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Edição integral - Adusp

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Internacional.6Trinta Anos da Revolução dos CravosLincoln SeccoUniversidade.13USP, 70 anos: comemorações e contra-comemoraçõesIrene Cardoso21A democratização do acesso ao ensino superiorMaria Victoria Benevides25Ações afirmativas, simValter Roberto SilvérioPetronilha Beatriz Gonçalves e Silva30Cotas, do direito de todos ao privilégio de algunsFrancisco Carlos VitóriaDitadura e resistência.37Filha bastarda da USP, Aesi desempenhou diferentes papéis na repressão internaJosé Chrispiniano, Marcy Picanço e Marina Gonzalez49Vigilância sobre tudo e sobre todos, com a colaboração das autoridades da USPMarcy Picanço53Perseguição na Esalq partiu de dirigentesBeatriz Elias59<strong>Adusp</strong> e Asusp na mira da repressãoMarina Gonzalez63“A ECA é o principal foco de agitação da USP”José Chrispiniano e Cecilia Figueiredo69Na criação do DCE livre, uma derrota da DitaduraJosé Chrispiniano74“Operação Pira”, ou como o regime em agonia espionou o Congresso da UNEBeatriz Elias81Os álbuns do DopsCecilia Figueiredo e Eliza Mayumi Kobayashi86Crônica de tempos amargosCecilia Figueiredo e Tatiana Lotierzo97Os idos de março de 1964 e o significado da democraciaMarcos Del Roio102O golpe de 1964 e a Universidade: entre a repressão e a modernizaçãoSuzeley Kalil Mathias


DIRETORIAAmérico Sansigolo Kerr, Francisco Miraglia, César Augusto Minto, Lucília Daruiz Borsari,Raquel Aparecida Casarotto, Sérgio Tadeu Meirelles, Roberto Ramos Jr.,Flávio César Almeida Tavares, João Alberto Negrão, Elenice Mouro Varanda, Oziride Manzolli NetoComissão EditorialAdilson Odair Citelli, César Augusto Minto, Hélio Morishita, Jair Borin (in memorian),Luiz Menna-Barreto, Osvaldo Coggiola, Paulo Eduardo Mangeon EliasEditor: Pedro Estevam da Rocha PomarAssistente de redação: Eliza Mayumi KobayashiEditor de Arte: Luís Ricardo Câmara • Assistente de produção: Rogério YamamotoCapa: Luís Ricardo CâmaraSecretaria: Alexandra M. Carillo e Aparecida de Fátima dos R. PaivaDistribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosImpressão: Forma CertaTiragem: 10.000 exemplares<strong>Adusp</strong> - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SPInternet: http://www.adusp.org.br • E-mail: imprensa@adusp.org.brTelefones: (011) 3813-5573/3091-4465/3091-4466 • Fax: (011) 3814-1715A Revista <strong>Adusp</strong> é uma publicação quadrimestral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo,destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem, necessariamente, o pensamento da Diretoria da entidade.Contribuições inéditas poderão ser aceitas, após avaliação pela Comissão Editorial.


HISTÓRIAS QUE VALE A PENA CONTARTranscorridos quarenta anos do golpe militar que depôs João Goulart e deu início à “modernização conservadora”do Brasil, algumas das grandes universidades do país realizaram seminários e outras atividades não sópara assinalar a passagem do triste aniversário, mas para rever, à luz de novas pesquisas, o episódio e a Ditaduraque dele decorreu. A USP foi exceção neste contexto de rememoração de iniqüidades, não obstante tenhasido severamente atingida pelo ímpeto macartista dos militares e de seus sócios civis. Não tivessem a <strong>Adusp</strong> e oFórum das Seis organizado um ato público em 1º de abril, e tudo teria passado em brancas nuvens.Às autoridades da USP não agrada o tema “Ditadura”, porque, levado a sério, implica admitir que houvecumplicidades intoleráveis entre parte da burocracia universitária e o poder militar. Nesta edição, a Revista<strong>Adusp</strong> aprofunda a trilha aberta pela edição 13, de 1998, que documentou a existência, na USP dos anos setenta,de um órgão denominado Assessoria Especial de Segurança e Informações, que atendia pelas siglas “Aesi”e “ASI”. O regime militar implantou a Divisão de Segurança e Informações (DSI) no MEC e em todos os ministérios,e “assessorias” como aquela em todas as universidades importantes do país.Nos arquivos que pertenceram ao hoje extinto Dops, encontram-se centenas de pastas que contêm papéisalusivos a professores, estudantes, funcionários da USP. Há documentos gerados pela Aesi ou por ela coletados,mas também os produzidos pelo próprio Dops, Exército, Aeronáutica, Marinha, SNI, Polícia Federal eoutros setores estatais. Entre as pastas, a de número OP-1190 era produto da vigilância sobre a <strong>Adusp</strong>. No Arquivodo Estado, nossa equipe pesquisou parte desse material, até então inédito.A partir dos registros, ouvimos dezenas de pessoas, e pudemos reconstituir histórias que vale a pena contar,se é que desejamos enfrentar o doloroso tema “Ditadura”. Especialmente quando surgem interpretaçõescuriosas do período 1964-1984, reclassificado como “autoritário”, ou bem das circunstâncias do golpe militar,(re)visto por alguns como resultado de um suposto desapreço das esquerdas pela democracia: estas, ao mobilizaras forças populares, teriam violado as regras, fornecendo à direita os motivos para instaurar a nova ordem.O professor Marcos Del Roio trata, nesta edição, de polemizar com tal (re)visão, que pressupõe a existênciade uma democracia liberal no período 1945-1964. A “via prussiana” seguida pela revolução burguesa noBrasil, observa, “é antinômica à democracia em todas as suas fases, de 1930 a 1980, de modo que não há comoidentificar o período 1945-1964 como liberal-democrático”, “nesse período há um conluio do liberalismo como corporativismo, mas não do liberalismo com a democracia”.Outro artigo, de autoria da professora Suzeley Kalil Mathias, tem como foco a política ditatorial para o ensinosuperior. Ela aborda aspectos pouco conhecidos do processo de militarização do ensino: desde a nomeaçãode militares para os principais cargos do MEC até a difusão de valores castrenses (“Projeto Rondon” e outros).•••Exatos dez anos depois do golpe militar no Brasil, tivemos em Portugal a Revolução dos Cravos. Originalem muitos sentidos, o “abril dos capitães”, que derrubou a ditadura salazarista então liderada por MarcelloCaetano, foi marcado por “arroubos ideológicos e esperanças utópicas”. É do professor Lincoln Secco, autordo livro A Revolução dos Cravos e a Crise do Império Colonial Português (2004), o artigo que abre esta edição.•••Comemorações podem dar ensejo a momentos “vazios e repetitivos”, ensina a professora Irene Cardoso,mas também a “ocasiões de reflexão sobre a instituição”. No seu artigo, ela mostra como as comemorações naUSP refletem as disputas de poder (e de sentidos) que a atravessam desde que surgiu.•••Nossa contribuição ao debate sobre políticas afirmativas e de cotas: provocativos textos dos professores ValterRoberto Silvério e Petronilha Gonçalves e Silva, Francisco Vitória e Maria Victoria Benevides.O Editor


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>TRINTA ANOS DAREVOLUÇÃO DOS CRAVOSLincoln SeccoProfessor do Departamento de História da USPPopularesaplaudemsoldadosCentro de Documentação 25 de abril/Universidade de CoimbraA Revolução Portuguesa pareceu ser a última do gênero no continenteeuropeu no século XX. E se alimentou, como todas as outras, dasidéias emanadas das duas grandes revoluções: a Francesa e a Russa.Mas quando saíram às ruas os militares queriam somente três coisas:pôr fim à ditadura; resgatar o prestígio das Forças Armadas; e terminara Guerra Colonial em África que já estava virtualmente ganha pelosinimigos — os movimentos guerrilheiros de esquerda6


Revista <strong>Adusp</strong>De Portugal já seafirmou que foi o“último teatro leninistada história”. Esobre sua Revolução,Mário Soares, omais destacado político do PartidoSocialista, disse: é aquela em que osmencheviques venceram.Essas expressões andam meioesquecidas no Portugal de hoje.Não pelo conteúdo, mas pela desusadalinguagem esquerdista. Paísque se sente (ou quer sentir-se)tipicamente europeu, integrado nosritmos fortes das economias setentrionaisdo Velho Mundo, Portugalerigiu a memória oficial e institucionalde uma revolução “pacífica”,“européia”, “democrática”, “antifacista”.E só não se diz “liberal”porque seria difícil apagar da suahistória os arroubos ideológicos eas esperanças utópicas que o dia 25de abril de 1974 desencadeou.Naquela data, os oficiais do Movimentodas Forças Armadas (MFA)despontaram de uma longa e friorentamadrugada para encarar o sol dasmultidões numa tarde de Lisboa. Acanção que servira de senha para arevolução, “Grândola, Vila Morena”(José Afonso), seria depois entoadacomo hino oficioso do país liberto. Ocapitão Salgueiro Maia, aquele querendeu o primeiro-ministro MarcelloCaetano, conheceria a fama, mas nãoo poder que ele não quis. O majorOtelo Saraiva de Carvalho, líderoperacional do golpe, só meses depoisse tornaria conhecido como umlíder de ultra-esquerda, defensor dopoder popular armado. E os demaissoldados se surpreenderiam, naquele25 de abril, ao receber a ovação dopúblico e as flores das mulheres queas costumavam vender nas ruas deLisboa. Era a Revolução dos Cravos.Talvez ninguém mais do que ospróprios oficiais do MFA espelhem aforça e a fragilidade desta revoluçãoímpar. Eles quiseram mais do que ahistória parecia disposta a permitirlhes.De fato, a Revolução Portuguesapareceu ser a última do gênero nocontinente europeu no século XX. Ese alimentou, como todas as outras,das idéias emanadas das duas grandesrevoluções: a Francesa e a Russa.Para não falar de uma terceira,A ditadura salazaristanunca foi estável. Umaparte do povo nuncaa aceitou, e oficiaisconspiravam contra oditador. A fragilidadedo regime evidenciou-senos anos 60Outubro 2004que encantou pequenos setores estudantise militares, a Chinesa. Masquando saíram às ruas, os militaresqueriam somente três coisas: pôrfim à ditadura; resgatar o prestígiodas Forças Armadas; e terminar aGuerra Colonial em África que jáestava virtualmente ganha pelos inimigos(os movimentos guerrilheirosde esquerda).Mas, ao formular tais objetivos,tomaram consciência de problemasde longa duração na história portuguesa.Afinal, o país vivera nos últimosséculos a condição de um impérioultramarino acostumado a ver-secom lentes dilatadas e não tal qualum pequeno retângulo na ponta extremadado Velho Mundo. O rostoda Europa. As elites lusitanas, desdesempre, recitavam a poesia da decadênciae da necessidade de retomaros ritmos europeus. De voltar, comoqueria Antero de Quental, ao convíviodas “nações civilizadas”. Portugalfazia a última revolução tambémpara findar o último império.Ao longo do século XIX suas elitespolíticas e intelectuais procuraramadotar formas de consciência, adaptadasà “idéia européia”: o cartismo, osetembrismo, a Regeneração, o liberalismo,o republicanismo, o socialismo,o anarquismo, o comunismo. Ostrês primeiros desses termos só sãoconhecidos fora de Portugal pelos rarosespecialistas em História Ibéricaou por quem se deu ao trabalhode ler alguma História do Portugalcontemporâneo — tema, aliás, deescasso estudo no Brasil, onde sóaprendemos algo sobre Portugal atéa nossa independência política em1822. Todos esses rótulos ideológicos,por mais sinceramente adotados,não lograram, na prática concreta,ultrapassar os limites do ideário deuma democracia formal integradanuma ordem transnacional (todavia“européia”).Portugal atravessou um períodomonárquico relativamente estáveldepois do período de convulsões eguerras que vai de 1820 à metade doséculo XIX. Ao menos até o ultimatoinglês de 1891 que humilhou os sentimentosnacionais. Em 1910 nasceu aRepública. Foi a tentativa de regenerarde fato o país e adaptá-lo às correntesda época, que destruíam impé-7


Outubro 2004rios já periféricos (como o espanhol,o austro-húngaro, o czarista, o turco).Todavia, erguiam-se outros regimesque pareciam portar o futuro muitomais do que as democracias liberais:Mannerheim na Finlândia, Horthyna Hungria, Mussolini na Itália. ARepública findaria em 1926 cedendolugar ao regime de Oliveira Salazar.A ditadura salazarista nunca foiestável como dela se disse. Umaparte do povo português nunca aaceitou. Os oficiais nunca deixaramde conspirar para derrubar o ditador.Figuras emblemáticas, comoHumberto Delgado, dedicaram-sea lutar, por meios legais e ilegais,contra o salazarismo. A fragilidadedaquele regime se tornou evidentenos anos sessenta. O neocolonialismoeuropeu agonizava em todaa parte. E enquanto a RevoluçãoArgelina parecia derrubar o mitoda invencibilidade do opressor europeu,o livro “Os Condenados daTerra” de Franz Fanon se encarregavade dar dignidade teórica e poéticaà violência revolucionária.Em 1961, iniciou-se a Revoluçãona “África Portuguesa”. Ela tambémencontraria seus limites em problemasherdados e de longa duração. AÁfrica Negra, cercada por dois marese dois desertos, exibia recursosnaturais, exibia suas rotas ancestrais,cedo desabadas. Faltavam as forçasprodutivas para lograr a realizaçãodo ideário socialista que foi adotadopor muitos de seus líderes. Por diretaresponsabilidade dos colonizadoreseuropeus, esta África teve quemergulhar na revolução, na guerrade libertação nacional e na guerracivil. Nas suas solidões extensas, noseu clima variegado, na sua belezasaqueada, herdavam, os africanos, asrotas de comércio voltadas para osinteresses das antigas metrópoles, asdivisões administrativas européias,as técnicas, vícios e preconceitos naadministração do Estado. Tudo issoconstrangia o africano revoltado, ohomem e a mulher que tentavamconstruir suas identidades nacionais.Essas sobrevivências de longaduração também limitariam a açãorevolucionária na metrópole portuguesa.Tratava-se já de um Impérioperiférico, cada vez mais cedendo aInicialmente, assumiu aPresidência da Repúblicao general AntónioSpínola. Ele não pertenciaao MFA, mas havia sidodestituído da chefia doEstado Maior das ForçasArmadas, pois defendiauma solução federalistapara o Impérioexploração de suas colônias a empresasestrangeiras. Cada vez maisvinculando-se economicamente aomercado europeu. O império erauma forma política ultrapassadapelo próprio desenvolvimento dasforças produtivas, que reclamava oslaços europeus, relações de produçãoe trabalho modernas e técnicasde exploração neocolonial ou imperialistaque Portugal não tinha condiçõesde desenvolver na África.A Guerra Colonial foi o iníciode tudo. Sem ela não teria havidoRevista <strong>Adusp</strong>nenhuma Revolução Portuguesa.Ao menos não na forma em que elaocorreu. O epicentro do abalo nãoera a metrópole, mas a África. Arevolta dos povos colonizados porPortugal obrigou o país a desviarrecursos pesados do orçamentopara manter o esforço de guerra.Aumentavam a emigração (traçosecular), a deserção, o descontentamentoentre civis e militares...Com a morte de Salazar em 1970,a ditadura continuou. Apesar dasesperanças despertadas pela “primaveramarcelista” (refere-se aMarcello Caetano, um renomadoprofessor e especialista em DireitoAdministrativo), a Guerra Colonialpermaneceu, a imprensa continuouamordaçada, jornalistas perseguidose opositores políticos presos etorturados pela temida PIDE (PolíciaInterna de Defesa do Estado).A Revolução dos Cravos veio aterminar este último suspiro do ImpérioColonial Português que foi aditadura de Marcello Caetano. Presono Quartel do Carmo pelo capitãoSalgueiro Maia, ele foi levado aum aeroporto. Partiria em seguidapara o Rio de Janeiro.Inicialmente, a Revolução não encontroulíderes políticos civis. Assumiua Presidência da República o generalAntónio Spínola. Ele não pertenciaao MFA, mas havia sido destituídoda chefia do Estado Maior das ForçasArmadas, juntamente com o generalCosta Gomes. Isso porque havia escritoum livro que defendia uma soluçãofederalista para o Império Colonial nolivro “Portugal e o Futuro”.Somente no Primeiro de Maioapareceram publicamente os líderescivis que a Revolução precisava.8


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Centro de Documentação 25 de abril/Universidade de CoimbraSoldados sublevados lêem as primeiras notícias sobre o movimentoForam eles Álvaro Cunhal e MárioSoares, líderes do Partido ComunistaPortuguês (PCP) e do PartidoSocialista (PS).O PCP e o PS estiveram juntospor escassos momentos. A união doPrimeiro de Maio logo seria substituídapela desconfiança mútua atéchegar ao rompimento. Eram partidosde idades históricas distintas.Filhos de conjunturas diferentese de eventos igualmente diversos.Um, comunista, filho da Revoluçãode Outubro de 1917 e adepto domodelo leninista de organização.Outro, social-democrata, de linhareformista. A conjuntura tambémos separava. Em fins dos anos 50dois acontecimentos selaram o iníciode uma nova conjuntura política nointerior das esquerdas. O Congressode Bad Godesberg, na AlemanhaOcidental, eliminou qualquer referencialmarxista da Social Democraciaalemã. E o XX Congresso doPartido Comunista da União Soviéticapermitiu que os PCs ocidentaisingressassem numa fase de defesada democracia parlamentar comocaminho possível para o socialismo.Até que os mais afoitos aderissemao eurocomunismo, como o fizeramPCs tão diferentes como o japonês,o brasileiro, o espanhol, o sueco e,particularmente, o italiano.Enquanto a Social Democraciamanteve variadas formas de aproximaçãocom o espírito de Bad Godesberg,os comunistas também oscilaram emrelação ao XX Congresso soviético.Alguns racharam em dois ou maispedaços. O PCP seguiu uma linha suigeneris. Aderiu inicialmente às diretivassoviéticas. Depois, em meados dosanos 60, afirmou a via insurrecionalpara a superação do salazarismo. Echegou a montar e apoiar um braçoarmado responsável por atentados aalvos militares do regime. Ao mesmotempo, não deixou de manter contatoscom setores internos às Forças Ar-9


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>José Manuel Ribeiro/ReutersManifestação em defesa de direitos sociais durante comemoração do 26º aniversário da Revolução dos Cravos, em 2000madas e também não rompeu com aUnião Soviética. O PS, por seu turno,manteve-se na ala direita da socialdemocracia européia. Mário Soaresestava mais próximo de Brandt daAlemanha Ocidental.Era uma divisão anunciada. Deum lado, o mais ortodoxo dos PCsda Europa Ocidental. De outro, umPS mais afeito a um socialismo detipo liberal. Recém adaptado parauma linguagem esquerdista, é verdade.Mas isto fazia parte das exigênciasda época. A Revolução dosCravos obrigou todos os partidos afalar um linguajar socialista.Todavia, as divergências que ocorreriamnos partidos políticos teriamorigem nas contradições internas dopróprio MFA. Ou o MFA, ao ecoar10Apesar de seus limites,a Revolução dos Cravosesboçou a hipótese de umpluralismo socialista:a primeira tentativa deum modelo público e nãoestatizante em economia;e democrático, mas nãoliberal, em políticaessas divergências, dar-lhes-ia um pesodesmedido. A ação do MFA seria,por sua vez, aguçada pelas sucessivastentativas de golpes contra-revolucionários.O MFA não demorou ase chocar com o próprio presidenteSpínola, afinal ele fora um homem deconfiança do Antigo Regime e travavao processo de descolonização. Pressionado,apelou para uma tentativa degolpe com apoio popular (a “maioriasilenciosa”) em 28 de setembro de1974. Derrotado, foi substituído peloGeneral Costa Gomes. Mas o poderexecutivo estava de fato nas mãosde um militar de confiança do MFA,o coronel Vasco Gonçalves, que setornou primeiro-ministro do SegundoGoverno Provisório em substituiçãoao jurista Palma Carlos já em julhoe, agora (30 de setembro de 1974),iniciava o Terceiro Governo Provisório.Palma Carlos era da confiança deSpínola. Simultaneamente foi criado


Revista <strong>Adusp</strong>Capitão Vitor Alves e Major Otelo de Saraiva nas comemorações de 1998José Manuel Ribeiro/Reuterso Copcon (Comando Operacional doContinente) que dava amplos poderesde comando sobre todas as forças militaresdo país ao major Otelo Saraivade Carvalho.Assim, o poder executivo, emborapartilhado por todas as forças políticas,tinha na sua chefia um coronelque cedo revelou seu pendor terceiro-mundista,sua aproximação comos comunistas e sua defesa de umnovo império. Alto lá, não na formaimperial, mas de uma comunidadede homens livres e iguais, fossem elesportugueses, africanos ou brasileiros.Ideal tão elevado significava, do pontode vista geopolítico, dar as costasà Europa, e soldar-se aos oprimidosOutubro 2004do mundo inteiro. Evidentemente,ele foi visto pelos ingleses, alemãesocidentais e norte-americanos comoum protocomunista. Daí o apoio quededicaram Callaghan, Brandt e oembaixador Frank Carlucci ao PS deMário Soares.A Revolução Portuguesa, na suatarefa histórica de realizar o programaliberal oitocentista, precisava, naquelaconjuntura histórica, falar umalinguagem socialista. Toda a políticaportuguesa deslocou-se à esquerda.Monarquistas falavam em socialismo.Conservadores defendiam a “ordemrevolucionária” (desde que fosse uma“ordem”). Porque, do dia para a noite,explodiu o chamado poder popular.Comissões de mulheres aguerridastomaram as creches, trabalhadorescontrolaram fábricas, bancos, fazendas.Soldados se organizaram, oficiaisdefenderam grevistas.No dia 11 de março de 1975, oficiaisspinolistas tentaram golpear aRevolução. Derrotados, só ajudarama radicalizar o governo. Surgia oQuarto Governo Provisório. Vieramas nacionalizações de bancos, empresasde seguros, indústrias, meiosde comunicação. Mas surgia umatensão no processo de radicalização.A Assembléia Constituinte, recémeleita, se arvorava como defensora dademocratização. No governo o PS e oPCP se distanciavam. Por ocasião daocupação do jornal República, cujodiretor era um socialista, os militarese o governo resolveram apoiar os trabalhadores.O PS saiu do governo. OQuinto Governo Provisório nasceriafrágil e seria efêmero.Essa divisão se refletiu no MFA.O Movimento rachou em três pedaços.Um setor permaneceu fiel ao11


Outubro 2004governo. Outro o desejava mais àesquerda e defendia um modelo depoder popular e outro, mais moderado,parecia inclinar-se a um socialismometido entre uma propostasocial democrata e a comunista.Três líderes militares encarnaramessas opções: o coronel Vasco Gonçalves,o major Otelo Saraiva deCarvalho e o major Melo Antunes.Aqui reside uma peculiaridadeimpressionante da Revolução dosCravos. Apesar de seus limites, do pesoda longa duração sobre os ombrosdos homens e mulheres de abril, elaesboçou a hipótese de um pluralismosocialista. Seria a primeira tentativa deum modelo público e não estatizanteem economia; e democrático, masnão liberal, em política. Ou seja, umademocracia socialista, formal e substantiva,política e econômica.Evidentemente, tal hipótese nãose realizou. Em agosto caiu o governode Vasco Gonçalves, substituídopelo Sexto Governo Provisório chefiadopelo almirante Pinheiro Azevedo.Os militares “gonçalvistas”foram passados à reserva. Restavao setor ligado ao Copcon e a Otelo,cada vez mais esquerdista. Em 25de novembro, a pretexto de conteruma sublevação dos paraquedistasda base aérea de Tancos, o governoexpurgou os militares radicais deesquerda das Forças Armadas. Otelofoi preso. E mesmo os militaresmoderados do MFA, os quais conseguiramconter a fúria dos profissionaisdo tenente-coronel RamalhoEanes (mais tarde presidente eleitode Portugal), foram lentamente jogadosem posições subalternas oude escassa importância no conjuntodas Forças Armadas. Predominaramos que queriam a volta dos militaresaos quartéis contra aqueles que defendiamum exército revolucionário.Trinta anos depois, sabemos quaisforam os destinos pessoais e as escolhasdos oficiais e civis que participaramda Revolução dos Cravos. Maspouco conhecemos das estruturaspolíticas, ideológicas e mentais que limitaramsuas escolhas. Eles poderiamter ido além? Seu único legado foi asua generosidade. Tanto a RevoluçãoFrancesa (1789) quanto a Russa(1917) despertaram energias e sonhosem grande parte jamais realizados.O 25 de abril de1974 derrubou umgoverno fascista quasepacificamente, graçasao apoio popular à açãoarmada. Não houveGuerra Civil aberta,apenas expulsões e prisões.E não houve paredónPortadoras de sentimentos esplêndidos,a sua prática nem sempre foi consentâneacom seus propósitos. MaoTsetung, um herdeiro da velha tradição,resumiu a prática revolucionáriaao mostrar que fazer uma Revoluçãonão é como ir a um jantar, trata-se deum ato de violência inaudita. Talvezpor isso, Robespierre, o incorruptível,expressasse a virtude, a honestidade,mas jamais a clemência. Talvez porisso, todos souberam definir, nos últimosduzentos anos, a liberdade e aigualdade, mas não a fraternidade.Revista <strong>Adusp</strong>O 25 de abril de 1974 derrubou umgoverno fascista quase pacificamente,graças ao apoio popular à ação armada.Nenhuma das divergências gravesque surgiram no processo revolucionáriodesbordou para uma Guerra Civilaberta. Houve expulsões e prisões.Houve mais exilados do que perseguidos.E não houve paredón. Do pontode vista estrito da técnica do golpe deEstado, essa pode ter sido a fraquezada Revolução. Mas daí também elaretirou a sua legitimidade.A Revolução dos Cravos, ocorridano último dos impérios coloniais, teriareservado a este pequeno grandepaís da Europa um lugar novamentedestacado na história? De fato, nãosabemos se ela foi a última revoluçãodo velho modelo ou a primeiratentativa de uma nova revolução quegarantirá o pluralismo socialista. Oscapitães de Abril tinham como seusobjetivos a liberdade e a igualdade,mas sua prática foi a fraternidade.Bibliografia:Carvalho, Otelo Saraiva. Alvorada em Abril. Lisboa: Ulmeiro,1984.Chilcote, R. The Portuguese Revolution of 25 april 1974.Annotated bibliography on the antecedents and aftermath.Coimbra: Centro de Documentação 25 de abril- Universidade de Coimbra, 1998, 2 volumes.Cunhal, Alvaro. A Revolução Portuguesa: Passado e Futuro.Lisboa: Avante, 1995.Cunhal, Alvaro. Ação Revolucionária, Capitulação e Aventura.Lisboa: Avante, 1996.Eisfeld, Rainer. “A Revolução dos Cravos e a Política Externa:o Fracasso do Pluralismo Socialista em Portugal”,Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 11, Coimbra,maio de 1983.Fernandes, Florestan. “A Era da Esperança”, Portugal Democrático,ano XVIII, Nº 186, maio de 1974.Ferreira, José M. Ensaio histórico sobre a Revolução do 25 deabril. O Período pré-constitucional. 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Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004USP, 70 ANOS:COMEMORAÇÕES ECONTRA-COMEMORAÇÕESIrene CardosoProfessora do Curso de Pós-graduação em Sociologia da FFLCH-USPComemorações podem configurar momentosde celebração vazios e repetitivos, o que ocorrena maioria das vezes, mas tambémocasiões de reflexão sobrea instituição, especialmentequando considerados os seusdiversos tempos históricos.É possível reconstruirmomentos comemorativosque se constituíram emtribuna de celebraçõesdiversas, de embatepolítico e ideológico emtorno da construção darepresentação do eventopassado. Disputas quetambém indicam posiçõesdiversas relativas ao presentee produziram discursos quese contrapunham, dandoorigem, mesmo, ao que sepoderia chamar de contracomemoraçõesA Faculdadede Filosofia, nohistórico prédio darua Maria AntoniaMônica Maia/Agência Estado13


Outubro 2004USP 70 anos. As comemoraçõespodem configurarmomentos decelebração marcadospela grandiloqüência,vazios e repetitivos,o que ocorre na maioria das vezes,mas também ocasiões de reflexãosobre a instituição, especialmentequando considerados os seus diversostempos históricos: o tempohistórico da criação da universidadee os tempos históricos referentes aosmomentos de comemoração, quandoo evento da criação retorna dopassado, em intervalos regulares detempo, via de regra definidos pelocritério da numeraçãodecimal, para em seguidavoltar a dissolver-se.Focalizando o quese poderia chamarde uma história dascomemorações dainstituição, é possívelreconstruir momentoscomemorativos quese constituíram emtribuna de celebraçõesdiversas, de embate político e ideológicoem torno da construção darepresentação do evento passado.Disputas que também indicam posiçõesdiversas relativas ao presente.Esses momentos produziram discursosque se contrapunham, dandoorigem, mesmo, ao que se poderiachamar de contra-comemorações.Algumas referências históricaspodem ser tomadas para indicaressa questão, sem que se possa denenhum modo esgotá-las nesse texto,pois seria necessário um estudodetalhado e aprofundado dessa históriadas comemorações.14Em 1974, os 40 anos da USPforam marcados pelo silêncio, nospiores anos da Ditadura militar enos piores anos de uma instituiçãoque nela se enquadrou. Silêncioque tomou grande parte da universidade,que na sua discordânciatinha poucos meios de expressãono interior da instituição. As comemoraçõesficaram reduzidas aoestritamente oficial e protocolar.Dez anos antes, em janeiro de l964,a universidade e o país, a dois mesesdo golpe, estavam imersos noclima das “reformas de base” e da“reforma universitária”. Nesse momento,o passado aparecia comoEm 1974, os 40 anos da USP foram marcadospelo silêncio, nos piores anos da Ditadura militare nos piores anos de uma instituição que nela seenquadrou. As comemorações ficaram reduzidasao estritamente oficial e protocolarRevista <strong>Adusp</strong>de pouca ou nenhuma valia paraos movimentos que contestavam aestrutura de poder fechada de umainstituição considerada conservadoradesde a origem. Esses movimentostinham os seus olhos postosnum futuro muito próximo, quandoa universidade deveria ser, então, aexpressão da “vanguarda da revoluçãobrasileira”.Para aquela “esquerda” de então,não fazia sentido comemorara universidade existente, ou o seupassado. A universidade deveriaser inteiramente transformada.Nesse momento, as comemoraçõesficaram restritas à “direita”(comemorações oficiais), paraquem o sentido originário daUSP sempre se constituiu em referênciapara as celebrações. (Asexpressões “esquerda” e “direita”faziam então sentido enquantomodos de nomear posições políticase ideológicas.)Em 1984, janeiro, momento da“abertura” política, da esperança,ainda, na possibilidade das eleiçõesdiretas, a celebração dos 50 anosda USP foi claramente demarcadapor comemorações oficiais e porcontra-comemorações. A comemoraçãooficial no Conselho Universitário,com a presençade autoridades, emsessão solene, foi aportas fechadas, poisum grupo de professores,funcionários eestudantes protestavana entrada, reclamandodos salários e dascondições de trabalhona universidade.O insólito da cenaporém, para aqueles que vivenciarama história da USP desde 1964,de dentro da então Faculdade deFilosofia, Ciências e Letras (queaté 1969 congregou a maior partedos atuais institutos e faculdadesda universidade), era constatara presença da então ministra daEducação, Esther de FigueiredoFerraz, uma das autoridades convidadas,reitora da UniversidadeMackenzie em 1968, quando partedos alunos dessa escola (que foramdefendidos pela então Reitora),apoiados por grupos paramilitarese protegidos pela polícia, atacaram


Revista <strong>Adusp</strong>com tiros e bombas o prédio da ruaMaria Antonia, onde funcionavaaquela Faculdade, depredando-o eincendiando-o. No seu discurso, aMinistra afirmava: “A USP soube,como sempre saberá, vencer suaspróprias crises, olhos postos, antese acima de tudo, nos ideais queinspiraram o ato de sua criação.Pois o futuro de nossas universidades(...) reside na renovação de seuespírito originário”.As contra-comemorações apontavampara o caráter burocrático eexcludente da celebração. Nomesrepresentativos da Universidade,porém visualizados como de “esquerda”pela instituição,haviam sidoexcluídos da comemoração.Na porta doAnfiteatro da USP, osgrupos protestavam,contidos pela polícia,em nome de umamaior representatividadena instituição.Não se tratava maisde uma luta por umauniversidade “vanguarda da revolução”,como 20 anos antes, masda demanda por uma maior participaçãono poder universitário,reafirmando a autonomia universitária,fortemente comprometidanos anos da Ditadura, e o caráterpúblico da instituição. De algummodo, embora sem referênciasexplícitas, a contra-comemoraçãoresgatava também alguns dos ideaisde origem da instituição.Recuperar um pouco essahistória permite perceber comoa Universidade sempre esteveatravessada por lutas pelo poder,que significaram em grande partedesses momentos disputas emtorno de sentidos que deveriamorientar a sua constituição e o seufuncionamento. Lutas em torno deidéias, que construíram a visibilidadede uma instituição divididapor posições político-ideológicasdiversas, quando não contraditóriasmesmo.A fundação da USP em 25 dejaneiro de 1934, dia da comemoraçãodo aniversário da fundaçãode São Paulo, significou uma escolhaque evidentemente marcaum dos sentidos incorporados aomito de origem (não por acaso aA USP sempre esteve atravessada por lutaspelo poder, disputas em torno de sentidosque deveriam lhe orientar. Sempre foi divididapor posições político-ideológicas diversas,quando não contraditóriasOutubro 2004comemoração do IV Centenárioda cidade de São Paulo, em 1954,teve como um dos seus temas significativosos 20 anos da criaçãoda Universidade). Nem sempreos ideais foram tão nobres, muitasvezes travestiam oportunidadespolíticas para chegar ao poder.O projeto da USP, gestado já nosanos 20, concebia a Universidadede São Paulo tendo como núcleouma Faculdade de Filosofia, Ciênciase Letras, que deveria ser olugar da “produção do universal”,por via da formação das elites dirigentes,que expressariam o “saberdesinteressado”, a partir doqual teriam a visão integrada datotalidade da sociedade. Posiçãodesvinculada dos “interesses particulares”,portadora do “interessegeral”, que poderia solucionara crise política e moral originadapela “degeneração dos costumespolíticos da nacionalidade”.O discurso que sustentava oprojeto se enunciava, então, comoo do interesse geral, contra os discursosparticularistas da pequenapolítica partidária oligárquica, econtra os efeitos da decadência políticae moral resultantes da Leide 13 de maio e da implantaçãodo regime republicano.Rebaixamentodo caráter nacionala partir do afluxo repentinodos 2 milhõesde negros subitamenteinvestidos de prerrogativasconstitucionaise do surgimento dasoligarquias que passama caracterizar ofuncionamento do sistemapolítico, desde a proclamaçãoda República.Disputas políticas e ideológicas,a que se seguem outras, já naconfiguração histórica do governoVargas e da revolução de 1932,nas quais a universidade continuaaparecendo como solução dascrises políticas e morais (a universidadecomo resultado da lutapaulista de 1932 contra Vargas étambém um dos traços do mitode origem). Em janeiro de 1934, auniversidade é criada, agora comVargas, na interventoria de ArmandoSalles de Oliveira (mem-15


Outubro 200416bro do grupo reunido em tornodo jornal O Estado de S. Paulo, aolado de Júlio de Mesquita Filho,Fernando de Azevedo e outros).As oposições político-ideológicascaracterizam, ainda, osprimeiros anos de funcionamentoda USP: a luta (cruzada) anticomunista,que revelou a disputaentre sentidos antagônicos atribuídosà liberdade de pensamento;a luta contra o fascismo, já sob oEstado Novo, quando as disputasinternas à universidade são arrefecidasdiante do inimigo comum,obscurecendo a divisão social epolítica que constituiu a universidadedesde a origem,obscurecimento esteque projeta uma imagemdemocrática despidados conteúdosautoritários que pôdecomportar no momentoimediatamenteanterior.Já nos primeirosanos de funcionamentoda Universidade,vai ficando claro que o projetodos fundadores não podia ser implantadotal como idealizado. Nãopor acaso, Júlio de Mesquita Filhopôde afirmar, alguns anos maistarde: “Não a quiseram tal quala ideamos”. O ideal de formaçãodas elites dirigentes, atribuído àFaculdade de Filosofia, nuclearno projeto, vai perdendo significadoe visibilidade. Alguns motivoslevaram a isso.Diante das salas de aula praticamentevazias, os alunos dos cursosda nova faculdade tiveram que serrecrutados, sob a forma de comissionamento,entre os professoresprimários e secundários do Estadode São Paulo. As missões estrangeiras,não estando propriamentecomprometidas com o projeto políticoe ideológico dos fundadores,foram responsáveis pela criaçãode um padrão acadêmico e científico(sem dúvida, um dos ideaisdo projeto original), dando início auma projeção da USP, sob a formade um salto cultural, realizado especialmentepela nova Faculdade,numa cidade ainda acanhada, comoapontou Lévi-Strauss.A Faculdade de Filosofia, Ciênciase Letras jamais conseguiu seTraços de uma concepção da educaçãocomo coisa pública, presentes desde o projetodos fundadores da USP, permanecematé mesmo durante a Ditadura, apesardas tentativas de silenciamentotornar o núcleo da nova universidade,o seu centro articulador, quedeveria congregar as disciplinasbásicas já existentes nas faculdadesprofissionais, que passaram aformar a USP. Pelo contrário, asdisputas pelo poder no interior dorecém criado Conselho Universitáriorevelavam, desde o início, umaposição problemática da Faculdadede Filosofia, dentro da Universidade,que desde então, de algummodo se manteve.Essas disputas internas emtorno de projetos distintos para aUniversidade marcaram a históriaRevista <strong>Adusp</strong>da USP, que também comportoulutas no âmbito externo a ela.Citando algumas referências importantes:a luta contra o fascismo(já referida); a Campanha emDefesa da Escola Pública, amplomovimento do final dos anos 50,com a participação significativada FFCL da USP, que surge seposicionando contra o projeto delei sobre “Diretrizes e Bases daEducação Nacional”, procurandoimpedir a desagregação do sistemapúblico nacional; a participação daUSP na Campanha de algum modoretomava temas defendidos no“Manifesto dos Pioneiros da EducaçãoNova”, de 1932,redigido por Fernandode Azevedo,expressão dos ideaisdo grupo fundadorda USP, incorporadosao projeto de criaçãoda Universidade e aoDecreto que o institucionaliza.Constituemo núcleo desse ideário:a função essencialmentepública da educação (aíincluído o sistema universitário),a laicidade e a gratuidade, dentreoutros pontos.É interessante perceber queesses traços de uma concepçãoda educação (incluindo o sistemauniversitário) como coisa públicaestão presentes no projeto dos fundadores,no Manifesto dos Pioneirosda Educação Nova, no Decretode fundação da Universidade deSão Paulo, na Campanha em Defesada Escola Pública, nos debatesem torno da Reforma Universitáriaque se iniciam em 1963 e que


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Acervo IconographiaConflito na Rua Maria Antonia entre estudantes da USP e do Mackenzieprosseguem de alguma maneirasob a Ditadura, a partir de 1964.Ao longo de todo esse períodoesses traços de uma concepção daeducação (e da universidade) comoessencialmente pública permanecem,a despeito das tentativas dedesqualificação e de silenciamentomesmo dos debates durante a Ditadura.A reforma universitáriafederal, aprovada em 28/11/68, àsvésperas do Ato Institucional nº5,após o silenciamento imposto pelarepressão política, ainda assimmantém aqueles traços.Esses valores não foram tocadosno que tange ao sistema público deensino, possivelmente porque nãose constituíam como referênciasapenas da “esquerda”. A composiçãodo Grupo de TrabalhoFederal da Reforma Universitária,assim como do grupo que elaborao chamado “Memorial Ferri”, quese constituía na “direita” dentro daUSP, tem neles representadas figurasque em um momento anteriorapoiaram a Campanha em Defesada Escola Pública. Apesar das aposentadoriascompulsórias na USP,da exclusão do então vice-reitorem exercício que liderava propostadiversa para a reforma da Universidade,conseqüentemente silenciada,foram mantidos os valoresda universidade pública e gratuita.Até o AI-5 em dezembro de1968, e apesar da Ditadura, asdiscussões sobre a Reforma Universitária,no país e dentro da USP,foram expressivas, na medida emque diversos projetos bastanteelaborados, alternativos ao do GTfederal e ao do Memorial Ferrina USP, puderam ainda ser publicadose debatidos. As reformasuniversitárias aprovadas, a federale a da USP, puderam ser entãoclaramente visualizadas, por aquelesque discordavam delas e domodo de encaminhamento, comoas expressões de posições políticase ideológicas vencedoras pela força,pela exclusão e por um quasesilenciamento, que precisava serpermanentemente mantido peloscontroles ideológicos ou pela repressãopolítica mesma.Esse silenciamento ainda assimfoi rompido em alguns momentos,17


Outubro 2004contra uma intervenção maiorpor parte dos governos militaresnas estruturas curriculares daUniversidade, como foi o caso daluta contra a implantação das LicenciaturasCurtas e a introduçãoda Educação Moral e Cívica. Emsilêncio, as estruturas curricularese os programas dos cursos forammantidos, com a única exceção daintrodução da disciplina de ProblemasBrasileiros, versão da EducaçãoMoral e Cívica, porém driblada,adaptada e sob o controle doscursos da Universidade.Certamente não havia na “direita”(os que apoiavam a Ditaduranaquele momento)um consenso quantoà defesa do caráteressencialmentepúblico do sistemauniversitário. Tantoé que a política doMinistério da Educaçãoconstituiu-seem uma forma deprivatização do ensinosuperior (sem quese tocasse, quanto a essa questão,diretamente nas universidades publicas),que significou o estímulo àexpansão das instituições de ensinosuperior privado, com subsídio doEstado, e na conseqüente diminuiçãodas verbas para as universidadespúblicas, com o repassede recursos públicos para o setorprivado. Mesmo para aqueles representantesda “direita”, que nãoestavam convencidos e não defenderiamo caráter público e gratuitodo sistema universitário, não erafácil a ele se opor publicamente. Ocaráter simbólico da universidade18pública e gratuita construído no paísera forte o suficiente para impedir,ou pelo menos não facilitar, amanifestação pública de um discursoem defesa da privatização dessasuniversidades e da não gratuidadedo ensino, mesmo sob a Ditadura.Esse caráter simbólico da universidadepública e gratuita semdúvida parece ter sido mantido aolongo de todos esses anos pelaslutas em sua defesa. Não é possíveldesconsiderar, porém, que houve apreservação de um discurso, de umnúcleo de valores originários centradosna idéia da educação (e dauniversidade) como coisa pública,A universidade de hoje pouco tem a vercom a universidade do período da Ditadura.Houve, sim, reformas que produzirammodificações significativas no seu perfil.Reformas que foram realizadas aos poucose pontualmente, sem muito alardeRevista <strong>Adusp</strong>um ideal do público, que operou,enquanto uma universalidade abstrata,como uma espécie de idéiareguladora, preservando os aspectosemancipadores da educação eda cultura, a despeito dos seus momentosregressivos.Alguns diagnósticos, hoje, sobrea universidade brasileira e sobre aUSP em particular, tendem a afirmarque essas instituições, nestemomento, seriam, ainda, a expressãoda reforma universitária realizadapela ditadura. Possivelmentepara legitimar a necessidade e aurgência de uma nova reforma universitária,36 anos depois, parecemdesconhecer que a universidade dehoje pouco tem a ver com a universidadedo período da Ditadura, eque houve, sim, reformas universitáriasque produziram modificaçõesbastante significativas no seu perfile no seu funcionamento. Essas reformasnão mais se constituíram emgrandes acontecimentos marcadospor debates e disputas em tornode projetos, mas foram sendo realizadasaos poucos e pontualmente,sem muito alarde, primeiramentecomo medidas anunciadas por meiode “balões de ensaio”, fazendoos recuos necessários, quebrandoresistências de modolento, através da construçãode um discursode caráter técnico, queaparece quase inteiramentedespido deconteúdos políticos eideológicos.Para construir umaimagem que permitauma melhor visualizaçãoda questão: écomo se a universidade fosse sendominada a partir de dentro delaprópria, perdendo a força simbólicaque tinha como forte expressãoda coisa pública (aliás, processoque com algumas característicasespecíficas vem ocorrendo há maistempo no sistema de educação públicade modo geral).Ainda durante os anos 70, silenciosamente,foram sendo criadasalgumas fundações dentro da USP.A “inércia burocrática”, a necessidadede “racionalização administrativa”e de “captação de recursosexternos” justificavam essas inicia-


Revista <strong>Adusp</strong>tivas que começavam a transformaro perfil da Universidade, sem quese apresentassem explicitamentecomo projetos nesse sentido. Esseprocesso, ainda silenciosamente, seacelera fortemente nas décadas seguintes.Cursos pagos, oferecidosdentro da instituição, passam a servistos como algo inteiramente normal,a partir de um acordo tácito ede um consenso que vai, aos poucos,se construindo. A intensidadedesse processo torna-se visívelmuito recentemente.Essas reformas universitáriasrealizadas desse modo pontual caracterizaramo período que se abrecom a Nova República,prosseguindo demodo acentuado nosanos 90. É precisodizer que na USP,em particular, algumasdelas passam acompor o Estatutode 1988, que foi instituídoem um climamarcado ainda pordisputas, mas queforam sendo recobertas por um discursode caráter técnico formadorde um consenso considerável.Dentre essas reformas pontuais,os processos de avaliação, talcomo foram sendo pouco a poucoimplementados, operaram umatransformação da universidade.Processos que se propõem semprecomo técnicos, verdadeiros dispositivos,que passam a constituir a vidanormal da instituição, vão construindoum discurso, cujas palavrasque nomeiam suas práticas, eram,até meados dos anos 80, estranhasà academia. Mercado educacional,mercado de qualidade, avaliação dodesempenho, produtividade, produto,cliente, eficácia e eficiência,padrões de desempenho, rankings,taxas, indicadores de produção (devários produtos), custo per capita doproduto (aluno), etc.Os efeitos dessas reformas sãoconsideráveis. Modificações expressivasnos modos do trabalhoacadêmico: diminuição acentuadados prazos para a realização do mestradoe do doutorado; perda da relevânciado mestrado; introdução maisabrangente da iniciação científica nagraduação visando a pós-graduação,mas criando uma especializaçãoA referência mais atual e expressivado processo de esvaziamento de sentidodo público nas universidades é a “ReformaUniversitária” do governo federal,que acelera fortemente uma tendênciadelineada nas últimas duas décadasOutubro 2004precoce; o trabalho intelectual enquantoproduto, subordinando-sea padrões de produtividade. Modificaçõesnos procedimentos decriação de novos cursos, nos quais osdepartamentos passaram a ter poucaforça política; perda da relevânciada estrutura departamental (algunsbalões de ensaio propondo a suaextinção foram colocados há poucotempo); processo de formação deuma nova estrutura em substituiçãoaos departamentos constituída pelosgrupos de pesquisa.Outras modificações poderiamser consideradas. Mas o que importaaqui é menos arrolá-las todase entrar no mérito de cada umadelas, e sim destacar que esse processodas reformas pontuais constituium indício de esvaziamento daconcepção da universidade comocoisa pública, por via da quase inexistênciade discussões e disputaspúblicas em torno de valores, deprojetos, pela presença de umaquase indiferença (não mais o silêncio)produzida possivelmentepela predominância de um discursotécnico, estruturado por referênciastranspostas da esfera privada.Possivelmente esse quadro poderiaexplicar a quase ausência de contracomemoraçõesnos 60 enos 70 anos da USP.Esse processo de esvaziamentode sentidodo público, de perda dosignificado da palavra eda coisa, que tem levadoà indistinção entreo que é público e o queé privado, ou à confusãoentre essas esferas, ébem mais generalizadodo que o caso particular da USP.A referência mais atual e maisexpressiva desse processo que vemocorrendo nas universidades é o encaminhamentoda “Reforma Universitária”pelo governo federal. Vale apena comentar em linhas gerais esseprocesso, porque ele acelera fortementeuma tendência que vem sedelineando nas últimas duas décadas.Parece não haver, ou se existenão se torna pública, uma propostaarticulada de reforma universitáriana qual sejam expostas as diretrizesque sustentariam uma dada concepçãode universidade, acompanhadas19


Outubro 2004Entre os obstáculosque se impõem aoestudante brasileiroem seu caminho àuniversidade públicaestão, em primeirolugar, aqueles que existem, desdesempre, para a garantia aos maispobres do direito fundamental atodos os bens e serviços públicosnuma sociedade tão desigual comoa nossa. Tais problemas decorremda própria situação de pobreza ede subcidadania, agravada pelafalta de informação ou, quando estaexiste, informação manipulada;por preconceitos e discriminaçõesde toda sorte e a extrema precariedadede acesso aos bensculturais, desde os livros e materiaisnecessários para acompanharos estudos até roupaou condução adequada.Na esteira de tais problemas,chegamos àqueles quedecorrem da especificidadedo acesso ao ensino superior,que vêm também da negação dodireito fundamental à educação.É bem conhecido o gargalo querepresenta o ensino médio (apesarda dedicação de tantos docentes,a formação de professores deixamuito a desejar), além da faltade condições adequadas para amanutenção dos estudantes maisdesprotegidos nas universidades eo próprio sistema de vestibulares.Já é lugar-comum afirmar que sóaqueles que fizeram um bom segundograu, geralmente privado,ou podem pagar cursinhos preparatórios,chegam às boas universidadespúblicas, sobretudo nasáreas mais concorridas.22A entrada nauniversidade públicaé terrivelmente dependentedos sábios que inventam osvestibulares. Os atuais vestibularesbeneficiam CDFs que resolvempegadinhas, e descartam alunosmais interessados ou maistalentososPara os poucos que estudamnos colégios do Estado e vencema barreira do vestibular, arealidade continua cruel. Sãopéssimas as condições para odesempenho adequado daquelesestudantes que precisam trabalhar;as bolsas de estudo são poucas,muito disputadas e com critérios,às vezes, estapafúrdios, comoimpedir que bolsistas dêem aulasremuneradas; o horário noturno éprejudicado, com reduzido númerode disciplinas optativas e outrasatividades (como semináriose debates), e a infraestrutura éprecária, sem os serviços de secretaria,biblioteca etc., às vezes atésem possibilidade de alimentação,além do serviço de transporte insuficienteà noite.A entrada nas universidadespúblicas também é terrivelmentedependente dos sábios queinventam os vestibulares. OsRevista <strong>Adusp</strong>atuais vestibulares são horríveis:avaliam quem sabe decorar e resolverpegadinhas e acabam descartandopossíveis alunos maisinteressados numa verdadeiraformação (no sentido mais fortedo termo), ou mais talentosos, ebeneficiam alguns CDFs que têmcomo meta principal se formarem algo que “dê uma boa grana”,como já ouvi tantas vezes. Deque adianta festejar o garoto quetirou os primeiros lugares nosvestibulares mais concorridos, seele próprio confessa, em entrevistaà revista Veja, que não leulivro algum, apenas os resumosdados pelo colégio de elite? Ovestibular tem que ser radicalmentemudado, e cada áreadeve ser responsável pelasua seleção.A cobrança de taxas paraa inscrição nos vestibularestambém precisa ser revista.Os alunos de escolas públicasdeveriam ficar automaticamenteisentos, assim como outrosque demonstrem qualquerimpedimento financeiro, comoter sido bolsista em escola privadae morar em favela, por exemplo.Estes são problemas urgentesa serem enfrentados dentro deum programa de curto, médio elongo prazo, para conquistarmos,enfim, a sonhada democracia noensino superior.As principais ações em curtoprazo são exigir verbas das autoridadespertinentes, redefinir osistema de bolsas para estudantes“carentes” (ou outra palavra melhorpara identificar os realmentenecessitados de ajuda), implantar,


Revista <strong>Adusp</strong>Estudante acorrentada ao portão daFuvest: protesto do Movimento dosSem-Educação. Setembro de 2003Daniel GarciaOutubro 2004já, um sistema de ação afirmativa,por cotas, com critério de metaspara o acesso, e reduzir ou eliminartaxas para os “carentes”.Em médio prazo, precisamosmelhorar as condições do ensinonoturno, assim como abrir maisvagas em faculdades que até hojenão o fazem por puro preconceito.Isso significa investir na infraestruturae na contratação de docentese funcionários. Outra necessidadeé modificar o vestibular, como jáfalamos acima. E para curto, médioe longo prazos precisamos ter,como prioridade, o compromissocom a expansão do ensino médiocom qualidade, o que requer políticapública da melhor qualidade,vontade política e pressão da sociedadeorganizada. Para isso, seránecessário investir radicalmente naformação de professores de primeiroe segundo graus, exigência paratudo em educação neste nosso paísonde encontramos professores semi-analfabetos,e garantir a todosos professores acesso facilitado aosbens e serviços culturais, questãoque deve ser contemplada por políticasmunicipais e estaduais.A importância da adoção daschamadas políticas afirmativas noquadro atual do ensino superiorbrasileiro é imensa. São políticascompensatórias e, como tais, podemser abandonadas quando nãose fizerem mais necessárias. Hoje,eu diria que são parte da solução.É uma porta de entrada, que deveser acompanhada de medidasconcretas para garantir que osbeneficiados consigam manter-see acompanhar os cursos. Volto àquestão das bolsas para pesquisa,da moradia estudantil, das bolsastrabalhoetc. Não se trata de darum curso precário para quem jávem da precariedade. Isso seriauma crueldade: por cima da queda,o coice. Os beneficiados porcotas não podem ser vistos e tratadoscomo sub-alunos. Assim comoo governo deve apoiar a pequenae a média empresa, visando aodesenvolvimento nacional, o mesmoraciocínio deve ser aplicado àUniversidade.Pensando desta forma, creioque o sistema de cotas por metaseria o ideal. Exemplo: queroque, em dez anos, tenhamos naUSP 20% de alunos negros, ouoriundos de escolas públicas; umadeterminada porcentagem de mu-23


Outubro 2004lheres negras; uma determinadaporcentagem de deficientes. Asações afirmativas nos EUA contribuirampara a formação de umaampla classe média negra e hojeo sistema de cotas talvez não sejamais necessário.No caso dos negros é bomafirmar que o objetivo é darvisibilidade acadêmica àquelesque, pelo simples fato de teremcerto tom da pele ou do formatoda boca e do nariz, são discriminadose, portanto, não têm comoascender às carreiras de status nasociedade. Só poderemos reduziro preconceito quando houvernegros médicos, engenheiros, juízes,arquitetos, professores universitários,jornalistas, músicosclássicos, diplomatas etc. em númerocompatível com a presençanegra na sociedade. Portanto, ascotas para negros não significama mesma coisa que as cotas parapobres em geral — que tambémtêm direito, evidentemente. Apobreza é um problema socialgrave; os negros, que tambémsão majoritariamente pobres, sãovítimas também de racismo. Queremosuniversidades policrômicase democráticas.Os impactos favoráveis deuma mudança dessa amplitudeserão também gigantescos. Emprimeiro lugar, ela irá contribuirpara a efetiva democratização daUniversidade, pela inclusão sociale étnica, o que dará uma nova feiçãoà formação de cidadãos. Emseguida, a qualidade de ensino, aocontrário do que os críticos daspolíticas afirmativas afirmam, podemelhorar no sentido de que osatuais docentes estarãodiante de um desafionovo e certamenteserãoc o b r a d o spelos antigose novos alunos,no sentidode queos cursosnão sejam“rebaixados”com adesculpa daentrada dos“cotistas”.A diversidadesempre provoca questões,problemas e encaminhamentode soluções, o que sempreé enriquecedor. Alunos comexperiências de vida diversas damaioria “elitista” das universidades(vida rural, cultura de outrasregiões, como o Nordeste), assimcomo com traços da cultura africana,podem contribuir para discussõesem sala de aula, seminá-As cotaspara negros não sãoa mesma coisa que as cotaspara pobres em geral. A pobrezaé um problema social grave; osRevista <strong>Adusp</strong>rios ou outras expressõesque tragam para avida acadêmicanovos olhares,novas formasde pensar etrabalhar.C h a m oa atençãopara umprojeto, jáaprovado naFaculdade deEducação daUSP, da criaçãode um curso degraduação (quatroanos) para membros doMST, que serão professores desuas escolas. A seleção terá critériospróprios, e não feita pela Fuvest, ea clientela é de assentados ou filhosde assentados, e que terão o diplomapara trabalhar nas escolas doMST, que são escolas públicas. Estecurso, de Pedagogia da Terra, certamentelançará a semente de novosprojetos no gênero.negros, majoritariamente pobres,são vítimas também de racismo.Queremos universidadespolicrômicas edemocráticasDaniel GarciaAcampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto na USP. Novembro de 200324


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Daniel GarciaAÇÕESAFIRMATIVAS,SIMValter Roberto SilvérioProfessor e diretor Diretor do Centro de Educaçãoe Ciências Humanas da UFSCarPetronilha Beatriz Gonçalves e SilvaProfessora da UFSCar, membro da Câmara deEducação Superior do CNE-MECA demanda dos negros brasileiros por reparações atravessa oséculo XX em diferentes manifestações. Governantes e sociedademantiveram-se indiferentes, até 2001, quando o Brasil assumiuem Durban o compromisso de elaboração e execução de políticasde combate ao racismo e a toda sorte de discriminações. Umprograma de ações afirmativas exige que se reconheça a diversidadeétnico-racial da população brasileira, corrijam-se distorçõesde tratamento excludente dado aos negros, e encarem-se ossofrimentos a que têm sido submetidos não como um problemaunicamente deles, mas de toda a sociedade brasileira25


Outubro 2004“A universidadebrasileira sempreteve cotas! 100%para brancos.”Hélio SantosAdemanda dos negrosbrasileiros por reparações,que hoje resultamem políticas de açõesafirmativas, não é fatorecente, atravessa oséculo XX em diferentes manifestações.Contudo governantes e sociedademantiveram-se indiferentes,até 2001, quando o Brasil assumiu,na Conferência Mundial de Combateao Racismo, DiscriminaçãoRacial, Xenofobia e IntolerânciaCorrelata, o compromisso de elaboraçãoe execução de políticasde combate ao racismo e a todasorte de discriminações.Os afrodescendentes tiveramreiteradamente negado o direitode viver e atuar enquanto cidadãos,ficando os avanços no sentido destaconquista unicamente às expensasda própria população negra, pormeio de iniciativas de diferentesgrupos que compõem o MovimentoNegro. Uma sociedade tácita edeliberadamente excludente comoa brasileira, de mentalidade racistae discriminadora, tal qual comprovameloqüentes estudos realizadosno IPEA, como os de Henriques(2001), Jaccoud & Beggin (2002),cultiva valores que justificam exclusãode muitos e privilégios para unspoucos que se têm como superiores.Os negros, assim como outrosgrupos postos à margem pelasociedade, resistem ao plano deAs cotaspara negros,política institucional decada vez maior número deuniversidades, têm tornadocandente a discussão a respeitodas diferentes condições deeducação oferecidas adiferentes segmentosideais, papéis, condutas que se lhespretende impingir. Afirmam e queremver confirmadas sua história esua cultura, tal como as herdarame vêm reconstruindo em dolorosasrelações que lhes são impostas. Pretendemver reparadas as injustiçasde que são vítimas e assim receberas condições devidas a todos os cidadãosde tomarem parte da eliteintelectual, científica, política.É neste quadro que deve serinterpretada a exigência dos negrosbrasileiros, descendentes dos africanosque para cá foram trazidos escravizados,por reparações, por políticasde ações afirmativas, por metas,tais como cotas nas universidades.Estas demandas têm de ser entendidascomo indenizações devidas,pela sociedade, àqueles a quemtem, ela, impedido vida digna e saudável,trabalho, moradia, educação,respeito a suas raízes culturais, àsua religião. O pagamento da dívidaprecisa ser concretizado mediantepolíticas, organizadas em programaRevista <strong>Adusp</strong>de ações afirmativas, que eliminemas diferenças sociais, valorizando asétnico-raciais e culturais.Os programas de ações afirmativasrequerem metas a curto,médio e longo prazos, recursosfinanceiros, materiais, além deprofissionais competentes, abertosà diversidade étnico-racial da naçãobrasileira, sensíveis aos gravesproblemas sociais, econômicos quedela fazem parte, comprometidoscom justiça, capazes de combaterseus preconceitos contra pessoase grupos e de com estes interagir,sem tentar assimilá-los a valores,objetivos, orientação de vida quese pretenderiam universais, ao contrário,propõem-se a respeitar asdiferentes raízes que constituema nação brasileira — indígena,africana, européia, asiática— e, com seus representantes,a redimensionar a vida das instituições,reeducar as relaçõesétnico-raciais, entre outras.Um programa de ações afirmativasexige, pois, que se reconheçaa diversidade étnico-racial da populaçãobrasileira, restabeleçam-serelações entre negros, brancos,índios, asiáticos em novos moldes,corrijam-se distorções de tratamentoexcludente dados aos negros,encarem-se os sofrimentos a quetêm sido submetidos, não como umproblema unicamente deles, mas detoda a sociedade brasileira.As cotas para negros, políticainstitucional de cada vez maior númerode universidades, têm tornadocandente, a partir da aceitação ourejeição desta meta de programasde ações afirmativas, a discussão arespeito das diferentes condições de26


Revista <strong>Adusp</strong>educação oferecidas a diferentes segmentosda população; de privilégiosque têm-se restringido a alguns grupos;do papel da educação superior,de a quem e a que ela serve; dos critériospara ingresso na universidade.Os opositores das cotas paranegros nas universidades formulamprofecias de que seriam nocivas paraa excelência da formação acadêmica.Julgam tratar-se simplesmente de cópiade políticas adotadas nos EstadosUnidos, a partir dos anos 1960, sobpressão do movimento dos DireitosCivis. Entretanto, estes críticos parecemignorar que estão reagindo comatitudes e questionamentos muitosimilares aos então expressos por estadunidensese, como eles, baseandosuas posições em opiniões, semevidências concretas, dados depesquisa que as sustentem.Em suas contestações, há osque não admitem a existência deuma linha divisória de cor ou dediscriminação racial no Brasil; osque sobrepõem, a qualquer outraforma de clivagem social, a problemáticadas classes sociais, em especialda pobreza. Estes indagam, porexemplo: Por que não dar cotas paraescola pública em lugar de cotas paraestudantes negros? Por que não darcotas para estudantes de baixa renda?Por que não melhorar o ensino público?As cotas não “americanizam” osistema de ingresso nas universidadesbrasileiras? Como saber quem é negrono Brasil? 1Há os que aceitam a existênciade uma linha divisória de cor ou dediscriminação racial, mas consideramque tais processos, no Brasil,são menos perniciosos aos negros doque nos Estados Unidos. Perguntameles: As cotas não acirraram o racismo?Não acabam por inferiorizar aindamais os negros? Não levam a queos estudantes negros que ingressempelo sistema de cotas sejam discriminadosdentro da universidade?Outros reconhecem que raçatem sido um critério fundamentalde alocação de posições no mercadode trabalho e no sistema de poder e,implícita ou explicitamente, ponderam,no entanto, que a admissão naeducação superior que inclua raçaentre seus critérios, beneficiando osPesquisasmostram ser adiversidade racial deprofessores e estudantesessencial no ambienteuniversitário, por torná-loculturalmente mais rico eprofundamente desafiadore por otimizar oensinoOutubro 2004negros, acarretará prejuízos para osbrancos. E procuram saber se não seestaria criando uma elite negra queviria a competir com a elite branca,tendo esta de repartir privilégios.Outros ainda acreditam que raçacondiciona a capacidade intelectualdas pessoas e neste caso a ausênciados negros nos estabelecimentos deeducação superior dever-se-ia a naturalincapacidade. Os defensoresdesta posição temem que o nívelacadêmico, a excelência da educaçãosuperior sejam prejudicadoscom a presença de muitos negrosnos bancos universitários. Emboranão o explicitem, retomam implicitamenteargumentos do racialismocientifico do século XIX.Para responder a esses questionamentos,é preciso, antes de maisnada, problematizar: mas afinalqual é mesmo a função social daeducação superior? Não há dúvida,salientamos, de que o seu foco éatender às necessidades da sociedadeno que tange ao desenvolvimentocientifico e tecnológico, aodesenvolvimento econômico, semdescuidar, entretanto, do desenvolvimentohumano, o que implicaampliação sistemática da qualidadede vida, entendida não apenas nadimensão do acúmulo da riquezamaterial. Isto exige que sejapropiciada formação para atuarnuma sociedade multicultural epluriétnica, para garantir a participaçãode todos como cidadãos.Assim sendo, para cumprir afunção social da educação superiorque capacidades e aptidões devemser exigidas aos que nela ingressam?O que ela oferece e tem deproporcionar? Questões como estasexigem, como conclui Ribeiro 2a respeito da universidade brasileira,que se realize análise fundamentadada relação legitimidade xcompetência da universidade, “nãode forma abstrata, mas tendo comoreferência os interesses diferenciadose até antagônicos de classes,dos gêneros, das etnias e das raçaspresentes nas universidades”, ouporque representantes seus já asfreqüentam ou porque desejamnelas ingressar.27


Outubro 2004Como se vê, uma universidadesocialmente comprometida nãopode desconhecer a diversidadeque compõe a sociedade, tampoucorestringir seu reconhecimentoao discurso. Pesquisas mostram sera diversidade racial de professorese estudantes essencial no ambienteuniversitário, tanto para otimizar oensino e aprendizagens das matériasde estudos, como para educarconvenientemente as relações entrepessoas de diferentes herançasculturais e situações sociais, comotambém para criar um ambienteacadêmico mais rico e profundamentedesafiador. Entre formadospor instituições que incorporamo respeito e valorização da diversidadea suas metas, tem-severificado convívio respeitoso notrabalho e na vida social, nummundo que cada vez mais reconheceas diferenças que distinguempessoas e grupos. Tem-seobservado, entre eles, tambémmarcante aperfeiçoamento decompetências para liderança, alémde benefícios nos ganhos salariais,tanto entre negros como brancos. 3A educação superior que admiteo ingresso diferenciado, incluindoreserva de vagas para negros eoutros marginalizados, engaja-sena luta por justiça social e racial,ao buscar corrigir e suprimir discriminaçõesa que esses grupostêm sido submetidos. Isto não podeser entendido como esmola oufavorecimento indevido, uma vezque os ingressantes terão comprovadocompetências mínimas paraempreender estudos em nível superior.Caberá ao estabelecimentode ensino que os recebe fornecertodos os meios, apoio material, pedagógicoe até mesmo afetivo paraque cumpram com êxito o percursoacadêmico.Em nosso país, costumam algunsprofessores universitários deixar unicamentepor conta dos estudantes osucesso ou insucesso nos estudos. Algunsexibem, por incrível que pareçacom certo orgulho, o alto número dereprovações ou abandono nas disciplinasque lecionam. Outros chegama culpar os professores da educaçãomédia e até mesmo da fundamental,ComodestacamBowen e Bok,determinar os alunos demaior “mérito” depende doque se esteja tentando realizarem termos educacionaise sociais. Para isto, ostestes de entrada sãoinsuficientesdemonstrando que não se vêem deforma alguma comprometidos coma aprendizagem de seus alunos.Estes estão entre os críticos maisferinos das ações afirmativas. Eles,como todos os docentes, estão sendocompelidos a enfrentar a complexidadede conviver e compreender asvisões de mundo, os anseios e metasde grupos raciais e sociais diferentes,a rever critérios de seleção deingresso, a retomar os métodos deensino que adotam, a redimensionarRevista <strong>Adusp</strong>conteúdos, não para simplificá-los,ao contrário aprofundá-los incluindoas principais contribuições paraa humanidade produzidas nos diferentescontinentes, por diferentescivilizações. 4Mentalidade que põe os conhecimentos,competências, valoresa serem aprendidos na vida universitáriacomo que numa redomadificilmente rompida para seralcançada tem de se extinguir. Osnegros querem usufruir da vida universitáriae alcançar o melhor que aeducação superior possa oferecer aseus estudantes, não aceitam simplificaçõesque se pretenderia, comcurrículos e pedagogias racistas,beneficiá-los. Em outras palavras,cotas para negros, índios e outrosgrupos marginalizados requeremrevisão das relações pedagógicas,das metas e ações previstasnos planos institucionais dos estabelecimentosde ensino.Talvez o leitor se pergunte:“E como fica o mérito? E a excelênciaacadêmica?”Quanto ao mérito no ingressodestacam Bowen e Bok 5 , ex-reitoresde universidades americanas,em pesquisa que realizaram: ficaclaro que decidir quais são os alunosde maior “mérito” depende doque se esteja tentando realizar emtermos educacionais e sociais. Paraisto, seu estudo ao lado de outros 6pondera que os testes de entradasão insuficientes para julgar competênciasque venham a garantirsucesso no percurso acadêmico,uma vez que medem apenas algunsdesempenhos e potencialidades.Salientam que servem para mostraruma tendência e que conviria que28


Revista <strong>Adusp</strong>ao lado deles se encontrassem outrasformas de avaliar capacidades.É o que, segundo Nettles e outros 7 ,fazem algumas universidades estadunidensesentre cujos instrumentosde avaliação das condições paraingresso, além do teste, utilizam ocurrículo escolar da formação anterior(notas, disciplinas cursadas,atividades extra-curriculares), históriaeducacional e social da família,cartas de recomendação.Posições alarmistas em tornoda queda da qualidade do ensinoe perda da excelência na pesquisa,inspiradas pelo desejo de manter aapropriação permanente pelo grupobranco das recompensas e benefíciosadvindos do acesso à educaçãosuperior, e de consolidar uma aristocraciaintelectual arrogante e convictade superioridade, continuarãotrazendo impactos nefastos parao grupo negro, como demonstramsistematicamente os indicadoressociais. O desafio, pois, é redefiniros critérios de excelência acadêmicae científica, sem perder o rigorque é garantido por teorias educacionaise científicas historicamentesituadas, sistematicamente testadas,questionadas, reformuladas.A história detém as provas daobrigação da sociedade e tambémda universidade para com osnegros, o que assegura a autenticidadedo seu direito de acesso àeducação superior, por meio deações afirmativas 8 . Cabe lembrar,entre tais provas, o crime contra ahumanidade que se constituiu a escravizaçãoe tráfico dos africanos, adesumanidade do tratamento quereceberam os escravizados no Brasil,e o descaso com que vêm sendoconsiderados seus descendentes,nos 116 anos após a abolição doregime escravista, mantendo-os excluídosdos direitos dos cidadãos.Como bem salientou Franz Fanon9 , os descendentes dos mercadoresde escravos, dos senhores de ontemnão têm, hoje, de assumir culpapelas desumanidades provocadaspor seus antepassados. No entanto,têm eles a responsabilidade morale política de combater o racismo,as discriminações e juntamente comos que vêm sendo mantidos à margem,os negros, construir relaçõesraciais, sociais sadias, em que todoscresçam e se realizem enquanto sereshumanos, cidadãos. Não fossempor estas razões, seria pelo fato deusufruírem do muito que o trabalhoescravo possibilitou ao país. 10Immanuel Wallerstein afirmourecentemente que “o racismo estádisseminado por todo o sistemamundo.Nenhum canto do planetaestá livre dele, como característicacentral das políticas locais, nacionaise mundiais” (Wallerstein,2004, p.262) 11 . Daí ele propor“fazer do anti-racismo a medidadefinidora da democracia” (id.ib.).O modo mais eficaz para começara lutar contra esse racismo que seglobalizou é tentar erradicá-lo doespaço local em que atuamos e ondeele tem se reproduzido secularmente:nas universidades públicasbrasileiras e nos discursos das nossasCiências Humanas e Sociais.Assim sendo, com o debate, e asações práticas, no campo das relaçõesraciais podemos, brancos enegros, encontrar novos caminhospara construção de uma sociedadena qual ninguém tenha que negarOutubro 2004ou apagar sua identidade étnicoraciale o hedonismo seja umaopção para todos que quiserempor ele se orientar, e não uma “imposição”das “castas” que insistemem não permitir que as instituiçõesbrasileiras sejam anti-racistas naconsciência e multirraciais em suacomposição.Notas1 Quanto a esta última pergunta particularmente verParecer CNE/CP 003/2004 que trata de DiretrizesCurriculares Nacionais para a Educação das RelaçõesÉtnico-Raciais e para o Ensino de História ecultura Afro-Brasileira e Africana.2 RIBEIRO, Marlene. Universidade Brasileira Pós-Moderna: democratização x competência. Manaus,Editora da Universidade do Amazonas, 1999. p.356.3 AMERICAN Council of Education & AMERICANAssociation of Univerty Professors. Does Diversitymake a difference? The research studies on diversityin college classroom. Washington, 2000. p. 2-4.BOWEN, W. G. e BOK, D. O curso do rio: um estudosobre a ação afirmativa no acesso à universidade.Rio de Janeiro: Editora Garamond e Centro deEstudos Afro-Brasileiros, 2004.ORFIEL, Gary. org. Diversity Challenged; evidence onimpact of affirmative action. Cambridge, HarvardEducation Publishing Group. 2001.4 Neste sentido examinar parecer citado na nota nº1.5 BOWEN, W. G. e BOK, D. O curso do rio: um estudosobre a ação afirmativa no acesso à universidade.Rio de Janeiro: Editora Garamond e Centro deEstudos Afro-Brasileiros, 2004.6 AMERICAN Council on Education. Making the Caseon Affirmative Actions in Higher Education. Washington,1999.ORFIELD, Gary & MILLER, Edwarda. Org. ChillingAdmissions: the affirmative action crisis and searchof alternative. Cambridge, Harvard Education PublishingGroup, 1998.7 NETTLES, M. T. et al. Race and Testing in collegeAdmissions. In: : ORFIELD, Gary & MILLER,Edwarda. Org. Chilling Admissions: the affirmativeaction crisis and search of alternative. Cambridge,Harvard Education Publishing Group, 1998. p.97-110.8 Para aprofundar a discussão consultar: SILVA, PetronilhaB. G. e & SILVERIO, Valter R. Educação eAções Afirmativas; entre a injustiça simbólica e ainjustiça econômica. Brasília, INEP, 2003.9 FRANTZ, Fanon. Os Condenados da Terra. 2.ed. Riode Janeiro, Civilização Brasileira, 1979.10 CONSELHO Nacional de Educação, Conselho Pleno.Parecer 003/2004 Diretrizes Curriculares Nacionaispara a Educação das Relações Étnico-Raciais epara o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileirae Africana. Brasília, 2004. p. 6.11 WALLERSTEIN, I. O Declínio do Poder Americano.Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.29


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>COTAS,DO DIREITO DE TODOSAO PRIVILÉGIO DE ALGUNSFrancisco Carlos VitóriaProfessor de História do Conjunto Agrotécnico Visconde da Graça - Universidade Federal de PelotasA partir do ano 2000, setores do movimento negro passam a reivindicarum percentual de vagas — “cotas” para negros e negras, principalmenteno acesso ao ensino superior. Esta discussão, que ganhará centralidadecomo resultado das reuniões preparatórias à Conferência de Durban(2001), tem um equívoco em sua origem: ela destaca um item —implantação de “cotas” no acesso ao ensino superior — do que pode vira ser um conjunto de políticas caracterizadas como de ações afirmativas,e mostra-o como sendo o todo30


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Daniel GarciaEm todos os estágiosvividos pela sociedadebrasileira, da Colônia,dirigida para satisfazeros interesses mercantisda metrópole,passando pelo Império, de podercentralizado, disputado pelos diferentesinteresses da elite agrária,até alcançar a República, de umaeconomia que se moderniza sob oautoritarismo, que às vezes se mostraescancarando portas, às vezes seesconde observando pelas frestas, asituação da população negra, pelaforma como está inserida neste tecidosocial, é motivo de discussão.Buscando um passado não muitodistante, nos localizando a partirdo final da década de 70 do últimoséculo, observamos um retorno dosmovimentos sociais, em suas diferentesrepresentações e concepções,ao cenário político. Dentre estes, omovimento negro reintroduzindo aquestão racial, denunciando a existênciapersistente de práticas discriminatóriase racistas, e exigindo dopoder público, em suas diferentesinstâncias e esferas, medidas concretaspara coibí-las.Nos anos 80, os da redemocratizaçãoou da abertura política do Estadobrasileiro, os setores popularesdeixam a marca da exigência porespaços de participação. Na lutapor eleições diretas, no processo deelaboração de uma nova Constituição,se forma um campo democrático,espaço de negociações e de lutapela conquista de direitos, os diferentessetores do movimento socialpara aí convergem. O movimentonegro, em resposta às suas denúnciasde racismo, de discriminação,tem institucionalmente implantadosos vários conselhos de participaçãoda comunidade negra.Os anos 90 se caracterizampela emergência da necessidadede políticas públicas direcionadas31


Outubro 2004às chamadas minorias sociais.O debate se torna mais intensoprincipalmente após a adoção decotas para as mulheres nas listasde candidaturas de partidos políticose direções de sindicatos. Omovimento negro neste períodoarrola e apresenta como suas reivindicaçõesao governo federal:incorporar o quesito cor em diversossistemas de informação; estabelecerincentivos fiscais às empresasque adotarem programasde promoção da igualdade racial;instalar, no âmbito do Ministériodo Trabalho, a Câmara Permanentede Promoção da Igualdade, quedeverá se ocupar de diagnósticos eproposição de políticas de promoçãoda igualdade no mercado detrabalho; regulamentar o artigoda Constituição Federal queprevê a proteção do mercadode trabalho da mulher, medianteincentivos específicos,na forma da lei; implementar aConvenção Sobre Eliminação daDiscriminação Racial no Ensino;conceder bolsas remuneradas paraadolescentes negros de baixarenda, para acesso e conclusãodo primeiro e segundo graus; desenvolverações afirmativas parao acesso dos negros aos cursosprofissionalizantes, à universidadee às áreas de tecnologia de ponta;assegurar a representação proporcionaldos grupos étnicos raciaisnas campanhas de comunicaçãodo governo e de entidades quecom ele mantenham relações econômicase políticas.A partir do ano 2000, setoresdo movimento negro passam areivindicar um percentual devagas — “cotas”, para negros enegras, principalmente no acessoao ensino superior. Esta discussãoganhará centralidade na chegadadeste novo século, como resultadodas reuniões preparatórias àparticipação oficial e não oficialde delegações brasileiras à IIIConferência Mundial das NaçõesUnidas Contra o Racismo, DiscriminaçãoRacial, Xenofobia eIntolerância Correlata, realizadaem Durban, África do Sul, de 31de agosto a 7 de setembro de 2001.Os defensoresdo “sistema de cotas”usam como absolutaverdade o argumentode que são racistas, e/ouconservadores, todos os quetomam posição contra aimplantação das “cotas”Revista <strong>Adusp</strong>Após este evento o debate ganharáintensidade, transformando-se emuma polêmica que fará com que osque dela participam posicionem-secontra ou a favor da implantaçãodesta política.Penso que esta discussão temum equívoco em sua origem, istoé, ela destaca um item — implantaçãode “cotas” para negros enegras no acesso ao ensino superior— do que pode vir a ser umconjunto de políticas caracterizadascomo de ações afirmativas, emostra-o como sendo o todo.Deste ponto de partida, fecham-seos defensores da implantaçãodo “sistema de cotas” emseus próprios argumentos, sem sepermitirem escutar os questionamentosdaqueles que sentem e/oupercebem a posição desfavorávelda população negra em todas asáreas da vida da sociedade brasileirae que querem construir umasolução para esta questão. Usamcomo absoluta verdade o argumentode que são racistas, e/ouconservadores, todos os que seposicionam contra a implantaçãodas “cotas”, e não conseguem responderde maneira satisfatória àsquestões propostas. Tais como:1) Considerando e concordandocom o que é dito porintelectuais respeitados em suasáreas, com o que é mostrado,em trabalhos acadêmicos, emresultados de análises feitas porinstituições de pesquisas (governamentaisou não), que não deixamdúvidas sobre a profundidadeda exclusão sofrida pelos negros,isto é, pretos e mestiços, na sociedadebrasileira, exclusão esta queacompanha este segmento da sociedadedesde que para cá foi forçadamentetrazido e que, portanto,atinge a todos que a ele pertencem,por que defender a implantação deuma política restrita a apenas umaparte dos negros e negras que desejamcursar o ensino superior?2) Considerando o processo demestiçagem que historicamenteocorre no Brasil, não podemos deixarde admitir que existe, sim, todauma dificuldade para que possa-32


Revista <strong>Adusp</strong>mos identificar quem é negro nestepaís. Neste sentido, o movimentonegro buscou até então, na autodeclaraçãoa forma de afirmaçãoda identidade étnica. De todo modo,as experiências vigentes de reservade vagas para negros, UERJe UNB, têm-nos mostrado quepelo menos para esta finalidade estaforma de identificação não temconseguido dar conta da questão.Em uma, na UERJ, entidadesdo movimento negro denunciama existência defalsidade ideológica emdeclarações de negritude.Em outra, a UNB, paraevitar o risco de fraudesno processo foi criada afigura da comprovaçãofotográfica que, aceitapor setores do movimentonegro, será julgada poruma comissão a quemcaberá decidir quem énegro, e quem é maisnegro. Será esta a soluçãopara a identificaçãodos negros que poderãodisputar as vagas reservadas?3) Considerando queo processo de implantaçãode políticas e programasdenominados de equal oportunitypolicies e affirmative action a partirdos anos 60 do século passado, nosEUA, tem servido de espelho paraos defensores, aqui, da adoção dascotas raciais; e observando que oresultado destas políticas e programasnão fez com que houvesseuma diminuição do racismo e dadiscriminação contra os negros nasociedade norte americana, e queOutubro 2004Daniel Garciasentido, como se organizao movimento negro parasanar esta carência produzidana formação básicados estudantes?5) Considerando queos estudantes negros sãooriundos das famílias demenor renda e que estudarem uma universidadepública tem um custobastante elevado parapoder arcar com despesasde transporte, alimentação,vestuário, material eequipamentos escolares,participação em eventosculturais e educacionais;e observando-se que naprática esta carênciafinanceira já está provocandodade do ensino desta, em funçãoda frágil formação escolar com aqual os estudantes chegariam, duascoisas precisam ser ditas. Primeiro,concordamos que no que diz respeitoà qualidade da universidadepública, esta já é historicamentebaixa e não tem nada a ver com oingresso de alunos cotistas e simcom a falta de investimentos emrecursos humanos e materiais queos sucessivos governos têm produ-o alongamento do períodode conclusão do curso, ou mesmo aevasão por parte de alunos que jáingressaram através de programasde reservas de vagas em universidadepública (UERJ), percebe-seque a situação financeira das famíliasnegras requer do governo umaatenção especial na forma de políticaspúblicas com esta finalidade.Mas o que se vê no momento é amanutenção do descaso do gover-zido no país. Segundo, na medidaem que esta falta de investimentoproduzida é parte de uma concepçãopolítica de governo, estaatinge também as escolas públicasde ensino básico; local de origemda maior parte dos candidatos àsvagas reservadas. Entendendo issocomo verdade, então efetivamenteexiste uma defasagem na formaçãoescolar dos alunos das escolaspúblicas, negros inclusive. Nestenesta, hoje, apenas 3% da populaçãonegra encontra-se no consideradosetor médio da população, oque se quer saber é: de que formaa adoção das “cotas” poderá enfrentare dar contas das diferençassociais e da desigualdade social?4) Considerando a indignaçãodo movimento negro ao argumentoque diz que o ingresso de negrosna universidade pública atravésdas “cotas” irá fazer cair a quali-33


Outubro 2004no, no que diz respeito às questõessociais, estando ele voltado aoatendimento das necessidades domercado, em sua ânsia de concentraçãode capital.Diante desta contradição fundamental,isto é, a pressão que vem deum segmento social na busca do estabelecimentode políticas públicaspor parte de um governo dedicadoem atender aos interesses do capital,o que nos resta saber é: comoagirão os defensores da implantaçãoda política de cotas para desfazertal contradição? Mais, que tipode mecanismos está sendo criado,pelos defensores deste sistema,visando a manutenção, no interiordas universidades, dos estudantesnegros cotistas, até a conclusão deseus cursos superiores?6) Considerando as críticasfeitas por aqueles que buscam aimplantação da política de reservasde vagas, é possível se notara existência de uma incoerência.Dizem eles que o não aceitar as“cotas” é buscar manter o statusquo acadêmico, que mantém osestudantes negros fora deste ambiente,através de uma seleção paraingresso baseada na meritocracia,que se reflete através de umacompetição entre desiguais. Emresposta a isso, argumentam queintroduzido o “sistema de cotas”haverá a continuidade da competiçãopara ingresso nas universidadespúblicas, só que, então, esta se daráentre iguais — negros disputarãovagas com outros negros — e quedestes só ingressarão no ensino superioraqueles, que por mérito, alcançaremas melhores notas. Entãoquer dizer que a seleção pelo mérito,desde que existam privilégios aalguns (neste caso aos candidatosnegros), não é tão ruim?E quem diz, saindo do discursoe olhando a realidade, que a situaçãodos negros, destacados, porexemplo, aspectos econômico e deformação escolar, é igual? Devemosaceitar agora a exclusão de algunsnegros, provocada por outrosnegros? Devemos aceitar o vestibularcomo inevitável, deixandode lutar pela expansão das vagasno ensino superior público, comoDevemosaceitar agoraa exclusão de algunsnegros, provocada poroutros negros? Devemosaceitar o vestibular comoinevitável, deixando de lutarpela expansão das vagasno ensino superiorpúblico?forma de tornarmos concreto opreceito constitucional do direitouniversal à educação?Estas são questões básicas quesurgem a partir do que aparece nosdebates. Mas o motivo principal,que nos faz contrários à implantaçãodo “sistema de cotas”, é que osdefensores desta buscam uma mudançana história negando a história.No recorte que aqui fizemos,nossa observação tem inicio nofinal dos anos 70. AcompanhandoRevista <strong>Adusp</strong>a trajetória histórica da sociedadebrasileira, passando pelos anos80 até meados dos anos 90, todosdo século passado, podemos ver apopulação negra, organizada emmovimento ou não, posicionada aolado dos demais segmentos oprimidos,excluídos nesta sociedade.Construindo, com eles, a consciênciado direito a ter direito, lutandono campo popular pela conquistade direitos universais.A proposta de implantação do“sistema de cotas” mostra-nos quehá, hoje, para setores do movimentoe da intelectualidade negra, umaoutra concepção de sociedade, críticaà razão moderna, ao universalismoe à visão de totalidade. Queaceita a lógica pós-moderna dohomem, fluido e fragmentado,sujeito descentrado, de identidadetão variável que não deixaespaço à solidariedade, à açãocoletiva, que tenha por sementeuma identidade social comum— a classe por assim dizer.Portanto, estamos contra aimplantação da “política de cotas”por vermos nesta a busca da satisfaçãode uma demanda particularque, não levando em conta a causadesta necessidade, que reside nosistema capitalista, não luta contraeste, não se mostra enquanto umapossibilidade de continuidade daluta conjunta com os demais setoresda sociedade, que por estesistema também são oprimidos,na busca da emancipação geral.O que vemos, e não aceitamos,é uma proposta que abandona aluta anti-capitalista, que abre mãodo direito para todos em nome doprivilégio de alguns.34


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004DITADURA ERESISTÊNCIASEGREDOS DA REPRESSÃO NA USPOS IDOS DE MARÇO DE 1964 E O SIGNIFICADO DA DEMOCRACIAO GOLPE E A UNIVERSIDADE: ENTRE A REPRESSÃO E A MODERNIZAÇÃOFoto: Adriana Nery/Agência Estado35


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>36


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004FILHA BASTARDA DAUSP, AESI DESEMPENHOUDIFERENTES PAPÉIS NAREPRESSÃO INTERNAJosé Chrispiniano, Marcy Picanço e Marina GonzalezJornalistasA Assessoria Especial de Segurança e Informação (Aesi ou ASI),a um só tempo vinculada ao Gabinete do Reitor e à Divisão deSegurança e Informação do Ministério da Educação e Cultura(DSI-MEC), funcionou durante dez anos, de 1972 a 1982,exercendo diferentes papéis: “triava” candidatos a funcionárioou professor, colhia e repassava dados sobre supostas atividadessubversivas ocorridas na USP à chamada “comunidade deinformações” e até interferia nas disputas estudantis, dando apoioa chapas politicamente identificadas com o regime militar37


Outubro 2004a Aesi? Éaquele negóciopara pegarcomunista?”A definiçãoespontâ-“Ah,nea e informal do ex-reitor HélioGuerra, que dirigiu a USP de1982 a 1986, dá a medida do distanciamentoque as autoridadesuniversitárias procuram manterdesse assunto incômodo.Criada oficialmente pela USPem 23 de maio de 1973, emboraexistam documentos que indiquemseu funcionamento já em outubrode 1972, a Assessoria Especial deSegurança e Informação, ou Aesi,Ex-reitor Orlando Marques de Paiva, em 1984Revista <strong>Adusp</strong>Reginaldo Manente/Agência EstadoEX-REITOR CONTA COMO EXTINGÜIU A “AJosé ChrispinianoJornalistaAo assumir a Reitoria, em 1982, o professor Hélio Guerra deparou-se com “entre seis eexame de processos de contratação em “duas ou três salas” contíguas à do Reitor. EraInformação da Reitoria (Aesi, ou ASI). O professor Guerra, que dispensou seus membros,documentos ali encontrados, diz ter tomado conhecimento da sigla apenas por intermédio d“Aesi, esta sigla eu aprendicom você”, declara o ex-reitorGuerra, após revelar que imaginado que se trata: “É aquele negóciopara pegar comunista?”Relata que, ao tomar posse nocargo, tratou de conhecer a Reitoria.“O reitor que me precedeu,Waldir Muniz, me deu a chave e foiembora. E fui olhar. Tinha a imensasala do Reitor, onde ele ficava sentado.Tinha uma sala de reuniãomenor”, que passou a ser a sala doReitor. “Contíguas havia duas outrês salas menores, e lá o pessoalnão queria falar muito o que era,mas aí disseram. Era onde examinavamos processos de contratação”.“O chefe daquele grupo”, prossegue,“era um general reformadochamado Franco, mantido lá pelaCesp. Falei com ele: ‘Isso aqui nãoé a seqüência normal, não é a sistemáticaque a USP normalmenteadota, então eu não preciso maisda sua participação neste processo’,e ele entendia este negócio dehierarquia e falou: ‘Tá bom, entãoeu volto para a Cesp. Se o senhorprecisar de mim outra vez, estou àdisposição na Cesp, se precisar dealguma coisa só peço para mandarum carro me buscar’. Eu falei: ‘Seprecisar eu mando’, mas não precisei,então não mandei. E tinhalá de seis a dez pessoas, que nãosei de que origem eram, e indoembora o general Franco eu nemprecisei dizer para eles, não comparecerammais, acabou.”O professor Guerra diz terencontrado, nos arquivos da Aesi,38


Revista <strong>Adusp</strong>SSESSORIA”vinculada ao Gabinete do Reitor,colhia e repassava dados sobresupostas atividades subversivasocorridas na USP a outros órgãosda chamada “comunidade de informações”,como o Centro de Informaçõese Segurança da Aeronáutica(Cisa), o Centro de Informaçõesda Marinha (Cenimar), a PolíciaFederal, o SNI e o Doi-Codi.Os primeiros quatro anos deexistência da Aesi-USP coincidiramcom o período mais feroz doregime militar, em que morreramnas mãos de agentes daqueles órgãosde segurança centenas de pessoas,entre elas várias vinculadas àuniversidade, como Alexandre VanucchiLeme, aluno do Instituto deGeociências (IGc), em 1973; AnaRosa Kucinski, professora do Institutode Química (IQ), em 1974;e Vladimir Herzog, professor daEscola de Comunicações e Artes(ECA), em 1975 (ver p. 66).Utilização ilícita de dadosacadêmicos, emprego de agentespróprios, colaboração de diretoresde unidades e funcionárioseram alguns dos instrumentos aosquais a Aesi-USP recorria, comoé possível constatar pela leiturade documentos encontrados nosarquivos que pertenceram ao hojeextinto Departamento Estadualde Ordem Política e Social, queOutubro 2004ficou conhecido pela sigla “Dops”(embora se adote também a forma“Deops”). Tais arquivos estãoabertos à consulta pública no Arquivodo Estado de São Paulo.Apesar da farta documentaçãoque comprova sua existência nosanos setenta e oitenta, já noticiadapela Revista <strong>Adusp</strong> 13 (1998), aatuação da Aesi ainda é um tematabu, pouco conhecido, estudadoe debatido pela própria USP. Decorridos40 anos do golpe militar,a USP não faz menção alguma àsua agência de repressão interna,extinta em 1982.A Reitoria informa não possuiros arquivos da Aesi, os quais teriamDaniel Garciadez pessoas” trabalhando noa Assessoria de Segurança ee que admite ter queimado oso repórter da Revista <strong>Adusp</strong>antigos processos de contratação.“Fomos examinar, e tinha entredez e vinte contratos de professoresde vários níveis engavetadosaparentemente havia muitotempo. Nossa decisão imediatafoi a seguinte: ‘Vamos contratartodo mundo’. Só dois ou trêsaceitaram, porque todos já estavamcom a vida arranjada, ou noBrasil ou no exterior.”Também deparou-se com aexistência de outros papéis: “Continuamosa examinar o que tinha,Ex-reitor Hélio Guerrae havia um certo número de pastascom cópias de fichas destesórgãos que nós conhecíamos pelaimprensa: Dops estadual, Exércitoe Marinha”.De acordo com o ex-Reitor, asfichas eram “de uma irrelevânciatotal”. Porém, “eram documentoscarimbados reservados, cópias dedocumentação em poder do Governodo Estado e das Forças Armadas”.Informado por um assessorda existência de lei que determinavaa destruição de “materialde natureza reservada ou confidencial,quando a autoridade não temmais utilização para ele”, e por ser“tudo cópia”, estando os originaisem poder do governo estadual e dofederal, “a gente queimou.”39


Outubro 2004sido destruídos no início da gestãoHélio Guerra. Este ex-Reitor dizque, quando assumiu a Reitoria em1982, a Aesi era formada por umgrupo de “entre seis e dez pessoas”chefiadas pelo general João CarlosFranco Pontes, que teria seu saláriopago pela estatal Centrais Elétricasde São Paulo (Cesp). Guerra afirmater pedido que eles “fossem embora”da USP. O ex-Reitor garanteque eles aceitaram e confirma terincinerado os papéis encontrados,“apenas cópias de fichas de órgãosde segurança”...Em 1977, o então reitor OrlandoMarques de Paiva negourepetidas vezes a umaComissão Especial de Inquérito(CEI) criada pelaAssembléia Legislativaa existência da Aesi e derestrições ideológicas nascontratações da universidade.A CEI foi criadaa partir de denúncia dopresidente da <strong>Adusp</strong> na época,professor Modesto Carvalhosa.Entretanto, Guerra afirma ter encontradona sua posse, cinco anosdepois das negativas de Marques dePaiva, cerca de 20 processos de contrataçãoparalisados havia anos pelamisteriosa assessoria que funcionavaem uma sala anexa à do Reitor.Procurado pela reportagem,Arminak Cherkezian, que emdocumento do Dops de 21 dedezembro de 1973 é definidocomo “Assessor da Divisão deSegurança e Informação do MEC– Cidade Universitária – Butantã”,inicialmente negou saber do quese tratava. Depois negou relaçãocom a Aesi — para, em seguida,40Agência EstadoProfessor Modesto Carvalhosa, em 1982Atividades da Aesi iam muitoalém da “triagem ideológica”,pois a agência mantinhaos órgãos de repressão a parde tudo que se passava na USPRevista <strong>Adusp</strong>dizer que apenas seu irmão, KrikorCherkezian, pertenceu àqueleórgão. Arminak admite ter atuadona Arsi, Agência Regional de Segurançae Informações do MEC.Outro agente conhecido da Aesiera o Dr. Leo, Leovigildo PereiraRamos (vide p. 91).Nos arquivos do Dops, há documentosda Aesi em dezenas depastas que retratam o intenso monitoramentopolicial de tudo quese passava na USP. Apenas sobre aFaculdade de Filosofia, Letras e CiênciasHumanas (FFLCH) são 14pastas, que reúnem material apreendidoe relatórios produzidos porvárias agências. Muitas pastas aindaprecisam ser analisadas. Além disso,os documentos localizados atéagora pela equipe da Revista <strong>Adusp</strong>no Arquivo do Estado, emboranumerosos e esclarecedores, limitam-sea comunicações entre Aesie Deops. Portanto, certamente nãorepresentam a totalidade da documentaçãoproduzida pela Aesi.Os papéis disponíveis deixamquestões em aberto, como a efetivadata de surgimento da Aesi(mais tarde chamada de ASI), poisexistem registros anteriores ao comunicado,feito às demais agênciasem 1973, da sua criação oficial pelaUSP: por exemplo, um pedido deantecedentes e confirmaçãode dados de pessoasque seriam contratadascomo funcionários eprofessores (entre eles ojornalista Heródoto Barbeiro),enviado em 25 deoutubro de 1972. Ou umarelação de entidades queparticipavam do Conselhode Centros Acadêmicos, elaboradaem 28 de novembro de 1972.Percebe-se nos documentos anatureza dúplice da assessoria,ligada ao mesmo tempo à USP eà Divisão de Segurança e Informação(DSI) do Ministério daEducação e Cultura. Uma análisepreliminar desse material permiteexaminar suas atividades e seu modusoperandi.A “triagem ideológica” deprofessores e funcionários daUSP, prática que atingiu grandenúmero de pessoas, talvez seja aatividade mais conhecida da Aesi.A triagem precedia a contrataçãoou o desligamento de docentes efuncionários. Neste particular, a


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004OS IRMÃOS DA INFORMAÇÃOJosé ChrispinianoJornalistaDurante o regime militar, os Cherkezian atuaram nas duas principaisassessorias de segurança do Ministério da Educação em São PauloOs irmãos Arminak e KrikorCherkezian cumpriram importantepapel na história da USP naprimeira metade dos anos 1970,ainda que este papel seja poucoconhecido. Ambos são citados emvários documentos da repressãopolítica. Krikor chefiou a Aesi-USP, ao mesmo tempo em queArminak dirigia a Assessoria Regionalde Segurança e Informação(Arsi) do Ministério da Educação(MEC), responsável pelos estadosde São Paulo e Mato Grosso.Arminak nega que a Aesi-USPestivesse subordinada à Arsi. Todosos funcionários da Aesi eram daUSP, e gozavam de independência,afirma ele, apesar de os documentosindicarem que o órgão integravaa estrutura do MEC. “A Aesi daUSP era a única com autonomiatotal, respondia apenas ao Reitor.A USP sempre foi muito ciosa dasua autonomia, ainda mais o reitorda época, o [Miguel] Reali”.Também nega ter relação coma atuação de agentes infiltrados,triagem ideológica, ou prisão dealunos e professores. “Isso nãoexiste. Você tem que distinguirpolítica de informação de atividadepolicial. Nessa parte nuncative acesso, nem conheço”.Arminak garante que seu trabalhoera recolher informações eformular estratégias para decisãodas autoridades, de acordo comos objetivos “que se identificamcom os interesses nacionais”.Quais eram estes objetivos? Erame continuam sendo “os mesmos”,responde, acrescentando que oEstado precisa ter “salvaguardaspermanentes”. “Eu faço justiçaaos que realmente morreram pelapaz e pela segurança. Tem muitofolclore nisso”.Quando questionado sobre informaçõesrelativas a pessoas específicasque ameaçassem os supostosobjetivos nacionais, como no casode um documento que o cita comoresponsável pelas “devidas providências”contra um certo “movimentosubversivo” de docentes daEsalq, em 1974, Armeniak sustentaque isso “não existe”, e recusa-se afalar sobre o caso (vide p. 57).Embora negue que a Aesi fossesubordinada à Arsi, documentode 21 de dezembro de 1973,assinado pelo delegado TácitoPinheiro Machado, situa Arminakdentro da Cidade Universitária, epede a relação de membros doConselho de Centros Acadêmicosda USP. O delegado estavana realidade pedindo ajuda paracumprir uma requisição de informaçõespartida da Aeronáuticano “Pedido de Busca nº 219/DISCOMZAE-4”, de 17 de dezembrodo mesmo ano, que solicitavanomes, fotografias e endereçosdos estudantes.A resposta não partiu da Arsi,chefiada por Arminak, mas daAesi, chefiada por Krikor, evidenciandoa fraternidade entre asassessorias. Diz o seguinte: “1- OCCA não tem existência legal,atuando inteiramente na clandestinidade.2 – Até o momento nãofoi possível identificar o nomede qualquer elemento integrantedesse conselho.”Arminak declara-se rompidocom o irmão Krikor, que a Revista<strong>Adusp</strong> não conseguiu localizar. Emais nada fala. “Este assunto nãome traz nenhum conforto. Souum homem de 72 anos, com problemasde fundo emocional, queperdeu seu único filho.”Tergiversa quando procuramossaber mais sobre os motivos dodesconforto provocado por assuntotão antigo. Diz, irritado, entender a“linguagem dialética” do repórter,e dá a conversa por encerrada. Hoje,empresário bem sucedido, Arminakainda freqüenta a USP. Noscursos que a universidade oferecepara a terceira idade.41


Outubro 2004Comunicação por telex entre o delegado Romeu Tuma e o II ExércitoAesi percorria caminho inverso,pedindo informações às outrasagências de segurança para procederà triagem.Mas as ações da Assessoria tambémenvolviam o envio aos órgãosde segurança de documentos e dadospertencentes a alunos: boletins,formulários de matrícula, endereços.O informe 173 da Aesi, deoutubro de 1973, por exemplo, listaos nomes dos diretores do Centrode Estudos de Física e Matemática(Cefisma), dirigido na época porVinícius Ítalo Signorelli, MarcosMagalhães e outros. Em anexo, ohistórico escolar dos estudantes.Em outro documento da Aesi,enviado em 18 de novembro domesmo ano, a assessoria informaque um funcionário da Faculdadede Filosofia se recusou a ajudarum estudante a confeccionar umpanfleto com uma charge sobre oensino pago. O histórico escolar doestudante é enviado em anexo.Publicações de centros acadêmicos,da União Estadual dos Estudantes,panfletos de chapas queconcorriam em eleições de CAs, da<strong>Adusp</strong> e da Asusp, cartazes coladosem murais: tudo era copiado edifundido pela Aesi. “Difusão”, entenda-se,era o jargão policial para adistribuição de informes no interiorda “comunidade de informações”.Em alguns casos, a Aesi teciacomentários sobre o conteúdo domaterial, chamando a atenção dosleitores para aspectos que consideravamais relevantes. O documento102, de 12 de novembro de 1974,avisa que nas eleições do CentroAcadêmico Visconde de Cairu, daFaculdade de Economia e Administração,surgiu o jornal O Trabalho,da chapa de mesmo nome. Segundoo agente, fala-se “de lutas de classes,tema que há muito não apareciaem publicações estudantis”.Do mesmo modo, em 27 de novembrode 1975 é encaminhada umacópia do boletim Imprensa Universitária,publicadopela ComissãoUniversitária,grupo de estudantesquepreparava acriação doDCE-Livre.Segundo a Aesi,a publicação“exalta, maisuma vez, as ‘bandeiras’ do movimentoestudantil. Tendenciosa, utilizandocomo slogan principal a morte dojornalista Vladimir Herzog, considerando-omais uma ‘vítima’ do regimerepressivo vigente”.A Aesi também repassava informaçõesfornecidas pelos diretoresAesi também agia paraorganizar e fortalecera direita estudantil,que chamava de “posiçãoreconhecidamenteadversa à esquerda”Revista <strong>Adusp</strong>das faculdades. O documento 113,de 8 de abril de 1974, por exemplo,envia a cópia de uma solicitação queo então diretor do Instituto de Psicologia(IP), Dante Moreira Leite, recebeuda professora Maria José Barros,feita em papel timbrado do IP.A docente pede informações sobrea estudante depós-graduaçãoNícia LuizaDuarte de Silveira,que foipresa grávida.O documento114, do mesmodia, enviaum panfletoque traz umalista de estudantes presos, ondeconsta o nome da aluna.“Nunca ouvi falar desse documento”,afirma Nicia, hoje professorada Universidade Federal deSanta Catarina (UFSC). Ela explicaque nunca se envolveu em atividadespolíticas, mas conhecia pessoas42


Revista <strong>Adusp</strong>Documento da Aesi (“ASI”) de fevereiro de 1979: monitorando encontro de docentesprocuradas pelo Dops e por isso foipresa. “Fiquei quatro meses presa,de março a agosto de 1974. Até ondesei, ninguém da Reitoria ou dafaculdade [refere-se ao IP] fez algopara me liberar”, relata.“O que fez diferença e, digo até,salvou minha vida, foram as manifestaçõesque fizeram na época pelospresos”, acrescenta a professora.“Apesar da situação, minha filhanasceu bem, em outubro de 1974.Voltei para a faculdade e termineio curso”. No ano seguinte, ela foiabsolvida e o processo encerrado.Outro exemplo de documentooriundo de uma unidade da USPé a ata da 56ª reunião da Congregaçãoda Faculdade de Filosofia,Outubro 2004Letras e Ciências Humanas (FFL-CH), anexada, na íntegra, ao informe907 da Aesi, de 9 de dezembrode 1975. A reunião aconteceu em31 de outubro de 1975 e o principalassunto discutido foi o assassinatodo professor Herzog, ocorrido algunsdias antes. Alguns docentesda FFLCH entregaram uma carta,na qual criticavam as recentes prisõesfeitas pelo II Exército, lamentavama morte de Herzog e o climade insegurança que prejudicava otrabalho de ensino e pesquisa.Em outra pasta há uma cópia daata. Em anexo, aparecem fichas quecontêm dados pessoais dos professoresque assinaram a carta lamentandoa morte de Herzog, entre osquais Aziz Ab’Saber, Francisco Wefforte Segismundo Spina. Acompanhaeste documento uma análise dasituação da FFLCH, de autoria doDops, alertando sobre “o perigoque a sociedade corre ao entregarseus filhos a esses professores”.Outra forma de atuação da Aesiestava na tentativa de influenciardiretamente os acontecimentosdentro da USP. Em 23 de setembrode 1974 seriam escolhidos osrepresentantes discentes para oschamados órgãos colegiados daUniversidade, como o ConselhoUniversitário. Tratava-se de ummomento importante para o movimentoestudantil, já que o DCEestava suspenso.No início desse mês, a Aesi difundepara a Arsi, o SNI, o II Exército, o6º Distrito Naval e o Dops (documento199/Aesi/USP, de 6 de setembro de1974) um informe sobre a articulaçãode “um movimento entre os alunosde posição reconhecidamente adver-43


Outubro 2004sa à esquerda estudantil”. Mais: “osnomes dos integrantes dessa chapasomente serão dados a público noúltimo dia fixado para o registro decandidatos”. Em seguida, esclarece:“esta Aesi está acompanhando eorientando o movimento”, “conseguidaa eleição desses elementos,eles trabalharão para a retomada dosCentros e Grêmios existentes nas váriasunidades da USP”.A Revista <strong>Adusp</strong> não conseguiuconfirmar se de fato a Aesi orientoua chapa “Integração”. Um dosmembros da “Integração”, Paulode Mattos Pimenta, hoje professordo Departamento de Estrutura eFundaçõesda EscolaPolitécnica,afirma que,mesmo quetenha ocorridoessainfluência,nunca soubedela.Diz aindaque foi suaúnica participação no movimentoestudantil e que foi convidado aentrar na chapa por pessoas quenão lembra mais quem eram.Diferentemente das concorrentes,“Unidade” e “Reunir”, quepossuíam propostas semelhantes,de teor antiditatorial, os materiaisda chapa “Integração” demonstravamuma posição simpática ao regimemilitar. Os candidatos da chapa“Unidade” venceram a eleição, comcerca de 6.000 votos cada um.Dias após a divulgação dos resultadosda eleição, o jornal Folhade S. Paulo publicou depoimentosSuperposição de órgãosde segurança no campusgerou alguns conflitose prejudicou o sigilo,levando a Aesi a tentarcentralizar informaçõesdos alunos eleitos — e também domembro menos votado da chapa“Integração”, Tupã Gomes Corrêa,que recebeu 899 votos. Ele declarouque o grupo adotava uma posturaprática: “Não vamos pedir arevogação do [decreto-lei] 477 e doAI-5, pois os poderes competenteso farão no momento oportuno (...).Acredito que se não tivesse havidoo 477 e o AI-5 não estaríamos vivendocom tantas facilidades comohoje”. Posteriormente, ele tornouseprofessor do Departamento deRelações Públicas, Publicidade eTurismo da ECA, e foi diretor daunidade no período 1997-2000.O u t r ap r á t i c ada Aesi,menos freqüente,eraa de produzire difundirrelatosde funcionáriosoude informa n t e spróprios, que saiam a campo e seinfiltravam no movimento estudantil.Uma assembléia do DCE ocorridaem 20 de março de 1979, porexemplo, foi relatada em detalhes.Registra-se o horário do início edo fim da assembléia, número departicipantes, temas discutidos e aplaca dos carros estacionados nolocal. Os dados sobre os donos doscarros foram pedidos ao Dops, e odelegado Sílvio Pereira Machado,que chefiava a atuação da delegaciaespecializada no campus, obteveno Departamento de Trânsito osrespectivos nomes e endereços.Revista <strong>Adusp</strong>“REITCOM OUma dasde sórgão represem f“Existiram Aesi’s em quasetodas as grandes universidades, aquestão é saber em quais os arquivosforam mantidos”, afirma oprofessor Rodrigo Patto Sá Motta,do Departamento de História daUniversidade Federal de MinasGerais (UFMG), responsável pelaorganização do acervo de documentosque comprovam a atuaçãoda Aesi naquela instituição federal,durante a Ditadura militar.“Na UFMG, a Aesi foi criadaoficialmente em 1973 e extintaem 1986, mas temos documentosque provam sua presença antesdisso. Os primeiros documentossão de 1964, comunicados doExército pedindo que se averiguassese havia atividade subversivana Universidade”, diz oprofessor Sá Motta.Os documentos mostram quena Aesi-UFMG trabalharam funcionáriosda própria instituição,nomeados pelo Reitor. “Pareceque havia uma disputa entre aReitoria e os militares pelo controleda Aesi. Alguns reitores ten-44


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004ORIA DA UFMG PARECIA DISPUTARS MILITARES O CONTROLE DA AESI”Kátia AbreuJornalistauniversidades federais em que atuaram as assessorias especiaisegurança e informações foi a de Minas Gerais, na qual essesivo foi extinto somente em 1986. Seu acervo de 12 mil documentos,ase de catalogação, estará disponível para consulta em 2005taram esvaziar a atuação da Aesipara proteger a comunidade universitária”,relata o pesquisador.“Algumas vezes foram solicitadasinformações (pelo SNI) sobreestudantes, funcionários ou professores,e o pessoal da Aesi forneciaa Brasília o material pedido. Asnomeações para cargos (diretores,chefes) eram precedidas de investigaçõessobre o passado políticodos interessados, e houve casosde vetos.” O arquivo possui aindamaterial apreendido do movimentoestudantil (jornais, cartazes), ematerial de propaganda e contrapropagandado regime militar.Todo o acervo deve estar organizadoe disponível para consultaa partir de 2005: “São 36 caixas,com cerca de 12 mil documentos.Mas nós só conhecemos parte doacervo, a maioria dos documentosainda não foi consultada. Apenas40% do material está catalogado.Até o fim do ano, teremos terminadoessa leitura e classificação,e logo teremos um fichário eletrônicopara pesquisa”, informa oprofessor Sá Motta.No seu entendimento, o acervoprecisa ser analisado cuidadosamenteantes de ser aberto à consulta,para que não haja problemascom a legislação que estabelece oacesso a documentos públicos decaráter sigiloso. De acordo com oartigo 4º da Lei Federal nº 8159/91,Professor defendeanálise préviado acervo antes deabri-lo à consulta,para não ferira Lei 8.159/91todo cidadão tem direito de obterinformações contidas em arquivos,exceto “aquelas cujo sigilo sejaimprescindível à segurança da sociedadee do Estado, bem como àinviolabilidade da intimidade, davida privada, da honra e da imagemdas pessoas”.Até o momento, esclarece oprofessor, a pesquisa não encontroudocumentos cujo conteúdocoloque em risco a segurançado Estado. “O que há, emcasos isolados, são documentosafetos à intimidade e à vidaprivada de algumas pessoas.Apenas nesse último caso nossosbolsistas foram orientadosa bloquear informações cujadivulgação eventualmente poderiacausar constrangimentoàs pessoas cuja intimidade foiobjeto do interesse dos agentesde informação.”Sá Motta também foi responsávelpelo seminário “Autoritarismonas Margens daRepública”, nos dias 30/3 e 1º/4/2004, que discutiu a Ditadurae a resistência a ela. “O eventocontou com apoio da UFMG,da Fapemig e da Capes. AUFMG criou uma comissão paragerir o acervo documental daAesi, da qual sou membro, e aReitoria apóia o trabalho de organizaçãodo arquivo”, conta.45


Outubro 2004A atuação da Aesi na USPocorria simultaneamente ao trabalhode outros órgãos de informaçãona Universidade. Porém,a falta de coesão na investigação,além de dispersar informações,prejudicava o caráter sigilosopretendido pela Assessoria. Poresse motivo, em documento de 30de abril de 1973, ao distribuir àsoutras agências de segurança umpanfleto encontrado no IGc, aAesi adverte: “Chamamos a atençãopara os problemas causadosa funcionários da Universidade,quando precisam passar informações‘in loco’ aos órgãos da forçapública. Sugerimos que toda asinformações passem por essa assessoria,para que se mantenha osigilo”.O sigilo, argumenta a Aesi,diminuiria a insatisfação estudantil.O panfleto fala da prisãode Alberto Alonso Lázaro, estudantede Geologia e colega deAlexandre Vannucchi Leme. Otexto, sem identificação do autor,diz que os arquivos do alunoforam vistos pelos “órgãos derepressão com apoio de funcionáriosda faculdade”.Em novembro do mesmoano, uma confusão provocadapor agentes da Polícia Federalgerou um processo que duroutrês meses e envolveu o Dops eo II Exército. A Aesi explica oocorrido no Informe 87, de 14 dedezembro de 1973, cujo assuntoé “Tentativa de identificação doassessor especial de segurança einformações da USP”.O documento informa que emnovembro de 1973 um funcionárioda Reitoria, após estacionarseu carro, “foi interrogado pordois rapazes que indagaram seera ele o senhor Krick” (sic). Ofuncionário negou e informouque trabalhava na Coordenadoriade Assuntos Culturais, mas“continuou a ser interrogado pelosdois rapazes, que desejavamsaber se ele conhecia o senhorKrick”. O funcionário negou novamente— e, depois, comunicouo fato à Reitoria. O Informe 87atribui a confusão ao fato de oscarros do funcionário e do assessorKrikor Tcherkezian serem demesma marca e cor.Em resposta, o Dops pedeinformações sobre o funcionárioe convoca-o a prestar esclarecimentos.Em fevereiro de 1974,Krikor também depõe sobre o caso.O assessor informa que, apósenviar o documento, descobriuque “os rapazes eram agentesda Polícia Federal, trabalhandojunto ao meio estudantil”. Krikortambém declarou que “esperavaos resultados das investigaçõesque estavam sendo procedidaspela 2ª Seção do II Exército”.A relação com outros órgãos,porém, raramente era conflitante.Ao contrário. A “sinergia” daAesi com outras forças da repressãopode ser vista no seguintecaso exemplar. Quando o presidentedo Centro Acadêmico LupeCotrim (da ECA), Luiz CarlosMoreira, prestou depoimento aoDops, em 3 de junho de 1974,os alunos espalharam cartazesinformando a hora e o local dodepoimento, prática comum paraproteger o depoente de eventualRevista <strong>Adusp</strong>A TR“Por ordem do MagníficoReitor encaminho em anexo nomese qualificações de pessoasindicadas para contratação juntoà USP”. Assim começam dezenasde ofícios, freqüentes entre janeirode 1971 e outubro de 1972,assinados pelo chefe de gabineteda Reitoria, José Roberto Francoda Fonseca, e dirigidos a AlcidesCintra Bueno Filho, delegadoadjunto da Delegacia Especializadade Ordem Política de SãoPaulo, uma das que constituiamo Departamento Estadual deOrdem Política e Social (Dops).Portanto, a triagem ideológicade professores e funcionários daUSP em processo de contrataçãoprecedeu a criação da Aesi.Os nomes, em ordem alfabéticae divididos nas categorias “docente”e “cargo administrativo”, eramencaminhados em folhas avulsasque não possuíam o timbre daReitoria. Em uma única pasta sãoencontrados 48 documentos dessetipo, alguns com cerca de 30 nomes.Não é possível, porém, saberao certo quantos pessoas foramsubmetidas a esse processo, já queem alguns casos não estão arquivadasas relações nominais enviadasem anexo, apenas os ofícios.A resposta do Dops demorava,em média, dez dias. Emmuitos casos, a resposta era ape-46


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004IAGEM IDEOLÓGICA ANTES DA AESIMarina GonzalezJornalistaDepois de seis meses,chamaram Poggianiao Dops e lhe deramum conselho:Jorge Maruta/USP/CCSEx-reitor Antonio Guimarães Ferri“Diga ao Reitor queele pode contratá-lo”nas um carimbo no verso: “nadaconsta nesta especializada contraas pessoas [citadas] neste referido”.Conclui-se que a Reitoria recebeu,desse modo, “informaçõesreservadas” sobre centenas deprofessores, funcionários e pessoasque tentaram ser contratadas.Talvez o acesso aos arquivos daReitoria ajude a esclarecer comoessas informações influenciaram oandamento de cada processo.Há casos em que a única informaçãocomprometedora enviadapelo Dops à USP era a prisãodurante a invasão do Crusp peloII Exército em 17 de dezembro de1968, quatro dias depois do AI-5.Na ocasião, centenas de estudantesde graduação e pós-graduaçãoforam detidos. Fábio Poggiani,hoje professor do Departamentode Ciências Florestais da EscolaSuperior de Agricultura Luiz deQueiroz (Esalq), cursava em 1968o último ano do curso de CiênciasBiológicas. No começo de 1972,ainda doutorando, foi aprovadoem concurso para auxiliar de ensinoda Esalq. Seu processo de contratação,no entanto, ficou paradopor aproximadamente seis meses.Seguindo a rotina, em 19 dejunho de 1972 o Dops responde aofício da USP, enviando as informaçõesque constavam em seusarquivos sobre Poggiani. O professorAntonio Guimarães Ferri, daComissão Permanente de DedicaçãoIntegral (que aparentementese dedicava a esses casos), foi bemclaro ao explicar a Poggiani por quêa Reitoria havia indeferido sua entradano corpo docente da Universidade:“O Dops segurou”.Poggiani não sabe ao certo oque pode ter feito os órgãos derepressão mudarem de idéia a seurespeito. O fato é que, tempos depois,foi chamado ao Dops, onde“alguém muito gentil” lhe disseque o processo havia sido revisto,e aconselhou: “Diga ao Reitor queeu falei que ele pode contratá-lo”.Não foi preciso. Ferri já possuíaessa informação e ele foi incorporadoà USP no final do ano.Caso semelhante parece tervivido Jairson de Lima, pesquisadoraposentado do Instituto dePesquisas Tecnológicas (IPT) eatualmente pesquisador-visitanteda Agência Nacional do Petróleojunto à Escola Politécnica.Lima, que também foi presodurante a ocupação do Crusp,em 1972 prestou concurso paraingressar no IPT. Ele, porém,não se lembra se o seu processode contratação demorou alémdo costumeiro: “Isso é sempredemorado e, na época, não associeios fatos”.Mas a noite de prisão noDeops em 1968 lhe custou umcurso de especialização nos EUA,no final da década de 1970: “Medisseram claramente que eu haviasido vetado pela Marinha”. Elepondera que não chegou a ser umfato determinante em sua carreira.“Não foi algo tão forte, arrasador,mas alguma influência teve”.47


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>No ofício ao lado, diretor da ECA garante que estudantepreso está sendo bem tratadoAbaixo: informe 206 da Aesi, de 30 de setembro de 1974:presidente de CA é preso em casa48“desaparecimento”. Odiretor da ECA, Manuel NunesDias, retirou os cartazes e os enviouao Reitor, que, por intermédioda Aesi, comunicou o fato à“comunidade de informações”.No dia 24 de julho do mesmoano, Moreira enviou carta e abaixo-assinadoa Nunes pedindo umadeclaração pública dele e informaçõessobre a prisão do aluno ÁlvaroAntonio Zini Jr., também daECA, ocorrida dentro do campus,junto com dois alunos da FEA.Queria que Nunes intercedesseem favor do estudante. Ocorreu ocontrário.O diretor assegurou que ZiniJr. estava sendo tratado “condignamente”,ao mesmo tempo emque enviava o abaixo-assinado ea carta para a Aesi, donde seriadisseminada para outros órgãos.Pouco mais de dois meses depois,relatório da própria Aesiregistra que Moreira foi presopela Operação Bandeirantes(Oban), “em sua residência”, nodia 26 de setembro. No mesmodocumento, lê-se que o Reitorrecusou-se a receber, na mesmadata, um grupo de 40 alunos “devárias agremiações estudantis daUSP”, que compareceu ao seugabinete “procurando fazer-lheentrega de material relativo àprisão do colega”.


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004VIGILÂNCIA SOBRE TUDOE SOBRE TODOS, COMA COLABORAÇÃO DASAUTORIDADES DA USPMarcy PicançoJornalistaA repressão política exercia minucioso e asfixiante controle davida da Universidade, que incluia a obtenção ilegal de dadosacadêmicos dos alunos. O Dops chegava a produzir até trêsrelatórios diários sobre a USP. Na documentação analisadapela Revista <strong>Adusp</strong> há diversas referências a estudantes que setornaram militantes de organizações clandestinas e não chegaram aconcluir seus estudos. Muitos deles foram mortos pela Ditadura49


Outubro 2004nãopodia esqueceremmomentoalgum que“Vocêestava sendovigiado. Nunca! Você chegavana universidade e tinha que lembrardisso. O porteiro podia ser um carado Dops. Aquele sujeito na carteiraali ao lado, com um jeito meio estranhoe que você nunca viu antes,provavelmente é da polícia”.Franklin Leopoldo, hoje professorde Filosofia da FFLCH,descreve assim a angústia vividapelos estudantes da USPdurante os anos do regimemilitar. Ele estudou na USPde 1968 a 1972, durante amudança do curso de Filosofiada rua Maria Antônia, naVila Buarque, para a CidadeUniversitária (vide p. 72).“A gente tinha que convivercom a situação. Com o fimda Ditadura, soubemos dosrelatórios diários sobre aUSP, geralmente de conteúdoinócuo”, completa oprofessor.Os documentos do Dops confirmama declaração de Leopoldo,além de atestarem a amplacolaboração dos dirigentes dauniversidade com os órgãos derepressão, que perseguiram,prenderam, torturaram e mataramestudantes da USP e muitosoutros cidadãos brasileiros duranteos anos da Ditadura.Os registros de vigilância domovimento estudantil na USP,entretanto, são anteriores a 1964.Um comunicado da Sub-Chefia50de Ordem Política do Dops, datadode 25 de fevereiro de 1962,informa o resultado das eleiçõespara o Centro Acadêmico XI deAgosto, da Faculdade de Direito(FD), e lista os nomes dos diretoreseleitos.O monitoramento só parecehaver terminado com o fim doDops, em 1984. Ainda em 1983,foram produzidos informes diários,de 3 de janeiro a 29 dedezembro, sobre as atividades estudantisna Cidade Universitária.Em alguns dias, há relatórios porturno: manhã, tarde e noite.Fornecer dados escolaresde membros de centrosacadêmicos devia serrotineiro duranteo regime militar,pois há inúmeros papéiscom este tipo de informaçãoRevista <strong>Adusp</strong>Os relatos dos agentes descrevemdetalhadamente tudo: aulas;cursos de férias, com transcriçõesde palestras; conteúdo dos cartazes,desde os que falavam deestudantes assassinados até os quemostravam os preços dos produtosnas lanchonetes; colações de grau;reuniões de centro acadêmico; assembléiase inclusive um acidentede trânsito. “Os informantes tambémtinham que mostrar serviço”,lembra o professor Leopoldo.Agentes do Dops produziam amaioria dos relatórios, mas tambémhá observações oriundas deoutros órgãos da repressão. Porexemplo: em 9 de junho de 1965,o Quartel General da 4ª ZonaAérea envia à Delegacia informesobre uma assembléia realizadana FD. O relato informa que deve-seatentar para as “ameaças”feitas pelo então presidente doXI de Agosto, Hélio Navarro, poiseste teria dito que “o movimentogrevista irá até as últimas conseqüências,se o Conselho Universitárionão resolver a questão daintervenção militar no Crusp”.Em 26 de maio de 1969, a Secretariade Segurança Públicaenvia ao delegado ÍtaloFerrigno o “Relatório sobresubversão da FDUSP”. Nodocumento há uma lista dealunos da faculdade queseriam ligados à Dissidênciado Partido Comunista Brasileiro(PCB) e distribuiampanfletos. O relatório sugereque houve delação: “osnomes foram colhidos poralunos que, sabendo que apanfletagem começa às 6h,chegaram antes”. Entre os nomesda Dissidência listados peloDops figuram os de Belisário dosSantos Júnior (que em 1995 serianomeado secretário de Estadoem São Paulo), Leonel Itaussude Almeida Mello (hoje professorda FFLCH) e Adolfo Rosário deCarvalho.“Para que o Dops queria essedocumento?”, surpreende-se o engenheiroFrederico Moreira Bussingerao saber que há uma cópiade seu comprovante de inscriçãono vestibular da Faculdade de Eco-


Revista <strong>Adusp</strong>Frederico Bussinger, engenheironomia e Administração nos arquivosda polícia política. Bussingerfoi presidente da Liga AtléticaAcadêmica (LAA-USP) entre 1972e 1975, enquanto cursava Economia.Além disso foi diretor do GrêmioPolitécnico, quando estudouengenharia, entre 1963 e 1969.“Os eventos da LAA reuniammuitos estudantes e muitas vezesfazíamos algumas manifestaçõespolíticas, em shows com cantoresde MPB, por exemplo. Eu tivevários entreveros com policiaisdo Dops por causa dos eventos,mas nunca fui preso. Talvez odocumento também tenha a vercom a prisão do meu irmão,Gustavo Bussinger. Ele ficoupreso por quatro dias, em 1974,por que era editor de uma revistacultural na FEA”, esclarece oengenheiro.Fornecer dados escolares dosintegrantes de centros acadêmicosdevia ser algo rotineiro naUSP durante a Ditadura, pois hámuitos documentos com este tipoDaniel Garciade informação. Por exemplo, emoutubro de 1974 o Centro Acadêmicode História (Cahis) enviouum ofício ao diretor da FFLCHcom os nomes dos eleitos paraa gestão de 1975. Nos arquivosdo Dops, junto à cópia da carta,estão os históricos escolares dosestudantes listados.Os dados também eram solicitadospor questões específicas.Em 15 de junho de 1971, a 2ª Divisãode Infantaria do II Exércitoenvia ao Dops um relatório deuma reunião entre os alunos deCiências Sociais que discutiramas eleições para representante discente.O documento encaminhoucomo anexo um panfleto ondeapareciam os nomes dos candidatos:Marlinda Sônia Itô e AragãoFonseca de Almeida. Em 18 de junho,o Dops determina que sejaminvestigadas “as reais intençõesdos candidatos”. Em seguida,aparece uma ficha dos estudantescom fotografias e os históricos escolaresde ambos.Outubro 2004Além dos estudantes ligados àsentidades estudantis, o Dops recebiadados escolares sobre estudantesinvestigados ou procurados.Em um papel sem timbre e data,mas arquivado próximo aos documentosde 1969, aparece uma listade estudantes da USP. Ao lado decada nome, constam as disciplinascursadas desde a entrada do alunona universidade, informando seele havia sido aprovado ou não.Entre os estudantes citados estãoLuiz Fogaça Balboni, CaetanaMaria Damasceno e outros. Nofim do documento há uma nota:“Takao Amano não é discente dafaculdade”.“A polícia cercava de todo jeito,queria todo tipo de informaçãosobre você. A universidade erado Estado, por isso passava asinformações. Não estranho teremmeus dados escolares”, diz TakaoAmano. Ele entrou na Filosofiada USP em 1970 ou 1971, “masnaquela época a gente não estudavamesmo. Estávamos envolvidoscom a luta contra o regime e aperseguição não deixava.” Amanopassou à clandestinidade e participoude ações armadas na Ação LibertadoraNacional (ALN). “Tiveque sair do país e só quando volteifui estudar”, explica.Amano exerce hoje a profissãode advogado. Como ele, durantea Ditadura muitos estudantes daUSP não concluíram o curso quefaziam. Bernardino Figueiredo,estudante de Geologia e presidentedo Grêmio da Faculdade deFilosofia em 1969, foi um deles.Militante da Dissidência do PCB,Figueiredo ficou preso de julho a51


Outubro 2004outubro de 1968. Conseguiu umhabeas corpus e foi liberado. Em18 de março de 1969, o ConselhoPermanente de Justiça Militar, da2ª Auditoria de Guerra, decretousua prisão e informou que ele estavaforagido.Nessa época Figueiredo estavavivendo como clandestino. Nofim do mesmo ano foi para o Chile.Quando houve o golpe militarque derrubou Salvador Allende,passou alguns dias preso no EstádioNacional, com sua esposae seu filho com menos de um anode idade. Posto em liberdade, foipara o exílio na Suécia,onde ficou até 1980.Por sua ação políticae pelos processosem que foi indiciado,Figueiredo, que atualmenteé professor noInstituto de Geociênciasda Unicamp, sabeque seu nome apareceem vários documentosdo Dops, e já procurouseus registros no Arquivodo Estado. Entretanto, espantou-seao descobrir que seu históricoescolar está entre os papéisali colecionados: “Meu histórico!Mas éramos perseguidos pela polícia,não pela universidade.”“Os professores e funcionáriosse mobilizaram quando fui presoem 1968. Quando pedi minhatransferência para concluir meusestudos no Chile, fui prontamenteatendido. Não sabia que a USPenviava documentos de alunospara o Dops. A USP sempre teveum espírito contra as ditaduras”,argumenta o geólogo.52Bernardino Figueiredo, professor da UnicampO geólogo Bernardino Figueiredo,que não conseguiu concluir seucurso na USP e hoje dá aulasna Unicamp, surpreendeu-seao descobrir que seu históricoescolar está entre os documentosarquivados no DopsRevista <strong>Adusp</strong>Daniel GarciaNos arquivos, o histórico deFigueiredo aparece junto ao deAntônio Benetazzo, próximo aosdocumentos de 1975. “Isso. Foi naépoca em que o Benetazzo morreu.O Arantes [José Roberto Arantes,presidente do Grêmio da Filosofiaem 1968] também foi assassinadopor esse tempo. O [histórico] doArantes também está lá?”, perguntao professor da Unicamp.O histórico de José Arantes, porém,não está nas pastas pesquisadasno arquivo do Dops. Lá está o deIshiro Nagami e as informações sobreo desempenho escolar de Luiz FogaçaBalboni. Também háum papel com o timbre daSecretaria de SegurançaPública (SSP) informandoque Jeová de Assis Gomesfoi expulso do Crusp e daUSP por liderar “atividadessubversivas”.Outro documentoencontrado é um certificadooriginal, datadode 1966, de um curso daAssociação Universitária de EstudosPsíquicos, com a assinatura de IaraIavelberg. O mandado de prisão deHelenira Rezende de Souza Nazareth,expedido em abril de 1971, tambémaparece na pasta sobre os estudantesda FLLCH. Na pasta sobre aFD, os nomes de Arno Preiss e JoãoLeonardo da Silva Rocha constamem um “relatório sobre subversão”,redigido pela SSP em 1967.Os nomes de todos esses exestudantesda USP aparecem nalista de mortos e desaparecidospolíticos elaborada pelo grupoTortura Nunca Mais.


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004PERSEGUIÇÃO NA ESALQPARTIU DE DIRIGENTESBeatriz EliasJornalistaQuatro professores da EscolaSuperior de Agricultura Luizde Queiroz (Esalq) foramdenunciados ao Dops, em1975, pelo professor SalimSimão, então diretor daunidade, e pelo professorJoaquim de CamargoEngler, então chefe dedepartamento. O casoveio à luz em 1997, emrazão de reportagempublicada no jornalA Província, dePiracicaba, e foi levadoà Congregação daEsalq pelo professorOriowaldo QuedaReprodução Daniel GarciaEm 21/11/74, a polícia descobre“subversão” na Esalq53


Outubro 2004Em 19 de fevereiro de1998, a Congregaçãoda Escola Superior deAgricultura Luiz deQueiroz (Esalq), emPiracicaba, foi surpreendidacom o pronunciamento deum de seus membros. O professorOriowaldo Queda veio a públicopara manifestar sua indignaçãoquanto a denúncias ocorridas duranteo regime militar, que, nascidasna própria USP, envolviamsua vida acadêmica. “Não tivessepesquisa da jornalista Beatriz Eliasencontrado esses documentos nosarquivos do Dops, ora no acervo doArquivo do Estado, muito provavelmentecontinuariam desconhecidos,como se não tivessem existido”, garantiuele ao colegiado.Os documentos anexados à suamanifestação datam de 10 de julhode 1975, quando foram registradosdois depoimentos na Delegacia deOrdem Política do Dops, em SãoPaulo, prestados pelo então diretorda Esalq, professor Salim Simão, epelo então chefe do Departamentode Ciências Sociais Aplicadas,professor Joaquim José de CamargoEngler. Nesses depoimentos,foram denunciados por envolvimentoem “atos subversivos” osprofessores Oriowaldo Queda, RodolfoHoffmann, Ondalva Serranoe Roberto José Moreira, à épocadocentes vinculados ao Departamentodirigido por Engler.Os dois depoimentos possuempontos comuns bastante claros.Os professores Simão e Englerinformam que seus quatro colegas“estavam a criticar duramente, emaulas, as autoridades constituídasem geral, bem como tecendo váriascríticas ao regime”, e que suapostura em sala de aula era de“ridicularizar o regime do governobrasileiro atual, pregando a reformaagrária de forma violenta, alémde outras formas subversivas deagir e pensar”.Além disso, o depoimento conferiaa alguns dos denunciados opeso de envolvimentos anteriores.O então diretor da Esalq qualificouo professor Hoffmann como“elemento que em 1964 esteve presopor subversão”, o que o professorEngler reafirmou, acrescentando,também, que Moreira estiveraenvolvido em inquéritos policiaisem Jaboticabal.Além das observações de caráterpolítico e ideológico, os depoimentoscompletavam-se coma constatação de que a avaliaçãoacadêmica praticada pelo grupoera inadequada. O professor Simãoinformou ao delegado queo grupo adotava “um sistema deavaliação completamente diferentedos demais (professores), sempreatribuindo aos alunos a nota máxima,pois o sistema de avaliaçãoconvencional é fruto do sistemaimperialista”. Engler garantiu quea atuação dos quatro teria maiorefeito na área de pós-graduação.Fez, ainda, mais uma denúncia: oaluno Arciley Alves Pinheiro, dapós-graduação, membro do Conselhode Professores como representantediscente, “apóia <strong>integral</strong>menteo grupo liderado pelo Prof.Hoffmann”.O depoimento do professorEngler envolveu, ainda, outrosdirigentes da USP. Ele declarouProfessor Oriowaldo QuedaRevista <strong>Adusp</strong>Henrique Spavieriter-se reunido com os professores,após receber reclamações dosalunos quanto à atitude dos quatroem aula, e ter levado os fatosrelatados ao conhecimento dodiretor da Esalq na época, professorFerdinando Galli (que ocupouo cargo até dezembro de 1974), aquem encaminhou material didáticoproduzido pelos denunciados.Galli teria remetido o material àReitoria da USP, solicitando queEngler aguardasse “providênciasdos órgãos competentes”.Durante décadas, a comunidadeda Esalq sequer imaginou quetais denúncias houvessem ocorrido.Em declarações feitas em 1997,logo que tomou conhecimento dosdocumentos publicados, Quedamanifestou a surpresa e indignaçãode que as denúncias viessem“de meu chefe, amigo pessoal”.Por outro lado, admitiu que taisatitudes possivelmente fossemresponsáveis pelo corte do projetode desenvolvimento de uma áreade sociologia agrícola mais crítica,54


Revista <strong>Adusp</strong>Reprodução: Daniel GarciaDepoimento do professor Joaquim Engler no Dops, em 10/7/1975Na Congregação, Engler defendeu-sealegando que foi obrigado a assinar declaraçõesque os policiais do Dops distorceramOutubro 2004mais voltada para o social dentroda Esalq.Na Congregação, Queda pronunciou-seoficialmente, lembrandoque todos os seus direitoshaviam sido atropelados pelas denúncias,já que nunca o ConselhoDepartamental fora ouvido sobreos fatos, nem a própria Congregaçãoda Esalq. “Manifesto minha indignaçãoe inconformismo contraas ações de pessoas que buscaramsufocar a liberdade de expressão ecriar impedimentos à existência deuma instituição pluralista, ondeidéias e valores contrários pudessemser debatidos e criticados”.Imediatamente após a exposiçãode Queda, o professor JoaquimEngler, presente à sessão,leu extenso documento que játrouxera preparado. Disse tersido “obrigado a assinar umtermo de declaração elaboradopelo escrivão de formadistorcida”, já que o delegadoWilson Antonio dos Santoscondicionara a sua liberaçãoe do diretor da Esalq às assinaturas,e remeteu a autoriade todas as informaçõesexistentes no documento aesse delegado. Informouque, no dia seguinte ao doseu depoimento, o delegadoRomeu Tuma, diretorgeral do Dops, recebera aele e ao professor Simão, dizendoter havido um mal-entendido e devolvendoos originais.O próprio reitor Orlando Marquesde Paiva, acrescentou, desculpara-sepelo ocorrido, já queambos haviam sido levados àqueledepartamento policial sem que se-55


Outubro 2004quer soubessem para quê. O professorEngler declarou ainda que“o momento do Brasil era difícil”e relatou outras situações que indicariamsua preocupação, emboracomo chefe de departamento lhecoubesse “orientar docentes comideologias diferentes dentro dafilosofia pluralista de trabalho queadotei”.O ex-diretor Salim Simão tambémdeixou registrada oficialmentesua versão dos fatos de 1975, aoencaminhá-la ao professor EvaristoMarzabal Neves, que dirigia aEsalq em 1998. Segundo Simão,os papéis mantidos nos arquivosforam assinados sob coação e opróprio delegado Romeu Tuma“ao examinar os termos das declaraçõesque havíamos assinadodevolveu-nos os documentos originaisdeclarando-os incompatíveiscom o que nos fora perguntado erespondido”. Acrescentou que osdocumentos foram rasgados, o queo levava a crer que “o escrivão,com ou sem conhecimento do Dr.Tuma, deve ter tirado antes umacópia xerox, pois o original que nosfoi devolvido foi rasgado”.O ofício, datado de 28 de janeirode 1998, é enfático: “DOPS- assuntoencerrado”. Simão insiste emque ele e o então chefe do Departamentode Ciências Sociais Aplicadasforam ao Dops por solicitaçãodireta do reitor Marques de Paiva,levados em carro oficial da Reitoria,“para verificar denúncias contraprofessores da Esalq”. E garanteque ali esteve não para delatar, maspara defender sua escola.As versões dos professoresEngler e Simão são contraditóriascom documentos recentementelocalizados nos arquivos do Deopspela equipe da Revista <strong>Adusp</strong>, osquais fornecem detalhes de procedimentosadotados pela direção daEsalq contra os quatro docentes doDepartamento de Ciências SociaisAplicadas já no final de 1974.Um desses documentos é umrelatório confidencial, datado de 21de novembro de 1974, assinado peloinvestigador Paulo Camargo, da“(...) Na noite do dia 09 dejulho de 1975, recebi um telefonemado Prof. Salim Simão, entãoDiretor da Esalq, dizendo-me queestava retornando de São Paulo eque o Prof. Paiva, Reitor da USP,me convocava para uma reuniãono dia seguinte.Na manhã do dia 10 de julhode 1975, fui a São Paulo emcompanhia do Diretor da Esalq;no Gabinete do Reitor, fomosinformados de que o Prof. Paivativera um outro compromisso,mas o seu motorista nos levariaao local da reunião.Saímos da USP e, para minhasurpresa, o carro do Reitor nos levouao Deops. Quando lá chegamos,perguntei ao Prof. Salim o que iríamosfazer e ele disse que não sabia.Fomos recebidos por um Delegado,auxiliar do Diretor doDeops (Dr. Tuma), que fez algumasperguntas ao Prof. Salim e, aseguir, a mim.Revista <strong>Adusp</strong>Delegacia Seccional de Piracicaba, eque relaciona os quatro professorescitados (embora o nome de RodolfoHoffmann tenha sido trocado porRodrigo) como envolvidos em um“movimento de cunho subversivo”.“Segundo fui informado”, relatao investigador, “o diretor da Esalq,Dr. Ferdinando Galli, já está a pardo assunto, tendo inclusive, atravésde ‘Relatório’ dado conhecimento àReitoria da USP com informaçõesA DEFESAA seguir, os principais trechos do documentoDisse o Delegado que o Deopshavia recebido relatos de alunos daEsalq sobre atividades desenvolvidaspor alguns docentes do Departamentode Ciências Sociais. Perguntei queatividades eram essas. O Delegadome disse que os alunos acusavam osProfessores Hoffmann, Queda, RobertoMoreira e Ondalva Serrano decriticar o governo e pregar a reformaagrária violenta.Perguntou se eu confirmavaessas denúncias. Respondi quenão, dizendo-me ele que os alunosafirmavam que já haviam meprocurado como chefe do Departamentoe relatado o assunto. Friseique, realmente, fora procuradopelos alunos, porém eu não assistiaàs aulas dos citados professores,o que me impossibilitava deconfirmar as denúncias. Insistiuo Delegado, acusando-me de passividadeem relação às mesmasdenúncias, ao que respondi queos docentes tinham autonomia56


Revista <strong>Adusp</strong>mais detalhadas sobre o assunto. Ochefe do Departamento é o professorJoaquim José de Camargo Engler,pessoa íntegra, segundo consta,foi ele quem alertou o diretor daEsalq, em virtude de problemas criadospelos referidos professores”.Outro documento, o ofício190/SI/74, de 29 de novembrode 1974, enviado pelo delegadoseccional de polícia de Piracicaba,Ivan Pantaleão, ao delegadoRomeu Tuma, revela que Gallientendeu-se diretamente com aAesi-USP, cujo principal agenteera Krikor Cherkezian: “O sr. diretorda Esalq, dr. Galli, fez umrelato verbal dos acontecimentosao sr. Krikor, funcionário junto àReitoria da USP, que após ouvir odiretor transmitiu os fatos ao seuirmão, sr. Arminak Cherkezian, assessorregional de Segurança e Informações,para tomar as devidasOutubro 2004providências” (sobre a atuação dosirmãos Cherkezian, ver p. 41).Decorridas mais de duas décadas,outro incidente ocorridoem 1975 passou a ser analisadosob novo enfoque pelo professorQueda. Naquele ano, o professorRoberto Moreira viajara aos EstadosUnidos, autorizado pela Esalq,para realização de seu pós-doutorado.No Brasil, nomeara a esposade Queda como sua procuradora.DO PROFESSOR ENGLERapresentado pelo professor Engler à Congregação da Esalq, em 1998:na sala de aula, sendo incabívelqualquer interferência minha.Perguntou-me o Delegado sehavia falado sobre o assunto comos docentes citados. Respondi queconversara com esses professorespor solicitação do então Diretor daEsalq, Prof. Galli, que também receberadenúncias de estudantes. (...)Ao final da entrevista, o Delegadosolicitou minha assinaturano documento elaborado peloescrivão. Após a leitura do texto,ponderei que não correspondiaao que eu havia dito. O Delegadodisse que se tratava de um resumodos principais pontos abordados,condicionando minha liberação aessa assinatura.Saindo do Deops, manifestei aoDiretor da Esalq minha indignaçãopor ter sido levado àquele localsem informação prévia, onde fuiobrigado a assinar um ‘termo dedeclaração’ elaborado pelo escrivãode forma distorcida.Voltei a Piracicaba sozinho,enquanto o Prof. Salim Simão foià Reitoria. Na noite desse mesmodia, o Prof. Salim, retornando aPiracicaba, me telefonou para dizerque transmitira meu protestoao Reitor e que este queria falarcomigo no dia seguinte, a fim deesclarecer o ocorrido.Voltamos, então, a São Pauloe o Reitor se desculpou peloque acontecera no dia anterior,dizendo que houvera um mal entendido,acrescentando que o Dr.Tuma queria esclarecer o assuntopessoalmente.Fomos novamente ao Deops,sendo recebidos pelo Dr. Tumaque se desculpou pela atitudede seu auxiliar, informando queapenas pedira ao Reitor paraconversar com o Diretor daEsalq, informalmente, objetivandomelhor esclarecer as denúnciasde estudantes daquelaEscola. Como prova de que dissera,devolveu-me o documentoque, no dia anterior, assinei sobprotesto dando o assunto porencerrado. Embora o Dr. Tumame devolvesse o original do documento,perguntei-lhe, profundamenteirritado, que garantiaseu teria de que não havia cópiade tal documento.Ele me garantiu que não haviacópia do documento que estava medevolvendo. Magoado com tudoo que acontecera, rasguei o documentoe o joguei no cesto do lixoda sala do Dr. Tuma, retirando-me.Infelizmente, minha desconfiançatinha razão de ser, pois cópia dessedocumento foi encontrada.Preocupado com a situação,conversei com o Prof. Queda e oaconselhei a solicitar ‘estabilidade’como Professor, pois tinha elemais de cinco anos na função comocontratado, podendo pela legislaçãovigente, requerer tal benefício,o que ele fez e obteve.(...)”57


Reprodução: Daniel GarciaOutubro 2004Passados alguns meses, Moreiracomunicou-se com os amigos daEsalq informando que deixara dereceber os salários.Queda, que sequer imaginavahouvessem ocorrido os depoimentosno Dops, procurou oentão diretor Salim Simão, queapenas lhe informou que o contratode trabalho de Moreiranão fora renovado — isto aconteceusem que este professorsequer fosse comunicado deseu desligamento.Porém, depois que tomouconhecimento, em 1997, dadelação praticada por Simãoe Engler, Queda avaliouque os fatos “tinhamligação entre si”, isto é,que Moreira foi vítima deperseguição. Quando teveos documentos em mãose os encaminhou à Congregação,em 1998, Quedatambém os enviou aMoreira, avisando-o deque, diante do ocorrido,ele teria direito atémesmo a uma reparaçãofinanceira pelaperda do emprego, segundolegislação promulgada no governoMário Covas.O professor Salim Simão, quechegou a assumir interinamente aReitoria nos anos de 1977-78, faleceuem maio de 2004. O professorFerdinando Galli faleceu em agostode 2004. O professor CamargoEngler, que dirigiu a Esalq no período1983-1986, continua em atividadena USP, integrando, além daComissão de Ética, a Comissão deOrçamento e Patrimônio (COP).O professor Moreira,um dos denunciados,fazia pós-doutoradonos EUA, autorizadopela Esalq, quandoseu contrato deixoude ser renovado pelaUSP, sem avisoRevista <strong>Adusp</strong>PolíciainformacomoprofessorGalli,diretor daEsalq, pedeprovidênciasa Krikor,da AesiÀ Revista <strong>Adusp</strong>, Engler reiterou,em mensagem eletrônica, oteor da manifestação encaminhadaà Congregação da Esalq em 1998(leia texto nas p. 56-57). “Não tiveconhecimento das dificuldades enfrentadaspelo professor RobertoJosé Moreira para manter-se noexterior em 1975”, acrescentou,em resposta a uma pergunta.58


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004ADUSP E ASUSPNA MIRA DA REPRESSÃOMarina GonzalezJornalistaDaniel GarciaUma pasta pertencente ao acervo do Dops coleciona centenasde documentos do período 1978-1982, produto da repressãoditatorial ao movimento dos professores e funcionários da USP. A<strong>Adusp</strong>, criada em 1976 como sucessora da antiga Associação dosAuxiliares de Ensino, passou a ser alvo das atenções dos órgãos desegurança, inclusive do Exército e da Aeronáutica, precisamentequando o regime militar dava mostras de perder o fôlego59


Outubro 2004Numa época em quea Ditadura já começavaa perder força,ingressando na “transiçãolenta, segurae gradual” para ademocracia, as atividades sindicaisque ocorriam dentro da USPcontinuavam vigiadas, tanto quemereceram uma pasta exclusivano arquivo do Departamento Estadualde Ordem Política e Social,o Dops.Sob o código “OP-1190 ADUSP”foram guardadas centenas de documentos:panfletos, recortes dejornais, comunicados de órgãos darepressão política, relatos de agentesinfiltrados em assembléias e reuniões,ofícios da universidade e outrospapéis do período 1978-1982. Antesdisso, evidentemente, já existiam avigilância e a repressão às entidadesde representação dos docentese funcionários. Mas esses registrosanteriores estão espalhados por outraspastas, referentes à Reitoria, àsfaculdades e institutos.Já é sabido que a Aesi-USP encarregava-sede enviar aos demaisórgãos de repressão seus própriosrelatos de assembléias e reuniões,além de impressos produzidospelas entidades. Em 1981, remeteuao Dops e a outras agênciasinformações sobre os integrantesda diretoria da Associação dos Docentesda USP (<strong>Adusp</strong>) e os eleitospara os órgãos colegiados da USP,como comprova o documento 274do Gabinete da Reitoria, de julhodaquele ano. Também continuacomum no período a infiltração deagentes em greves, paralisações eprotestos dentro dos campi.1978: dossiê elaboradopelo IV Comar sobre aDiretoria da <strong>Adusp</strong>Ao analisar a pasta OP-1190,é possível constatar que, além daAesi e do Dops, órgãos militaresinteressavam-se pelas atividadesda <strong>Adusp</strong> e de seus diretores. A 2 aDocumento da PF definiucomo melhor candidato a reitoro professor Waldir Muniz,irmão de coronel: “Não só por taislaços familiares, desfruta de condiçõesautênticas de um futuro reitoralinhado ao sistema. É egressoda Escola Superior de Guerra”Revista <strong>Adusp</strong>Seção do IV Comando Aéreo (Comar)do Ministério da Aeronáutica,por exemplo, informa às demaisagências a composição da diretoriada <strong>Adusp</strong> em outubro de 1978. O60


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Daniel GarciaReprodução: Daniel GarciaVice-presidente da <strong>Adusp</strong>, Antonio Candido (no destaque) foi um dos alvos do dossiêda Aeronáuticadocumento,classificadocomo confidencial, lembraque a “<strong>Adusp</strong> não é umórgão oficial da USP”. Emanexo, é enviado um dossiêdas atividades subversivas dosprofessores Modesto Carvalhosa,Antonio Candido e JoséEduardo Martinho Hornos,com informações provenientesde órgãos como I Exército, IVComar, Dops e Aesi-USP.A Associação dos Servidoresda USP (Asusp), na épocaa entidade que representavaos funcionários da universidade,também era observadacom atenção. Em 1978, haviaforte motivo para isso: a eleiçãoda diretoria da entidade pelaprimeira vez contava com umachapa de oposição. Os integrantesdo Movimento de Oposição(Moasusp) denunciavam que oentão presidente Olívio Soaresde Oliveira recusava-se a apoiara campanha salarial desencadeadapelo funcionalismo estadual edificultava a realização de assembléiasdos servidores.61


Revista <strong>Adusp</strong>Panfleto da chapa de oposição à diretoria da AsuspAlém da contribuição da universidadepara a vigilância dessemovimento e da presença de agentesexternos infiltrados em reuniões, oarquivo do Dops também guardaevidências da colaboração do próprioOliveira com os órgãos de repressão.Em 24 de outubro de 1979, ele escreveao chefe do Dops, o delegadoRomeu Tuma, informando a data daeleição da entidade e os nomes dosintegrantes da comissão eleitoral quedeveria acompanhar o processo derenovação da diretoria da Asusp.Nem todos os documentos dapasta OP-1190 são relativos à <strong>Adusp</strong>ou à Asusp: nela eram arquivadasInforme sobre assembléia de grevetambém informações sobre outrasatividades tidas como contestatóriasque aconteciam na USP no período.Isso talvez explique a existência deum relatório sobre uma assembléiade funcionários da Fipe, de abril de1979. “A fonte”, como assina o espiãodo Dops, conta detalhadamenteas reivindicações dos trabalhadorese a negociação com a diretoria dafundação, a qual teria feito “diversasconsiderações quanto às dificuldades”da Fipe e “sua dependência dosgastos governamentais”.Por outro lado, em outras pastastambém há documentos que citamexplicitamente a <strong>Adusp</strong>. Um exemploé o informe 041, de 19 de outubrode 1977, do Serviço de Informaçãoda Superintendência Regional da PolíciaFederal em São Paulo. O assuntoprincipal é a escolha do novo Reitor.O relato apresenta os cinco candidatose diz quais são os mais indicados.Três deles seriam “visivelmentecomprometidos com a <strong>Adusp</strong>”: JoséGoldemberg, Antonio Ferri e JoséFrancisco Camargo, os dois primeirosconsiderados “altamente posicionadosna oposição ao regime”.Restariam, portanto, dois candidatos“autônomos”, na definição doautor do informe: os professoresJosué Camargo Mendes, vice-reitore ex-diretor do Instituto de Geociências,e Waldir Muniz, que terminousendo escolhido pelo governador.Segundo informa o documento,Waldir era irmão do coronel MunizOliva, que servia no gabinete dogeneral Ariel Pacca da Fonseca, noMinistério do Exército. Mais ainda:“não só por tais laços familiares,desfruta o professor Waldir de condiçõespessoais, autênticas de umfuturo reitor alinhado ao sistema. Éegresso, em dezembro de 76, da EscolaSuperior de Guerra e possui umtambém aprimorado currículo (...)”.62


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Reprodução: Daniel Garcia“A ECA ÉO PRINCIPALFOCO DEAGITAÇÃODA USP”José Chrispinianoe Cecília FigueiredoJornalistasDocumento do IIExército, assinadopelo generalEdnardo, vê na ECA“o principal foco”de agitaçãoA frase, assinada pelogeneral Ednardo D’Ávila,comandante do II Exército,revela que os órgãos desegurança acompanhavamdetidamente a greveestudantil iniciada emabril de 1975. O diretor daEscola de Comunicaçõese Artes, tido como agenteda repressão, colaboravaativamente com aperseguição e prisãode líderes estudantis,e sua atuação foi umadas causas da greve. O assassinato de VladimirHerzog pelo DOI-Codi do II Exército, em outubrodo mesmo ano, gerou uma onda de paralisaçõesestudantis em faculdades públicas e privadas63


Outubro 2004Merecem ser contadasmuitas dashistórias do movimentoestudantilda USP durante aDitadura: a ocupaçãodo prédio da rua MariaAntonia pelos estudantes e a doConjunto Residencial (Crusp)pelo Exército, ambas em 1968; asventuras e desventuras dos quesaíram da universidade para a lutaarmada contra o regime; o showde Gilberto Gil na Escola Politécnicaem 1973, reconstituído pelojornalista Caio Túlio Costa no livroCale-se; e inúmeras outras quepoderiam ser extraídas dos arquivosdo Dops ou reconstituídas pelamemória dos seusprotagonistas.Mas há três históriasque, entrelaçadas,dizem respeitoà reorganização domovimento estudantilnos moldes quepermaneceriam atéos dias de hoje, noperíodo em que seiniciava a chamada “distensãodemocrática”, no governo do general-presidenteErnesto Geisel:a greve dos estudantes da Escolade Comunicações e Artes (ECA)em 1975; as paralisações emprotesto contra o assassinato deVladimir Herzog; e a recriaçãodo DCE em 1976.A fonte principal destas históriasserá o material encontradono Dops, a crônica de umavigilância intensiva que incluíarelatos diários de agentes quese dedicavam a monitorar a vida64dos estudantes, registrando aomesmo tempo a história do movimentoestudantil e de uma burocraciadedicada à perseguiçãoideológica. A eleição do CentroAcadêmico Lupe Cotrim (Calc)em 1975, por exemplo, foi monitoradapor pelo menos três agentesdo Dops. E estes não eram osúnicos a freqüentar o campus.Exército, Aeronáutica, PolíciaFederal ocupavam-se de fatosque aos olhos de hoje são absolutamentebanais: circulação depanfletos e cartazes, realização deseminários e debates, existênciade um Diretório Central dos Estudantes(DCE) — nos anos 1970,isso era caso de polícia, e mesmoEm 16/4/1975, uma assembléiadecretou greve em apoio aoprofessor Sinval Medina,reprovado na qualificação parao mestrado por uma banca acusadade falta de isenção, e desligado da ECAde “segurança nacional”, a pontode tomar tempo e atenção degenerais e mobilizar centenas deespiões e agentes.Fundada em 1966, a Escola deComunicações e Artes ainda nãotinha, em meados da década de1970, sequer a estrutura administrativaque existia no resto da USP.Seus diretores eram professorestitulares vindos de outras unidadese não havia uma Congregação.Assim, chegou para dirigir a ECAo professor Manuel Nunes Dias,antes chefe do Departamento deRevista <strong>Adusp</strong>Reprodução: Daniel GarciaJosé Américo, estudante: fichado, comovários outrosHistória. Nunes eratido pelos professorese alunos como praticamenteum agentedos órgãos de repressãono comando daescola. Um dos “alunosmais ativos daépoca” segundo estesmesmos órgãos, o hojevereador José Américo Dias, dizque Nunes era “declaradamente,um agente”.No período anterior à greveo diretor já havia proibido umafeira de livros e uma palestrasobre “Colonialismo Português”.Cortou o auxílio da ECA ao DiretórioAcadêmico e retirava cartazesdos murais, às vezes pessoalmente.A pedido de órgãos desegurança, deixou de renovar oscontratos dos professores PauloEmílio Salles Gomes e José Marquesde Mello. Foi preso dentro


Revista <strong>Adusp</strong>Manuel Dias, diretor da ECA: agente da repressãoClaudenie Petroli/Agência EstadoManuel Nunes Dias, diretor da ECA,sofria críticas até mesmo dos órgãosde repressão, por agir “de modoinoportuno” e por mostrar-se“inábil” e tomar “atitudes violentasque favorecem a baderna”da escola, sem quese saiba de protestode Nunes, o professorJair Borin, em1974. Papéis da Aesiindicam que o diretorconstantementerepassava àquelaagência material einformações, e registramconversas suas com agentesdo Dops infiltrados na ECA.O estopim da greve foi a reprovaçãodo professor SinvalFreitas Medina na sua prova dequalificação para o mestrado. Emrazão desse resultado, ele perdeuseu contrato com a ECA, onde jálecionava no curso de Jornalismo.A reação dos alunos, em apoio aMedina e a um grupo de professores(sua esposa Cremilda Medina,Paulo Roberto Leandro e o chefedo Departamento, Walter Sampaio)que se demitiram em solidariedade,por considerar a banca dequalificação injusta, opôs o grupo“Nova Ação” à diretoria do Calc,que não queria a greve.Em 16 de abril de 1975, umaassembléia decretou a greve estudantil,e seis dias depois o grupo deoposição realizou uma assembléiaque destituiu a diretoria do Calc eocupou sua sede. A greve estudantilque paralisaria a escola por 73dias, catalisando a irritação contraNunes em um movimento que exigiaa renúncia de um diretor autoritárioe destituído de legitimidade,Outubro 2004avançava na reconstrução do movimentoestudantil e na retomadada cooperação entre os alunos dediferentes unidades na USP.Desde 1971 existia na USP oConselho de Centros Acadêmicos(CCA), que veio substituir o DCE,tornado clandestino em 1969. Entretanto,apesar de ter organizadoum plebiscito sobre ensino pagoque chegou à imprensa e provocoureação irritada do ministroJarbas Passarinho, a ação do CCAera limitada e ainda bastante vigiadapelos órgãos de repressão.A greve estudantil na ECA, namedida que se prolongava, denunciavauma situação de opressãoe autoritarismo semelhante à deoutras unidades daUSP, e cuja legitimidadedificultava suacaracterização peloregime militar como“subversão”.A greve estabeleceuna ECA gruposde discussão e atividade.Cresceu em tornodela o apoio de alunosde outras unidades, e mesmode outras universidades. No dia 8de maio, uma assembléia na USPreuniu cerca de mil alunos deoutras áreas, segundo documentodo Dops. A solidariedade deoutras escolas gerou a realizaçãode dias de paralisação em váriasdelas, e outras universidades, comoa Federal Fluminense (UFF),organizaram manifestações deapoio. O movimento obteve amplarepercussão, muitas vezessendo pesadamente criticado naimprensa, como em editorial de65


Outubro 200422 de maio de 1975 de O Estadode S. Paulo.Surgiu nesta época a “ComissãoUniversitária”, formadacomo espaço de atuação de alunosde diversas unidades da USP,visando coordenar o movimento,discutir problemas comuns epreparar a recriação do DCE.Revista <strong>Adusp</strong>“Estávamos cansados de pedirapoio ao CCA sem êxito, até queresolvemos formar as comissõesexternas pró-DCE Livre”, contaJosé Américo.“A ECA é, no momento, oprincipal foco de agitação daUSP”. Assim começa a comentara greve, em documento produzidoem maio de 1975, o generalEdnardo D’Ávila Mello, comandantedo II Exército, em cujasdependências seria assassinado,meses mais tarde, o jornalistaVladimir Herzog, professor detelejornalismo da ECA.O “Relatório Especial de Informações01/75”, documento deUSP PAROU EM REPÚDIOAO ASSASSINATO DE HERZOG“Quanto às demais faculdadeshoje (20/10/75) havia protestos portoda a parte, apesar de eu ter citadosomente as que o movimento erafora do comum [sic]. O ambientenesta noite na USP está bemconturbado, notava-se uma certaapreensão no olhar dos estudantes,como se alguma coisa os preocupasse.Prometem eles muitas reuniõespara o dia 21 para frente.”O relato acima, deautoria do agente doDops nº 636, é endereçadoao delegadotitular Sílvio PereiraMachado. Aponta apreocupação que tomouconta da universidade apósa onda de capturas ocorridas nofim de semana anterior pelo DOI-Codi do II Exército. Professores eex-alunos, num total estimado pelosestudantes em 48 prisões. Quecontinuariam nos dias seguintesdaquele outubro fatídico.José ChrispinianoJornalistaEntre 27 e 31 de outubro, uma grevede protesto paralisou as principaisunidades da USP, além da Escolade Sociologia e Política e da FaapNo dia 24, Vladimir Herzog, diretorde jornalismo da TV Cultura,atende a uma intimação e apresenta-seao DOI-Codi. Torturadocom choques elétricos, Herzogestará morto no dia 25. Fora umadas vítimas da “Operação Jacarta”,promovida pelo II Exército com afinalidade de aniquilar dirigentesdo Partido Comunista Brasileiro(PCB). Jornalista de grande prestígio,sua morte causa enormes embaraçosao regime militar. A versãodo II Exército era obviamenteinsustentável: “suicídio”.Mais um relato do agente 636,agora no dia 27, data em que Herzogfoi enterrado: “Na ECA haviaum aglomerado junto ao saguão,onde trouxeram um mural com informessobre a morte do jornalistaVladimir Herzog. (...) Informoainda que, em todas as escolasonde existem denúncias, estas vemestampadas como sendo ‘Assassinado’pela repressão.”Documento assinado pelo delegadoMachado, em trecho intitulado“O movimento estudantil ea mobilização subversiva”, anota aescalada da reação estudantilao assassinato deHerzog. Uma assembléiaaconteceu na ECA nomesmo dia 27 de outubro,às 16 horas, e decidiu poruma greve geral na USP.Outra aconteceu à noite, nas CiênciasSociais, com 500 alunos. Outrana manhã seguinte. Rapidamente omovimento se expandiu, mostrandouma crescente articulação.O delegado do Dops registraa paralisação de uma série deunidades da USP, entre as quais a66


Revista <strong>Adusp</strong>12 páginas sobre o movimentoestudantil, assinado pelo general,dedica três delas à ECA. Apósassinalar a existência de uma“divisão” entre “elementos comunistas”(dos quais destaca aprofessora Cremilda Medina) eo diretor da escola, ele própriocritica Nunes: “quando age, o fazOutubro 2004de modo inoportuno, concorrendopara o agravamento da crise”. Outrodocumento, de 18 de abril de1975, afirma que Nunes “tem semostrado inábil, com atitudes violentasque somente favorecem aosinteresses das forças da baderna”.Assinada com a data de 21 demaio, foi enviada aos pais dos estudantesuma carta assinada por“Alunos da ECA”, aparentementeforjada. A carta diz que o “delitoMedina” poderia ser resolvido pelosmeios legais, que a formaçãode uma Congregação estava sendoresolvida, mas que a demissão deNunes era uma exigência “absurda”,porque “não existe no longoEscola Politécnica, as faculdadesde Medicina, de Arquitetura e Urbanismo,de Administração e Economiae de Medicina Veterinária.Instituições privadas como a Escolade Sociologia e Política e a FundaçãoArmando Álvares Penteado(Faap) também paralisaram suasaulas. Uma greve de protesto, pelalibertação dos outros presos políticos.A paralisação se estenderiaaté o dia 31 de outubro, dia do atoecumênico na Praça da Sé, cultoque marcaria um protesto públicocontra a ditadura, e para o qual asassembléias pediam participaçãoem massa dos estudantes.Os jornais dos órgãos estudantisrecomendavam cautela aquem fosse participar do ato daSé. Ainda estavam na memóriade todos as prisões e identificaçõesque se seguiram à missa porAlexandre Vannuchi Leme, em1973. Pedia-se aos estudantesque comparecessem em grupospequenos, e, depois do ato, se dispersassemrapidamente pelo centro.Mas ninguém foi detido porparticipar da celebração presididapor dom Paulo Evaristo Arns, rabinoHenry Sobel e pastor JamesWright, embora a polícia tivesseCulto ecumênico por Herzog em 31 de outubro de 1975Agência Estadoprocurado impedir que as pessoasse deslocassem até a Sé.A forte reação da sociedadeao assassinato de Herzog, na qualteve papel destacado o Sindicatodos Jornalistas, levou o DOI-Codia libertar alguns dos jornalistaspresos na razia de outubro, comoPaulo Markun e Diléa Frate.Contudo, várias pessoas permaneceramencarceradas, inclusive ojornalista Sérgio Gomes da Silva,detido desde o dia 5.Apenas após a ocorrência deuma nova morte no DOI-Codi,também por “suicídio”, a do operárioManuel Fiel Filho, em janeirode 1976, é que o ditador Geiselresolveu destituir do comando doII Exército o general EdnardoD’Ávila Mello, encerrando-seassim a “Operação Jacarta”. Novasmortes, contudo, ocorreriamem dezembro de 1976, com o IIExército sob comando do generalDilermando Gomes Monteiro: a“Chacina da Lapa”, o assassinatode três dirigentes do PartidoComunista do Brasil (PCdoB).Outros seis membros do PCdoBforam presos e torturados nessaocasião.67


Outubro 2004passado desse educador nadaque venha contra sua pessoa, comohomem ou como professor”.Segundo a carta, esta exigênciaprestava-se apenas a manter “aagitação e a baderna na USP”. Acarta termina assim: “SenhoresPais, discutam com seus filhos paraque não sejamos ‘inocentes’ nasmãos de subversivos”.Na visão da Assessoria Regionalde Segurança e Informaçãodo MEC, chefiada por ArminakCherkezian, o “objetivo real” domovimento seria a rearticulaçãodo DCE e de uma nova UNE.“A demora em providênciasque venhama coibir o propósitoacima apontado poderiaresultar em seunenhum efeito, comonenhum efeito surtiua tardia carta oradirigida pelos professoresdemissionáriosWalter Sampaio,Cremilda Araújo Medina,Sinval Freitas ePaulo Roberto Leandro aos estudantes,concitando-os à volta àsaulas”, conclui o documento.De fato, o pedido dos professores,feito após ser criada a Congregaçãoda unidade (o que diminuiria,em tese, os poderes de Nunes),foi rejeitado. A luta tinha assumidooutras proporções. Mas era impensável,para a universidade e os órgãosde segurança, concordar com asaída de um diretor, por mais reconhecidamente“inábil” que fosse.Durante os protestos, boletimdos estudantes relata que, em ummês, ao menos oito deles foram68Durante a greve, ao menos oitoestudantes foram intimadosa prestar depoimentos no Dops,que elaborou uma lista com nomee endereço dos 28 alunos “maisativos” no movimento. Muitas vezesos pais também eram chamadosintimados a prestar depoimentosno Dops, que elaborou umalista com nome e endereço dos28 alunos “mais ativos” no movimentode greve. O auto policial,arquivado como pasta OP-1514no Arquivo do Estado, registra ainvestigação a que foram submetidosJosé Américo e EdmundoMachado de Oliveira, instituídapor Sílvio Pereira Machado, o delegadoque chefiava a vigilânciano campus. O assunto: “Eclosãode assembléia permanente”.Nos depoimentos eram chamadosmuitas vezes não só os estudantes,mas também seus pais.“Depois de horas de depoimento,colocavam estudantes e suas mãespara receber um sermão coletivodo Erasmo Dias”, conta José Américo,referindo-se ao então secretárioda Segurança Pública. “Em tomde ameaça, este dizia às mães queseus filhos queriam estabelecer ocomunismo, o Anti-Cristo... Apósouvir tudo aquilo, bem tranqüila,minha mãe disse às outras: ‘Essesenhor é maluco!’ O delegado SilvioPereira Machado, por sua vez,nos incitava a pegar em armas.”Documento do Dops registra osRevista <strong>Adusp</strong>esforços de um agente para seguiros dois estudantes, e João BatistaRodarte, na noite de 18 de junhode 1975, entre 20h00 e meia-noite,pelas ruas de São Paulo.Um documento curioso sobreo impasse criado pela greveé uma análise feita pela PolíciaFederal, que sugere que o envolvimentode parlamentares doPMDB, como o então deputadoestadual Alberto Goldman, poderiaabrir um diálogo. “Concessõesmenores” e a saída antecipada deNunes, que segundo a PF havia“perdido a autoridade moral”,eram outras de suasrecomendações paraa solução da crise.A negociação seriafacilitada por aindanão ter sido aplicadoo “477” (ver “As leisda repressão”, p. 71).O fim do movimentodeveu-se, porém,ao esvaziamentodas assembléias eda participação apósmais de dois meses de paralisação.Nunes só deixaria a diretoriano fim do seu mandato, em outubrode 1976, com comemoraçãodos alunos e da maioria dosdocentes registrada na imprensada época. Os alunos da ECAperderam o semestre. Mas o movimentoteve o peso de uma açãomaior dos alunos em direção àretomada da liberdade de ação eorganização do movimento estudantil.Uma tragédia no final deoutubro — o assassinato de Herzog— acabaria se tornando maisum passo nesta retomada.


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004NA CRIAÇÃO DODCE LIVRE, UMADERROTA DA DITADURAJosé ChrispinianoJornalistaAcervo IconographiaPasseata na USP, em 1977: omovimento estudantil em açãoEm maio de 1976, o movimento estudantil da USP superainúmeros obstáculos, cria o Diretório Central dos Estudantes-Livre Alexandre Vannuchi Leme e elege os membros da sua gestãoinaugural, conquistando o que um agente da repressão classificoucomo “sua primeira vitória neste ano”. Mais de 12 mil alunosvotaram, legitimando assim o surgimento do DCE-Livre69


Outubro 200470Em 31 de maio de 1976a Aesi-USP comentouda seguinte forma osurgimento do DiretórioCentral dosEstudantes: “O DCEé uma entidade espúria, que orasurge como órgão que reivindica arepresentação de toda a classe discenteda USP”. Nome, RG e endereçodos membros do DCE foramrepassados a todos os órgãos desegurança pela Aesi, tão logo aentidade foi criada e realizada suaprimeira eleição.O processo de organizaçãoda “entidade espúria” é alvo deatenção da Polícia Federal,que reúne extensomaterial, e do Dops, queaponta a entidade comoilegal, por contrariar oDecreto 228, que definiaas regras da representaçãoestudantil. Por essarazão o DCE declara-se“livre”: por não estar subordinadoà universidadecomo as entidades “legais”da época.A recepção aos calouros em1976 já fora organizada comocalourada unificada pela ComissãoUniversitária, com o tema dareorganização de uma entidadecentral que articulasse as lutasestudantis. Após a greve da ECA,a mobilização em protesto contrao assassinato de Vladimir Herzoge a greve ocorrida no campus deRibeirão Preto — contra sua separaçãoda USP e transformaçãoem uma nova universidade, defendida,segundo os estudantes, porsegmentos da elite local —, a necessidadede uma entidade centralera cada vez maior.Na escalada da reorganizaçãoestudantil, o Dops registra tambémos movimentos de várias escolasem 1975, como nas Ciências Sociaise na Faculdade de Arquiteturae Urbanismo (FAU), para a retomadados bares pelos estudantese controle dos preços no campuspela Coordenadoria de AssistênciaSocial (Coseas).Com a palavra um agente anônimodo Dops, no dia 28 de marçode 1976: “O movimento estudantil,dirigido pelo Partido Comunistado Brasil e apoiado por outrosO maior golpe contra a criaçãodo DCE foi o roubo de 40 urnas(quase 8 mil votos) após a eleição,em 12 de maio. Imputado ao Dops,o roubo forçou a realizaçãode nova eleição, em 18 de maiosetores de esquerda, caminhapara sua primeira vitória nesteano de 1976, com a efetivação deassembléias visando a formaçãodo Diretório Central Estudantilda Universidade de São Paulo.Apontada como entidade transitóriapelo seus próprios organizadores,a Comissão Universitáriafoi a responsável pela exploraçãoda morte de Vladimir Herzog emfins do ano passado.”Mais adiante, o agente esclareceque a Comissão Universitáriaé “apresentada, em toda apropaganda, como antecessora doRevista <strong>Adusp</strong>Diretório Central dos Estudantes(...) primeiro passo concreto doMovimento Estudantil em suareorganização política, cujas etapasseguintes serão o DiretórioMetropolitano Estudantil, UniãoEstadual dos Estudantes e finalmente,União Nacional dos Estudantes,entidade de tão triste memória”.E conclui: “Eis portanto,Sr. Diretor Geral de Polícia, maisum passo na escalada da subversãono meio estudantil.”O passo não foi desprovido dedificuldades. Uma assembléia naFAU no dia 26 de março determinoua eleição para os dias 11 e12 de maio, em propostado então estudante JúlioTurra Filho, da FEA.Havia discussões sobreo formato da entidade,como deveriam ser aseleições e se ela interferiana autonomia doscentros acadêmicos. OXI de Agosto, da Faculdadede Direito, foi contraa criação do DCE,e se expressou na imprensa emartigo de Marco Antonio Tigrão,presidente daquele CA. VáriosCAs responderam apoiando a suaformação, entre os quais os daHistória, da Física, da FEA, daMedicina, da Filosofia e o GrêmioPolitécnico.Mas o maior golpe contra aformação do DCE foi o roubo dasurnas que guardavam os votos daeleição, numa madrugada, quandoestavam dentro da FEA. Segundoo jornal O Estado de S. Paulo (14de maio), foram roubadas 40 urnas,com 7.910 votos.


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004AS LEIS DA REPRESSÃO AOS ESTUDANTESDurante os vinte anos da Ditadura,uma série de leis regulouas atividades estudantis. Elaseram combatidas e, na medidado possível, descumpridas pelosestudantes. As principais:Lei 4.464 (9/11/64) - Conhecidacomo lei Suplicy de Lacerda, nomedo ministro da Educação da época.Definia as entidades permitidas,suas atribuições e até como se dariaa eleição. Autorizava a existênciado Diretório Acadêmico (DA),do Diretório Central de Estudantes(DCE), do Diretório Estadual deEstudantes (DEE) e do DiretórioNacional de Estudantes (DNE). OsDAs e DCEs não podiam ter atuaçãopolítico-partidária e deveriamindicar os representantes discentesdos órgãos colegiados.Pela lei, o voto nos DAs eraobrigatório, sob pena de proibiçãode fazer exames parciaisou finais. Na USP, a maioria dosCAs não se enquadrou na lei Suplicy.Em alguns casos, como naFaculdade de Direito, o CA e oDA coexistiam, mas o CA tinhamais importância política e erareconhecido, na prática, pelos diretoresda escola. Em outras unidades,os estudantes driblavam aproibição de montar CAs, criandoos “centros de estudos”, comoo Centro de Estudos de Física eMatemática (Cefisma).Decreto-lei 477 (26/2/69) - Ochamado “AI-5 da educação”. Tratavadas infrações cometidas porprofessores, alunos ou funcionáriosde estabelecimentos de ensinopúblicos ou privados. O decretoconsiderava infração apoiar qualquermovimento que paralisasseatividades escolares; participar dequalquer movimento “subversivo”,como passeatas não autorizadas;produzir ou distribuir material“subversivo”; usar dependência daescola para “fins de subversão”. Aspunições previstas pelo 477 eramdemissão para professores e funcionáriose expulsão para estudantes.Decreto-lei 228 (28/2/67)- Revogou a lei 4.464 e reformuloua representação estudantil.Extinguiu os DEEs e o DNE,que nunca existiram na prática.Manteve a interferência nas entidades,definindo até como seria asua manutenção financeira.Os Decretos 477 e 228 foramrevogados em 1979, pela lei 6.680.Estado do Paraná/Agência EstadoSuplicy de Lacerda, ministro daEducação que “batizou” a Lei 4.464Esta lei previa menor grau deinterferência: não determinava,por exemplo, as regras da eleição.Entretanto, deixava de reconheceros CAs, as uniões estaduaisde estudantes (UEEs) e a UNE.Editada no ano do congresso dereconstrução da UNE, definia aextinção dos DCEs que se ligassema entidades estudantis fora dauniversidade. Apenas em 31/10/85foi sancionada a lei 7.395, quelegalizou os CAs e reconheceu aUNE como entidade representativado conjunto dos estudantes. Elapermite que as entidades estudantisdefinam seu funcionamento.O roubo forçou a realização denovas eleições, no dia 18 de maio.Dessa vez, para evitar nova subtraçãode urnas, realizou-se uma noitede vigília, que mesclou festa, debatese eventos culturais. Estudantesde Ciências Sociais apresentarama peça “Eu sei quem roubou as urnas”,que sugeria que haviam sidoas forças do Dops. Foram exibidosos filmes “Zezéro”, de OzualdoCandeias, sobre a história de umoperário, e “Brancaleone nas Cruzadas”,de Mário Monicelli.Na primeira eleição, de acordocom relatório do Dops, votaram12.253 alunos, número que a imprensada época considerou “baixo”,diante do total de alunos dauniversidade. Na verdade, foi umcomparecimento extraordinário71


Outubro 2004numa eleição estudantil (muitosuperior, por exemplo, ao númerode votantes nas eleições do DCErealizadas a partir de 1990, apesardo crescimento do corpo discenteda USP).A disputa eleitoral foi acirrada.Os primeiros lugares ficariamentre as três tendênciasque dominariam o movimentoestudantil nos anos seguintes:Refazendo, com 4.362 votos, eque comandou o DCE nas suasduas primeiras gestões; Liberdadee Luta (Libelu), que obteve2.955 votos, e que venceria aterceira eleição para o DCE, em1978; e Caminhando, que conseguiu1.497 votos.Os primeiros anos do DCEnão foram fáceis. Todas as diretoriasaté 1979 tiveram o nome,endereço e RG de todos osseus membros registrados pelapolícia, fornecidos pela Aesi. Omovimento estudantil foi monitoradopelo Dops até 1982. Procuradopela Revista <strong>Adusp</strong>, o hojesenador Romeu Tuma (PFL),que dirigia esse órgão policial,não quis se pronunciar sobre oassunto.Revista <strong>Adusp</strong>O II Exército investigou gráficasnas quais o DCE imprimiapanfletos. O SNI pediu, em 1978,vigilância sobre um curso de fériasoferecido pela entidade, cujo temaera o golpe de 1964. Um autode investigação foi aberto devidoà distribuição de panfletos paravestibulandos, contrários à divisãodo vestibular da Fuvest em duasfases e favoráveis ao aumento donúmero de vagas na USP — e conseqüentementecinco estudantesforam interrogados.Dois alunos do campus de Bauruforam detidos, interrogados eREFORMA DE 1968 NA USPCONSOLIDOU LÓGICA DA SEPARAÇÃOMarcy PicançoJornalistaA reforma ocorrida na USP em 1968 dissolveu a Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências (FFLC) e criou os institutos deciência básica. Os cursos abrigados na rua Maria Antonia foramtransferidos para a Cidade Universitária. O professor FranklinLeopoldo da Silva, da FFLCH, então estudante, estava na metadedo curso na FFLC quando isto ocorreuPor que os institutos de ciênciabásica se separaram da FFLC?A separação ocorreu num contextointernacional de desenvolvimentodas ciências básicas após a SegundaGuerra Mundial. Esse crescimentolevou as áreas a se tornarem independentescomo campos de saberuniversitário. Isso repercutiu noBrasil e resultou na formação dosinstitutos durante a reforma universitária.Além disso, a FFLC estavagrande demais, com muitos alunos euma administração muito complexa.Mas também havia um motivopolítico. Na época, já se percebiacom clareza que as humanidades,pela situação política do país, nãoteriam um futuro tranqüilo. Asoutras ciências não queriam compartilhardesse destino que seriameio tumultuado.O motivo político era explicitadonas discussões da reforma?Não, mas as discussões levavama esse tipo de divisão. Algunsachavam importante permanecerjunto, por causa da relação interdisciplinarentre as ciências humanas,exatas e naturais. Outros,mais pragmáticos, achavam queo desenvolvimento das ciênciasdemandava uma organização au-72


Revista <strong>Adusp</strong>Turra, líder estudantil: fichadoReprodução: Daniel GarciaOutubro 2004fichados pelo “crime” de carregarpanfletos da campanha da Libelu.Por outro lado, os arquivosdo Dops registram que um certoMovimento Acadêmico Renovado(M.A.R.) armou “fogueiras dematerial eleitoral” no pátio da FaculdadeSão Francisco.Pode-se vislumbrar um poucoda mentalidade policial no seguintetrecho de documento de1976, de autoria de Sílvio PereiraMachado, um dos delegados doDops: “os dirigentes do DCE voltarãoa encontrar motivos para aagitação, contestação e até mesmosubversão, como a ocupaçãoviolenta e arbitrária do Centrode Vivência para a instalação dasede desta entidade espúria, querepresenta não o corpo discenteda Universidade de São Paulo,mas uma insignificante minoriade estudantes, adeptos e inocentesúteis dos interesses marxistasem nossa terra.”O Dops foi extinto em 1983. ODCE-Livre Alexandre VannuchiLeme da USP, instalado no Centrode Vivência e independenteda opinião do delegado Machado,existe até hoje.tônoma, ágil e politicamente desvinculadados problemas que secolocavam para as humanidades.Os argumentos que apareciameram administrativos e ligados àquestão de verba. Os institutos quenecessitavam de grandes investimentosem laboratórios e equipamentosviam, na formação de institutosseparados, a possibilidade decontemplar essa demanda.Qual era a opinião dos estudantessobre a separação?Em geral, não concordavam,pois a separação representava umenfraquecimento político. Na época,eu também era contra. Via naseparação uma perda para o idealformativo da USP e um passo parao retorno tecnicista.Como foi a mudança para ocampus?Mudamos em regime de urgênciadepois da invasão. Masfoi quase simbólico, não haviacondições de estudar. Cederamalgumas salas do prédio da História,que já estava pronto, mas eramuita gente. Os barracões foramconstruídos nas férias. Foram paralá os cursos que sobraram: Letras,Filosofia, Psicologia e Sociais.Como a separação em institutose a mudança para a CidadeUniversitária afetou o movimentoestudantil?O primeiro prejuízo foi a perdada visibilidade urbana. A MariaAntonia era no centro e a CidadeUniversitária era quase na zonarural. Mas a distância não diminuiua vigilância e a repressão. A separaçãoem vários prédios também foiproblemática. Nesse caso, o problemanão é a separação física, e sima assimilação de uma mentalidadede separação. Na minha geração, aseparação não foi assimilada, buscávamoso convívio, mas nas geraçõesseguintes isso aconteceu.A separação também afetou aorganização. Na FFLC, o Grêmioagregava todos os centros acadêmicose era muito poderoso politicamente.A direção do Grêmiosignificava, praticamente, a direçãodo movimento em São Paulo.No campus, cada Instituto tinhaseu CA e as alianças dependiamde ligações pessoais. Com isso,ficou mais difícil dar direção aomovimento.Como o movimento estudantillidou com a separação?Em 1968, por causa do AI-5, aslideranças foram dizimadas, entãohouve um refluxo. Nos dois anosque vivi, como aluno, no campus,toda a energia era canalizada paraa reorganização.Hoje, como você avalia a formaçãodos institutos?Era algo inevitável. Do pontode vista histórico, econômico e político,o antigo formato não poderiaser mantido. As ciências tinham quese separar para cumprir as tarefaspolíticas e da pesquisa científica.73


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>Reprodução: Fernando Braga/Acervo do Arquivo do Estado“OPERAÇÃO PIRA”,OU COMO O REGIMEEM AGONIA ESPIONOUO CONGRESSO DA UNEBeatriz EliasJornalistaMapas que identificam os locais ondeforam instaladas centrais militares deinteligência em Piracicaba, em 198274


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Em 1982, quando os ventos da redemocratização já se espalhavampelo país, Piracicaba sediou o 34º Congresso da UNE. Seusparticipantes não sabiam, mas instalou-se na cidade um grandeaparato de órgãos de segurança: a “Operação Pira”. Durante mais deduas semanas, centrais de inteligência reunindo agentes da Marinha,Aeronáutica, Exército, Polícia Federal, Dops e Polícia Militartrataram de colher e processar informações sobre o 34º CongressoEsta é uma história emdois tempos: 1980 e1982.Em 1980, Piracicaba,cidade do interiorde São Paulo com cercade 215 mil habitantes, viu-se “invadida”por cerca de 4 mil universitáriosvindos de todo o país para realizaremo 32º Congresso da UniãoNacional dos Estudantes (UNE).Cercados por esquemas próprios desegurança, sem saber da reação deum governo que, nos 13 anos anteriores,colocara na ilegalidade suaentidade máxima, os universitáriostransformaram a cidade num espaçopróprio. A rotina de Piracicabamudou, com a festa dos estudantesque buscaram retomar sua organizaçãode forma pública, mesmosabendo que os órgãos de repressãoali se encontravam.Em dado momento, numa dasplenárias finais, as luzes do ginásiomunicipal se apagaram. Somente aexperiência das lideranças e os fortesholofotes de câmeras de umaequipe de televisão que cobria oevento contiveram, até a energiaelétrica se restabelecer, o nervosismoque se espalhou entre osjovens. Afinal, ninguém realmentesabia se haveria ou não um confrontocom órgãos policiais, ou comoo último dos governos militaresse comportaria.Embora, em 1979, os estudantesjá houvessem realizado em Salvador,sem intervenção policial, o31º Congresso da UNE, chamadocongresso da reconstrução, seriaem Piracicaba o primeiro encontronovamente público, com ampla divulgação,como se a entidade tivessede fato voltado à legalidade.O 32º Congresso da UNEenvolveu uma estranha e poucousual logística em toda a sua fasede planejamento. A Prefeitura dePiracicaba colocou à disposiçãoda UNE profissionais da área dasaúde (para atendimento a eventuaisemergências) e também aGuarda Municipal, para proteçãodos estudantes. Por outro lado, aUniversidade Metodista de Piracicaba(Unimep) entrou em recessopor dez dias, cedendo seus espaçospara alojar os cerca de 4 mil participantes,além de colocar funcionáriose professores a serviço dainfra-estrutura do Congresso.Não havia, porém, garantiasde que o encontro iria ocorrercom tranqüilidade, apesar de oreitor Elias Boaventura ter sidorecebido pelo então ministro daJustiça, Ibrahim Abi-Ackel, e, pes-75


Outubro 2004soalmente, haver comunicado àsautoridades da segurança públicade São Paulo a realização doCongresso em dependênciasda Prefeitura e da Unimep.Tais alianças entre Prefeitura,Unimep e UNE despertaram,naturalmente, suspeitase movimentação dos órgãosde repressão. Os registros deixadosno Dops são de equipesque visitaram antecipadamentea cidade, mas sempre a partir deinformes enviados pelo delegadolocal, Adilson Togniolo, ao delegadogeral, Romeu Tuma. Togniolochegou a ser informado de queuma equipe especial realizaria, emPiracicaba, um levantamento dedados relativos ao Congresso.Não deixa de ser curiosa, entretanto,a incorreção da maioria dasinformações prestadas oficialmentepelo grupo especial, em 26 desetembro de 1980, cerca de 20 diasantes do início do evento. Todos osnúmeros foram superdimensionados,e os locais descritos (EstádioMunicipal, Casa do Estudante daEscola Superior de AgriculturaLuiz de Queiroz, entre outros) tiveramsua lotação “dobrada”, emrelação à sua capacidade real.O informe, num total de 13páginas, trabalha em detalhe adesqualificação do prefeito JoãoHerrmann Neto, de quem são destacadassupostas aventuras amorosase condutas impróprias, emboratambém admita que “todos osmunícipes são unânimes em afirmarque sua administração é boa”,gozando da simpatia da populaçãolocal. Do reitor Elias Boaventura,o prontuário já existente no Dopsrelatava estar “engajado em váriosmovimentos de tendências esquerdistas,além de ter sido constatadasua ligação com dirigentes daUNE, Comitê Brasileiro pela Anistiae jornal Hora do Povo”.O 32º Congresso mudou arotina da cidade. Espalhados porRevista <strong>Adusp</strong>Reprodução: Fernando Braga/Acervo do Arquivo do EstadoDocumento que institui a Operação Pira, constante da pasta 50-Z-9-45200casas de famílias, além dos alojamentosmais amplos; tomando asrefeições servidas pela merendaescolar nos jardins da cidade; enchendoas noites com serenatasou prolongando as longas discussõespelas esquinas; recuperandoo hábito do debate que espalhava76


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Arquivo UnimepAbertura do Congresso da UNE de 1980: apoiado pela Prefeitura e pela Unimep, e espionado pelo Dopsuma programação extremamentediversificada por vários locais, osestudantes aproveitaram cada minutodaqueles dias.Os relatos expedidos pelo Dopsforam diários: um primeiro, decaráter mais informativo, deixa aimpressão de reproduzir a gravação<strong>integral</strong> de vários pronunciamentosnos eventos abertos; umsegundo, mais analítico, como sepreparado por investigadores direcionadosa garantir informaçõesde caráter estratégico. Já sobrea sessão de abertura, o primeiroregistrou pontualmente as falas dealguns oradores: João HerrmannNetto: “Aqui a UNE é legal”;padre Otto Dana: “Se alguémesperava que disséssemos amém,estamos pedindo basta!”; pastorNilo Belotto: “A Unimep legitimapublicamente a UNE ao hospedála,assumindo todos os riscos”. Osegundo informe procurou interpretaro significado da presençade políticos como o presidente doPT, Luis Inácio Lula da Silva, e orepresentante da Organização paraLibertação da Palestina, FaridSuwwan.O que caracteriza, entretanto,de forma efetiva o acompanhamentodo 32º Congresso é muitomais a observação sobre aquelesque apóiam o movimento estudantildo que sobre o própriomovimento. A respeito dos quase4 mil participantes, a ênfase se fazespecialmente em relação ao altoconsumo de pinga e à prática de“atos libidinosos”.Apenas no último dia o relato sefixa nas decisões tomadas pela UNE:uma moção de repúdio ao governoFigueiredo, a exigência de aplicaçãode 12% das verbas do orçamentofederal em Educação, o indicativode greve no ensino superior privadocomo forma de controle do reajustede mensalidades, a exigência de eleiçõesdiretas para reitor e para preenchimentode todos os cargos em órgãoscolegiados das Universidades,eleições diretas também para eleiçãoda própria diretoria da UNE. É neleque se fixam também as poucasinformações sobre os grupos políticosmais fortes entre os estudantes(representados pelas denominadas“tendências”), especialmente oPCdoB, cuja legalização havia sidoamplamente defendida.77


Outubro 2004Não houve maiores problemasao longo dos vários dias doencontro, além de ameaças debombas. Um único alerta foi feitono último dia, pelo reitor Boaventura,devidamente registrado peloDops. Boaventura denunciou a infiltraçãode agentes de segurança,e pediu que, ao final do encontro,os participantes saíssem em grupose não aceitassem provocações,já que as intimidações haviam aumentadomuito.Em 1982, quando Piracicabavoltou a sediar um Congressoda UNE, o 34º, a vigilância foicompletamente diferente, talvezporque as eleições para governadorestivessem próximas e a forçada oposição já se fizessesentir. Não é improvável,ainda, a hipótese de quesetores da extrema-direitamilitar, inconformadoscom o processo de democratização,também buscassemgarantir um controleque lhes escapava às mãos.E havia o agravante de oentão presidente da UNE,Javier Alfaya, espanhol denascimento, enfrentar umprocesso de expulsão, estandosob liberdade vigiada, obrigadoa apresentar-se periodicamente àPolícia Federal.A chamada “Operação Pira”,cujos registros permaneceramnos arquivos do Dops, reuniunada menos do que oito equipesdo Centro de Informações doExército (CIE), Centro de Informaçõesda Aeronáutica (CISA),Centro de Informações da Marinha(Cenimar), Serviço Nacional78A “Operação Pira” reuniuoito equipes de militaresdas três armas e policiais,divididos em “obreiros”,“controladores” e “analistas”.Chácaras foram transformadasem centrais de inteligênciade Informações (SNI), Departamentoda Polícia Federal (DPF)e Polícia Militar.Na prática, o 34º Congressomobilizou e preocupou bem menosa cidade e, aparentemente,os próprios participantes. A vigilânciadas delegações foi mais relaxada,os alojamentos não foramobjeto de tanto acompanhamentopor aqueles que trabalharamna infra-estrutura de apoio. Asmaiores tensões foram registradasnas divisões de grupos estudantis,com “rachas” e dificuldadesaté mesmo no processo decredenciamento dos delegados.Mas a Operação Pira, segundoos documentos preservados, desenvolveu-sea partir das equipesde busca originárias das centraisde inteligência das áreas militarese policiais, sob coordenação do IIExército. Os chamados “obreiros”,que formavam as equipesde busca, eram responsáveis porse espalhar pelos vários eventosque ocorriam e entregar suasobservações aos “controladores”,que deveriam aperfeiçoar os informes,então encaminhados àsequipes de análise. Para que osRevista <strong>Adusp</strong>Arquivo UnimepAdelmo Alves Lindo e Clara Araújo,eleitos vice e presidente da UNE, em 1982analistas atuassem, foram montadasduas centrais de trabalho,na própria cidade de Piracicaba,cuja localização encontrava-seindicada em mapas anexos aosdocumentos preservados.Tratavam-se de chácaras, emlocais distantes da movimentaçãourbana, muito comuns para lazerde finais de semana nomunicípio. Uma delas, demais fácil acesso, é indicadacomo próxima ao localonde atualmente se localizao hipermercado Carrefour,à beira do rio Piracicaba. Asegunda, a 15 quilômetrosda cidade, estava próxima àÁrtemis, um distrito que antigamentefoi porto fluvial.No primeiro local, atuariamos controladores;no segundo, os analistas dariaminício ao processo de difusão dosinformes, enviados por telex parao IV Comando Aéreo, em Viracopos,ou por malote, para a 11ªBrigada de Infantaria Blindada,em Campinas. Nos dois locais, ainfra-estrutura garantia a produçãode refeições para os agentes,e equipes especiais realizavam asegurança, monitorando carrosque circulavam na vizinhança, inclusivede moradores.


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Arquivo UnimepLula, presente ao Congresso da UNE de 1980, entre o reitor da Unimep, Elias Boaventura (esquerda), e Airton SoaresA Operação Pira estabeleceunormas rígidas deconduta para os agentes:eles não deveriam hospedar-senos hotéis Beira Rioe Esplanada; tinham “pontos”para atuar e se comunicar;estavam proibidos deutilizar a identidade militarou de qualquer órgão desegurança; não deveriamrealizar qualquer tipo deação nos dois primeirosdias do evento; deveriamter sempre uma história decobertura que justificasse sua presençaem Piracicaba.A justificativa oficial desteaparato vinha explicitada à aberturade sua descrição: “colherinformes que possibilitem avaliaros próximos passos do movimentoestudantil, particularmente apósas eleições de 15 de novembro;verificar a realização de reuniõesAo final do Congresso,a UNE pela primeira vezalçou uma mulherà presidência da entidade,elegendo Clara Araújo,o que fora previsto jáno primeiro relato da“Operação Pira”, antesdo início do eventoparalelas do evento, envolvendoorganizações subversivas e/ou seusmilitantes”.Os informes gerados pela OperaçãoPira receberam, todos eles,o código A-1, que correspondiaa altamente confiável. Concisos,objetivos, demonstram um outrotipo de produção, quando comparadosaos produzidos pela repressãono Congresso anterior,mostrando claramente adiferença entre os agentesque os elaboraram.Além de detalhes do próprioevento, há preocupaçãoem monitorar atividadesligadas à propaganda política.Um dos relatórios, porexemplo, registra placas decarros de Sumaré, Piracicabae Rio de Janeiro, porestarem conduzindo latas detinta, pincéis, faixas e folhetosdo PMDB e do PT. Emalguns casos, chega-se a identificaro proprietário.A maioria dos documentos,porém, aborda as posições de cadauma das tendências estudantisquanto aos temas centrais do Congresso,identifica as lideranças porestados, analisa as composiçõespara eleição da futura diretoria:“ ‘Viração’ defende o voto contra79


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Acervo IconographiaOS ÁLBUNS DO DOPSCecília Figueiredo e Eliza Mayumi KobayashiEquipe <strong>Adusp</strong>PUC, 22 de setembro de 1977Os arquivos do Dops guardaminusitados álbuns de fotografias.Neles estão registrados rostos —centenas deles — de uma geração que foi à luta contra aDitadura. Muitos foram parar lá porque integravam diretoriasde centros acadêmicos ou o DCE da USP. Outros tantos, porque foram presosna PUC, em 1977, por ordem do coronel Erasmo Dias. Entre aqueles que setornariam posteriormente figuras públicas ou profissionais destacados, estãoGeraldo de Siqueira Filho, que logo seria deputado estadual, Carlos Pletz Neder(destaque) e José Américo Dias, hoje vereadores em São Paulo, Júlio Turra,hoje membro da direção nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT).E Laura Capriglione (destaque) e Mário Sérgio Conti, jornalistas,Eduardo Giannetti da Fonseca e Lidia Goldenstein, economistas. E umestudante de artes dramáticas que se consagraria como ator: Edson Celulari81


Outubro 2004Fotos: Daniel GarciaRevista <strong>Adusp</strong>Marília Pacheco FiorilloAlberto Gaspar“Erasmo Dias montou umaOperação de guerra na PUC”“Nossa geração não queria darcerto, queria que tudo desse certo”.Assim a jornalista e escritoraMarília Pacheco Fiorillo define asações promovidas pelos jovens dosanos 1970. Autora de Homens: duassátiras e uma fábula, recentementepublicado, Marília é uma entrecentenas de jovens fichados, em 22de setembro de 1977, por participardo ato de refundação da UNE, queocorria na Pontifícia UniversidadeCatólica, a PUC de São Paulo. Noálbum do Dops, sua fotografia como número 9939 revela a passagempelo Batalhão Tobias Aguiar.Bem humorada, ela não abrandaas críticas quando o assunto é Ditadura,tampouco se esforça como“alguns neo-historiadores” para“embelezar o governo Geisel comoliberal”. Ao contrário, descreve comfirmeza o que ocorreu naquele dia.“O secretário de Segurança,Erasmo Dias, montou uma operaçãode guerra, à la Bush/Sharon,fechando os quarteirões da PUCcom tanques e soltando bombas defósforo que queimaram gravemente82muitos estudantes”. Marília, entãoestudante de Ciências Sociais emilitante da tendência Liberdadee Luta, conta que os policiais encarregadosda operação estavam“completamente drogados, descontrolados”,espancando todos queencontravam pela frente.No Dops, as moças (separadasdos rapazes) eram fichadas e coagidasa assinar um documento embranco. “Agregamos assinamos sobcoação”, acrescentou a jornalista, sóliberada às 8 horas do dia seguinte.Marília relembra ainda o tom sarcásticousado horas antes por ErasmoDias e Romeu Tuma, dizendo quenão iam deixar “meninas de famíliaandar por aí de madrugada!”Marília, que vê um “controladoceticismo” na juventude atual, condenao esquecimento dos crimes ditatoriais.“Esquecer é também perdoaro que não seria perdoado se ajustiça e a liberdade prevalecessem”.“As feridas que saram com o temposão também as que contêm o veneno”.Cita palavras de Marcuse paraexplicar que a anistia nos moldes emque foi concedida — estendendo-seaos “crimes conexos”, neologismoque designa as atrocidades praticadaspor agentes da Ditadura — é umempecilho para que a democracia eo estado de direito se completem.“A Argentina ganhou do Brasilneste particular. Acho uma vergonhanão termos indiciado, julgadoe processado (e condenado) os torturadorese matadores da DitaduraMilitar, como se nada tivesse ocorrido...Se anistia significa o governadorAlckmin promover o conhecido torturadorda Oban ‘Capitão Ubirajara’,algo anda podre”, conclui.“Lembro perfeitamentedo Calandra”, diz Gaspar“Todos os funcionários da PUCestão dispensados. Todos os estudantese professores da PontifíciaUniversidade Católica estão dispensados.Todos os demais estudantese elementos detidos serãopresos e encaminhados ao BatalhãoTobias de Aguiar”.A ordem expressa do coronelErasmo Dias é uma das lembrançasvivas na memória do jornalistaAlberto Gaspar Filho, então estudanteda ECA, sobre o dia 22 desetembro de 1977. Embora não


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Markus SokolMagno Carvalhofosse dos mais engajados, “haviaaquela coisa da solidariedade,companheirismo”, que o levou àPUC naquela noite.Dias antes, a repressão já haviaensaiado a invasão na Faculdadede Medicina da USP, na AvenidaDoutor Arnaldo, onde ocorria umato público pró-UNE, mas houvenegociação. Na PUC, porém,“o coronel Erasmo Dias chegou,começou a estourar bomba e nóscorremos para dentro”, recorda.Gaspar foi conduzido, comoos outros estudantes, ao BatalhãoTobias Aguiar, da Polícia Militar,e mantido por toda a noite numpátio a céu aberto, cercado porcordões. “Ninguém podia ir aobanheiro. Chegou uma hora quenão dava mais para sentar, porqueo chão já estava molhado. Cadaum era levado separadamentepara uma sala, onde tinha três ouquatro caras”, diz, referindo-se aosinterrogadores.Apesar da meia-luz do ambienteenfumaçado, reconheceu um dospoliciais: “Lembro perfeitamenteque era o Calandra”, AparecidoLaertes Calandra, conhecido torturadorapelidado de “Capitão Ubirajara”.Antes de ser liberado, namanhã seguinte, Gaspar respondeua um questionário, foi fotografadoe vítima de algumas provocações.Naquele período, afirma, aprincipal discussão no movimentoestudantil da USP era sobre “sairou não do campus”. “Em geral, aLibelu defendia que se fizesse manifestaçõesna rua, as outras tendências(Caminhando, Refazendo)defendiam passeatas no campus”.Ao rememorar embates travadosna ECA com professoresde inclinação ideológica mais àdireita — como a então chefe dedepartamento professora AntoniaPacca Wright, formada na EscolaSuperior de Guerra — ou com ogoverno militar, Gaspar enfatiza aimportância da rebeldia estudantil.“Aquilo lá foi o caminho para amudança. Dois anos após a invasãoda PUC veio a anistia. Era ummomento de transição... Lógicoque havia ilusão de que iríamospara o Parque Dom Pedro, PraçaFernando Costa e derrubaríamosa Ditadura, mas... isso tudo teveseu papel”.Encapuzado, Sokol foilevado ao DOI e torturadoAos 16 anos, Markus Sokolparticipou da VAR-Palmares,atuando por algum tempo naclandestinidade. Em 1973, começoua cursar Economia na USP.“Quando entrei, o movimento estudantilestava se reanimando. De1969 a 1971 o pessoal da USP quetinha relação com o movimentode massa começou a abandonaras entidades para ingressar na lutaarmada. Isso foi um massacre”,lamenta Sokol, que em novembrode 1973 ficou preso por cinco diasno DOI-Codi.“Quando voltei em 1972 paraa vida legal discuti com váriosgrupos e participei do SocorroVermelho, um fundo de ajuda aospresos políticos. Na lista dos quecontribuíam, a polícia encontrougente como eu, que havia se livrado[da prisão] em 1971”.Preso, levaram-no encapuzadopara a sede do DOI, na rua Tutóia,e submeteram-no a sessões detortura. A mobilização estudantilimediata, somada à interferênciado amigo jornalista Paulo Moreira83


Outubro 2004Leite, à época no Jornal da Tarde,foram decisivos para libertá-lo.Presidente do Centro AcadêmicoVisconde de Cairu, daFaculdade de Economia e Administração(FEA), de 1974 a 1975,uma de suas últimas participaçõesno movimento estudantil ocorreuna memorável assembléia geralde 26 de março de 1976, quandodividiu com Júlio Turra a defesada reconstrução do DCE da USP,paralisado desde 1969.Sokol foi um dos fundadores datendência Liberdade e Luta, e desua sucessora, a corrente internaO Trabalho, do Partido dos Trabalhadores,de cuja direção nacionalfaz parte. Polonês de nascimento,Sokol só obteve sua naturalizaçãoem 1993, após 20 anos de reiteradastentativas.Revista <strong>Adusp</strong>Também presente na PUC,Magno foi preso e fichadoMagno de Carvalho tinhaacabado de ser contratado comofuncionário do Departamento deRádio e TV da ECA quando foipreso, em 1977, no episódio dainvasão da PUC pela polícia. “Euera funcionário, mas minha companheiraera estudante da USP, eeu a estava acompanhando naquelatentativa de fazer o congressoclandestino da UNE. Os caras mepegaram”, lembra.“Eles nos levaram para o Tobiasde Aguiar. Tinha 800 presos e euera o único que não era estudante”.Magno foi fichado sem ser identificadocomo funcionário. “Eles sóme perguntaram de que unidade euera, e eu disse que era da ECA”.No final do mesmo ano, Magnoe três de seus colegas procuraram aAssociação dos Servidores da USP(Asusp) para pedir ao presidente“PRIMEIRO A CAVALARIA, DEPOIS BOMBAS DE GÁS,NOS BOTARAM CEGOS E CONFUSOS”A seguir, depoimento de própriopunho do ator Edson Celulari,escrito de um só fôlego ao versediante da imagem produzidapelo Dops:“Aqui estou eu diante de umafoto que me traz as mais doces ecuriosas lembranças. No ano de1977 eu fazia na USP a Escola deArtes Dramáticas, a EAD, que eraligada à ECA. Esse foi um períodomuito rico para mim. Eu tinha18 anos, morando sozinho pelaprimeira vez, na capital, vindo dapacata Bauru, onde nasci.Viviam-se na USP, como em todoo país, os conflitos entre movimentoestudantil e o então regimemilitar. Muitos dias deixei de teraula por motivo de greve, assembléiasou de passeatas.Edson CelulariEu cheguei na cidade de SãoPaulo com algumas dificuldades queme obrigavam a trabalhar durante odia e estudar à noite. O meu sonhoera poder aproveitar o máximoaquela escola que era, e talvez aindaseja, a melhor para quem quer seguira carreira de ator.Com a falta de aula nós alunoschegamos a promover um Ciclode Leituras de Peças Proibidas econvidamos vários diretores profissionaispara dirigir: Ademar Guerra,Miriam Muniz, Silvio Zilber,Roberto Galízia entre outros. Foi amelhor participação que eu tive nomovimento estudantil da época, amais frutífera e objetiva.Nós, dentro do campus, podíamosler ou montar aquelestextos maravilhosos: A Sementedo Guarnieri, Rasga Coração doVianinha, Caixa de Cimento doCarlos Henrique Escobar, Roda-Viva do Chico Buarque. Foi nossavoz de protesto contra aquele re-84


Revista <strong>Adusp</strong>que convocasse uma assembléiapara discutir os salários, que estavammuito baixos. “Quem estavana Associação era um pessoal dedireita. Não eram nem pelegos,pelego era elogio!”, diz. “Só paravocê ter uma idéia, o presidentecomeçou a gritar, apontando odedo para a gente, dizendo queassembléia era coisa de comunistae que quem tinha que discutir salárioera o Governo do Estado, enão nós mesmos”.Este foi seu primeiro contatocom a Asusp. “Foi daí que a genteresolveu montar um movimentopara puxar uma campanha salarial”.Durante dois anos, Magno eoutros seis funcionários se reuniamsempre debaixo de uma árvore, noprédio da História.“Foi o início do movimento.Quando tinha que fazer uma reuniãomaior, as assembléias clandestinas,a gente se reunia na ECA, naQuímica e na Física” (de uma dessasreuniões no Auditório Abrahãode Morais, no Instituto de Física,originou-se a primeira greve deservidores da USP, em 1979).Posteriormente, ele foi detidoem razão da militância sindicalOutubro 2004na USP. “Por conta dessa coisatoda, eu já estava manjado aqui.O pessoal do Dops correu atrásde mim na Reitoria, mas conseguiescapar. Depois, fiquei sabendoque na minha unidade tinha umdedo-duro infiltrado, que acaboume entregando. E foi daí que fuiparar no Dops”.Magno ajudou a formar a chapade oposição que derrotou a diretoriada Asusp em 1979. Desde 1981ele faz parte da diretoria da entidade,que em 1988 passou a se chamarSindicato dos Trabalhadoresda USP (Sintusp).gime militar, que sufocava não sóas manifestações artísticas, atravésda Censura, como também toda asociedade brasileira.Certa noite, vindo do meu trabalhode corretor de imóveis, chegueina EAD e vi que mais umamanifestação tinha sido marcada,desta vez em frente à PUC. Entãome desloquei para lá, de terno,gravata, com a pasta da imobiliáriae meus cadernos da USP debaixodo braço.Assim que cheguei percebi atensão dos colegas, porque haviauma ameaça de invasão policial.Fui procurar meus amigos e nessemomento aconteceu o previsto: primeiroa cavalaria lançando seus cavalossobre nós, depois foram bombasde gás, que nos botaram cegose confusos. Corremos para dentrodo prédio da Universidade, quetinha umas escadas em forma decaracol, e fomos subindo tentandoescapar do cerco policial. Mas foiem vão, pois ficamos encurraladosno último andar. Vi colegas, principalmenteos barbados, apanharembastante, enquanto era solicitada aformação de uma fila.Depois de muitos gritos e porradascomeçamos a descer e nosconduziram até os ônibus que noslevariam até o quartel que ficavana Avenida Tiradentes.Lá enfrentamos uma longajornada madrugada adentro, deperguntas e questionários sobre osmais diversos assuntos. A imprensa,lá fora, junto com outras entidadese figuras políticas e religiosasde expressão — nos davam, semsabermos, uma certa cobertura.Fomos, naquela noite, maisde 1.100 estudantes recolhidose fixados para averiguação. Nãome lembro se algum ficou detido.Na saída parentes e amigos nosreceberam com emoção e alívio.Confesso que para mim tambémfoi bom ver o dia nascendo forte enão quadrado. Assim seguiram-seos anos... eu fazendo meu cursode ator, tentando efetivar algumavenda e vivenciando aquele períodotão caótico politicamente.Hoje vejo que bate uma saudade.Não, é claro, do regime militar,mas daqueles professores queridosque me ajudaram tanto.O meu sonho uma parte eu realizeipois exerço minha profissãocom muito prazer. A outra partevejo que ainda falta um bocado:um País mais justo socialmente,uma nação mais séria, e uma culturamais valorizada e respeitada.Mas quero poder ter, debaixodo braço, meus cadernos e meusprojetos, pois são eles que me levamadiante; a sabedoria de aprendersempre e a iniciativa de fazer,mesmo que tenhamos de enfrentarventos contrários.”85


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>CRÔNICA DETEMPOS AMARGOSCecília Figueiredo e Tatiana LotierzoJornalistasDaniel GarciaAto realizado no dia 1/4/2004 na USP,pela <strong>Adusp</strong> e Fórum das Seis, com apresença de Michel Pinkus Rabinovich,Carolina Bori e Plínio de Arruda SampaioA Ditadura Militar lançou-se com truculência contra os pensadorese cientistas que ousaram desafiá-la, ou simplesmente não quiseramprostrar-se diante dela. O AI-5 aposentou compulsoriamente oudemitiu alguns dos maiores nomes da academia. Banidos, muitosforam admitidos em instituições estrangeiras de prestígio. Por outrolado, para quem ficou no país o ingresso e a permanência nasuniversidades tornou-se penoso, às vezes impossível. Os relatospublicados nas próximas páginas esmiuçam as perseguiçõessofridas, numa escala que vai da triagem ideológica à tortura física86


Revista <strong>Adusp</strong>MICHEL RABINOVICHOutubro 2004Daniel Garcia“O SR. PODERIA MEDIZER DO QUE ESTOUSENDO ACUSADO?”No início de 1964, após trabalhardurante 14 anos na Faculdadede Medicina da USP edesentender-se com o chefe dedepartamento, o professor MichelPinkus Rabinovich acertou seu ingressona Universidade de Brasília(UnB), que estava em processo deorganização. Não deu certo: a UnBfoi invadida pelo Exército. “Nãoassumi por causa do cerco. Nãotinha ninguém em Brasília. Entãofiquei em São Paulo, até a reuniãoda SBPC em Ribeirão Preto”.Em São Paulo, logo após ogolpe, “a gente descobriu quehavia um comitê de investigaçãodo qual faziam parte o reitorGama e Silva e o Campos Freire,que era o professor de urologia”.“Cheguei a perguntar ao CamposFreire: ‘Sei que estou sendo investigado.O sr. poderia me dizerdo que estou sendo acusado?’Ele respondeu: ‘A sua consciênciadeve dizer’. Pronto, acabou aconversa. Mas a gente sabia queestava sendo investigado e, nofundo, sabíamos mais ou menospor quê. Representávamos umaturma de jovens (embora eu játivesse 38 anos naquela época) derenovação da pesquisa, do ensino,da política, na Faculdade”.O professor Pinkus foi ao Congressoda SBPC em Ribeirão Pretopara apresentar um trabalhode seu aluno Tomas Maak, queestava preso por razões políticas.Professor Michel Pinkus Rabinovich“No meio da reunião, alguémavisou que tinha uns cabras procurandoeu e o Luiz [Hidelbrando].Eu não estava tão certo deque queria me juntar ao Tomasna cadeia”, conta, com humor,o professor, que fugiu e acabouviajando para o exterior.“Só fui embora porque tinhaum visto que era válido até 25julho, algo assim”. O professorPinkus tentou ir para o Canadá.“Mas não consegui por causa dosentraves da imigração”. Depoisde três meses em Nova York sememprego, ingressou na FundaçãoRockfeller (onde ficou por cincoanos), casou-se e passou a daraulas na Faculdade de Medicinada New York University, ondepermaneceu 15 anos.“Passei 20 anos fora do Brasil esó pude vir quando houve a anistia,porque havia sido processadovárias vezes; eles recorriam e osprocessos, em que eu era acusadode subversão, iam para instânciassuperiores. Tinha alguma listapara ajudar eu dava dinheiro: paraos comunistas, os trotsquistas,para todo mundo, e achavam queeu era subversivo. Que os alunosque eram de esquerda eram persuadidospor mim. Eles que melevavam. Eu não ia a reunião departido nenhum, naquela época jáera meio anarquista.”Quando Herzog foi assassinado,o professor foi a umconsulado brasileiro devolver opassaporte: “Achei que aquilo erademais”. Depois, continuou protestando.“Teve um concerto quea embaixada brasileira organizou,onde dois grandes pianistastocavam alternadamente Bach eChopin, e eu fiz um cartaz bemgrosseiro, ‘Abaixo a Ditadura’, esentei na primeira fila, segurandoo cartaz, e os fotógrafos pegaram.Na Veja ou Visão você me verásentado na primeira fila, paraaparecer o meu protesto”.Atualmente o professor Pinkusleciona na Universidade FederalPaulista (Unifesp).87


Outubro 2004LUIZ HILDEBRANDODO NAVIO-PRISÃOÀ PESQUISA NOINSTITUTO PASTEURMilitante do Partido ComunistaBrasileiro (PCB) desde o tempo deestudante da Faculdade de Medicina(1947-53), já em 1951 LuizHildebrando Pereira da Silva foiexpulso do Exército por suposta“incapacidade moral para o oficialato”,segundo decisão do comandanteda 2 ª Região Militar.Formado, em 1953 seguiu paraa Paraíba com o professor SamuelPessoa Barnsley, também comunista,onde foi trabalhar na recémcriadaFaculdade de Medicina. Em1957, a convite de Pessoa, Hildebrandotorna-se seu assistente naFaculdade de Medicina da USP.Três anos depois, defendendo umatese sobre toxoplasmose, preparasua livre-docência em Parasitolo-Revista <strong>Adusp</strong>USP/CCS/DVIDSON/Argus DocumentaçãoProfessor HildebrandoPRISÃO, TORTURA, PROCESSO POR ABANDONO DECARGO... PUNIÇÕES PARA DOIS PROFESSORES EXILADOSMarina GonzalezJornalistaEm fevereiro de 1975, José FranciscoQuirino dos Santos e Célia NunesGalvão Quirino dos Santos, hojeprofessores aposentados da Faculdadede Filosofia, Letras e CiênciasHumanas da USP, ficaram dez diaspresos no Dops. Em setembro domesmo ano, foram presos pelo DOI-Codi. Desta vez, além dos interrogatórios,sofreram ameaças mais fortese José Francisco foi torturado durantetodo o dia. A história de perseguiçãopolítica do casal, porém, começaanos antes. O que mais choca Célia éo fato de essa repressão contar com acolaboração da própria Universidade.Em 20 dezembro de 1971, JoséRoberto Franco da Fonseca, chefede gabinete da Reitoria, consultao Dops sobre a conveniência doretorno ao Brasil dos dois docentes.Eles lecionavam na USP desde adécada de 1960 (José Francisco, noDepartamento de Antropologia, eCélia, no de Ciência Política) e emmarço de 1970 viram-se obrigados asair do país para fugir da repressão.Naquele momento, a professoraMaria do Carmo Campello, suacolega de faculdade, estava presano Dops, onde seria mantida atéo final do ano, e conseguiu avisálosde que eles poderiam ser ospróximos. José Francisco e Céliatiraram licença, viajaram às pressaspara a França e, já no exterior,pediram afastamento da USP paracursarem doutorado.Como de praxe, nove dias depoisdo envio do ofício da Reitoria,o delegado Alcides encaminha“informações reservadas” sobre osdois (em documento não encontradona pasta) e informa que a voltados professores é um assunto que“será levado aos Órgãos de Segurança,na reunião do próximo 5 dejaneiro”.Na metade de 1971, quando oafastamento dos docentes precisariaser renovado, eles perceberam que“alguma coisa estranha” acontecia.A resposta da USP demorou a sair e,avisados pelos colegas que estavamno Brasil, continuaram na França.O Conselho Interdepartamental daFaculdade concedeu a renovação emjulho de 1971, mas o despacho doReitor que aprovava o afastamentosaiu somente em junho do ano seguinte,“em caráter improrrogável”.“Em seguida, Antonio GuimarãesFerri (o famoso ‘Ferrinho’), diretorda ECA e membro do ConselhoUniversitário, pediu vistas ao nossoprocesso e segurou a renovação. Eledisse que nós estávamos fazendo subversãoe falando mal do Brasil forado país”, narra José Francisco.88


Revista <strong>Adusp</strong>gia. Em 1963, conclui na França após-graduação em genética microbianae molecular, e, retornandoao Brasil, organiza o laboratórioda especialidade no Departamentode Parasitologia da USP.Em 1964, investigado pela comissãosecreta criada por Gama eSilva na USP, Hildebrando é presoe interrogado — por um tenentecoronele um coronel — no navioprisão“Raul Soares”, da Marinha,ancorado no porto de Santos. DesseInquérito Policial-Militar (IPM),comenta, saiu uma “peça surrealistade acusação”, encaminhada àJustiça Militar de São Paulo. Ojulgamento, um ano e meio depois,absolveu os 11 réus, mas todos jáhaviam sido demitidos.Convidado por François Jacob,Prêmio Nobel de Medicina em1965, voltou à França e lá trabalhouaté 1968, no Instituto Pasteur.Numa visita ao Brasil em 1967,para ministrar um curso na USP,Outubro 2004foi procurado por uma comissãode doutorandos da Medicina queo haviam escolhido como paraninfoda turma. Apesar de a Reitoriahaver impedido a formatura, asolenidade “realizou-se sem becase informalmente no Teatro Municipal,tendo sido Dráuzio Varela oorador da turma e eu o paraninfo”.Regressando ao Brasil em 1968,Pereira instalou-se em RibeirãoPreto, na Faculdade de Medicinada USP, onde organizou um labo-Professores Célia e José FranciscoEssa indefinição perdurou atéfinal de 1974, quando Célia veiosozinha ao Brasil para sondar apossibilidade de os dois voltaremdefinitivamente. Receosos de perdero cargo caso permanecessem maistempo longe da Universidade sema renovação do afastamento, e convencidosde que a fase mais dura darepressão já havia passado, voltaramao Brasil em 30 de janeiro de 1975.Enganaram-se. Foram retiradosda fila do aeroporto por dois policiais— um deles seria o próprio delegadoSérgio Paranhos Fleury — nafrente de parentes e amigos que osDaniel Garciaaguardavam, levadospara umasala da políciae dali para oDops, onde ficaramdez dias.Assim quesaíram da prisãovoltaram adar aulas, numatentativa de evitara configuraçãode abandonode cargo. Em setembro de 1975, noentanto, acontece a segunda prisão.“Na Oban [refere-se ao DOI-Codi]nós fomos torturados para contar oque fazíamos na França. Coisas obtusas.Não tinha nem sentido o que elesperguntavam”, lembra José Francisco.Célia relata que como não eramligados a nenhum grupo político, aatividade subversiva que praticaramera “ajudar alunos perseguidos, leválospara casa, arrumar trabalho paraeles fora do país, dar contatos”.Dentro da USP, os docentesainda enfrentavam outra batalha.Como já temiam, a Universidadeabriu um processo contra os docentespor abandono de cargo relativoao período entre o vencimentodo segundo afastamento (junho de1972) e o retorno ao Brasil. Foi fácilprovar que quem estava erradaera a própria USP, já que eles nãoreceberam resposta ao último pedidode afastamento.Segundo Célia, isso só aconteceu“por sabedoria dos amigos”,que pararam o processo dentro daFaculdade e não o encaminharamde volta à Reitoria. A absolvição foipublicada somente em 11 de maiode 1976. Durante mais de um ano,o casal trabalhou sem receber e,apesar de recolher a contribuiçãoprevidenciária regularmente, nãopôde incluir esse período no cálculoda aposentadoria.Os efeitos da perseguição políticaainda influenciaram a carreiraacadêmica de José Francisco pormais 15 anos. “Em 1976, peditempo <strong>integral</strong>. Recebi um turnocompleto seis anos depois. Somenteem 1989 é que me deram otempo <strong>integral</strong>”.89


Outubro 2004ratório de genética de micro-organismos.Mas, em abril de 1969, foidemitido pelo AI-5, com cerca de70 outros professores da USP e deoutras instituições.Animado pela proposta doprofessor Mauricio Peixoto, diretordo CNPq, que se dispunha apatrocinar o retorno de uma dezenade exilados cientistas, antigosprofessores e pesquisadores da Faculdadede Medicina e do InstitutoButantã, financiando por quatroanos os laboratórios e salários dosexpulsos, Hildebrando tentou novamentevoltar ao Brasil. A USPrecusou a proposta do CNPq e ocientista reassumiu suas funçõesno Instituto Pasteur, onde ficouaté se aposentar em 1996.Segundo ele, a colônia de exiladosem Paris era extremamenteunida e bem informada. “Durantetoda a minha permanência emParis mantive-me muito ligadoao Brasil e desenvolvendo umamilitância ativa de luta contra aditadura militar. Com isso, merecimesmo um processo de cassaçãode nacionalidade brasileira queme foi movido em 1975-6 e só foiarquivado nos anos 1980”, enfatizao autor de O fio da meada (1991)e Crônicas de Nossa Época (2000),livros que abordam a repressão ea luta dos estudantes e intelectuaisno país e no exterior.Dividido entre Paris e Porto Velho,ele dirige o Instituto de Pesquisasem Medicina Tropical (Cepem),em Rondônia, que desenvolve programaspara investigar patologiascomo malária, arboviroses, hepatitese vetores de doenças infecciosastradicionais e emergentes.JOSÉ MARQUES DE MELOPERIGOSA APOSTILASOBRE A TÉCNICA DOLEADO alagoano José Marques deMelo, jornalista e professor universitário,chegou a São Paulo em1966, dois anos após o golpe militare a deposição do primeiro governode Miguel Arraes (PE), do qual fezparte, e ingressou na USP, tornando-seum dos fundadores da Escolade Comunicações Culturais — queem 1969 passaria a chamar-se Escolade Comunicações e Artes (ECA).Intimado a depor em InquéritosPoliciais-Militares (IPMs)no Recife, Melo resolvera deixaro ambiente “assaz opressivo” doNordeste e migrar para o Sudeste.Porém, teria agora de defrontar-secom as arbitrariedades cometidaspela Reitoria da USP.Desde 1967 à frente do recémcriado Departamento de Jornalismo,passou a sofrer intensa perseguiçãoa partir de 1970. “Tudo começouquando coordenei a II Semana deEstudos de Jornalismo, sobre o tema‘Censura e Liberdade de Imprensa’.Vivíamos então a ameaça de censuraprévia aos livros publicados em territórionacional, agravando o controleque o governo militar impusera aosjornais e revistas, depois da ediçãodo AI-5”, explica.A iniciativa foi comunicada ao diretorda ECA, Antonio GuimarãesFerri, “que a submeteu aos escalõessuperiores no âmbito da Reitoria”.Paralelamente, Marques envioutambém telegrama convidando oentão ministro da Justiça, AlfredoProfessor José Marques de MeloRevista <strong>Adusp</strong>Buzaid, para que explicasse as motivaçõesda legislação que restauravaa censura à edição de livros no país.“O ministro Buzaid enviou-metelegrama declinando do convite,mas desejando êxito ao seminário.Enquanto isso, o serviço de segurança,que funcionava sigilosamentena Reitoria da USP, chamou o diretorda ECA e recomendou o cancelamentoda Semana de Jornalismo.Mas, diante do telegrama recebidodo ministro da Justiça, o dr. Ferrilavou as mãos e transferiu ao Departamentode Jornalismo o ônusda sua manutenção”, completou.Segundo Marques, uma semanadepois de ocorrido o eventoele recebeu a visita de policiais,que requisitaram as fitas gravadas.“Fui advertido informalmentede que minha vida estavasendo vasculhada”.O desligamento arbitrário doprofessor Freitas Nobre iniciara umaonda de cassações e perseguições90


Revista <strong>Adusp</strong>Daniel Garciana ECA,seguidapela demissãodo professorThomas Farkas e prisão (e tortura)do professor Jair Borin. Em 1972,logo após a realização da IV Semanade Estudos de Jornalismo, que haviareunido mais de mil estudantes, Melofoi enquadrado no Decreto 477.No processo, baseado numa apostilasobre a técnica do lead produzidapor alunos, foi acusado de insuflaros estudantes de jornalismo contra oregime militar.“A comissão processante daUSP condenou-me liminarmente,recomendando a demissão sumária”,relata. O ministro JarbasPassarinho o absolveu, “garantindoa permanência nos quadrosda USP”. Porém, afastado dadireção do Departamento de Jornalismoe impedido “burocraticamente”de lecionar, dedicou-se ac o n c l u i rsua tese.Primei-ro doutorem JornalismonoBrasil,adefesadesuatese,em fevereirode 1973,foi assistidapor mais deuma centenade amigos ecolegas, quelotaram o auditórioprincipalda ECA.Em vista doquadro políticonacional que seagravava, resolveuseguir parao pós-doutorado na Universidadede Wisconsin, nos EUA, com bolsade estudos da Fapesp.Ao regressar em meados de1974 para as aulas na pós-graduação,foi surpreendido com o vetoda Reitoria da USP à renovaçãode seu contrato de trabalho. Foiimpedido de proferir conferências,dar aulas e participar debancas examinadoras em universidadespúblicas.Reintegrado em 1979, juntocom outros professores, o professoremérito da ECA, autor devários livros, admite ter adotadouma “atitude pró-ativa, sem revanchismo”.Vem atuando comoconsultor acadêmico e professor-visitanteem universidadesestrangeiras.LUIS MENNA-BARRETOOutubro 2004ARMADO, DOUTORLEO DAVA EXPEDIENTENA REITORIAAprovado em concurso públicono Instituto de Ciências Biomédicas(ICB) em 1977, o professorgaúcho Luís Silveira Menna-Barretosó foi admitido pela USP em 25de julho de 1980 — um mês antesde caducar o prazo. “Eu já tinhasido aprovado em 1º lugar numconcurso precário em novembrode 1977. Em junho de 1978 presteioutro e fui aprovado. Em agosto de1978 havia dois processos de contrataçãomeus, mas acabei abrindomão do primeiro por ser contratoprecário”, detalha o biomédico.Frente à demora para ser chamado,Menna-Barreto passou afreqüentar a Reitoria por mais oumenos um ano. Encaminhado deseção em seção, recebia semprerespostas evasivas: “Seu processonão saiu”, ou “está parado”.“Até que um dia, na Coordenadoriade Administração Geral (Codage),saí visivelmente contrariadoe uma senhora, pedindo sigilo, disseque meu processo estava preso eque eu deveria procurar o assessordo Reitor, Doutor Leo”, relata. Tratava-sede Leovigildo Pereira Ramos,“um agente secreto indicadopelo II Exército”, que fiscalizavaideologicamente as contratações.“Ocupava uma mesa a menosde 20 metros da sala do Reitor.Na mesa dele — ‘3º estágio’, comochamavam — os nomes dos contratadoseram listados com umaespécie de ficha de identificação,91


Outubro 2004filiação, data de nascimento, dadospessoais. Cheguei a ver algumas— a minha, inclusive, com um riscovermelho”, acrescenta.Ao ser questionado por Menna-Barretoa respeito da contratação,Pereira Ramos respondeucom ar sarcástico: “Você deve teraprontado alguma. Você é contrao regime militar?” “Sim”, retrucouMenna-Barreto, “desde o começo,não gosto do regime militar, sou afavor da democracia”.O hoje professor do ICB reconstituia cena, lembrando que, ao semovimentar na cadeira giratóriacom o paletó aberto, o Doutor Leo“exibia um enorme revólver”, propositalmente,como se dissesse: “Olhecom quem você está falando!”Menna-Barreto fora preso em1968, quando cursava o terceiroProfessor Menna-Barretoano de Medicina em Porto Alegre,e condenado pelo STM a 18meses de detenção. Mudou-separa Ribeirão Preto, onde continuouo curso de Biomédicas naUSP. Em 1974 foi preso dentroRevista <strong>Adusp</strong>Daniel Garciade casa, quando estudava marxismocom três amigos do mestrado,levado para o DOI-Codi e detidopor 24 horas.Na <strong>Adusp</strong>, então presidida peloprofessor Modesto Carvalhosa,EXECUTADA PELA DITADURA, A PROFESSORAANA ROSA FOI DEMITIDA DA USPPOR “ABANDONO DE TRABALHO”Kátia AbreuJornalistaA professora Ana Rosa KucinskiSilva, do Instituto de Químicada USP (IQ), e seu marido,Wilson Silva, desapareceram natarde de 22 de abril de 1974. Seqüestradapor agentes do regimemilitar, Ana Rosa, que militavaclandestinamente na Ação LibertadoraNacional (ALN), foi demitidado IQ, em 1975, por “abandono docargo”, pelo reitor Orlando Marquesde Paiva.A demissão só foi revertidaem 1995, quando a USP acatouparcialmente petição do irmão deAna Rosa, professor Bernardo Kucinski,de anulação do processo administrativoaberto por “abandonode cargo”. No mesmo ano, a Uniãoreconheceu sua responsabilidadepelo desaparecimento e morte deAna Rosa, Wilson e outros desaparecidospolíticos, no Anexo I daLei 9.140/95.A luta para conseguir informaçõesa respeito da prisão docasal expôs a família a mentiras echantagens. Após ser informada daausência de Ana Rosa por colegasde trabalho no IQ, a família impetrouum habeas corpus pedindo sualocalização e a de Wilson. Mesesdepois, já em 1975, o governo ditatorialeximiu-se de responsabilidadeno caso, embora em dezembrodo ano anterior o general Golbery92


Revista <strong>Adusp</strong>Menna-Barreto coordenou umlevantamento dos casos de triagemideológica na USP. “Encontreimais de uma dúzia de casos, massó cinco toparam divulgar o nomee assinar os documentos questionandoa postura da USP com osconcursados”, esclarece.Observa que alguns chegarama ser subcontratados por outrasverbas — de pesquisa, por exemplo.Ele mesmo esteve nessa condição.“Um órgão federal davadinheiro para o meu departamentofazer pesquisa, o meu departamentodesviava uma parte parapagar um docente (eu), que nãopodia ser contratado por ordemdo governo federal”, assinalou.O professor Menna-Barretoespecializou-se em neurofisiologia(ou neurociência), que relacionacomportamento ao sistema nervoso.É membro do Conselho Editorialda Revista <strong>Adusp</strong> desde 1999.ODETTE SEABRAREITOR MANDOUARQUIVARSUMARIAMENTE ACONTRATAÇÃOA geógrafa Odette Carvalhode Lima Seabra, hoje professorada FFLCH, foi uma das vítimasda triagem ideológica praticadana USP ao longo da década de1970. Ao rememorar o episódio,cita o fato de haver sido ativistado movimento estudantil. Recordaa efervescência política e a coragemdos jovens de sua época, quenão deixavam espaço à alienação.Outubro 2004Também destaca a contribuição dafamília à sua formação política.“Sempre fui militante. Na minhafamília tinha comunista, mastinha também um lado forte dareligião, dois tios espanhóis anarquistas...Nessa ambigüidade é quea consciência vai se formando... equando eu cheguei na universidadeeu tinha essas presenças”.O Brasil crescia à razão de 10%a 11% ao ano quando ela concluiuo curso, no início dos anos 1970. Deum lado estava a classe média quese estruturava com o chamado “milagrebrasileiro”, de outro o proletariadoindustrial com seu saláriocada vez mais arrochado. “Então,nos anos 1970, aumenta muito oproletariado metalúrgico, e elesreivindicam uma posição na rendanacional”, diz Odette, assinalandoAna Rosa, em foto cedida pela famíliado Couto e Silva, chefe do SNI,tivesse reconhecido que Ana Rosaestaria presa em uma instituição daAeronáutica.Mais tarde, o Departamento deEstado dos Estados Unidos informouà família que Ana Rosa aindaestaria viva, embora não indicassemUSP/CCS/DVIDSON/Argus Documentaçãoo suposto cativeiro,e Wilsonprovavelmenteestaria morto.Quando, apósconceder audiênciaa familiaresde desaparecidospolíticos, o ministroda Justiça,Armando Falcão,emitiu um comunicadooficialsobre o assunto, Ana Rosa e Wilsonforam dados como “terroristas” econsiderados “foragidos”.Na busca pelo paradeiro do casal,a família foi vítima de pessoasligadas a órgãos de repressão, quelhes prometiam informações emtroca de dinheiro. Um oficial doExército e um civil que atuavam noDOI-Codi asseguraram que AnaRosa estaria presa e incomunicávelnaquele órgão de segurança. Após afamília pedir autorização para visitae notícias sobre o estado de saúdeda professora, os informantes alegaramque para tal era preciso umasoma considerável de dinheiro.Pago o valor combinado, ediante da ausência de informações,a família pediu que lhe fosseentregue, ao menos, algum tipo decorrespondência escrita por AnaRosa. Foi entregue um bilhete aBernardo Kucinski, que contestousua autenticidade. Mesmo assim,pagou aos informantes a segundaparte do combinado, em troca deuma visita à irmã, que tambémnunca aconteceu.93


Outubro 2004Daniel GarciaRevista <strong>Adusp</strong>pleitear, outra é ser discriminadopoliticamente. Aí mudou ahistória. Foi então que conheci oMenna-Barreto, o César Xavier,da FAU”. Numa ocasião, por umadecisão do grupo, ela foi à Reitoriasaber de sua contratação.“O chefe de gabinete do Reitor,depois de zanzar por lá paracertificar-se de que não havianinguém por perto, perguntoupara mim: ‘O que a senhora fezquando era estudante?’ Respondi:‘O que estudantes fazem’. Eledisse: ‘Não, a senhora fez algumacoisa e é por isso que seu processonão sai; e eu não posso fazernada’ ”.A partir de 1977, uma forte campanhafoi desencadeada pela <strong>Adusp</strong>,culminando na publicação do Livronegro da USP, em 1978 [reeditadoem 2004 sob o título O Controle Ideológicona USP (1964-1978)].Quando Odette fazia mestrado,o chefe de Departamento deGeografia informou-lhe que seuprocesso estava para ser aprovado,devido à Anistia, que viriaa ser promulgada em 1979. Elaconstatou que houve uma açãopersistente do Departamento emseu favor. “Ao verificar no Conselhode Departamento, descobrinas atas que, durante este período,o colegiado discutiu sistematicamenteo que fazer com a minhacontratação”.Professora Odette Seabraa novidade que marcaria as décadasseguintes. Ela se sustentava, então,dando aulas de formação políticano Sindicato dos Bancários.Em 1972 trabalhou na Secretariada Fazenda, num programa dedescentralização da indústria, masno mesmo ano licenciou-se paracursar economia regional e urbana.“Como não queria mais voltar àSecretaria, passei na Faculdade deGeografia, vi que tinha concurso efiz”. Tratava-se de um processo seletivopara admissão de docentes,realizado em 1975.Embora tenha sido aprovada,a contratação não ocorreu, e emmaio de 1976 a Reitoria mandouarquivar sumariamente o processo.Assim, ao dar-se conta, Odette “jáestava metida num processo comum monte de gente”. Era a lutacontra a triagem ideológica.Odette afirma que seu engajamentona campanha contra atriagem foi motivado pela segregaçãopolítica e não pela questãoempregatícia. “Uma coisa é você94BORIS SCHNAIDERMANARMA NA MÃO,O POLICIALINTERROMPEU A AULA“Meu nome é Boris Chnaiderman,com C-h no nome e S-c-hno documento”, apresenta-se osenhor sentado à mesa redonda.“Na Rússia, são muito comuns osnomes alemães, principalmenteentre os judeus”, justifica.Professor de russo da Faculdadede Filosofia, Letras e CiênciasHumanas, aposentado desde1979, Schnaiderman nasceu empleno 1917 na Ucrânia, e veioadolescente para o Brasil. Foicombatente da Força ExpedicionáriaBrasileira na Itália. Ensaístae crítico literário, notabilizou-sepelas traduções de clássicos comoMaiakovsky e Dostoievsky.Formado em Agronomia, apartir de 1960, ele se tornou o primeiroprofessor do curso livre derusso, que viria a ser transformadoem curso regular de língua e literaturarussas em 1963. Os cursosde línguas orientais, conta, foraminstituídos em São Paulo por determinaçãode Jânio Quadros. O interessepela Rússia vinha na esteira


Revista <strong>Adusp</strong>Professor Boris Schnaidermandas conquistas espaciais soviéticas.“Todo mundo estava sequioso porsaber como um país devastado naguerra tinha conseguido passar àfrente dos Estados Unidos”, comentao professor.Em 1964, Schnaiderman recusou-sea dar aulas no ConjuntoResidencial (Crusp) na época datransferência para a Cidade Universitária.“Desde que foi invadidopelos tanques, era um símbolo daopressão da Ditadura. Eu disseque as salas eram muito pequenase não comportavam os alunos. Ficavana porta do prédio”.Nos conflitos de 1968, o professordeu apoio ao movimentoestudantil contra os ataques doComando de Caça aos Comunistas(CCC): participou, no prédioda Maria Antonia, de um plantãode professores. “Levávamos travesseirospara o saguão do prédioe ficávamos lá, o clima era desolidariedade. Não houve ataque,mas atiraram algumas bombas paraassustar”.“Principalmente a partir do AI-5, houve muitas prisões. Até então,eu não havia sido molestado,mas pouco tempo depois meu filhoentrou para a guerrilha. Passamosa ter visitas freqüentes da políciaem nossa casa. O clima era muitotenso. Em uma ocasião, ficaramestacionados em frente ao prédio odia todo. Fui detido algumas vezes— não posso dizer que fui preso,porque o máximo que passei nacadeia foram duas horas”.O episódio mais grave foi noprédio da História, na CidadeUniversitária. No edifício, as salasdos professores têm duas entradas,uma pela frente e outra pelosfundos, que dá acesso a uma áreacomum. “Eu estava dando umaaula de literatura russa, bastanteentusiasmado com um conto deTchekov, os alunos também estavamentusiasmados, quando ouvimosum homem entrar pela portados fundos. ‘Com licença’, pediu.Ele estava armado. À procurade alguns estudantes, pediu quetodos mostrassem as carteiras deidentidade.”“Atirei a minha na mesa e comeceium discurso bravo, violento,mostrando o absurdo daquela situaçãoem que nós, armados com gizde lousa, enfrentávamos homenscom metralhadoras na mão. O policialdeu uma ordem a outro paraque chamasse o capitão do Exército.Depois, o major. Fui levadopara o Dops, perto da Estação daLuz, com alguns estudantes”.Mais ou menos à meia-noite, oprofessor foi levado à sala de umdelegado, que mostrou-se irritadocom ele. Enfim, o major que oOutubro 2004Daniel Garciatrouxera da USP disse: “O senhoragora está livre. Vai descer e vaiandando junto às paredes, porquese andar no passeio mesmo, o sentinelavai passar fogo”. No pontode ônibus, a professora AuroraBernardini, à época assistente deSchnaiderman, esperava-o numcarro. Fora chamada pela políciapara buscá-lo.Schnaiderman conta que foidetido outras “quatro ou cinco”vezes. “É verdade que tinha meaproximado do Partido Comunistaanos antes, mas afastei-me depoisdo informe de Krushev e da Revoluçãona Hungria, em 1956. Eunão tinha inclinação política”, esclarece.Era apenas, define-se, um“opositor passivo: escrevi um ououtro artigo indignado entre aspasnas brechas possíveis”.O professor, hoje com 87 anos,lamenta a destruição que os ataquescausaram ao antigo prédio daFilosofia, na rua Maria Antonia:“O que foi perdido ali jamais serárecuperado”.95


Outubro 2004NAIR BENEDICTORevista <strong>Adusp</strong>Daniel Garcia“LEMBRO DO FLEURYPERGUNTANDO: ESTA ÉQUE É A MILIONÁRIA DAVILA MARIANA?”Filha de imigrantes italianosque se instalaram nos arredoresde São Paulo, a paulistana NairBenedicto, autora de trabalhosconsagrados e premiados no fotojornalismo,não esconde o viéssocialista, que carrega desde oberço. Formada pela USP, em1972, Nair integrou a primeiraturma do curso de Rádio e TVda ECA.Já casada e mãe de três filhos,mas ainda estudante, Nair viveuna pele a tortura, e depois asagruras da cadeia, por nove meses.Presa em 1º de outubro de1969, sua memória ainda abrigadetalhes do episódio. “Lembrodireitinho do Fleury perguntando:‘Essa é que é a milionária da VilaMariana?’, ao me ver chegar decalça jeans, camiseta e sandália.Ele se espantou, eu já estava estereotipadana cabeça dele”, relembroua fotógrafa, que atuava como“apoio” do grupo político AçãoLibertadora Nacional (ALN).Nas sessões de tortura, Nairenfrentou a patologia dos agentesdo regime. “Um dos torturadoresgozou enquanto me torturava... eos outros zombavam dele dizendo:Ah, se a dona Mafalda soubesse queo único filho dela só goza assim”.O fato de ser mãe de três filhos eestudar já se traduzia em suspeita.“Eles imaginavam: Como umamulher que tem três filhos não temNair Benedictobarriga? Só pode ser treinamento deguerrilha!”, analisa.Na cadeia teve contato com ahoje ministra das Minas e Energia,Dilma Roussef, e com professorasda USP, como Emilia Viotti. “Aconvivência era complicada porquehavia intelectuais, estudantes,donas de casa. Havia 13 mulheresdos 18 aos 60 anos”.Frente às torturas, respondeucom silêncio. “Quando começarama me torturar, ao invés de medesesperar, me fortaleceu muito.Pensei: se está acontecendo essadesgraça toda à minha família, entãoeu preciso segurar”, racionalizavaNair, referindo-se às ameaçasdos algozes aos seus familiares.Ao sair da cadeia em julho de1970, Nair voltou à USP, ondeencontra o movimento estudantildesmantelado, a maioria daslideranças sumidas ou presas. “AUSP perdeu 2/3 de seus alunos.Foi uma devassa. Morreu muitagente. Era um clima de retomada,devagar, para reestruturar”,reitera a ex-militante da ALN,que refuta a vulgarização da críticaà luta armada. “Quando chegamosaos 50 é fácil criticar o quefizemos com 30. Houve coisas importantes.Às vezes me perguntose sem isso teria existido a grevedo ABC nos moldes em que elaexistiu”, defende.Impedida de trabalhar com TV,seu sonho, por falta de um atestadode “bons antecedentes”, Nairfoi se profissionalizando na fotografia.Em 1979 fundou a AgênciaF4 de Fotojornalismo (com JucaMartins, Delfim Martins e RicardoMalta), especializada em temassociais. Em 1991, desligou-se daF4 para fundar a N-Imagens, quedirige até hoje. É autora de livroscomo A greve do ABC, A questãodo menor (em parceria com JucaMartins) e Nair Benedicto, As melhoresfotos.96


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004OS IDOS DE MARÇO DE1964 E O SIGNIFICADODA DEMOCRACIAMarcos Del RoioProfessor da Faculdade de Filosofiae Ciências da Unesp (Marília)Agência EstadoA institucionalidade política do liberalismo se expressa narepresentação política dos cidadãos e na separação de poderes,restando saber como se define o corpo da cidadania – se ocorrealguma forma de conluio efetivo do liberalismo com a democraciaou se prevalece o confronto entre democracia e liberalismo. Foi essasignificação oligárquica da democracia que possibilitou a implantaçãoda ditadura em abril de 1964. O golpe militar pode ser visto comoum golpe liberal em defesa de uma certa concepção de democracia,a concepção liberal oligárquica. A visão que atribui aos comunistase trabalhistas, por suposto desprezo destes pela democracia, aresponsabilidade na vitória do golpismo, ignora a peculiaridade da“via prussiana” de construção do capitalismo no Brasil, que gerou umregime político que não pode ser considerado democrático97


OOutubro 2004significado da palavrademocraciasempre esteve emdisputa no Brasil,assim como emtodo o mundo ocidental.Quando se criou o hábitode dizer que em 1945 o Brasil assistiaà sua “redemocratização”,estava implícito que em precedência,quiçá antes de 1930, houveraum Brasil democrático. Aquise procurava confundir a vesteliberal da dominação oligárquicacom democracia, até para quese legitimasse a persistência dopoder oligárquico, sob asnovas condições da revoluçãoburguesa em andamento,na institucionalidadeliberal-corporativa que foiimplantada com a Constituiçãode 1946.A subjacente concepçãode democracia embutidanessa leitura do processohistórico brasileiro indicaque a liberdade e a propriedadeformam um parinseparável e que, ao fimdas contas, democraciase identifica com liberalismo.A institucionalidade política doliberalismo, como se sabe, se expressana representação políticados cidadãos e na separação depoderes, restando saber como sedefine o corpo da cidadania, parasaber se ocorre alguma formade conluio efetivo do liberalismocom a democracia ou se prevaleceo confronto entre democraciae liberalismo.Foi precisamente essa significaçãooligárquica da democracia98A possibilidade dapassagem do Brasil parauma democracia liberalcom direitos sociais estevepresente tanto na conjunturapolítica de 1945 quantona conjuntura política decrise de agosto de 1961a março de 1964que possibilitou a implantaçãoda ditadura militar em abril de1964. Se liberdade se identificacom propriedade (e com religião),de fato essa perspectiva devida social encontrava-se ameaçadaem 1964, sendo necessáriauma intervenção político-militarpara resguardá-la. Assim, o golpemilitar de 1964 pode ser vistocomo um golpe liberal em defesade uma certa concepção de democracia,a concepção liberaloligárquica. Claro que hoje sãomuito poucos os que defendemuma interpretação dos acontecimentosde março-abril de 1964com essas lentes, a não ser ossobreviventes ou aqueles quecontinuam sendo doutrinadosnos quartéis.No entanto, para o sucesso dogolpe militar de 1964, ainda quetenha concorrido decididamenteessa ideologia que confundia liberdadee democracia com mercadoe propriedade, defendidatambém pelos círculos imperialistas,foi necessária a convergênciacom o setor da burocracia estatal,Revista <strong>Adusp</strong>particularmente militar, que propugnavaa necessidade da permanentedefesa da ordem social,mas que entendia que essa exigiao desenvolvimento das forçasmateriais de produção, cuja beneficiáriaprincipal era a burguesiaindustrial. A vitória dessa visãode democracia dos proprietáriostornou possível a implantação deuma ditadura militar longeva eque contou com uma significativabase de sustentação social, particularmentenas camadas médiasurbanas proprietárias.A crítica liberal de cariz maisdemocrático ao caminhopelo qual procedia a revoluçãoburguesa no Brasildesde 1930 manifestou-se,inicialmente, indicandoprecisamente a debilidadesocial fundamental dasinstituições liberais: a vinculaçãodos sindicatos aoEstado, a fraqueza da representaçãopolítica, o predomíniode lideranças carismáticase demagógicas,tendo sido esse conjunto deaspectos negativos rotuladocom o epíteto de “populismo”. Oproblema era então localizado nofato de não se constituir no Brasiluma desejável democracia liberal,com cidadania ampliada, comautonomia das instâncias sociais,etc. A dificuldade, quando nãoa impossibilidade, de um Brasilliberal-democrático teria geradoum regime autoritário. Regimeesse que preserva algumas característicasda institucionalidadeliberal, como a divisão dos poderese a representação política,


Revista <strong>Adusp</strong>Outubro 2004Adriana Nery/Agência EstadoPolícia reprime manifestação estudantil em São Paulo, 24/8/1977mas atenta contra as liberdadescivis e políticas e eleva o poderexecutivo como poder supremo earbitrário.Como predomina o formalismonessa concepção, a saída doautoritarismo e a passagem para ademocracia liberal demandariamque fossem suprimidas as instânciascoercitivas espúrias, assimcomo restabelecidos e generalizadosos princípios jurídicos liberais.Uma transição do autoritarismo àdemocracia de tal feitio continuarianaturalmente a preservar ovínculo entre liberdade e propriedade,mas o aspecto democráticosairia fortalecido com a manutençãoe ampliação dos direitossociais estabelecidos.Um problema sério apresentadopor essa leitura que acoplaos conceitos de populismo e deautoritarismo como desvãos dademocracia, além da perigosaconvergência com a visão liberalclássica das oligarquias, é nãoperceber que a possibilidade dapassagem do Brasil para umademocracia liberal com direitossociais esteve presente tantona conjuntura política de 1945quanto na conjuntura política decrise que transcorreu de agostode 1961 a março de 1964 (da tentativagolpista de Jânio Quadrosà deposição de João Goulart).Apenas mais recentemente, nodecorrer da última década, veiose fortalecendo uma leitura quefaz a crítica das insuficiências daquelaleitura liberal-democrática,propondo uma outra dentro dessemesmo paradigma.A idéia é desfazer-se do conceitode populismo e percebero período 1946-1964 como umperíodo já liberal-democrático,99


Outubro 2004ainda que com deformações muitopossíveis de serem sanadas pormeio de reformas. A possibilidadedessas reformas teria estadoconcretamente presente na conjunturade crise política de 1961-1964, mas o engenho e arte dosatores políticos em cena teriamsido insuficientes ou mal informadose assim levado de roldãoessa possibilidade. O caminhoseria aquele de preservar as instituiçõesliberal-democráticas (??),enfatizando o caminho danegociação com as forçassociais e privilegiando ojogo institucional, no qualo Congresso e os partidosdeveriam cumprir umpapel primordial, particularmenteo PTB e o PSD.Como partido reformistaem ascensão, ao PTB e aopresidente João Goulartcaberia a responsabilidademaior.Mas como os movimentosoperário e popular, pormeio de suas liderançaspolíticas, tiveram por bemafrontar a legalidade liberal-democráticae rompercom o caminho da negociação,provocando uma fratura nacoalizão centro-reformista, assumiramuma responsabilidadedecisiva no desencadeamento evitória da aventura militar golpistade março-abril de 1964.Assim, deveria ser indicada erealçada a responsabilidade dasesquerdas comunista e trabalhistana instauração da ditaduramilitar, mas a explicação estariano desprezo pela democracia100No começo dos anos 60,a burguesia era já uma classedominante e o desenlaceda crise política dependia,em grande medida, da suaatitude. Ela encontrava-sesob forte assédio do latifúndioem processo de transformaçãocapitalista, por um lado,e do imperialismo americano,por outro lado(certamente entendida comoliberal-democracia). O entendimentode comunistas e trabalhistasde que as reformas teriamque se realizar apesar e às custasdas instituições liberal-democráticasteria gerado as condiçõespara que os eternos golpistas dedireita tivessem obtido a oportunidadepara a vitória.A pergunta que se coloca, noentanto, é se um regime políticoque impedia a organização autônomada classe operária por meioda legislação sindical estatalcorporativae que impedia a sualivre organização partidária, queimpedia o exercício da cidadaniaà grande maioria dos trabalhadoresdo campo e que virtualmenteconsagrava como intangível o direitode propriedade, poderia serconsiderado, ainda que com grandegenerosidade, como democrático.O hibridismo entre instituiçõesliberais, que garantiam oRevista <strong>Adusp</strong>predomínio oligárquico e a lentaascensão burguesa, de um lado,e instituições corporativas quesubmetiam a classe operária aodomínio fabril da burguesia, deoutro, eram o invólucro por meiodo qual se realizava a revoluçãoburguesa no Brasil. Eram expressãoinstitucional da peculiaridadeda “via prussiana” de construçãodo capitalismo no Brasil.A “via prussiana” da revoluçãoburguesa é antinômica àdemocracia em todas assuas fases, de 1930 a 1980,de modo que não há comoidentificar o período1945-1964 como liberaldemocrático,pois na verdadenesse período há umconluio do liberalismo como corporativismo, mas nãodo liberalismo com a democracia.Desde a eclosão da revoluçãoburguesa no Brasil,na virada dos anos 20do século XX, colocou-seuma oposição entre a “viaprussiana”, que poderiater assumido conteúdos epeculiaridades diferentes,e uma submersa “via democrática”,que também poderia assumirdiferentes facetas. Manifestaçõesepisódicas de irrupção democráticaocorreram em 1935, com aexperiência da Aliança NacionalLibertadora, em 1945, com o fimdo Estado Novo e, principalmenteentre 1961-1964.No começo dos anos 60, então,a burguesia era já uma classedominante e o desenlace da crisepolítica dependia, em grande


Revista <strong>Adusp</strong>medida, da atitude dessa classee de suas frações. A burguesiabrasileira encontrava-se sob forteassédio do latifúndio em processode expansão e de transformaçãocapitalista, por um lado, e do imperialismoamericano, interessadoem se apropriar e em investirno mercado interno brasileiro,por outro. A aceitação dessaspressões, que implicavam a suatransformação em um setor oufração de uma classe dominanteburguesa mais ampla e mais forte,obrigariam a que se voltassecontra os interesses democráticosdas classes subalternas e favorecessea opção pelo aprofundamentoda “via prussiana” darevolução burguesa.Desde aproximadamente1953, quando da greve dos “300mil” em São Paulo, a classeoperária, de modo intermitente,vinha se organizando na fábricae no sindicato, lutando por suaautonomia e se opondo à legislaçãocorporativa e ao liberalismooligárquico. A expansão para ointerior e a capitalização do latifúndioestimulou a luta e a organizaçãodos trabalhadores docampo. Com a posse do governoreformista de Goulart, o conjuntodas classes trabalhadoras e desuas direções políticas e sociais,particularmente o PCB, percebeua possibilidade de uma conversãodemocrática da revoluçãoburguesa.O programa democrático darevolução burguesa demandavanão só uma série de reformas sociaise econômicas que afetassemdrasticamente os interesses dagrande propriedade territoriale do grande capital financeiro,mas implicava, ao mesmo tempo,uma ruptura institucional a fimde que se generalizasse o estatutoda cidadania e os implícitosdireitos civis, políticos e sociais.A reforma agrária era impossívelcom o Artigo 146 da Constituição,a autonomia operáriaera impossível com a legislaçãocorporativa, a democracia políticanão era possível sem a legalidadedos partidos marxistase a universalização do direito desufrágio.A verdade é que a esquerdae a frente popular que se gestavapressionavam pela reversãodemocrática da “via prussiana”,pela realização de uma democracialiberal burguesa com direitossociais. A proposta aventada deconvocação de uma AssembléiaConstituinte tinha esse propósito.Acontece, porém, que asforças do movimento operário epopular, tendo em vista a conversãodemocrática da revoluçãoburguesa, eram claramente insuficientespara alcançar esse objetivo,considerando a debilidade ea novidade da sua organização,particularmente no campo. Daía importância da opção históricada burguesia naquela quadra.A opção de classe da burguesia,quando março chegou, estavaclaramente definida pela maisprovável aliança com o mais forte,com o latifúndio – berço doqual ela mesma se originara – ecom o imperialismo, elegendo comoadversário de classe o proletariadoindustrial e o conjunto daOutubro 2004massa trabalhadora. As fraçõesmajoritárias das Forças Armadas,que desde 1930 pressionavam paraassumir diretamente o governodo Estado burguês em construção,conseguiram finalmente oapoio do conjunto das classesdominantes, radicalizando a “viaprussiana” e levando a termo arevolução burguesa por meio deuma ditadura militar. A eventualaceitação, por parte da burguesia,da aliança com o movimento operárioe popular contra o latifúndioe contra o imperialismo teriasignificado fazer uma aliança como mais fraco, ao qual, mesmo assim,seria obrigada a fazer umasérie de concessões que implicariamo risco de se ver ultrapassadana disputa pela hegemonia dademocracia que necessariamentever-se-ia instaurada.Assim, os idos de março eabril de 1964 assistiram à vitóriacompleta da “via prussiana”da revolução burguesa por meioda instauração de uma ditaduramilitar, que acentuou o corporativismoestatal no domínioburguês sobre a classe operária,mas preservou instituições liberaiscaras à tradição oligárquicae burguesa. Muito longe de umafalta de apreço pela democracia,as esquerdas, e os comunistas emparticular, tinham ciência da necessidadeda democracia para arealização das demandas do movimentooperário e popular, mastambém sabiam que o regimeliberal-corporativo estabelecidono decorrer da “via prussiana”da revolução burguesa não erademocrático.101


Outubro 2004Revista <strong>Adusp</strong>O GOLPE DE 1964E A UNIVERSIDADE:ENTRE A REPRESSÃOE A MODERNIZAÇÃOSuzeley Kalil MathiasProfessora de Relações Internacionais e História da Unesp-FrancaOs governos militares abolirama liberdade de cátedra,cerceando a manifestaçãode idéias na universidade eperseguindo as vozes rebeldes.Por outro lado, introduziramdiversas mudanças: extinçãodo sistema de cátedras;organização departamental;plano de carreira docente comintrodução do tempo <strong>integral</strong>;ênfase na pós-graduaçãoetc. Por obra deles criou-seum sistema universitário e depesquisa pós-graduada quevigora até hoje e que, paradesgosto daqueles que defendemuma educação voltada para apesquisa básica, formou geraçõesque entendem a educaçãosuperior como formadora nãoda cidadania, mas de profissõesexigidas pelo mercadoAgência EstadoJarbas Passarinho:um coronel àfrente do MEC102


Revista <strong>Adusp</strong>Distintamente de outrasáreas, a Educação éuma variável privilegiada,pois, mais queuma política socialde qualquer governo,é um assunto que transcende os limitesda administração pública, sendouma das primeiras a sofrer com asmudanças seja no governo seja nosregimes políticos. Esta condição deárea sensível — porque entendidacomo veículo de difusão de idéias e,portanto, de formação de consciênciase de treinamento para respondera determinadas demandas do mundodo trabalho e da cidadania — faz delauma variável importantíssima paraanalisar as possibilidades de autonomiade um país.Por questões de escopo, a escolhadas faces da educação quetocaremos se impõe. Até para apresentardados novos sobre a formacomo foi tratada a educação peloregime dos militares, abordaremostrês faces, tomando como objeto oensino superior no Brasil. A primeiraé a referente ao cerceamento daliberdade e a conseqüente cassaçãode professores e expulsão de alunospromovidas no pós-64: a “caça àsbruxas”. A segunda, que para muitospode parecer indigesta, é apresentaralguns dados positivos sobre a intervençãomilitar na educação, analisandoespecificamente a reforma doensino superior promovida pelo governoburocrático-autoritário. 1 Porfim, falaremos sobre a participaçãode membros das Forças Armadas naburocracia do Ministério da Educação.Tocar neste aspecto, como entendemos,é revelar uma face poucoconhecida, mas muito relevante(porque duradoura), das mudançaspromovidas pelo golpe de 1964 naUniversidade brasileira.“Caça às bruxas” representa, noimediato pós-31 de março, a tomadada Faculdade de Filosofia da USPpela polícia, com cães farejadoresparados à sua porta localizada naRua Maria Antonia, em São Paulo,a franquear o acesso dependendoda “escola” em que o professor oualuno estava vinculado. Professoresdas Ciências Sociais e Filosofia,“todos comunistas”, eram presosou mandados para casa. Professoresda Letras, como nos conta AntonioCandido, tinham liberada a passagem,pois essa disciplina não estava“infestada” pela “peste comunista”. 2Poucos se recordam que não foiapenas invadindo universidades queos militares cassaram professores ecensuraram a academia.O caso do professor AnysioTeixeira é exemplo significativo.Como é sabido, esse jurista foi umgrande educador, muito respeitadono meio acadêmico e um dos idealizadoresdo Conselho Federal deEducação (CFE). Em 1964, além demembro desse Conselho, era reitorda UnB, demitido deste cargo nainvasão da Universidade por tropasdo Exército em 9 de abril de 1964. 3Neste ano, cogitou-se cassá-lo já noprimeiro Ato Institucional. Dados osprotestos da comunidade acadêmica,esta ação não se consumou, masTeixeira, sintonizado com seu tempo,aceitou convite de uma universidadenorte-americana, indo para o exteriore voltando apenas em 1966, tornando-seconsultor da Fundação GetúlioVargas até seu falecimento, em1971. Nada disso foi registrado nasOutubro 2004Documenta (publicação que relata todasas reuniões e resoluções do CFE)e o nome Anysio Teixeira continuoua figurar entre os membros do CFEaté 1967. Assim, nem todas as puniçõesou perseguições promovidas nopós-64 aparecem. Muitas foram aspessoas atingidas que nem parte dasestatísticas fazem.Porém, para voltar à “caça àsbruxas” nas universidades, sabe-seque houve nomeações de militarespara as reitorias de algumas delas,enquanto em outras foram colocadospróceres do regime para dirigí-las.Assim, pode-se citar como exemplos:Universidade Federal da Paraíba,onde o professor Moacyr Porto foisubstituído pelo comandante daGuarnição Federal de João Pessoa,coronel Arthur Candal da Fonseca(abril de 1964), ou UniversidadeFederal de Minas Gerais, para a qualfoi nomeado o coronel Expedito OrsiPimenta, em substituição ao professorAluísio Pimenta (julho de 1964).Na USP, vários professores foramcassados ou aposentados, entreeles o físico Mário Schenberg,naquela época um dos mais conhecidoscientistas brasileiros. Sua cassaçãonão foi possível, como não ofora a de Aloysio Teixeira, mas,aposentado compulsoriamentepelo AI-5, precisou continuar suacarreira fora do Brasil, como CelsoFurtado e vários outros 4 .O reitor da USP em 1964 eraLuís Antonio da Gama e Silva que,já em 4 de abril, foi alçado a ministro,primeiro ocupando o Ministérioda Educação e Cultura-MEC, elogo em seguida o Ministério daJustiça. 5 Nesta posição, ele nomeouuma comissão secreta para averi-103


Outubro 2004guar quem eram os “comunistas”da USP. Chegaram a 44 nomes.Todavia, conforme Isaías Raw, comoo Exército era ingênuo e nãoconhecia a universidade, os dirigentesuniversitários aproveitaram aoportunidade para perseguir todosaqueles que lhes convinha, professores,funcionários e alunos. 6Porém, é na gestão de Costa eSilva (março de 1967 a outubro de1969) que se promove uma verdadeira“militarização” das universidades.O governo continua ocupando váriasuniversidades federais, nas quais nomeavam-semilitares como reitorespro tempore. 7 Na UnB, ao contrário,desde 1964 o vice-reitor eramilitar, capitão-de-mar-eguerraJosé Carlos Azevedo,alçando-se à Reitoria emrazão da saída de ZeferinoVaz, ali permanecendo por 15anos. Também é nesta gestãoque se sente o significado dacensura e do fim da UNE(embora ela tenha sido proscritapor Castelo Branco).Depois do AI-5, então, vê-se a paralisaçãocompleta da atividade científicae cultural das universidades. Énovamente Antonio Candido quemostra este esvaziamento:Em primeiro lugar, a diminuiçãodo número de professores, pordiversos motivos, desde a puniçãoaté o sentimento de insegurança,que leva ao afastamento voluntário.E também pela diminuição dosalunos bem dotados, ardorosos, quevão embora ou desistem de estudar.Há, além disso, a proscrição de váriosassuntos, que as circunstânciasnão permitem abordar livremente.E, ainda, a idéia vaga e perigosa de104que não havia muito o que fazer. 8Em resumo, nos anos imediatamenteposteriores ao 31 de marçoou 1º de abril a Universidade sentiu-semuito abalada. De lá para cá,pouca coisa mudou, pois ainda vivemoso mesmo projeto. Informa Gaspari(2003) que em 1970, portanto,durante Costa e Silva, o Brasil foi osegundo exportador de cientistas daAmérica Latina, apenas considerandoaqueles que escolheram comoporto de parada os EUA. Hoje, nãoé muito diferente, basta lembrar queo jovem físico Marcelo Gleiser éprofessor no Dartmouth College, nosEUA, preferindo o ensino técnico aNo pós-31 de março, algunsmilitares foram nomeadosreitores, como aconteceuna Universidade Federal deMinas Gerais, onde um coronelsubstituiu Aloisio Pimentauma de nossas universidades. No entanto,isto não é o pior: o realmentepreocupante é que nada foi feitopara reverter este processo e hoje,passados 40 anos do golpe, a educaçãonão é vista como prioridade. Aocontrário, parece que vivemos umprocesso de nova colonização. 9João Goulart não foi capazde levar a cabo suas idéias, consubstanciadasno Plano Trienal deDesenvolvimento. A despeito disso,muitas de suas propostas acabampor influenciar o governo deseus sucessores. Na educação, foi oque aconteceu. Um exemplo é queno famoso Comício da Central (13/Revista <strong>Adusp</strong>3/1964) Goulart anuncia as reformasde base, entre elas a reformado ensino universitário.A despeito de a Lei que institui areforma universitária datar de 1968,várias medidas a antecedem e sãoformuladas desde a primeira horado governo militar. Em continuidadeaos trabalhos iniciados durante o governoJoão Goulart, a Usaid elaboraum relatório e, influenciado por ele,o governo Castelo Branco edita osDecretos-lei 53, em 1966, e 252, em1967, definindo as bases da reforma;a elaboração de alguns projetos deextensão universitária que posteriormenteseriam implementados, taiscomo o Crutac, o Rondon eo Mauá (1966); cria ou estimulacomissões e fóruns dediscussão a respeito do tema,como a Comissão MeiraMattos (1967) e o fórum “Aeducação que nos convém”(1967), iniciativa conjunta dogoverno, da PUC-RJ e doJockey Club do Brasil — articulaçãoque mostra que asForças Armadas não estavam sozinhasquando assumiram o governo.Os documentos oriundos dessasiniciativas acabaram por produzirmuitas medidas que foram adotadas,entre as quais destacam-se: extinçãodo sistema de cátedras; introduçãoda organização departamental;plano de carreira docente com introduçãodo tempo <strong>integral</strong>; divisãocurricular em dois ciclos, um básicoe um profissionalizante; integraçãodas atividades de ensino e pesquisa;ênfase na pós-graduação etc. 10Não obstante enfatizar o ensinosuperior profissionalizante e organismoscomo o CNPq já estarem


Revista <strong>Adusp</strong>A Ditadura arromba a Faculdade de Filosofia (1968)em funcionamento em 1966, e aCapes dar seus primeiros passos,é em função da Lei 5.540, de 1968,que se moderniza o ensino superiorno Brasil e de fato se cria após-graduação no país que foi “umgrande sucesso do ensino superiorbrasileiro, sem paralelo em todo oterceiro mundo”, 11 modelo este atéhoje não superado.A idéia-chave que prevaleceufoi a da universidade-empresa, aabordagem de que o objetivo doensino superior é formar técnicospara o desenvolvimento, emboraessa abordagem fosse de encontroà demanda: “as faculdades maisfreqüentadas [na década de 60]são, em ordem decrescente: direito,filosofia, ciências sociais e letras,engenharia, economia, medicina,odontologia, agronomia, arquitetura”.12 O projeto do governo dosgenerais não comportava a pesquisanas áreas básicas, as quais se preocupampor buscar respostas paraAcervo Iconographiao atraso. Ao contrário, o projetogovernamental representava em sio desenvolvimento. Isto significavaque era bom para o país em termosdo futuro não adquirir capacidadecientífica, mas tecnológica: produzirprodutos para exportação. E essaidéia deu certo. Tanto é que aindahoje resistimos em abolir muito daquiloque está na Lei de 1966, emborahaja nova legislação, a Lei deDiretrizes e Bases (Lei 9.394/96),que justamente revoga aquilo quefoi superado pela reforma do ensinopromovida pelos militares.Um exemplo significativo à resistênciaque provocam várias dasiniciativas da nova LDB que contrariama Lei 5.540/66 está na aboliçãodos departamentos, substituindo-ospelos Conselhos de Ensino, medidanão adotada por nenhuma das universidadespúblicas brasileiras.Em síntese, se por um lado ogoverno dos militares abolia todaa liberdade de cátedra, cerceandoOutubro 2004a livre manifestação de idéias nauniversidade (o que foi, em muitoscasos, aproveitado pelos carreiristase revanchistas, como o demonstraa “lista negra” feita por Gama eSilva na USP), também por obradeles criou-se um sistema universitárioe de pesquisa pós-graduadasem paralelo na história do Brasil,sistema que vige até hoje e que,para desgosto daqueles que defendemuma educação voltada para apesquisa básica, formou geraçõesque entendem a educação superiorcomo a culminância do ensino e,portanto, formadora não da cidadania,mas de profissões exigidaspelo mercado.Um meio pouco abordadode ver de que forma o governopós-64 fez uso da educação comoplano de governo é avaliar comoos valores castrenses (como entendidopelas Forças Armadas emum momento determinado) perpassamprojetos sociais colocadosem prática naquele período — amilitarização subjetiva. No referenteà Universidade, o destaquecoube ao Projeto Rondon (1966).Esse projeto previa o deslocamentode universitários para áreas depouco ou nenhum desenvolvimento,nas quais os alunos/estagiários“educavam” o “povo ignorante”.Por trás do projeto, estava a idéiaque o progresso e a integração doBrasil dar-se-iam não pelo entrelaçamentocultural, mas sim pelaimposição de valores “civilizados”.A despeito da boa intenção dosestagiários e do sucesso do projeto,a compreensão de progresso queele supunha chocava-se frontalmentecom o mote alimentador105


Outubro 2004106A militarização do ensinoenvolveu não só a presença demilitares em cargos importantesdo setor, a começar pelo MEC,mas também a difusão devalores castrenses nos projetoscolocados em prática no períododos projetos praticados durante ogoverno João Goulart, cuja grandeinspiração estava em Paulo Freire— ensinar a aprender.Outra maneira de ver a militarizaçãodo ensino superior é analisara presença de membros das ForçasArmadas na estrutura do Ministérioda Educação, em particular noCFE: militarização pela presença.Nesse aspecto, lembramos que emtodos os governos dos generais, deCastelo Branco a João Figueiredo,o ministro da Educação era militar,ainda que nem todos tenhampermanecido em exercício por todoo mandato presidencial.Assim, além do comandoda nação, também a políticaeducacional era dirigida pelosmilitares.Não somente no primeiroescalão, porém, seencontravam militares. Ocargo de diretor da Divisãode Segurança e Informação(DSI), criado pelo governomilitar para todos os ministérios,foi designado paraas Forças Armadas. Também soba batuta castrense, entre 1964 e1984, foram dirigidos os Conselhosde Desportos e de Comunicações,que cuidavam respectivamente dadisciplina de Educação Física e doscursos a esta ligados, e das redeseducativas de TV e rádio. Neste últimocaso, pode-se dizer que todoo sistema de divulgação e difusãode idéias promovidas pelo MECera submetido ao crivo militar.Mais importante do que os cargoscitados, a composição do CFE— ao qual cabia a autorizaçãopara abertura de cursos, seu reconhecimentoe dos programas denível superior — contou, ao longodos anos ditatoriais, com pelo menosum militar. Outra informaçãoa ser destacada foi a participaçãode membros da Igreja Católica.Em outras palavras, durante os20 anos de Ditadura, o CFE foicontrolado não diretamente pormilitares, mas por aqueles, civis,militares e membros da Igreja,que incentivaram o golpe e apoiaramo governo dos generais.Dois exemplos são significativosda militarização do MEC: a presençados professores Jorge Boaventura(que ainda hoje leciona naESG) e Hélio Gomes, e do juristaAffonso Carlos da Veiga (grandeincentivador do golpe) entre seusquadros; e a marchinha que introduziao Minerva no Ar, produzidapelo MEC: “Eu quero sabermais./Preciso saber mais./Minervano Ar./ Sabendo a gente sente/que anda pra frente/ e começa amelhorar./ Depois que a genteestuda,/ a coisa toda muda/ e o Minervaestá aí pra ajudar./ Eu querosaber mais./ Eu quero ser alguém./Eu cresço com o Minerva/ e o Brasilcresce também.”Revista <strong>Adusp</strong>Em outros termos, não é precisoadministrar regimes ou governospara controlar consciências. Épossível atingir esse objetivo semao menos ser notado pela sociedade.Foi por meio da própria burocraciaque muito do ethos militarpenetrou nas entranhas da própriaformação das novas gerações. Nãocabe aqui julgar se este plano foibem sucedido, porém, como algumaspesquisas apontam hoje,a universidade-empresa à qual sedeve freqüentar para aprender umaprofissão e não para fazer política éaclamada como necessária por estamesma sociedade.NotasEsse artigo é inspirado em A militarização daburocracia: a participação militar nas Comunicaçõese na Educação (1961-1990), livro a serpublicado pela ed. Unesp/Fapesp, 2004.1 O conceito de regime burocrático autoritáriofoi desenvolvido por Guillermo O’DONNEL.Veja, entre outros, Análise do autoritarismoburocrático. R.J., Paz e Terra, 1990.2 “A Luta na Academia”. Reportagem deDébora Pivotto. Caros Amigos, nº 19, marçode 2004, p. 33.3 O interventor nomeado para a UnB foi o entãodiretor da Faculdade de Medicina da USPde Ribeirão Preto, Zeferino Vaz que, a partirde 1966, assumiria a Reitoria e a construçãoda Unicamp, o que explica, em parte, o sucessodesta última.4 Elio Gaspari. A ditadura envergonhada. S.P., Cia. DasLetras, 2002, p. 220 ss.5 O mesmo Gama e Silva é tido como o principal redatordo famigerado Ato Institucional nº 5, já na gestãoCosta e Silva.6 “A Luta na Academia”. Reportagem citada.7 A nomeação cabia ao CFE. A escolha de militares paratais cargos mostra a pouca capacidade deste Conselhoem decidir sobre os rumos da educação superior, comolhe cabia legalmente.8 Palavras de Antonio Candido, citadas por Elio Gaspari“Alice e o camaleão”. In Heloisa Buarque de Holandaet. al. 70/80, Cultura em Trânsito: da repressão à abertura.R.J., Aeroplano ed., s/d., p. 45.9 Palavras do prof. Armando Boito Jr. sobre o momentoatual.10 Essas medidas foram parcialmente testadas pela UnB(desde 1961) e pelo ITA (desde 1947). Como é sabido,este último é uma escola para militares que aceita civis.11 Entrevista de Luís Antonio Cunha para o informativoeletrônico Agência FAPESP, 16/6/2004.12 FIECHTER, G.-A. O regime modernizador no Brasil,1964/1972. R.J.: Fundação Getúlio Vargas, 1974, p.201.

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