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Indução, Empirismo e Método Científico - Currículo

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DISCIPLINAHistória e Filosofia da CiênciaIndução, empirismoe o método científicoAutoresJuliana Mesquita Hidalgo FerreiraAndré Ferrer P. Martinsaula09


Governo FederalPresidente da RepúblicaLuiz Inácio Lula da SilvaMinistro da EducaçãoFernando HaddadSecretário de Educação a DistânciaCarlos Eduardo BielschowskyReitorJosé Ivonildo do RêgoVice-ReitoraÂngela Maria Paiva CruzSecretária de Educação a DistânciaVera Lucia do AmaralSecretaria de Educação a Distância (SEDIS)Coordenadora da Produção dos MateriaisVera Lucia do AmaralCoordenadora de RevisãoGiovana Paiva de OliveiraCoordenador de EdiçãoAry Sergio Braga OliniskyProjeto Gráfi coIvana LimaRevisores de Estrutura e LinguagemEugenio Tavares BorgesJanio Gustavo BarbosaJeremias Alves de AraújoJosé Correia Torres NetoLuciane Almeida Mascarenhas de AndradeThalyta Mabel Nobre BarbosaRevisora das Normas da ABNTVerônica Pinheiro da SilvaRevisores de Língua PortuguesaCristinara Ferreira dos SantosEmanuelle Pereira de Lima DinizJanaina Tomaz CapistranoKaline Sampaio de AraújoRevisoras Tipográfi casAdriana Rodrigues GomesMargareth Pereira DiasNouraide QueirozArte e IlustraçãoAdauto HarleyCarolina CostaHeinkel HugeninLeonardo FeitozaRoberto Luiz Batista de LimaDiagramadoresElizabeth da Silva FerreiraIvana LimaJosé Antonio Bezerra JuniorMariana Araújo de BritoPriscilla XavierAdaptação para Módulo MatemáticoJoacy Guilherme de A. F. FilhoDivisão de Serviços TécnicosCatalogação da publicação na Fonte. Biblioteca Central Zila Mamede – UFRNTodos os direitos reservados. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzidasem a autorização expressa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)


ApresentaçãoNas aulas anteriores, você teve acesso a temas da História da Ciência, numa visãopanorâmica que procurou abordar algumas das principais realizações científi cas dopassado, a partir de certos “episódios” da história da Física. Mas o foco, até aqui,foi a História. A partir dessa aula, mudaremos esse foco, tratando de tópicos consideradospertinentes à Filosofi a da Ciência e estabelecendo um diálogo com alguns dos episódioshistóricos vistos nas demais aulas.Objetivos1Apresentar certos “temas” de estudo da Filosofia daCiência, procurando contextualizar o que será abordadonas aulas seguintes.234Problematizar a concepção comum do “método científico”.Apresentar o “método indutivo” e sua vinculação àcorrente filosófica denominada de “empirismo”.Reconhecer a possibilidade de uma “leitura empirista” deepisódios da História da Ciência.Aula 09 História e Filosofi a da Ciência1


Para começo de conversa...Vimos na primeira aula o que é “História da Ciência”. Mas o que seria “Filosofi a daCiência”? Qual a diferença entre elas?Usando as defi nições de Thomas Kuhn (1977), num ensaio em que ele discute asdiferenças entre essas áreas, podemos dizer que cada uma delas tem objetivos próprios,distintos entre si. A História da Ciência tem função explicativa e praticamente não recorre ageneralizações. A pesquisa histórica tem como produto fi nal uma narrativa que deve tornarplausível e compreensível os eventos passados. Já a Filosofia da Ciência busca generalizaçõesde caráter universal, e não o que é particular a um período ou lugar. Assim, se um historiadorda ciência analisa determinado trabalho de Galileu, ele está interessado particularmente noque esse pensador produziu e na ciência dessa época. Em contrapartida, se um filósofo daciência analisa o mesmo trabalho de Galileu, seu interesse é entender como funciona a ciênciaem si. Para um mesmo trabalho, diferentes olhares são possíveis.Há uma frase bastante famosa, escrita pelo filósofo da ciência Imre Lakatos no início dadécada de 1970, que diz: “a Filosofia da Ciência sem a História da Ciência é vazia; a História daCiência sem a Filosofia da Ciência é cega”. O dito de Lakatos se refere a um reconhecimentoda relevância mútua de ambas as áreas.Ainda na década de 1960, quando a História da Ciência e a Filosofia da Ciência costumavamser vistas como áreas divergentes, o filósofo da ciência Norwood Hanson já havia defendidoessa relevância mútua, afastando-se da tradição. Hanson alegou que a realização de um bomtrabalho em História da Ciência demandava um profundo conhecimento da Filosofia da Ciência,e que o contrário também era verdadeiro. Essa concepção foi desde então muito debatida, erecebeu a atenção de filósofos como Kuhn, para quem a relevância mútua entre essas áreasestava longe de ser simétrica. Pode-se dizer, no entanto, que ora abrandada, ora enfatizada, arelevância mútua entre as áreas ganhou aceitação cada vez mais frequente desde então.É por isso que, em alguns momentos das aulas anteriores sobre História da Ciência,discutimos aspectos relativos à Filosofia da Ciência e à natureza do conhecimento científico, demodo a evitarmos que o material histórico fosse tomado como algo “pronto e acabado”, queestá ali para ser “lido” (e não interpretado). Ao longo dessa sequência de aulas sobre Filosofi ada Ciência algumas questões relativas à natureza da ciência serão, portanto, retomadas sobuma nova ótica, ainda que haja certa sobreposição com elementos já abordados.Iniciaremos com uma discussão acerca do “método científico” e de sua relação (histórica)com a indução e o empirismo.2Aula 09 História e Filosofi a da Ciência


Um olhar sobre a naturezado conhecimento científicoAciência parece ser um tipo de conhecimento “especial”. O desenvolvimento de modelose teorias, ao longo dos séculos, permitiu que a humanidade instrumentalizasse seudiálogo com o mundo natural de maneira cada vez mais sofi sticada. Hoje em dia, asteorias científi cas consideradas mais avançadas estão, no mais das vezes, muito distantesde uma compreensão direta por parte do cidadão comum, dado o grau de abstração de seusconceitos e – quase que invariavelmente – de sua formulação matematizada.Por outro lado, a “imbricação” da ciência e da tecnologia que, em maior ou menorgrau, sempre existiu ao longo dos séculos, parece haver assumido, na atualidade, um nívelde profundidade sem precedentes. Vivemos cercados por uma parafernália tecnológica cujodesenvolvimento remonta, muitas vezes, a pesquisas básicas no campo da Física teórica maisabstrata. A própria indústria cria suas demandas particulares, realimentando o processo deprodução de conhecimento a partir da prática e do saber “aplicado”.Tudo isso faz a ciência ser um conhecimento valorizado socialmente. O mundoglobalizado é, em certa medida, fruto da ciência. Essa, por sua vez, faz-se presente em nosso diaa dia das mais variadas formas, implícita ou explicitamente. Nos bancos escolares, por exemplo,estudamos ciência. Se há disciplinas como Física, Química e Biologia nos currículos é porquenossa sociedade conserva e quer transmitir esse tipo de saber, que pertence a nossa cultura.A ciência também pode ser vista em jornais diários (“competindo” com outras abordagensnão tão científicas...) e na mídia em geral, onde “ser científico” costuma ser usado como fatorde credibilidade para algo que se queira vender ou validar (quem nunca se deparou com umapropaganda de creme dental ou de outro produto “testado cientificamente”?).Mas... por que a valorização desse conhecimento? O que ele tem de “especial”? Como seconstitui? Que diferenças existem entre ciência e outras formas de conhecimento?Essas são questões próprias do campo da Filosofia (e Sociologia) da Ciência. Detalhandoum pouco mais, diríamos que, numa primeira aproximação, compete à Filosofi a da Ciênciaestabelecer um olhar sobre esse empreendimento humano chamado “ciência”, procurandocompreender a natureza desse conhecimento e de sua produção. Assim, dentre os múltiplosaspectos relacionados a esse campo, poderíamos citar os seguintes:• Que método(s) a ciência utiliza em seu desenvolvimento?• Em que circunstâncias podemos afirmar que uma teoria científica foi “provada”?• O conhecimento científico pode ser considerado “verdadeiro”?Aula 09 História e Filosofi a da Ciência 3


• As teorias científicas “evoluem”? É possível falar em “progresso da ciência”?• Que papel devemos atribuir aos experimentos na construção do conhecimento científico?E à razão?• Há “experiências cruciais”?• A ciência reflete o real de forma objetiva?• Qual o papel da comunidade científi ca e do contexto histórico na construção desseconhecimento?• É possível estabelecer critérios claros para dizer o que é – e o que não é – ciência?Obviamente não pretendemos, no restante das aulas desse curso, abordar com detalhestodos esses temas. A Filosofi a da Ciência é um campo vastíssimo do conhecimento, comuma história própria e variadas perspectivas teóricas. Em função disso, optamos por fazer um“recorte” particular, escolhendo discutir certos pontos relativos à natureza do conhecimentocientífi co a partir da apresentação das visões de alguns autores desse terreno. Além disso,procuraremos fazer o “exercício” de resgatar parte do que foi discutido nas aulas anteriores, deHistória da Ciência propriamente ditas, buscando interpretar tais episódios à luz dos elementosde Filosofia da Ciência apresentados.O “método científico”Uma boa forma de iniciarmos nossa busca por compreender as características doconhecimento científi co é tentarmos investigar a maneira como ele é construído. Em outraspalavras, devemos voltar nossa atenção para o modo como os cientistas trabalham eproduzem conhecimento.Se você pensar a esse respeito, conversar com outras pessoas ou consultar livros emgeral (não especializados em Filosofi a da Ciência), é quase certo que irá se deparar com aseguinte ideia: existe um método – denominado “método científi co” – que é seguido peloscientistas em seu trabalho cotidiano. Pensando especificamente nas Ciências Naturais, essemétodo é usado com a intenção de descobrir as leis que regem os fenômenos da natureza.Não é muito difícil, também, identificarmos as etapas (ou passos) associadas ao “métodocientífi co”. Embora haja algumas variações na descrição dessas etapas, as característicascentrais do método encontram-se a seguir:4Aula 09 História e Filosofi a da Ciência


OBSERVAÇÃOACÚMULO DE DADOSHIPÓTESESCOMPROVAÇÃO / VERIFICAÇÃORESULTADOSNão confirmaçãoda hipóteseCONCLUSÕESO método se inicia com a observação do fenômeno que se deseja investigar. Essaobservação não é um puro e simples “olhar”. Pode envolver a realização de experimentoscontrolados que forneçam dados (quantitativos) ou quaisquer outras informações relevantes,que são registrados, sistematicamente. O trabalho de outros cientistas, com o mesmofenômeno, faz com que se acumulem dados sobre ele.O acúmulo de dados permite que se formulem hipóteses explicativas. Essas hipóteses sãoenunciados gerais que tentam descrever adequadamente o conjunto de dados e estabelecerrelações causais que propiciem a explicação do fenômeno. A etapa seguinte é a comprovação/ verificação das hipóteses, ou seja, busca-se realizar novos experimentos e observações paraque se verifique a validade ou não das hipóteses. Os experimentos geram resultados.Uma vez que os resultados confi rmem certa hipótese, chega-se a uma lei científi caque pode ser aplicada em casos semelhantes (generalização). A investigação de fenômenoscorrelacionados pode levar à construção de novas leis e, de um ponto de vista mais geral, de umateoria científica. Por outro lado, a não comprovação das hipóteses faz com que se retorne a etapasanteriores do método, com a realização de novas observações, hipóteses, experimentos etc.Essa sequência de etapas descrita acima aparece com várias denominações: métodoindutivo, método empírico-indutivista ou simplesmente método científi co. A ideia de“indução” está associada ao fato de se partir de enunciados particulares para se chegar a umenunciado geral (voltaremos a isso a seguir). Já a denominação “empírico-indutivista” salientaa ênfase dada pelo método aos experimentos, ao empírico.Há uma série de características do chamado “método científico” que vale a penadestacarmos aqui. Ele é linear, composto por uma sequência de passos encadeados que parecedar pouco espaço a outros procedimentos ou ações, que representariam “ramifi cações” doAula 09 História e Filosofi a da Ciência5


método. Isso nos leva a uma segunda característica: a rigidez, que faz com que o método sejapouco sensível a modificações, assemelhando-se a uma “receita de bolo”. O método tambémpressupõe que as observações sejam neutras e objetivas, ou seja, que não haja qualquer tipode interferência dos cientistas e de seu contexto histórico-cultural nos fenômenos a estudar.Além disso, o método científi co, tal como descrito acima, pretende ser universal, ouseja, aplicado a qualquer tipo de investigação científica e sempre da mesma maneira. E, sendoúnico, serve como critério de demarcação entre o que pode e o que não pode ser consideradocientífico. Um conhecimento, para ser científico, deve resultar da aplicação do método, e viceversa:aplicando-se o método, chega-se a um conhecimento válido do ponto de vista científico.Por fim, o conhecimento gerado a partir do método tem a pretensão de ser um conhecimentoseguro, comprovado e verdadeiro. Aliás, essas são palavras que costumamos associar aoconhecimento científico: “prova”, “verdade” etc. Você já deve ter se deparado com alguma frasedo tipo: “A ciência acaba de provar que...” ou “Foi comprovado cientificamente que...”. Quasesempre está implícito, em afirmações dessa natureza, a ideia de que foi aplicado um método parase chegar a essa “comprovação”, que subentende um conhecimento definitivo e “verdadeiro”.Mas...Será que os cientistas, em suas pesquisas, seguem fielmente esse método?Atividade 112Responda a questão colocada no balão acima, a partir de suas reflexões e concepçõespessoais.Alan Chalmers, no livro “O que é ciência afi nal?”, apresenta o que considera umavisão de ciência amplamente aceita:Conhecimento científi co é conhecimento provado. As teorias científi cas são derivadasde maneira rigorosa da obtenção dos dados da experiência adquiridos por observaçãoe experimento. A ciência é baseada no que podemos ver, ouvir, tocar etc. Opiniões oupreferências pessoais e suposições especulativas não têm lugar na ciência. A ciência éobjetiva. O conhecimento científi co é conhecimento confi ável porque é conhecimentoprovado objetivamente (CHALMERS, 1993, p. 22).6Aula 09 História e Filosofi a da Ciência


a) Você concorda com a visão de ciência apresentada pelo autor? Explicite pontos deconcordância e de discordância.b) Que relações podemos estabelecer entre a visão apresentada por Chalmers, nesse trecho,e a ideia de método científico trabalhada nesta aula?Indução e empirismoA Filosofi a da Ciência, principalmente no último século, questionou profundamente ouso e a validade do “método científi co”, tal como exposto na seção anterior. Mas, antes deprocedermos a essa crítica, valeria a pena tecer alguns comentários (de modo não exaustivo!)sobre as origens desse método.A questão da busca de um caminho para se chegar a um conhecimento seguro é tãoantiga quanto a própria Filosofia. Em Platão e Aristóteles podem ser encontradas profundasreflexões sobre isso. No entanto, a origem do “método científico” costuma estar associada aonome do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626).CaminhoEtimologicamente,a palavra ‘método’associa-se à ideiade ‘caminho’.Figura 1 – Francis Bacon (1561-1626)Bacon é um personagem da “virada” do século XVI para o XVII, que foi bastanteinfluenciado pelas grandes transformações do seu tempo, momento em que a ciência modernaadquire maturidade e promove uma verdadeira revolução na forma de pensar do homemocidental. É o período que compreende, como vimos na história da mecânica, nomes comoCopérnico, Bruno, Galileu, Kepler, entre outros.Aula 09 História e Filosofi a da Ciência 7


Era jurista e homem público, tendo exercido atividade política. Preocupou-se em refletirsobre o conhecimento, partindo do princípio de que ele deveria estar a serviço do ser humano.O domínio da natureza pelo homem, por meio da compreensão de suas leis, resultaria embenefícios práticos à vida cotidiana. Para ele, um sistema filosófico deve ser julgado pelos frutosque é capaz de dar. Nesse sentido, Bacon defende que o conhecimento deva voltar-se para a vidaprática. Em sua mais conhecida obra (Novum Organum), ele afirma: “A verdadeira e legítima metadas ciências é a de dotar a vida humana de novos inventos e recursos” (BACON, 1997, p. 64).É importante que se diga que, embora Bacon enfatize a utilidade do conhecimento,não nega a importância dos conhecimentos teóricos. Nesse sentido, faziadistinção entre experimentos “frutíferos” (com consequências práticas diretas)e “lucíferos” (que auxiliam na descoberta de causas e axiomas). Vale, ainda,ressaltar que os historiadores costumam frisar que Bacon estava falando dautilidade do conhecimento como um todo, que dizia respeito a uma melhorcompreensão e dominação da natureza.AforismoNo Novum Organum,Bacon utiliza “aforismos”(espécie de “máxima”ou “sentença moralbreve”). Nas citações aseguir, indicaremos, alémda página, o númerodo aforismo [afor.]que aparece na obra.A linguagem da época,mesmo traduzida, contémem geral alguns termosincomuns na linguagemcotidiana. Preocupe-se emcompreender o sentidogeral das citações.PerspectivaaristotélicaAliás, o próprio nomedessa obra de Bacon(Novum Organum ouVerdadeiras indicaçõesacerca da interpretaçãoda natureza) foi dado emcontraposição direta aoOrganon de Aristóteles.Segundo o fi lósofo, houve (até a sua época) poucos avanços na ciência porque oshomens, além de gastarem tempo, orgulho e dinheiro em coisas e estudos sem importânciae utilidade, não tinham um método adequado de investigação da natureza:[...] advertimos de modo claro e fi rme que com os atuais métodos não se podem logrargrandes progressos nas doutrinas e nas indagações sobre ciências, e bem por issonão se podem esperar signifi cativos resultados práticos (BACON, 1997, p. 96, Livro I,afor. CXXVIII).Os “atuais métodos” criticados por Bacon relacionam-se à perspectiva aristotélicade obtenção de axiomas gerais a partir da análise de poucos casos particulares. Para ele, apassagem do particular ao geral não deveria se dar por um “salto”, mas de modo gradativo efundamentado em fatos, experimentos e uma ampla gama de observações:Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da verdade.Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares aos axiomas maisgerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a partir desses princípiose de sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue. A outra, que recolhe os axiomasdos dados dos sentidos e particulares, ascendendo contínua e gradualmente até alcançar,em último lugar, os princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho,porém ainda não instaurado (BACON, 1997, p. 36, Livro I, afor. XIX).E continua Bacon:Tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e terminamnas formulações da mais elevada generalidade. Mas é imenso aquilo em que discrepam.Enquanto uma perpassa na carreira pela experiência e pelo particular, a outra aí se detémde forma ordenada, como cumpre. Aquela, desde o início, estabelece certas generalizaçõesabstratas e inúteis; esta se eleva gradualmente àquelas coisas que são realmente as maiscomuns na natureza (BACON, 1997, p. 36, Livro I, afor. XXII).8Aula 09 História e Filosofi a da Ciência


A proposta de Bacon funda-se, pois, na indução, cujo princípio é a ascensão gradativado particular ao geral, via observação e experiências. Em outras palavras, devemos observara natureza, realizar experimentos e, a partir dos resultados disso, procedermos a uma graduale contínua generalização. Uma vez obtidos os axiomas gerais, Bacon alerta-nos que:Na constituição de axiomas por meio dessa indução, é necessário que se proceda a umexame ou prova: deve-se verifi car se o axioma que se constitui é adequado e está naexata medida dos fatos particulares de que foi extraído, se não os excede em amplitude elatitude, se é confirmado com a designação de novos fatos particulares que, por seu turno,irão servir como uma espécie de garantia. Dessa forma, de um lado, será evitado que sefique adstrito aos fatos particulares já conhecidos; de outro, que se cinja a sombras ouformas abstratas em lugar de coisas sólidas e determinadas na sua matéria. Quando esseprocedimento for colocado em uso, teremos um motivo a mais para fundar as nossasesperanças (BACON, 1997, p. 81, Livro I, afor. CVI).Outro aspecto interessante do método indutivo baconiano é a proposta de construção detabelas para o estudo de um determinado fenômeno, correspondendo a três “índices”: o “índicede presença”, apontando as situações na qual o fenômeno ocorre; o “índice de ausência”,destacando quando ele não ocorre; e o “índice de gradação”, apontando as variações dofenômeno. Como exemplo disso, Bacon propõe-se a investigar a natureza do calor. Constrói,inicialmente, uma lista com 28 itens referentes à “presença”:1. Os raios do Sol, sobretudo no verão e ao meio-dia.2. Os raios do Sol refletidos e condensados, como entre montes ou por muros e sobretudosobre espelhos.3. Meteoros ígneos.4. Raios flamejantes. [...](BACON, 1997, p. 110, Livro II, afor. XI)Segue-se a lista de “ausência”, com 32 itens:1. Os raios da lua, das estrelas e dos cometas não trazem calor ao tato, mas, ao contrário,é no plenilúnio que se observam os frios mais rigorosos. [...]2. [...] Os raios solares na chamada região intermediária não produzem calor. [...]3. [...] A refl exão dos raios do sol nas regiões próximas dos círculos polares é muitofraca e ineficaz em calor. [...](BACON, 1997, p. 112, Livro II, afor. XII)E, por último, uma lista com 41 itens de “graus ou comparação do calor”. Bacon pretendiacompreender um determinado fenômeno (nesse caso, a natureza do calor) por meio daconsideração de listas desse tipo e da ajuda da indução. Como vemos, esse método baconianonão é facilmente aplicável, e nunca chegou a ser usado plenamente.Por fi m, nessa breve exposição do pensamento de Francis Bacon, cabe um destaquereferente a uma de suas ideias. Em sua discussão sobre o conhecimento humano, Baconchama a atenção para as noções falsas que impediriam que a verdade fosse alcançada. EssasAula 09 História e Filosofi a da Ciência 9


noções são identificadas com erros que podem ser cometidos ao se produzir conhecimento.A elas, Bacon dá o nome de ídolos, que seriam de quatro tipos: ídolos da tribo, da caverna,do foro e do teatro.Os primeiros seriam falhas associadas ao uso direto e imediato dos sentidos, que podemdistorcer e corromper as coisas se não forem corrigidos pela experimentação. Esses ídolosda tribo estão fundados na própria natureza humana (daí o seu nome). Afirma Bacon que:Na verdade, os sentidos, por si mesmos, são algo débil e enganador; nem mesmo osinstrumentos destinados a ampliá-los e aguçá-los são de grande valia. E toda verdadeirainterpretação da natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos eadequados, onde os sentidos julgam somente o experimento e o experimento julga anatureza e a própria coisa (BACON, 1997, p. 44, afor. L).Os ídolos da caverna correspondem a equívocos advindos da subjetividade do próprioinvestigador, ao carregar seus preconceitos, hábitos, história de vida etc. na análise de umdeterminado fenômeno. Pois, segundo Bacon, cada homem “tem uma caverna ou uma covaque intercepta e corrompe a luz da natureza” (BACON, 1997, p. 40, afor. XLII). Já os ídolos doforo representam falhas decorrentes das limitações que nos são impostas pela linguagem nacompreensão das coisas. Por último, os ídolos do teatro são relativos à admissão de falsossistemas fi losófi cos e teorias por parte do investigador. São os métodos errados usados nabusca do conhecimento.É interessante como Bacon afasta-se de uma visão “indutivista ingênua”, ao tratar dosídolos como obstáculos a serem evitados, deliberadamente, na busca pela verdade (há umaforte relação entre essas ideias de Bacon e a noção de obstáculo epistemológico de GastonBachelard, como veremos na Aula 13). A mente humana não é, nesse sentido, algo vazio a serpreenchido com os dados diretos da observação.Atividade 2123Quais as principais características do método proposto por FrancisBacon para obtenção do conhecimento?Por que esse método é denominado de indutivo?Que relações você estabelece entre o método baconiano e o métodocientífico discutido anteriormente?10Aula 09 História e Filosofi a da Ciência


A continuidade do programa empiristaA ênfase dada por Bacon à experimentação faz com que seu nome seja associado auma corrente fi losófi ca denominada de empirismo. Grosso modo, pode-se dizer que, paraos empiristas, a origem de todo o conhecimento está na experiência, seja ela a experiênciasensível ou a experiência “controlada”. Como vimos, Bacon reforça essa ideia ao propor ummétodo que parte da observação, dos fatos e das experiências particulares em direção aosaxiomas e ao conhecimento geral.O método indutivo proposto por Bacon ainda não é o “método científi co” tal comoexposto por nós no início dessa aula. No entanto, é possível ver muitas relações entre eles,determinadas, principalmente, pelo movimento que vai do particular ao geral e pela ênfase naexperiência. Daí que o “método científico” também seja denominado de empírico-indutivista.Ele é herdeiro de uma tradição filosófica que teve em Bacon um de seus expoentes, ainda quetenha sofrido modificações ao longo da história.Além de Bacon, outros pensadores podem ser considerados partícipes do programaempirista. Dentre eles, podemos citar John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685-1753)e David Hume (1711-1776), todos britânicos. Há diferenças significativas nas propostas decada um deles em relação ao conhecimento humano. Locke, por exemplo, defende que nossasideias são formadas no espírito, mas não são inatas na mente. A experiência seria a fontedas “ideias de sensação”, enquanto as operações da própria mente gerariam as “ideias dereflexão”. Berkeley, por sua vez, enfatiza tanto os sentidos e a percepção que chega a negar aexistência da matéria e de todas as coisas fora da mente, desenvolvendo uma estranha misturade idealismo e empirismo. Já Hume fará uma importante crítica à indução (como veremos naaula seguinte), embora defenda que a fonte do conhecimento está na percepção.BritânicosDevido à forte presençade britânicos na correnteempirista, é comumvermos referência aesse grupo como“empiristas ingleses”.Figura 2 – John Locke (1632-1704) Figura 3 – George Berkeley (1685-1753)Aula 09 História e Filosofi a da Ciência 11


Figura 4 – David Hume (1711-1776)É importante perceber que, ao associarmos certos nomes a uma visão empirista,não queremos dizer que, no pensamento de tais autores, não há espaço paraa razão. Apesar de ser, em certa medida, uma simplificação, esse tipo declassifi cação nos ajuda a identifi car aspectos centrais de uma determinadaperspectiva filosófica. Mas vale lembrar: o pensamento de um filósofo é sempremais complexo do que uma primeira apresentação sugere!Não pretendemos, obviamente, abordar as concepções desses autores tão rapidamente...o parágrafo anterior serve, apenas, para não deixarmos a impressão de que o empirismo éalgo “monolítico” e que segue inalterado desde Bacon. Ao contrário, a concepção empirista sesofisticou com o passar dos séculos, tendo sido incorporada pelo pensamento positivista quemarcou a segunda metade do século XIX. Aliás, a ideia do “método científico” deve muito aospositivistas, sendo contestada mais forte e consistentemente somente no início do século XX.A essa altura você pode estar se perguntando:• Afinal, qual o problema com a indução?• Qual o problema com o empirismo?• As experiências não são fundamentais em ciência?12Aula 09 História e Filosofi a da Ciência


Deixaremos para as próximas aulas o aprofundamento dessa discussão. Por ora,interessa-nos investigar a seguinte questão: é possível usarmos a ideia de método indutivoou de método científi co, tal como apresentados nessa aula, para fazermos uma análise deepisódios da História da Ciência? Em outras palavras: podemos fazer uma leitura empiristada História da Ciência?Uma leitura empirista da HistóriaA resposta a essa última questão é, em princípio, “sim”. Aliás, a visão empirista dominoudurante um bom tempo as análises históricas do empreendimento científi co e ainda tempredominado na visão de senso comum a respeito da ciência.Um personagem, em particular, que é frequentemente citado como referência de umapostura empirista é Galileu Galilei. O pensador italiano, que foi um dos responsáveis peladerrocada do sistema de mundo aristotélico-ptolomaico e pela transição que levou à novamecânica, tem o seu nome associado a grandes experimentos, tais como o do plano inclinadoe o da queda dos corpos do alto da torre de Pisa.Galileu, em seus livros, descreve de modo razoavelmente detalhado alguns dosexperimentos que teria realizado. Em uma de suas obras mais famosas (Discurso sobre DuasNovas Ciências), escrita na forma de diálogos entre três personagens (Salviati, Sagredo eSimplício), ele relata a experiência do plano inclinado, por meio da qual teria chegado à lei dequeda dos corpos graves. No trecho abaixo, Salviati (que representa Galileu) afirma:Pelo que se refere às experiências, o autor não deixou de fazê-las; e para assegurar-se de quea aceleração dos graves, que caem de modo natural, acontece na proporção acima afirmada,encontrei-me muitas vezes em sua companhia, procurando tal prova da seguinte maneira.Numa ripa ou, melhor dito, numa viga de madeira com um comprimento aproximado de12 braças, uma largura de meia braça de um lado a três dedos no outro, foi escavada umacanaleta neste lado menos largo com pouco mais que um dedo de largura. No interiordessa canaleta perfeitamente retilínea, para ficar bem polida e limpa, foi colada uma folhade pergaminho que era polida até fi car bem lisa; fazíamos descer por ele uma bola debronze duríssima perfeitamente redonda e lisa. (GALILEI, 1988, p. 175).Galileu continua descrevendo o aparato e, em seguida, os resultados obtidos com ele,para várias inclinações do plano. Na sequência, relata a maneira pela qual media o tempo domovimento da bola ao longo da descida:No que diz respeito à medida do tempo, empregávamos um grande recipiente cheio deágua, suspenso no alto, o qual, por um pequeno orifício feito no fundo, deixava cair umfino fio de água, que era recolhido num pequeno copo durante todo o tempo em que a boladescia pela canaleta ou por suas partes. As quantidades de água assim recolhidas erama cada vez pesadas com uma balança muito precisa, sendo as diferenças e proporçõesentre os pesos correspondentes às diferenças e proporções entre os tempos; e isto comtal precisão que, como afirmei, estas operações, muitas vezes repetidas, nunca diferiamde maneira significativa. (GALILEI, 1988, p. 176).Aula 09 História e Filosofi a da Ciência 13


Embora o relato de Galileu seja bastante limitado, incompleto e impreciso, para padrõescientíficos atuais, é certamente a descrição de uma experiência que parece ter sido realizada.Conforme discutido nas aulas referentes à história da mecânica, os historiadores tendem aconcordar que ele realizou o experimento do plano inclinado (mas não o da torre de Pisa, cujoresultado entraria em conflito com suas ideias acerca da queda dos corpos...).Diversos pesquisadores ao redor do mundo já tentaram reproduzir essa experiência,utilizando, inclusive, materiais e técnicas semelhantes às que Galileu teria usado. Boa partedeles conclui que o pensador italiano seria capaz de obter os resultados que descreve emseu livro. Mas, independentemente da realização ou não do experimento, uma questãoimportante para a Filosofi a da Ciência passa a ser: será que Galileu obteve a lei de quedados graves a partir desse experimento? Em outras palavras: o experimento foi o ponto departida para a obtenção da lei?As leituras empiristas da História da Ciência dizem que sim. Para os empiristas, foi apartir da experiência que Galileu chegou às suas principais conclusões acerca da lei de quedados corpos, da relatividade do movimento etc. O uso que Galileu fez da luneta reforçariaessa interpretação: teria sido por meio das observações das crateras da Lua, dos satélitesde Júpiter, das fases de Vênus e das manchas solares que Galileu obteve os dados a favordo modelo copernicano.Se voltarmos à ideia do “método científi co” tal como exposto no início dessa aula,podemos refazer esse questionamento da seguinte maneira: será que Galileu usou o métodocientífi co em suas pesquisas? Ele cumpriu a “sequência de etapas” propostas no métodoempírico-indutivista? Se o método é, de fato, uma descrição de como os cientistas trabalham,é lícito perguntarmos se Galileu partiu da observação, acumulou dados e – somente depoisdisso – criou hipóteses, testou-as e confirmou-as.E então?O pensamento dominante na Filosofia da Ciência do último século discorda de uma leituraempirista, tal como caracterizada nessa seção! Teremos a oportunidade de, a partir da próximaaula, discutirmos por que e em que sentido a visão empirista não é majoritária. Note que issose estende ao método científi co, ou seja, a Filosofi a da Ciência atual também discorda quehaja um método único que possa ser identificado com um procedimento padrão de produçãodo conhecimento científico.14Aula 09 História e Filosofi a da Ciência


Atividade 3Realize uma breve pesquisa na internet sobre John Locke, George Berkeley eDavid Hume, colocando esses nomes em um sítio de busca. Mesmo levando-seem consideração as limitações desse tipo de pesquisa (endereços não confiáveis,confl itos de afi rmações etc.), procure identifi car algumas das principais ideiasdesses pensadores, assim como características do período em que viveram easpectos de suas biografias.Atividade 4O que significa fazer uma leitura empirista da obra de Galileu? Que argumentospodem ser usados em favor dessa visão?ResumoNessa aula, você foi apresentado a alguns dos temas relativos à Filosofi a daCiência. Em particular, iniciamos a discussão acerca da noção de “métodocientífico”, tratando do método empírico-indutivista em sua formulação comum,bem como buscando suas origens históricas no pensamento do filósofo FrancisBacon. A continuidade do programa empirista foi apontada, assim como apossibilidade de realizarmos uma leitura empirista da História da Ciência.Aula 09 História e Filosofi a da Ciência15


AutoavaliaçãoCom base na leitura dessa aula e nas Atividades desenvolvidas por você, reflita sobre asseguintes questões:12345Compreendo as principais questões de interesse da Filosofi a da Ciência? Saberiacitar algumas?O meu entendimento acerca do “método científico” foi alterado em função da leituradessa aula? Como?Compreendo as principais características do método indutivo e do empirismo?Sou capaz de avaliar a relação de Francis Bacon com a indução e o empirismo?Tenho argumentos para defender que Galileu tenha sido um “empirista”?ReferênciasANDERY, M. A. et al. Para compreender a ciência. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.BACON, F. Novum organum (Coleção “Os Pensadores”). São Paulo: Nova Cultural, 1997.CHALMERS, A. F. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993.GALILEI, G. Duas Novas Ciências. São Paulo: Nova Stella, 1988.NEVES, M. C. D. et al. Galileu fez o experimento do plano inclinado?. Revista Electrónica deEnseñanza de las ciências, v.7, n.1, p.226-242, 2008.ROSA, L. P. Tecnociências e Humanidades. São Paulo: Paz e Terra, v.1, 2005.SILVEIRA, F. L.; PEDUZZI, L. O. Q. Três episódios de descoberta científica: da caricatura empiristaa uma outra história. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 23,n. 1, p. 26-52, 2006.ZANETIC, J. FMT405 - Evolução dos conceitos da física - notas de aula. São Paulo: Institutode Física da USP (mimeo), 2008.ZYLBERSZTAJN, A. Galileu: um cientista e várias versões. Caderno Catarinense de Ensino deFísica, v. 5 (número especial), p. 36-48, 1988.16Aula 09 História e Filosofi a da Ciência

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