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Prosa 3 - Academia Brasileira de Letras

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Palácio Austregésilo<strong>de</strong> Athay<strong>de</strong>


<strong>Prosa</strong><strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> é mesmobrasileiraArnaldo NiskierDurante muitos anos, a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> foi reconhecidacomo elite cultural, quase fechada a manifestaçõespopulares. Uma espécie <strong>de</strong> Country Club, reservado àqueles pre<strong>de</strong>stinados(40 <strong>de</strong> cada vez) eleitos por seus pares. Aos poucos, assuas portas foram se abrindo, primeiro com a eleição <strong>de</strong> Rachel <strong>de</strong>Queiroz, em 1977, a primeira mulher a envergar o vistoso fardão <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>lo francês. Depois, com a expansão das suas ativida<strong>de</strong>s a todosos estados brasileiros, para justificar o nome da ABL. Não sem antes,na década <strong>de</strong> 80, iniciar o respeito à existência do computador,aparentemente um inimigo, com a criação, por Austregésilo <strong>de</strong>Athay<strong>de</strong>, com o nosso apoio técnico, do primeiro Banco <strong>de</strong> Dados,que <strong>de</strong>u origem ao atual e bem montado Centro <strong>de</strong> Memória.Hoje, uma iniciativa dá consequência à “nacionalização” da Casa<strong>de</strong> Machado <strong>de</strong> Assis. Trata-se da Maratona Escolar, que primeirohomenageou a memória <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, para em 2010 concentrar-sena vida e obra <strong>de</strong> Joaquim Nabuco, a propósito do Cente-Ocupante daCa<strong>de</strong>ira 18na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>.145


Arnaldo Niskiernário da sua morte. Foram mobilizados estudantes <strong>de</strong> ensino médio das escolas<strong>de</strong> todo o país, com o objetivo <strong>de</strong> escrever textos <strong>de</strong> não mais <strong>de</strong> 25 linhas,<strong>de</strong>vidamente orientados por professores entusiasmados.Conforme orientação da Caixa Econômica Fe<strong>de</strong>ral, que patrocina o evento,com o apoio institucional da <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>, a Maratona Escolar Joaquim Nabucolevou imortais a um elenco impressionante <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s e escolas, para falar e <strong>de</strong>batersobre o nosso gran<strong>de</strong> abolicionista. É uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização cultural,como raramente houve. Veja-se pelo roteiro o que isso representa: MoacyrScliar falou em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo e Pelotas; Cícero Sandronina Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> São Paulo; Evanildo Bechara emJoão Pessoa, Carpina (PE) e São Luís; Marcos Vilaça em Recife; EduardoPortella e Nélida Piñon no Rio <strong>de</strong> Janeiro; Carlos Nejar em Vitória, Fortaleza,Belém, Manaus e Niterói; Antonio Carlos Secchin em Salvador, Florianópolis,Goiânia e Juiz <strong>de</strong> Fora; Lêdo Ivo em Brasília; Murilo Melo Filho emNatal, Maceió, Aracaju e Londrina; e estivemos em Belo Horizonte, Feira <strong>de</strong>Santana, Cuiabá e Nova Iguaçu.Em todos esses lugares, com o apoio das respectivas Secretarias Estaduais<strong>de</strong> Educação, além das palestras e dos <strong>de</strong>bates, houve farta distribuição <strong>de</strong> cartazes,folhetos e livros relativos ao autor selecionado pela Comissão Organizadora.Já imaginaram o que isso representa, em termos <strong>de</strong> incentivo à leitura econsequente conhecimento dos nossos mitos?Dividida em duas partes, a Maratona Escolar Joaquim Nabuco apresentarádois grupos <strong>de</strong> vencedores, o primeiro dos quais já é conhecido: Ana Rita Ribeiro<strong>de</strong> Araújo (João Pessoa), Geysiane Barbosa Prado (Carpina, PE), GeraldoPereira Neto (Rio <strong>de</strong> Janeiro), Jadher Assunção Cambuí Alves (Salvador) eJúlia Bortoloto <strong>de</strong> Albuquerque (São Paulo). Esses jovens e seus respectivosprofessores receberam como prêmios viagens a capitais por eles escolhidas,além <strong>de</strong> livros preciosos, como o Vocabulário Ortográfico e o Dicionário da<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Suas redações foram consi<strong>de</strong>radas primorosaspor um júri <strong>de</strong> acadêmicos.146


<strong>Prosa</strong>O diplomataJoaquim Nabuco*José Thomaz Nabuco, filhoEleito presi<strong>de</strong>nte da República em l.º <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1898, ManoelFerraz <strong>de</strong> Campos Salles, como se tornou <strong>de</strong>pois costumedos presi<strong>de</strong>ntes que lhe suce<strong>de</strong>ram, viajou para a Europa, on<strong>de</strong> se<strong>de</strong>morou até meados do ano, o que era possível naquele tempo, <strong>de</strong>vidoao longo intervalo entre a eleição e a posse, que só ocorria mais <strong>de</strong>oito meses <strong>de</strong>pois, em 15 <strong>de</strong> novembro.Se me refiro a essa viagem <strong>de</strong> Campos Salles, não é por ele terconseguido renegociar, quando <strong>de</strong> sua estada em Londres, nossa dívidaexterna, que se tornara alarmante, mas por um fato que está <strong>de</strong>certo modo na gênese do assunto <strong>de</strong> que vou tratar – o DiplomataJoaquim Nabuco.Tobias Monteiro, o gran<strong>de</strong> historiador do Império, amigo íntimo<strong>de</strong> Nabuco, acompanhou Campos Salles na sua viagem à Euro-Advogado noRio <strong>de</strong> Janeiro.Mestre em DireitoComparado pelaUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Columbia, NovaYork.*Conferência proferida no Seminário “Três Visões <strong>de</strong> Joaquim Nabuco” organizado peloConsulado Americano e pela Associação dos Juízes Fe<strong>de</strong>rais do Rio <strong>de</strong> Janeiro em 13 <strong>de</strong>abril <strong>de</strong> 2010 no Centro Cultural da Justiça Fe<strong>de</strong>ral.147


José Thomaz Nabuco, filhopa, como correspon<strong>de</strong>nte do Jornal do Commercio, e se tornou <strong>de</strong>pois seu secretárioparticular. A bordo, emprestou ao presi<strong>de</strong>nte eleito o primeiro volume <strong>de</strong>Um Estadista do Império, que acabara <strong>de</strong> chegar às livrarias, com a sugestão <strong>de</strong> queaproveitasse o tempo da longa travessia para lê-lo.Campos Salles ficou entusiasmado com a leitura do livro <strong>de</strong> Nabuco, quefora seu colega na Câmara dos Deputados do Império, nos anos 80, e lamentouque ele insistisse em se manter afastado da vida pública por fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> àMonarquia e que a República não pu<strong>de</strong>sse contar com seus serviços.Tobias Monteiro, cuja admiração por Nabuco vinha da adolescência, nãose esqueceu do comentário e, quando, um ano <strong>de</strong>pois, surgiu a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> se submetera arbitragem a questão dos nossos limites com a então Guiana Inglesa,logo procurou convencer Nabuco <strong>de</strong> que ele <strong>de</strong>veria ser o advogado do Brasilnessa arbitragem, alegando que seria um serviço apolítico à nação que Nabuconão po<strong>de</strong>ria negar-se a prestar a pretexto <strong>de</strong> ser monarquista, já que se tratava<strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r nosso território da cobiça estrangeira.Lembra Tobias, em artigo em O Jornal referido por Carolina Nabuco emsua biografia do pai:Eu sempre consi<strong>de</strong>rara que Nabuco só po<strong>de</strong>ria entrar para o serviço públicopor uma larga porta <strong>de</strong> patriotismo, pela qual pu<strong>de</strong>ssem passar os seusescrúpulos políticos. Tratava-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o território. Nem Nabucoaceitaria uma missão ordinária, mero emprego.Tobias conta em seguida o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> Campos Salles ao autorizá-lo a sondaro amigo: “arranje você tudo isso e merecerá uma medalha <strong>de</strong> ouro”.Nabuco concordou que não havia incompatibilida<strong>de</strong> entre as suas i<strong>de</strong>iaspolíticas e uma missão <strong>de</strong>ssa natureza, mas disse a Tobias que “não era ele ohomem próprio para <strong>de</strong>sempenhá-la, nem <strong>de</strong>sejaria ver-se forçado a aceitá-la,antes <strong>de</strong>le havia Rio Branco”.Só <strong>de</strong>pois da prevista recusa <strong>de</strong> Rio Branco, então muito envolvidocom o litígio da Guiana Francesa, ace<strong>de</strong>u Nabuco em aceitar o convite <strong>de</strong>148


O diplomata Joaquim NabucoCampos Salles, formalizado <strong>de</strong>pois por carta do Ministro do ExteriorOlyntho <strong>de</strong> Magalhães.Foi assim que Joaquim Nabuco <strong>de</strong>u por encerrados os <strong>de</strong>z longos anos <strong>de</strong>“luto da Monarquia”, como ele chamou o período em que se <strong>de</strong>dicou à <strong>de</strong>fesado antigo regime, pela superiorida<strong>de</strong> que via no sistema <strong>de</strong> gabinete inglês sobreo presi<strong>de</strong>ncialismo americano e por sentimento <strong>de</strong> lealda<strong>de</strong> e gratidão ao imperador,que apoiara a causa abolicionista mesmo com risco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o trono, etambém, é claro, à Princesa Isabel, a quem chamou certa vez “a nossa Lincoln”.Todos os anos, no dia 13 <strong>de</strong> maio, até sua morte, Nabuco telegrafava e,quando estava em Paris, mandava flores para a princesa.Foi também durante esse período <strong>de</strong> “luto” da Monarquia, que correspon<strong>de</strong>uà última década do século XIX, que Nabuco escreveu Minha Formação e UmEstadista do Império e o tempo em que ele reverteu à fé católica.Voltando ao nosso assunto, em 3 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1899, Nabuco parte com afamília para a Europa, on<strong>de</strong> inicia o estudo do nosso direito ao extenso territóriodisputadocomaInglaterraeacoletadosdocumentosqueoconsubstanciavam.Uma tarefa assoberbante, mas que não o impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> empreen<strong>de</strong>r frequentesviagens pelo Velho Continente, porque levava consigo, em gran<strong>de</strong>s caixotes,os livros e papéis <strong>de</strong> que precisava para o estudo da questão e trabalhava emquartos <strong>de</strong> hotel dias seguidos. Foi um ano, ou quase, <strong>de</strong> vida nôma<strong>de</strong>, emborasempre fazendo pião em Londres e Paris.O seu diário <strong>de</strong> 1899-1900 registra estadas em Saint Germain-en-Laye,Pourgues, Lausanne, Vevey, Montreux, Genebra, Berna, Zurique, Biarritz,San Sebastian, Lour<strong>de</strong>s, Pau, Bordéus, Tours, Fuenterrabia, Bayonne...Foi em Bayonne, no golfo <strong>de</strong> Biscaya, em 23 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1900, que Nabucorecebeu, para sua gran<strong>de</strong> tristeza, a notícia da morte repentina <strong>de</strong> seu amigoAlfredo <strong>de</strong> Souza Corrêa, nosso Ministro em Londres, que vinha conduzindocom o Ministro do Exterior britânico, Lord Salisbury, as negociações do tratado<strong>de</strong> arbitragem, que <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>limitar o território em disputa, nomear o árbitro e<strong>de</strong>terminar as normas <strong>de</strong> procedimento a serem observadas pelas partes.149


José Thomaz Nabuco, filhoNabuco escreve em seu diário: “[...] pelo que significa para mim essa falta,esse vazio em Londres, on<strong>de</strong> já não estava mais o Penedo, essa morte é paramim um gran<strong>de</strong> abalo”.Vaga assim inesperadamente a Legação em Londres, era natural que Nabucofosse convidado para substituir Corrêa, o que <strong>de</strong> fato veio a acontecer, conviteque ele aceitou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alguma hesitação, tendo assumido o cargo em julho<strong>de</strong> 1900. Ministro em LondresNabuco passou <strong>de</strong>sse modo a acumular as funções <strong>de</strong> advogado do Brasilna futura arbitragem com as <strong>de</strong> ministro em Londres, a quem competiria retornaras negociações com o Foreign Office.Não era essa a primeira vez que Nabuco exercia um cargo diplomático.Quando moço, em 1876-1877, ele fora adido à nossa Legação em Washington,ao mesmo tempo que seu amigo, José Maria da Silva Paranhos Júnior, futuroBarão do Rio Branco, que regulava com Nabuco em ida<strong>de</strong>, era nomeadocônsul em Liverpool. Ambas as nomeações ocorreram na segunda Regência daPrincesa Imperial, Dona Isabel, durante viagem do Imperador à Europa, quevisitava pela segunda vez, e aos Estados Unidos, para assistir aos festejos docentenário da In<strong>de</strong>pendência americana. Estava então no po<strong>de</strong>r o Partido Conservador,sendo Presi<strong>de</strong>nte do Conselho <strong>de</strong> Ministros e Ministro da Guerra oDuque <strong>de</strong> Caxias, e Ministro dos Negócios Estrangeiros, como se dizia naqueletempo, o Barão <strong>de</strong> Cotegipe.Washington era então uma cida<strong>de</strong> pequena e sem atrativos, o que levou Nabucoa <strong>de</strong>ixar-se ficar em Nova York boa parte do tempo <strong>de</strong> sua permanência<strong>de</strong> pouco mais <strong>de</strong> um ano nos Estados Unidos, com a bondosa con<strong>de</strong>scendênciado seu chefe, o Ministro Carvalho Borges.Foi nessa ocasião que ele conheceu e ficou amigo <strong>de</strong> José Carlos Rodrigues,futuro dono do influente Jornal do Commercio, que <strong>de</strong>svendou, 30 anos150


O diplomata Joaquim Nabuco<strong>de</strong>pois, a razão <strong>de</strong>ssa con<strong>de</strong>scendência, em discurso proferido em 1909, emWashington, na presença do agora Embaixador Joaquim Nabuco: “conhecinaquele tempo o então segundo secretário da Legação do Brasil, a quem meufalecido amigo, o Ministro Borges, dizia que teria acanhamento em lhe darofícios para copiar”.Em meados <strong>de</strong> 1877, Nabuco era transferido para Londres, on<strong>de</strong> o MinistroBarão <strong>de</strong> Penedo e sua esposa o acolheram como filho. Penedo fora colegado Conselheiro Nabuco na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Olinda, e seu filho, Artur<strong>de</strong> Carvalho Moreira, era íntimo <strong>de</strong> Joaquim Nabuco.Sobre essa época e a projeção do Barão <strong>de</strong> Penedo em Londres, Nabuco escreveria,mais tar<strong>de</strong>, um capítulo inteiro <strong>de</strong> Minha Formação, intitulado “32Grosvenor Gar<strong>de</strong>ns”, en<strong>de</strong>reço da Legação do BrasilMas, apesar <strong>de</strong> fascinado por Londres, pouco se <strong>de</strong>morou ele no novo posto,menos <strong>de</strong> seis meses, porque <strong>de</strong>cidiu voltar ao Brasil para se candidatar a<strong>de</strong>putado por Pernambuco.Foi lembrando-se <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>cisão, tomada em 1878, quando tinha 28 anos,que ele escreveu em Minha Formação:Não posso negar que sofri o magnetismo da realeza, da aristocracia, dafortuna, da beleza, como senti o da inteligência e o da glória; felizmente,porém, nunca os senti sem a reação correspon<strong>de</strong>nte, não os senti mesmo,per<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> todo a consciência <strong>de</strong> alguma coisa superior, o sofrimento humano,e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela socieda<strong>de</strong> queme fascinava e troquei a vida diplomática pela advocacia dos escravos.Terminado o flashback da breve experiência diplomática <strong>de</strong> Joaquim Nabucoquando jovem, voltemos ao ano <strong>de</strong> 1900 e à sua nomeação, pelo governoCampos Salles, para ministro em Londres.Ao assumir a Legação do Brasil, Nabuco já tinha um gran<strong>de</strong> círculo <strong>de</strong> amigosem Londres, das vezes que lá estivera em tempos do Barão <strong>de</strong> Penedo, primeiroem 1877-1878, como adido à Legação, como vimos há pouco, e <strong>de</strong>pois151


José Thomaz Nabuco, filhoem várias ocasiões, sendo que <strong>de</strong> uma feita ele passara lá dois anos inteiros, <strong>de</strong>1882 a 1884, durante o ostracismo que lhe impôs o seu próprio Partido Liberalao não reelegê-lo <strong>de</strong>putado nas eleições <strong>de</strong> 1881.Foi nesses dois anos que escreveu, no silêncio da biblioteca do British Museum,O Abolicionismo, hoje consi<strong>de</strong>rado um livro fundador e até, para alguns, sua obramais importante, mas que durante mais <strong>de</strong> uma geração foi relegado ao esquecimentoporque consi<strong>de</strong>rado uma obra <strong>de</strong> propaganda e, como tal, <strong>de</strong> interessetransitório.Essa familiarida<strong>de</strong> com a vida londrina, além, é claro, do seu encanto pessoale da aura <strong>de</strong> antigo combatente da causa da abolição no Brasil, muito facilitou,como não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser, o trabalho <strong>de</strong> Nabuco à frente <strong>de</strong> nossa Legação.Em 13 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1900, ele apresentava suas cre<strong>de</strong>nciais, no Castelo <strong>de</strong>Windsor, à Rainha Victória (foi o último emissário estrangeiro a apresentar cre<strong>de</strong>nciaisà Rainha, que viria a falecer logo <strong>de</strong>pois, em 2 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1901).As negociações com Lord Salisbury fluíram sem maiores dificulda<strong>de</strong>s, e em 6 <strong>de</strong>novembro <strong>de</strong> 1901 era assinado o Tratado <strong>de</strong> Arbitragem da questão da Guiana.Poucos meses <strong>de</strong>pois, em 27 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1902, na casa que ele alugara em 52,Cornwall Gar<strong>de</strong>ns, no bairro <strong>de</strong> South Kensington, nasce o seu filho caçula, aquem Nabuco <strong>de</strong>u o nome do avô, José Thomaz. Essa casa ainda existe e no seupórtico há hoje uma placa, colocada pela prefeitura <strong>de</strong> Londres, com os dizeres:“Joaquim Nabuco, estadista e diplomata brasileiro, morou nesta casa”.Em Londres, esforçou-se Nabuco, por todos os meios ao seu alcance, emmostrar o estágio <strong>de</strong> civilização e <strong>de</strong> progresso material que o Brasil havia atingidonas últimas décadas.Vou dar apenas dois exemplos, entre muitos, <strong>de</strong>sse esforço, ambos <strong>de</strong>1901: a gran<strong>de</strong> recepção que ele ofereceu a Santos Dumont e a cerimônia naAbadia <strong>de</strong> Westminster, em homenagem ao Almirante Cochrane.Volto a citar Carolina Nabuco:Depois da sua gloriosa façanha em torno da Torre Eiffel, Santos Dumontrecebeu em Londres um acolhimento caloroso e, no mesmo ano, aportou por152


O diplomata Joaquim Nabucoalguns dias em Portsmouth o navio <strong>de</strong> guerra “Floriano”. Nabuco imaginouuma homenagem <strong>de</strong> sua equipagem ao túmulo do almirante da In<strong>de</strong>pendênciabrasileira, Thomas John Cochrane, décimo Con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Dundonald. Na vetustaAbadia <strong>de</strong> Westminster, on<strong>de</strong> gloriosamente repousa, os marinheirosbrasileiros, em armas, levaram-lhe flores. Pela primeira vez, tropa armada <strong>de</strong>uma nação estrangeira marchou através das naves góticas. Pela primeira vez, ogran<strong>de</strong> órgão encheu a abóbada venerável com os ecos do hino brasileiro.O túmulo <strong>de</strong> Cochrane fica no corredor central da Abadia. Na lápi<strong>de</strong> <strong>de</strong>mármore, ao lado do seu título inglês, está insculpido o que lhe <strong>de</strong>u D. PedroI, Marquês do Maranhão.Mas não sobrava muito tempo para o trabalho da Legação, porque Nabuco<strong>de</strong>via se <strong>de</strong>dicar com todas as forças ao preparo da <strong>de</strong>fesa do Brasil, a ser submetidaao Rei Vitorio Emmanuel III , da Itália, escolhido para ser o árbitro daquestão dos nossos limites com a Guiana Inglesa.Em 25 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1903, ele apresenta ao rei, juntamente com suas cre<strong>de</strong>nciais<strong>de</strong> Enviado em Missão Especial, a primeira Memória e o Atlas (5 volumes).E a partir <strong>de</strong> então, durante um ano e meio, consagra todo o seu tempoao processo <strong>de</strong> arbitragem, ficando a Legação em Londres aos cuidados doPrimeiro Secretário, Cardoso <strong>de</strong> Oliveira, como encarregado <strong>de</strong> negócios.A sentença do jovem Rei Vitorio Emmanuel, lida às partes no dia 14 <strong>de</strong> junho<strong>de</strong> 1904, entristeceu, como é natural, o nosso advogado, porque dividiuem duas partes, que preten<strong>de</strong>u equivalentes, o território contestado, por nãojulgar provado o direito, seja da Inglaterra, seja do Brasil.Este trecho <strong>de</strong> carta à esposa, Evelina, que ficara em Londres com as crianças,dá a medida do seu estado <strong>de</strong> espírito naqueles dias: “Roma, 28/6/1904– Hoje dou um jantar à socieda<strong>de</strong> romana, a que resta em Roma por estes calores.Preciso mostrar-me superior ao revés e por isso estarei esta noite o maisalegre possível, mas no fundo com que tristeza lá vou!”.Cinco dias <strong>de</strong>pois da audiência <strong>de</strong> leitura da sentença do Rei VitorioEmmanuel, Nabuco recebe telegrama <strong>de</strong> Rio Branco convidando-o para a153


José Thomaz Nabuco, filhoEmbaixada em Washington, com o entendimento <strong>de</strong> que ele não precisariapartir imediatamente e que podia continuar ultimando os trabalhos da Missãopor alguns meses.Surpreso com o convite, que chamou, em carta à Evelina, “um terremoto”,Nabuco telegrafa ao Ministro: “Se você tem plano para cuja realização me supõemais próprio, não leve em conta preferências ordinárias que eu teria por Londres”.Rio Branco consi<strong>de</strong>rou, com essa resposta, aceito o convite. Logo o nome<strong>de</strong> Nabuco era submetido ao Senado, e o Presi<strong>de</strong>nte Rodrigues Alves assinavao <strong>de</strong>creto <strong>de</strong> nomeação do primeiro embaixador do Brasil (a representação doBrasil em Washington fora recentemente elevada à embaixada), e Nabuco seriao nosso primeiro embaixador. Antes o Brasil só tinha legações. Naqueletempo, havia uma importante diferença entre embaixador e ministro, porquese consi<strong>de</strong>rava o embaixador representante da pessoa do seu soberano e, porisso, com precedência sobre os <strong>de</strong>mais chefes <strong>de</strong> missão. Como representantedo seu soberano, o embaixador tinha a prerrogativa, pelo menos em tese, <strong>de</strong>enten<strong>de</strong>r-se diretamente com o soberano do país on<strong>de</strong> estava acreditado).E no dia 10 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1905 ele parte <strong>de</strong> Southampton para os EstadosUnidos, on<strong>de</strong> passaria os últimos anos <strong>de</strong> sua vida. WashingtonDes<strong>de</strong> o princípio, Nabuco enten<strong>de</strong>u que sua escolha para Washington se<strong>de</strong>via ao fato <strong>de</strong> ser, como dizia, “um velho monroísta” e que o “plano paracuja realização” supunha que o governo o convidara e ao qual se referira no telegramaa Rio Branco era o da mudança do eixo <strong>de</strong> nossa política externa, <strong>de</strong>Londres para WashingtonA razão do “monroísmo” <strong>de</strong> Nabuco e <strong>de</strong> sua percepção da conveniênciapara o Brasil <strong>de</strong>ssa mudança era a clara tendência, no início do século passado –estamos falando <strong>de</strong> antes da Primeira Guerra Mundial –, <strong>de</strong> recru<strong>de</strong>scimento docolonialismo europeu. Nabuco temia que atos <strong>de</strong> violência por parte <strong>de</strong> potên-154


O diplomata Joaquim Nabucocias da Europa pu<strong>de</strong>ssem, <strong>de</strong> alguma forma, atingir o Brasil, que não teria meiosmateriais e armamentos suficientes para se contrapor a essas ameaças.A Doutrina Monroe, enunciada em 1823 pelo Presi<strong>de</strong>nte dos EstadosUnidos James Monroe, consistia, como se sabe, em grave advertência às potênciascoloniais da Europa no sentido <strong>de</strong> não intervirem nos <strong>de</strong>stinos dos paísesrecém-emancipados da América.“Para mim, a doutrina <strong>de</strong> Monroe significa que politicamente nós nos <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>mosda Europa [...]. Nesse sentido é que sou monroísta”, escreve Nabucoem carta a Graça Aranha, agra<strong>de</strong>cendo as felicitações recebidas quando<strong>de</strong> sua nomeação.Eram sem dúvida justificados os temores <strong>de</strong> Nabuco. Em 1902, forças navaisda Alemanha, Grã-Bretanha e Itália haviam bombar<strong>de</strong>ado as cida<strong>de</strong>s venezuelanas<strong>de</strong> La Guayra, Puerto Cabello e Maracaibo, a fim <strong>de</strong> obrigar o governo da Venezuelaao pagamento <strong>de</strong> certas dívidas a nacionais dos referidos países.Pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> sua chegada a Washington se dava o inci<strong>de</strong>nte com a canhoneiraalemã Panther, que Rio Branco assim <strong>de</strong>screveu em telegrama enviadoa Nabuco, em 9 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1905:Marinheiros canhoneira alemã Panther, dirigidos por oficiais paisana,madrugada 27 <strong>de</strong> novembro, <strong>de</strong>sembarcaram em Itajaí, obrigaram donoHotel Commercio entregar-lhes jovem alemão Steinoffer, refratário serviçomilitar levaram-no preso para bordo. É o que resulta do inquérito. Pantherentrou ontem em Rio Gran<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> estará dias. Trate <strong>de</strong> provocar artigosenérgicos monroístas contra esse insulto. Vou reclamar entrega preso [...].Se inatendidos, empregaremos força libertar preso ou meteremos a piquePanther. Depois, aconteça o que acontecer.O inci<strong>de</strong>nte terminou com um pedido <strong>de</strong> <strong>de</strong>sculpas do governo alemão, quesubmeteu a processo os responsáveis.Mais <strong>de</strong> um século <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> enunciada a Doutrina Monroe, os estadosamericanos, em 1947, no Rio <strong>de</strong> Janeiro, firmaram o Tratado Interamericano155


José Thomaz Nabuco, filho<strong>de</strong> Assistência Recíproca, que não é mais do que um corolário <strong>de</strong>la, porqueprevê que qualquer ataque armado contra um Estado americano será consi<strong>de</strong>radoum ataque a todos os Estados americanos e, em consequência, as partes secomprometem a ajudar e a fazer frente ao ataque.A atuação <strong>de</strong> Nabuco em Washington foi a todos os títulos notável. Não hátempo para recapitulá-la, senão em linhas gerais, tal a abrangência <strong>de</strong> sua ação.No primeiro ano no novo posto, Nabuco se <strong>de</strong>dicou a organizar a terceiraConferência Pan-americana, que se <strong>de</strong>via realizar no Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1906.A Conferência, presidida por ele, foi, po<strong>de</strong>-se dizer, muito bem-sucedida,porque ratificou a a<strong>de</strong>são das repúblicas americanas ao princípio da arbitrageme fez um apelo à futura Conferência <strong>de</strong> Haia, que se realizaria no ano seguinte,para que esse princípio fosse adotado universalmente, além <strong>de</strong> aprovarvárias outras resoluções <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância, que Nabuco resumiu na últimasessão.Durante sua missão <strong>de</strong> quatro anos e meio, Nabuco se tornou um dos diplomatas<strong>de</strong> maior prestígio em Washington, o que não é dizer pouco, porqueo corpo diplomático acreditado em Washington, pela importância que têm osEstados Unidos, sempre foi composto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s estadistas ou do que cadapaís tem <strong>de</strong> melhor em seu serviço exterior.Nabuco fez logo boa amiza<strong>de</strong> com o Presi<strong>de</strong>nte Theodore Roosevelt e comElihu Root, Secretário <strong>de</strong> Estado, o que facilitou muito o seu trabalho. Rootveio ao Rio <strong>de</strong> Janeiro, para a Conferência <strong>de</strong> 1906. Era a primeira vez que umsecretário <strong>de</strong> Estado visitava a América do Sul.O empenho <strong>de</strong> Nabuco em fazer o Brasil conhecido nos Estados Unidos eaproximar os dois países foi inexcedível.Entre 1906 e 1909 ele fez pelo menos 20 conferências e discursos, muitos<strong>de</strong>les em universida<strong>de</strong>s e colégios: Yale, Chicago, Vassar, Comell, Wisconsin.Três <strong>de</strong>ssas conferências foram sobre Camões. Em Vassar, falando para moças,revelou-lhes o poeta lírico. Em Cornell, o assunto foi o Camões épico <strong>de</strong>Os Lusíadas. Em Yale, discorreu sobre “O Lugar <strong>de</strong> Camões na Literatura” efez uma segunda conferência com o título “O Espírito <strong>de</strong> Nacionalida<strong>de</strong> na156


O diplomata Joaquim NabucoHistória do Brasil”. Nesta última, Nabuco diz que havia ema seqência naturalem falar do Brasil <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter tratado, na véspera, <strong>de</strong> Os Lusíadas:“Os Lusíadase o Brasil são as duas gran<strong>de</strong>s obras <strong>de</strong> Portugal”.Deixou quase pronta uma conferência que faria em Harvard, a convite doPresi<strong>de</strong>nte da Universida<strong>de</strong>, Charles William Elliot. A Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Columbiaconferiu-lhe o grau <strong>de</strong> Doutor Honoris Causa em Direito, e Yale, em Literatura.Há dois anos, em 2008, a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Yale comemorou, com arealização <strong>de</strong> um simpósio, o Centenário das conferências que Nabuco fez lá.A Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Wisconsin também lembrou com um importante simpósio,em abril do ano passado, o Centenário da conferência <strong>de</strong> Nabuco porocasião da formatura dos alunos da Universida<strong>de</strong>, em 1909, intitulada “AContribuição da América para a Civilização”.Entre as conferências <strong>de</strong> Nabuco, há duas sobre Lincoln. A segunda foiproferida em 1908, no Centenário <strong>de</strong> nascimento do gran<strong>de</strong> estadista, a convitedos Comissários do Distrito <strong>de</strong> Columbia. Carl Sandburg termina o prefácio<strong>de</strong> sua monumental biografia <strong>de</strong> Lincoln com uma passagem <strong>de</strong>ssa conferência<strong>de</strong> Nabuco:Com a velocida<strong>de</strong> crescente das mudanças nos tempos mo<strong>de</strong>rnos, nósnão sabemos como será o mundo daqui a cem anos. Com certeza, os i<strong>de</strong>aisda geração do ano 2000 não serão os mesmos da geração do ano 1900. Asnações serão então governadas por correntes <strong>de</strong> pensamento político quenós não po<strong>de</strong>mos prever mais do que o século XVII podia prever as correntespolíticas do XVIII, que ainda em parte nos guiam. Mas, quer aumente oespírito da autorida<strong>de</strong>, quer o da liberda<strong>de</strong>, a legenda <strong>de</strong> Lincoln aparecerásempre mais luminosa no amálgama dos séculos, porque ele encarnou supremamenteambos esses espíritos.Mas nada expressa melhor as qualida<strong>de</strong>s do homem e do notável diplomataque foi Joaquim Nabuco do que o comovente testemunho <strong>de</strong> seus colegas eamigos <strong>de</strong> Washington e <strong>de</strong> jornais americanos por ocasião <strong>de</strong> sua morte.157


José Thomaz Nabuco, filhoThe Washington Herald – 20 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1910 – “O embaixador era notavelmentepopular em Washington porque, além <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> e do trabalhoque ele <strong>de</strong>senvolveu aqui pelo Brasil, tinha um charme pessoal único, que fezpara ele muitos amigos”.The Washington Times – 17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1910 – “Uma das primeiras pessoasno mundo oficial a saber da morte do embaixador foi o Presi<strong>de</strong>nte Taft. Opresi<strong>de</strong>nte cancelou vários compromissos e, em companhia do Capitão Butt,foi imediatamente à Embaixada para fazer uma visita <strong>de</strong> condolências”.James Bryce, Embaixador da Grã-Bretanha, em ofício ao seu governo –“Ninguém era mais querido pelos colegas e pela socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Washington, eele alcançou aqui uma posição que, provavelmente, nenhum representante diplomático<strong>de</strong> país sul-americano jamais antes <strong>de</strong>le atingira”.Jean-Jules Jusserand, Embaixador da França, em ofício ao seu governo – “O SenhorNabuco era cercado aqui da estima e, posso dizer, da admiração universal”.“O nosso país não produz muitos homens assim”, dizia-me com lágrimasnos olhos o primeiro secretário brasileiro, por ocasião dos funerais. Pu<strong>de</strong>, comtoda a sincerida<strong>de</strong>, respon<strong>de</strong>r: “Nenhum país produz muitos”.Washington Post – 18 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1910 – “A Embaixada do Brasil, sob o regimedo Sr. Nabuco, tornou-se um centro <strong>de</strong> atração para muitos homens notáveis.Era natural que formasse uma calorosa amiza<strong>de</strong> pessoal com o Sr. Roosevelte <strong>de</strong>pois com o Sr. Tafi. Atraía, naturalmente, como o magneto atrai o aço, aamiza<strong>de</strong> <strong>de</strong> todos os estadistas <strong>de</strong> Washington [...], e esta capital, on<strong>de</strong> ele serviucinco anos, sofre, com seu passamento, uma perda profunda e pessoal”.É o que eu tinha a dizer. Muito obrigado.158


<strong>Prosa</strong>Aurélio, dicionarista*e dicionárioMauro Benevi<strong>de</strong>sDeputadoFe<strong>de</strong>ral –PMDB/CESenhor Presi<strong>de</strong>nte,Senhoras e Senhores Deputados:Desejo, antes <strong>de</strong> mais nada, saudar a iniciativa do nobre ColegaDeputado e ex-Presi<strong>de</strong>nte Aldo Rebelo, autor do requerimentoobjetivando a realização <strong>de</strong>sta sessão solene, pela oportunida<strong>de</strong>que nos oferece hoje <strong>de</strong> homenagear a memória imperecível dogran<strong>de</strong> dicionarista brasileiro, mestre <strong>de</strong> todos nós no difícil segredodas palavras, autor consagrado como ficcionista, crítico,filólogo, antologista, tradutor e poeta, Aurélio Buarque <strong>de</strong> HolandaFerreira.Filho do comerciante Manuel Hermelindo Ferreira e <strong>de</strong> MariaBuarque Cavalcanti Ferreira, nasceu no município alagoano <strong>de</strong> Passo<strong>de</strong> Camaragibe e apren<strong>de</strong>u as primeiras letras com a própria mãe.* Discurso Proferido pelo Deputado Mauro Benevi<strong>de</strong>s na Sessão Solene <strong>de</strong> 11 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong>2010.159


Mauro Benevi<strong>de</strong>sSua trajetória ilustra bem o que é uma autêntica vocação. O único ensino regularque frequentou foi o curso primário em Maceió. Tão logo principiou o ciclosecundário, foi compelido a trabalhar e, ingressando na Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direitodo Recife, lá só podia comparecer para prestar os exames, pois já era funcionárioda Prefeitura <strong>de</strong> Maceió, cumprindo, exemplarmente, a respectivajornada <strong>de</strong> trabalho.A vida <strong>de</strong> penúria material enfrentada nos primeiros anos <strong>de</strong> vida era compensadapela enorme curiosida<strong>de</strong> e uma facilida<strong>de</strong> natural <strong>de</strong> expressão, herdadaexclusivamente <strong>de</strong> seu próprio talento. Adolescente ainda, empregava em livroso escasso dinheiro auferido, solicitando empréstimo aos amigos e se <strong>de</strong>dicandoàs primeiras experiências literárias. Eram sonetos, e, mesmo sem ter jamaisrecebido aulas <strong>de</strong> métrica e rima, fazia todos corretamente, como primeirosinal das preocupações estilísticas que o acompanhariam pela vida afora.Dotado <strong>de</strong> agudo senso <strong>de</strong> observação e <strong>de</strong> memória privilegiada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>muito cedo observava não apenas o que se dizia, mas como se dizia. Seu ouvidoeducava-se para a musicalida<strong>de</strong> da linguagem, os novos vocábulos brilhavampara ele qual pequenos astros no firmamento do idioma, seu espírito surpreendia-secom as potencialida<strong>de</strong>s da língua.No início da vida adulta ocupou vários cargos administrativos na Prefeitura<strong>de</strong> Maceió, entre os quais o <strong>de</strong> diretor da Biblioteca Municipal. Nessa época,quis o <strong>de</strong>stino reunir em Maceió um pequeno grupo <strong>de</strong> brilhantes autores aoqual nosso homenageado se integrou, tais como Graciliano Ramos, José Linsdo Rego, a cearense Rachel <strong>de</strong> Queiroz, Jorge <strong>de</strong> Lima, entre outros que tiveramimportante participação no amadurecimento <strong>de</strong> seu espírito <strong>de</strong> cultor doidioma pátrio.Ainda assim, Maceió continuava sendo cenário limitado para ele, e Aurélio<strong>de</strong>mandou o Rio <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong> se estabeleceu como secretário da Revista doBrasil e professor do Colégio Pedro II. Seu notável conhecimento da língua eexcepcional capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalho ren<strong>de</strong>ram-lhe um convite que iria <strong>de</strong>terminarsua trajetória intelectual: ser colaborador do Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa,primeiro trabalho lexicográfico que realizou, com extrema obstinação.160


Aurélio, dicionarista e dicionárioA experiência entusiasmou-lhe tanto que <strong>de</strong>cidiu incumbir-se <strong>de</strong> elaborarum gran<strong>de</strong> dicionário da língua portuguesa. Foi um gesto <strong>de</strong> imensa coragem,pois, mesmo contando com a ajuda <strong>de</strong> muitos colaboradores, era umatarefa hercúlea, que com frequência exce<strong>de</strong> a existência <strong>de</strong> um homem, e Auréliojá tinha vivido talvez mais da meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua vida quando se lançou à árduaempreitada.O Dicionário Aurélio veio suprir uma enorme lacuna na nossa lexicografia. NoBrasil, os dicionários existentes já tinham <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> circular. Não é exagerodizer que a publicação do Aurélio muito contribuiu para fazer do brasileiro comumum consulente compulsório do dicionário, um usuário consciente <strong>de</strong> seuidioma.Senhor Presi<strong>de</strong>nte, Senhoras e Senhores Deputados, a homenagem que estaCasa hoje presta à memória <strong>de</strong> Aurélio Buarque <strong>de</strong> Holanda Ferreira peloCentenário <strong>de</strong> seu nascimento é mais do que oportuna; trata-se <strong>de</strong> merecidoreconhecimento àquele que muito fez pela divulgação do nosso idioma.O brasileiro percebeu e enten<strong>de</strong>u a magnitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua contribuição, e, aindaem vida, este mago das palavras conquistou a glória <strong>de</strong> ter o seu nome confundidocom o do próprio dicionário. Sua obra tornou-se um repositório daconsciência coletiva da língua portuguesa falada no Brasil e por esta razão nós,do PMDB, não po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> tão justa homenagem.Ele continuará a ser oráculo da dissipação <strong>de</strong> dúvidas ortográficas, que nosacostumamos a exaltar, como fazemos, hoje, na rememoração <strong>de</strong> seu Centenário– data que se insere no contexto dos gran<strong>de</strong>s eventos da vida literária brasileira .161


<strong>Prosa</strong>Américo Facó: notas <strong>de</strong>acessoaumaobraperdidaFloriano MartinsAo final <strong>de</strong> 1996, circulou em Fortaleza, em forma <strong>de</strong> plaquete,um breve estudo <strong>de</strong> José Batista <strong>de</strong> Lima intitulado “ALiteratura Cearense e a Cultura das Antologias”, opúsculo que cumpriamuito bem seu intento <strong>de</strong> nos informar acerca das diversas antologiasque foram publicadas ao longo do século passado e que se<strong>de</strong>stinaram à mostra geral da literatura produzida em nosso estado.Não há dúvida sobre a pertinência e a oportunida<strong>de</strong> do estudo <strong>de</strong>Batista <strong>de</strong> Lima. Foi inclusive muito criterioso ao pontuar algumasausências entendidas como injustificáveis, mesmo levando em contao lugar-comum que é o fato <strong>de</strong> as antologias constituírem o terrenomais propício a falhas <strong>de</strong>ssa or<strong>de</strong>m.Algumas ausências, contudo, são tão recorrentes que parecemconfigurar um programa. A literatura brasileira – e quem <strong>de</strong>ra fosseapenas a literatura – tem o mau hábito <strong>de</strong> apagar algumas preciosaspistas (nomes e circunstâncias) <strong>de</strong> sua existência, tornando-se, assim,ainda mais efêmera do que já é. Decerto há um tanto <strong>de</strong> displi-Poeta, editor,ensaísta e tradutor.Criou e coor<strong>de</strong>na oProjeto EditorialBanda Hispânica,que inclui a revistaAgulha Hispânica.Coor<strong>de</strong>na ascoleções “PonteVelha” (EscriturasEditora, São Paulo)e“OComeçodaBusca” (EdiçõesNephelibata, SantaCatarina). Foi oCurador da 8.ªBienal InternacionaldoLivrodoCeará(2008). Autor <strong>de</strong>livros como UnNuevo Continente(2008), A Inocência<strong>de</strong> Pensar (2009),Fuego en las Cartas(2009) e EscrituraConquistada (2010).163


Floriano Martinscência e outro tanto <strong>de</strong> ingenuida<strong>de</strong> nessa ação que ao final resulta em prejuízopara a cultura como um todo. Ao ler o estudo <strong>de</strong> Batista <strong>de</strong> Lima, por exemplo,percebo que não há menção ao nome <strong>de</strong> Américo Facó, mesmo consi<strong>de</strong>randosua inclusão em três das antologias que critica: Sonetos Cearenses (1938),Coletânea <strong>de</strong> Poetas Cearenses (1952) e A Poesia Cearense no Século XX (1996), organizadasrespectivamente por Hugo Vítor, Augusto Linhares e Assis Brasil.Às vezes quero crer que o fato <strong>de</strong> Américo Facó (1885-1953) ter residido amaior parte <strong>de</strong> sua vida fora do Ceará colaborou para seu notório <strong>de</strong>sconhecimentopelos cearenses. Isto aconteceu com alguns outros poetas, sendo bastanteaqui mencionar Leão <strong>de</strong> Vasconcelos (1898-1965), Edigar <strong>de</strong> Alencar(1901-1993) e Gerardo Mello Mourão (1917-2007). A exemplo <strong>de</strong> Facó,todos escolheram o Rio <strong>de</strong> Janeiro por residência e ali <strong>de</strong>senvolveram açõesculturais <strong>de</strong> indiscutível importância, embora a <strong>de</strong> Leão <strong>de</strong> Vasconcelos tenha-sedado mais no âmbito jurídico.O fato <strong>de</strong> Batista <strong>de</strong> Lima não mencionar o nome <strong>de</strong> Américo Facó, seja porsua inclusão nas três antologias referidas, seja por sua ausência nas <strong>de</strong>mais, sejaainda pela estranheza que configura seu reaparecimento em uma antologia em1996, ausente que vinha do cenário das antologias <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1952, enfim, a nãopercepção <strong>de</strong> Batista <strong>de</strong> Lima traduz pura e simplesmente um <strong>de</strong>sconhecimentogeral em torno do nome e da obra <strong>de</strong> Américo Facó, o que se complica pelaprópria seleção <strong>de</strong> poemas incluídos na antologia <strong>de</strong> 1996 – uma mescla absurda<strong>de</strong> poemas da adolescência (1907/8), posteriormente renegados pelopoeta, com uma única mostra <strong>de</strong> sua maturida<strong>de</strong> (1951).Para muitos, em Fortaleza, Américo Facó é apenas uma mo<strong>de</strong>sta rua nobairro Bela Vista, ao lado da Parquelândia. Exceto pelas antologias acima citadas– <strong>de</strong> menor relevância em relação a outras como Terra da Luz (1966) eLiteratura Cearense (1976), respectivamente sob os cuidados <strong>de</strong> Artur EduardoBenevi<strong>de</strong>s e Sânzio <strong>de</strong> Azevedo –, não há a mínima referência à obra <strong>de</strong>Américo Facó entre nós, cujos versos iniciais – somam aproximadamenteuns 60 poemas – foram publicados em Fortaleza, no Jornal do Ceará, entre1907 e 1908.164


Américo Facó: notas <strong>de</strong> acesso a uma obra perdidaA este respeito, diz-nos Sânzio <strong>de</strong> Azevedo, no artigo “Américo Facó, umSéculo Depois” (Diário do Nor<strong>de</strong>ste, Fortaleza, 03/11/85), que Facó “iniciou apublicação <strong>de</strong> seus poemas, no jornal oposicionista, ao mesmo tempo em que,n’A República, órgão situacionista, Alf. Castro apresentava traduções <strong>de</strong> sonetos<strong>de</strong> Heredia”. Alf. Castro (1873-1926), pseudônimo <strong>de</strong> Alfredo <strong>de</strong> MirandaCastro, era poeta essencialmente parnasiano, sem maior expressivida<strong>de</strong> no cenário<strong>de</strong> nossas letras.Em seu artigo, lembra-nos ainda Sânzio <strong>de</strong> Azevedo, a respeito <strong>de</strong> AméricoFacó, quehavendo tomado parte ativa na vida intelectual cearense nos primeiros anosdo século, eram tão violentos os artigos que redigia no Jornal do Ceará (fundadopor Val<strong>de</strong>miro Cavalcante para fazer oposição ao governo Acioli)que, tendo sofrido uma agressão em consequência <strong>de</strong>sses artigos, foi praticamenteforçado a emigrar, em 1909 ou 1910, como informa Gustavo Barroso(Consulado da China, 1941), que o substituiu no órgão oposicionista eque, por motivos semelhantes, logo <strong>de</strong>ixaria também as terras cearenses.Ressalte-se, como o faz logo a seguir o próprio Sânzio, que tais artigos nãoeram senão os poemas acima referidos. Quanto à agressão, segundo RodolfoTeófilo, em seu Libertação do Ceará (1914), Facó foi <strong>de</strong> fato agredido por policiaisem plena rua.Situemos melhor as duas circunstâncias: acerca da participação <strong>de</strong> Facó naimprensa cearense, nos diz Edigar <strong>de</strong> Alencar (Elogios Acadêmicos, vol. III, 1990)que, “além <strong>de</strong> editoriais, mantinha a coluna humorística diária ‘Olho da Rua’,muito apreciada, não somente pelos gracejos, mas por suas conotações políticas”,lembrando ainda que Facó, “atrevido e exuberante <strong>de</strong> mocida<strong>de</strong>, logo setornaria visado pelo governo do Comendador Nogueira Acioli, um dos maispo<strong>de</strong>rosos oligarcas do Norte”.Já em relação à agressão sofrida por Américo Facó, na referida obra <strong>de</strong> GustavoBarroso po<strong>de</strong>mos ler que, “ao entar<strong>de</strong>cer <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1908,165


Floriano Martinsdois ou três soldados da polícia à paisana <strong>de</strong>ram violenta surra no poeta nasimediações da Praça Marquês do Herval”, indicando ainda que lhe salvou“talvez a vida a intervenção do Capitão do Exército Castelo Branco, moradorna casa da esquina, atraído pelos seus gritos”.Seja como for, a ida para o Rio <strong>de</strong> Janeiro, em 1910, melhor lhe alimenta ainquietu<strong>de</strong> ulterior, permitindo-lhe uma compreensão mais acurada acerca <strong>de</strong>sua própria poesia. No início dos anos 20 já temos notícias suas frequentandoa casa <strong>de</strong> Aníbal Machado, juntamente com Raul Bopp, Mário Pedrosa e MuriloMen<strong>de</strong>s. Ali conheceu Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda e Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Morais,neto, que logo fundariam a revista Estética, publicação situada na segunda fasedo Mo<strong>de</strong>rnismo, que se propunha a reconstruir a cena literária a partir das <strong>de</strong>moliçõesalgo impertinentes provocadas pela iconoclastia da Semana <strong>de</strong> 22.Participa então Américo Facó logo do número inaugural <strong>de</strong> Estética (1924), escrevendoum lúcido ensaio sobre o romancista inglês Joseph Conrad, quemorrera no ano anterior. No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sta década, Facó fundaria duas revistas,Pan (1924) e O Espelho (1930), publicações <strong>de</strong> importância menor se levarmosem conta a proliferação <strong>de</strong> revistas literárias no período.Recor<strong>de</strong>mos com Edigar <strong>de</strong> Alencar algumas <strong>de</strong> suas principais ativida<strong>de</strong>sneste período:Trabalhou com Alcindo Guanabara e Quintino Bocaiúva e colaborouem revistas e jornais. Foi um dos fundadores da empresa <strong>de</strong> notícias Agência<strong>Brasileira</strong>. Exerceu ainda as funções <strong>de</strong> redator <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates do Senado. Aesse tempo assumira nova posição estética, a<strong>de</strong>rindo ao Mo<strong>de</strong>rnismo, emborasem jamais adotar seus exageros. Literariamente sua produção é escassa.Agrippino Grieco observou que o poeta refletia muito e por isso escreveupouco.Da amiza<strong>de</strong> com Jaime Adour da Câmara consolidou-se a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> montaruma agência <strong>de</strong> notícias, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> surgiu, em 1924, a Agência <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> Notícias,a primeira central <strong>de</strong> divulgação jornalística existente no Brasil. Em tre-166


Américo Facó: notas <strong>de</strong> acesso a uma obra perdidacho do livro Putirum (1968), Raul Bopp recorda: “Américo Facó tinha realizado,no Rio, o seu velho projeto <strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r pelo país uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> divulgação<strong>de</strong> notícias”, informando-nos acerca do <strong>de</strong>sdobramento da Agência, já em1927, quando fundava uma sucursal em São Paulo, a ser dirigida por JaimeAdour. Dizia ainda Bopp que logo a Agência conseguira um razoável <strong>de</strong>staquena imprensa paulista, vindo sua se<strong>de</strong> a constituir-se em “um centro <strong>de</strong> reuniões<strong>de</strong> intelectuais e <strong>de</strong> figuras políticas dos mais variados matizes”.Américo Facó tornou-se assim um nome <strong>de</strong>stacado no tocante à articulação<strong>de</strong> assuntos culturais e políticos. A partir da iniciativa da Agência <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong>Notícias passou a colaborar com a revista Fon-Fon, sendo responsável por suapágina literária, e assumiu ainda o cargo <strong>de</strong> diretor da seção <strong>de</strong> enciclopédias edicionários do Instituto Nacional do Livro. Tinha consolidada então umacarreira jornalística, na qual os versos parnasianos da primeira década do séculojá não importavam em absoluto, sem que isto significasse, por outro lado,que houvesse abdicado <strong>de</strong> sua inclinação poética.Em 1946, surpreen<strong>de</strong> com a publicação <strong>de</strong> Sinfonia Negra (Livraria EditoraZelio Valver<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro), livro dado pela crítica como sendo <strong>de</strong> narrativas,mas que na verda<strong>de</strong> se trata <strong>de</strong> uma prosa poética carregada <strong>de</strong> inconfundívelpo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> sugestibilida<strong>de</strong> em suas imagens. Sinfonia Negra retoma e sedimentaa temática já abordada anteriormente por Jorge <strong>de</strong> Lima (Poemas Negros)e Raul Bopp (Urucungo), escritos esses ali pelo final dos anos 20, surpreen<strong>de</strong>ndonão somente pela força imagética como por suas variações rítmicas e o usoentrelaçado <strong>de</strong> prosa poética, relato fabulista e versos brancos.Anos <strong>de</strong>pois, em 1951, teríamos uma cuidadosa edição da JoséOlympio <strong>de</strong> seu livro Poesia Perdida, com ilustrações fascinantes <strong>de</strong> Chin,on<strong>de</strong> o autor apresenta-se já distante da influência inicial do Parnasianismosobre sua obra, mostrando um estilo maduro e próprio, resultante daspredileções simbolistas e do diálogo com seus pares mo<strong>de</strong>rnistas. Em crônicada época, referiu Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> que, “com seu livrobelíssimo, Américo Facó se incorpora à linhagem dos mais altos poetasportugueses e brasileiros”.167


Floriano MartinsNesta mesma crônica, “Poesia Nobre”, posteriormente incluída em Passeios na Ilha(1952), escreveria Drummond: “Américo Facó, letrado do gosto mais seguro, possuidorda língua nacional nas belezas evi<strong>de</strong>ntes como nas ocultas que ela propõe aquem queira escrever, compôs esse livro diferente, que nos redime <strong>de</strong> todos os mausvolumes aparecidos e por aparecer, nossos e alheios”, logo acrescentando que “emseus melhores momentos, a poesia brasileira não atingiu ainda altura superior à <strong>de</strong>staspáginas, que vêm conciliar a sensibilida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna com o espírito clássico”.Américo Facó teve sua poesia algo relacionada com as <strong>de</strong> Gilka Machado(1893-1980) e Raul <strong>de</strong> Leoni (1895-1926). Decerto tal relacionamento nãoconstitui propriamente uma confluência estética <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m escolástica, cabendoaqui observar características tais como uma sensualida<strong>de</strong> na tessitura dasimagens, aliada a um sentido <strong>de</strong> não permitir que a essencialida<strong>de</strong> da formaconstitua um argumento redutor da expressão, um tipo <strong>de</strong> justificativa paraum falseamento do pensamento poético.Fato é que Facó fortaleceu as trincheiras do poema em prosa, rejeitado pelobeletrismo da época e convertido em mera submissão ao prosaico. Tambémcontribuiu com seu sensualismo, que viria a tomar corpo maior na poesia <strong>de</strong>Augusto Meyer ou <strong>de</strong> um Manuel Cavalcanti. E não haverá melhor comentáriosobre a consistência estética <strong>de</strong> sua obra senão a exposição <strong>de</strong>la própria, naíntegra, ao leitor que até então a <strong>de</strong>sconhece, segundo se preten<strong>de</strong> aqui comedição reunida <strong>de</strong> Sinfonia Negra e Poesia Perdida.A título <strong>de</strong> esclarecimentos finais, menciono que a não inclusão dos poemaspublicados no Jornal do Ceará dá-se unicamente em função <strong>de</strong> que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> seu valor – que entendo como sendo mais <strong>de</strong> cunho histórico do que propriamentepoético –, o próprio Américo Facó os rejeitara, certamente que pelaexcessiva impregnação parnasiana em tais versos. Também não incluo aqui,como gostaria, uma seleção <strong>de</strong> seus textos críticos, entre os quais ressalta “Poesiadas Terras do sem Fim” (1951), notável ensaio sobre Cobra Norato, <strong>de</strong> RaulBopp, sem dúvida uma das admiráveis interpretações críticas – cujo outroexemplo seria “Cobra Norato – O Poema e o Mito” (1962), <strong>de</strong> Othon MoacyrGarcia – da obra do autor <strong>de</strong> Urucungo.168


Américo Facó: notas <strong>de</strong> acesso a uma obra perdidaTambém a contragosto, são <strong>de</strong>ixadas aqui algumas lacunas biográficas, porimperativo da própria dificulda<strong>de</strong> em localizar fontes e dados confiáveis. Apropósito, recolho trecho <strong>de</strong> uma carta que me enviou o bibliófilo José BonifácioCâmara, na qual comenta, ao referir-se ao fato <strong>de</strong> Américo Facó haversido “injustamente esquecido”, quemuita gente só sabe da existência <strong>de</strong>le pela ampla divulgação feita na época dofato <strong>de</strong> haver entregue a Lúcia Miguel Pereira os originais <strong>de</strong> Dona Guidinha doPoço, que lhe tinham sido confiados por Antonio Sales, quando voltou aoCeará, salvando assim para a posterida<strong>de</strong> o maior romance cearense.O próprio Facó assina a edição original do romance <strong>de</strong> Oliveira Paiva.Concluo com os agra<strong>de</strong>cimentos indispensáveis à cumplicida<strong>de</strong> explícita evaliosa <strong>de</strong> Sérgio Lima e Jorge Brito, que me puseram em mãos os exemplares<strong>de</strong> Sinfonia Negra e Poesia Perdida, assim como às contribuições, em forma <strong>de</strong> diálogoou <strong>de</strong> cessões <strong>de</strong> dados críticos, <strong>de</strong> Claudio Willer, Antonio Carlos Secchin,Ivan Junqueira, José Santiago Naud, Sânzio <strong>de</strong> Azevedo, Henryk Siewierski,Rodrigo <strong>de</strong> Almeida, Lira Neto e José Bonifácio Câmara.169


Rua da Aurora, Recife.


<strong>Prosa</strong>Um poema <strong>de</strong>Manuel Ban<strong>de</strong>iraEdson Nery da FonsecaCarlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> escreveu em bela crônica sobreAntonio Simões dos Reis que “do bibliófilo ao bibliógrafo a distânciaé variável”; e acrescentou: “alguns nunca a transpõem. Outros vencem-na<strong>de</strong> um salto”. Este é o caso <strong>de</strong> Pedro Corrêa do Lago, conhecidobibliófilo que publicou recentemente mais uma bibliografia monumental.Refiro-me ao volume <strong>de</strong> 707 páginas ilustradas e enca<strong>de</strong>rnado com sobrecapacolorida, Brasiliana Itaú (São Paulo: Capivara, 2009).O livro reproduz, nas páginas 554 e 555, o poema <strong>de</strong> ManuelBan<strong>de</strong>ira “Profundamente”, ilustrado pelo próprio poeta em belaaquarela. O poeta também gostava <strong>de</strong> pintar. O advogado e bibliófiloManuel Portinari Leão possui outro manuscrito aquarelado: o dopoema “José Cláudio”, do livro Belo Belo.O poema “Profundamente” pertence ao terceiro livro <strong>de</strong> Manuel Ban<strong>de</strong>ira,Libertinagem, publicado em 1930. Com este poema ele se inscreve entregran<strong>de</strong>s poetas estrangeiros que recriaram o topo medieval ubi sunt?,como, por exemplo, François Villon e Jorge Manrique. Augusto Meyer eOtto Maria Carpeaux trataram magistralmente do tema. Para o poeta eProfessorEmérito <strong>de</strong>Biblioteconomiada UNB e autor<strong>de</strong> diversos livrosna área, além <strong>de</strong>ensaios sobreGilberto Freyre eManuelBan<strong>de</strong>ira.171


Edson Nery da Fonsecaensaísta gaúcho a pergunta não tem resposta. Mas o pessimista Carpeaux respon<strong>de</strong>u-alembrando a gravura <strong>de</strong> Goya na qual um esqueleto escreveu em sua próprialápi<strong>de</strong> a palavra NADA.Manuel Ban<strong>de</strong>ira escreveu “Profundamente” na casa n. o 53 da Rua do Curvelo,hoje Dias <strong>de</strong> Barros. “Não sei se exagero dizendo que foi na Rua do Curveloque reaprendi os caminhos da infância”, escreveu o poeta; e “Profundamente”é uma recordação <strong>de</strong> “quando tinha seis anos”.A primeira versão apareceu em carta a Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong>1927, cujo manuscrito foi divulgado por Marlene Gomes Men<strong>de</strong>s em sua contribuiçãoà obra coletiva organizada por Telê Porto Ancona Lopez, Manuel Ban<strong>de</strong>ira: Verso eReverso (São Paulo: T. A. Queiroz, s.d.). As diferenças entre o manuscrito e a versãoimpressa mostram a preocupação do poeta com as palavras, fiel à lição <strong>de</strong> Mallarméao pintor Degas: a <strong>de</strong> que o poema não se faz com i<strong>de</strong>ias e sim com palavras.Na primeira versão Manuel Ban<strong>de</strong>ira se refere às “vozes cantigas e risos”que ouvira “ao pé das fogueiras vermelhas”, verso que na versão <strong>de</strong>finitiva ficou“ao pé das fogueiras acesas”; na quinta estrofe ele escreveu: “Quando eutinha seis anos / Não vi o fim da festa <strong>de</strong> S. João / Porque dormi”, versos queficaram mais musicais na versão <strong>de</strong>finitiva: “Quando eu tinha seis anos / Nãopu<strong>de</strong> ver o fim da festa <strong>de</strong> São João / Porque adormeci”.No manuscrito da Brasiliana Itaú o que mais impressiona é a omissão dos seguintesversos, com os quais termina a segunda estrofe: “Apenas <strong>de</strong> vez emquando / O ruído <strong>de</strong> um bon<strong>de</strong> / Cortava o silêncio / Como um túnel”. Certamenteum lapso do poeta, que era muito sensível aos ruídos dos bon<strong>de</strong>s: nocaso, o bon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santa Teresa, cuja parada na estação do Curvelo ele <strong>de</strong>via ouvirda casa n. o 53. Lembre-se, a propósito, que já residindo no Beco dos Carmelitas,Manuel Ban<strong>de</strong>ira registrou, no poema “O Martelo” (da Lira dos Cinquent’anos),o ruído das rodas dos bon<strong>de</strong>s contornando o antigo tabuleiro doLargo da Lapa: “As rodas rangem na curva dos trilhos inexoravelmente”.O que fica <strong>de</strong>stas simples anotações é o que escreveu Jean Cohen: “o poeta époeta não pelo que pensou ou sentiu, mas pelo que disse: não é um criador <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ias, mas <strong>de</strong> palavras. Todo o seu gênio está na invenção verbal”.172


<strong>Prosa</strong>Reflexões sobre a poesiamigrante na ItáliaVera Lúcia <strong>de</strong> Oliveira“Amem o imigrante, porque vocês já foram imigrantes no Egito.”(DEUTERONÔMIO, 10,19)“Aminha pátria é a língua portuguesa”, escreveu o gran<strong>de</strong>poeta Fernando Pessoa; “o meu país é o meu corpo”,afirmou Tahar Lamri, escritor argelino que vive há muitos anos naItália e que escreve em italiano. Para os escritores, a pátria po<strong>de</strong> serum país, uma língua, uma história, o próprio corpo, a memória, a remoçãodo passado e o vazio que <strong>de</strong>riva <strong>de</strong>sse processo e que impõe anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recompor uma nova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> em outro lugar, emoutro idioma. Po<strong>de</strong> ser também uma mala, com poucos objetos salvos<strong>de</strong> uma vida anterior, que eles arrastam como as pare<strong>de</strong>s da alma,como caracóis levando nas costas suas casas.Que tipo <strong>de</strong> relação instauram os poetas e os escritores nôma<strong>de</strong>s,migrantes ou mesmo exilados com os lugares e com as línguas emque vivem? Tais questões, também tão ligadas ao meu percurso poé-É Doutora emLínguas e LiteraturasIbéricas eIbero-Americanaspela Università <strong>de</strong>gliStudi di Palermo(Itália). EnsinaLiteratura Portuguesae <strong>Brasileira</strong> naUniversità <strong>de</strong>gli Studidi Perugia (Itália).Organizou antologias<strong>de</strong> vários poetasbrasileiros eportugueses.Entre os livrospublicados, <strong>de</strong>poesia e ensaios,estão Vennà C’anno,Fara, 2005; Storienella Storia:Le Parabole diGuimarães Rosa(ensaio), 2005;No Coração da Boca(poesia), 2006.173


Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveiratico entre duas línguas, e sobre as quais me <strong>de</strong>brucei prece<strong>de</strong>ntemente em outrosensaios, serão aqui brevemente focalizadas na literatura produzida por autoresestrangeiros que escolheram a língua italiana como língua literária, emparte <strong>de</strong> suas obras ou em toda a obra.A Itália, país que viveu um consistente movimento migratório, com milhões<strong>de</strong> italianos que se radicaram em muitos países, inclusive no Brasil (calcula-seque há 60 milhões <strong>de</strong> indivíduos <strong>de</strong> origem italiana fora da Itália), vive hojeum processo inverso, ou seja, o <strong>de</strong> uma nação que se tornou meta <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong>número <strong>de</strong> imigrantes, alguns dos quais adotaram a língua italiana como língualiterária e poética. Tais escritores são geralmente <strong>de</strong>finidos pela crítica italianacomo “escritores migrantes” . 1Para a estudiosa Franca Sinopoli, o escritor migrante é “aquele que mudapátria e cultura, rejeitando os vínculos condicionantes do ambiente <strong>de</strong> origeme transformando em tema, em suas obras, a recusa da pátria se<strong>de</strong>ntária, constituídapor vínculos <strong>de</strong> sangue, solo, língua e cultura”. 2 E afirma ainda que serianecessária, para a abordagem <strong>de</strong> tal produção, não tanto uma hiperespecializaçãodos estudos <strong>de</strong>dicados à literatura italiana, no caso <strong>de</strong>sse país, mas umamudança muito mais profunda e radical, <strong>de</strong> horizontes, <strong>de</strong> perspectivas e <strong>de</strong>pressupostos críticos, que consi<strong>de</strong>rasse tal fenômeno <strong>de</strong>ntro dos diversos cruzamentose enfoques da literatura europeia da diáspora, ou seja, como um patrimôniotransnacional característico dos diversos países europeus. 3 Os própriosestudos comparatísticos interculturais se rearticulariam, assim, <strong>de</strong> formaa levar em conta textos literários provenientes <strong>de</strong> zonas e <strong>de</strong> cânones literáriosmuito distintos e diversificados.Na Itália, no entanto, muitos dos próprios autores englobados pela crítica emtal categoria, “literatura da migração”, que atesta a existência <strong>de</strong> um movimento1 Para se ter uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> quanto é amplo e articulado o fenômeno na Itália, ver a Banca <strong>de</strong> dados on-lineBASILI, organizada pelo Departamento <strong>de</strong> Italianística da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roma La Sapienza: .2 SINOPOLI, F. “Postfazione – Scrivere nella Lingua <strong>de</strong>ll’Altro”. In: LECOMTE, Mia (a cura di). AiConfini <strong>de</strong>l Verso – Poesia <strong>de</strong>lla Migrazione in Italiano. Firenze: Casa Editrice Le Lettere, 2006. pp. 219-220.3 Ibi<strong>de</strong>m.174


Reflexões sobre a poesia migrante na Itálialiterário rico e articulado, rejeitam-na, <strong>de</strong>nunciando uma marginalização implícitano termo, já que separa essa produção daquela consi<strong>de</strong>rada ortodoxamenteitaliana. Com efeito, o termo não po<strong>de</strong> e não <strong>de</strong>ve indicar uma diminuzio em relaçãoà literatura italiana em geral, como se tais autores <strong>de</strong>vessem a todo momentoconfirmar a própria maestria no uso do novo idioma, além do fato <strong>de</strong> que qualquerinovação formal ou violação do código efetuada por eles é vista, muitas vezes,não como uma luta corpo a corpo com a palavra, no esforço <strong>de</strong> afinamentoda forma, mas como imperícia no manejo do idioma <strong>de</strong> Dante.Uma outra objeção que po<strong>de</strong>ríamos fazer a tal <strong>de</strong>nominação está no fato <strong>de</strong>que generaliza experiências e obras <strong>de</strong> uma diversida<strong>de</strong> intrínseca. De fato, otermo “migrante” não distingue experiências tão diferentes como a do exilado,a do refugiado, a do expatriado ou a do emigrado. Essa distinção é importante,pois <strong>de</strong>la <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a configuração que certos temas vão assumir na obra <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadosautores. É evi<strong>de</strong>nte que o exilado vai incorporar em sua produçãoo estigma, como afirma Edward W. Said, <strong>de</strong> ser um outsi<strong>de</strong>r. Por outro lado, osexpatriados vivem voluntariamente em um país estrangeiro, por breves ou longosperíodos, e os motivos po<strong>de</strong>m ser os mais diversos, como o do estudo, queé em geral uma experiência positiva. Quanto ao imigrado, ele tem status ambíguo,<strong>de</strong>ixa o país por uma sua escolha, mas vive frequentemente o mesmo penoso<strong>de</strong>sarraigamento do exilado.Segundo Said, o exilado tem obsessão pela sua condição, e tal sentimento<strong>de</strong>termina a sua vida e obra. Exemplos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s escritores exilados, marcadospelo sentimento <strong>de</strong> orfanda<strong>de</strong> e solidão, são Dante, Joyce, Conrad,Adorno. 4 A esses po<strong>de</strong>remos acrescentar muitos outros, como Iosif Brodskij,Günter Grass, Samuel Beckett, Eugene Jonesco, Ezra Pound, Paul Celan,Filippo Marinetti e Giuseppe Ungaretti e, no âmbito da língua portuguesa,po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong> alguma forma englobar autores como Camilo Pessanha, FernandoPessoa, Jorge <strong>de</strong> Sena, Murilo Men<strong>de</strong>s, Clarice Lispector e até Gui-4 Cf. SAID, E. W. “Riflessioni sull’Esilio”. Trad. <strong>de</strong> Stefania De Petris. In: Scritture Migranti – Rivista di ScambiInterculturali. Bologna: Dipartimento di Italianistica <strong>de</strong>ll’Università di Bologna; Cooperativa LibrariaUniversitaria Editrice Bologna, 2008. pp. 127-141 (135).175


Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveiramarães Rosa. O que une tais escritores é o fato <strong>de</strong> serem transnacionais, plurilíngues,nôma<strong>de</strong>s, e também o fato <strong>de</strong> que cruzaram diversas tradições literáriase culturais, inovando talvez mesmo por este motivo, pois a pluralida<strong>de</strong>cultural proporciona a experiência da alterida<strong>de</strong>, que marca e transformaqualquer indivíduo.A Itália não tem um passado colonial significativo, embora tenha feito muitoesforço para obter colônias. Teve, por um breve período, três na África, aEritreia, a Somália e a Líbia, e, na Europa, a Albânia. Tal tentativa <strong>de</strong> expansãocolonial, porém, fracassou com a <strong>de</strong>rrocada do regime fascista, <strong>de</strong>pois da SegundaGuerra Mundial. Ao contrário <strong>de</strong> outros países europeus, ela conviveurelativamente pouco com culturas diferentes e até opostas à sua, em que outrasnações adotassem a sua língua, utilizando-a inclusive para a construção <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s híbridas e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, ou com literaturas geradas a partir domesmo código linguístico, como ocorreu com outros países, como Portugal,Espanha, Inglaterra, França.O caso italiano é interessante justamente porque os indivíduos <strong>de</strong> origem estrangeiraque produzem e publicam obras em italiano não têm, na maior parte doscasos, ligação com esse país em função <strong>de</strong> um passado colonial. Assim, afirma justamenteFranca Sinopoli, não po<strong>de</strong>mos falar propriamente <strong>de</strong> literatura pós-colonialem língua italiana, como no caso das <strong>de</strong>mais línguas e literaturas citadas acima.5 O próprio fenômeno das culturas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s múltiplas, que coexistem einteragem entre si, às vezes provocando atritos ou mesmo fundindo-se <strong>de</strong> formaoriginal, é algo <strong>de</strong> relativamente novo na Itália, ligado aos fluxos migratórios queviram esse país, sobretudo nas últimas décadas, ao centro <strong>de</strong> um doloroso tráfico5 SINOPOLI, F. “Postfazione – Scrivere nella Lingua <strong>de</strong>ll’Altro”, op. cit., p. 216. De produção literáriapós-colonial em italiano po<strong>de</strong>-se falar no caso <strong>de</strong> alguns autores originários do ex-império colonial daItália, intelectuais que receberam instrução escolar em italiano nos respectivos países <strong>de</strong> origem, como é ocaso <strong>de</strong> Garane Garane, que nasceu na Somália; Habte Wel<strong>de</strong>mariam, nascido na Eritreia; GabriellaGhermandi, originária <strong>de</strong> Addis Abeba; ou mesmo Cristina Ali Farah, nascida na Itália, mas <strong>de</strong> paisomaliano e mãe italiana. Cf. MUMIN AHAD, A. “Corno d’Africa. L’Ex-Impero Italiano”. In: GNISCI, A.(a cura di). Nuovo Planetario Italiano – Geografia e Antologia <strong>de</strong>lla Ltteratura <strong>de</strong>lla Mgrazione in Italia e in Europa., op. cit.,pp. 241-293.176


Reflexões sobre a poesia migrante na Itália<strong>de</strong> seres humanos, capturados pela re<strong>de</strong> da criminalida<strong>de</strong> organizada, que exploramultidões <strong>de</strong> pessoas em busca <strong>de</strong> uma vida melhor ou em fuga <strong>de</strong> guerras, carestias,discriminações, perseguições étnicas e políticas.É claro que há, na Itália, a questão das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s regionais distintas, <strong>de</strong>ntrodo panorama nacional, on<strong>de</strong> muitas vezes cida<strong>de</strong>s próximas possuem costumese mesmo dialetos diferentes, mas tais varieda<strong>de</strong>s fazem parte da realida<strong>de</strong><strong>de</strong> tantos países, como, por exemplo, a Bélgica, a Espanha e mesmo o Brasil.Não é <strong>de</strong>ssas diferenças que falo aqui.O século XX será talvez conhecido como o das migrações contínuas: nuncase assistiu antes a um tal movimento <strong>de</strong> massas <strong>de</strong> populações em fuga <strong>de</strong> todosos guetos do mundo, da miséria das periferias, do isolamento dos muros,das fronteiras que separam os que têm o necessário e o supérfluo dos que foram<strong>de</strong>spojados <strong>de</strong> tudo, até da própria dignida<strong>de</strong>. Como outros países europeus,a Itália foi atingida por esta re<strong>de</strong> e por este fluxo humano em movimento,e o Mar Mediterrâneo é um gran<strong>de</strong> cemitério <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> clan<strong>de</strong>stinosque ali acharam sua sepultura, sem um nome, uma foto, uma história, umatumba para que os parentes possam pranteá-los.Erri <strong>de</strong> Lucca, escritor entre os maiores e mais intensos da literatura italianacontemporânea, traça, no livro Solo Andata, os contornos <strong>de</strong>sse drama, pondo-sena pele <strong>de</strong> tantos excluídos, seres <strong>de</strong>spojados <strong>de</strong> um presente e <strong>de</strong> um futuro:Scacciati dalla terra, siamo il seme sputato il più lontanodall’albero tagliato, fino ai campi <strong>de</strong>l mare.Servitevi di noi, giacimento di vita da sfruttare,pianta, metallo, mani, molto più di una forza da lavoro.Nostra patria è la cenere fresca di vecchi e di animali,è partita nel vento prima di noi, sarà arrivata già.Non avete mai visto migrar patrie? Noi <strong>de</strong>ll’Africa sì,s’alzano con il fumo <strong>de</strong>gli incendi, si spargono a concime. 6 1776 DE LUCA, E. Solo Andata – Righe che Vanno Troppo Spesso a Capo. Milano: Feltrinelli, 2005. p. 25.


Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveira[Expulsos da terra, somos a semente cuspida distanteda árvore abatida, até aos campos do mar.Sirvam-se <strong>de</strong> nós, jazidas <strong>de</strong> vida para explorar,planta, metal, mãos, muito mais que simples força <strong>de</strong> trabalho.Nossa pátria é a cinza fresca <strong>de</strong> velhos e animais,partiu com o vento antes <strong>de</strong> nós, já terá chegado.Nunca viram pátrias migrar? Nós, os da África, vimos,se levantam com a fumaça dos incêndios, se espalham como adubo.]Além da viagem em si <strong>de</strong> tantos <strong>de</strong>sesperados, muito há que se dizer tambémsobre o difícil processo <strong>de</strong> aclimatação e adaptação à nova terra dos queconseguem chegar e que, nesse belo país (Italia è uma parola aperta, piena d’aria [Itáliaé uma palavra aberta, cheia <strong>de</strong> ar], afirma De Luca 7 ), tentam criar novas raízes.Focalizar a literatura que nasce da migração é tocar alguns dos pontos nevrálgicos<strong>de</strong>ssa problemática, pois, como afirma o estudioso Armando Gnisci,um dos pioneiros em tais estudos:Il narratore e il poeta diventano la barca che segnala il senso sull’orlo <strong>de</strong>ll’abisso, la strisciadisegnata intorno alla tempesta <strong>de</strong>l trasloco, la canzone che risuona nel buco opaco <strong>de</strong>lla disperazione.Il poeta-narratore trova le parole ed ‘esprime’ durante il transito pericoloso. [...] Ilpoeta porta e significa la presenza e la forza <strong>de</strong>lla parola, e il suo far<strong>de</strong>llo, che compone luce eopaco, voce e scrittura. 8[O narrador e o poeta tornam-se o barco que indica significados que há aténas bordas do abismo, as ondas <strong>de</strong>lineadas ao redor da tempesta<strong>de</strong> da viagem,7 Ibi<strong>de</strong>m,p.7.8 GNISCI, A. “Scrivere nella Migrazione tra due Secoli”. In: GNISCI, A. (a cura di). Nuovo Planetario Italiano –Geografia e Antologia <strong>de</strong>lla Letteratura <strong>de</strong>lla Migrazione in Italia e in Europa. Troina: Città Aperta Edizioni, 2006.pp. 13-39 (18).178


Reflexões sobre a poesia migrante na Itáliaa canção que ressoa na fenda opaca do <strong>de</strong>sespero. O poeta-narrador encontraas palavras certas e as exprime durante a passagem perigosa. [...] O poeta trazconsigo e significa, ele mesmo, a presençaeaforçadapalavra, o seu peso, quecompõe luz e opacida<strong>de</strong>, voz e escrita.]Se os políticos italianos, que votaram e aprovaram a recente lei que regulamentaaentradaeapermanência<strong>de</strong>estrangeirosnaItália,a qual <strong>de</strong>nominaram,com um certo cinismo e cruelda<strong>de</strong>, Pachetto sicurezza, se lembrassem do própriopassado <strong>de</strong> imigrantes ou lessem algumas páginas <strong>de</strong>ssa literatura, tomariamconsciência do fato <strong>de</strong> que ninguém <strong>de</strong>ixa a própria terra sem um motivo forte eque o sentimento <strong>de</strong> enraizamento é um dos mais intensos e intrínsecos da almahumana. Definir qualquer imigrante como um clan<strong>de</strong>stino e criminá-lo pelosimples fato <strong>de</strong> que precisou <strong>de</strong>ixar a sua terra é renegar a história <strong>de</strong>sse país e renegartambém as bases <strong>de</strong> convivência da socieda<strong>de</strong> italiana, <strong>de</strong> matriz hebraico-cristã,afeita, pois, à importância ética, religiosa e até mesmo simbólica <strong>de</strong> termose conceitos como migração, peregrinação, <strong>de</strong>portação e exílio.Retomando o tema inicial, vemos que, com o passar do tempo e o assomarao mundo das letras <strong>de</strong> um número cada vez mais consistente <strong>de</strong> escritores nôma<strong>de</strong>s,bem como o interesse que tal literatura híbrida <strong>de</strong>spertava a nível mundial,também na Itália alguns estudiosos passaram a se interessar pela questão,<strong>de</strong>scobrindo em casa própria que escritores provenientes <strong>de</strong> vários países, e, àsvezes, com línguas <strong>de</strong> maior difusão do que o italiano, utilizavam esse idiomaem suas obras.O início <strong>de</strong> uma literatura produzida por autores migrantes na Itália éapontado no começo da década <strong>de</strong> 90, embora já antes escritores <strong>de</strong> várias nacionalida<strong>de</strong>stenham publicado seus livros nesse país, sem, no entanto, <strong>de</strong>spertaremmaior curiosida<strong>de</strong> por parte dos críticos. Ao contrário, havia uma certa<strong>de</strong>sconfiança e, às vezes, até prevenção quanto a essa produção, sobretudo emrelação aos autores que se autotraduziam.A crítica indica algumas fases na produção literária da migração: uma primeira,<strong>de</strong> testemunho, realizada com a ajuda <strong>de</strong> um intermediário, conhecedor179


Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveiratanto da língua <strong>de</strong> origem quanto da língua italiana; uma segunda fase, na qualse verifica uma maturação nesse processo <strong>de</strong> aquisição linguística profunda,com autores que se exprimem em italiano como em suas próprias línguas maternas;uma terceira fase, em que do memorialismo autobiográfico se passa aoscontos e romances. Alguns <strong>de</strong>ntre os últimos, publicados por editores importantes,revelaram-se um fenômeno editorial que surpreen<strong>de</strong>u a todos, como,por exemplo, os livros Lasciami Andare, Madre (A<strong>de</strong>lphi, 2001), <strong>de</strong> Helga Schnei<strong>de</strong>r,ou Sognando Palestina (Fabri Editori, 2002), <strong>de</strong> Randa Ghazy, ou aindaScontro di Civiltà per um Ascensore a Piazza Vittorio (Edizioni e/o, Roma, 2006), <strong>de</strong>Amara Lakhous, que ficaram várias semanas na lista dos mais vendidos e foramtraduzidos para várias línguas.Muitas das gran<strong>de</strong>s editoras italianas, como Feltrinelli, Baldini & Castoldi,Bompiani, Laterza, Einaudi, já publicaram autores migrantes, mas esporadicamente,sem uma verda<strong>de</strong>ira política intercultural ou mesmo coleções específicas<strong>de</strong>dicadas a tal tema. São as editoras menores que reservam maior espaçopara os novos autores, como Luppeti, Besa, Edizioni Lavoro, Fara, Ediarco,Edizioni e/o e outras. 9 Destas, um número ainda menor aceita textos poéticos,como Fara, que é uma das pioneiras neste campo e que tem feito um bomtrabalho <strong>de</strong> divulgação poética, também <strong>de</strong> jovens autores italianos.Mia Lecomte, uma das estudiosas da literatura da migração, afirma que a produçãopoética se processou <strong>de</strong> forma mais lenta e que só agora começam a se <strong>de</strong>linearalgumas figuras marcantes, com vozes <strong>de</strong>finidas e <strong>de</strong> incontestável qualida<strong>de</strong>.10 Discordo em parte com tal afirmação, pois o fato <strong>de</strong> que só agora público ecrítica comecem a notar alguns poetas <strong>de</strong> valor <strong>de</strong>corre da pouca importância quese dá, em geral na Itália, a esse gênero literário, relegado quase sempre a segundoplano, tanto pelas editoras quanto pelos estudiosos <strong>de</strong> literatura, o que não querdizer que não encontremos bons poetas que já publicassem antes <strong>de</strong> tal data.9 Cf. CAMILOTTI, S. “L’Editoria Italiana <strong>de</strong>lla Letteratura <strong>de</strong>lla Migrazione”. In: GNISCI, A. (a cura di). NuovoPlanetario Italiano…, op. cit., pp. 383-391.10 Cf. LECOMTE, M. (a cura di). Ai Confini <strong>de</strong>l Verso – Poesia <strong>de</strong>lla Migrazione in Italiano. Firenze: CasaEditrice Le Lettere, 2006. p. 5.180


Reflexões sobre a poesia migrante na ItáliaUm elemento interessante que caracteriza quase todos esses autores e queos leva a uma aquisição rápida e exímia da língua italiana é a alta escolarizaçãoque têm: a maior parte <strong>de</strong>les, apesar <strong>de</strong> exercer, às vezes, ativida<strong>de</strong>s humil<strong>de</strong>s,tem diploma universitário e muitos falam diversas línguas.Talvez <strong>de</strong>vamos nos questionar sobre o motivo que leva os escritores migrantesa adotarem o italiano em suas obras. Para muitos <strong>de</strong>les, esse idioma parecerepresentar um espaço <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, no qual é possível renascer com umanova i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, sem anular a prece<strong>de</strong>nte, mas a ela acrescentando elementosque a transformam e enriquecem. A escolha do italiano é feita em absoluta liberda<strong>de</strong>,e não se trata <strong>de</strong> uma escolha estratégica, feita em função <strong>de</strong> uma maiorpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> penetração no mercado internacional, pois vários <strong>de</strong>lestêm línguas maternas <strong>de</strong> maior difusão no mundo.Em entrevistas, ensaios, artigos e textos literários, muitos <strong>de</strong>sses autores, refletindosobre o próprio percurso, <strong>de</strong>monstram uma excepcional consciênciados processos psicológicos que <strong>de</strong>terminam, em indivíduos multilíngues, ouso <strong>de</strong> uma ou <strong>de</strong> outra língua na criação <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte.António Osório, poeta português bilíngue, cuja mãe é italiana, fato que olevou a passar longos períodos da infância na Itália, afirma, a propósito da suarelação com o italiano:Aliás, eu tinha sempre comigo duas palavras, a portuguesa e a italiana, vizinhasmas ciosas <strong>de</strong> si, exigentes e qualquer <strong>de</strong>las inconciliável: esse era omeu segredo [...] e, às vezes, infortúnio. [...] Basta-me o italiano para evocarsilenciosamente os meus parentes da mão esquerda, e não ter remorsos <strong>de</strong>ser diferente <strong>de</strong>les, e ainda <strong>de</strong> não dispensar a outra terra, Florença. As línguassão <strong>de</strong>pois da vida o milagre maior; a continuação das estações na nossaboca e na nossa alma: o segredo fecundo dos humanos. 11No caso <strong>de</strong> António Osório, sua língua materna e mesmo literária é o português,pois ele afirma nunca ter conseguido, em italiano, a mesma fluência11 OSÓRIO, A. “Lição <strong>de</strong> Chinês”. In: Torno con te a Ulisse. A cura di Guia Boni, Roma: Edizioni Empiria,2009. pp. 122-123.181


Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveiraque em português, razão pela qual, segundo ele, “não é dado ter duas línguasmaternas. A da pátria conta mais que a da mãe”. 12Outros autores, entre os quais po<strong>de</strong>mos citar Helga Schnei<strong>de</strong>r e Julio MonteiroMartins 13 , escritores <strong>de</strong> sucesso na Itália, instauram com o novo idioma umarelação tão forte que começam, conscientemente ou não, a “esquecer” a línguamaterna. Essa remoção é por vezes percebida e até <strong>de</strong>scrita por muitos <strong>de</strong>les:Se tu mi domandi se oggi l’Italiano è la mia seconda lingua, io ti rispon<strong>de</strong>rò quello che per meè l’ovvio: che l’Italiano è invece la mia prima lingua. Perché prima lingua è quella in cui lo scrittorescrive, ma non solo, in cui l’uomo che fa il mestiere di scrittore sogna, si arrabbia, dice unaparolaccia quando inceppa in un sasso, balbetta per se stesso parole “innamorate” che avrebbe<strong>de</strong>tto a certe donne amate proprio in quella lingua. È la lingua <strong>de</strong>i loro figli, che diventano i loromaestri. Così, a mio parere, la prima lingua non è la lingua <strong>de</strong>lla nascita, ma la lingua <strong>de</strong>llavita, la lingua <strong>de</strong>ll’unico tempo visibile e palpabile: il tempo presente, l’unico punto accessibile <strong>de</strong>lflusso <strong>de</strong>lla vita. La lingua <strong>de</strong>i ricordi non può essere più la prima lingua, così come non lo saràla lingua <strong>de</strong>i progetti, <strong>de</strong>i piani <strong>de</strong>l futuro, progetti di spostamenti. Dunque, niente è più naturaleper me che scrivere in Italiano. Scrivo nella mia lingua. Punto e basta 14 .[Se você me pergunta se hoje o italiano é minha segunda língua, respon<strong>de</strong>reidizendo o que para mim é óbvio: que o italiano é minha primeira língua.Porque a primeira língua é aquela em que o escritor escreve, mas é tambémaquela em que o homem que exerce a profissão <strong>de</strong> escritor sonha, temraiva, diz um palavrão quando tropeça em uma pedra, balbucia para si mesmopalavras “apaixonadas” que po<strong>de</strong>ria ter dito a certas mulheres amadasnessa mesma língua. É a língua dos seus filhos, que se tornam os seus mestres.Assim, na minha opinião, a primeira língua não é a do nascimento, mas12 Ibi<strong>de</strong>m.13 Ver, a tal propósito, o meu ensaio “O Lugar e a Língua”. In: Revista <strong>de</strong> Italianística, Departamento <strong>de</strong><strong>Letras</strong> Mo<strong>de</strong>rnas, Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, <strong>Letras</strong> e Ciências Humanas, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, n.XIV, 2006. pp. 97-114.14 MONTEIRO MARTINS, J. “Il Brusio <strong>de</strong>l Mondo”. In: BREGOLA, Davi<strong>de</strong>. Da qui Verso Casa, KúmáLettere Migranti, 2002. pp. 104-127 (116).182


Reflexões sobre a poesia migrante na Itáliaa língua da vida, a língua do único tempo visível e palpável: o tempo presente,o único ponto acessível do fluxo da vida. A língua das recordações nãopo<strong>de</strong> ser mais a primeira língua, assim como não será mais a língua dos projetos,das metas do futuro, dos planos <strong>de</strong> viagens. Portanto, nada para mimé mais natural do que escrever em italiano. Escrevo na minha língua. Pontofinal.]Tais autores parecem consi<strong>de</strong>rar como fundamental a dimensão do presente,em que o italiano é o código pre, embora, como para Helga Schnei<strong>de</strong>r, quetem uma experiência <strong>de</strong> relação trágica com o passado e com a figura materna,a qual abandonou a família para seguir as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> Hitler durante a SegundaGuerra Mundial, o passado retorne com frequência na nova língua. Nessecaso, o italiano é também o código em que ela reelabora o abandono e a inexistência<strong>de</strong> uma relação com a figura da mãe, que passa pela negação da línguamaterna, base <strong>de</strong> tal relação. O italiano para ela substituiu a língua nativa e setornou a primeira língua da interiorida<strong>de</strong>, em que foi possível reconstruir umanova relação dialógica com o mundo.Outro poeta, o holandês Arnald <strong>de</strong> Vos, afirma que <strong>de</strong>scobriu na língua italianaum concentrado <strong>de</strong> energias e forças que o levam à palavra e à escrita porqueessa língua o ajudou a <strong>de</strong>senvolver a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouvir e <strong>de</strong> se relacionarcom o outro, capacida<strong>de</strong> fundamental não só na vida quotidiana, mas tambémna literatura.Se tantas são as respostas dadas pelos autores migrantes 15 , já que diversa é apercepção <strong>de</strong> como se verifica o processo <strong>de</strong> assimilação e, às vezes, <strong>de</strong> substituição<strong>de</strong> um código pelo outro, muitas outras questões relevantes solicitam ointeresse do estudioso <strong>de</strong>sta literatura híbrida, como, por exemplo, a dos temasrecorrentes e a das características estilísticas <strong>de</strong>ssa produção.15 Cito aqui apenas algumas, mas tantas outras po<strong>de</strong>m ser encontradas em entrevistas e <strong>de</strong>poimentospublicados em vários sites e, sobretudo, em dois volumes organizados por Davi<strong>de</strong> Bregola, Da qui VersoCasa, Roma, Edizioni Interculturali, 2002, e Il Catalogo <strong>de</strong>lle Voci – Colloqui com Poeti Migrantii, Isernia,Cosmo Ianone Editore, 2005.183


Vera Lúcia <strong>de</strong> OliveiraUm elemento importante da poesia migrante, bem evi<strong>de</strong>nciado por MiaLecomte no ensaio que prefacia o livro Ai Confini <strong>de</strong>l Verso, publicado em 2006,antologia que, diga-se <strong>de</strong> passagem, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> fora muitas vozes, é, como afirmaa estudiosa, “l’alto grado di eticità, ancorato alla storia, di cui, si fa portatrice” 16 [o altograu <strong>de</strong> ética, ancorada à História, <strong>de</strong> que se faz porta-voz]. Tal poesia caracteriza-se,pois, pela ligação, consciente e responsável, que tem com a realida<strong>de</strong> ecom a História, tanto pessoal quanto coletiva, <strong>de</strong> um tempo em que comunida<strong>de</strong>se povos inteiros se <strong>de</strong>slocam <strong>de</strong> um lugar para outro em busca <strong>de</strong> melhorescondições <strong>de</strong> vida:Quello che subito balza agli occhi, al di là <strong>de</strong>lle differenti i<strong>de</strong>ntità geografiche <strong>de</strong>i poeti, è lasua “necessità”: un vincolo carnale coi significati che arrivano di conseguenza con la violenza<strong>de</strong>lle esperienze reali. La sua forza <strong>de</strong>riva dalla doppia componente <strong>de</strong>lla migrazione – il doloree la speranza, viva, di rinascita – che conferiscono appunto fisicità e potenza al verso”. 17[O que salta logo aos olhos, para além das diferentes i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s geográficasdos poetas, é a pregnância [<strong>de</strong>ssa literatura]: um vínculo carnal com ossignificados que chegam, assim, com a violência das experiências reais. Aforça <strong>de</strong>les <strong>de</strong>riva da dupla componente da migração – o sofrimento e a esperança,viva, <strong>de</strong> renascer – que confere, justamente, concretu<strong>de</strong> e potênciaao verso.]Seria, portanto, tal componente e mesmo substância incan<strong>de</strong>scente e dolorosadas experiências concretas a <strong>de</strong>terminar o elevado grau ético <strong>de</strong>sse lirismo, euma urgência, uma energia e uma consciência do papel lenitivo e salvífico da poesia,além da exigência <strong>de</strong> dar sentido a cada momento, <strong>de</strong> encarnar sentimentos,acontecimentos, encontros e <strong>de</strong>sencontros, gestos que se per<strong>de</strong>riam para sempre,tanto do passado quanto do presente, em um novo código linguístico, que se16 LECOMTE, M., op. cit., p. 8. Justamente por ter <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> fora, por exigências editoriais, tantospoetas, Mia Lecomte se apresta a organizar um segundo volume <strong>de</strong>ssa antologia.17 Ibi<strong>de</strong>m.184


Reflexões sobre a poesia migrante na Itáliaimpregna <strong>de</strong> uma força e <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> que falta, por vezes, à própria poesiaitaliana contemporânea, como sublinham muitos estudiosos.A componente dolorosa <strong>de</strong> tal produção está ligada à experiência da migração,que muitos <strong>de</strong>stes autores vivem por imposição econômica, política oupor outros motivos. Afirma, <strong>de</strong> fato, Edward W. Said que, apesar da aura àsvezes romântica e quase heroica com que se consi<strong>de</strong>ram, nas artes e na literatura,o exílio e a figura do exilado, o exílio é uma experiência permanente e insanável<strong>de</strong> fratura, <strong>de</strong> perda e <strong>de</strong> abandono, uma espécie <strong>de</strong> morte em vida: “I sucessi<strong>de</strong>ll’esilio sono permanentemente inficiati dalla perdita di qualcosa che ci si è lasciati persempre alle spale”. 18 [Os sucessos do exílio são permanentemente invalidados pelaperda <strong>de</strong> algo que se <strong>de</strong>ixou para sempre para trás].O fato <strong>de</strong> que se consiga ver algo <strong>de</strong> positivo em tal experiência humanatraumática se <strong>de</strong>ve ao papel e ao trabalho <strong>de</strong> poetas e escritores:Questi e molti altri poeti e scrittori in esilio restituirono dignità a una condizione giuridicamentecreata per negare dignità – negare un’i<strong>de</strong>ntità alle persone. Dal loro esempio appareevi<strong>de</strong>nte che per concentrarsi sull’esilio come pena politica contemporanea, si <strong>de</strong>bbano mappareterritori di esperienza che vanno al di là di quelli tracciati dalla letteratura <strong>de</strong>ll’esilio in sé. 19[Estes e muitos outros poetas e escritores em exílio restituíram dignida<strong>de</strong>a uma condição juridicamente criada para negar dignida<strong>de</strong> – negar umai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> às pessoas. Pelo exemplo <strong>de</strong>les, é evi<strong>de</strong>nte que, para concentrar-sesobre o exílio como pena política contemporânea, se <strong>de</strong>vem mapearterritórios <strong>de</strong> experiências que vão muito além dos traçados pela literaturado exílio em si.]Ora, dissemos no início que os escritores migrantes, com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>re<strong>de</strong>finir uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, que é complexa e híbrida, constroem um novo tem-18 SAID, E. W. “Riflessioni sull’Esilio”, op. cit., p.127. Todas as traduções, quando não indicadodiversamente, são <strong>de</strong> minha autoria.19 SAID, E. W., op. cit., p. 129.185


Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveirapo e espaço, uma nova casa, inventam uma pátria em que seja possível <strong>de</strong> novoviver. Às vezes essa pátria é a língua da infância, que lutam para não per<strong>de</strong>r; àsvezes é a língua que a custo interiorizam, como se fosse possível nascer <strong>de</strong> novoe dar forma à realida<strong>de</strong> com um outro verbo. O senso <strong>de</strong> estranhamentoser-lhes-á para sempre inerente e intrínseco, embora, não nos esqueçamos, osentimento <strong>de</strong> estranhamento é congênito a todo artista e escritor. Tomandoemprestado à escritora brasileira Marina Colasanti o belo título do seu últimolivro, Passageira em Trânsito 20 , po<strong>de</strong>mos afirmar que todo escritor, todo poeta éum “passageiro em trânsito”, pois a literatura é uma viagem, um caminho verticalao coração das coisas e da vida. A condição do migrante é propícia, entreoutras coisas, ao nascimento da poesia, mas não garante que todo migrantepossa ser um escritor ou um poeta e, sobretudo, que o possa ser <strong>de</strong> forma original.Tantas são as coor<strong>de</strong>nadas que se <strong>de</strong>vem cruzar para que se verifique omilagre da poesia, como nos recordou emocionado Alberto Moravia, a propósitoda morte trágica <strong>de</strong> Pasolini, afirmando que <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s poetas, como Pasolini,nasciam não mais do que um ou dois em cada século.Uma outra característica da poesia migrante, ligada ao que foi dito acima, éo fato <strong>de</strong> cada escritor inventar o seu percurso em solidão. Não há parâmetros,poéticas e cânones com os quais se confrontar. Cada um tem sua história, suabagagem <strong>de</strong> rupturas e perdas, suas línguas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s superpostas, suas viagens,novos amores e novos <strong>de</strong>stinos, tudo combinado <strong>de</strong> forma completamentediferente <strong>de</strong> autor para autor. Não há padrões ou critérios seguros, nãohá um gênero predominante que <strong>de</strong>fina tal literatura, e isso produz insegurançae incerteza nos autores e <strong>de</strong>sinteresse por parte da crítica, que não sabe on<strong>de</strong>enquadrá-los. A tal propósito, Theodor W. Adorno, outro intelectual que assumiua perene condição do migrante, afirma que todo intelectual, na migração,<strong>de</strong>veria reconhecer e assumir a condição <strong>de</strong> nôma<strong>de</strong> solitário e buscar emsi mesmo a consciência do seu percurso e do seu valor, sem esperar que esta lhevenha <strong>de</strong> fora e sem buscar, espasmodicamente, aprovação ou consenso exter-20 COLASANTI, M. Passageira em Trânsito. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Editora Record, 2009.186


Reflexões sobre a poesia migrante na Itálianos. A consciência <strong>de</strong> tal condição, afirma, requer dolorosa e extrema luci<strong>de</strong>z,uma força interior muito gran<strong>de</strong> e a aceitação da solidão como <strong>de</strong>stino. 21Do ponto <strong>de</strong> vista dos resultados e da qualida<strong>de</strong> estética, é essa solidão – ouseja, esses caminhos que se constroem cruzando tantos elementos díspares –que produz a originalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitos <strong>de</strong>stes autores, o que leva editores e críticosa afirmarem que a verda<strong>de</strong>ira novida<strong>de</strong> hoje na Itália, em campo literário, égarantida pela literatura da migração. Isso ocorre porque uma língua é um organismovivo, em constante evolução, dá e recebe, modula a voz dos novos italianos,mas é também modulada por eles, plasmada <strong>de</strong> outra forma, o que muitasvezes gera surpresa e estranhamento, raiz <strong>de</strong> toda boa literatura. Num artigopublicado na revista <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> difusão La Repubblica <strong>de</strong>lle Donne, Alberto Rollo,editor da Feltrinelli, afirma que os autores migrantesstanno contribuendo a modificare la nostra narrativa. Faccio un esempio, quella <strong>de</strong>lla lingua:per un autore straniero c’è la ricerca <strong>de</strong>lla lingua perfetta o <strong>de</strong>l neologismo sfrenato. Tutte edue creano uno straniamento, una sorta di sospensione, che ren<strong>de</strong> la loro lettura davvero interessante”.22[estão contribuindo para modificar a nossa narrativa. Faço um exemplo, oda língua: no autor estrangeiro há a busca da língua perfeita ou do neologismo<strong>de</strong>senfreado. Ambas criam um estranhamento, uma espécie <strong>de</strong> suspensão,que torna essa literatura realmente interessante.]Um dos elementos <strong>de</strong> novida<strong>de</strong> na poesia migrante é, como dissemos, a suaconcretu<strong>de</strong>, a coincidência entre vida e palavra; é poesia que atravessa o corpo,sumo das experiências vividas, direta ou indiretamente, com toda a intensida<strong>de</strong>.O migrante tem muito a dizer, quer e precisa fazê-lo da melhor forma possível,com economia <strong>de</strong> meios e concentração semântica, e não po<strong>de</strong> se dar ao21 Cf. ADORNO, T. W. Mínima Moralia – Meditazioni <strong>de</strong>lla Vita Offesa [1954]. Torino: Einaudi, 1994. p. 26.22 ROLLO,A.“Kun<strong>de</strong>ra Cercasi”. In: La Repubblica <strong>de</strong>lle Donne, Supplemento <strong>de</strong> La Repubblica. Milano, anno 13, pp.81-84 (81).187


Vera Lúcia <strong>de</strong> Oliveiraluxo <strong>de</strong> que o significado forte e vital <strong>de</strong> sua viagem se perca em malabarismose jogos formais estéreis.Gëzim Hajdari, extraordinário poeta ítalo-albanês, afirma que a literaturaajuda a sobreviver. Ela nos “insegna cos’è il bello e il brutto, l’amore e l’odio, la pace e laguerra, scuote le coscienze, crea mondi alternativi. [...] La poesia è anche impegno, ma non solosul verso, sul linguaggio [...] ma nella vita”. 23 [ensina o que é o belo e o feio, o amor eo ódio, a paz e a guerra, saco<strong>de</strong> as consciências, cria mundos alternativos. [...]A poesia é também empenho, não só com o verso, com a linguagem, [...] mascom a vida].Isso não quer dizer que não haja novida<strong>de</strong> formal nessa produção, ao contrário,tais autores forjam frequentemente novos termos e novas combinaçõesentre eles, quando é necessário, quando as palavras <strong>de</strong> uso comum não são suficientesou propícias para expressar vivências <strong>de</strong> fronteiras, bor<strong>de</strong>rline, que inauguramcom a própria existência e as sensações e emoções <strong>de</strong> embate com omundo. São as novas experiências que ditam uma nova gramática e formas quetorcem e, às vezes, violam os cânones, ou mesmo rompem com eles, tanto dopaís <strong>de</strong> origem quanto do país em que vivem.Em relação à obra <strong>de</strong> tais autores, a poesia italiana – como a socieda<strong>de</strong> italianaem geral – parece mais estática, fechada em si mesma, refratária aos novosestímulos <strong>de</strong> um mundo em rápida transformação; sente-se que os impulsospropulsores das vanguardas se esgotaram, mas que os escritores italianos aindaestão buscando novas motivações, outros caminhos para trilhar. De fato, asensação que se tem é <strong>de</strong> que muitos poetas falem entre si, escrevam para elesmesmos, comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pares, <strong>de</strong> eleitos, sem uma verda<strong>de</strong>ira articulação coma socieda<strong>de</strong>, que – em contrapartida – os ignora.Talvez uma possível solução para esta fase <strong>de</strong> aparente estagnação, ou pelomenos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinteresse por parte do público, seja abater as fronteiras que há entreos escritores italianos e os chamados escritores migrantes, para que se fomenteuma troca fértil <strong>de</strong> vivências e experiências, <strong>de</strong> perspectivas e poéticas,23 Entrevista com Gëzim Hajdari. In: BREGOLA, D. (a cura di). Il Catalogo <strong>de</strong>lle Voci – Colloqui con PoetiMigranti. Isernia: Cosmo Ianone Editore, 2005. p. 59.188


Reflexões sobre a poesia migrante na Itáliamesmo porque, ao contrário do que pensam muitos políticos, o pluralismo emesmo o sincretismo e a mestiçagem são um valor. De fato, em um livro sobrea literatura italiana da migração, o crítico Raffaele Ta<strong>de</strong>o afirma que tambéma literatura italiana nasceu como literatura <strong>de</strong> viagem, <strong>de</strong> exílio e <strong>de</strong> migração eque Dante, um dos seus fundadores, é um migrante por excelência, e a sua éuma língua espúria, “contaminada”. 24Pensar em uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como algo monolítico, rígido e inalterável é negara própria história italiana, feita <strong>de</strong> amálgamas e simbioses culturais, <strong>de</strong> empréstimose apropriações enriquecedoras e <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> impulso “antropofágico”,para usarmos um conceito tão característico da cultura brasileira,que a levou a assimilar e a reelaborar <strong>de</strong> forma original o que <strong>de</strong> melhor haviaem termos filosóficos, artísticos e culturais dos outros povos com os quais entrouem contato, legando à humanida<strong>de</strong> momentos únicos da nossa História,como o Humanismo e o Renascimento.Aliás, a literatura italiana <strong>de</strong>veria se relacionar melhor não só com a literaturamigrante interna, mas também com a chamada letteratura italofona, produzidapor escritores italianos <strong>de</strong> primeira e segunda gerações que vivem fora dasfronteiras italianas, os quais também cruzam várias tradições em suas obras esofrem do mesmo tipo <strong>de</strong> marginalização que vivem os autores migrantes.Termino essas rápidas consi<strong>de</strong>rações sobre um tema tão complexo e fascinanteaugurando que se verifiquem, o quanto antes, uma intersecção e umaconfluência <strong>de</strong> intentos entre todos os escritores <strong>de</strong> língua italiana, sem distinção<strong>de</strong> origem e, sobretudo, sem hierarquias nacionalistas, já que todos buscamrespostas para questões atuais, importantes sobretudo para que a socieda<strong>de</strong>perceba suas contradições e tome consciência das manipulações i<strong>de</strong>ológicas,formuladas em função das i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> exclusão e marginalização do “outro”,quer este “outro” seja o estrangeiro, o pobre, o idoso, o doente. Concluo comas palavras <strong>de</strong> Mia Lecomte, <strong>de</strong> que compartilho inteiramente:24 Cf. TADDEO, R. Letteratura Nascente. Letteratura Italiana <strong>de</strong>lla Migrazione. Autori e Poetiche. Milano: RaccoltoEdizioni, 2006.189


Vera Lúcia <strong>de</strong> OliveiraEd è diventato a questo punto necessario un confronto fattivo fra scrittori migranti eautoctoni – i viaggiatori immobili –, una collaborazione artistica trasversale all’insegna<strong>de</strong>lla contaminazione e <strong>de</strong>ll’eterogeneità. Indispensabile agli uni, da un lato, per liberarela lingua <strong>de</strong>lla poesia italiana sfinita, autoreferenziale, da barocchismi, ermetismi esperimentazioni di una certa avanguardia ormai in retroguardia, e riascoltarla davveroattraverso la voce altrui fatta propria; e agli altri per essere accompagnati nella messa apunto <strong>de</strong>llo strumento sonoro senza rischiare un appiattimento e un impoverimento <strong>de</strong>irisultati poetici, perché questo possa risuonare e fare eco in tutta la sua potenza, e acclimatarsimusicalmente all’interno <strong>de</strong>ll’universo comune di una parola sempre più bastardae condivisa. 25[Tornou-se necessário, a esse ponto, um ativo <strong>de</strong>bate entre escritores autóctones– os viajantes imóveis – e escritores migrantes, uma colaboraçãoartística transversal sob o signo da contaminação e da heterogeneida<strong>de</strong>.Indispensável para os primeiros, por um lado, para liberar a língua da poesiaitaliana, esgotada e autorreferencial, <strong>de</strong> barroquismos, hermetismos e experimentalismos<strong>de</strong> uma certa vanguarda já em retaguarda, e reouvi-la pelavoz do outro que a fez própria; e aos escritores migrantes, para acompanhá-losnesse processo <strong>de</strong> afinação <strong>de</strong> um instrumento sonoro sem arriscarum empobrecimento dos resultados poéticos, para que este possa ressoar eecoar em toda a sua potência, e aclimatar-se musicalmente <strong>de</strong>ntro do universocomum <strong>de</strong> uma palavra que será cada vez mais mestiça e compartilhadapor todos.]25 Cf. LECOMTE, M., op. cit., p. 11.190


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<strong>Prosa</strong>O i<strong>de</strong>ário liberal <strong>de</strong>Joaquim NabucoPaulo Nathanael Pereira <strong>de</strong> SouzaJoaquim Nabuco, cujo Centenário <strong>de</strong> morte transcorre neste ano<strong>de</strong> 2010, cultivou, quando jovem, seja no curso secundário, sejano superior, alguma simpatia para com as i<strong>de</strong>ias socialistas e republicanas.Cousas <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong>, pruridos <strong>de</strong> romantismo, que não resistiramao bom senso da maturida<strong>de</strong> e às luzes do conhecimento(aliás, costuma-se dizer, ainda hoje, que quem não foi revolucionárioaté os 20 anos precisa procurar o psiquiatra, em compensação,aquele que continuar revolucionário <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ssa ida<strong>de</strong>, precisamesmo é <strong>de</strong> internação em hospital psiquiátrico!).Tendo servido como adido diplomático do Brasil, na legação <strong>de</strong>Washington e na Embaixada <strong>de</strong> Londres, <strong>de</strong>pois que se formou emDireito, não teve gosto para advogar, conviveu com as elites políticastanto americanas quanto inglesas. Tomou pulso no liberalismo<strong>de</strong> uns e na monarquia constitucional <strong>de</strong> outros, verificando in loco oinegável progresso <strong>de</strong>sses países, todo ele <strong>de</strong>vido à competência dosgovernantes e às virtu<strong>de</strong>s dos regimes que privilegiam a liberda<strong>de</strong>. ODoutor emEducação.Membro da<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Paulista<strong>de</strong> História.Presi<strong>de</strong>nte da<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Paulista<strong>de</strong> Educação e da<strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> Cristã<strong>de</strong> <strong>Letras</strong>. Membrodas <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong>s<strong>Brasileira</strong>s <strong>de</strong>Educação eFilosofia.Ex-Presi<strong>de</strong>nte doConselho Fe<strong>de</strong>ral<strong>de</strong> Educação.Reitor <strong>de</strong>Universida<strong>de</strong>sCoorporativas emSão Paulo.193


Paulo Nathanael Pereira <strong>de</strong> Souzai<strong>de</strong>ário político <strong>de</strong> Nabuco, a partir <strong>de</strong> seus 35 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, i<strong>de</strong>ntificou-seinteiramente com a filosofia do liberalismo e com o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> governo damonarquia constitucional. Entusiasmado com a prosperida<strong>de</strong> inglesa promovidapela era da Rainha Vitória, tornou-se um campeão da causa monárquica.No Brasil, não morria <strong>de</strong> amores por D. Pedro II, mas <strong>de</strong>sfrutava da amiza<strong>de</strong>da Princesa Isabel, cujo círculo mais íntimo integrava e, quiçá por isso, pronunciouaquele discurso em que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a Monarquia como a mais civilizadaforma <strong>de</strong> governo, e as mulheres, como sendo mais competentes do que os homens,para ocuparem o trono e cingirem a coroa. Entusiasmos <strong>de</strong> quem nãoadmitia instabilida<strong>de</strong>s políticas, e tampouco perdia o ensejo <strong>de</strong> rendilhar galanteiosao mulherio que fazia seu encantamento.Mas há que se reconhecer nessas suas posições a influência maior do pai, oSenador Nabuco <strong>de</strong> Araújo, prócer do Império e personagem do maior dos livros<strong>de</strong> Joaquim Nabuco – Um Estadista do Império.Sempreafirmeievoltoarepetirque ninguém biografa um inimigo. Nabuco confirmou avante la lèttre esse axiomaao biografar o pai, um exemplo permanente <strong>de</strong> inspiração para seus passos navida, tanto que, certa vez, a ele assim referiu: “meu pai foi quem mais influiu sobremim”.Embora, como se viu, nunca estivesse muito próximo <strong>de</strong> D. Pedro II e cultivassequeixas do intenso patrulhamento das classes produtoras do Impériocontra si, em razão do seu abolicionismo militante, Nabuco recebeu a notíciada República em 1889 com extremo <strong>de</strong>sgosto e funda revolta. Detestava asproposições republicanas, da mesma forma que execrava a teoria positivista,que fortalecia o novo regime, via Escola Militar do Realengo, on<strong>de</strong> pontificavaBenjamin Constant. Não só repeliu convites <strong>de</strong> amigos seus para ocuparcargos no governo da República como se retirou em exílio voluntário a Paquetá,acompanhado <strong>de</strong> sua esposa, a Baronesa Evehna Soares Ribeiro, com quemse casara em 1891. Nessa tebaida escreveu suas melhores obras: Um Estadista doImpério e Minha Formação.Contudo, acabou ele por conciliar-se com a República mediante o empenho<strong>de</strong> homens do estofo do Barão do Rio Branco (que foi Embaixador e Mi-194


O i<strong>de</strong>ário liberal <strong>de</strong> Joaquim Nabuconistro <strong>de</strong> Relações Exteriores, com o título nobiliárquico e tudo o mais), <strong>de</strong>Pru<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Moraes, <strong>de</strong> Rodrigues Alves, <strong>de</strong> Rui Barbosa, <strong>de</strong> Campos Salles e<strong>de</strong> tantos outros, que lhe tocaram a veia patriótica ao lhe assegurarem que seusserviços seriam indispensáveis, para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r interesses brasileiros, na Amazônia,on<strong>de</strong> uma enorme área estava para ser anexada à Guiana Inglesa, por artimanhasdo antipático Lor<strong>de</strong> Salisbury, Primeiro-Ministro da Coroa britânica.Mudou-se com a família para a Europa e advogou por quatro anos contra ogoverno <strong>de</strong> Salisbury, como ministro plenipotenciário da República do Brasil.A causa tinha, como mediador o Rei italiano Vitorio Emanuele. A sentença finalfoi salomônica: do território em perigo, a meta<strong>de</strong> ficou com o Brasil, tendocabido o resto à Guiana.À luz <strong>de</strong>sse resultado, Nabuco se tornou embaixador brasileiro na Inglaterrae, quando se criou a embaixada em Washington, no início do século XX,ei-lo nomeado como primeiro embaixador brasileiro nos USA. O culto <strong>de</strong>nosso herói pelo liberalismo e pela monarquia constitucional continuou intocávele cada vez mais extremado. Os erros dos governantes não lhe abalaram acerteza <strong>de</strong> que ambos os sistemas seriam os mais a<strong>de</strong>quados ao processo civilizatóriodos povos livres. E com eles prosseguiu i<strong>de</strong>ntificado, apesar da <strong>de</strong>fesados interesses brasileiros, feita naqueles primórdios do regime republicano,em que o positivismo recomendava a implantação <strong>de</strong> ditaduras presi<strong>de</strong>ncialistas,no melhor estilo <strong>de</strong> Auguste Comte.Morreu Joaquim Nabuco em Washington, aos 60 anos <strong>de</strong> sua ida<strong>de</strong>, aindaaquela majestática figura <strong>de</strong> cabelos e bigo<strong>de</strong>s alvos como algodão. Sua filhaCarolina diria: “Sua sedução nada per<strong>de</strong>ra com a velhice, antes se apurara”.Seu corpo atravessou a capital americana sobre uma carreta <strong>de</strong> artilharia, puxadapor parelhas gigantes <strong>de</strong> cavalos negros, e veio para o Brasil, com honras militares,como passageiro único do cruzador da marinha <strong>de</strong> guerra da armada <strong>de</strong>Tio Sam. 1 1951 P.S. – Nabuco ajudou Machado <strong>de</strong> Assis a criar a <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong> <strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong> <strong>Letras</strong> em 1897, tendo sidoeleito seu secretário perpétuo, pelos pares.

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