O Povoamento Inicial do Continente Americano ... - Georeferencial
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O <strong>Povoamento</strong> <strong>Inicial</strong> <strong>do</strong> <strong>Continente</strong> <strong>Americano</strong>: Migrações, Contextos,<br />
Datações<br />
Tania Andrade Lima 1<br />
A questão da colonização <strong>do</strong> continente americano pela espécie humana desperta sempre um<br />
particular interesse e exerce um inegável fascínio sobre as sociedades, não só hoje em dia, mas desde<br />
que os europeus, aqui chegan<strong>do</strong> no século XVI, encontraram um território já densamente povoa<strong>do</strong> por<br />
outras culturas até então desconhecidas.<br />
Sem querer discorrer sobre a força desse tema no seu estreito relacionamento com a questão da<br />
nossa identidade e circunscreven<strong>do</strong>-o aos seus aspectos mais propriamente objetivos, <strong>do</strong> ponto de<br />
vista científico tanto esse interesse quanto esse fascínio advêm <strong>do</strong> fato de o povoamento da América<br />
ter si<strong>do</strong> o último grande episódio de colonização <strong>do</strong> planeta.<br />
Nosso vasto continente foi a derradeira grande massa de terra a ser ocupada pela espécie<br />
humana, até então dispersa apenas pelo Velho Mun<strong>do</strong>, em um movimento que representa a etapa final<br />
da longa e bem sucedida história da migração e dispersão <strong>do</strong> gênero Homo. Uma história que começou<br />
no continente africano e se consumou na América, com a ocupação efetiva de to<strong>do</strong> o globo, uma<br />
experiência que se repetirá somente se nossa espécie vier a colonizar um outro planeta.<br />
Este é um <strong>do</strong>s temas mais debati<strong>do</strong>s e polêmicos da arqueologia americana. A maioria <strong>do</strong>s<br />
pesquisa<strong>do</strong>res admite a procedência asiática das populações funda<strong>do</strong>ras, que muito provavelmente<br />
teriam penetra<strong>do</strong> no continente americano pela região de Bering, a rota de entrada inicial mais<br />
plausível. Outras, como as vias marítimas, no caso, as transpacíficas ou transatlânticas, que desde o<br />
século passa<strong>do</strong> são aventadas e periodicamente voltam à tona, até que possam ser efetivamente<br />
comprovadas permanecerão no <strong>do</strong>mínio das conjecturas e das hipóteses pouco prováveis, ao menos<br />
no que diz respeito às primeiras levas migratórias.<br />
O dissenso se instala, contu<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se discute a época em que teriam ocorri<strong>do</strong> os primeiros<br />
episódios coloniza<strong>do</strong>res. Uma acirrada disputa sobre a antiguidade da espécie humana no Novo<br />
Mun<strong>do</strong> mobilizou, por um tempo considerável, a comunidade científica e as sociedades em geral,<br />
instalada em um clima de exacerbada e competitiva busca ao “primeiro” e ao “mais antigo”<br />
(Bonnichsen & Steele 1994).<br />
1
Em lugar de se procurar entender como e por que esse processo colonizatório foi deflagra<strong>do</strong>,<br />
todas as atenções da arqueologia americana estiveram voltadas, até recentemente, para o momento em<br />
que ele teria se inicia<strong>do</strong>, desvian<strong>do</strong> e distancian<strong>do</strong> os pesquisa<strong>do</strong>res de uma compreensão mais<br />
profunda das forças biológicas e culturais que teriam impeli<strong>do</strong> esses primeiros imigrantes para um<br />
território novo e despovoa<strong>do</strong> (ib.); da lógica que envolve uma colonização (Beaton 1991); das<br />
respostas dadas aos desafios adaptativos enfrenta<strong>do</strong>s em sua dispersão por novos ambientes; e, ainda,<br />
de uma reflexão quanto às formas pelas quais os arqueólogos vêm lidan<strong>do</strong> com seus vestígios<br />
materiais, tantos milênios depois.<br />
Essa ênfase equivocada nos aspectos cronológicos vem sustentan<strong>do</strong> o debate apenas com da<strong>do</strong>s<br />
obti<strong>do</strong>s em sítios isola<strong>do</strong>s, de tal forma que a discussão tem fica<strong>do</strong> restrita ao individualismo das<br />
ocorrências potencialmente capazes de fornecer datas mais antigas. Deste mo<strong>do</strong> fica difícil<br />
transcender descrições biográficas de sítios para responder a questões mais amplas, voltadas para a<br />
compreensão das forças envolvidas no processo <strong>do</strong> povoamento <strong>do</strong> continente. O problema vem sen<strong>do</strong><br />
discuti<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> ponto de vista técnico que teórico, de tal forma que o debate foi reduzi<strong>do</strong> à sua<br />
feição mais pobre, quan<strong>do</strong> na verdade deveria estar volta<strong>do</strong> para os complexos processos de migração<br />
e de colonização de áreas vazias (Dillehay & Collins 1991; Dillehay & Meltzer 1991).<br />
Não se minimiza aqui nem a importância da cronologia, nem a necessidade dessas biografias,<br />
sobretu<strong>do</strong> porque grande parte <strong>do</strong> descrédito atribuí<strong>do</strong> a alguns sítios potencialmente antigos, tanto na<br />
América <strong>do</strong> Norte quanto na América <strong>do</strong> Sul, advém <strong>do</strong> fato de os acha<strong>do</strong>s estarem insuficientemente<br />
descritos, o que inviabiliza sua leitura crítica pela comunidade científica. Mas é importante que se<br />
assinale ser urgente e necessário transcender esse caráter cronológico e biográfico, para que se possa<br />
dar maior consistência e densidade à discussão <strong>do</strong> fenômeno. A ocupação <strong>do</strong> continente americano<br />
pela espécie humana é um processo fascinante, quer ele tenha 5.000 ou 50.000 anos, e uma maior ou<br />
menor antiguidade em nada diminui sua dimensão e relevância.<br />
Duas correntes opostas de pensamento se formaram em torno desse tema, debaten<strong>do</strong><br />
calorosamente a questão:<br />
• uma, conserva<strong>do</strong>ra, orto<strong>do</strong>xa e bastante coesa, admitin<strong>do</strong> a presença humana na América apenas<br />
em torno de 12.000 anos antes <strong>do</strong> presente.<br />
• outra, hetero<strong>do</strong>xa e heterogênea, entenden<strong>do</strong> que a colonização ocorreu antes disso, divergin<strong>do</strong><br />
contu<strong>do</strong> em relação ao momento em que ela teria se da<strong>do</strong>. Este segmento varia desde aqueles que<br />
admitem que há sítios potencialmente mais antigos que 12.000 anos, até alguns poucos que defendem<br />
a presença <strong>do</strong> homem no continente há mais de 100.000 anos.<br />
1 Departamento de Antropologia, Museu Nacional / UFRJ. Pesquisa<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> CNPq.<br />
2
A chegada<br />
No quadro atual, e até que qualquer outra hipótese para a colonização inicial <strong>do</strong> vasto território<br />
americano venha a ser fartamente comprovada, grupos humanos dispersan<strong>do</strong>-se pelo continente<br />
asiático parecem ter avança<strong>do</strong> em direção ao leste siberiano, alcança<strong>do</strong> a região <strong>do</strong> atual Estreito de<br />
Bering e penetra<strong>do</strong> na América, então despovoada.<br />
Ao longo da última glaciação, Wisconsin, a retenção das águas nas grandes geleiras<br />
continentais fez baixar o nível global <strong>do</strong>s oceanos em cerca de 120 m abaixo <strong>do</strong> nível atual, deixan<strong>do</strong><br />
emersas amplas superfícies antes submersas. Novas faixas costeiras tornaram-se habitáveis, ilhas<br />
uniram-se a continentes, continentes uniram-se entre si. A região <strong>do</strong> Estreito, pouco profunda, foi<br />
paulatinamente dessecan<strong>do</strong> até se tornar uma extensa planície com aproximadamente 1500 km de<br />
largura, unin<strong>do</strong> o continente asiático ao americano, com o Oceano Ártico ao norte e o Pacífico ao sul.<br />
Convencionou-se denominar esta área como Beríngia, aí compreendidas não apenas a plataforma<br />
emersa, mas também o nordeste da Sibéria, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> asiático, e as porções centrais não geladas <strong>do</strong><br />
Alaska e <strong>do</strong> Yukon, <strong>do</strong> la<strong>do</strong> americano (ver mapa, no detalhe).<br />
Essa ponte de terra conectou a Ásia à América em diferentes avanços glaciais e nesses perío<strong>do</strong>s<br />
de clima frio e seco permitiu o livre trânsito tanto de animais quanto de seres humanos. Por longos<br />
intervalos de tempo múltiplas migrações puderam ser realizadas, tanto da Ásia para a América,<br />
quanto, uma vez povoa<strong>do</strong> o continente, da América para Ásia, enquanto a plataforma esteve emersa.<br />
Essa passagem não constituiu qualquer problema para os caça<strong>do</strong>res asiáticos, na medida em<br />
que as condições severas <strong>do</strong> ambiente periglacial, descritas para esse perío<strong>do</strong> por palinólogos e<br />
paleontólogos, eram as mesmas em toda essa região e suficientemente familiares para os imigrantes.<br />
A Sibéria, inclusive, era mais fria, em virtude da circulação <strong>do</strong> ar glacial proveniente das geleiras que<br />
cobriam a Escandinávia e o oeste siberiano. Já os vales <strong>do</strong> interior <strong>do</strong> Alaska ficaram livres <strong>do</strong>s gelos,<br />
restritos às altas montanhas, em decorrência <strong>do</strong> bloqueio, pela ponte de terra, da umidade vinda <strong>do</strong><br />
Pacífico, de tal forma que a baixa precipitação acabou proporcionan<strong>do</strong> condições menos ásperas nessa<br />
região. Mesmo assim, como lembrou Grühn (1994), os Yahgan, na Terra <strong>do</strong> Fogo, no outro extremo<br />
<strong>do</strong> continente americano, são um bom testemunho de como é possível a sobrevivência humana com<br />
uma cultura material exígua, em ambientes tão pouco hospitaleiros.<br />
Em Beríngia, nesse perío<strong>do</strong>, a produtividade biótica parece ter si<strong>do</strong> bastante reduzida, a julgar<br />
por análises polínicas. Embora nesses estu<strong>do</strong>s paleobotânicos a baixa resolução taxonômica <strong>do</strong>s pólens<br />
não permita reconstituições precisas, os da<strong>do</strong>s existentes indicam uma vegetação esparsa, raras árvores<br />
e lagos, extensos campos de dunas compon<strong>do</strong> uma paisagem árida, mas com condições de sustentar<br />
populações caça<strong>do</strong>ras, equipadas com tecnologia para suportar o frio e tirar proveito <strong>do</strong>s grandes<br />
3
herbívoros gregários que aí viviam, como mamutes, bisontes, cavalos, antílopes, alces, renas, caribus,<br />
bois almiscara<strong>do</strong>s, ursos, lobos, entre outros (Wright 1991). Elias (2002) descreve a grande<br />
diversidade e abundância faunística dessa região como comparável apenas à das savanas <strong>do</strong> leste<br />
africano. Beríngia parece ter servi<strong>do</strong> como refúgio para muitas espécies animais, o que explicaria essa<br />
diversidade notável.<br />
A falta de árvores e, conseqüentemente, de madeira como combustível para fogueiras pode ter<br />
si<strong>do</strong> suprida com gorduras, ossos e excrementos desses animais. Ossos <strong>do</strong>s grandes mamíferos podem<br />
ter servi<strong>do</strong> como esteios para cabanas cobertas de peles, asseguran<strong>do</strong> condições mínimas de<br />
sobrevivência nesse ambiente inóspito.<br />
Contu<strong>do</strong>, as evidências arqueológicas <strong>do</strong> la<strong>do</strong> leste de Beríngia são decepcionantes para os que<br />
esperam dela grandes antiguidades. Os registros são pobres, insuficientes, e nem um pouco<br />
convincentes no que diz respeito a ocupações anteriores a 12.000 anos. Já na Sibéria, há diversos sítios<br />
<strong>do</strong> Paleolítico Superior com datas a partir de 25.000 anos, apresentan<strong>do</strong> indústrias de lâminas e<br />
bifaces. A região central, próxima ao Lago Baikal, nas bacias <strong>do</strong> Lena, Ob e Yenissei, foi<br />
consideravelmente povoada e a presença humana está atestada em dezenas de sítios que correspondem<br />
a acampamentos de curta duração de caça<strong>do</strong>res-coletores altamente móveis. Trata-se de locais para<br />
onde esses grupos retornavam periodicamente para obtenção de recursos sazonais, a julgar pela<br />
sucessão das camadas de ocupação (Derev'Anko 1998 in Goebel 1999a e Goebel 1999b).<br />
Para o extremo leste siberiano, área de interesse direto nesta questão, um extensivo e árduo<br />
trabalho de levantamento realiza<strong>do</strong> por Dikov na região <strong>do</strong> Kamchatka e Chukotka (ver mapa) e<br />
publica<strong>do</strong> em 1997 (apud Bryan 1999), relata a ocorrência de cerca de 200 sítios nessa área, nos quais<br />
foram feitos cortes-testes, particularmente naqueles concentra<strong>do</strong>s próximos a cursos d’água. Seu<br />
interesse primordial foi o de encontrar sítios que pudessem comprovar antigas conexões entre Sibéria e<br />
Alaska. Contu<strong>do</strong>, a falta de datações radiocarbônicas ainda deixa os resulta<strong>do</strong>s obti<strong>do</strong>s no <strong>do</strong>mínio das<br />
suposições. Essas são as evidências mais próximas de Beríngia e o aprofundamento das pesquisas<br />
feitas por Dikov poderão permitir futuramente as primeiras correlações efetivas entre as indústrias de<br />
ambos os la<strong>do</strong>s. Atualmente, os sítios mais antigos a oeste de Beríngia, como Ushki e Berelekh, estão<br />
data<strong>do</strong>s entre 14.000 e 11.000 anos antes <strong>do</strong> presente.<br />
Do la<strong>do</strong> americano, no Alaska central, o Complexo Nenana, no vale <strong>do</strong> rio de mesmo nome<br />
(ver mapa), tem datas em torno de 11.500 anos e corresponde ao equipamento de caça<strong>do</strong>res de grandes<br />
mamíferos, como bisontes e alces. Trata-se de uma indústria não-laminar, com pequenas pontas<br />
bifaciais triangulares, em forma de lágrimas, bifaces e raspa<strong>do</strong>res (Hoffecker et al. 1993). Um <strong>do</strong>s<br />
seus sítios mais importantes é Broken Mammoth, que apresenta evidências consistentes aliadas a<br />
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datações confiáveis que o posicionam até o momento como a ocupação mais antiga <strong>do</strong> Alaska, em<br />
torno de 11.700 anos antes <strong>do</strong> presente.<br />
Estratigraficamente o Complexo Nenana precede a chamada Tradição Paleoártica, que<br />
engloba, além dela mesma, em classificação feita por Dixon (2001), o Complexo Denali e a Tradição<br />
de Microlâminas da Costa Noroeste, mais recentes. Essa grande tradição caracteriza-se pela<br />
tecnologia de produção de microlâminas e apresenta datas posteriores, em torno de 10.500 anos antes<br />
<strong>do</strong> presente. Suas raízes estão nas indústrias de microlâminas <strong>do</strong> Paleolítico Superior da Eurásia e o<br />
Complexo Denali possivelmente tem seus antecedentes na chamada cultura Diuktai, na Sibéria (ver Yi<br />
& Clark 1985).<br />
Um exemplo <strong>do</strong>s problemas que cercam as evidências disponíveis para essa área está no<br />
Yukon, noroeste <strong>do</strong> Canadá, no sítio Old Crow (ver mapa), pesquisa<strong>do</strong> por William Irving, na década<br />
de 1970, onde um artefato feito em osso longo de caribu - claramente serrilha<strong>do</strong> em uma das<br />
extremidades e data<strong>do</strong> de 27.000 anos antes <strong>do</strong> presente - foi por muito tempo considera<strong>do</strong> como uma<br />
das evidências mais consistentes para a antiguidade da ocupação humana nessa área. Contu<strong>do</strong>,<br />
redata<strong>do</strong> recentemente por AMS (accelerator mass spectrometry, técnica de espectrometria de massa<br />
com acelera<strong>do</strong>res), revelou uma idade de apenas 1.350 anos antes <strong>do</strong> presente.<br />
Há ainda um outro sítio, a gruta Blue Fish (ver mapa), próxima a Old Crow, com ossos de<br />
mamute, bisonte e cavalo data<strong>do</strong>s em torno de 12.000 anos antes <strong>do</strong> presente, supostamente associa<strong>do</strong>s<br />
a artefatos líticos. Esses são os únicos elementos mais consistentes de que se dispõe até o momento<br />
para a região a leste de Beríngia, ao final <strong>do</strong> Pleistoceno e início <strong>do</strong> Holoceno.<br />
A dispersão<br />
Uma vez em território americano, três rotas de dispersão foram possíveis para esses primeiros<br />
imigrantes, a partir <strong>do</strong> Alaska: a primeira, pelo litoral setentrional, alcançan<strong>do</strong> o rio Mackenzie e daí<br />
seguin<strong>do</strong> em direção ao sul. A segunda, pelo litoral meridional de Beríngia, beiran<strong>do</strong> a costa sudeste<br />
<strong>do</strong> Alaska, e descen<strong>do</strong> pela costa <strong>do</strong> Pacífico. E a terceira, pela região central <strong>do</strong> Alasca, através <strong>do</strong>s<br />
vales, toman<strong>do</strong> o rumo <strong>do</strong> sul.<br />
No caso da segunda rota, trata-se de uma costa com um labirinto de ilhas e estuários, bastante<br />
recortada por um emaranha<strong>do</strong> de fjords, canais e linguas de gelo, com falésias gigantes transbordan<strong>do</strong><br />
geleiras que se prolongaram, durante os avanços glaciais, até o oceano. Este é um trecho difícil,<br />
traiçoeiro, mas que poderia ter si<strong>do</strong> transposto com o recurso da navegação costeira até o sul da<br />
Colúmbia Britânica, na costa noroeste, ao sul <strong>do</strong> lençol de gelo. Neste caso, o ponto de entrada <strong>do</strong>s<br />
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primeiros coloniza<strong>do</strong>res no continente americano teria si<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Anderson & Gillam (2000) a<br />
desembocadura <strong>do</strong> rio Colúmbia, dispersan<strong>do</strong>-se a partir daí em direção a leste, sul e norte.<br />
Durante muito tempo, essa hipótese de descida pela borda <strong>do</strong> Pacífico tomada pelos gelos foi<br />
pouco considerada pela maioria <strong>do</strong>s arqueólogos, mas encontrou alguns defensores entusiastas como<br />
Fladmark (1978, 1979), Grühn (1988) e Bednarik (1989). Mais recentemente, ela ganhou novo fôlego<br />
com Erlandson (2002), apoia<strong>do</strong> em pesquisas recentes que atestam que o litoral <strong>do</strong> Alasca e da<br />
Colúmbia Britânica já estava degela<strong>do</strong> entre 14.000 e 13.000 anos, contrariamente ao que se supunha,<br />
favorecen<strong>do</strong> a ocupação humana. Não é de fácil comprovação, pois se houve evidências da passagem<br />
de populações por essa região, a elevação <strong>do</strong> nível médio <strong>do</strong> mar durante perío<strong>do</strong>s posteriores de<br />
aquecimento cui<strong>do</strong>u de eliminá-las.<br />
A primeira e a terceira rotas, respectivamente pelo litoral norte e pelo interior, através da região<br />
central <strong>do</strong> Alaska e <strong>do</strong> Yukon, seguin<strong>do</strong> o vale <strong>do</strong> rio Mackenzie e daí alcançan<strong>do</strong> as Altas Planícies,<br />
esteve bloqueada nos perío<strong>do</strong>s de máximo resfriamento por uma monumental geleira, formada pela<br />
expansão de <strong>do</strong>is grandes centros forma<strong>do</strong>res de gelo – um nas escarpas Laurêntidas e outro na<br />
Cordilheira das Rochosas - constituin<strong>do</strong> uma barreira intransponível para o movimento humano<br />
Durante os avanços glaciais, essas geleiras podem ter se expandi<strong>do</strong> até coalescerem, fechan<strong>do</strong><br />
completamente a passagem para as áreas mais meridionais. Se isto de fato ocorreu, uma extensão de<br />
1.200 km de gelos, <strong>do</strong> su<strong>do</strong>este <strong>do</strong> Yukon ao sul de Alberta, impediu o deslocamento através dessa via<br />
por alguns milênios (ver mapa), deixan<strong>do</strong> a costa noroeste como a única alternativa possível de<br />
dispersão pelo continente norte-americano. Entretanto, não se sabe com precisão se essas geleiras<br />
alcançaram sua máxima extensão simultaneamente ou se teria resta<strong>do</strong>, mesmo durante os avanços,<br />
uma estreita passagem entre elas, com cerca de 25 km de largura, configuran<strong>do</strong> um corre<strong>do</strong>r livre de<br />
gelos.<br />
De toda forma, nos interglaciais, o aumento <strong>do</strong> calor provocou a retração dessa monumental<br />
massa glacial; e, se a coalescência foi total em algum momento, nesses intervalos ela regrediu,<br />
viabilizan<strong>do</strong> a passagem e propician<strong>do</strong> finalmente uma rota de migração para plantas, animais e<br />
populações humanas até as latitudes médias norte-americanas. No entanto, por um tempo<br />
considerável, ainda, essa passagem deve ter permaneci<strong>do</strong> inviável, com ventos gela<strong>do</strong>s e áreas<br />
alagadas pelo derretimento <strong>do</strong>s gelos. Palinólogos e paleontólogos estão encontran<strong>do</strong> escassas<br />
evidências de vida vegetal e animal nesse corre<strong>do</strong>r, entre 20.000 e 14.000/13.000 anos antes <strong>do</strong><br />
presente, o que teria dificulta<strong>do</strong> bastante a sobrevivência humana em área tão inóspita.<br />
O avanço de uma geleira atua dramaticamente na paisagem, de tal maneira que após seu recuo<br />
os vestígios desse avanço são perceptíveis sob a forma de blocos, sedimentos e detritos amontoa<strong>do</strong>s,<br />
empurra<strong>do</strong>s à medida que ela se expande. Isto permite detectar com razoável precisão os limites que<br />
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as geleiras alcançaram no passa<strong>do</strong> e constatar até onde elas chegaram. O que não se pode dizer é<br />
quan<strong>do</strong> isso aconteceu. Sedimentos lacustres vêm sen<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>s para datar esses episódios, esforços<br />
contínuos vêm sen<strong>do</strong> feitos para refinar sua cronologia, mas tão ce<strong>do</strong> não se disporá de datas mais<br />
precisas.<br />
Uma forma possível de se avaliar a época da passagem desses primeiros imigrantes pelo<br />
corre<strong>do</strong>r, se ele existiu de fato, é através da datação <strong>do</strong>s sítios arqueológicos existentes ao sul dessas<br />
grandes massas de gelo, ten<strong>do</strong> em vista que o corre<strong>do</strong>r desembocava diretamente nas pradarias<br />
centrais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, com extensas pastagens para os grandes animais herbívoros e gregários.<br />
De fato, os inúmeros sítios aí existentes correspondem a acampamentos temporários de bem<br />
sucedi<strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res <strong>do</strong> final <strong>do</strong> Pleistoceno, especializa<strong>do</strong>s na captura de grandes mamíferos, com<br />
datações que se concentram em torno de 11.500 e 11.000 anos antes <strong>do</strong> presente. São basicamente<br />
sítios de matança e descarnamento de caça de grande porte, onde aparecem ossos de megafauna<br />
extinta associa<strong>do</strong>s a um sofistica<strong>do</strong> equipamento destina<strong>do</strong> à sua captura e processamento: pontas de<br />
projétil bifaciais finamente lascadas, medin<strong>do</strong> entre 7 e 15 cm, que receberam uma canelura na parte<br />
central para encabamento - as chamadas pontas acanaladas - além de facas, raspa<strong>do</strong>res, bifaces e<br />
fura<strong>do</strong>res. Em situações excepcionais vêm sen<strong>do</strong> encontra<strong>do</strong>s artefatos em osso ou em marfim.<br />
Os acha<strong>do</strong>s mais antigos dessas pontas correspondem ao chama<strong>do</strong> tipo Clóvis, que aparece em<br />
contextos associa<strong>do</strong>s à captura de mamutes. Seu nome vem <strong>do</strong> local onde ele pela primeira vez foi<br />
encontra<strong>do</strong>, no sítio Blackwater Draw, próximo à localidade de Clóvis, no Novo México. Uma forma<br />
um pouco menor, mais delicada e com o acanala<strong>do</strong> mais longo, denominada Folsom, aparece sempre<br />
associada à captura de bisontes, em posições estratigráficas superiores à <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res Clóvis e em<br />
contextos ligeiramente mais recentes (Taylor et al. 1996). Encontrada na região de Folsom, também<br />
no Novo México, deve da mesma forma sua designação a essa localidade.<br />
Esses caça<strong>do</strong>res apreciavam matérias-primas de qualidade superior, como sílex, jasper,<br />
calcedônia e outras rochas de granulação fina, que permitiam um bom controle <strong>do</strong> lascamento. As<br />
grandes distâncias entre as fontes dessas matérias-primas e o local onde os artefatos eram aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong>s<br />
mostra o quanto eles viajavam. Distâncias de 320 km são comuns e em certos casos chegaram a<br />
alcançar 480 km (Meltzer 1993). Ocorrem variações qualitativas nesse equipamento, como o tipo de<br />
rocha utilizada, ou quantitativas, como a maior ou menor freqüência de determina<strong>do</strong>s tipos, mas não<br />
nos tipos propriamente ditos, que seguem claramente um mesmo padrão.<br />
Essas pontas acanaladas são uma invenção tipicamente americana e não têm antecedentes no<br />
continente asiático. Sua origem, ainda obscura, deveria estar a leste de Beríngia, entre o Alaska<br />
central e as Altas Planícies, mas os acha<strong>do</strong>s feitos até o momento nessa região - descontextualiza<strong>do</strong>s,<br />
em situações onde inexistem contextos geológicos datáveis e as associações radiométricas são<br />
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ambíguas - pouco contribuem para esclarecer esse problema. No entanto, estu<strong>do</strong>s de resíduos de<br />
sangue em algumas dessas pontas encontradas a leste de Beríngia mostram que se trata de sangue de<br />
mamute, o que vem permitin<strong>do</strong> associá-las inquestionavelmente aos caça<strong>do</strong>res das planícies (Loy &<br />
Dixon 1998). Hoffecker e colabora<strong>do</strong>res (1993), analisan<strong>do</strong> as indústrias <strong>do</strong> Alaska central acreditam<br />
ter no complexo Nenana, acima referi<strong>do</strong>, os antecedentes dessa tecnologia de pontas acanaladas, mas<br />
esta é uma hipótese que ainda está longe de ser comprovada.<br />
Os versáteis caça<strong>do</strong>res Clóvis, altamente móveis, eficientes e adaptáveis, dispersaram-se com<br />
muita rapidez por uma diversidade notável de ambientes, de costa a costa da América <strong>do</strong> Norte. Ten<strong>do</strong><br />
conquista<strong>do</strong> as pradarias centrais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, espraiaram-se pelas florestas <strong>do</strong> leste,<br />
alcançaram as Montanhas Rochosas, com seus rios de corredeiras, chegaram aos desertos,<br />
desconsideran<strong>do</strong> barreiras ecológicas ou climáticas, e desceram até a América Central. A cada novo<br />
desafio surgi<strong>do</strong> com a ocupação de habitats até então desconheci<strong>do</strong>s, ajustaram seu notável<br />
equipamento, direcionan<strong>do</strong> a eficiente tecnologia de que dispunham para gerar novos instrumentos em<br />
resposta a novas necessidades.<br />
Essa impressionante dispersão é um <strong>do</strong>s argumentos utiliza<strong>do</strong>s pelos que defendem a hipótese<br />
de que os Clóvis tenham si<strong>do</strong> caça<strong>do</strong>res mais generalistas <strong>do</strong> que anteriormente se supunha, e que<br />
tenham feito ajustes para se adaptar aos recursos locais e às peculiaridades <strong>do</strong>s diferentes ambientes<br />
que ocuparam. Lembran<strong>do</strong> que a captura de grandes animais era rara e enfrentá-los era perigoso,<br />
acreditam que sua dieta teria incorpora<strong>do</strong> recursos vegetais e caça de menor porte, aí incluí<strong>do</strong>s<br />
pequenos mamíferos, aves, peixes e répteis. Seus vestígios teriam si<strong>do</strong> ofusca<strong>do</strong>s pela alta visibilidade<br />
<strong>do</strong>s grandes animais nos registros arqueológicos. A etnografia, por sua vez, tampouco estaria dan<strong>do</strong><br />
suporte ao modelo Clóvis especializa<strong>do</strong>, ao mostrar que fora <strong>do</strong> Ártico praticamente não há grupos se<br />
sustentan<strong>do</strong> apenas com grandes animais.<br />
No entanto, a análise feita por Wagnespack & Surovell (2003) nos conjuntos faunísticos de 33<br />
sítios paleoíndios apontou a pre<strong>do</strong>minância inequívoca de grandes animais nos seus registros, de tal<br />
forma que o perfil que emerge desses caça<strong>do</strong>res no trabalho de ambos está mais estreitamente alinha<strong>do</strong><br />
com uma estratégia especialista que propriamente generalista, reforçan<strong>do</strong> os Clóvis como caça<strong>do</strong>res<br />
especializa<strong>do</strong>s.<br />
Para a corrente orto<strong>do</strong>xa, mais conserva<strong>do</strong>ra, no entanto, essa mobilidade e dispersão<br />
impressionantes só poderiam ter ocorri<strong>do</strong> em um continente vazio, um argumento que é utiliza<strong>do</strong> para<br />
reforçar a hipótese de que os caça<strong>do</strong>res Clóvis teriam si<strong>do</strong> os pioneiros da América. Não obstante, em<br />
um território já ocupa<strong>do</strong> - mas com população ainda muito rarefeita - isto também poderia ter<br />
ocorri<strong>do</strong>. Meltzer (2002) considera que essa irradiação representou sobretu<strong>do</strong> uma vantagem<br />
adaptativa na ocupação de áreas até então inexploradas pela espécie humana.<br />
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Ten<strong>do</strong> conquista<strong>do</strong> essa diversidade de ambientes na América <strong>do</strong> Norte, os caça<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s<br />
grandes herbívoros chegaram às suas porções mais meridionais, alcançan<strong>do</strong> as áreas pantanosas, as<br />
florestas tropicais da América Central, onde pontas acanaladas também são encontradas. Essa região,<br />
uma nova barreira ecológica recoberta pela luxuriante vegetação tropical, deve ter exigi<strong>do</strong> um<br />
considerável esforço adaptativo, sobretu<strong>do</strong> no gargalo que conecta a América <strong>do</strong> Norte à América <strong>do</strong><br />
Sul, o istmo de Darien.<br />
Venci<strong>do</strong> esse obstáculo, os caça<strong>do</strong>res se defrontaram com a puna <strong>do</strong> altiplano andino, com as<br />
grandes redes fluviais, os diferentes tipos de costas, as praias <strong>do</strong> litoral, os manguezais, renovan<strong>do</strong> os<br />
desafios que exigiram as sucessivas adaptações e readaptações que, em última instância, constituem a<br />
trama da pré-história americana<br />
Todavia, a julgar pela capacidade de adaptação desses caça<strong>do</strong>res a ambientes tão distintos, essa<br />
barreira não deve ter constituí<strong>do</strong> um efetivo impedimento a sua descida. Mas a lacuna de da<strong>do</strong>s<br />
paleoecológicos e mesmo arqueológicos não permite senão especulações para essa região, tão<br />
importante para o entendimento <strong>do</strong> povoamento <strong>do</strong> continente sul-americano.<br />
Também para a América <strong>do</strong> Sul há poucos da<strong>do</strong>s paleoclimáticos produzi<strong>do</strong>s, o que dificulta a<br />
discussão sobre as possibilidades de movimento humano nas áreas tropicais. Diferentes autores<br />
cogitam várias vias de penetração e dispersão - pelo litoral setentrional, pelo litoral pacífico, pela<br />
espinha <strong>do</strong>rsal <strong>do</strong>s Andes, pelas grandes bacias hidrográficas – mas a insuficiência de da<strong>do</strong>s, agravada<br />
pelo viés estritamente difusionista, as relega ao escorregadio terreno das especulações.<br />
A polêmica<br />
Ao sul das geleiras monumentais, alguns sítios norte-americanos reivindicam antiguidades<br />
maiores ou muito maiores que 12.000 anos, o que os tornaria pré-Clóvis, e aí se incluem Callico Hill,<br />
com datas de 19.000 a 17.000 anos antes <strong>do</strong> presente; Dutton e Selby, 17.000 a 14.000 anos; Wilson<br />
Butte Cave, 17.500 anos; Lovewell, 22.000 anos; Little Salt Spring, 14.000 anos, entre muitos outros.<br />
Mas suas evidências até o momento são consideradas duvi<strong>do</strong>sas e não serão abordadas aqui.<br />
Restringin<strong>do</strong>-nos apenas aos mais relevantes, o que apresenta um maior potencial na América<br />
<strong>do</strong> Norte é Mea<strong>do</strong>wcroft, um abrigo-sob-rocha próximo a Pittsburgh, ao sul <strong>do</strong>s Grandes Lagos, que<br />
tem uma impressionante seqüência de 52 datações, quase todas em carvão, que vão de 31.400 anos<br />
antes <strong>do</strong> presente até o perío<strong>do</strong> histórico. Um fragmento de cestaria ou esteira foi data<strong>do</strong> de 19.600<br />
anos; em níveis superiores há artefatos associa<strong>do</strong>s a detritos de lascamento, feitos com matéria-prima<br />
importada, data<strong>do</strong>s em torno de 14.000 anos. O estrato entre 12.000 e 11.000 anos apresenta pontas de<br />
9
projétil lanceoladas, sem caneluras, que vêm sen<strong>do</strong> pensadas como um possível protótipo das<br />
acanaladas, uma hipótese que também ainda está longe de ser conclusiva.<br />
Mea<strong>do</strong>wcroft, estuda<strong>do</strong> por J. M. A<strong>do</strong>vasio entre 1973 e 1978, (ver A<strong>do</strong>vasio et al. 1983), vem<br />
sen<strong>do</strong> desde então duramente questiona<strong>do</strong> pelos segmentos mais conserva<strong>do</strong>res, por reivindicar uma<br />
antiguidade pré-Clóvis. Na década de 1980, essas críticas foram lideradas por Haynes (1980) e<br />
Dincauze (1981), ten<strong>do</strong> prossegui<strong>do</strong> na década de 1990 com West (1991), novamente Haynes (1991),<br />
e Tankersley & Munson (1992), que apontaram não apenas uma associação inconsistente entre<br />
artefatos e datas, mas também potenciais agentes contamina<strong>do</strong>res para as amostras datadas, nas<br />
seqüências mais antigas. Por seu la<strong>do</strong>, restos vegetais e animais recupera<strong>do</strong>s por flotação nos níveis<br />
inferiores estariam indican<strong>do</strong> um ambiente de floresta decídua, quan<strong>do</strong>, durante um avanço glacial, ele<br />
só poderia ter si<strong>do</strong> de tundra, o que é reforça<strong>do</strong> pelos da<strong>do</strong>s paleoambientais que indicam que a<br />
floresta decídua só teria se instala<strong>do</strong> na área em torno de 8.500 anos antes <strong>do</strong> presente. Há fortes<br />
sugestões, atualmente, no senti<strong>do</strong> de se datar restos vegetais <strong>do</strong>s seus níveis mais antigos por AMS,<br />
avalian<strong>do</strong>-se essa possível contaminação. Contu<strong>do</strong>, o próprio A<strong>do</strong>vasio declarou com certa amargura,<br />
em publicação mais recente (A<strong>do</strong>vasio & Pedler 1997), que Mea<strong>do</strong>wcroft está perpetuamente<br />
condena<strong>do</strong> à controvérsia, já que seus conten<strong>do</strong>res jamais aceitarão suas evidências.<br />
Na América <strong>do</strong> Sul, descartan<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s menos consistentes levanta<strong>do</strong>s até o momento, e<br />
trabalhan<strong>do</strong>, da mesma forma que na América <strong>do</strong> Norte, apenas com os mais relevantes, com aqueles<br />
para os quais a comunidade internacional vem voltan<strong>do</strong> seus olhos com mais atenção, há <strong>do</strong>is sítios<br />
que estão alimentan<strong>do</strong> esse quadro de controvérsia, com datações e contextos bastante polêmicos:<br />
Monte Verde, na porção centro-meridional <strong>do</strong> Chile, e a Toca <strong>do</strong> Boqueirão da Pedra Furada, no<br />
nordeste brasileiro. Esses sítios, que não têm nenhuma conexão econômica ou tecnológica com o<br />
horizonte Clóvis, vêm produzin<strong>do</strong> uma inquietante <strong>do</strong>cumentação cronométrica e contextos que<br />
exigem atenção.<br />
Monte Verde, escava<strong>do</strong> por Dillehay e colabora<strong>do</strong>res entre 1978 e 1985, está sen<strong>do</strong><br />
considera<strong>do</strong> internacionalmente como o mais sério candidato pré-Clóvis. O sítio tem <strong>do</strong>is<br />
componentes, Monte Verde II, data<strong>do</strong> de 12.500 a 13.000 anos, e Monte Verde I, data<strong>do</strong> de cerca de<br />
33.000 anos. Monte Verde II apresenta associação de ossos de megafauna - basicamente masto<strong>do</strong>ntes<br />
e paleolhamas - com pontas de projétil e artefatos lasca<strong>do</strong>s bifacialmente, e uma cronologia que o<br />
coloca pelo menos 1.000 anos antes <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res Clóvis. Não obstante esse equipamento, a cultura<br />
material de Monte Verde sugere, segun<strong>do</strong> seus pesquisa<strong>do</strong>res, uma tecnologia centrada primariamente<br />
na procura e manipulação de madeiras e vegetais.<br />
Por ter conserva<strong>do</strong> admiravelmente matérias orgânicas, esse sítio oferece uma oportunidade<br />
única para se ter acesso aos elementos perecíveis da cultura material das populações <strong>do</strong> Pleistoceno<br />
10
tardio, nunca antes acessada. Há fragmentos de madeiras com amarra<strong>do</strong> de fibras que parecem ser os<br />
remanescentes de um conjunto de 12 a 13 cabanas de toros, possivelmente recobertas de pele de<br />
masto<strong>do</strong>nte; uma pegada humana fossilizada; abundantes restos vegetais, ossos de pequenos<br />
mamíferos e peixes, cascas de ovos, moluscos, pedaços de couro e penas, artefatos de osso e madeira,<br />
coprólitos possivelmente humanos, fogueiras, e uma indústria bifacial produzida com matérias-primas<br />
locais. Grande parte <strong>do</strong>s artefatos líticos apresenta pouca modificação, ocorren<strong>do</strong> apenas alguns<br />
bifaces. Outros tipos de estruturas foram identifica<strong>do</strong>s, além das habitacionais, como braseiros,<br />
conten<strong>do</strong> restos vegetais queima<strong>do</strong>s (Dillehay & Collins 1991).<br />
No componente mais antigo, Monte Verde I, há material lítico esparso, associa<strong>do</strong> a datas de<br />
33.000 anos, sem qualquer outra evidência de atividade humana. Segun<strong>do</strong> alguns, há artefatos<br />
inequívocos, pelo menos um núcleo e duas lascas. Segun<strong>do</strong> outros, essa é uma interpretação<br />
equivocada e altamente improvável.<br />
Monte Verde tem si<strong>do</strong> vigorosamente combati<strong>do</strong>. Para Lynch (1990, 1991), um de seus mais<br />
ferrenhos críticos, o sítio parece pertencer claramente ao Arcaico, uma categoria classificatória que<br />
abriga as culturas já <strong>do</strong> Holoceno, as quais, em função <strong>do</strong> progressivo aquecimento <strong>do</strong> clima, passaram<br />
da caça preferencial a animais de grande porte a uma subsistência fortemente dependente da coleta de<br />
vegetais e da captura diversificada de pequenos animais. A associação entre as pontas lanceoladas e a<br />
megafauna em Monte Verde é posta em dúvida por ele. Os artefatos líticos, por não serem de rochas<br />
criptocristalinas, claramente transportadas pela mão <strong>do</strong> homem, não são considera<strong>do</strong>s.<br />
Já West (1993), outro crítico severo da sua cronologia, vê ambigüidades nos da<strong>do</strong>s, bem como<br />
possíveis agentes contamina<strong>do</strong>res que poderiam estar distorcen<strong>do</strong> as datações. A interpretação de<br />
alguns vestígios como fun<strong>do</strong>s de cabanas, braseiros, etc., foi considerada prematura e o que foi<br />
supostamente entendi<strong>do</strong> como uma pegada humana não passaria de uma depressão no solo.<br />
Roosevelt e colabora<strong>do</strong>res (2002) igualmente desqualificam as datações obtidas por Dillehay -<br />
entenden<strong>do</strong> que houve mistura de materiais de diferentes épocas, bem como problemas de<br />
contaminação. Entretanto, toda a argumentação apresentada para fundamentar seu ponto de vista<br />
parece mais destinada a colocar a Pedra Pintada, por eles estudada no baixo Amazonas e datada de<br />
11.200 anos antes <strong>do</strong> presente, como o sítio mais antigo da América <strong>do</strong> Sul, em lugar de Monte Verde.<br />
O primeiro volume da publicação de Monte Verde veio a público em 1989 (Dillehay 1989).<br />
Somente oito anos depois de cuida<strong>do</strong>sos estu<strong>do</strong>s saiu o alenta<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> volume, em 1997 (Dillehay<br />
1997). Nesse mesmo ano, um grupo de seis pesquisa<strong>do</strong>res norte-americanos e três sul-americanos fez<br />
uma visita ao sítio, a convite de Dillehay, com o objetivo de examinar criticamente as evidências,<br />
verificar os sedimentos, a estratigrafia e a autenticidade <strong>do</strong>s artefatos e <strong>do</strong>s contextos descritos, bem<br />
11
como constatar se houve aí de fato uma ocupação pré-Clóvis. Entre os convida<strong>do</strong>s foram incluí<strong>do</strong>s<br />
alguns <strong>do</strong>s mais implacáveis “advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> diabo”, como Haynes e Dincauze.<br />
Durante a visita, alguns membros <strong>do</strong> grupo colocaram em dúvida alguns artefatos de madeira e<br />
de osso, mas o resulta<strong>do</strong> final foi a constatação de que em Monte Verde II há artefatos produzi<strong>do</strong>s pela<br />
mão humana e recupera<strong>do</strong>s em contextos primários; suas datações são consistentes, não há qualquer<br />
perturbação estratigráfica; não há qualquer possibilidade de se tratar de material <strong>do</strong> Arcaico e não há<br />
sinais de contaminação para as datações (ver Meltzer et al. 1996).<br />
Em julho de 1999, foi publica<strong>do</strong> o resulta<strong>do</strong> de uma investigação feita sobre os vegetais de<br />
Monte Verde por um desses “advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> diabo”, o conserva<strong>do</strong>r Haynes, em co-autoria com outros<br />
pesquisa<strong>do</strong>res (Taylor et al. 1999). Esse trabalho constatou a inexistência de um <strong>do</strong>s possíveis agentes<br />
contamina<strong>do</strong>res (reservoir effect) que poderiam produzir valores anormais na datação <strong>do</strong>s materiais<br />
recupera<strong>do</strong>s nessa região. Ou seja, as datas <strong>do</strong> final <strong>do</strong> Pleistoceno para Monte Verde estão até o<br />
momento confirmadas. Já para o componente mais antigo, Monte Verde I, as evidências foram<br />
consideradas insuficientes, embora tenham entusiasma<strong>do</strong> a alguns integrantes <strong>do</strong> grupo. Esses<br />
pesquisa<strong>do</strong>res não são detentores da verdade, seu parecer não elimina as dúvidas existentes, mas<br />
indubitavelmente sua avaliação favorável vem contribuin<strong>do</strong> para reforçar a posição cronológica <strong>do</strong><br />
sítio em um perío<strong>do</strong> que antecede ao <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res Clóvis.<br />
O outro candidato sul-americano é a Toca <strong>do</strong> Boqueirão da Pedra Furada, localiza<strong>do</strong> em São<br />
Raimun<strong>do</strong> Nonato, no sudeste <strong>do</strong> Piaui, pesquisa<strong>do</strong> por N. Gui<strong>do</strong>n e colabora<strong>do</strong>res (Gui<strong>do</strong>n 1984,<br />
1986). Trata-se de um grande e imponente abrigo-sob-rocha, recoberto por esplêndidas pinturas<br />
rupestres, que apresenta uma notável sucessão de 46 datações radiocarbônicas, rigorosamente<br />
coerentes com sua seqüência estratigráfica, que vão de 48.000 até 6.000 anos antes <strong>do</strong> presente. Por<br />
estrapolação estratigráfica, seus pesquisa<strong>do</strong>res chegam a atribuir ao sítio uma antiguidade de mais de<br />
60.000 anos.<br />
Escava<strong>do</strong> entre 1978 e 1988, apresenta quinze estratos naturais que foram agrupa<strong>do</strong>s em três<br />
diferentes fases. A que interessa à presente discussão é a mais antiga, datada entre 48.000 e 17.000<br />
anos. A essa fase são atribuí<strong>do</strong>s vários fogões associa<strong>do</strong>s a artefatos líticos, basicamente seixos<br />
lasca<strong>do</strong>s que sofreram aquecimento e lascas de quartzo e quartzito, matérias-primas encontradas nas<br />
adjacências <strong>do</strong> abrigo. Há evidências de redução no local. Um fragmento da parede, pinta<strong>do</strong> com duas<br />
linhas paralelas em vermelho, foi encontra<strong>do</strong> junto a uma fogueira datada de 17.000 anos, sen<strong>do</strong><br />
considera<strong>do</strong> pelos pesquisa<strong>do</strong>res responsáveis como a manifestação mais antiga de registro rupestre <strong>do</strong><br />
sítio. Não foram recupera<strong>do</strong>s materiais orgânicos de nenhuma natureza e rochas criptocristalinas<br />
trazidas de fontes distantes só aparecem no abrigo na fase seguinte, holocênica, a partir de 10.000<br />
anos, com artefatos bem mais refina<strong>do</strong>s.<br />
12
Os acha<strong>do</strong>s da Toca da Pedra Furada vêm sen<strong>do</strong> da mesma forma intensamente questiona<strong>do</strong>s,<br />
têm recebi<strong>do</strong> inúmeras críticas, e não só <strong>do</strong>s segmentos conserva<strong>do</strong>res. As fogueiras de onde os<br />
carvões data<strong>do</strong>s foram retira<strong>do</strong>s não teriam si<strong>do</strong> produzidas pela mão humana, mas seriam, segun<strong>do</strong><br />
seus críticos, resultantes de combustões espontâneas no ambiente semi-ári<strong>do</strong> da caatinga. Forças<br />
naturais poderiam ter produzi<strong>do</strong> os rudimentares artefatos, bem como reuni<strong>do</strong> pedras e carvões em<br />
associações que apenas estariam sugerin<strong>do</strong> a existência de fogueiras.<br />
Tentan<strong>do</strong> levar o debate ao próprio local, Gui<strong>do</strong>n e colabora<strong>do</strong>res organizaram, em 1993, a<br />
Reunião Internacional sobre o <strong>Povoamento</strong> das Américas, em São Raimun<strong>do</strong> Nonato, ten<strong>do</strong><br />
pesquisa<strong>do</strong>res estrangeiros como convida<strong>do</strong>s. Como surpreendente resulta<strong>do</strong> desse encontro, três <strong>do</strong>s<br />
participantes, pesquisa<strong>do</strong>res norte-americanos que se alinham entre os não-conserva<strong>do</strong>res e que<br />
inclusive reivindicam grandes antiguidades para a ocupação humana na América, como A<strong>do</strong>vasio (que<br />
pesquisou Mea<strong>do</strong>wcroft anteriormente referi<strong>do</strong>), Dillehay (que pesquisou Monte Verde) e Meltzer<br />
(que trabalha com paleoíndios nas Altas Planícies), publicaram um contundente artigo na revista<br />
Antiquity (Meltzer et al. 1994), abrin<strong>do</strong> consideravelmente o leque de críticas à pesquisa (a respeito,<br />
ver Andrade Lima 1995).<br />
Os ataques foram basicamente à meto<strong>do</strong>logia utilizada em Pedra Furada, com os pesquisa<strong>do</strong>res<br />
aceitan<strong>do</strong> apenas a ocupação holocênica <strong>do</strong> sítio. Admitiram sua importância potencial, mas<br />
entenderam que só depois de esclareci<strong>do</strong>s pontos considera<strong>do</strong>s como insuficientemente explana<strong>do</strong>s é<br />
que Pedra Furada poderia ser aceito, argumentan<strong>do</strong> com o fato de até aquela altura não ter si<strong>do</strong><br />
publica<strong>do</strong> ainda um alenta<strong>do</strong> relatório final da totalidade da pesquisa. Isto contribuiu<br />
consideravelmente para que essas críticas ganhassem espaço, mesmo após a réplica publicada logo a<br />
seguir pela equipe <strong>do</strong> Piauí, na mesma revista Antiquity, rebaten<strong>do</strong>-as ponto a ponto (Gui<strong>do</strong>n et al.<br />
1996). Posteriormente, entretanto, parte <strong>do</strong> trabalho foi apresentada na tese de <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> defendida<br />
por F. Parenti na França, em 1993, sob orientação de N. Gui<strong>do</strong>n.<br />
Os defensores de Mea<strong>do</strong>wcroft, Pedra Furada e Monte Verde, ou, mais genericamente, da<br />
presença humana na América anterior aos caça<strong>do</strong>res Clóvis, estão questionan<strong>do</strong> o paradigma<br />
conserva<strong>do</strong>r e indagam se ele não vem levan<strong>do</strong> à rejeição apriorística de evidências legítimas de<br />
ocupações pleistocênicas. Estão forçan<strong>do</strong> não só a revisão desse modelo, mas também a revisão de<br />
da<strong>do</strong>s que vêm sen<strong>do</strong> sumariamente descarta<strong>do</strong>s, há décadas, como pouco plausíveis e que deveriam<br />
ser reavalia<strong>do</strong>s, segun<strong>do</strong> eles, sob uma nova ótica.<br />
Pon<strong>do</strong> em cheque a pesquisa de campo norte-americana, perguntam insistentemente: por que<br />
não são encontra<strong>do</strong>s sítios pré-Clóvis na América <strong>do</strong> Norte? Seus pesquisa<strong>do</strong>res estão procuran<strong>do</strong> nos<br />
lugares certos ou foram ofusca<strong>do</strong>s to<strong>do</strong> esse tempo por um modelo que, ao que tu<strong>do</strong> indica, não está<br />
dan<strong>do</strong> contas das evidências empíricas que vêm surgin<strong>do</strong>? Por que as escavações são em geral<br />
13
interrompidas nos níveis <strong>do</strong>s caça<strong>do</strong>res Clóvis e Folsom, sem a retirada de blocos rochosos que podem<br />
estar selan<strong>do</strong> ocupações mais antigas?<br />
No presente momento, são essas as três ocorrências que estão sob a luz <strong>do</strong>s refletores, pelas<br />
possibilidades que apresentam de serem mais antigas que o horizonte Clóvis. Já na mesma faixa<br />
cronológica ou imediatamente posterior a esses caça<strong>do</strong>res, na transição <strong>do</strong> Pleistoceno para o<br />
Holoceno, há vários outros sítios. No Brasil, as evidências de Lagoa Santa, bem como de Santana <strong>do</strong><br />
Riacho e outros sítios em Minas Gerais estudadas por A. Prous e colabora<strong>do</strong>res (Prous & Malta 1991;<br />
Prous 1992/3); de Serranópolis, em Goiás, pesquisadas por P. I. Schmitz e colabora<strong>do</strong>res (1989); da<br />
Pedra Pintada, no baixo Amazonas, investigadas por A. C. Roosevelt e colabora<strong>do</strong>res (1996), entre<br />
outras, em diferentes pontos <strong>do</strong> país (ver Prous & Fogaça 1999) e também da América <strong>do</strong> Sul,<br />
particularmente na Patagônia (ver Dillehay 2000, Miotti et al. 2003), mostram que a América <strong>do</strong> Sul já<br />
estava colonizada em toda a sua extensão a essa época .<br />
Diante das evidências que o continente sulamericano vem apresentan<strong>do</strong>, Grühn (1994)<br />
continuou insistin<strong>do</strong> no alto poder explanatório de seu modelo de entrada e descida para as regiões<br />
mais meridionais pela costa, segun<strong>do</strong> ela o mais convincente para explicar as datas antigas que vêm<br />
aparecen<strong>do</strong> aqui, já que o modelo convencional de passagem pelo corre<strong>do</strong>r livre de gelos somente<br />
após 12.000 anos antes <strong>do</strong> presente está falhan<strong>do</strong> completamente. Para ela, populações adaptadas ao<br />
litoral com equipamento lítico não-especializa<strong>do</strong> teriam se expandi<strong>do</strong> linear e rapidamente pela costa<br />
ocidental da América <strong>do</strong> Norte e América <strong>do</strong> Sul, muito antes que o interior <strong>do</strong> continente norteamericano<br />
estivesse povoa<strong>do</strong>, única forma de explicar o que vem aparecen<strong>do</strong> no Chile e no Brasil.<br />
Para a pesquisa<strong>do</strong>ra, à falta de evidências arqueológicas, evidências histórico-linguísticas<br />
poderiam sustentar este modelo. A extraordinária diversidade linguística da costa noroeste pode ser<br />
um indica<strong>do</strong>r de profundidade temporal, já que é necessária uma longa permanência in situ para que<br />
ela possa se desenvolver. Grühn, no entanto, é contestada pelos que entendem que diversidade não é<br />
sinônimo de antiguidade e cai-se novamente no terreno escorregadio da falta de da<strong>do</strong>s arqueológicos<br />
que dêem suporte a essa hipótese.<br />
Bednarik (1989), como assinalamos anteriormente, também apoiou essa possibilidade,<br />
admitin<strong>do</strong> a entrada de pequenos grupos adapta<strong>do</strong>s à zona costeira. Entenden<strong>do</strong> que respostas e<br />
adaptações de populações humanas a determinadas situações e condições não foram aleatórias, mas<br />
seguiram padrões que produziram comportamentos semelhantes, ele aventa um possível paralelismo<br />
entre a ocupação da América e a da Austrália. Estratégias similares de colonização pelo litoral teriam<br />
si<strong>do</strong> desenvolvidas pelos grupos pioneiros na América, semelhantes às que foram a<strong>do</strong>tadas no<br />
povoamento inicial da Austrália.<br />
14
Mais recentemente, Erlandson (2002) vem argumentan<strong>do</strong>, em favor dessa hipótese, que a<br />
expansão geográfica da espécie humana por to<strong>do</strong> o globo apoiou-se, em muitos casos, em bem<br />
sucedidas adaptações aquáticas; e que a habilidade para navegar desempenhou um importante papel<br />
em movimentos migratórios, como no povoamento da Austrália, da Melanésia ocidental, e ilhas <strong>do</strong><br />
Pacífico. Tal como nessas regiões, povos marítimos podem ter povoa<strong>do</strong> as Américas navegan<strong>do</strong> pela<br />
borda <strong>do</strong> Pacífico. Datas antigas vêm sen<strong>do</strong> obtidas ao longo de toda essa faixa costeira: na Colúmbia<br />
Britânica, o sítio Namu, data<strong>do</strong> de 9.700 anos antes <strong>do</strong> presente, e vários sítios nas ilhas Queen<br />
Charlotte, em torno de 9.000 anos. Na Califórnia, um sítio costeiro em Channel Islands, data<strong>do</strong> de<br />
10.700 anos antes <strong>do</strong> presente, e ossos humanos data<strong>do</strong>s diretamente por AMS em torno de 10.500 e<br />
11.000 anos antes <strong>do</strong> presente, além de cerca de 30 datações de sítios costeiros entre 9.500 e 8.000<br />
anos (op.cit.:77).<br />
Na Ämérica <strong>do</strong> Sul parece haver evidências ainda mais antigas. Além de Monte Verde, há<br />
também no Chile, ao norte de Santiago, o sítio Querero, com datas entre 11.600 e 10.900 anos antes <strong>do</strong><br />
presente, além de outros sítios costeiros com datas que alcançam 9.700 anos. No litoral norte <strong>do</strong> Peru<br />
há assentamentos que atestam baixa mobilidade, com explotação de recursos altamente localiza<strong>do</strong>s, aí<br />
incluí<strong>do</strong>s vegetais, que chegam a 10.000 anos de antiguidade. Na costa sul, Quebrada Jaguay apresenta<br />
datações entre 11.000 anos e 10.000 anos. Na costa su<strong>do</strong>este <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r, sítios <strong>do</strong> complexo Las<br />
Vegas foram data<strong>do</strong>s entre 11.200 e 9.000 anos antes <strong>do</strong> presente (Dillehay 2.000). Vários desses<br />
sítios sulamericanos contêm evidências que mostram um excelente controle <strong>do</strong> ambiente costeiro,<br />
atestan<strong>do</strong> que não se trata de grupos recém-chega<strong>do</strong>s ao litoral, mas de populações há muito<br />
familiarizadas com ambientes litorâneos.<br />
Contu<strong>do</strong>, um fato é indiscutível: os da<strong>do</strong>s só são inquestionáveis depois de 12.000 anos e, até o<br />
momento, apenas os caça<strong>do</strong>res Clóvis são absolutamente consensuais. Para os mais céticos, carvões<br />
podem ser produzi<strong>do</strong>s tanto pelo homem quanto pela natureza e algumas datações radiocarbônicas<br />
vêm crian<strong>do</strong> falsas esperanças, já que o contexto é que é rigorosamente determinante para a<br />
confirmação da presença humana. Para grande parte da comunidade científica internacional,<br />
anteriormente a esse marco de 12.000 anos, ora as datas são inconsistentes, ora a presença humana é<br />
duvi<strong>do</strong>sa. Há ainda os casos em que as datações são boas e a presença humana é inquestionável,<br />
porém as associações entre ambas não se sustentam.<br />
Como muitos equivocadamente supõem, não é o número crescente de casos duvi<strong>do</strong>sos que<br />
fortalece a possibilidade da existência de uma ocupação pré-Clóvis. Um sítio, apenas um único sítio,<br />
de to<strong>do</strong> inquestionável, já seria suficiente para a sua comprovação, mas essa conjunção de bons<br />
artefatos e boas datas, unanimemente aceita por to<strong>do</strong>s, ainda não foi encontrada.<br />
15
Em que medida essa evidência negativa é uma constatação efetiva da inexistência de sítios pré-<br />
Clóvis ou estamos diante de um modelo que precisa ser revisto? Se já havia o clamor <strong>do</strong>s segmentos<br />
menos conserva<strong>do</strong>res por novos paradigmas, outras evidências que vêm surgin<strong>do</strong>, como a constatação<br />
da presença de morfologias não-mongolóides nas Américas, com antiguidade considerável, estão<br />
amplifican<strong>do</strong> as suas vozes.<br />
Dentre essas evidências, observadas em diferentes pontos da América <strong>do</strong> Norte e América <strong>do</strong><br />
Sul, destaca-se no Brasil o crânio feminino de Lagoa Santa. Descoberto em escavações feitas por A. L.<br />
Emperaire na Lapa Vermelha IV, em 1974/1975, e desde então sob a guarda <strong>do</strong> Museu Nacional /<br />
UFRJ, esse crânio apresenta características negróides, muito semelhantes às de populações<br />
australianas e africanas atuais, identificadas a partir de análises de morfologia comparada feitas por W.<br />
A. Neves e J. Powell, em 1997 (Neves, Powell & Ozolins 1999). Segun<strong>do</strong> Neves, a sua inserção<br />
cronológica em torno de 11.000 anos evidencia uma migração não-mongolóide para a América, ao<br />
final <strong>do</strong> Pleistoceno, também através <strong>do</strong> Estreito de Bering, anteceden<strong>do</strong> as levas mongolóides,<br />
ancestrais das populações indígenas americanas. A morfologia desse crânio confirma resulta<strong>do</strong>s<br />
obti<strong>do</strong>s no início da década de 1990 por Neves & Pucciareli (1991), através da análise de outros<br />
crânios paleoíndios da América <strong>do</strong> Sul. Todas essas evidências estão mostran<strong>do</strong> que o processo de<br />
colonização inicial <strong>do</strong> continente americano deve ter si<strong>do</strong> muito mais complexo <strong>do</strong> que se supunha,<br />
com a participação provável de diferentes grupos, de diferentes proveniências e em diferentes<br />
momentos.<br />
Esses resulta<strong>do</strong>s não cabem no modelo das três migrações, proposto por Turner, de tal forma<br />
que Neves vem defenden<strong>do</strong> o modelo substituto das quatro migrações, que incorpora essa leva nãomongolóide,<br />
a qual teria penetra<strong>do</strong> em território americano pouco antes das populações mongolóides.<br />
Para Neves, uma população originária da África teria alcança<strong>do</strong> o sudeste asiático, parte dela teria se<br />
desloca<strong>do</strong> para a Austrália, corresponden<strong>do</strong> aos aborígenes australianos, e outra leva teria subi<strong>do</strong> em<br />
direção ao nordeste e atravessa<strong>do</strong> Beríngia, constituin<strong>do</strong> a primeira leva de povoamento da América.<br />
A introdução de um modelo pré-Clóvis implicaria, para os segmentos não-conserva<strong>do</strong>res, o<br />
aban<strong>do</strong>no das linhas mestras da explanação tradicional e teria que contemplar, necessariamente, um<br />
cenário de colonização parcial com baixíssima densidade demográfica, estratégias de sobrevivência<br />
distintas, sem caça especializada, e registro material consideravelmente diferencia<strong>do</strong> <strong>do</strong> que vem<br />
sen<strong>do</strong> procura<strong>do</strong> e exigi<strong>do</strong>.<br />
Isto significa a procura de sítios de baixa visibilidade, resultantes de ocupações de pequenos<br />
grupos em habitats varia<strong>do</strong>s, o que torna difícil o seu reconhecimento, pelo fato de as indústrias líticas<br />
serem provavelmente não-especializadas e bastante rudimentares. Não devem ser esperadas formas<br />
padronizadas, diagnósticas; muito menos pontas de projétil, tecnologia de produção de lâminas ou<br />
16
preparação de núcleos. Pelo fato, portanto, de seus traços não serem tão visíveis nem imediatamente<br />
reconhecíveis, teriam que ser geradas outras estratégias de pesquisa na busca desses possíveis sítios<br />
pleistocênicos.<br />
Podem ter ocorri<strong>do</strong> migrações esporádicas de pequenos grupos, algumas bem sucedidas, outras<br />
não. Essas populações podem ter desapareci<strong>do</strong> ou fica<strong>do</strong> restritas a algumas poucas áreas isoladas,<br />
antes de os caça<strong>do</strong>res Clóvis chegarem, ou mesmo enquanto eles ocupavam as pradarias centrais <strong>do</strong>s<br />
Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, razão pela qual seus vestígios estariam tão rarefeitos, inviabilizan<strong>do</strong> registros<br />
arqueológicos contínuos até as bem <strong>do</strong>cumentadas ocupações holocênicas.<br />
A corrente orto<strong>do</strong>xa, no entanto, não aceita situações ambíguas. Exige restos esqueletais ou<br />
artefatos inquestionáveis recupera<strong>do</strong>s em depósitos não-perturba<strong>do</strong>s, de tal forma que as relações entre<br />
eles e a estratigrafia possa ser claramente demonstrada; estruturas feitas indubitavelmente pela mão <strong>do</strong><br />
homem; evidências de uso controla<strong>do</strong> <strong>do</strong> fogo; datações confiáveis e consistentes; contextos<br />
inequívocos; depósitos não perturba<strong>do</strong>s e preferencialmente sela<strong>do</strong>s, sem distúrbios pós-deposicionais,<br />
e um padrão recorrente de sítios, partilhan<strong>do</strong> uma cultura material similar, dan<strong>do</strong> pouco crédito – ou<br />
nenhum - a ocorrências isoladas (Toth 1991).<br />
Mesmo assim, em 1926, ao tempo em que o ceticismo e o rigor de Ales Hrdlicka <strong>do</strong>minavam<br />
os meios acadêmicos com a mesma exigência de bons artefatos e bons contextos; que se considerava<br />
inadmissível uma cronologia maior que 5.000 / 6.000 anos para a presença humana na América; que se<br />
rotulava com uma pecha de anti-cientificismo toda e qualquer tentativa de se atribuir maior<br />
profundidade temporal a esse fenômeno - uma perspectiva que deitou raízes muito profundas,<br />
impregnan<strong>do</strong> as mentalidades acadêmicas e crian<strong>do</strong> fortes resistências à atribuição de uma maior<br />
antiguidade para a presença humana na América - bastou um único acha<strong>do</strong> para convencer to<strong>do</strong> o<br />
mun<strong>do</strong> científico de que o homem e os grandes mamíferos haviam convivi<strong>do</strong> em tempos<br />
pleistocênicos: a descoberta inesperada, em um sítio paleontológico na localidade de Folsom, no Novo<br />
México, de uma ponta de projétil com uma canelura central, fincada profundamente entre as costelas<br />
de um bisonte extinto. Este contexto inequívoco revolucionou a arqueologia americana, décadas antes<br />
que fosse desenvolvi<strong>do</strong> o méto<strong>do</strong> de datação pelo Carbono 14. Da mesma forma, nos tempos atuais,<br />
um único sítio poderia convencer definitivamente o mais cético <strong>do</strong>s pesquisa<strong>do</strong>res, como Folsom<br />
acabou vencen<strong>do</strong> Hrdlicka.<br />
A reorientação teórica<br />
De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, esse quadro de controvérsias que não se resolve e nem será resolvi<strong>do</strong> tão ce<strong>do</strong>,<br />
já começa a dar sinais de esgotamento.<br />
A ênfase excessiva nos aspectos cronológicos está<br />
17
empobrecen<strong>do</strong> de tal forma o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> fenômeno, que a sensação de fastio é inevitável. Essa etapa<br />
precisa ser rapidamente ultrapassada e uma das maneiras possíveis de se expandir esses limites tão<br />
estreitos é reorientar teoricamente a questão. A construção de novos paradigmas pode retirar os<br />
antolhos que estão direcionan<strong>do</strong> fortemente essas investigações para a cronologia e expandir<br />
extraordinariamente o campo de possibilidades. Diferentes estratégias de colonização, por exemplo,<br />
geram diferentes marca<strong>do</strong>res arqueológicos (ver Beaton 1991), e esse filão está começan<strong>do</strong> a ser<br />
explora<strong>do</strong>. Também começa a ser investiga<strong>do</strong> o papel da exploração de vegetais entre as populações<br />
pioneiras na transição <strong>do</strong> Pleistoceno para o Holoceno, atenuan<strong>do</strong> a primazia dada à caça de grandes<br />
animais no modelo Clóvis (Dillehay & Rossen 2002).<br />
Migrações, um tema caro à perspectiva histórico-cultural e que se tornou indesejável na<br />
arqueologia da segunda metade deste século, como bem assinalaram Whitley & Dorn (1993), foi<br />
resgata<strong>do</strong> por Anthony, em trabalho fecun<strong>do</strong> de 1990. Aí foi demonstra<strong>do</strong> que este é um aspecto<br />
estrutura<strong>do</strong> <strong>do</strong> comportamento humano, que tende a se desenvolver segun<strong>do</strong> formas previsíveis. A<br />
análise <strong>do</strong>s fatores negativos que empurram populações de seus lugares de origem e <strong>do</strong>s fatores<br />
positivos que as atraem para novos ambientes, bem como da estrutura <strong>do</strong>s movimentos migratórios<br />
(migração em ondas, em saltos, em forma de rio, refluxos, etc.), pode redirecionar a questão <strong>do</strong><br />
povoamento da América para discussões teoricamente mais consistentes e profícuas.<br />
Um primeiro passo nessa direção foi da<strong>do</strong> por Anderson & Gillam (2000). Em artigo onde<br />
apontam as vias mais favoráveis à penetração humana inicial no continente, discutem, com base no<br />
Sistema de Informação Geográfica (GIS), as rotas migratórias de menor esforço para os primeiros<br />
coloniza<strong>do</strong>res, assumin<strong>do</strong> que eles optaram sempre pelos caminhos menos extenuantes, como faixas<br />
costeiras, planícies e redes hidrográficas, evitan<strong>do</strong> cadeias montanhosas e geleiras.<br />
Movimentos de colonização lineares no senti<strong>do</strong> norte/sul teriam si<strong>do</strong> mais fáceis,<br />
acompanhan<strong>do</strong> as principais regiões fisiográficas e ecológicas das Américas, como ao longo da faixa<br />
costeira ou das planícies, mas também mais rápida, sobretu<strong>do</strong> em ambientes aquáticos, quer<br />
marítimos, quer fluviais, facilita<strong>do</strong>s pelo uso de embarcações. Evidências existentes em outras regiões<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, como a Austrália, demonstram que a espécie humana dispôs de embarcações e de<br />
habilidade para navegar em águas oceânicas próximas à costa em perío<strong>do</strong>s muito anteriores ao limite<br />
<strong>do</strong> Pleistoceno com o Holoceno. Em contrapartida, avanços através de diferentes zonas ambientais ou<br />
de rotas de maior esforço teriam si<strong>do</strong> bem mais lentos.<br />
A tendência atual é a de substituir o velho modelo unidirecional por uma perspectiva<br />
multidirecional, admitin<strong>do</strong> que múltiplas migrações podem ter ocorri<strong>do</strong>, inclusive ao mesmo tempo. A<br />
dispersão <strong>do</strong>s primeiros povoa<strong>do</strong>res teria si<strong>do</strong> favorecida ao longo da costa, no senti<strong>do</strong> norte/sul, e daí<br />
para o interior, no senti<strong>do</strong> oeste/leste, em diferentes pontos <strong>do</strong> continente e em diferentes direções,<br />
18
sem necessariamente excluir uma penetração posterior pelo corre<strong>do</strong>r livre de gelos, uma vez este<br />
desimpedi<strong>do</strong>, e a conseqüente ocupação das pradarias centrais pelos caça<strong>do</strong>res Clóvis.<br />
Esta hipótese da descida pela costa <strong>do</strong> Pacífico vem ganhan<strong>do</strong> um número cada vez maior de<br />
adeptos, à medida que se constata que o chama<strong>do</strong> modelo Clóvis First não se sustenta mais, diante das<br />
evidências que vêm surgin<strong>do</strong> na Amérida <strong>do</strong> Sul. Ele perdeu consideravelmente seu vigor explanatório<br />
e, quan<strong>do</strong> um modelo não funciona mais, outro deve substituí-lo. Admite-se que os caça<strong>do</strong>res Clóvis<br />
possam ter si<strong>do</strong> precursores em algumas áreas, mas não os pioneiros <strong>do</strong> continente, de tal forma que a<br />
dispersão <strong>do</strong>s primeiros imigrantes pela costa noroeste fica sen<strong>do</strong> a mais plausível neste momento.<br />
Em 2001, Dixon propôs uma colonização inicial costeira pela margem sul de Beríngia, em<br />
torno de 13.500 anos atrás, funda<strong>do</strong> nos da<strong>do</strong>s recentes que indicam que a costa oeste da América <strong>do</strong><br />
Norte estaria livre de gelos a essa época, enquanto o corre<strong>do</strong>r estaria bloquea<strong>do</strong> pelas grandes geleiras<br />
continentais, só derretidas em torno de 11.000 anos. Em contrapartida ao corre<strong>do</strong>r interiorano, uma<br />
zona ecológica contínua ao longo de to<strong>do</strong> o litoral Pacífico das Américas, configuran<strong>do</strong> um efetivo<br />
corre<strong>do</strong>r litorâneo, teria propicia<strong>do</strong> uma avenida ambiental para a colonização <strong>do</strong> continente. Esse<br />
ecotono, zona de transição entre o bioma terrestre e o marinho, farto em recursos alimentares, sem<br />
dúvida teria propicia<strong>do</strong> condições vantajosas para a subsistência e sobrevivência dessas populações.<br />
Se, como já foi assinala<strong>do</strong>, as transgressões marinhas eliminaram possíveis evidências dessa descida<br />
pela costa, elas podem ser procuradas e encontradas em áreas imediatamente adjacentes, como foi o<br />
caso de Monte Verde, situa<strong>do</strong> na drenagem de um rio que dista apenas alguns poucos quilômetros <strong>do</strong><br />
litoral Pacífico.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, no que diz respeito à cultura material, mais que classificações de base<br />
morfológica <strong>do</strong> equipamento <strong>do</strong>s primeiros imigrantes, como tem si<strong>do</strong> feito na maioria <strong>do</strong>s casos, deve<br />
ser analisa<strong>do</strong> o repertório de regras que está subjacente ao repertório de formas, a gramática de<br />
produção desses artefatos, na medida em que formas semelhantes podem ter si<strong>do</strong> produzidas por<br />
culturas distintas e formas distintas podem ter si<strong>do</strong> produzidas por uma mesma cultura.<br />
Se esses primeiros imigrantes adaptaram seu equipamento para desempenho de diferentes<br />
funções em diferentes locais, isto resultaria em ferramentas morfologicamente distintas sugerin<strong>do</strong><br />
grupos distintos, quan<strong>do</strong> na verdade se trata de um mesmo grupo. Se eles modificaram seu<br />
equipamento para se ajustar a condições ecológicas em mudança ou a diferentes ambientes – e eles<br />
com certeza fizeram isso – as classificações baseadas na forma, apenas, jamais nos permitirão rastrear<br />
essas populações. A variabilidade só pode ser acessada através da tecnologia de produção e enquanto<br />
não se atenuar a ênfase na morfologia não se poderá avançar nesse terreno (Young et al. 1994).<br />
A arqueologia sul-americana tem consegui<strong>do</strong> nos últimos anos fazer alguns avanços<br />
significativos, para além <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> de sítios isola<strong>do</strong>s e das análises de base morfológica. No Cone Sul,<br />
19
a Argentina vem se destacan<strong>do</strong> por um forte investimento nos caça<strong>do</strong>res-coletores <strong>do</strong> limite <strong>do</strong><br />
Pleistoceno com o Holoceno e inquestionavelmente lidera as pesquisas sobre o assunto neste momento<br />
no nosso continente (Miotti & Salemme 2001; Miotti et al. 2003). Vários arqueólogos, com conjuntos<br />
de sítios já bem investiga<strong>do</strong>s, particularmente na cadeia Tandilia, nos pampas argentinos, e no planalto<br />
central, Província de Santa Cruz, Patagônia, vêm trabalhan<strong>do</strong> a partir de perspectivas regionais,<br />
construin<strong>do</strong> hipóteses sobre uso <strong>do</strong> espaço e investigan<strong>do</strong> relações entre sítios; reconhecen<strong>do</strong><br />
funcionalidade e desempenho de atividades específicas, em busca de sistemas de assentamento;<br />
mensuran<strong>do</strong> o grau de mobilidade desses caça<strong>do</strong>res-coletores; avalian<strong>do</strong> a extensão <strong>do</strong> seu território<br />
de explotação; relen<strong>do</strong> supostas diversidades artefatuais à luz da tecnologia <strong>do</strong>s sistemas de redução<br />
utiliza<strong>do</strong>s, entre outros aspectos.<br />
No Brasil, reavalian<strong>do</strong> as evidências de Serranópolis, no planalto central, Schmitz (2002) vem<br />
trabalhan<strong>do</strong> em algumas dessas direções, contemplan<strong>do</strong> da mesma forma relações entre sítios e<br />
identifican<strong>do</strong> sistemas de assentamento que sinalizam uma ocupação estável e dura<strong>do</strong>ura entre 11.000<br />
e 8.500 anos antes <strong>do</strong> presente.<br />
Da Colômbia, no outro extremo <strong>do</strong> continente, vêm sen<strong>do</strong> emiti<strong>do</strong>s sinais de um processo lento<br />
de colonização, ao invés de uma colonização rápida, dirigida. Lá, caça<strong>do</strong>res-coletores parecem ter<br />
transforma<strong>do</strong> substancialmente a paisagem, abrin<strong>do</strong> clareiras na floresta tropical e crian<strong>do</strong> espaços<br />
abertos nas áreas adjacentes aos sítios, como atesta a presença de pólen de vegetação secundária em<br />
níveis data<strong>do</strong>s de 10.000 anos, um indica<strong>do</strong>r também de mobilidade restrita (Gnecco & Mora 1997).<br />
No entanto, contraditoriamente, no sul da Patagônia as evidências sugerem uma colonização rápida. É<br />
lá que vêm sen<strong>do</strong> obtidas as datas mais antigas. Na extremidade meridional <strong>do</strong> Chile há um conjunto<br />
de cinco sítios (Fell, Palli Aike, Cueva del Medio, Lago Sofia) com uma cronologia bem marcada,<br />
apresentan<strong>do</strong> três datas entre 12.390 e 11.570 anos antes <strong>do</strong> presente, e 31 datas entre 11.000 e 10.000.<br />
Somam-se a elas as datações igualmente consistentes que vêm sen<strong>do</strong> obtidas na Argentina, totalizan<strong>do</strong><br />
um conjunto considerável de sítios com datas seguras, entre 11.000 e 10.000, que mostram que a essa<br />
altura o extremo sul <strong>do</strong> continente estava efetivamente coloniza<strong>do</strong>, embora existam datas<br />
potencialmente ainda mais antigas. Junto com Monte Verde, no Chile, elas dão forte sustentação à<br />
hipótese de uma rápida descida pelo corre<strong>do</strong>r litorâneo <strong>do</strong> Pacífico. Ou seja, o processo de<br />
colonização inicial sem dúvida alguma foi muito mais complexo <strong>do</strong> que se supõe, podem ter ocorri<strong>do</strong><br />
migrações simultâneas, por diferentes vias, resultan<strong>do</strong> em processos distintos, em que respostas<br />
variadas parecem ter si<strong>do</strong> dadas aos desafios encontra<strong>do</strong>s.<br />
Uma coisa no entanto é certa: os resulta<strong>do</strong>s que vêm sen<strong>do</strong> obti<strong>do</strong>s na América <strong>do</strong> Sul – aí<br />
incluí<strong>do</strong> o Brasil - não se coadunam com o estereótipo <strong>do</strong>s paleoíndios norte-americanos, com sua<br />
ênfase na caça aos grandes mamíferos pleistocênicos e na grande mobilidade <strong>do</strong>s seus caça<strong>do</strong>res-<br />
20
coletores especializa<strong>do</strong>s. Ao invés disso, vem sen<strong>do</strong> constatada uma mobilidade restrita, sen<strong>do</strong> mais<br />
adequa<strong>do</strong> se falar de territorialidade <strong>do</strong> que de mobilidade propriamente. Em lugar de especialistas, os<br />
caça<strong>do</strong>res-coletores sul-americanos foram basicamente generalistas, capturan<strong>do</strong> um amplo espectro da<br />
fauna de médio e pequeno porte e exploran<strong>do</strong> intensamente recursos vegetais (ver Dillehay & Rossen<br />
2002), como vêm enfaticamente sinalizan<strong>do</strong> amostras de diferentes pontos das Américas. <strong>do</strong> Norte e<br />
<strong>do</strong> Sul.<br />
No momento atual, portanto, um vasto campo de possibilidades a serem exploradas está se<br />
abrin<strong>do</strong> e muito provavelmente a arqueologia americana começará a se mover em direção a elas nos<br />
próximos anos. Uma nova modelagem teórica começa claramente a se esboçar, o que permitirá<br />
transcender as limitações atuais que estão reduzin<strong>do</strong> esse tema fascinante a uma empobrece<strong>do</strong>ra e<br />
obsessiva disputa pelas datas mais antigas. Espera-se que com ela se possa finalmente investigar, em<br />
toda a sua complexidade e plenitude, aquele que foi o último capítulo da dispersão da espécie humana<br />
pelo planeta.<br />
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