A <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Paraguai</strong> foi representa<strong>da</strong> como o “ponto zero” que marcou a transição entre o velho e o novo<br />

exército brasileiro.<br />

A grande parte <strong>do</strong>s artigos publica<strong>do</strong>s pela Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro tinha como<br />

principal preocupação a divulgação de saberes técnicos, ou seja, conhecimentos específicos <strong>da</strong><br />

profissão militar. Outra preocupação constantemente presente em to<strong>da</strong>s as edições <strong>da</strong> revista<br />

foi o problema <strong>da</strong> organização <strong>do</strong> exército. Vários foram os textos que tematizaram essa<br />

questão utilizan<strong>do</strong> o exemplo <strong>da</strong> organização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Maior de exércitos estrangeiros e<br />

propon<strong>do</strong> certo modelo organizacio<strong>na</strong>l para o exército brasileiro. Esse era o assunto <strong>do</strong><br />

momento no alto escalão <strong>da</strong> burocracia militar. Os militares que mais se destacaram <strong>na</strong> autoria<br />

desses textos foram o capitão de artilharia Lobo Botelho e o tenente coronel Se<strong>na</strong> Madureira.<br />

As principais reivindicações desses estu<strong>do</strong>s eram a promulgação de um código de justiça<br />

militar e a formação de um serviço de Esta<strong>do</strong> Maior, algo que somente viria a se concretizar<br />

em 1896.<br />

Em relação à Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro é necessário cautela <strong>na</strong>s interpretações. A<br />

principal providência a se tomar é atentar para a composição <strong>da</strong> direção <strong>do</strong> periódico, a<br />

<strong>na</strong>tureza <strong>do</strong> conhecimento produzi<strong>do</strong> por essa direção e a recepção desse conhecimento.<br />

Nosso maior foco será <strong>na</strong> análise <strong>do</strong>s textos publica<strong>do</strong>s. Já que existia um comitê editorial -<br />

composto pelos militares já cita<strong>do</strong>s - que avaliava a pertinência de ca<strong>da</strong> artigo, os textos<br />

selecio<strong>na</strong><strong>do</strong>s, de alguma maneira, contemplavam as expectativas <strong>do</strong>s oficiais que compunham<br />

7 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro: Março de 1882. p. 04.<br />

8 Ver o editorial <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro: Fevereiro de 1882. p. 5.<br />

3


esse comitê. Esses militares, por sua vez, ocupavam os altos postos <strong>da</strong> burocracia militar.<br />

Acreditamos não ser abusivo afirmar que eles representavam uma espécie de “proto-Esta<strong>do</strong><br />

Maior”. Ou seja, o saber veicula<strong>do</strong> pela Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro pode ser considera<strong>do</strong> a<br />

manifestação de um projeto epistemológico oficial. É necessário, por outro la<strong>do</strong>, localizar a<br />

recepção <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> periódico. Eram constantes as queixas <strong>do</strong>s diretores <strong>da</strong> revista em<br />

relação ao interesse <strong>da</strong> imprensa civil e <strong>do</strong>s próprios militares 9 . A explicação talvez esteja no<br />

conturba<strong>do</strong> momento político. A circular-programa <strong>da</strong> revista foi publica<strong>da</strong> em agosto de<br />

1881 e a publicação <strong>da</strong>s edições começou em janeiro <strong>do</strong> ano seguinte com 300 assi<strong>na</strong>ntes 10 .<br />

Ou seja, a Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro começou a ser publica<strong>da</strong> em um perío<strong>do</strong> de grande<br />

efervescência política. A questão militar se tornou ca<strong>da</strong> vez mais explícita durante a déca<strong>da</strong> de<br />

1880 11 . Recepção à parte, o conhecimento produzi<strong>do</strong> pela Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro nos<br />

permite acessar o começo <strong>da</strong> construção de um senso comum histórico acerca <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Paraguai</strong>.<br />

Podemos começar a interpretação <strong>da</strong>s <strong>na</strong>rrativas de Miguel Calmon e Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga<br />

pela análise <strong>da</strong> importância que os editores <strong>da</strong> REB atribuíam ao conhecimento histórico. O<br />

discurso de abertura <strong>do</strong> ano letivo <strong>da</strong> Escola Militar proferi<strong>do</strong> pelo dr Thomas Alves Junior,<br />

capitão de infantaria, em 15 de março de 1883 e publica<strong>do</strong> <strong>na</strong> edição de abril <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong><br />

Exército Brasileiro evidencia a importância <strong>do</strong> conhecimento histórico para a “Paidéia”<br />

desenvolvi<strong>da</strong> <strong>na</strong>quela instituição de ensino militar. O palestrante assevera que o estu<strong>do</strong> <strong>da</strong><br />

“ciência histórica assim como <strong>da</strong>s outras ciências huma<strong>na</strong>s” é de suma importância para que<br />

o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> “embruteci<strong>do</strong>” seja substituí<strong>do</strong> pelo “sol<strong>da</strong><strong>do</strong> educa<strong>do</strong> no dever moral”. Para o<br />

ora<strong>do</strong>r, somente um currículo “humanista” é capaz de formar o modelo ideal <strong>do</strong> sol<strong>da</strong><strong>do</strong>ci<strong>da</strong>dão<br />

que possui como principal discipli<strong>na</strong><strong>do</strong>r sua própria consciência livre 12 .<br />

As <strong>na</strong>rrativas que nos interessam destoam notoriamente <strong>do</strong>s outros artigos publica<strong>do</strong>s<br />

pela revista. Geralmente os artigos começavam e termi<strong>na</strong>vam <strong>na</strong> mesma edição mensal. As<br />

memórias de Miguel Calmon foram paulati<strong>na</strong>mente publica<strong>da</strong>s durante um ano – entre março<br />

de 1884 e abril de 1885- e o texto de Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga começou a ser publica<strong>do</strong> em dezembro<br />

de 1886 e somente foi concluí<strong>do</strong> em janeiro de 1888.<br />

O texto “As memórias <strong>da</strong> Campanha <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>” foi a primeira referência à <strong>Guerra</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> feita <strong>na</strong> REB. O autor <strong>do</strong> texto se propõe a concretizar <strong>do</strong>is objetivos: informar<br />

alguns fatos que marcaram a campanha <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> e,<br />

9 Sobre esse aspecto é sintomático o editorial de janeiro de 1883 <strong>da</strong> Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro.<br />

10 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Fevereiro de 1883.<br />

11 Ver Hamilton Monteiro. Brasil República. São Paulo: Editora Ática, 1986.<br />

12 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Abril de 1883.<br />

4


Desobrigarmos de um compromisso bastante sério, a que nos<br />

subtermos antes de marchar para a guerra, e para cuja consecução<br />

grandes obstáculos tivemos a superar, terríveis dificul<strong>da</strong>des a<br />

combater. Fizemo-no-los e voltamos vivos para <strong>na</strong>rrar á posteri<strong>da</strong>de<br />

o espetáculo de uma epopéia brasileira 13 . (Grifos Nossos)<br />

O texto não se arroga ape<strong>na</strong>s a função jor<strong>na</strong>lística – apesar de fazê-lo também- mas<br />

apresenta to<strong>do</strong> um envolvimento afetivo <strong>do</strong> autor que pode <strong>na</strong>rrar porque viu e, acima de<br />

tu<strong>do</strong>, experienciou o cotidiano <strong>da</strong> guerra. Nesse caso o “eu vi” não se trata ape<strong>na</strong>s <strong>da</strong> marca de<br />

enunciação, tal como propõe François Hartog para a análise <strong>da</strong>s “Histórias” de Heró<strong>do</strong>to 14 . O<br />

interesse <strong>do</strong> <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r não é somente <strong>da</strong>r credibi<strong>li<strong>da</strong></strong>de ao texto em função de uma comuni<strong>da</strong>de<br />

de leitores. A <strong>na</strong>rrativa de Miguel Calmon ambicionou mostrar a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> a partir<br />

de um lugar privilegia<strong>do</strong>: o veterano que “matou e sangrou para lavar a honra ofendi<strong>da</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>na</strong>cio<strong>na</strong><strong>li<strong>da</strong></strong>de brasileira” 15 . A partir disso, o autor pretende desenvolver no leitor um apelo<br />

afetivo no qual rememorar a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> é um dever cívico tanto para o exército como<br />

para a <strong>na</strong>ção brasileira.<br />

O primeiro capítulo <strong>da</strong>s memórias de Miguel Calmon versa sobre o embarque <strong>da</strong>s<br />

tropas <strong>na</strong> província <strong>do</strong> Espírito Santo. O autor fez questão de elogiar o coman<strong>da</strong>nte <strong>da</strong><br />

guarnição dessa província, o major João Batista de Souza e Braga e to<strong>do</strong> o corpo militar<br />

provincial que “prontamente atendeu ao chama<strong>do</strong> <strong>da</strong> pátria” 16 . Miguel Calmon não abor<strong>da</strong> a<br />

<strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> como o resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> desenvolvimento de uma política exter<strong>na</strong>, por parte<br />

<strong>do</strong> governo imperial, para o Rio <strong>da</strong> Prata. O conflito foi uma “manifestação patriótica para a<br />

defesa <strong>da</strong> honra <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” 17 . Durante to<strong>do</strong> o texto não é feita sequer uma menção à ação <strong>do</strong><br />

impera<strong>do</strong>r ou à diplomacia imperial, elementos que foram de suma importância durante o<br />

desenrolar <strong>do</strong> conflito 18 . A memória oficial que começou a ser desenvolvi<strong>da</strong> pelo texto <strong>do</strong><br />

capitão Miguel Calmon teve como uma de suas principais marcas a des-contextualização<br />

histórica <strong>do</strong> conflito e <strong>do</strong>s principais generais envolvi<strong>do</strong>s nele 19 .<br />

A extrema discrimi<strong>na</strong>ção <strong>do</strong>s detalhes é outra característica flagrante <strong>do</strong> texto de<br />

Miguel Calmon. O autor faz questão de <strong>na</strong>rrar os detalhes <strong>do</strong>s uniformes, <strong>do</strong> solo paraguaio e<br />

13 Ver a Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Abril de 1884.<br />

14 Ver François Hartog. O espelho de Heró<strong>do</strong>to. Belo Horizonte: Editora <strong>da</strong> UFMG, 1999.<br />

15 Ver a Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Abril de 1884.<br />

16 Idem.<br />

17 Idem.<br />

18 Ver Francisco Doratioto. Maldita <strong>Guerra</strong>. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2002.<br />

19 O jor<strong>na</strong>l A Tribu<strong>na</strong> em edição <strong>do</strong> dia 25 de maio de 1901 relatou o roteiro <strong>da</strong>s comemorações que fizeram <strong>da</strong><br />

Batalha <strong>do</strong> Tuiuti o principal referencial simbólico <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Em nenhum momento <strong>do</strong> ritual cívico<br />

foi mencio<strong>na</strong><strong>da</strong> a conjuntura histórica <strong>na</strong> qual se desenvolveu o conflito e maiores informações acerca <strong>da</strong><br />

biografia de Manoel Luís Osório, o principal militar home<strong>na</strong>gea<strong>do</strong> <strong>na</strong>s comemorações.<br />

5


<strong>do</strong> clima local. É como se ele estivesse falan<strong>do</strong>: “Sou legítimo para <strong>na</strong>rrar porque meu<br />

discurso não se baseia <strong>na</strong> análise de outros discursos. Aquilo que digo possui como principal<br />

base aquilo que vivi”. O prima<strong>do</strong> <strong>do</strong> detalhe surge como uma maneira de fortalecer a<br />

credibi<strong>li<strong>da</strong></strong>de <strong>do</strong> texto e marcar o lugar especial que o <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r ocupa: a testemunha / veterano<br />

de guerra 20 . O principal interesse em a<strong>do</strong>tar esse tipo de retórica é traçar uma relação direta<br />

entre a experiência e o discurso. Ou seja, ao se deparar com as memórias de Miguel Calmon,<br />

o leitor terá diante de si o cenário <strong>da</strong> guerra <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>, desde o embarque <strong>na</strong> Província <strong>do</strong><br />

Espírito Santo até a chega<strong>da</strong> <strong>do</strong>s alia<strong>do</strong>s em Assunção. Esse é o recorte cronológico <strong>da</strong><br />

epopéia <strong>do</strong> exército brasileiro que deve ser lembra<strong>do</strong> para o “bem <strong>da</strong> pátria e <strong>da</strong> instituição<br />

militar” 21 .<br />

O texto “O combate de 1° de outubro de 1868” de autoria <strong>do</strong> tenente Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong><br />

Veiga 22 possui, sob o ponto de vista <strong>da</strong> <strong>na</strong>rrativa, semelhanças com o trabalho <strong>do</strong> Capitão<br />

Miguel Calmon. Ambos os autores foram à <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> e lançam mão <strong>da</strong> posição de<br />

veteranos de guerra para conferir credibi<strong>li<strong>da</strong></strong>de às suas <strong>na</strong>rrativas e, acima de tu<strong>do</strong>,<br />

desenvolver no leitor o impacto afetivo necessário para a cristalização <strong>da</strong> memória que se<br />

pretendia perenizar. Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga se dedica <strong>na</strong>rrou um combate específico trava<strong>do</strong> entre as<br />

tropas alia<strong>da</strong>s e as paraguaias em 1° de outubro de 1868.<br />

Dirão os entendi<strong>do</strong>s <strong>na</strong> matéria que o feito <strong>da</strong>s Armas deste dia foi<br />

um reconhecimento à viva força e não um simples combate. A viva<br />

força de um exército vitorioso. Lembrar a campanha <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> é<br />

uma exigência <strong>da</strong> discipli<strong>na</strong> militar. As nossas mulas, os nossos<br />

condutores, as nossas peças, eram o nosso orgulho! e com esses<br />

elementos quantas glorias não colhemos, infelizmente hoje esparsas<br />

como folhas secas leva<strong>da</strong>s pelo vento 23 . (Grifos Nossos).<br />

O texto de Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> <strong>da</strong> Veiga apresenta uma preocupação que não foi explicitamente<br />

desenvolvi<strong>da</strong> <strong>na</strong>s memórias de Miguel Calmon: trata-se <strong>do</strong> esquecimento. Isso nos faz pensar<br />

que essa memória ain<strong>da</strong> não estava de to<strong>do</strong> sedimenta<strong>da</strong> no imaginário militar. Era preciso a<br />

contínua evocação para que as gerações mais jovens não considerassem a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong><br />

como um simples episódio <strong>da</strong> história militar <strong>do</strong> Brasil e sim como “o principal capítulo <strong>da</strong><br />

saga <strong>do</strong> exército em solo <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l” 24 . Foi com o objetivo de sedimentar essa memória que o<br />

20 Ver Beatriz Sarlo. O tempo passa<strong>do</strong>: cultura <strong>da</strong> memória e gui<strong>na</strong><strong>da</strong> subjetiva. Belo Horizonte: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras/UFMG, 2007.<br />

21 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Novembro de 1884.<br />

22 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Março de 1886.<br />

23 Idem.<br />

24 Ver o livro An<strong>na</strong>es <strong>da</strong>s guerras <strong>do</strong> Brazil com os esta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Prata e <strong>Paraguai</strong> escrito pelo Coronel Torres<br />

Homem em 1902.<br />

6


comitê editorial <strong>da</strong> REB acatou a publicação <strong>da</strong>s longas <strong>na</strong>rrativas de Miguel Calmon e<br />

Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga.<br />

A partir <strong>da</strong> análise dessas duas <strong>na</strong>rrativas é possível perceber a força potencial <strong>da</strong><br />

memória <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>. Os textos abor<strong>da</strong><strong>do</strong>s evocam a memória de um evento que<br />

ganhou notorie<strong>da</strong>de entre os seus contemporâneos, principalmente entre os militares. Essa<br />

notorie<strong>da</strong>de nos aju<strong>da</strong> a entender a vita<strong>li<strong>da</strong></strong>de <strong>da</strong> memória construí<strong>da</strong>. A força <strong>da</strong> memória <strong>da</strong><br />

<strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> não reside em uma possível essência <strong>do</strong> evento. O potencial dessa<br />

memória se apóia no senso comum que se construiu no imediato pós-guerra. De acor<strong>do</strong> com<br />

esse senso comum a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> foi a demonstração <strong>da</strong> importância <strong>do</strong> exército para a<br />

salvação <strong>da</strong> <strong>na</strong>cio<strong>na</strong><strong>li<strong>da</strong></strong>de brasileira. O exército foi apresenta<strong>do</strong> como o grande defensor <strong>da</strong><br />

honra <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l.<br />

A publicação <strong>da</strong>s <strong>na</strong>rrativas memorialísticas sobre a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> <strong>na</strong> REB<br />

representou o começo <strong>da</strong> construção de uma memória oficial. Tal projeto se sagrou vitorioso<br />

por conta de uma comuni<strong>da</strong>de de senti<strong>do</strong>s prévia que fez com que a rememoração <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> fosse bem recebi<strong>da</strong> <strong>na</strong>s fileiras <strong>do</strong> exército brasileiro. Essa comuni<strong>da</strong>de de<br />

senti<strong>do</strong>s, por sua vez, foi alimenta<strong>da</strong> empiricamente pela solidificação institucio<strong>na</strong>l <strong>do</strong><br />

exército e o crescimento <strong>da</strong> importância política <strong>da</strong> corporação no posterior pós-guerra. A<br />

partir disso, desenvolveu-se, entre os militares <strong>do</strong> exército brasileiro, a noção de que a <strong>Guerra</strong><br />

<strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> havia si<strong>do</strong> um evento fun<strong>da</strong><strong>do</strong>r para um exército mais moderno e mais importante<br />

no cenário político brasileiro. Ou seja, o conflito no Rio <strong>da</strong> Prata foi apropria<strong>do</strong> por uma<br />

<strong>chave</strong> de leitura que o apresentou como o propulsor <strong>da</strong> projeção <strong>do</strong> exército <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

brasileira fazen<strong>do</strong> com que o sol<strong>da</strong><strong>do</strong> fosse identifica<strong>do</strong> como um defensor <strong>da</strong> pátria.<br />

Por conta <strong>da</strong> importância que a cúpula <strong>do</strong> exército atribuiu à <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>, a<br />

imagem <strong>do</strong> veterano de guerra ganhou notorie<strong>da</strong>de no ambiente simbólico <strong>da</strong> referi<strong>da</strong><br />

instituição militar. Foi a partir <strong>do</strong> diálogo entre a apropriação de um evento – a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Paraguai</strong> – e o desejo de fortalecer uma memória que ain<strong>da</strong> não estava de to<strong>do</strong> sedimenta<strong>da</strong><br />

no imaginário militar, que a direção <strong>da</strong> REB se empenhou em publicar as <strong>na</strong>rrativas<br />

memorialísticas <strong>do</strong>s veteranos de guerra. A relação é dinâmica e recíproca: ao mesmo tempo<br />

em que no imediato pós-guerra foi desenvolvi<strong>da</strong> a percepção de que a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong><br />

tinha si<strong>do</strong> um divisor de águas para o amadurecimento institucio<strong>na</strong>l <strong>do</strong> exército, os artífices<br />

de um projeto epistemológico oficial <strong>da</strong> corporação se dedicaram a reforçar essa percepção<br />

através <strong>da</strong> publicação <strong>da</strong>s memórias <strong>do</strong>s veteranos de guerra. Foi através <strong>da</strong> relação entre um<br />

7


evento potencialmente rememorativo 25 com o esforço pos facto de acentuar esse potencial que<br />

foi possibilita<strong>da</strong> a afecção que a memória <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> produziu em diversas<br />

gerações de militares <strong>do</strong> exército brasileiro. Se assim não fosse, ou seja, se a memória <strong>da</strong><br />

<strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> não possuísse uma legitimi<strong>da</strong>de empírica prévia – aquilo que Bronislaw<br />

Baczco chamou de comuni<strong>da</strong>de de senti<strong>do</strong>s 26 - a memória oficial construí<strong>da</strong> em 1901 iria<br />

fatalmente cair no vazio.<br />

A iniciativa <strong>do</strong>s editores <strong>da</strong> REB em publicar as memórias de Miguel Calmon e<br />

Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga não pode ser a<strong>na</strong>lisa<strong>da</strong> como uma manifestação ingênua e sem interesses<br />

subjacentes. To<strong>do</strong> sistema simbólico é produzi<strong>do</strong> em função <strong>da</strong>s determi<strong>na</strong>ções de um <strong>da</strong><strong>do</strong><br />

esta<strong>do</strong> material <strong>da</strong>s coisas. A cultura somente existe de maneira efetiva sob o aspecto<br />

simbólico: um conjunto de códigos que determi<strong>na</strong>m um senti<strong>do</strong> para a rea<strong>li<strong>da</strong></strong>de, ou seja, a<br />

rea<strong>li<strong>da</strong></strong>de simbólica se propõe a significar a rea<strong>li<strong>da</strong></strong>de social. Entretanto, não podemos<br />

confundir a rea<strong>li<strong>da</strong></strong>de simbólica com a rea<strong>li<strong>da</strong></strong>de efetiva <strong>da</strong>s coisas. A primeira funcio<strong>na</strong> como<br />

representação <strong>da</strong> segun<strong>da</strong> e a construção <strong>da</strong>quela depende <strong>da</strong> correlação de forças que<br />

caracteriza essa. Daí a necessi<strong>da</strong>de <strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>r interessa<strong>do</strong> <strong>na</strong> investigação <strong>da</strong> produção de<br />

manifestações simbólicas optar por uma meto<strong>do</strong>logia que dê conta <strong>da</strong> análise sincrônica <strong>da</strong><br />

rea<strong>li<strong>da</strong></strong>de simbólica e <strong>da</strong> rea<strong>li<strong>da</strong></strong>de social 27 . Ou seja, ao investir simbolicamente <strong>na</strong> produção<br />

de uma memória oficial <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>da</strong> <strong>Paraguai</strong>, os diretores <strong>da</strong> REB, responsáveis pela<br />

veiculação de um projeto epistemológico oficial <strong>do</strong> exército, possuíam interesses que estavam<br />

relacio<strong>na</strong><strong>do</strong>s com o jogo de poderes presente no ambiente social no qual estavam inseri<strong>do</strong>s.<br />

A primeira coisa a se levar em conta é o lugar de produção <strong>do</strong>s discursos publica<strong>do</strong>s<br />

pela REB: o exército brasileiro - que saiu a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> extremamente fortaleci<strong>do</strong> e<br />

<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de uma importância nunca antes vista <strong>da</strong> história política <strong>do</strong> Brasil. Segun<strong>do</strong> Lília<br />

Swchartz,<br />

O combate fez <strong>na</strong>scer uma nova instituição no cenário brasileiro: o<br />

Exército. A profissão <strong>da</strong>s armas tor<strong>na</strong>va-se uma forma de ascensão<br />

social e ganhava uma representativi<strong>da</strong>de social descabi<strong>da</strong> <strong>na</strong> política<br />

<strong>do</strong> império 28 .<br />

Em relação à mo<strong>na</strong>rquia a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> foi para<strong>do</strong>xal: ao mesmo tempo em que<br />

representou o ápice <strong>da</strong> política exter<strong>na</strong> imperial e, em um primeiro momento, rendeu uma<br />

25 Ver Paul Ricouer. Memória, a história, o esquecimento. Campi<strong>na</strong>s: Ed Unicamp, 2007. Ao propor uma<br />

fenomenologia <strong>da</strong> memória o autor apresente a noção de que alguns eventos possuem maior potencial<br />

rememorativo que outros. Ou seja, devi<strong>do</strong> a forma como alguns acontecimentos são significa<strong>do</strong>s por seus<br />

contemporâneos, eles – os acontecimentos - podem ter um maior, ou menor, suscetibi<strong>li<strong>da</strong></strong>de a perdurar <strong>na</strong><br />

memória de determi<strong>na</strong><strong>do</strong> grupo.<br />

26 Bronislaw Baczko. Les imagi<strong>na</strong>ires sociaux. Memoire et espoirs collectifis. Paris: Payot, 1984.<br />

27 Ver Pierre Bourdieu. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.<br />

28 Lilia Moritz Swchartz. As barbas <strong>do</strong> impera<strong>do</strong>r. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1998.<br />

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notória populari<strong>da</strong>de ao impera<strong>do</strong>r d. Pedro II – que participou ativamente <strong>da</strong> condução <strong>do</strong><br />

conflito – significou também, por conta de sua inespera<strong>da</strong> extensão, um elemento de crise<br />

institucio<strong>na</strong>l e econômica para o império 29 . Outro fator adicio<strong>na</strong>l de crise foi o civilismo <strong>da</strong><br />

elite política imperial que não admitiu a manifestação política <strong>do</strong>s líderes militares nos anos<br />

que se seguiram ao termino <strong>do</strong> conflito. Segun<strong>do</strong> Nelson Werneck Sodré, a recusa <strong>da</strong> elite<br />

política imperial em conceder ao exército uma posição política mais relevante fez com que os<br />

militares se incli<strong>na</strong>ssem a participar <strong>da</strong>s mu<strong>da</strong>nças que estavam se esboçan<strong>do</strong> e os precursores<br />

<strong>do</strong> regime republicano, depois de 1870, quan<strong>do</strong> lançaram seu manifesto, insistiram no<br />

aliciamento <strong>do</strong>s militares 30 .<br />

Ou seja, a publicação <strong>da</strong>s <strong>na</strong>rrativas memorialísticas de Miguel Calmon e Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong><br />

Veiga aconteceu no momento em que o exército se fortalecia institucio<strong>na</strong>lmente e<br />

politicamente e se envolvia em conflitos com a elite política imperial – a questão militar -. O<br />

interesse <strong>do</strong>s editores <strong>da</strong> REB em fortalecer a rememoração <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> foi<br />

instrumentalizar essa memória em função <strong>da</strong> afirmação <strong>do</strong> exército como uma instituição apta<br />

a exercer uma posição de man<strong>do</strong> no cenário político <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l. Nesse caso, a manipulação<br />

delibera<strong>da</strong> <strong>da</strong> lembrança e <strong>do</strong> esquecimento serviu à busca identitária que, segun<strong>do</strong> Paul<br />

Ricœur, é um <strong>do</strong>s principais expedientes simbólicos utiliza<strong>do</strong>s pelo poder instituí<strong>do</strong>, que<br />

utiliza as representações <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> para legitimar sua posição de autori<strong>da</strong>de, ou pelos<br />

aspirantes ao poder, que utilizam o passa<strong>do</strong> en<strong>do</strong>ssar a reivindicação <strong>da</strong> posição de man<strong>do</strong><br />

que desejam ocupar 31 .<br />

Ao abor<strong>da</strong>r a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>, os editores <strong>da</strong> REB desejavam mostrá-la como um<br />

divisor de águas tanto para o exército como para o Brasil. Um momento no qual a soberania<br />

brasileira havia si<strong>do</strong> vilipendia<strong>da</strong> e a honra <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l defendi<strong>da</strong> pela única instituição capaz de<br />

fazê-lo: o exército. A REB foi uma publicação volta<strong>da</strong> para os militares, mais precisamente<br />

para os oficiais (to<strong>do</strong>s os assi<strong>na</strong>ntes <strong>da</strong> REB eram oficiais) 32 . Ou seja, ao dedicar tanta<br />

importância, traduzi<strong>da</strong> em números de pági<strong>na</strong>s, às memórias <strong>do</strong>s veteranos <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong><br />

<strong>Paraguai</strong> os editores <strong>da</strong> REB pretendiam formar o imaginário <strong>do</strong>s próprios oficiais <strong>do</strong> exército<br />

no senti<strong>do</strong> de entender a <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> como um “ponto zero” para o surgimento de um<br />

exército mais forte que não deveria ser trata<strong>do</strong> com descaso pelo regime político de então.<br />

Uma vez esclareci<strong>do</strong> o principal objetivo <strong>do</strong>s editores <strong>da</strong> REB com a manipulação <strong>da</strong> memória<br />

<strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong>, é preciso entender a maneira pela qual o discurso foi veicula<strong>do</strong>. A<br />

29 Francisco Doratioto. Maldita <strong>Guerra</strong>. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 2002.<br />

30 Ver Nelson Werneck Sodré. A história militar <strong>do</strong> Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.<br />

31 Ver Paul Ricœur. A memória, a história e o esquecimento. Campi<strong>na</strong>s: Ed Unicamp, 2007.<br />

32 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Janeiro de 1883.<br />

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<strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> fez-se presente no projeto de busca de um novo tipo de identi<strong>da</strong>de política<br />

para o exército a partir <strong>da</strong> forma <strong>da</strong> <strong>na</strong>rrativa testemunhal.<br />

Já que o interesse era tocar o imaginário <strong>do</strong>s militares através <strong>da</strong> representação <strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong>, isso não poderia ser feito por um discurso “frio”, ou seja, por uma abor<strong>da</strong>gem<br />

desti<strong>na</strong><strong>da</strong> a produzir um conhecimento objetivo sobre a experiência pretérita. Segun<strong>do</strong> Beatriz<br />

Sarlo, a fala <strong>da</strong> testemunha é imune, ou pretende sê-lo, à leitura crítica, sempre acompanhante<br />

<strong>do</strong>s discursos que pretendem abor<strong>da</strong>r o passa<strong>do</strong> cientificamente. A retórica testemunhal é<br />

“quente”, <strong>na</strong> medi<strong>da</strong> em que a testemunha não lança mão <strong>do</strong>s artifícios <strong>da</strong> erudição para<br />

va<strong>li<strong>da</strong></strong>r a sua fala. A testemunha está enquadra<strong>da</strong> em outro regime de veraci<strong>da</strong>de: a afetivi<strong>da</strong>de<br />

que a <strong>na</strong>rrativa de quem experienciou determi<strong>na</strong><strong>do</strong> evento provoca no público leitor. A grande<br />

busca <strong>do</strong> relato testemunhal é traçar uma empatia entre o <strong>na</strong>rra<strong>do</strong>r e o leitor visan<strong>do</strong> que o<br />

último mire o passa<strong>do</strong> afeta<strong>do</strong> por aquilo que o primeiro viu, fez e, acima de tu<strong>do</strong>, sofreu 33 .<br />

Se os veteranos <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> foram capazes de abnegar de<br />

anos de suas vi<strong>da</strong>s arriscan<strong>do</strong>-as em campo de batalha para salvar a<br />

honra <strong>na</strong>cio<strong>na</strong>l e fazer <strong>do</strong> exército a instituição mais heróica <strong>do</strong> país,<br />

porque a moci<strong>da</strong>de militar não poder continuar a sagra<strong>da</strong> missão de<br />

fazer <strong>do</strong> exército o corpo mais saudável desse convalescente país<br />

que está afun<strong>da</strong><strong>do</strong> <strong>na</strong> ambição política 34 ?<br />

As palavras <strong>do</strong> capitão Miguel Calmon refletem o desejo de fazer com que os mais<br />

jovens se voltem para o passa<strong>do</strong> e cultuem aqueles que protagonizaram o evento que projetou<br />

o exército <strong>na</strong> cenário político brasileiro. Entretanto, não se trata de desenvolver nos jovens<br />

oficiais <strong>do</strong> exército a postura catártica. O objetivo é fazer com que eles ajam no senti<strong>do</strong> de<br />

continuar a luta para colocar o exército em uma posição de prestígio <strong>na</strong> socie<strong>da</strong>de brasileira.<br />

Trata-se de uma retórica corporativa desti<strong>na</strong><strong>da</strong> a chamar o oficialato <strong>do</strong> exército à ação, à<br />

crítica ao regime monárquico acusa<strong>do</strong> de “humilhar o exército a ca<strong>da</strong> dia que passa” 35 .<br />

Acreditamos que a publicação <strong>da</strong>s <strong>na</strong>rrativas memorialísticas de Miguel Calmon e de<br />

Fer<strong>na</strong>n<strong>do</strong> Veiga <strong>na</strong> REB representou o começo de um investimento simbólico oficial<br />

desti<strong>na</strong><strong>do</strong> a fazer <strong>da</strong> <strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> o evento mais importante <strong>da</strong> história militar <strong>do</strong><br />

Brasil. A construção dessa memória não se deu no vazio social, ela possuiu relações com a<br />

dinâmica sócio-política <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>, caracteriza<strong>da</strong> pelo acirramento <strong>do</strong>s conflitos entre o<br />

exército e a elite política imperial (questão militar). O principal interesse era mostrar a<br />

33 Ver Beatriz Sarlo. O tempo passa<strong>do</strong>: cultura <strong>da</strong> memória e gui<strong>na</strong><strong>da</strong> subjetiva. Belo Horizonte: Companhia <strong>da</strong>s<br />

Letras/UFMG, 2007.<br />

34 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Abril de 1884.<br />

35 Ver Revista <strong>do</strong> Exército Brasileiro. Março de 1886.<br />

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<strong>Guerra</strong> <strong>do</strong> <strong>Paraguai</strong> como uma prova <strong>da</strong> aptidão <strong>do</strong> exército em salvar o país, e como tal, <strong>na</strong><br />

qua<strong>li<strong>da</strong></strong>de de salva<strong>do</strong>r, o oficialato <strong>do</strong> exército acreditava que a corporação merecia uma<br />

posição mais honrosa <strong>do</strong> que àquela que ocupava <strong>na</strong> correlação de forças que caracterizou o<br />

cenário político <strong>do</strong>s anos fi<strong>na</strong>is <strong>do</strong> regime monárquico.<br />

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