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Aula 11 - Rupturas e Revoluções

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DISCIPLINA<br />

História e Filosofia da Ciência<br />

<strong>Rupturas</strong> e revoluções<br />

Autores<br />

Juliana Mesquita Hidalgo Ferreira<br />

André Ferrer P. Martins<br />

aula<br />

<strong>11</strong>


Governo Federal<br />

Presidente da República<br />

Luiz Inácio Lula da Silva<br />

Ministro da Educação<br />

Fernando Haddad<br />

Secretário de Educação a Distância<br />

Carlos Eduardo Bielschowsky<br />

Reitor<br />

José Ivonildo do Rêgo<br />

Vice-Reitora<br />

Ângela Maria Paiva Cruz<br />

Secretária de Educação a Distância<br />

Vera Lucia do Amaral<br />

Secretaria de Educação a Distância (SEDIS)<br />

Coordenadora da Produção dos Materiais<br />

Vera Lucia do Amaral<br />

Coordenadora de Revisão<br />

Giovana Paiva de Oliveira<br />

Coordenador de Edição<br />

Ary Sergio Braga Olinisky<br />

Projeto Gráfi co<br />

Ivana Lima<br />

Revisores de Estrutura e Linguagem<br />

Eugenio Tavares Borges<br />

Janio Gustavo Barbosa<br />

Jeremias Alves de Araújo<br />

José Correia Torres Neto<br />

Luciane Almeida Mascarenhas de Andrade<br />

Thalyta Mabel Nobre Barbosa<br />

Revisora das Normas da ABNT<br />

Verônica Pinheiro da Silva<br />

Revisores de Língua Portuguesa<br />

Cristinara Ferreira dos Santos<br />

Emanuelle Pereira de Lima Diniz<br />

Janaina Tomaz Capistrano<br />

Kaline Sampaio de Araújo<br />

Revisoras Tipográfi cas<br />

Adriana Rodrigues Gomes<br />

Margareth Pereira Dias<br />

Nouraide Queiroz<br />

Arte e Ilustração<br />

Adauto Harley<br />

Carolina Costa<br />

Heinkel Hugenin<br />

Leonardo Feitoza<br />

Roberto Luiz Batista de Lima<br />

Diagramadores<br />

Elizabeth da Silva Ferreira<br />

Ivana Lima<br />

José Antonio Bezerra Junior<br />

Mariana Araújo de Brito<br />

Priscilla Xavier<br />

Adaptação para Módulo Matemático<br />

Joacy Guilherme de A. F. Filho<br />

Divisão de Serviços Técnicos<br />

Catalogação da publicação na Fonte. Biblioteca Central Zila Mamede – UFRN<br />

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste material pode ser utilizada ou reproduzida<br />

sem a autorização expressa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)


Apresentação<br />

Na aula anterior, discutimos algumas das mais contundentes críticas ao pensamento<br />

indutivo, no terreno da Filosofia da Ciência, e apresentamos a perspectiva do<br />

refutacionismo ou falseacionismo, tendo como referência principal o nome de Karl<br />

Popper. Utilizamos esse referencial para interpretar certas passagens da História da Ciência,<br />

buscando elementos que reforçassem a análise popperiana.<br />

Finalizamos a aula com a seguinte pergunta: será que os cientistas, em seu trabalho<br />

cotidiano, procedem dessa maneira, isto é, preocupam-se em falsear as teorias<br />

Nesta aula, traremos um ponto de vista que confl ita, em muitos aspectos, com o de<br />

Popper e o refutacionismo. Veremos como o pensamento de Thomas Kuhn concebe o cientista<br />

não como um “refutador” que tenta “descartar” teorias, mas como um “conservador”.<br />

Apresentaremos uma nova perspectiva, segundo a qual o desenvolvimento histórico da ciência<br />

é visto como um processo de sucessivas rupturas e revoluções.<br />

Objetivos<br />

1<br />

2<br />

3<br />

Analisar as limitações do refutacionismo como proposta<br />

de interpretação do desenvolvimento histórico da ciência.<br />

Apresentar as principais características do pensamento<br />

de Thomas Kuhn.<br />

Abordar conceitos centrais da proposta kuhniana, tais<br />

como: paradigma, ciência normal, revolução científica e<br />

incomensurabilidade.<br />

4<br />

Reconhecer a possibilidade de uma “leitura kuhniana” de<br />

episódios da História da Ciência.<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />

1


O refutacionismo em apuros:<br />

do lógico ao sociológico<br />

A<br />

proposta popperiana, inegavelmente, traz questões fundamentais ao entendimento da<br />

ciência como um corpo organizado do conhecimento humano. Sua crítica à indução,<br />

bem como a sugestão do método hipotético-dedutivo e da noção de refutação, vem em<br />

favor da tentativa de delimitar o que é e o que não é científico e, num certo sentido, “salvar” a<br />

racionalidade desse empreendimento que é a ciência.<br />

Em alguns aspectos, a perspectiva popperiana está de acordo, ainda, com uma visão de<br />

senso comum do cientista, que apresentamos no início da aula anterior. Nela, o cientista é visto<br />

como alguém imparcial e isento, de “mente aberta”, que está disposto a abrir mão de suas<br />

ideias em favor “do que diz a experiência”. Assim, se um determinado experimento refutar uma<br />

hipótese teórica, por exemplo, o cientista deve proceder de acordo com o que determinada a<br />

postura racional: afastar a hipótese falseada.<br />

Mas, podemos nos perguntar se é, de fato, dessa maneira que os cientistas procedem.<br />

Além disso, devemos nos perguntar se essa é uma imagem correta da ciência e de sua<br />

metodologia. Como vimos, o refutacionismo enfatiza o aspecto lógico da ciência, mas, quem<br />

sabe, tenha limitações quanto à descrição da ciência em suas características mais sociológicas.<br />

2<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


No terreno da Filosofia da Ciência, a segunda metade do século XX viu surgir uma série<br />

de perspectivas diferentes que, de formas muitas vezes complementares, alargaram nossa<br />

compreensão da ciência e de seu desenvolvimento histórico. A própria ciência tornou-se cada<br />

vez mais complexa e valorizada nos últimos séculos, aumentando seu impacto sobre os meios<br />

de produção, com reflexos econômicos, políticos e sociais.<br />

Por outro lado – e justamente devido ao forte impacto do conhecimento científi co no<br />

meio social –, a ciência também passou a sofrer fortes críticas. Bombas atômicas, armas<br />

de destruição em massa, poluição ambiental etc. evidenciaram que a ciência pode trazer<br />

consequências nefastas para a sociedade, e que os cientistas não são seres “à parte” do meio<br />

em que vivem.<br />

A fi losofi a de Popper, ao privilegiar o aspecto lógico, deixa de lado uma análise mais<br />

profunda da prática cotidiana do cientista, não o realçando como um ser contextualizado histórica<br />

e socialmente. Surgiram, então, outras análises da ciência e de seu desenvolvimento, que<br />

procuraram, em certa medida, “humanizar” o cientista e evidenciar a ciência como prática social.<br />

O pensamento de Thomas S. Kuhn pode ser considerado um marco nessa linha. Kuhn<br />

era formado em Física, mas empreendeu estudos na área de História da Ciência. Publicou<br />

alguns trabalhos importantes nesse terreno, que ficaram bastante conhecidos, tais como: “A<br />

revolução copernicana”, de 1957, onde faz uma extensa análise da transição do geocentrismo<br />

ao heliocentrismo; o artigo “Conservação da energia como um exemplo de descoberta<br />

simultânea”, de 1959, em que descreve a complexidade histórica que envolveu a formulação<br />

do princípio de conservação da energia; entre muitos outros.<br />

No entanto, foi o livro “A Estrutura das Revoluções Científi cas”, de 1962, que causou<br />

o maior impacto no campo da Filosofia da Ciência. O que era para ser um pequeno “ensaio”<br />

transformou-se em algo realmente revolucionário, cuja infl uência transcendeu os círculos<br />

filosóficos e ganhou proporções inesperadas. É sobre essa obra e o pensamento de Kuhn que<br />

falaremos a seguir.<br />

Figura 1 – Thomas Kuhn (1922-1996)<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 3


Thomas Kuhn:<br />

a prática da<br />

ciência normal<br />

Nesta e na próxima<br />

seção, apresentamos<br />

uma reelaboração<br />

de um texto escrito<br />

anteriormente por<br />

um de nós e que pode<br />

ser encontrado em<br />

Martins (1998).<br />

Thomas Kuhn: a prática<br />

da ciência normal<br />

Em “A Estrutura das Revoluções Científi cas”, Kuhn faz uma análise do conhecimento<br />

científi co fundamentado, muitas vezes, em passagens da História da Ciência. Ele<br />

defende que o desenvolvimento da ciência não se dá de uma forma linear, contínua<br />

e cumulativa (embora não tenha sido o primeiro fi lósofo a propor algo desse tipo). Isso<br />

signifi ca que a construção do conhecimento científi co não se assemelha à de um edifício,<br />

onde, “tijolo por tijolo”, o trabalho de uma geração é simplesmente acrescentado ao da<br />

anterior. O “desenho mágico” da ciência emerge de um processo em que há lugar para<br />

rupturas, crises e revoluções.<br />

Para compreendermos como essa visão é possível, devemos, antes, voltar nossos olhos<br />

para o trabalho cotidiano e para a educação dos cientistas. Esses, durante toda ou a maior<br />

parte de seu tempo, trabalham no que Kuhn denomina de ciência normal, uma atividade<br />

que não visa produzir novidades inesperadas. Ao contrário, a prática da ciência normal visa<br />

“articular” o conjunto de teorias, modelos e representações compartilhados pelos cientistas e<br />

que constituem sua particular “visão de mundo”. Esse conjunto de conhecimentos teóricos,<br />

equipamentos, técnicas, metodologias etc. compõe o que o autor chama de paradigma, um<br />

conceito fundamental em seu trabalho e estreitamente vinculado à ciência normal. É justamente<br />

a aceitação de um paradigma, por um determinado grupo de praticantes da ciência, que permite<br />

o desenvolvimento da ciência normal:<br />

Homens cuja pesquisa está baseada em paradigmas compartilhados estão comprometidos<br />

com as mesmas regras e padrões para a prática científica. Esse comprometimento e o<br />

consenso aparente que produz são pré-requisitos para a ciência normal, isto é, para a<br />

gênese e a continuação de uma tradição de pesquisa determinada. (KUHN, 1987, p. 30-31)<br />

O período anterior ao da aceitação de um paradigma por um grupo é denominado por<br />

Kuhn de fase “pré-paradigmática”, na qual diversos candidatos a paradigma concorrem,<br />

buscando a adesão de subgrupos cada vez maiores. O autor busca, na História da Ciência,<br />

exemplos que possam ilustrar esse período, como a óptica antes de Newton e a pesquisa de<br />

fenômenos elétricos na primeira metade do século XVIII. Em ambos os casos, diversas escolas<br />

com visões confl itantes procuravam enfatizar o conjunto de fenômenos que suas próprias<br />

teorias explicavam melhor. No entanto, é a firme adesão a um único paradigma que permite<br />

a “maturidade” de um campo de estudos. Durante esse processo, os demais candidatos a<br />

paradigma desaparecem:<br />

Quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência da natureza, um indivíduo<br />

ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da<br />

geração seguinte, as escolas mais antigas começam a desaparecer gradualmente.<br />

Seu desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo<br />

4<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das concepções<br />

mais antigas; são simplesmente excluídos da profi ssão e seus trabalhos são ignorados.<br />

(KUHN, 1987, p. 39)<br />

O paradigma norteador do trabalho do cientista normal é, antes de tudo, uma promessa:<br />

a prática da ciência normal representa a atualização dessa promessa. Kuhn denomina isso de<br />

articulação do paradigma, que se dá tanto no nível teórico quanto experimental. A própria<br />

determinação de quais são os fenômenos passíveis de investigação (sendo, portanto,<br />

“científicos”), bem como a metodologia válida para a pesquisa, fazem parte desse amplo processo.<br />

É durante o desenvolvimento da ciência normal que o conhecimento acerca do mundo<br />

aprofunda-se. Imersos em atividades cada vez mais esotéricas, os cientistas buscam resolver<br />

“quebra-cabeças” altamente complexos. Essa analogia sugerida por Kuhn reforça o fato de que<br />

a ciência normal debruça-se sobre problemas que, a priori, acredita possuírem uma solução<br />

nos moldes defi nidos pelo paradigma vigente (da mesma forma que, num quebra-cabeças,<br />

a solução que deve ser encontrada já se encontra na capa!). Contudo, isso não signifi ca<br />

dizer que, só porque atua a partir de um paradigma já estabelecido, a ciência normal produz<br />

necessariamente algo comum e corriqueiro. A resolução dos quebra-cabeças da ciência normal<br />

é o que faz – durante a maior parte do tempo – avançar o conhecimento.<br />

O cientista kuhniano, nesse sentido, pode ser visto como um conservador: em seu<br />

laboratório, ele trabalha não para refutar, mas para confi rmar o paradigma. Ao resolver<br />

quebra-cabeças e articular o paradigma, o cientista não está em busca de algo realmente<br />

“novo”, no sentido de mudanças radicais em sua visão de mundo:<br />

A ciência normal não tem como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na<br />

verdade, aqueles que não se ajustam aos limites do paradigma freqüentemente nem<br />

são vistos. Os cientistas também não estão constantemente procurando inventar novas<br />

teorias; freqüentemente mostram-se intolerantes com aquelas inventadas por outros. Em<br />

vez disso, a pesquisa científica normal está dirigida para a articulação daqueles fenômenos<br />

e teorias já fornecidos pelo paradigma. (KUHN, 1987, p. 45).<br />

Há um aspecto importante apontado por Kuhn quanto à prática da ciência normal: ela<br />

estaria respaldada por uma formação dogmática dos cientistas. Os futuros profissionais da<br />

ciência são educados por meio de “manuais” (livros didáticos), cuja função é a perpetuação<br />

da ciência normal. Com eles, espera-se que o cientista possa, o mais rapidamente possível,<br />

compreender os princípios fundamentais, as metodologias etc. do paradigma vigente e saiba<br />

aplicá-lo a novos problemas (quebra-cabeças). Dessa maneira, seria mais “eficiente” apresentar<br />

uma reconstrução de um determinado campo do conhecimento, tendo como referência o<br />

paradigma atual, do que explorar, por exemplo, a complexidade histórica da construção desse<br />

mesmo campo. Explica-se, assim, por que os manuais trazem, de modo geral, uma ciência<br />

aparentemente linear e cumulativa, além de a-histórica.<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 5


Transcrevemos, a seguir, um trecho mais longo do livro de Kuhn, onde o autor trata da<br />

questão dos manuais:<br />

Os manuais, por visarem familiarizar rapidamente o estudante com o que a comunidade<br />

científi ca contemporânea julga conhecer, examinam as várias experiências, conceitos,<br />

leis e teorias da ciência normal em vigor tão isolada e sucessivamente quanto possível.<br />

Enquanto pedagogia, essa técnica de apresentação está acima de qualquer crítica. Mas,<br />

quando combinada com a atmosfera geralmente a-histórica dos escritos científi cos<br />

e com as distorções ocasionais ou sistemáticas examinadas acima, existem grandes<br />

possibilidades de que essa técnica cause a seguinte impressão: a ciência alcançou seu<br />

estado atual através de uma série de descobertas e invenções individuais, as quais, uma<br />

vez reunidas, constituem a coleção moderna dos conhecimentos técnicos. O manual<br />

sugere que os cientistas procuram realizar, desde os primeiros empreendimentos<br />

científi cos, os objetivos particulares presentes nos paradigmas atuais. Num processo<br />

freqüentemente comparado à adição de tijolos a uma construção, os cientistas juntaram<br />

um a um os fatos, conceitos, leis ou teorias ao caudal de informações proporcionado<br />

pelo manual científico contemporâneo. (KUHN, 1987, p. 178).<br />

Atividade 1<br />

1<br />

2<br />

Qual a relação entre ciência normal e paradigma Dê um exemplo de<br />

um paradigma presente na história da Física.<br />

A prática do cientista normal envolve a resolução de quebra-cabeças.<br />

Você saberia dar um exemplo de um quebra-cabeça a ser resolvido<br />

pela ciência atual<br />

3<br />

Você concorda com a visão kuhniana acerca da formação dos cientistas<br />

e do papel dos manuais Escreva um pequeno texto refl exivo a esse<br />

respeito.<br />

Da ciência normal à revolução científica<br />

Como é possível, então, que uma atividade como a ciência normal gere novidades<br />

Segundo Kuhn, a prática orientada por um paradigma produz, de tempos em tempos, anomalias,<br />

que representam pontos onde a aplicação do paradigma apresentou problemas. As anomalias<br />

podem levar a descobertas e invenções que acabam por ser incorporadas ao paradigma:<br />

6<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de<br />

que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas que governam<br />

a ciência normal. Segue-se então uma exploração mais ou menos ampla da área onde<br />

ocorreu a anomalia. Esse trabalho somente se encerra quando a teoria do paradigma for<br />

ajustada, de tal forma que o anômalo se tenha convertido no esperado. (KUHN, 1987, p. 78)<br />

Vemos como o paradigma conduz à certa “rigidez” na ciência, fazendo com que a própria<br />

percepção de uma anomalia seja difícil para a maior parte dos cientistas. Por outro lado, são<br />

justamente os mais especializados pesquisadores aqueles capazes de reconhecê-la, pois sabem<br />

com precisão o que é esperado:<br />

A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma.<br />

Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este<br />

será como indicador de anomalias e, conseqüentemente, de uma ocasião para a mudança<br />

de paradigma. (KUHN, 1987, p. 92)<br />

A articulação do paradigma, portanto, tem um caráter aparentemente paradoxal: ela<br />

reforça o próprio paradigma, por um lado, mas pode gerar anomalias que levem a uma crise na<br />

ciência, por outro. Nos momentos de crise, o paradigma vigente deixa de oferecer respostas aos<br />

quebra-cabeças da ciência normal, criando uma situação de insegurança profissional. Mesmo<br />

assim, de modo algum se abandona o paradigma. A necessidade de modificá-lo, no entanto,<br />

permite, durante certo período, a flexibilização das regras e a oportunidade de desenvolvimento<br />

de novas teorias. Essa “proliferação” é, para Kuhn, um sintoma da crise.<br />

Não há razões objetivas que permitam estabelecer quando ou de que modo uma<br />

anomalia irá gerar uma crise. Entretanto, uma vez estabelecida, a crise pode encerrar-se de<br />

três maneiras, segundo Kuhn (1987): 1ª) a ciência normal acaba mostrando-se capaz de<br />

resolver o problema; 2ª) o problema é abandonado para ser resolvido por gerações futuras que<br />

disponham de equipamentos mais sofisticados; ou 3ª) por meio de uma revolução científica,<br />

com a emergência de um novo candidato a paradigma e uma batalha para sua aceitação.<br />

A revolução científica está longe de ser, para o autor, um processo de natureza cumulativa.<br />

Trata-se de uma transição entre o velho paradigma (em crise) e um novo, o que envolve,<br />

essencialmente, uma ruptura, com uma transformação radical da visão de mundo dos<br />

cientistas, de seus métodos e objetivos.<br />

Durante o período revolucionário, desenvolve-se o que Kuhn chama de “pesquisa<br />

extraordinária”, em que há espaço para criação de teorias especulativas, questionamentos de<br />

princípios básicos do campo de estudos em questão, flexibilização de regras, ou outras atitudes<br />

que se assemelham à imagem corrente do cientista. A História da Ciência nos forneceria<br />

exemplos desse tipo de pesquisa, tais como as difi culdades de Kepler com o movimento de<br />

Marte ou o desenvolvimento inicial da física de partículas que, inclusive, levou uma parte dos<br />

maiores cientistas da época a questionar a própria conservação da energia.<br />

A emergência e aceitação de um novo paradigma redefinem a prática científica normal em<br />

toda sua amplitude: os problemas válidos (o que “é” ou “não é” ciência), os padrões aceitos de<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 7


solução, a linguagem adequada etc. Segundo Kuhn, o cientista passa a viver em “outro mundo”,<br />

incomensurável com o anterior: “A tradição científica normal que emerge de uma revolução<br />

científi ca é não somente incompatível, mas muitas vezes verdadeiramente incomensurável<br />

com aquela que a precedeu”. (KUHN, 1987, p. 138).<br />

Numa perspectiva kuhniana, seria incorreto, por exemplo, acreditar que a mecânica<br />

newtoniana é um caso particular da teoria da relatividade de Einstein. Ainda que as leis da<br />

primeira possam ser “deduzidas”, por via matemática, da última, de forma alguma os conceitos<br />

einsteinianos de massa, energia, tempo, espaço etc. correspondem aos conceitos newtonianos<br />

de mesmo nome.<br />

O conceito de incomensurabilidade é fundamental na obra de Kuhn. Ao olhar para um<br />

fenômeno, o cientista o faz através de um “óculos” conceitual que pressupõe, essencialmente,<br />

um paradigma. Ao analisar a própria percepção visual de figuras, Kuhn afirma suspeitar que<br />

algo semelhante a um paradigma seja seu pré-requisito: “O que um homem vê depende tanto<br />

daquilo que ele olha como daquilo que sua experiência visual-conceitual prévia o ensinou a<br />

ver”. (KUHN, 1987, p. 148).<br />

Dessa forma, um aristotélico não via o mesmo céu que um copernicano, do mesmo<br />

modo que um adepto da teoria da relatividade não o vê da mesma maneira que Newton. Essas<br />

alterações são tão profundas que não podemos dizer que os fatos permaneceram os mesmos,<br />

enquanto mudaram as interpretações. Mais do que isso, o próprio mundo no qual o cientista<br />

se encontra agora é outro:<br />

O historiador da ciência que examinar as pesquisas do passado a partir da perspectiva da<br />

historiografi a contemporânea pode sentir-se tentado a proclamar que, quando mudam<br />

os paradigmas, muda com eles o próprio mundo. Guiados por um novo paradigma,<br />

os cientistas adotam novos instrumentos e orientam seu olhar em novas direções. E o<br />

que é ainda mais importante: durante as revoluções, os cientistas vêem coisas novas e<br />

diferentes quando, empregando instrumentos familiares, olham para os mesmos pontos já<br />

examinados anteriormente. É como se a comunidade profissional tivesse sido subitamente<br />

transportada para um novo planeta, onde objetos familiares são vistos sob uma luz<br />

diferente e a eles se apregam objetos desconhecidos. (KUHN, 1987, p. 145-146).<br />

[...] Em vez de ser um intérprete, o cientista que abraça um novo paradigma é como o<br />

homem que usa lentes inversoras. Defrontado com a mesma constelação de objetos que<br />

antes e tendo consciência disso, ele os encontra, não obstante, totalmente transformados<br />

em muitos de seus detalhes. (KUHN, 1987, p. 157).<br />

Seria possível, no entanto, estabelecer critérios neutros capazes de levar um grupo de<br />

cientistas a decidir-se por um ou outro paradigma Como procedem os cientistas diante<br />

de teorias rivais Para Kuhn, a escolha entre paradigmas, nos momentos de crise, coloca<br />

questões que não podem ser resolvidas por quaisquer critérios da ciência normal. Os debates<br />

entre paradigmas assemelham-se, frequentemente, a um “diálogo de surdos”, que evidencia<br />

a ruptura que está por vir, e justifica o termo “revolução”:<br />

8<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


Precisamente por tratar-se de uma transição entre incomensuráveis, a transição entre<br />

paradigmas em competição não pode ser feita passo a passo, por imposição da Lógica e<br />

de experiências neutras. Tal como a mudança da forma (Gestalt) visual, a transição deve<br />

ocorrer subitamente (embora não necessariamente num instante) ou então não ocorre<br />

jamais. (KUHN, 1987, p. 190).<br />

E, frequentemente, ela não ocorre. Há diversos exemplos históricos que corroboram<br />

essa visão. Dentre eles, poderíamos citar as dificuldades de aceitação das ideias de Copérnico,<br />

Newton, Darwin, Einstein, entre outros.<br />

Segundo Kuhn, a aceitação de um novo paradigma é um processo complexo que, no<br />

que se refere aos cientistas individuais, envolve razões aparentemente fora da esfera científica,<br />

como crenças e idiossincrasias pessoais. Podem existir também argumentos de natureza<br />

estética, como a “beleza” ou “simplicidade” da teoria.<br />

Isso tudo não significa, porém, que não existam “boas razões” para a adesão a um novo<br />

paradigma. A resolução de problemas cruciais que levaram o antigo paradigma à crise é uma<br />

delas, mas dificilmente seria suficiente, uma vez que, “desarticulado”, o novo paradigma ainda<br />

é uma promessa. A fé nessa promessa pode levar à adesão de um número cada vez maior de<br />

cientistas, que aperfeiçoarão o novo paradigma:<br />

Muitos cientistas serão convertidos e a exploração do novo paradigma prosseguirá.<br />

O número de experiências, instrumentos, artigos e livros baseados no paradigma<br />

multiplicar-se-á gradualmente. Mais cientistas, convencidos da fecundidade da nova<br />

concepção, adotarão a nova maneira de praticar a ciência normal, até que restem apenas<br />

alguns poucos opositores mais velhos. (KUHN, 1987, p. 199-200).<br />

O novo paradigma, embora incomensurável com aquele que o precedeu, deve garantir a<br />

preservação de boa parte das realizações científicas passadas, estabelecidas por paradigmas<br />

anteriores, e ao mesmo tempo permitir a solução de novos problemas, prometendo todo um<br />

conjunto de novos “quebra-cabeças” a serem atacados. A (nova) ciência normal será, uma<br />

vez mais, a “atualização dessa promessa”.<br />

A adesão a um paradigma, assim como a própria prática da ciência normal que dele<br />

decorre, embora sejam, por um lado, processos individuais, são, por outro, também coletivos,<br />

pois ocorrem no seio de uma comunidade científi ca. É esse grupo de profi ssionais que, de<br />

modo bastante esotérico, é capaz de abraçar um paradigma em detrimento de outro e resolver<br />

os quebra-cabeças da ciência normal. É em seu interior que ocorrem as revoluções:<br />

Os membros do grupo, enquanto indivíduos e em virtude de seu treino e experiência<br />

comuns, devem ser vistos como os únicos conhecedores das regras do jogo ou de algum<br />

critério equivalente para julgamentos inequívocos. [...] A comunidade científi ca é um<br />

instrumento extremamente eficaz para maximizar o número e a precisão dos problemas<br />

resolvidos por intermédio da mudança de paradigma. (KUHN, 1987, p. 2<strong>11</strong>).<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência 9


Atividade 2<br />

1<br />

2<br />

3<br />

Explique, com as suas palavras, de que modo a prática da ciência<br />

normal pode levar a uma revolução científica.<br />

O que significa dizer que dois paradigmas são incomensuráveis<br />

Qual o papel da comunidade científica na proposta kuhniana<br />

sua resposta<br />

1.<br />

2.<br />

3.<br />

10<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


Antes e depois de Kuhn...<br />

Esperamos, até aqui, ter conseguido delinear uma visão (ainda que breve e incompleta)<br />

da atividade científica e do seu processo de desenvolvimento histórico, a partir do referencial<br />

de Thomas S. Kuhn. Vimos que esse autor faz uma análise da ciência bastante diferente da<br />

realizada por Popper, por exemplo.<br />

Em sua abordagem, Kuhn enfatiza o caráter de ruptura presente no desenvolvimento da<br />

ciência, compreendendo-o como uma sequência de períodos de “ciência normal” intercalados<br />

por “revoluções científicas”. Além desses dois conceitos, devemos a esse autor uma série de<br />

outros, tais como: comunidade científi ca, paradigma, incomensurabilidade. Outro aspecto<br />

interessante da filosofia de Kuhn (que muitos preferem chamar de “sociologia da ciência”...)<br />

é a atenção dada à História da Ciência em sua fundamentação.<br />

Como dissemos no início desta aula, “A estrutura das revoluções científi cas” teve um<br />

grande impacto no mundo da Filosofia da Ciência. Embora seja uma simplificação, não seria<br />

absurdo pensarmos em Filosofia da Ciência, no século XX, “antes” e “depois” de Kuhn.<br />

Conceitos kuhnianos transcenderam sua esfera de aplicação, tais como o de paradigma e<br />

o de revolução científica, que passaram a ser utilizados indiscriminadamente nas mais diversas<br />

situações e contextos. Muitos cientistas e fi lósofos enalteceram a análise de Kuhn, por sua<br />

clareza e contribuição à compreensão da ciência. Outros, por sua vez, sentiram-se atingidos<br />

por expressões como “ciência normal”, à qual atribuíram um tom pejorativo (afinal, quem quer<br />

ser um cientista “normal”).<br />

As décadas que se seguiram à publicação da “Estrutura” deixaram evidente que a<br />

contribuição de Kuhn foi significativa, embora alguns de seus conceitos tenham sido objeto<br />

de outras críticas e considerações – de caráter mais construtivo e menos emotivo...<br />

A falta de clareza em relação ao próprio conceito de paradigma, por exemplo, foi algo<br />

levantado por alguns críticos. Aparentemente, vários sentidos poderiam ser atribuídos ao termo<br />

‘paradigma’ a partir da leitura da obra. O próprio Kuhn assume, num Posfácio escrito em 1969,<br />

que há certa ambiguidade nessa conceituação. O autor procura discutir a questão e chega a<br />

propor outro conceito (o de “matriz disciplinar”) para esclarecer melhor a noção de paradigma.<br />

Um conceito kuhniano ainda mais controverso é o de incomensurabilidade. Os partidários<br />

de uma visão continuísta certamente não aceitam uma interpretação do desenvolvimento<br />

histórico da ciência que lance mão da ideia de ruptura. No entanto, mesmo entre os<br />

simpatizantes de uma visão descontinuísta há aqueles que consideram esse conceito pouco<br />

claro. Se levarmos a fundo o significado de ‘incomensurabilidade’, teremos que admitir que<br />

não se pode comparar, sob nenhum aspecto, dois paradigmas diferentes separados por<br />

uma revolução científi ca, tal como a mecânica de Newton e a relatividade de Einstein, por<br />

exemplo. Mas, o próprio Kuhn admite que um novo paradigma deve “preservar parte das<br />

realizações científi cas passadas”, dando um pequeno espaço para se pensar em algum tipo<br />

de “sobreposição” entre paradigmas distintos e sucessivos.<br />

Paradigma<br />

Não entraremos,<br />

aqui, nesse detalhe.<br />

Queremos apenas<br />

apontar alguns focos<br />

de críticas ao trabalho<br />

de Kuhn.<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência <strong>11</strong>


Ainda no terreno de algumas das críticas ao trabalho de Kuhn, cabe dizer que, para muitos,<br />

sua abordagem acabaria promovendo certa “irracionalidade”, ao levar para o terreno científi co<br />

aspectos das relações humanas que colaborariam para passar uma imagem menos racional e<br />

lógica do empreendimento científico. Por exemplo, a ideia de “adesão” a um paradigma pelos<br />

membros de uma comunidade científica, que pode ocorrer – na visão de Kuhn – por questões<br />

estéticas, de crenças etc. Ou, então, a defesa arraigada que os adeptos de um paradigma – e<br />

praticantes da ciência normal – fazem do mesmo, tornando-se “cegos” a novas evidências<br />

e anomalias. Numa leitura kuhniana, o cientista deixa de ser visto como um ser estritamente<br />

racional, guiado por princípios lógicos e aberto à crítica.<br />

Trouxemos algumas críticas ao trabalho de Kuhn para que você possa perceber<br />

que, em Filosofi a da Ciência, todas as abordagens podem ser controversas! Entretanto,<br />

consideramos a perspectiva trazida por esse autor como extremamente poderosa na análise<br />

desse empreendimento humano chamado “ciência”. A obra de Kuhn infl uenciou e continua<br />

infl uenciando discussões atuais sobre a natureza do conhecimento científi co, assim como<br />

aspectos relativos ao ensino da ciência em todos os níveis.<br />

Aliás, há uma questão interessante que decorre da obra de Kuhn e que diz respeito<br />

diretamente à utilização da História e da Filosofi a da Ciência no ensino de ciências. Existem<br />

leituras completamente antagônicas no que se refere àquilo que o autor defenderia para a<br />

educação de um cientista: por um lado, está claro na “Estrutura” que a formação do cientista<br />

tem um caráter dogmático, como vimos. Desse modo, a História da Ciência seria prejudicial<br />

em cursos de formação, pois poderia levar os futuros pesquisadores a duvidar e questionar os<br />

fundamentos, métodos etc. de sua área de atuação. Segundo essa concepção, a formação deve<br />

mesmo ser uma espécie de “treinamento” no paradigma, aumentando sua eficiência na medida<br />

em que se limite a preparar o cientista, por meio dos manuais, para resolver os quebra-cabeças<br />

da ciência normal. Para aqueles que defendem essa leitura, a História deve ser evitada.<br />

Por outro lado, os mesmos argumentos podem ser usados para se defender a presença<br />

da História da Ciência! Ora, tornar o futuro cientista conhecedor do desenvolvimento histórico<br />

de sua própria área e crítico de seus fundamentos pode ser algo desejável. E isso não<br />

necessariamente enfraqueceria a convicção no paradigma (ao menos não há fortes evidências de<br />

que isso aconteça). Para aqueles que se posicionam desse lado, a obra de Kuhn faz uma crítica<br />

aos manuais e ao ensino a-histórico, embora reconheça a eficiência desse tipo de formação.<br />

Nós, autores desta disciplina, concordamos com essa segunda leitura da obra de Kuhn.<br />

Para fi nalizar essa seção, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de que, mais<br />

recentemente, surgiram trabalhos em Filosofia da Ciência e na área de Didática das Ciências<br />

que procuram resgatar o pensamento de outro autor que, em certo sentido, teria “antecipado”<br />

algumas das ideias kuhnianas. Trata-se de Ludwig Fleck (1896-1961), um médico polonês que<br />

produziu seus principais trabalhos na primeira metade do século XX. No Prefácio da “Estrutura”,<br />

Kuhn chega a admitir a influência dos trabalhos de Fleck em sua obra.<br />

Não iremos discutir em detalhes as ideias de Fleck. No entanto, valeria a pena fazer uma<br />

breve referência a algumas delas. A partir de uma análise da história e da filosofia da medicina,<br />

12<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


Fleck propõe uma visão acerca da produção do conhecimento que enfatiza a não neutralidade<br />

dos sujeitos e a infl uência de fatores sociais, históricos, antropológicos e culturais. Cunha<br />

as categorias estilo de pensamento e coletivo de pensamento. A primeira delas refere-se a<br />

uma determinada atitude, modo de pensar e agir compartilhado por um determinado grupo.<br />

A segunda categoria remete exatamente a esse grupo, ou seja, a uma comunidade de pessoas<br />

que compartilha um estilo de pensamento.<br />

Fleck discute de que modo um estilo de pensamento é estendido durante certo período<br />

(uma fase que ele denomina de “harmonia das ilusões”), mas pode sofrer complicações em<br />

outro (“período das exceções”). Tais complicações podem levar à transformação do estilo de<br />

pensamento. Para o autor, estilos de pensamento diferentes apresentam incomensurabilidades<br />

(ou incongruências) entre si.<br />

Mesmo que brevemente, os parágrafos precedentes deixam evidente a similaridade entre<br />

a proposta kuhniana e algumas ideias de Fleck. Nas palavras de Delizoicov et al (2002, p. 64):<br />

Assim, paradigma tem paralelo com estilo de pensamento; comunidade científi ca com<br />

coletivo de pensamento; ciência normal com extensão do estilo de pensamento; revolução<br />

científi ca com transformação do estilo de pensamento e anomalias do paradigma com<br />

complicações da teoria dominante.<br />

Um aprofundamento da sociogênese do conhecimento de Fleck pode ser encontrado<br />

mais adiante, nas “Sugestões de leitura” desta aula.<br />

Atividade 3<br />

Resgate alguma das críticas endereçadas à obra de Thomas Kuhn, apresentadas na<br />

seção anterior, dizendo se você concorda ou não com ela. Justifique sua resposta.<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />

13


Uma leitura kuhniana da História<br />

Podemos fazer uma leitura kuhniana da História da Ciência, assim como tentamos fazer<br />

leituras empiristas e refutacionistas Sim, nós podemos.<br />

Um setor bastante propício a isso (usado, aliás, pelo próprio Kuhn) é a História da<br />

Mecânica, particularmente no que diz respeito à passagem do geocentrismo ao heliocentrismo.<br />

A visão de mundo dominante na Antiguidade e na Idade Média era a geocêntrica. Fruto das ideias<br />

de diversos pensadores, como Platão, Aristóteles e Ptolomeu, vimos como o geocentrismo<br />

consolidou-se, ao longo de séculos, como um paradigma. É comum, inclusive, encontrarmos<br />

referências a ele como paradigma aristotélico-ptolomaico.<br />

Numa perspectiva kuhniana, a superação desse modelo de mundo pelo heliocentrismo,<br />

decorrente do trabalho de diversos outros pensadores, tais como Copérnico, Bruno, Galileu,<br />

Kepler, Descartes e Newton, dá-se por meio de uma revolução científi ca. Tal revolução,<br />

inclusive, costuma ser denominada de “revolução científi ca do século XVII” ou “revolução<br />

da ciência moderna”. Ela representa a passagem de um paradigma a outro: do aristotélicoptolomaico<br />

ao newtoniano.<br />

Uma série de elementos da proposta de Kuhn podem ser utilizados na interpretação<br />

desse episódio. Podemos, por exemplo, ver os praticantes de cada paradigma como “cientistas<br />

normais”, cada qual apegado a sua respectiva tradição e trabalhando em sua articulação.<br />

O próprio Ptolomeu pode ser visto desse modo, na medida em que os diversos mecanismos<br />

que cria para dar conta do movimento dos astros (epiciclos, equantos etc.) representariam<br />

uma tentativa de articular o modelo geocêntrico e ajustar os dados de observação ao modelo<br />

teórico. Da mesma forma, assim que o paradigma newtoniano se instaura, pesquisadores dos<br />

séculos XVIII e XIX, por exemplo, expandirão as fronteiras dessa particular visão de mundo,<br />

aplicando o paradigma para resolver quebra-cabeças em diversas áreas (na própria mecânica,<br />

mas também na óptica, na eletricidade, no estudo do calor etc.).<br />

Outros, como Galileu, podem ser considerados “personagens de transição”, atuantes no<br />

que Kuhn denomina de “período revolucionário”. Geralmente, são personagens muito ricos do<br />

ponto de vista da análise histórica, pois refletem as incertezas do período e as dificuldades no<br />

tratamento das anomalias. Galileu é exemplo de tudo isso. Suas observações telescópicas, na<br />

perspectiva de Kuhh, evidenciam como os defensores de paradigmas conflitantes vivem em<br />

mundos diferentes: muitos não viam (literalmente) o que Galileu afirmava ver com a luneta...<br />

E o que ele observou – satélites em Júpiter, fases de Vênus, manchas solares, crateras na Lua<br />

– serviu de material para fomentar a crise do paradigma anterior.<br />

A resistência à adesão a uma nova visão de mundo e o conservadorismo relacionado à<br />

prática da ciência normal pode ser ilustrado, ainda com referência a Galileu, com a dificuldade<br />

da aceitação do heliocentrismo na época em que foi proposto e pela repressão a essas ideias por<br />

parte da Igreja Católica. Os julgamentos de Bruno e Galileu são emblemáticos a esse respeito.<br />

14<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


Para Kuhn, a transição do geocentrismo ao heliocentrismo é uma transição entre<br />

paradigmas incomensuráveis. Com a revolução, os conceitos anteriores encontram-se<br />

reestruturados e devem ser vistos sob nova ótica. Podemos exemplificar isso com o conceito<br />

de movimento, que tem para Aristóteles um sentido muito mais genérico do que assumirá no<br />

contexto newtoniano.<br />

A transição entre o geocentrismo e o heliocentrismo pode ser, portanto, vista sob a<br />

ótica kuhniana e interpretada à luz de conceitos como paradigma, revolução científi ca,<br />

incomensurabilidade etc. Outros momentos da história da Física poderiam ser lembrados<br />

aqui, tais como o surgimento das Teorias da Relatividade e da Mecânica Quântica, na virada<br />

do século XIX para o século XX, que representaram revoluções científicas e instauraram novos<br />

paradigmas, em oposição à denominada Física Clássica.<br />

Atividade 4<br />

1<br />

O trecho a seguir é uma fala do físico Max Planck, um dos principais<br />

nomes associado ao surgimento da Mecânica Quântica:<br />

“[...] uma nova verdade científica não triunfa convencendo seus oponentes<br />

e fazendo com que vejam a luz, mas porque seus oponentes fi nalmente<br />

morrem e uma nova geração cresce familiarizada com ela.” (PLANCK apud<br />

KUHN, 1987, p. 191)<br />

Analise e discuta esse trecho, considerando o referencial kuhniano de<br />

análise do desenvolvimento científico, apresentado nesta aula.<br />

2<br />

Cite um aspecto em que a fi losofi a de Kuhn pode representar uma<br />

oposição à abordagem de Popper, tratada na aula anterior.<br />

1.<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />

15


2.<br />

Leituras complementares<br />

DELIZOICOV et al. Sociogênese do conhecimento e pesquisa em ensino: contribuições a partir<br />

do referencial Fleckiano. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 19, p. 50-66, mar. 2002.<br />

Número especial. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />

Nesse artigo, os autores apresentam uma introdução ao pensamento de Ludwig Fleck,<br />

procurando apontar as relações de suas ideias com a proposta de Thomas Kuhn. Além<br />

disso, abordam algumas das contribuições de Fleck ao entendimento de questões da área<br />

de ensino de ciências.<br />

MOZENA, E. R. A história e a filosofia da ciência nos manuais didáticos sobre o problema da<br />

radiação de corpo negro (PRCN): por que não oferecer a física como cultura In: MARTINS,<br />

A. F. P. (Org.). Física ainda é cultura São Paulo: Editora Livraria da Física, 2009. p. 231-258.<br />

Esse capítulo de livro traz uma discussão sobre a análise kuhniana dos “manuais<br />

didáticos” e do papel desses instrumentos na formação de cientistas. Em especial, a autora<br />

discute o modo pelo qual a temática da radiação de corpo negro surge nesses manuais.<br />

OLIVEIRA, B. J. Kuhn contra os kuhnianos. In: MARTINS, R. A. et al (Ed.). Filosofia e história<br />

da ciência no Cone Sul: 3º encontro. Campinas: AFHIC, 2004. p. 74-80.<br />

O artigo aborda a crítica do próprio Kuhn aos historiadores da ciência que radicalizaram<br />

algumas de suas idéias, bem como a revisão que esse autor faz de conceitos centrais de seu<br />

pensamento, como as noções de incomensurabilidade e de revolução científica.<br />

OSTERMANN, F. A epistemologia de Kuhn. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 13,<br />

n. 3, p. 184-196, dez. 1996. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />

16<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


A autora apresenta os principais conceitos da epistemologia de Kuhn, procurando situar<br />

o pensamento desse autor no campo da Filosofi a da Ciência e apontar sua importância no<br />

entendimento de questões de ensino.<br />

PEDUZZI, L. O. Q. Sobre continuidades e descontinuidades no conhecimento científico: uma<br />

discussão centrada na perspectiva kuhniana. In: SILVA, C. C. (Org.). Estudos de história e<br />

fi losofi a das ciências: subsídios para aplicação no ensino. São Paulo: Editora Livraria da<br />

Física, 2006. p. 59-83.<br />

Tendo como referência a obra de Thomas Kuhn, o autor analisa as perspectivas de ruptura<br />

e de continuidade do conhecimento científico.<br />

Resumo<br />

Nesta aula, abordamos o pensamento de Thomas S. Kuhn e os principais<br />

conceitos de sua filosofia: ciência normal, paradigma, revolução científica,<br />

incomensurabilidade, comunidade científica. Vimos como a abordagem desse autor<br />

reforça o fazer científico como uma prática social, enfatizando aspectos sociológicos<br />

do desenvolvimento do conhecimento. Analisamos a importância e o impacto de<br />

sua obra no terreno da Filosofia da Ciência. Apontamos, por fim, a possibilidade de<br />

realizarmos uma leitura kuhniana de episódios da História da Ciência.<br />

Autoavaliação<br />

Com base na leitura desta aula e nas Atividades desenvolvidas por você, reflita sobre as<br />

seguintes questões:<br />

1<br />

2<br />

Sou capaz de perceber as principais características da filosofia de Thomas Kuhn<br />

Compreendo os conceitos centrais da análise kuhniana da ciência<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />

17


3<br />

4<br />

Sei comparar as fi losofi as de Kuhn e de Popper, estabelecendo semelhanças e<br />

diferenças<br />

Consigo realizar uma leitura da História da Ciência embasada na perspectiva de Kuhn<br />

Referências<br />

CHALMERS, A. F. O que é ciência, afinal São Paulo: Brasiliense, 1993.<br />

DELIZOICOV et al. Sociogênese do conhecimento e pesquisa em ensino: contribuições a partir<br />

do referencial Fleckiano. Caderno Brasileiro de Ensino de Física, v. 19, p. 50-66, mar. 2002.<br />

Número especial. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />

KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.<br />

MARTINS, A. F. P. O ensino do conceito de tempo: contribuições históricas e epistemológicas.<br />

1998. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação/Instituto de Física, Universidade de<br />

São Paulo, São Paulo, 1998.<br />

OSTERMANN, F. A epistemologia de Kuhn. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 13,<br />

n. 3, p. 184-196, dez. 1996. Disponível em: . Acesso em: 9 nov. 2009.<br />

ZANETIC, J. FMT405 - Evolução dos conceitos da física: notas de aula. São Paulo: Instituto<br />

de Física da USP, 2008. Mimeo.<br />

18<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência


Anotações<br />

<strong>Aula</strong> <strong>11</strong> História e Filosofi a da Ciência<br />

19


Anotações<br />

20<br />

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