Junho - Club Athletico Paulistano
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página do escritor<br />
Página do escritor este mês publica o conto Bazar Alaiá da sócia Maria Lúcia Perrone Passos.<br />
Bazar Alaiá<br />
Minha mãe achava muita<br />
graça em dona Sofia, vizinha de<br />
apartamento, que vinha pedir<br />
emprestados três palitos de dentes,<br />
um ovo. Fazendeira abonada,<br />
ela voltava logo com outros<br />
palitos, embrulhados em papel<br />
de seda. E o ovo, aconchegado<br />
na mão estendida, em gesto de<br />
devolução, ou de apelo.<br />
Dona de casa, mulher de um<br />
homem só, como se costumava<br />
dizer, minha mãe foi cumpridora<br />
dos deveres, boa nora e cunhada,<br />
daquelas que se lembram<br />
dos aniversários e visitam os<br />
velhos da família. Sua rebeldia<br />
aflorava em pequenos gestos,<br />
em algumas escolhas, como as<br />
excêntricas amigas, dona Sofia e<br />
dona Hortênsia; esta, quando a<br />
solidão pesava, subia no primeiro<br />
ônibus que passasse, para ver se<br />
engatava um bate-papo. Outra<br />
amiga, dona Pérola, era a única<br />
mais convencional, porque fazia<br />
jus ao nome, segundo minha mãe,<br />
exigente e quase cruel no que se<br />
referia à beleza e aos bons modos.<br />
Dia a dia mais frágil e<br />
dependente do marido e dos<br />
filhos, com o tempo mamãe<br />
foi perdendo a saúde. Perdeu<br />
também poder aquisitivo; raras<br />
vezes entrava nas lojas do bairro<br />
elegante em que morava. O que<br />
não pareceria grave para<br />
um observador ocasional,<br />
uma vez que, por delicadeza,<br />
enfeitava-se com lenços de<br />
seda e perfume francês.<br />
Quando íamos passear, eu<br />
me esforçava por seguir o<br />
zigue-zague de seus passinhos<br />
de bailarina bêbada. Bem<br />
ou mal, vencíamos a curta<br />
distância que nos separava<br />
do Bazar Alaiá, recheado<br />
de artigos para presentes,<br />
bijuterias, brinquedos, tudo<br />
aquilo que se convencionou<br />
chamar de supérfluos. Ela saía<br />
satisfeita, com uma caixinha<br />
de música para dona<br />
Hortênsia, meias coloridas<br />
para os netos. Certa vez, a<br />
vendedora ofereceu-lhe uma<br />
preciosidade: Bazar Alaiá,<br />
Bazar Alaiá, Bazar Alaiá, liamse<br />
nas dezenas de borboletas<br />
douradas de um rolinho de<br />
etiquetas adesivas.<br />
Numa tarde de domingo<br />
em que minha mãe dormitava<br />
em frente à televisão, decidi<br />
pôr em ordem sua agenda<br />
de endereços, organizada<br />
de forma bastante pessoal.<br />
Das páginas correspondentes<br />
às letras A, B, C e assim<br />
por diante, constavam<br />
poucos nomes: as amigas<br />
queridas, filhos, netos e alguns<br />
sobrinhos; Rosa e José Barão,<br />
de Coimbra; uma chinesa<br />
que trocava o cordão<br />
partido dos colares, um curso<br />
para aprender a consertar<br />
torneira e ferro de passar<br />
roupas. Ali estavam resumidas<br />
suas escolhas afetivas, a<br />
pequenina esperança<br />
de recobrar a saúde e a<br />
capacidade de decidir, os<br />
sonhos de evasão.<br />
Em letras maiúsculas,<br />
na página do V, VÁRIOS:<br />
parentes, conhecidos,<br />
eletricistas, encanadores,<br />
médicos, pronto-socorro, em<br />
caótica e aflitiva misturada,<br />
denunciavam sua peculiar<br />
maneira de classificar a<br />
humanidade.<br />
Certa vez, numa lista de<br />
chatos, na crônica de um jornal,<br />
chamou-me a atenção o tipo<br />
que insiste em organizar as vidas<br />
alheias. Esquecida a crônica,<br />
tomada por entusiasmo<br />
organizador e armada de uma<br />
tesoura, cortei as páginas dos<br />
Vários, que se estendiam ao<br />
X, ao Y e ao Z, redistribuindoos<br />
de acordo com as letras<br />
que competiam a cada um.<br />
Médicos e pronto-socorro,<br />
eletricista e encanador foram<br />
para a primeira contracapa,<br />
em grandes letras, fáceis de<br />
encontrar e de ler.<br />
Um silêncio de indignação<br />
caiu sobre a sala quando<br />
mostrei o que fizera à minha<br />
mãe, que nada comentou.<br />
Com certeza contou até dez,<br />
como ensinava que se deve<br />
fazer quando nos assalta<br />
o impulso de dizer coisas<br />
desagradáveis. Falamos de<br />
outros assuntos.<br />
Passado algum tempo, coube<br />
a mim recolher os objetos que<br />
não haviam sido escolhidos<br />
por nenhum dos filhos, após a<br />
morte dos meus pais. Ao lado<br />
do telefone, o caderno de<br />
endereços, que levei para casa.<br />
Quando o abri, deparei-me<br />
com o último gesto de rebelião<br />
de minha mãe. Uma revoada<br />
de borboletas douradas,<br />
coladas na contracapa,<br />
escondia os desinteressantes<br />
nomes e telefones de<br />
eletricistas, hospitais,<br />
pronto-socorro. Bazar Alaiá,<br />
Bazar Alaiá, Bazar Alaiá.<br />
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