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TELEVISÃO DIGITAL: ESTA HISTóRIA NÃO COMEÇA EM ... - Adusp

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A Mídia na economia6Terra de gigantesAntonio Biondi e Cristina CharãoMídia, poder e cultura26As concessões de radiodifusãocomo moeda de barganha políticaVenício A. de Lima34Rádios comunitárias autênticas:entre a comunicação democrática e a perseguiçãoCláudia Regina Lahni43As armadilhas do olhar: visibilidadese invisibilidades em tempos de reality showsRosaly de Seixas Brito49TV Brasil: o faz-de-conta da emissora públicaBia Barbosa55A nova televisão brasileiraLaurindo Lalo Leal Filho60Televisão digital:esta história não começa em 2007Almir AlmasNós e a rede mundial66Os desafios da governança da InternetGustavo GindreJornalismo e democracia74Jornalismo na selvaLúcio Flávio Pinto83Um balanço da campanha pelademocratização da informaçãoBernardo Kucinski89SP tem 1º Congresso deEx-Presos e Perseguidos PolíticosBruno Mandelli90Carta


DIRETORIAOtaviano Helene, César Augusto Minto, Marco Brinati, Carla Roberta de Oliveira Carvalho,Marcos Nascimento Magalhães, Marcelo Luiz Martins Pompêo, Suzana Salem Vasconcelos,Demóstenes Ferreira da Silva Filho, Sérgio Souto, José Marcelino de Rezende Pinto, Ozíride Manzoli NetoComissão EditorialDilma de Melo Silva, Flávio Tavares, João Zanetic, José Carlos Bruni,Luiz Menna-Barreto, Marco Brinati, Maurilane de Souza Biccas, Osvaldo CoggiolaEditor: Pedro Estevam da Rocha PomarAssistente de redação: Bruno MandelliEditor de Arte: Luís Ricardo CâmaraAssistente de produção: Rogério YamamotoCapa e ilustrações desta edição: MaringoniSecretaria: Alexandra M. Carillo e Aparecida de Fátima dos R. PaivaDistribuição: Marcelo Chaves e Walter dos AnjosRefeitório: Ivanilda Comotti RamosTiragem: 5.000 exemplaresGráfica: Copypress<strong>Adusp</strong> - S. Sind.Av. Prof. Luciano Gualberto, trav. J, 374CEP 05508-900 - Cidade Universitária - São Paulo - SPInternet: http://www.adusp.org.br • E-mail: imprensa@adusp.org.brTelefones: (011) 3813-5573/3091-4465/3091-4466 • Fax: (011) 3814-1715A Revista <strong>Adusp</strong> é uma publicação quadrimestral da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo,destinada aos associados. Os artigos assinados não refletem, necessariamente, o pensamento da Diretoria da entidade.Contribuições inéditas poderão ser aceitas, após avaliação pela Comissão Editorial.


Os tentáculos do oligopólioDecidimos dedicar esta edição ao tema da(s) mídia(s), que, como se sabe, vem ganhando crescente importâncianas últimas décadas no mundo todo. No Brasil, os principais meios de comunicação há muito deixaram deser empresas frágeis e desorganizadas, “gigantes de pés de barro” como as definiu o historiador Nelson WerneckSodré em seu clássico estudo sobre a imprensa brasileira. O que se tem hoje é uma mídia de mãos grandes e fortes,que constituiu conglomerados empresariais e ascendeu ao primeiro escalão da economia nacional, exibindoreceitas que em alguns casos já se contam em bilhões de reais por ano. Uma mídia que dita comportamentos, forjaconsensos, intervém abertamente na disputa política. Em resumo, um poderoso protagonista da cena brasileira.Na reportagem de abertura, Antonio Biondi e Cristina Charão revelam as investidas dos grupos de mídiasobre a área das telecomunicações, sua associação a capitais estrangeiros, as sociedades que mantêm entre si, eo modo como vários deles exercem a propriedade cruzada de diversos meios: TV, rádio, jornais, revistas, Internet,distribuidoras. Sem esquecer seus investimentos em áreas tão díspares como bancos e shopping centers.Venicio Lima discorre sobre os mecanismos legais que dão vida ao chamado “coronelismo eletrônico”, fenômenoque se apóia na concessão de licenças para funcionamento de emissoras de rádio e TV como moedade troca de natureza política. Cláudia Lahni retoma a questão sob o ângulo das rádios comunitárias autênticas,que continuam sufocadas e reprimidas pelo governo, e defende a possibilidade de legislação municipal paraessas emissoras de inegável potencial democrático.Rosaly Brito rasga a fantasia barata dos reality shows, jogando luz sobre a futilidade planejada do “Big BrotherBrasil” (cuja mais recente versão teve início em janeiro de 2008), programa emblemático da disposição daRede Globo de sacrificar tudo no altar do lucro.Bia Barbosa e Laurindo Lalo Leal examinam, em seus artigos, a TV Brasil, polêmica iniciativa do governofederal de criar uma TV pública. São pontos de vista diferentes, permeados embora de convergências, e quecontribuem para enriquecer uma discussão que está apenas no início. Muito em voga, também, a questão daTV Digital é tratada nesta edição de modo esclarecedor por Almir Almas, que cuida de contextualizar o surgimentoda nova tecnologia, apontar caminhos, levantar dúvidas.Gustavo Gindre, outro desmistificador, conta-nos que a Internet nada tem de anárquico, e traça o roteiroda governança da rede, constituída por uma série de órgãos. Mapeia os problemas existentes, incluídos os quedizem respeito especificamente ao Comitê Gestor da Internet no Brasil.Finalmente, o jornalismo. Lúcio Flávio Pinto, em texto de cunho muito pessoal, relata sua trajetória comojornalista, tendo como mote seu Jornal Pessoal, um quinzenário que acaba de completar vinte anos de vida.Neste percurso, repassa e discute as relações entre jornalismo e academia. Bernardo Kucinski, ao avaliar osavanços da luta pela democratização dos meios de comunicação no Brasil, dedica atenção especial à questãodo jornalismo. Os movimentos sociais, diz, finalmente compreenderam que informação e comunicação sãoquestões estratégicas e que não basta denunciar o oligopólio midiático: é preciso criar alternativas a ele.RenovaçãoA Comissão Editorial da Revista <strong>Adusp</strong> acaba de passar por um processo de renovação da sua composição.Deixaram a Comissão, ao final de seus mandatos (eleitos que foram pelo Conselho de Representantes da<strong>Adusp</strong>), os professores Hélio Morishita e Paulo Eduardo Mangeon Elias. Também se desligou da Comissão oprofessor José Marcelino de Rezende Pinto, por haver passado a integrar a Diretoria da <strong>Adusp</strong>.Os novos membros da Comissão, igualmente eleitos pelo Conselho de Representantes, são os professoresDilma de Melo e Silva, Flávio Tavares e Maurilane Biccas.Aos que saíram, nossos agradecimentos pela intensa colaboração com a revista ao longo de vários anos. Aosque chegam, nossas boas-vindas.O Editor


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Terra de gigantesAntonio Biondi e Cristina CharãoJornalistas, membros do Intervozes-Coletivo Brasil de Comunicação SocialA concentração dos meios de comunicação no Brasil seguecomo um dos pontos mais vulneráveis da nossa já frágildemocracia. A mídia grande é o principal partido político no Brasilcontemporâneo. Enquanto os grupos do setor se organizam paraampliar o domínio hoje exercido, empresas estrangeiras buscamformas de disputar o mercado. Sobrará espaço para sociedade eEstado desenharem uma agenda voltada ao interesse público?


Revista <strong>Adusp</strong>Poucas famílias dominama comunicação noBrasil, enquanto milhõesse calam. A comunicaçãoé um dosrincões do país onde ademocracia ainda não chegou. A mídiagrande é o principal partido políticono Brasil contemporâneo. Asimagens utilizadas para demonstrara concentração do setor de comunicaçãono país são muitas e a maioriadelas, infelizmente, corretas.A realidade brasileira, hoje, éde que os grupos Globo, SBT, Record,Abril, Folha, Estado, RedeBrasil Sul (RBS) e Bandeirantesexercem um amplo domínio dosetor, numa clara configuraçãode oligopólio. A concentraçãofortalece esses grupos politicamentee afeta diretamente ademocracia no país — fenômenoscomumente analisados porespecialistas.Para se entender como talquadro é hoje possível (e comoé possível alterar tal quadro), éfundamental compreender como osprincipais grupos de comunicaçãodo país se organizam. Os setoresda economia por onde avançam osinteresses de cada empresa, seus sócios,os desdobramentos regionaisde maior relevância. A atuação dosgrupos em um cenário de convergênciatecnológica. E de que formaabocanham as verbas públicasno Brasil, ao mesmo tempo em queimpõem agendas aos governos, receososde sua força e supostamentedependentes de seu apoio.Em outras palavras, não se podedeixar de pensar nos grupos de mídiacomo empresas, jogando o jogo docapital, avançando e retrocedendocom os mercados. Empresas que, claro,lidam com um capital simbólicoque certamente multiplica seu pesona economia e na política nacionais.Um capital que, muitas vezes, é usadopara burlar e, outras tantas vezes,reescrever as regras mercadológicas.Alguns exemplos mais recentesde como as grandes empresasmidiáticas defendem a todo custoseus negócios, exemplos restritos aoOs grandesgrupos passaram porreestruturações forçadaspelo endividamento, que veioora de aventuras no ramo datelefonia (Grupo Estado e RBS),ora da confiança exageradano crescimento do mercadoda TV por assinatura eInternet banda larga(Globo e Abril)Janeiro 2008campo da comunicação: a escolhado padrão japonês de TV Digital,garantindo a permanência do modelode negócios da TV aberta porvários anos; a aprovação, em 2002,da proposta de emenda à Constituiçãoque permitiu o ingresso de capitaisestrangeiros nas empresas atéum limite de 30%; a não obrigatoriedadeda Classificação Indicativana televisão, de forma — novamente— a não interferir no modelo daTV aberta; ou mesmo a não-regulamentaçãode pontos básicos parao fortalecimento e aproveitamentode conteúdo regional para o setor.Neste reescrever constante dasregras, pelo menos seis dos oitograndes conglomerados de mídia doBrasil mantêm-se, também, entre osmaiores grupos empresariais do país,por receita. A edição 2007 de “ValorGrandes Grupos”, anuário do jornalValor Econômico, lista os gruposSílvio Santos (na 97ª posição), Abril(105ª), RBS (178ª) e Estado (183ª).Outros dois gigantes, OrganizaçõesGlobo e Grupo Folha — exatamenteos que compartilham a propriedadede Valor Econômico — não sãocitados no anuário, e conseguirinformações sobre o faturamentode ambos não é tarefa fácil,apesar de se organizarem comosociedades anônimas (S/A), o queteoricamente exige transparêncianos balanços financeiros.Só foi possível localizar informaçõesda Folha pelo noticiário.Às vezes, do próprio grupo. Já aGlobo, apesar de fechar o acessoa seus relatórios financeiros, foimais solícita e enviou seu últimobalanço.A receita bruta da Globo Comunicaçãoe Participações (Globopar),holding que controla a maior partedos negócios das Organizações Globo(incluindo a TV, jornais, rádio eportais da internet) e tem participaçãoem outros negócios (notadamentea TV por assinatura), somouR$ 6,8 bilhões em 2006. Este valorcolocaria o grupo na 36ª posição doranking dos maiores grupos empresariaisdo país.


Janeiro 2008Já sobre o Grupo Folha, donodo jornal Folha de S. Paulo e doportal e provedor UOL, as informaçõessão mais difusas. Quandoanunciou, no início de 2005, a fusãode todas as suas operações em umasó empresa, a Folha-UOL S.A., afamília Frias, dona do grupo, afirmavaque estava consolidando o“segundo maior grupo de mídia dopaís”, com faturamento de R$ 1,3bilhão. Em 2006 o UOL faturou,sozinho, R$ 634 milhões.Record e Bandeirantes acabampor não ser citados nos anuáriosdos “grandes” do empresariado.Porém, vale destacar que a própriaRecord admite ter alcançado umfaturamento de R$ 1 bilhão em2006, estimando um acréscimode 36% em 2007. A Bandeirantesteria obtido, em 2006, algopróximo de R$ 250 milhões.Ser tão grande pode ser umproblema. E até dois anos atrás,realmente foi. Neste período,praticamente todos os grandesgrupos passaram por reestruturaçõesforçadas pelo endividamentoexcessivo. Dívidas que vieram orade aventuras no ramo da telefonia,como nos casos do Grupo Estado eda RBS; ora da confiança exageradano crescimento dos mercados deTV por assinatura e Internet bandalarga, casos da Globo e da Abril. Evalores que se viram multiplicadosquando a política cambial do governoFHC ruiu, desvalorizando o realfrente ao dólar.Os conglomerados midiáticosencontraram saídas e os resultadosque colhem são significativos. Em2005 as Organizações Globo obtiveramum lucro líqüido de R$ 1,99bilhão — um dos 20 maioresda economia nacional nesseano, não por acaso o mesmoem que o grupo apresentou amaior margem de lucro líqüidodentre todas as empresasbrasileiras: 92%, segundo oanuário “Valor 1000”, do jornalValor Econômico, edição2006. Em 2006, o lucro brutoda Globopar foi de R$ 2,8bilhões.Falar em TVpor assinatura noBrasil, hoje, implica citara Embratel/Telmex de CarlosSlim (sócia da Net Serviços),a Sky/DirecTV de RupertMurdoch e a Telefónica deEspaña (TVA). Mas os sóciose ex-sócios brasileiros vãomuito bem, obrigadoO anuário “Valor Grandes Grupos”,edição 2007, registra que oGrupo Estado obteve a melhor rentabilidadelíqüida sobre o patrimônioentre as 40 maiores organizaçõesempresariais do setor de serviços(que é parte do conjunto dos200 maiores grupos da economiabrasileira, listados pela publicação).Já a RBS auferiu o 20º maior lucrolíqüido no mesmo setor.Revista <strong>Adusp</strong>O cenário das mídias alterou-se, mas a concentraçãoAs saídas encontradas pelas grandesdas comunicações redesenharamo cenário das mídias no Brasil. Nãoa ponto, no entanto, de modificara forma ultra-concentradora comque se organizam os grupos.As novas tintas que mudaramo quadro geral vieram de gruposestrangeiros de mídia ou dasgrandes operadoras de telecomunicações.Em geral, até 2004 os negóciosdos grandes grupos estavamapoiados ou sobre capitais próprios,ou sobre fundos de investimentosinternacionais (e alguns nacionais)cuja participação no bolo de acionistas,contudo, era minoritária.Foi com o time montado destaforma que os grupos de mídia brasileirostentaram avançar sobre osetor da infra-estrutura de comunicaçãoa partir de meados da décadade 1990. O foco, já naqueles tempos,era a convergência dos serviçosde comunicação e de telecomunicação,resultado dos processos dedigitalização dos conteúdos. Pelasrazões já apontadas — excesso deeuforia e crise cambial — os tradi-


continuaRevista <strong>Adusp</strong>cionais grupos brasileiros de comunicaçãorecuaram nesta estratégia.Já não é possível, por exemplo,falar em TV por assinatura no Brasilsem citar a Embratel/Telmex de CarlosSlim (sócia da Net Serviços), oua Sky/DirecTV de Rupert Murdoch,ou a Telefónica de España (TVA).Nestes casos, há a retração da participaçãode grupos como a Globo e aAbril, e até a saída por completo dasoperações, como no caso da RBS.O movimento atual parece ser defoco total na produção de conteúdo.A Globo, por exemplo, reforça suaestratégia na Internet, comprando daItália Telecom a parcela que lhe cabiano portal Globo.com, e avança sobrea produção audiovisual (com a GloboFilmes). A RBS caminha a passoslargos, criando portais com foco regional(como a ZeroHora.com), alémde projetos de produção de conteúdoDaniel Garciapara a Internet (lançou recentementeuma série interativapelo sítio Kzuka). A Recordinvestiu pesadamente em umcentro de produção audiovisualno Rio de Janeiro.A Abril, por enquanto, foio único grupo a lançar mãode sociedades internacionaispara reforçar sua posição comoprodutora de conteúdo.Em 2006, 30% do capital dacontroladora do conglomeradofoi vendido para o grupoNaspers, da África do Sul. AFolha ensaiou o mesmo movimento:no início de 2005, chegou a anunciara fusão entre as duas grandes empresasdo grupo, a Folhapar e a UOLS.A., visando a entrada de capital daPortugal Telecom. A operação nãose concretizou e a tele portuguesapassou a ser sócia apenas do UOL.Toda esta movimentação na base,no entanto, não fez cócegas na pontado iceberg: seguem os “concentrados”de veículos, ora orbitando aoredor das grandes redes de TV, orasobrevivendo da captura do mercadopublicitário pelo prestígio conseguidopor anos de políticas editoriaisconservadoras, mas espertinhas.Como aponta a pesquisa “Os Donosda Mídia”, realizada em 2002pelo Instituto de Pesquisas e Estudosem Comunicação (Epcom), asseis redes privadas nacionais identificadasà época — Globo, SBT,Record, Bandeirantes, Rede TV!Janeiro 2008e CNT — dirigiam diretamente 47emissoras e, indiretamente, a atuaçãode 249 emissoras de TV dos 138grupos que figuram como afiliadosregionais. A estas seis redes de TVestão vinculados outros 372 veículos,entre rádios, jornais e revistas.Uma nova versão do estudo estásendo preparada pelo Epcom,mas pode-se supor que, de lá paracá, as variações foram internas aoquadro. A agressividade da Recordde Edir Macedo em sua estratégiade expansão regional pode mudaralgo da correlação de forças entreos grupos, mas não há novos atores,trazendo novos conteúdos ou forçaspolíticas para este jogo.Nem mesmo nos setores não atreladosàs limitações da distribuição decanais de rádio e TV pode-se falarem mudanças significativas. Quandose retrata os mercados de jornais,revistas ou Internet (vide quadro nasp. 10 e 11), repetem-se os mesmosnomes: Abril, Folha, Estado, Globo...Em resumo, o que se vê é o re-arranjodestes capitais, de forma que continuemcontrolando com mão grande eforte o que se lê, ouve e vê no Brasil.Sobre os autoresAntonio Biondi é jornalista. Foi repórter da agênciaCarta Maior. Membro da equipe de edição do livro Vozes daDemocracia (São Paulo, Imprensa Oficial/Intervozes, 2006).Cristina Charão é jornalista, mestranda emLetras (UFRGS). Foi repórter do jornal O Estado de S.Paulo e das revistas Galileu e Veja.Ambos são membros do Intervozes-Coletivo Brasil de ComunicaçãoSocial, entidade que luta pela democratizaçãodo direito à comunicação.ReferênciasAnuários “Valor 1000” e “Valor Grandes Grupos”, do jornal Valor Econômico, 2006 e 2007.Globopar. Balanço financeiro de 2006.Sítio www.rederecord.com.br/internacional/Sítio www.rbs.com.br/http://band.com.br/home.aspSítio http://sistemas.anatel.gov.br/sis/SistemasInterativos.asp


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>O mapa das mídiasTabela 1 – Faturamento publicitário brutoem 2007Tipo de mídia Verba (R$) %Televisão 4,88 bilhões 59,5Jornal 1,35 bilhão 16,5Revista 644,6 milhões 7,9Rádio 327,0 milhões 4,0Mídia exterior 259,6 milhões 3,2TV por Assinatura 248,7 milhões 3,0Guias e listas 238,6 milhões 2,9Internet 221,5 milhões 2,7Cinema 28,8 milhões 0,3Total 8,2 bilhões 100Fonte: Intermeios/Meio & MensagemTabela 2 – Audiência nacionaldas redes de TV* em 2006RedeParticipaçãona audiênciaGlobo 57%SBT 12%Record 12%Bandeirantes 4%Rede TV! 2%Outras 13%Total 100%Fonte: Mídia Dados 2007*População total do país, das 7h ás 24h,de segunda a domingoTabela 3 – Jornais de maior circulação (2006)VeículoGrupoMédia diária(mil exemplares)PosiçãoFolha de S. Paulo (SP) Folha 309,4 1ºO Globo (RJ) Globo 276,4 2ºExtra (RJ) Globo 267,2 3ºO Estado de S. Paulo (SP) Estado 230,9 4ºZero Hora (RS) RBS 174,6 5ºCorreio do Povo (RS) Record 157,7 6ºDiário Gaúcho (RS) RBS 152,1 7ºSuper Notícia (MG) Sempre Editora 135,2 8ºMeia Hora (RJ) O Dia 129,9 9ºO Dia (RJ) O Dia 122,2 10ºAgora São Paulo (SP) Folha 81,0 12ºJornal do Brasil (RJ) C. B. de Multimídia* 78,7 13ºEstado de Minas (MG) Diários Associados 74,4 14ºGazeta Mercantil (SP) C. B. de Multimídia* 70,8 15ºDiário de S. Paulo (SP) Globo 65,3 16ºCorreio Braziliense (DF) Diários Assocs. 55,3 18ºJornal da Tarde (SP) Estado 55,0 19ºValor Econômico (SP) Folha e Globo 49,8 21ºGazeta do Povo (PR) RPC** 47,8 22ºDiário Catatinense (SC) RBS 42,4 23ºFonte: IVC (Instituto Verificador de Circulação) / Mídia Dados 2007*Companhia Brasileira de Multimídia (Nelson Tanure/Docas Investimentos)** Rede Paranaense de Comunicação10


Revista <strong>Adusp</strong>Tabela 4 – Editoras das revistas de maior circulação(julho 2006 a junho 2007)GrupoNº de publicaçõesentre as 30 maioresPublicaçõesAbril 22 Veja e outrasPanini Brasil 3 Mônica, Cebolinha, Chico BentoAlto Astral 1 Guia AstralEditora Caras 1 CarasEditora Três 1 IstoÉGlobo 1 ÉpocaReader’s Digest 1 SeleçõesFonte: IVC / Meio & MensagemJaneiro 2008Foto: Daniel GarciaTabela 5 – Sítios de maior visitação(Outubro de 2007)SítioGoogleOrkutMSNUOLHotmailYahooGloboPortal TerraYoutubeIGNº de visitantes únicos*17,1 milhões16,4 milhões13,2 milhões10 milhões9,2 milhões8,5 milhões7,4 milhões5,4 milhões3,2 milhões2,1 milhões*Não considera locais de acesso público e coletivo,como universidades, escritórios e lanhouses,somente acessos por máquinas em domicílios(contabiliza-se um acesso por computador, semdistinguir o número de pessoas que o tenhautilizado ou as vezes que a página tenha sidoacessada)Fonte: Ibope-NielsenTabela 7 – Investimento daUnião em publicidade, pormídia (2006)MeiosInvestimento(R$ milhões)Internet 16,58Outdoor 16,72Revista 88,08Jornal 101,92Rádio 121,85Televisão 646,63Outros 63,66Total* 1.055,44*Total geral – AdministraçãoDireta (todos os órgãos) +Indireta (todas as empresas)Fonte: SecomTabela 6 – Principais redes de rádio AM/FMRedeGrupoNº deemissorasRede Gaúcha Sat RBS 130Jovem Pan Sat AM Jovem Pan 76American Sat American Sat 72Jovem Pan Sat FM Jovem Pan 53Rede Bandeirantes AM/FM Bandeirantes 51Rede Band FM Bandeirantes 37Rede Transamérica – Hits Transamérica 35Globo AM Globo 27CBN Globo 26RBS Rádio RBS 25Antena 1 Sat Antena 1 22Rede Transamérica – Pop Transamérica 12Band News Bandeirantes 6Rede Transamérica – Light Transamérica 2Fonte: Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e Núcleode Mídia da Secom (Secretaria de Comunicação Social daPresidência da República) / Mídia Dados 200711


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Organizações GloboDaniel GarciaFaturamento: R$ 6,8 bilhões (receita bruta da Globopar, holding do grupo, em 2006)Frentes de atividade em mídia: TV aberta, TV segmentada, TV por assinatura, rádio,mídia impressa (jornais e revistas), Internet (portais, provedores e acesso),cinema, gravadoraFrentes de atividade extra-mídia: shopping centersProprietários: Família MarinhoPrincipais sócios: Embratel/Telmex (62% da Net Serviços), Sky/DirecTV (72% da SkyBrasil), Telefónica de España (50% da Endemol Brasil), Grupo Folha (50%do jornal Valor Econômico)12


Revista <strong>Adusp</strong>Fruto da sinergia entre os planosde “integração nacional” do regimemilitar e os seus próprios planos deexpansão, fertilizados por um atéhoje não explicado acordo com ogrupo Time-Warner, as OrganizaçõesGlobo chegam ao século XXIcomo um dos maiores grupos empresariaisprivados do país.Não sem algum susto: em 2002,anunciou-se o default da sua controladora,a Globopar. Os investimentosfeitos em telefonia, distribuiçãode TV por cabo e satélite forammaiores do que o retorno, e nem alucrativa Rede Globo de Televisão(que cobre 98% do território nacionale abocanha 52% da audiênciada TV aberta) podia fazer fecharemas contas.A reestruturação levou à associaçãocom grandes grupos internacionais.Os caminhos para isso foramconturbados. Primeiro, foi precisogarantir a abertura dos mercados aocapital estrangeiro. Diante da suadívida, restou à Globo pressionarpela aprovação da PEC 203. Veio,então, a fusão entre Sky e DirecTV,tornando a Globo sócia do magnataaustraliano Rupert Murdoch. Emseguida, foi a vez da Net. O controleacionário passou à Telmex de CarlosSlim, via Embratel. O negócio, quecontraria os limites de propriedadeestrangeira em empresas de TV acabo, foi aprovado pela Anatel.Se de um lado abriu mão decontrolar infra-estrutura no negóciode TV por assinatura, de outrovem garantindo a supremacia naprogramação. A Net Brasil seguesob controle acionário da famíliaMarinho e é responsável por 83%do mercado de “empacotamento decanais”, ou seja, a venda de pacotesJaneiro 2008de programação para as grandesdistribuidoras nacionais, para algumasindependentes e também paradistribuidoras internacionais.O foco, agora, é a produção deconteúdo em várias plataformas.Uma opção tem sido levar para a Internettodo o arsenal produzido nassuas empresas tradicionais (a TV, osjornais e as várias rádios), apostandotambém no cinema, com a GloboFilmes. Outra, reforçar a presençanos canais segmentados (os canaisGlobosat) e na programação paraTV por assinatura — a Net Brasil.Há, ainda, as associações comempresas de distribuição de conteúdoem plataformas diversas, comoa operadora de celular Vivo, comquem a Globo tem um acordo quecontempla o “Big Brother Brasil”.O programa é o principal produtoda Endemol Brasil.Os negócios da família MarinhoTV abertaTV segmentadaTV por assinaturaJornaisInternetRádioAgências de notíciasRevistasEditoraGravadoraCinemaShopping centersRede Globo: cinco emissoras próprias, 121 afiliadasGlobosat: GloboNews, Multishow, Canais SporTV, GNT, Rede Telecine, Canal Brasil,Universal Channel, Premiere Futebol Clube, Premiere Shows, Premiere CombateGlobo InternacionalNet Brasil (programação), Net Serviços (distribuição), Sky Brasil (distribuição)O Globo, Extra, Diário de S. Paulo, Valor EconômicoGlobo.com (portal e provedor)Sistema Globo de Rádio: Globo AM (RJ, MG e SP; rede com 27 emissoras), Globo FM (RJ),CBN (RJ, SP, BH, DF; rede com 26 emissoras), 98 FM Rio de Janeiro, BH FM Belo HorizonteAgência GloboEditora Globo (Época e outros 20 títulos)Globo LivrosSom LivreGlobo Filmes (produção)São Marcos Empreendimentos Imobiliários: shopping centers Vale (São José dos Campos-SP), Interlagos (São Paulo-SP), Downtown e Botafogo Praia Shopping (Rio de Janeiro-RJ)13


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Grupo Sílvio SantosFaturamento: R$ 3,23 bilhões em 2006Frentes de atividade em mídia: TV aberta, TV por assinatura, produção audiovisualFrentes de atividade extra-mídia: setor financeiro, empreendimentos imobiliários,comércio de automóveis, comércio varejistaProprietários: Sílvio Santos e famíliaPrincipais sócios: Grupo Bandeirantes de Comunicação, HMT&F - Hicks Muse, Tate &Furst e LAIF - Latin American Infrastructure Fund - GE Capital e AIG (na TVCidade). Rede Accor de Hotéis (Sofitel Jequitimar Guarujá)A diversidade dos negócios doempresário Senor Abravanel, ouSílvio Santos, justifica que o grupoque controla tenha seu nome, ao invésde tomar emprestado o do SistemaBrasileiro de Televisão (SBT).Mas não é difícil imaginar que, sema rede de TV, seus empreendimentos— que vão de um banco comercialà produção de cosméticos, passandopor shopping centers e hotéis— não seriam tão prósperos.A rede do SBT é, em númerode emissoras e retransmissoras, asegunda maior do país. São 8 geradoraspróprias e 98 emissoras afiliadas,cobrindo 98% do territórionacional. Em diferentes Estados, 47grupos regionais de comunicaçãoestão afiliados à rede de TV de SílvioSantos. O segundo lugar em audiênciae faturamento, no entanto,vê-se ameaçado pela agressiva ampliaçãoda Rede Record. Em 2006,o SBT foi a única operação do GrupoSilvio Santos a dar prejuízo.Não há sinais, no entanto, deque o SBT e o próprio Grupo SílvioSantos venham a alterar a estratégiaque colocou o grupo entreos maiores do país: a fórmulainiciada pela dobradinha Baú daFelicidade/SBT, que deu origema toda a série de investimentosno setor financeiro voltado parao mesmo público do programade auditório do controlador dogrupo.O Banco Panamericano, pontade-lançado grupo no setor financeiro,é o 32º no ranking de ativostotais do Banco Central.Os negócios de Sílvio SantosTV abertaTV a caboComércio varejistaComércio e capitalizaçãoServiços financeirosEmpreendimentos imobiliáriosHotelariaCosméticos8 emissoras próprias, 98 emissoras afiliadasTV Alphaville, TV CidadeRede Baú da FelicidadeBaú da Felicidade, Liderança CapitalizaçãoBanco Panamericano, Panamericano Cartões de Crédito, PanamericanoLeasing, Panamericano Seguradora, Consórcio PanamericanoSisan Empreendimentos Imobiliários, Shopping Vimave, Shopping Bela VistaSofitel Jequitimar GuarujáSSR Cosméticos (marcas Hydrogen e Jequiti)14


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Grupo AbrilFaturamento anual: R$ 2,66 bilhões em 2006Frentes de atividade: mídia impressa (revistas), gráfica, distribuição, livros didáticos,TV segmentada e TV por assinaturaProprietários: Roberto Civita e famíliaPrincipais sócios: Naspers Group (30% da holding Abril S.A), Telefónica de España(49% da TVA), Viacom Inc. (30% da MTV Brasil)Tal e qual a política editorial desuas principais revistas, os negóciosdo Grupo Abril também são marcadospela polêmica. A começar pelasua principal parceria, com o grupoNaspers, da África do Sul, intimamenteligado ao Partido Nacional,pilar político do apartheid que vigorouaté os anos 1990.A venda de 30% da Abril S.A.,controladora do grupo, para a Naspers,em 2006, foi a saída encontradapelos Civita para superar a criseinstaurada com o fim da paridadedólar-real, em 1999. A Abril investirapesadamente na Internet — noportal Universo Online (UOL) e noserviço de banda larga Ajato — ena TV por assinatura TVA, contraindoaltas dívidas.Os negócios da AbrilRevistasTV por assinaturaTV segmentadaDistribuição e logísticaGráficaLivros didáticosEditora Abril (Veja e outros 110 títulos)TVAMTV BrasilDinap, Fernando ChinagliaGráfica AbrilEditora Ática, Editora ScipioneO lance, entretanto, não foi suficientepara que a Abril mantivessesua presença no mercado de TV paga.Em um negócio aprovado pelaAnatel, a Telefónica adquiriu parteda TVA, assumindo as operações emtecnologia MMDS e o serviço AJato,além da maior parte das ações daoperação via cabo no Estado de SãoPaulo. A polêmica, aqui, gira em tornodo controle de uma concessionáriade TV a cabo por uma empresaestrangeira. A Anatel desconsideroua presença da Telefónica no negócio.Apesar destes recuos pontuais,os Civita mantêm sua posição comoplayers importantes do mercadode comunicação, sustentada pelogrande número de revistas que editam.Segundo dados divulgados pelaeditora, a Abril concentra cercade 56% da receita publicitária dosetor revista.Em outubro de 2007, o GrupoAbril anunciou a aquisição da FernandoChinaglia Distribuidora, a segundamaior empresa do país em distribuiçãode impressos (revistas, especialmente).A compra garante aos Civitaquase 100% do mercado de distribuição,além da oportunidade de controlara circulação dos produtos de suasconcorrentes. A operação está sendocontestada no Conselho Administrativode Defesa Econômica (Cade).A Abril ainda detém fatia importantedo mercado de livros didáticos.Cerca de 30% das publicaçõesdeste setor são editadas pela Áticae Scipione, controladas pelo grupo.15


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Grupo FolhaFaturamento: R$ 1,434 bilhão em 2006 (estimado a partir de notícias publicadaspelos veículos do grupo)Frentes de atividade: Mídia impressa (jornais), conteúdo para Internet, gráfica,pesquisas de mercadoProprietários: Família FriasPrincipais sócios: Portugal Telecom (29% da Universo Online S.A.), OrganizaçõesGlobo (50% do jornal Valor Econômico), Grupo Estado (50% da São PauloDistribuição e Logística Ltda.)16


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Os negócios da família FriasDaniel GarciaAinda sem explorar o filão daradiodifusão, a família Frias garanteo seu lugar entre os grandesgrupos de mídia brasileiros graçasà influência do seu negócio de origem,o jornal Folha de S. Paulo, eo gigantismo do portal e provedorUniverso Online (UOL).A Empresa Folha da ManhãS.A. vê a sua principal publicaçãoaumentar seu prestígio quando resolveinverter a imagem deixadapelas histórias de colaboração diretacom o regime militar, apostandoem episódios de cunho nacional,como a campanha das Diretas e oimpeachment de Collor. A identidadecom a classe média intelectualizadapaulistana garantiu à Folhade S. Paulo o primeiro lugar em tiragem(309 mil exemplares diários)e circulação e a “modernização”da empresa, gerando lucros quepermitiram aos Frias alçar vôos emoutras mídias.A aposta no UOL, feita inicialmenteem parceria com o GrupoAbril, sobreviveu à bolha da Internet.A saída dos Civita abriu espaçopara o investimento da PortugalTelecom e também para a aberturado capital do UOL na Bolsa de Valores.Hoje, os 972 mil assinantes emilhões de internautas visitando suaspáginas garantem um dos maioresfaturamentos em publicidadena rede e fazem pequenas mídias(revistas de editoras médias e pequenas,como Trip ou Raça Brasil)reféns desta audiência.No fim dos 1990, a Folha associa-seàs Organizações Globo paralançar o jornal Valor Econômico.As informações sobre o GrupoFolha são poucas. Os relatórios deinformações financeiras da holdingFolhapar não são abertos à consulta.Além disso, um dos principaisanuários da economia brasileira,publicado pelo Valor, omite as informaçõessobre o grupo. No especial“200 maiores grupos” o GrupoFolha não é citado, apesar de seufaturamento, estimado com baseem notícias publicadas pelo própriojornal Folha de S. Paulo, superar oauferido pelo concorrente GrupoEstado, que consta da lista.JornaisInternetAgências de notíciasInstituto de PesquisasEditoras e gráficasDistribuição e LogísticaFolha de S. Paulo, Agora São Paulo, Valor EconômicoUOL (portal e provedor), BOL (portal e provedor), Folha OnlineAgência Folha, InvestFolha, FolhaNewsDataFolhaPlural Editora e Gráfica, Publifolha, Folha GráficaTransfolha, São Paulo Distribuição e Logística17


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Rede Record de Rádio e TelevisãoFaturamento: R$ 1 bilhão em 2006 (com estimativa de R$ 1,36 bilhão para 2007)Frentes de atividade: TV aberta, rádio, jornaisProprietários: Edir Macedo Bezerra e Ester Eunice Rangel Bezerra18


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Daniel Garcia“A caminho da liderança”, martelao sítio da Record. Para analistas,a Record pode alcançar osíndices de faturamento e audiênciada Globo em dez anos. A Record,porém, afirma que pretendetornar-se líder em cinco anos.O negócio dos bispos da Universalteve início em 1989, quandoEdir Macedo comprou a emissoradas mãos de Silvio Santos. A redeinveste sem parar, seguindoos passos da Globo ao fazer investimentosvultosos em novelas,no jornalismo e nas competiçõesesportivas: adquiriu, por exemplo,os direitos de transmissão dasOlimpíadas de 2012.Entre 2004 e 2006, o faturamentodo grupo dobrou, atingindoR$ 1 bilhão no ano passado.Em 2007, a emissora lançou a RecordNews, canal de notícias detelevisão 24 horas. A TV Recordinveste pesadamente também emsucessos de Hollywood, e já chegaa mais de 130 países. Tem escritóriosem Lisboa, Londres, Madri,Luanda e Maputo.Segundo estimativas do mercado,cerca de 25% do faturamentobruto da Record têm origemem investimentos publicitáriosda Igreja Universal na emissora.Edir Macedo, principal acionistada Record, é também o mais notáveldos integrantes da cúpulada Universal.Os negócios da RecordTV abertaTV via satéliteRádioJornaisInternetRede Record: 5 concessões próprias, 15 filiais e 80afiliadas em todo o país. Record News.Rede FamíliaNove canais da Record Internacional e Record EuropaEmissoras próprias na capital e interior paulista, emdiversas capitais de Estados brasileiros, assim como emMadrid e Lisboa (dados da Anatel e da Record)Correio do Povo (RS) e Hoje em Dia (MG)Portais Mundo Record, Mundo Record News e CPovo.Net19


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Grupo RBSReproduçãoFaturamento:R$ 889 milhões em 2006Frentes de atividade em mídia:TV aberta, TV segmentada,rádio, mídia impressa (jornais),distribuição, Internet (portais),gravadora, empresa demarketingFrentes de atividade extra-mídia:certificação e administração rural, Fundação MaurícioSirotsky SobrinhoSócios-proprietários: Família Fernando Ernesto Souza Corrêa, Sucessores deMaurício Sirotsky Sobrinho e Família Jayme Sirotsky20


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Os planos já foram mais ambiciosose incluíam fazer parte da elitedas telecomunicações do país.Ainda que não tenham se consolidado,o Grupo Rede Brasil-Sul(RBS), do Rio Grande do Sul, seguefigurando entre os conglomeradosdo setor, o único fora do eixoRio de Janeiro-São Paulo, seja porconta do seu faturamento, seja pelotamanho de suas operações.Os vôos mais altos incluíram ocontrole de empresas de TV a cabo(a RBS foi uma das fundadoras dapoderosa Net) e de provedores deInternet. E o mais alto deles, o dasoperações de telefonia fixa e celularna região Sul. Mas a combinação decrise cambial e lances de mercado— como a saída da Telefónica deOs negócios da RBSEspaña das operações de telefoniano Rio Grande do Sul, deixandoa RBS sem condições de prosseguirno negócio — fez com que, aospoucos, o grupo gaúcho deixasse deser um player de infra-estrutura. Are-organização resultou em demissões,mas o saldo econômico e políticopara o grupo não é negativo.A RBS é a empresa brasileiraque, sozinha, controla o maiornúmero de emissoras de TV: 20ao todo, no Rio Grande do Sul eem Santa Catarina. Orgulha-se deser a mais antiga afiliada da RedeGlobo, mas ganhou espaço fazendoexatamente o que outros monopóliosregionais não fizeram:apostou em tecnologia e numaforte estrutura comercial. Por isso,não depende economicamenteda madrinha.Quanto ao rádio, o sítio da empresaconta 26 emissoras, mas o alcancedas redes que ela lidera é bemmaior. Só a Rede Gaúcha SAT reúne130 emissoras. Em mídia impressa,são oito jornais diários. Tamanhoé seu alcance que a recente aquisiçãodo jornal A Notícia, de Joinville,provocou a abertura de processopelo Ministério Público Federal porconcentração de propriedade, poisa RBS tornou-se dona dos quatrojornais diários de Santa Catarina.Segundo “Valor – Grandes Grupos”(2007), a RBS obteve o 20 o maiorlucro líquido do país em 2006 entreos grupos do setor de serviços, comR$ 142 milhões.TV abertaTV “comunitária”TV segmentadaJornais diáriosRádioInternetEditoraGravadoraDistribuição e logísticaMarketing “jovem”Certificação eadministração rural18 emissoras (“RBS TVs”)TV Com Porto Alegre, TV Com FlorianópolisCanal RuralZero Hora, Diário Gaúcho, Diário de Santa Maria, Pioneiro, Diário Catarinense, Jornalde Santa Catarina, Hora de Santa Catarina, A Notícia26 emissoras próprias, organizadas em redes: Rede Gaúcha Sat (com 129 afiliadas),Rede Atlântida, Rede Itapema, CBN 1340, CBN Diário, Farroupilha, Cidade, MetrôClicRBS (portal), Zero Hora.com (portal), Hagah (portal), Kzuka (portal)RBS PublicaçõesOrbeat MusicViaLogKzukaPlanejar21


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Grupo EstadoFaturamento: R$ 847 milhões em 2006Frentes de atividade: mídia impressa (jornais), rádio, agência de notícias, gráfica,conteúdo para Internet, marketing direto (listas), TV abertaProprietários: Família MesquitaSócio: Grupo Folha (50% da São Paulo Distribuição e Logística Ltda.)22


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Os negócios do EstadãoO Grupo Estado foi destacadopela publicação “Valor – GrandesGrupos” (2007) como o grupo demaior rentabilidade patrimonialde todo o país no setor de serviços,com um índice de 443,7%sobre o patrimônio líqüido dogrupo. Dentre todos os grandesconglomerados de mídia, o GrupoEstado segue sendo o mais tradicionalnegócio de família. Os Mesquitaresistem a abrir o capital daempresa e a assumir sociedadescom outros grupos — exceção feitaà operação conjunta na distribuiçãodos jornais O Estado de S.Paulo (230 mil exemplares/dia) eJornal da Tarde (55 mil exemplares/dia)com seu maior concorrente,o Grupo Folha.Também mantêm seus negóciosarraigados no território paulista.Além dos jornais, a operaçãode rádios (sob a marca Eldorado)é voltada para o Estado de SãoPaulo. A exceção é a concessãode uma emissora de TV no Maranhão,no município de Santa Inês.Recebida em 2001, a concessãofoi obtida com a transferência deuma outorga na pequena cidadepara a Rádio Eldorado Ltda., doGrupo Estado. A transferência,autorizada pelo presidente FernandoHenrique Cardoso, burlavanaquele momento o processo licitatórioexigido para outorga deconcessões de TV, criado no própriogoverno FHC.Com o sinal gerado no Maranhão,os Mesquita pretendiamvoltar ao seu reduto com retransmissorasem São Paulo. Mas ofavor veio em má hora. Poucoantes, empolgada com a paridadeentre dólar e real, a família Mesquitahavia se lançado no mercadode telefonia, participandoda operadora de celular BCP. Oprejuízo foi compensado com severoscortes de pessoal e a postergaçãodo projeto da emissorade TV, que até hoje não foi ao ar.O canal em Santa Inês é usadopara retransmitir o sinal da TVAparecida.JornaisRádioAgência de notíciasInternetGráficaMarketing diretoTV abertaO Estado de S. Paulo, Jornal da TardeRádio Eldorado FM (SP), Rádio Eldorado AM (SP)Agência EstadoPortal Estadão.com.br, ZAP (classificados)OESP GráficaOESP Mídia – Listão OESPTV Eldorado de Santa Inês (MA) e cinco retransmissoras (SP)23


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Grupo BandeirantesFaturamento: ?Setores de atividade: TV aberta, rádio, TV segmentada, mídia impressa (jornais), TVa caboProprietários: Família SaadPrincipais sócios: Grupo Silvio Santos, HMT&F - Hicks Muse, Tate & Furst e LAIF -Latin American Infrastructure Fund - GE Capital e AIG (na TV Cidade) eGamecorp (PlayTV)24


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008ReproduçãoNascido há 70 anos, o Grupo Bandeirantesde Comunicação seguefuncionando dentro dosseus padrões: forte presençaem rádio, especialmenteno estado de São Paulo,e na TV aberta. Na suapágina eletrônica, afirmaser o “maior grupo derádio do país”. São seisredes, entre elas a RedeBandeirantes (com 51emissoras), a Band FM(com 37) e a BandNews(com 6).Na TV aberta, a RedeBandeirantes mantém-sena quarta posiçãoem audiência média,com 4,3%. A Rede21, segunda do grupo, recentementerebatizada PlayTV, funcionatambém em sinal aberto e temapostado em programação para opúblico jovem, baseada em cartoonse games. É uma controvertidaparceria com a Gamecorp,empresa produtora de softwarese games que tem como um dossócios Fábio Luís Lula da Silva,filho do presidente da República.Nos últimos anos, a Bandeirantesoptou também por diversificara produção de conteúdopara TV, criando canais segmentadosque são distribuídos porparabólica ou por operadoras deTV por assinatura. O grupo possuiuma programadora de TV porassinatura, a Newco, que comercializaos canais BandNews, BandSportse TerraViva.Os negócios da Família SaadTV abertaRádioTV segmentadaTV por assinaturaRede Bandeirantes: 8 emissoras próprias, 71 emissoras afiliadas. Play TVRede Bandeirantes AM/FM, Rede Band FM, Rede BandNews, Nativa FMBandNews, BandSports, TerraVivaNewco (programadora), TV Cidade (operadora de TV a cabo)25


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>As concessõesde radiodifusãocomo moeda debarganha políticaVenício A. de LimaPesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de BrasíliaDaniel GarciaManifestação por mais transparência nas concessões (São Paulo, 5/10/07)26


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008O coronelismo eletrônico — a utilização das concessões deradiodifusão como moeda de barganha política — é umaprática que exige o compromisso da participação recíprocatanto do poder concedente como do concessionário que recebea outorga e explora o serviço público. É um fenômeno do Brasilurbano da segunda metade do século XX, que resulta, dentreoutras razões, da opção que a União fez, ainda na década de 30,pelo modelo de outorga, a empresas privadas, da exploração dosserviços públicos de rádio e TV (trusteeship model)Ocoronelismo eletrônicoé uma práticaantidemocrática comprofundas raízes históricasna políticabrasileira que perpassadiferentes governos e partidospolíticos. Através dela se reforçamos vínculos históricos que sempreexistiram entre as emissoras de rádioe televisão e as oligarquias políticaslocais e regionais, e aumentamas possibilidades de que um númerocada vez maior de concessionáriosde radiodifusão e/ou seus representantesdiretos se elejam paracargos políticos, especialmente comodeputados e/ou senadores. OCongresso Nacional, como se sabe,é a última instância de poder ondesão outorgadas e renovadas asconcessões desse serviço público e,mais que isso, aprovadas as leis queregem o setor. Por isso mesmo, acontinuidade do coronelismo eletrônicose constitui num dos principaisobstáculos à efetiva democratizaçãodas comunicações no país.O que se pretende nesse textoé identificar e descrever duas das“brechas” que possibilitam ao poderconcedente — o Poder Executivoe o Legislativo — utilizar a concessãode emissoras de radiodifusãoe a transformação de retransmissorasem geradoras como moedas debarganha política.A utilização das concessões deradiodifusão como moeda de barganhapolítica é uma prática que, aexemplo de seu referente histórico— o coronelismo 1 — exige o compromissoda participação recíprocatanto do poder concedente comodo concessionário que recebe a outorgae explora o serviço público.O coronelismo eletrônico é umfenômeno do Brasil urbano da segundametade do século XX, queresulta, dentre outras razões, da opçãoque a União fez, ainda na décadade 30, pelo modelo de outorga,a empresas privadas, da exploraçãodos serviços públicos de rádio e televisão(trusteeship model). Resultatambém das profundas alteraçõesque ocorreram na política brasileiracom a progressiva centralidade damídia iniciada durante os anos deregime militar (1964-1985).Emissoras de rádio e TV,mantidas em boa parte pelapublicidade oficiale articuladas com as redesnacionais dominantes,dão origem a um tipo depoder agora não maiscoercitivo, mas criadorde consensos políticosEmissoras de rádio e televisão,mantidas em boa parte pela publicidadeoficial e articuladas com asredes nacionais dominantes, dão27


Janeiro 2008origem a um tipo de poder agoranão mais coercitivo, mas criadorde consensos políticos. São essesconsensos que facilitam (mas nãogarantem) a eleição (e a reeleição)de representantes — em nívelfederal, deputados e senadores— que, por sua vez, permite circularmentea permanência do coronelismocomo sistema.Ao controlar as concessões, onovo coronel promove a si mesmo eaos seus aliados, hostiliza e cerceiaa expressão dos adversários políticose é fator importante na construçãoda opinião pública, cujo apoio édisputado tanto no plano estadualcomo no federal.No coronelismo eletrônico, portanto,a moeda de troca continuasendo o voto, como no velho coronelismo.Só que não mais com basena posse da terra, mas no controleda informação, vale dizer, na capacidadede influir na formação daopinião pública.A recompensa da União aos coronéiseletrônicos é de certa formaantecipada pela outorga e, depois,pela renovação das concessões doserviço de radiodifusão, que conferea eles poder na disputa dosrecursos para os serviços públicosmunicipais, estaduais e federais.Por tudo isso, a continuidade daprática depende não só da existênciade “brechas” legais que possibilitemo uso das concessões, mastambém da exploração delas porpolíticos no exercício de mandatoeletivo. Trata-se, portanto, de umaprática política de face dupla.Poder concedente. Do ponto devista do poder concedente, a Constituiçãode 1988 exigiu a realizaçãode licitação para a concessão deserviços públicos. Diz o artigo 175:“Incumbe ao Poder Público, naforma da lei, diretamente ou sob regimede concessão ou permissão, sempreatravés de licitação, a prestaçãode serviços públicos.”Regulamentada pela L ei8.666/1993, a norma do artigo 175 foiestendida ao serviço público de radiodifusãopelo Decreto 1720/95 quealterou o Regulamento dos Serviçosde Radiodifusão (Decreto 52.795 de31/10/1963). A partir de então, as outorgasde radiodifusão só poderiamser feitas por meio de licitação.Além disso, a Constituição de1988 também determina no § 1ºdo seu artigo 223 que os atos deoutorga e renovação de concessõesde radiodifusão deverão ser apreciadospelo Congresso Nacional. OPoder Executivo passou, portanto,a compartilhar o seu poder de outorgacom o Congresso Nacional.Mesmo assim, ele continua a utilizaras concessões de radiodifusão— comercial, educativa e comunitária— como moeda de barganhapolítica. Alguns exemplos relativosà radiodifusão educativa serão mostradosa seguir.Concessionários. Já do pontode vista dos concessionários queexploram o serviço de radiodifusão,o Código Brasileiro de Telecomunicações(CBT, Lei nº. 4117/62),que completa 45 anos em agosto de2007, determina que quem estiverem gozo de imunidade parlamentarnão pode exercer a função dediretor ou gerente de empresa concessionáriade rádio ou televisão (§único do Artigo 38). Esta normafoi confirmada pelo RegulamentoRevista <strong>Adusp</strong>dos Serviços de Radiodifusão queexige, como um dos documentosnecessários para habilitação ao procedimentolicitatório, declaração deque os dirigentes da entidade “nãoestão no exercício de mandato eletivo”[n. 2, alínea d), § 5º do artigo15 do Decreto 52.795/63].A Constituição de 1988 tambémproibiu que deputados e senadoresmantivessem contrato ou exercessemcargos, função ou emprego remuneradoem empresas concessionáriasde serviço público (letras a. eb. do item I do Artigo 54).Mesmo assim, há registros dautilização de emissoras de rádio etelevisão por políticos “no exercíciode mandato eletivo” em seu benefíciopessoal e interesse privado, pelomenos desde o início da década de80 do século passado 2 . Além disso,pesquisas mais recentes revelamque deputados federais concessionáriosde radiodifusão chegam atémesmo a votar a favor da renovaçãodas suas próprias concessões naCâmara dos Deputados 3 .“Brechas” legais. Registre-seque, apesar de o Executivo e o Legislativocompartilharem o poderde concessão, desde a Constituiçãode 1988, o Executivo continua, naprática, a ter maior controle sobreas concessões, até porque éno Ministério das Comunicações(MiniCom) que se inicia o longoprocesso burocrático que pode determinar,em si mesmo, quem equando receberá ou não receberáuma concessão 4 .Quais as “brechas” legais quepossibilitam a continuidade da práticapolítica do “coronelismo eletrônico”no Brasil do século XXI?28


Revista <strong>Adusp</strong>“Brecha” número 1:As outorgas de radiodifusãoeducativa são dispensadasde licitação 5Quando o presidente FernandoHenrique Cardoso assinou o Decreto1720, em novembro de 1995, muitosacreditavam que a utilização dasconcessões de radiodifusão comomoeda de barganha política haviachegado ao fim no Brasil. O Decretorecebeu aprovação calorosa tantode setores comprometidos com ademocratização das comunicaçõescomo de parte da grande mídia.A revista Veja, por exemplo,quando o MiniCom anunciou aabertura das primeiras licitações jádentro dos novos critérios, publicounota sob o título “Fim de um ciclo”,na qual se lia:“ao anunciar (...) que abrirá licitaçõespara 610 novas emissoras derádio e televisão e definir as normaspara a TV por assinatura, o Ministériodas Comunicações encerrou umciclo histórico de manipulação políticadessa área. (...) Com isso, o MiniCom(...) abre mão de uma moedade barganha que no passado resultouna entrega para políticos de pelo menos27% das emissoras de televisãoe 40% das rádios do país” (Edição1462 de 18/9/96, p.39).Aparentemente passou despercebidoà época que o Decreto 1720/95,embora importante, incidia somentesobre as emissoras de radiodifusãocomercial 6 que, aliás, vinhamde uma avalanche de concessões aofinal do governo do general Figueiredoe ao longo do governo de JoséSarney, que se tornou exemplo históricode “coronelismo eletrônico” 7 .O mais importante, todavia, éque, ao contrário do que se acreditava,uma “brecha” legal permaneceudiscretamente aberta paraa continuidade do uso, pelo PoderExecutivo, das concessões de rádioe televisão como moeda de barganhapolítica, só que agora prioritariamentepara as rádios e televisõeseducativas.O precedente, na verdade, seinicia ainda em 1967 quando foiassinado o primeiro texto legal quepositiva uma diferença entre radiodifusãoe radiodifusão educativa.O artigo 34 do Código Brasileirode Telecomunicações determina que:“As novas concessões ou autorizaçõespara o serviço de radiodifusãoserão precedidas de edital, publicadocom 60 (sessenta) dias deantecedência (...).”No entanto, o § 2º do artigo 14do Decreto-lei 236/1967 estabeleceque o artigo do CBT não se aplicaàs TVs educativas. Diz ele:“A outorga de canais para a televisãoeducativa não dependerá dapublicação do edital previsto do artigo34 do Código Brasileiro de Telecomunicações.”Essa norma do Decreto Lei236/767, por incrível que pareça,“sobreviveu”, inclusive, à exigênciade licitação estabelecida pelo artigo175 da Constituição de 1988,acima referido.A exceção para as TVs educativasfoi confirmada pelo § 2º doinciso XV do Artigo 13 do Decreto1720/1995. Diz ele:Janeiro 2008Artigo 13. O edital será elaboradopelo Ministério das Comunicações,observados, no que e quandocouber, dentre outros, os seguinteselementos e requisitos necessáriosà formulação das propostas para aexploração do serviço:(...)XV – nos casos de concessão, minutado respectivo contrato, contendosuas cláusulas essenciais.(...)2º Não dependerá de edital a outorgapara execução de serviço deradiodifusão por pessoas jurídicasde direito público interno e por entidadesda administração indireta instituídaspelos Governos Estaduais eMunicipais, nem a outorga para aexecução do serviço com fins exclusivamenteeducativos.Reportagens publicadas pelaFolha de S. Paulo em 2002e 2006 mostraram que as“brechas” legais permitiramaos governos FHC e Luladar continuidade à práticado coronelismo eletrônicodistribuindo concessões deTVs educativas a políticosCerca de um ano depois — também,aparentemente, despercebido— o Decreto 2108 de 24/12/1996promove nova alteração no Regulamentodos Serviços de Radiodifusãoque consagra o mesmo procedi-29


Janeiro 2008mento. Está lá no § 1º do inciso XVdo Artigo 13:Artigo 13. O edital será elaboradopelo Ministério das Comunicações,observados, dentre outros, os seguinteselementos e requisitos necessáriosà formulação das propostas para aexecução do serviço:(...)XV – nos casos de concessão, minutado respectivo contrato, contendosuas cláusulas essenciais.(...)1º É dispensável a licitação paraa outorga para a execução de serviçode radiodifusão com fins exclusivamenteeducativos.Seis anos depois, em agosto de2002, uma seqüência de reportagensinvestigativas publicadas pela Folhade S. Paulo mostrava detalhadamentecomo essa brecha havia possibilitadoao governo de Fernando HenriqueCardoso, sobretudo quando eraministro das Comunicações o ex-deputadoPimenta da Veiga, dar continuidadeà prática do coronelismoeletrônico distribuindo concessões deTVs educativas a políticos aliados 8 .Na matéria inicial está escrito:Em sete anos e meio de governo,além das 539 emissoras comerciaisvendidas por licitação, FHCautorizou 357 concessões educativassem licitação. (...) A distribuição foiconcentrada nos três anos em que odeputado federal Pimenta da Veiga(PSDB-MG), coordenador da campanhade José Serra, esteve à frentedo Ministério das Comunicações. Eleocupou o cargo de janeiro de 1999 aabril de 2002, quando, segundo seuspróprios cálculos, autorizou perto decem TVs educativas. Pelo menos 23foram para políticos. A maioria doscasos detectados pelaFolha é em MinasGerais, base eleitoralde Pimenta da Veiga,mas há em São Paulo,Rio de Janeiro, EspíritoSanto, Bahia, Pernambuco,Alagoas,Maranhão, Roraima eMato Grosso do Sul.Da mesma forma,em junho de 2006,novamente a Folha deS. Paulo publicou matériamostrando quetambém o GovernoLula outorgou TVse rádios educativas apolíticos de diversospartidos 9 . A reportageminforma que:O governo Lula reproduziu umaprática dos que o antecederam edistribuiu pelo menos sete concessõesde TV e 27 rádios educativasa fundações ligadas a políticos. (...)Entre políticos contemplados estãoos senadores Magno Malta (PL-ES)e Leonel Pavan (PSDB-SC). A listainclui ainda os deputados federaisJoão Caldas (PL-AL), WladimirCosta (PMDB-PA) e Silas Câmara(PTB-AM), além de deputadosestaduais, ex-deputados, prefeitos eex-prefeitos. Em três anos e meio degoverno, Lula aprovou 110 emissoraseducativas, sendo 29 televisõese 81 rádios. Levando em conta somenteas concessões a políticos, significaque ao menos uma em cadatrês rádios foi parar, diretamente ouindiretamente, nas mãos deles.Como se vê pelos exemplos listados,a dispensa de licitações e o fatode poderem ser outorgadas através deRevista <strong>Adusp</strong>Maringonicritérios estabelecidos internamentepelo Ministério das Comunicaçõestêm possibilitado que as emissoras derádio e televisão educativas continuemsendo utilizadas, por governos de diferentesmatizes político-partidários, comomoeda de barganha política.Há, todavia, um fato novo. Chegourecentemente ao conhecimento públicoa decisão do juiz Jesus Crisóstomode Almeida, da 2ª Vara Federal deGoiás, tomada em abril de 2006, quepode pôr fim a essa “brecha” legal 10 .Na decisão, provocada por ação doMinistério Público Federal, iniciadaem 2003 e ampliada em 2005, o juizconsiderou inconstitucional o Decreto-lei236/1967 que, como vimos, servede base à não-exigência de licitaçãopública para as concessões de TVseducativas. Dessa forma, o Poder Executivoficou proibido de conceder novasoutorgas ou renovações de concessõessem processo licitatório. A União30


Revista <strong>Adusp</strong>recorreu ao Tribunal Regional Federalde Brasília e conseguiu suspender oefeito da sentença até que o recursoseja julgado 11 .“Brecha” número 2:As retransmissoras mistaspodem ser transformadasem geradoras educativasOutra “brecha” legal que possibilitoua continuidade da utilizaçãodas concessões de radiodifusão comomoeda de barganha política foia criação das Retransmissoras deTV (RTV) em Caráter Misto.Com o objetivo de disciplinarsituação anterior provocada peloDecreto 96.291 de 11/7/1988, foibaixada, em 1991, a Portaria Interministerialnº 236, elaborada pelo,então, Ministério da Infra-Estrutura(o Ministério das Comunicaçõeshavia sido extinto e suas atribuiçõesabsorvidas pelo Minfra). Essa Portariacriou as RTVs em Caráter Misto.Esse serviço podia ser explorado porentidades com fins “exclusivamenteeducativos” e permitia às RTVs apossibilidade de inserir programaçãoprópria, de acordo com percentuaisestabelecidos pela mesma Portaria.A RTV mista existiu até 1998,quando o Decreto 2.593 de 15/5/98instituiu o Regulamento dos Serviçosde Retransmissão e Repetição de Televisão,que extinguiu o serviço. Abriuse,todavia, a possibilidade da transformaçãodas retransmissoras mistas jáexistentes em geradoras educativas, semlicitação e de acordo com avaliação dopróprio MiniCom, como se vê no § 2ºdo Artigo 39, transcrito abaixo:Art. 39. As entidades que atualmenteexecutam o Serviço de RTVcom inserções publicitárias ou de programação,interessadas em sua continuidade,deverão solicitar ao Ministériodas Comunicações a referênciados canais que utilizam do PlanoBásico de Distribuição de Canais deRetransmissão de Televisão para ocorrespondente Plano Básico de Distribuiçãode Canais de Televisão.(...)§ 2º Efetivada a transferência decanais de retransmissão de sinais provenientesde estação geradora de televisãoeducativa, o Ministério das Comunicaçõesanalisará as solicitações recebidaspara outorga de concessão paraexecução do Serviço de Radiodifusãode Sons e Imagens Educativa.Quase um ano depois, uma Portariaconjunta do MEC e do MiniCom(Portaria Interministerial nº 651 de15/4/99) definiu o que se entendiapor “exclusivamente educativo”.No seu Artigo 3º está escrito:A radiodifusão educativa destina-seexclusivamente à divulgaçãode programação de caráter educativo-culturale não tem finalidadeslucrativas.E no Artigo 1º define-se:Por programas educativo-culturaisentendem-se aqueles que, além deatuarem conjuntamente com os sistemasde ensino de qualquer nível oumodalidade, visem à educação básicae superior, à educação permanente eformação para o trabalho, além deabranger as atividades de divulgaçãoeducacional, cultural, pedagógica ede orientação profissional, sempre deacordo com os objetivos nacionais.Janeiro 2008As geradoras educativasnunca seguiram a orientaçãodo MEC. Até hoje existeminúmeras concessões deradiodifusão educativacontroladas por diferentesigrejas — lideradas inclusivepor políticos — que fazemproselitismo religiosoNa verdade, essa definição serevelou apenas mais uma formalidade,porque as geradoras educativasnunca seguiram sua orientação.Uma prova disso é que, até hoje,existem inúmeras concessões deradiodifusão educativa controladaspor diferentes igrejas — lideradasinclusive por políticos — que fazemproselitismo religioso permanente12 .A possibilidade de transformaçãodas retransmissoras mistas emgeradoras educativas foi tambémreferendada, dois anos depois, peloDecreto 3451 de 9/5/2000 nosparágrafos 2º e 3º do seu artigo 47,transcritos a seguir:Art. 47. As entidades que atualmenteexecutam o Serviço de RTVcom inserções publicitárias ou deprogramação, interessadas em suacontinuidade, deverão solicitar aoMinistério das Comunicações atransferência dos canais que utilizamdo PBRTV para o correspondentePlano Básico de Distribuição de Canaisde Televisão.31


Janeiro 2008(...)§ 2º Efetivada a transferência decanais de retransmissão de sinaisprovenientes de estação geradorade televisão educativa, o Ministériodas Comunicações analisará as solicitaçõesrecebidas para outorga deconcessão para execução do Serviçode Radiodifusão de Sons e ImagensEducativa, com base na legislaçãoaplicável aos serviços de radiodifusãoeducativa.§ 3º Efetivada a transferência, asestações das entidades autorizadasa executar o Serviço de RTV nos canaistransferidos poderão permanecerem funcionamento, nas mesmascondições em que foram autorizadas,até a instalação da estação geradorado Serviço de Radiodifusãode Sons e Imagens.A assinatura do Decreto3451/2000, pelo então presidenteFernando Henrique Cardoso, chamoua atenção de alguns veículosde mídia impressa que, então, sederam conta da existência dessa“brecha” na legislação e investigaramas autorizações de transformaçãode retransmissoras em geradorasde televisão 13 .A Folha de S. Paulo, por exemplo,publicou em 10 de julho de2000 matéria sob o título “Governodeve criar 180 emissoras de TV”, naqual descrevia as possibilidades oferecidaspelo decreto e citava o SecretárioNacional de Radiodifusãoinformando que dos 300 pedidosde “transformação” existentes noMiniCom, 168 deveriam ser autorizados,além dos 12 que já haviamsido assinados pelo Presidente daRepública e encaminhados ao CongressoNacional.Estado natal de Pimenta daVeiga, Minas teve o maiornúmero de RTVs mistas quese tornaram geradoras. Porquase sete anos o beneficiáriode autorização para RTVmista pôde ser transformadoem concessionário de TVeducativa, sem licitaçãoA reportagem mostrou que MinasGerais era o Estado com maiornúmero de RTVs mistas transformadasem geradoras e que era tambémo Estado natal do, então, ministrodas Comunicações Pimentada Veiga. Diz a matéria:Os pedidos existentes no ministériorevelam indícios de influência política,sobretudo em Minas Gerais, Estado doministro Pimenta da Veiga (Comunicações),que conta com o maior númerodas tais retransmissoras mistas.É o caso da Fundação Educacionale Cultural João Soares Leal Sobrinho,que administra a Rádio e TVImigrantes, em Teófilo Otoni (MG).A emissora é controlada por Luís Leal,ex-prefeito e deputado federal peloPMDB. Ele já teve a concessão autorizadapelo Presidente da República.Em Formiga (MG), reduto eleitoralde Pimenta da Veiga, a concessão(também já autorizada porFHC) foi para a Fundação Integraçãodo Oeste de Minas. O presidenteé Mozart Arantes, vice-prefeitona última legislatura na chapa doRevista <strong>Adusp</strong>atual prefeito, Eduardo Brás Almeida(PSDB).Em Ubá, a TV educativa local é administradapor uma fundação presididapor Daniel Coelho, filho do deputadofederal Saulo Coelho (PSDB-MG),que até a semana passada ocupava ocargo de ouvidor da Anatel (AgênciaNacional de Telecomunicações), órgãoque fiscaliza as emissoras de TV.A retransmissora educativa da cidadede Divinópolis, também em MinasGerais, está em nome da FundaçãoJaime Martins, criada pelo pai dodeputado federal Jaime Martins Filho(PFL). Ele confirma que encaminhoua documentação com o pedido deconcessão ao ministério, mas declaranão possuir vínculo com a administraçãoda entidade.(...)Em pelo menos duas cidades mineiras,as retransmissoras são ligadasaos prefeitos: a de Três Corações e ade Lambari.Um ano e meio mais tarde, a possibilidadede “transformação” continuougarantida pelos parágrafos 1º,3º e 4º do Artigo 47 do Decreto 3.965de 10/10/2001, transcritos abaixo:Art. 47. As entidades que atualmenteexecutam o Serviço de RTV com inserçõespublicitárias ou de programação,interessadas em sua continuidade, deverãoencaminhar ao Ministério das Comunicaçõessolicitação de transferênciados canais que utilizam, do PBRTVpara o PBTV.§ 1º O Ministério das Comunicações,entendendo procedente, encaminharáa solicitação de transferênciapara a Agência Nacional deTelecomunicações.(...)§ 3º Efetivada a transferência doscanais para o PBTV na modalidade32


Revista <strong>Adusp</strong>educativa, o Ministério das Comunicaçõesanalisará as solicitações recebidaspara outorga de concessão paraexecução do Serviço de Radiodifusãode Sons e Imagens Educativa, combase na legislação aplicável aos serviçosde radiodifusão educativa.§ 4º Efetivada a transferênciados canais, as estações das entidadesautorizadas a executar o Serviço deRTV nos canais transferidos poderãopermanecer em funcionamento, nasmesmas condições em que foram autorizadas,até a instalação da estaçãogeradora do Serviço de Radiodifusãode Sons e Imagens.Essa “brecha” na legislação só vaidesaparecer com a edição do Decreto5.371, assinado pelo Presidente Lulaem fevereiro de 2005, que deixa demencionar a possibilidade de transformaçãodas retransmissoras mistas jáexistentes em geradoras educativas.Durante um período de quasesete anos — de maio de 1998 atéfevereiro de 2005 — o beneficiáriode uma autorização para exploraruma RTV mista pôde, portanto, sertransformado em concessionário detelevisão educativa, sem licitação ede acordo com critérios estabelecidospelo MiniCom.Observações finais. As duas“brechas” legais identificadas e descritasrevelam como é possível aoPoder Executivo, em aliança com oLegislativo, a prática continuada docoronelismo eletrônico.A realização de uma ConferênciaNacional de Comunicação, plural edemocrática, e a aprovação de umaLei Geral de Comunicação Eletrônicade Massa pelo Congresso Nacional,talvez se constituam na únicaJaneiro 2008oportunidade para as organizaçõesda sociedade civil verem o avanço desuas reivindicações históricas para ademocratização das comunicaçõesno Brasil. Não só em relação a ummarco regulatório que atualize a superadalegislação, mas também parase criarem mecanismos que impeçamdefinitivamente a utilização dasconcessões de radiodifusão comomoeda de barganha política.Sobre o autorVenício A. de Lima, pesquisador sênior do N<strong>EM</strong>P-UnB, professor titular de Ciência Política e Comunicaçãoda UnB (aposentado), é articulista do Observatório daImprensa e da revista Teoria & Debate e autor/organizadorde vários livros, entre os quais A Mídia nas Eleições de2006 (Editora Fundação Perseu Abramo, 2007).Sobre o textoUma primeira versão, sob o título “As ‘brechas’ legais docoronelismo eletrônico”, foi publicada na revista eletrônicaAurora, disponível em http://www.pucsp.br/revistaaurora/download/venicio_a_lima.pdf.Referências bibliográficasCabral, Otávio e Lobato, Elvira (10/07/2000). “Governo deve criar 180 emissoras de TV” inFolha de S. Paulo in http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1007200011.htmFernandes, Bob (21/6/2000). “O Balcão Quentinho – O renascer de um símbolo num decretode Fernando Henrique e Pimenta da Veiga: TVs e rádios como moedas no jogopolítico” in Carta Capital, Ano VI, n. 125, pp. 24-30.Folha Online-Ilustrada; ”Governo federal dá canal de TV à Igreja Renascer” 31/1/2007,disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68048.shtmlJornal do Brasil, (7/12/1980). “No ar, a voz do dono”.Leal, V. Nunes (1986). Coronelismo, Enxada e Voto; São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1986.Lima, Venício A. de (1987). “Comunicação na Constituinte: a defesa de velhos interesses”in Caderno CEAC/UnB, Ano I, nº. 1; pp.143-152.Lima, Venício A. de e Lopes, Cristiano A. (2007). “Rádios Comunitárias: CoronelismoEletrônico de novo tipo” disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/download/Coronelismo_eletronico_de_novo_tipo.pdfLima, Venício A. de (2006). Mídia: crise política e poder no Brasil; São Paulo: Editora FundaçãoPerseu Abramo.Lobato, E. (18/6/2006). “Governo Lula distribui TVs e rádios educativas a políticos”, Folhade S. Paulo in http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u79613.shtmlLobato, E. (2005). Instinto Repórter; São Paulo: PubliFolha; pp. 228-261.Lobato, E. (7/6/2007). “Justiça veta concessão de TV educativa sem licitação”, Folha de S.Paulo. http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u302608.shtmlLobato, E. e Godinho, F. (3/11/1999). “Coronelismo eletrônico sobrevive com concessões– Boa parte das novas rádios e TVs continua sendo dada a grupos políticos”in Folha de S. Paulo, p. 1-11.Motter, Paulino (1994). “O uso político das concessões das emissoras de rádio e televisão nogoverno Sarney” in Comunicação&política; Vol. I, nº. 1, agosto-novembro; pp. 89- 115.Veja, “Fim de um ciclo”; Edição1462 de 18/9/96, p. 39.Notas1 Cf. Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, Editora Alfa-Ômega, 1986. Parao “coronelismo eletrônico de novo tipo” referido especificamente às autorizações derádios comunitárias ver Venício A. de Lima e Cristiano Aguiar Lopes (2007), “RádiosComunitárias: Coronelismo Eletrônico de novo tipo” disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/download/Coronelismo_eletronico_de_novo_tipo.pdf2 Ver Jornal do Brasil, “No ar, a voz do dono”; 7/12/1980.3 Cf. Venício A. de Lima, “Parlamentares e Radiodifusão: relações suspeitas” in idem, Mídia:Crise Política e Poder no Brasil, Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.4 As autorizações de rádios comunitárias constituem um caso emblemático onde a tramitaçãoburocrática é, muitas vezes, decisiva para o destino do próprio Processo. Cf.Lima e Lopes (2007).5 Parte do argumento desenvolvido neste texto foi também utilizado em Lima e Lopes (2007).6 A ineficácia do Decreto 1720/95 em evitar o controle de políticos sobre as concessõescomerciais, no entanto, ficou evidente quando, em 1999, o MiniCom concluiuo primeiro lote da primeira licitação pública de rádio e televisão comerciais.Levantamento feito pela Folha de S. Paulo indicou que nos estados do Amapá,Maranhão, Alagoas, Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo,Tocantins e Goiás, políticos no exercício de mandatos eletivos compravam as emissorasdiretamente ou através de parentes próximos. A reportagem afirmava aindaque “políticos e igrejas ganharam (concessões) em cidades menores, onde as emissorasainda são vistas mais como armas eleitorais e de conquista de fiéis do que comoatividade empresarial”. Cf. Elvira Lobato e Fernando Godinho, “Coronelismoeletrônico sobrevive com concessões – Boa parte das novas rádios e TVs continuasendo dada a grupos políticos” in Folha de S. Paulo, 3/11/1999, p. 1-11.7 Cf. Venício A. de Lima, “Comunicação na Constituinte: a defesa de velhos interesses”in Caderno CEAC/UnB, Ano I, nº. 1; 1987; pp.143-152 e Paulino Motter, “O usopolítico das concessões das emissoras de rádio e televisão no governo Sarney” inComunicação&política; Vol. I, nº. 1, agosto-novembro de 1994; pp. 89-115.8 Cf. Elvira Lobato, Instinto Repórter; São Paulo: PubliFolha; 2005; pp. 228-261.9 Cf. Elvira Lobato, “Governo Lula distribui TVs e rádios educativas a políticos”, Folha deS. Paulo, 19/6/2006.10 Cf. Elvira Lobato, “Justiça veta concessão de TV educativa sem licitação”, Folha de S.Paulo, 7/6/2007.11 Até quando este texto estava sendo escrito (novembro de 2007), não se conhecia adecisão final sobre a matéria.12 Um exemplo é a Igreja Renascer em Cristo, cujos líderes foram presos nos EstadosUnidos e também respondem a ação judicial do Ministério Público de SãoPaulo por lavagem de dinheiro, falsidade ideológica e estelionato. A Renascercriou a Fundação Trindade, nos anos 80, especificamente para obter uma geradorade televisão educativa que se transformou na Rede Gospel de TV atravésde autorizações para instalação de uma série de RTVs, isto é, retransmissorasde televisão. Cf. ”Governo federal dá canal de TV à Igreja Renascer” in FolhaOnline – Ilustrada, 31/1/2007, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68048.shtml13 Cf., dentre outros, Bob Fernandes, “O Balcão Quentinho – O renascer de um símbolonum decreto de Fernando Henrique e Pimenta da Veiga: TVs e rádios como moedasno jogo político” in Carta Capital, Ano VI, n. 125, 21/6/2000; pp. 24-30.33


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Rádios comunitáriasautênticas: entrea comunicaçãodemocrática e aperseguiçãoCláudia Regina LahniProfessora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de ForaDaniel GarciaNos balões, a inscrição “Concessões de Rádio e TV: quem manda é você”. São Paulo, 5/10/0734


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008As rádios comunitárias, de baixa potência e reduzido alcance,podem representar uma alternativa de qualidade e participaçãopopular na comunicação. Podem transmitir outras versões dosfatos, comunicar eventos de interesse local que não aparecem nosgrandes meios, constituir canais de informações que se constituemem direito fundamental para o exercício, conquista e manutençãode outros direitos. Entretanto, as comunitárias autênticas muitasvezes não conseguem concessão do Ministério das Comunicações.Funcionam sem ela e, então, são perseguidas e fechadasPessoas de grupos diversosparticiparamde manifestação nodia 5 de outubro de2007, em prol da democratizaçãoda comunicação.E não é para menos,pois sabemos da importância dacomunicação na sociedade atual edo quanto o monopólio, constituídono Brasil, é prejudicial, principalmentepara os movimentossociais populares. A data da manifestaçãofoi escolhida por marcaro vencimento de concessão à RedeGlobo. A emissora é símboloda falta de diversidade da comunicaçãono país.Pesquisas mostram que somenteseis redes privadas nacionais detelevisão aberta e seus 138 gruposregionais afiliados detêm a propriedadede 667 veículos de comunicação,entre emissoras de TV,rádios e jornais. A revista Fórum(setembro de 2007) também apontao não questionamento de concessõesno momento da renovação,mesmo quando proprietários nãocumprem a legislação quanto a colocarno ar programas educativos einformativos.Diante disso, os movimentos sociaispopulares têm atuado pela democratizaçãoda comunicação, tambémcom a organização de rádioscomunitárias, em que se instituemcomo emissores. As rádios comunitárias,de baixa potência e reduzidoalcance, podem constituir uma alternativade qualidade e participaçãona comunicação, especialmentepara as pessoas de situação socialmenos favorecida. Essas emissoraspodem unir pessoas diversas dosbairros abrangidos pelas rádios; jornalistase estudantes. Elas podemtransmitir outras versões sobre osfatos, colocar no ar gêneros musicaisque não são apresentados nasrádios comerciais, abrir espaço paraa população participar.Muitas dessas emissoras, compessoas das camadas populares co-35


Janeiro 2008mo organizadoras atuantes, podemcomunicar eventos de associaçõesde moradores e grupos de interesselocal que não aparecem nos grandesmeios. As rádios comunitáriaspodem ser um lugar de livre manifestaçãodo pensamento e canais deinformações que se constituem emdireito fundamental para o exercício,a conquista e a manutenção deoutros direitos.Dessa forma, as emissoras comunitáriaspodem abrir a possibilidadede a população organizadaexercitar uma comunicação plural edemocrática. O fortalecimento dasemissoras com essas característicasé um caminho corretivo para a situaçãode monopólio de propriedadee de divulgação de um pensamentoúnico, formado pelos meios massivoshoje, no Brasil.As qualidades das rádios comunitáriaspara a cidadania dos quenelas participam e o desenvolvimentolocal já foram apontadas porexperiências e pesquisas. Entretanto,as comunitárias autênticas muitasvezes não conseguem concessão.Funcionam sem ela e, então, sãoperseguidas e fechadas. Essa situaçãoé resultado de uma lei (e umsistema) que não beneficia os quefazem rádio comunitária autêntica— pessoas das classes populares organizadasem movimentos sociais.É nesse quadro que se encontravaa Rádio Mega FM, uma comunitáriaautêntica, sediada emJuiz de Fora (MG). Essa emissorasempre teve como objetivos transmitirinformação necessária paraa vida das pessoas em sociedade,valorizar a cultura local, promovera solidariedade e ser um espaçopara a inclusão social de jovensem situação de risco (em funçãoda pobreza e do tráfico de drogasexistente na região).Para alcançar seus objetivos, aMega usou como estratégias apoiarseem uma organização coletiva,buscar a participação de pessoase entidades representativas, ser aprópria rádio membro de órgãosda sociedade civil e apresentar umaprogramação diversificada, garantindoespaço para a expressão degrupos e interessados. Assim, naprogramação e direção da emissoraestavam o movimento negro, hiphop,estudantil, as ComunidadesEclesiais de Base (CEBs) e outros.A Mega participou, em anos recentes,da diretoria do Conselho paraValorização da População Negra edo Conselho Municipal dos Direitosda Mulher e trabalhou pela formaçãode dois grupos voltados paraa cultura hip-hop, a Posse Zumbidos Palmares e a Posse MissionárioAntônio Conselheiro.Conquistou credibilidade aponto de ser chamada, pela JustiçaEleitoral, para a divulgação deinformações sobre as eleições. Játeve convênio com a UniversidadeFederal de Juiz de Fora (UFJF): aemissora transmitia programas informativosproduzidos por estudantese docentes da instituição, entreoutras ações conjuntas.Apesar disso, o Ministério dasComunicações (MiniCom) negouautorização para o funcionamentoda Rádio Mega FM. Em Juiz deFora, três rádios têm concessõescomo comunitárias, obtidas duranteo governo de Fernando HenriqueCardoso (PSDB): diretores dessasRevista <strong>Adusp</strong>rádios têm relação direta ou indiretacom esse partido e com políticoslocais. Essa situação não é diferenteda que ocorre no país, em geral,conforme pesquisa de Venício deLima e Cristiano Aguiar Lopes, noticiadapela Carta Capital.A radiodifusão comunitáriaé regulamentada noBrasil pela Lei 9.612/98.As rádios comunitáriasprecisam de autorizaçãoconcedida pelo Ministériodas Comunicações, comaprovação do Congresso, esua potência máxima deveser de 25 wattsDefendemos a adoção de legislaçãomunicipal para autorizaçãode rádios comunitárias, como formade reduzir a burocracia e garantirmaior margem de ação por partedas classes populares no processode concessão. A seguir apresentamosuma reflexão sobre a Lei 9.612,que regula as emissoras comunitáriasno Brasil, e sobre a existênciade leis municipais para esse fim,com destaque para a discussão realizadaem Juiz de Fora em torno daRádio Mega FM.A radiodifusão comunitária éregulamentada, no Brasil, pela Leinº 9.612/98, Decreto nº 2.615/98e Norma Complementar nº 2/98,alterada pela Portaria nº 83, de 19de julho de 1999. Em resumo, a36


Revista <strong>Adusp</strong>lei estabelece que as rádios comunitáriasprecisam, para funcionar,de autorização concedida pelo MiniCom,com aprovação do CongressoNacional, para associaçõescomunitárias sem fins lucrativos. Aautorização não pode ser transferida.Uma comunitária também nãopode ser arrendada.Pela lei, as comunitárias têmseu alcance limitado a um quilômetrode raio a partir da antenatransmissora, tendo a potência dotransmissor no máximo 25 watts.Essas emissoras não podem interferirnas comerciais e em outrosserviços. Entretanto, conformeprevisto na lei, se uma rádiocomercial causar interferênciaem uma comunitária, o MiniComnada fará. Para as comunitárias,diferentemente do que ocorrecom as comerciais, é proibida aformação de redes, com exceçãode casos de guerra ou calamidadepública. Mas as comunitáriasautorizadas (com concessão) sãoobrigadas a retransmitir campanhasou programas do Governo,como “A Voz do Brasil”.Na programação das comunitáriasdevem ser priorizadas informaçõese tradições da comunidade,sem discriminação de qualquernatureza. É proibido o proselitismo.Qualquer pessoa tem direitoa emitir opiniões na programaçãodas comunitárias. Essas emissorasdevem ter como objetivos difundire valorizar a cultura da comunidade,contribuindo para sua integração.Também devem prestarserviços de utilidade pública.A legislação das comunitáriasadmite que as emissoras tenham“apoio cultural” para os programas.Conforme previsto pela lei,a Agência Nacional de Telecomunicações(Anatel) designou umcanal específico para as comunitárias,o 200 (87,9 MHz), e indicaoutros quando for necessário,seguindo seus critérios. Pela lei,as rádios comunitárias devem seconstituir como associação semfins lucrativos, prevendo em seusestatutos um conselho comunitárioformado por, pelo menos,cinco entidades da área abrangidapela emissora. Este conselho devefiscalizar a rádio.Como observa Cicilia Peruzzo(1999: 420-421), a lei é restrita,representando, porém, “um avançono sentido de regulamentar umsetor de radiodifusão de demandacrescente, tendo em vista a necessidadede mídias comunitárias noprocesso de mobilização em tornoda ampliação da cidadania”.A autora aponta que passoua haver regulamentação do temaem função da pressão do movimentode rádios comunitárias edo Fórum Nacional pela Democratizaçãoda Comunicação. Haviavários projetos nesse sentido.Entretanto, o que foi aprovadoengloba tantas restrições por causado lobby da Associação Brasileirade Emissoras de Rádio eTelevisão (Abert), cuja pressãotambém favoreceu a perseguiçãoàs emissoras comunitárias.Essa legislação e a atuação doMiniCom e da Anatel têm geradocríticas, principalmente de pessoasligadas ao movimento de rádioscomunitárias e pesquisadoras doassunto. Para Marta Regina MaiaJaneiro 2008(1998: 3-4), a atitude do GovernoFederal de enquadrar o movimentode rádios livres e comunitáriaspor intermédio de legislação regulamentadora“aparece mais comouma tentativa de inibir a proliferaçãodestas emissoras do queuma possibilidade real de ampliaçãodo espaço eletromagnéticopara novas vozes”.Grande parte das emissorascomunitárias funcionava,antes da lei, com 50 watts depotência, e adotar 25 wattssignifica reduzir muito seualcance. Outra crítica que sefez à lei era pelo fato de queela institucionalizava ummovimento livreMaia lembra que “o direito àcomunicação, direito extremamenteatual, é garantido, mesmode maneira genérica (emborapassível de jurisprudência) peloCapítulo dos Direitos e DeveresIndividuais e Coletivos da Constituiçãoem vigor”. Isso porque oArtigo 5º estabelece que é livre aexpressão da atividade intelectual,artística, científica e de comunicação,independentemente de censuraou licença.Na cartilha Como montar rádioscomunitárias e legislação completa,elaborada pela então senadoraHeloísa Helena e pelo ColetivoNacional Petista de Rádios Comu-37


Janeiro 2008nitárias (2000: 17), a lei das comunitáriastambém é criticada. ParaHelena e Coletivo: “A legislaçãodas rádios comunitárias é limitada,antidemocrática, esquisita e imoral.Ela é uma traição ao movimentodas RCs no Brasil”. Na publicação,os parlamentares avaliam que“colocar uma rádio comunitária noar, com o povo falando de temasque lhe interessa, fazendo e sendonotícia, é um exercício de liberdadeque incomoda às elites”.Em artigo em que se apresentamexperiências de rádios livres ecomunitárias em Campinas (Lahni,1999), observa-se que, já em 1998,havia quem se posicionasse contraa lei, porque grande parte dasemissoras funcionava, antes da regulamentação,com 50 watts de potência;25 watts significaria reduzirmuito o alcance. Outra crítica erapelo fato de institucionalizar ummovimento crescente livre, tambémcitada por Arlindo Machado,Caio Magri e Marcelo Masagão(1986), em relação a um declíniodas rádios livres européias, apóssua regulamentação.Conforme reportagem publicadano jornal Hoje em dia(29/11/1998), a nova lei foi consideradaobsoleta e com clara intençãode desestimular o surgimento ea manutenção de rádios comunitáriasno país, segundo José Norberto,diretor de eventos do CentroNacional de Autodesenvolvimento,que promoveu, em dezembro de1998, em Belo Horizonte, o Fórum2000 – III Edição – Encontro deRádios e TVs Comunitárias.Somado às críticas à Lei 9.612,também houve questionamento daforma como se deram as autorizaçõespara comunitárias no governode Fernando Henrique Cardoso.A avaliação é que o favorecimentopolítico e a troca de favores, quenortearam concessões de rádioscomerciais e educativas, tenhampassado a se dar nas autorizaçõespara comunitárias.Durante o 2º Fórum SocialMundial, realizado em Porto Alegre(RS), em 2002, e em outrosmomentos, a Associação Brasileirade Radiodifusão Comunitária(Abraço) denunciou nacional e internacionalmentea repressão dogoverno brasileiro às rádios comunitáriase ao direito à liberdade deexpressão. Acreditava-se no fimdessa situação com o governo deLuiz Inácio Lula da Silva, empossadoem janeiro de 2003. Tantoque, no período da realização doV Congresso Brasileiro de RádiosComunitárias (agosto de 2003), entreas notícias do sítio da entidadepodia-se ler: “Congresso acreditaque Governo Lula apoiará cadavez mais a construção do nossomovimento”.Também nesse sentido, o Jornaldo Brasil (27/5/2003) publicouuma reportagem com o título “Pazpara as rádios livres”. Depois decitar uma investida da Anatel, em14/4, contra uma emissora semconcessão, a reportagem informaque essa situação estava perto dofim, pois o MiniCom começava aentrar em sintonia com as rádioscomunitárias. Segundo o periódico,o primeiro passo foi a formaçãode um Grupo de Trabalho paraagilizar o licenciamento dessasemissoras.Revista <strong>Adusp</strong>O comportamento policialda Anatel, que caracterizouo governo FCH, prosseguiuno governo Lula. Exemplo: aRádio Mega FM, de Juiz deFora, no ar desde 1997, teveo transmissor lacrado pelaAnatel em 14/8/2003. Antes,nem a agência nem a PFestiveram na MegaEsse Grupo de Trabalho, comprazo de 90 dias para realizar suasatividades, foi formado a partir daPortaria nº 92, de 2-4-2003, do Mini-Com, que instituía o “Grupo de Trabalhopara, em caráter emergenciale extraordinário, realizar: I – todosos atos necessários à instrução, ao saneamentoe ao desenvolvimento dosprocessos em andamento no âmbitodo Ministério, relativos aos pedidosde autorização para os Serviços deRadiodifusão Comunitária”.Entretanto, as reclamações continuaramno governo Lula, quantoao tratamento policialesco da Anatelpara com as comunitárias. Paraexemplificar: a Rádio Mega FM,que funcionava desde 1997, portantoanterior à Lei 9.612/98, teve seutransmissor lacrado pela Anatel em14/8/2003, no Governo Lula. Antes,nem a agência nem a Polícia Federalestiveram na Rádio.Estudo realizado pela ConsultoriaLegislativa do Senado Federal,assinado pelo consultor Luiz38


Revista <strong>Adusp</strong>MaringoniJaneiro 2008decreto presidencial, foi criado umGrupo de Trabalho interministerialpara analisar e apresentar propostaspara a radiodifusão comunitária noBrasil. Os trabalhos foram concluídosem 2005. A instituição do novo GTrecebeu críticas, entre outros motivospor não ter em sua composição representantesdas rádios comunitárias.Conforme Hamilton Octavio deSouza (2006), estima-se que existamno Brasil mais de 20 mil emissoras comunitáriasem operação. Desde quea Lei 9.612/98 foi regulamentada, oMiniCom autorizou o funcionamentode apenas 2.400; só em 2005 foram fechadasmais de 1.200 emissoras, pelaAnatel e Polícia Federal. Reportagemda Fórum (setembro de 2007) salientaa necessidade da construção democrática,a partir das cidades, de ConferênciaNacional das Comunicações emostra, por outro lado, um posicionamentoreticente de Hélio Costa e doMiniCom quanto a isso.Fernando Fauth, e destinado aoConselho de Comunicação Social,aponta que a demanda efetiva poroutorgas para emissoras comunitáriasé consideravelmente superior àquantidade de atos analisados e deferidosde forma definitiva e, assim,“infere-se que, apesar dos esforçosempreendidos pelos órgãos oficiais,as aspirações sociais que levaram àcriação do serviço de radiodifusãocomunitária ainda não foram plenamenteatendidas” (Fauth, 2003).Quanto ao Grupo de Trabalhodo MiniCom, encerradas suas atividades,pouca ou nenhuma alteraçãose deu na situação das rádios comunitárias,o que aumentou a indignaçãode defensores das emissoras.Nesse sentido, o Fórum Nacionalpela Democratização da Comunicação(FNDC) divulgou um manifestoem janeiro de 2004, com o título“Miro Teixeira esqueceu as rádioscomunitárias”, com críticas ao entãoministro das Comunicações, à épocafiliado ao PDT. Com a posse deoutro ministro das Comunicações,Eunício Oliveira (PMDB-CE), ocorridaem janeiro de 2004, a situaçãodas rádios comunitárias no país permaneceupraticamente inalterada,o mesmo ocorrendo na gestão doministro Hélio Costa (PMDB-MG),empossado em julho de 2005.Em 26 de novembro de 2004, porEm várias cidades dopaís foram aprovadas leisde municipalização dasemissoras comunitáriasde rádio. Em Campinas,uma ação judicial dasassociações empresariaisde rádio e TV suspendeu osefeitos da lei municipalParalelamente às críticas mencionadas,algumas cidades estudamtransferir o âmbito da legislação39


Janeiro 2008das comunitárias para o município.É o caso de Belo Horizonte(MG), onde, na Câmara Municipal,tramita projeto nesse sentido. EmItabuna, na Bahia, a legislação dascomunitárias já foi municipalizada.Em São Paulo, em 27/3/2001, foiapresentado pelos vereadores CarlosNeder (PT) e Ricardo Montoro(PSDB) o Projeto de Lei nº 145,que “Dispõe sobre a exploração doServiço de Radiodifusão Comunitáriano Município de São Paulo”.Projeto aprovado, em 23/6/2005o então prefeito José Serra (PS-DB) sancionou a Lei nº 14.013,que permite a exploração do serviçode radiodifusão comunitáriano município. A municipalizaçãoda lei de radiodifusão comunitáriaem São Paulo foi bem recebida pelaAbraço. Até setembro de 2007,o MiniCom não tinha autorizadonenhuma emissora comunitária afuncionar na capital paulista. E,em 22 de novembro, em longa reportagem,a Rádio CBN noticiouo fechamento de mais uma “rádiopirata” na cidade.Em Campinas (SP), a entãoprefeita Izalene Tiene (PT) sancionou,no dia 1º/6/2004, a Lei nº12.017, que “Dispõe sobre o funcionamentodas rádios comunitárias(radcom) no município de Campinase dá outras providências”. OArtigo 1º da lei estabelece que oServiço de Radiodifusão Comunitáriaobedecerá aos preceitos daConstituição Federal, da Lei 9.612,de 1998, “e quaisquer outros normativosfederais pertinentes, de carátergeral para o país, desde quenão afrontem matérias de interesseunicamente local”.A Lei 12.017 de Campinas estabelececinco anos como período (renovável)de concessão, “desde quecumprida toda legislação pertinente,passível de revogação mediante manifestaçãoexpressa da maioria dacomunidade abrangida”. Tambémestava prevista por ela a instituiçãodo Conselho de Comunicação Comunitária,com a finalidade de emitirparecer conclusivo sobre o processode concessão de rádios comunitárias,antes do ato de concessão.Apesar de toda a discussão queprecedeu sua aprovação, a lei nãoentrou em vigor. Segundo Eula D.Taveira Cabral (2005), uma açãojudicial da Abert e da Associaçãodas Emissoras de Rádio e Televisãodo Estado de São Paulo suspendeuseus efeitos antes mesmo que elaentrasse em vigência, sob a alegaçãode inconstitucionalidade.O debate sobre municipalizara legislação das comunitárias tambémpermeou o seminário OndaCidadã: Radiodifusão, Cultura eEducação 1 , realizado em setembrode 2003, em São Paulo. Na ocasião,a diretora do Inep (Instituto Nacionalde Ensino e Pesquisa do MEC),Dirce Gomes, que representou oMinistério da Educação, defendeua municipalização da lei das comunitárias.A municipalização tambémfoi defendida pelo jornalistaSérgio Gomes, que lembrou que osmunicípios têm poderes de decisãosobre seu território, garantidos pelaConstituição Federal. Salientou quea legislação tem que respeitar a diversidadelocal e o relevo desigual.No mesmo seminário, HeródotoBarbeiro, então diretor regional dejornalismo do Sistema Globo/CBNRevista <strong>Adusp</strong>(Central Brasileira de Notícias), manifestou-secontra a municipalizaçãoda lei das comunitárias. Ele justificousua posição ao mencionar queem muitos municípios o poder estáconcentrado nas mãos de verdadeiroscoronéis, que mandam em tudo.Márcia Vidal Nunes debate estaquestão, apontando que a maior partedos políticos profissionais, nas cidadesdo interior do Ceará, tem poderde vida e morte sobre os habitantes.“No Ceará, das cerca de quatrocentasemissoras existentes, apenas 10% sãoautenticamente comunitárias” (Nunes,2001: 241,242).Embora se reconheça que o coronelismoainda persiste em muitascidades do país, convém considerarque é no âmbito do município quese verifica o trabalho diário de associaçõesdo movimento popular,entre essas, as das rádios comunitárias.Para Bruno Fuser (2002: 35),“mais perto da população, e maissensíveis às pressões, os municípiosteriam em tese maior possibilidadede fazer respeitar princípios comoestímulo à diversidade cultural ecaráter comunitário”.Além disso, conseguir autorizaçãode emissora comunitária em Brasíliarequer não só percorrer um longo caminhoburocrático, como contar comum político aliado que colabore paraque a concessão ocorra, o que é especialmentedifícil para as pessoas dasclasses populares, que fazem rádiocomunitária autêntica. Fazer lobbyjunto ao Governo e aos políticos, emBrasília, também é um recurso complicado,em função das dimensõesterritoriais do país que resultam emlongas distâncias entre diversos municípiose a capital federal.40


Revista <strong>Adusp</strong>Em Juiz de Fora, a lutapela criação de umalegislação municipal teveseu estopim com a negativado MiniCom de concederautorização para a RádioMega. A lei foi aprovadaem julho de 2005 e vetadadias depois pelo prefeitoEm Juiz de Fora, o debate sobreuma legislação municipal para asrádios comunitárias começou pelaação dos integrantes da RádioMega FM, chamada de “a comunitáriade verdade”. Sua formaçãoteve início em 1996. Sua assembléiade fundação data de 25/3/1997 (antesda aprovação da lei federal dascomunitárias). Para organizar esseencontro, o grupo que liderava asações em prol da criação da emissorafoi de casa em casa, convocandoos moradores do bairro SantaCândida a participar. Cerca de cempessoas participaram da assembléiade fundação da Mega, que foi ao ar,pela primeira vez, em 19/6/1997.A legalização da emissora foi solicitadaao MiniCom em 7/12/1998,após vencer etapas burocráticase enfrentamentos jurídicos com aAnatel e com o ministério. Porém,mais de três anos e meio depois, aautorização foi negada. Em ofício de18/6/2002, o MiniCom comunicouque a solicitação da Mega foi arquivada.Na região onde se localiza aMega, recebeu autorização a RádioLife, cujo responsável formal é filhode um vereador pelo PSDB 2 .Essa situação foi debatida noEncontro Municipal Preparatóriopara o Fórum Social Regional (queprecedeu o Fórum Social Mundial2003), surgindo aí a proposta deencaminhar um pedido à CâmaraMunicipal para municipalizar a legislaçãodas comunitárias.Em 2003, o transmissor da Megafoi lacrado. Teve início então umaforte mobilização popular em favorda emissora, com solicitação de audiênciapública à Câmara Municipalpara discutir a questão das rádioscomunitárias. Os projetos de lei deCampinas e Belo Horizonte serviramde base para a elaboração de um projetode lei para Juiz de Fora 3 .A audiência pública realizada em23/3/2004 opôs os defensores da RádioMega — como a vereadora NairGuedes (PCdoB), autora do projeto,a Pastoral da Criança, a Posse deCultura Hip Hop Zumbi dos Palmares(PZP) e esta pesquisadora — ainteresses que, pela voz de outrosvereadores, procuraram refutar odebate sobre a municipalização, alegandoexistir lei federal e ser matériade competência da União.Os defensores da Mega perceberamque era necessário dar continuidadeà reivindicação, mesmodiante do parecer da Procuradoriada Câmara Municipal contrário aoprojeto. Foi então ampliada a mobilizaçãoem favor da emissora e doprojeto por uma lei municipal paraas rádios comunitárias. Circulouum manifesto dirigido aos vereadores,com a assinatura de dezenas dedirigentes de igrejas, da UFJF, doJaneiro 2008movimento negro e entidades diversasda cidade e com a assinaturade outras centenas de pessoas. Nodia 21/9/2004, o então diretor daFacom-UFJF, Fernando Fábio FioreseFurtado, fez uso da Tribuna Livre,falando em favor das emissorascomunitárias e de uma legislaçãomunicipal para elas.Uma nova audiência públicaocorreu na legislatura seguinte, nodia 22/3/2005, para apreciar o Projetode Lei nº 193, apresentado pelovereador Flávio Cheker (PT) 4 .Desta vez a maioria dos vereadoresmanifestou-se favoravelmente. Votadono dia 5/6/2005, o PL 193 foiaprovado. Entretanto, foi vetadopelo prefeito Alberto Bejani (PTB),um radialista que trabalhou ememissoras comerciais da cidade 5 . Oveto foi mantido pelo Legislativo,no dia 20/9/2005 6 .É oneroso demais paracomunitárias autênticaschegarem a Brasília egarantirem sua concessão,mesmo porque estão nasmãos das classes popularese muitas vezes, não obstanteo trabalho admirável quefazem, mal têm dinheiropara seu sustentoSe é difícil obter o aval do poderpara o funcionamento de emissorasdas classes populares, também épossível pressionar, com mobiliza-41


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>ção e negociação, para se conquistaresse reconhecimento e dessaforma entender melhor como funcionamdeterminados órgãos públicos,o que pode servir para essa eoutras lutas.Se existe o sofrimento da histórianegada, também existe a possibilidadede educação para o tratocom a burocracia e o poder público,tanto na esfera municipal como nacional.Tal organização pela manutenção,respeito e ampliação dedireitos é exercício de cidadania,propiciado pela participação emuma rádio comunitária autêntica.Apesar do aprendizado, emJuiz de Fora não há uma lei municipalpara as rádios comunitárias,e a Rádio Mega FM, comunitáriaautêntica, continua sem autorização.Autorizadas estão três, comligações com o PSDB, sendo umaevangélica.Muitos dos fatos acompanhadose situações verificadas levam a avaliarque talvez seja mais convenientepassar pelo município qualquerregulamentação de comunitária. Éoneroso demais para comunitáriasautênticas chegarem a Brasília egarantirem sua concessão, mesmoporque essas emissoras verdadeiramenteestão nas mãos das classespopulares e muitas vezes, não obstanteo trabalho necessário e admirávelque fazem, mal têm dinheiropara seu sustento.Avaliamos que é preciso promovermudanças na atual forma detornar essas emissoras legalizadas,para que pessoas das classes populares,sem medo da prisão e apreensãode seus equipamentos, possamexercer seu direito à comunicação ea possibilidades de cidadania. E osmunicípios que aprovam lei municipalpara emissoras comunitárias estãose posicionando neste sentido.Sobre a autoraCláudia Regina Lahni, doutora e mestra emCiências da Comunicação pela ECA-USP, é professora dagraduação e do mestrado da Faculdade de Comunicaçãoda Universidade Federal de Juiz de Fora.Notas1 O seminário Onda Cidadã: Radiodifusão, Cultura e Educação foi realizado em SãoPaulo, no Itaú Cultural, nos dias 22 e 23 de setembro de 2003. A promoção foido Itaú Cultural, com apoio da Oboré Projetos Especiais em Comunicações eArtes. De acordo com a organização, o evento reuniu cerca de 300 pessoas, de 111entidades, das quais 67 são emissoras de rádio localizadas em 58 municípios de 16estados – São Paulo, Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Goiás, Minas Gerais, Pará,Paraíba, Pernambuco, Piauí, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, SantaCatarina e Sergipe.2 Pastor Mariano.3 Diversas reuniões foi realizadas, inclusive no estúdio da Mega, para redação do PL parauma lei municipal das rádios comunitárias em Juiz de Fora. O trabalho foi coordenadopor Pedro Mourão Paiva, estudante de Direito e funcionário do gabinete de NairGuedes, e contou também com contribuições desta pesquisadora.4 Por solicitação da assessoria da vereadora Nair Guedes, que não conseguiu reeleger-se,Flávio Cheker comprometeu-se a continuar os encaminhamentos para uma lei municipalda radiodifusão comunitária em Juiz de Fora.5 Conforme o site da Prefeitura, Alberto Bejani trabalhou como radialista de 1976 a1988 e, “pela popularidade que conquistou no rádio, elegeu-se prefeito de Juiz deFora em 1988”, sendo novamente escolhido para o Executivo do município em 2002(www.pjf.mg.gov.br). A trajetória política do radialista Bejani também é comentadapor Sonia Virgínia Moreira, em Rádio palanque.6 Vale citar que, nesse meio tempo, houve uma movimentação de vereadores, incluindotroca de partidos, que acabou garantindo a maioria na Câmara para o prefeito, conformeapontado por um jornal local.Referências bibliográficasCABRAL, Eula D. Taveira. 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Brasília(DF), 22/1/2004, disponível em , extraído em 7/9/2004.42


Revista <strong>Adusp</strong>As armadilhas doolhar: visibilidadese invisibilidades emJaneiro 2008tempos de reality showsRosaly de Seixas BritoProfessora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do ParáReprodução/Daniel GarciaOs reality shows são verdadeiros emblemas da fluidez contemporânea entre realidadee ficção, entre público e privado. Na tela do Big Brother Brasil (BBB), pessoasenclausuradas numa casa expõem ao limite sua intimidade e encenam a banalidadede um cotidiano fabricado, povoado de exibições narcísicas, roupas fashion, intrigase mesquinharias que giram em torno da lógica de que o fim último perseguido — oprêmio em dinheiro e a celebridade instantânea — justifica os meios. Milhões deespectadores ficam hipnotizados, por verem ali a banalidade de seu próprio cotidiano43


Janeiro 2008Poucas imagens parecemaplicar-se tão bemao sentido da experiênciasocial, cultural epolítica do século XXquanto a de que foium século “breve e extremado”, assimtraduzido na feliz expressão dohistoriador inglês Eric Hobsbawm(1999). A sensação de brevidadepor ele descrita está diretamenterelacionada à intensidade, profundidadee celeridade das transformaçõesagudas ocorridas nesteperíodo. A humanidade chegou aníveis de bem-estar jamais experimentadosantes, por um lado, e, poroutro, radicalizou-se ao extremo achamada “barbárie moderna”.Não resta dúvida, porém, que umdos aspectos mais revolucionáriosdeste século de extremos foi o estabelecimentode novíssimas formasde convívio social, a partir da criaçãoe acelerado desenvolvimentode um sistema de comunicação demassa, que implodiu fronteiras culturais,padronizou comportamentos,colonizou e domesticou mentesno mundo inteiro, legitimando regimese governos que antes só seriamcapazes de prosperar pelo uso daforça. A própria guerra, emblemamáximo da barbárie, e cuja máquinade destruição alcançou uma escalaplanetária, acabou por assumiruma dimensão estética e ofereceuseà humanidade como espetáculo.Imagens as mais cruéis da dor e daguerra naturalizaram-se, aos poucos.Como disse Sontag (2003: 20), “agora,guerras são também imagens esons na sala de estar”.O incessante fluxo de imagensde violências de toda espécie nanossa teleintimidade, ao contráriodo que se poderia supor e a despeitode toda a força de seu testemunhodocumental, porém, nãoserviu somente para produzir umaatitude de repulsa ou indignação. Etalvez aí esteja, embora muito dissimulada,a raiz de um dos grandesmales da nossa época, um dos “extremos”— para usar a expressãode Hobsbawm — a que chegamos.Linguagem privilegiada da culturacontemporânea, as imagens produzidase circulantes em excesso parecemmais esconder do que mostrar,apesar do paradoxo aparente queesta afirmação contém.O atentado ao World TradeCenter em Nova Iorque, no 11 desetembro de 2001, uma das cenasque ficará para sempre registradana memória visual do século XXI,gerou, antes de tudo, incredulidade.Em muitos dos depoimentosdas pessoas que escaparam do atentado,a sensação era de que tudose passou como num filme. “Comoum filme parece haver substituído amaneira pela qual os sobreviventesde uma catástrofe exprimiam o carátera curto prazo inassimilável daquiloque haviam sofrido: ‘foi comoum sonho’ ” (Sontag, 2003: 23).Dez anos após a Guerra do Golfo,que o mundo assistiu como a umvideogame, o 11 de setembro pareciacorroborar um grande dilemado nosso tempo: os horrores oferecidosaos nossos olhos, transfiguradosem imagens, em grande medidanos imobilizam mais que indignam,banalizam-se mais do que nos tiramda apatia. E parecem que nostornam cada vez mais inapetentessocialmente.Revista <strong>Adusp</strong>Contemporaneamente, aatenção distraída diantedo incontrolável fluxo deimagens que se oferecem aoolhar parece cada vez maisconduzir as massas urbanasa uma atitude de merasespectadoras diante dos fatosAs imagens parecem despregarsecada vez mais da experiência. Perderamsua aura, como tão brilhantementeantecipou Walter Benjaminnos anos 30 do século passado,desde que o fenômeno da reprodutibilidadetécnica da obra de arteinstaurou-se de forma irreversível,promovendo uma refuncionalizaçãosocial da arte. A fotografia, e depoiso cinema, este último arte reprodutívelpor excelência, já que a reprodutibilidadeé princípio inerente àtécnica de sua produção, puserama aura abaixo. “A aparição única deuma coisa distante, por mais pertoque ela esteja” (Benjamin, 1986:170) é como o ensaísta alemão definea aura da obra artística.“A recepção através da distração,que se observa crescentementeem todos os domínios da artee constitui o sintoma de transformaçõesprofundas nas estruturasperceptivas, tem no cinema o seucenário privilegiado” (1986: 194).As palavras de Benjamin revelamum enorme poder de antevisão.A recepção distraída que o cinemaproporciona opõe-se ao reco-44


Revista <strong>Adusp</strong>lhimento, atitude típica da fruiçãoda obra de arte aurática, em suaexistência única. E traduz de formaeloqüente como esta inapelável necessidadeque as massas do séculoXX têm de “ter as coisas próximasde si”, alimentada pela mediação daimagem, acabou por instaurar umfenômeno cultural de dimensõesaté hoje inapreensíveis. A atençãodistraída diante das imagens que seoferecem ao nosso olhar num fluxoincontrolável, contemporaneamente,parece cada vez mais conduziras massas urbanas a uma atitude demeras espectadoras diante dos fatostestemunhados pelas câmeras.A sociedade capitalista sofisticou,no século XX, suas formas dedominação, levando à formulaçãode novas teorias sobre o poder. Pensadorescomo Gramsci e, mais tarde,Foucault e Bourdieu, entre váriosoutros, assinalam como aspectoconstitutivo central das formas deorganização do poder no século passadoa sua dimensão simbólica cadavez mais exacerbada. Para Gramsci,a disputa pela hegemonia nos embatespelo poder remete de formacrescente à conquista do consentimentodos dominados.Foucault (1986) nos fala de umpoder panóptico (o olho que tudovê sem ser visto), que já não temmais um locus específico, como oEstado, por exemplo, mas se infiltrapelos espaços mais recônditos detoda a estrutura social de formacapilar. As formas de vigilância instituídastornam-se mais eficazes namesma medida em que não estãomais baseadas na repressão, numpoder que diz não e castiga, mas naadesão. O olhar invisível do panópticodeve impregnar quem é vigiado— sem sabê-lo — de tal maneiraque este adquira de si mesmo a visãode quem o olha.Já Pierre Bourdieu (1990) conduza reflexão por caminhos similares,ao defender a tese de que o poderconstitui uma espécie de círculo cujocentro está em toda parte e em partealguma. “O poder simbólico é, comefeito, esse poder invisível o qualsó pode ser exercido com a cumplicidadedaqueles que não queremsaber que lhe estão sujeitos, ou mesmoque o exercem” (1990: 7-8). Asmáscaras do poder em nossa época,travestindo-o em algo palatável paraas massas, que a elas muitas vezesse apresenta sob a forma de entretenimento,é um tema diretamenterelacionado ao acelerado crescimentode dispositivos comunicacionais eseus protocolos imagéticos.Inspirados na metáfora criadapor George Orwell 1 , no seu clássicolivro 1984, do Grande Irmãoonisciente e infalível, cujo rostonunca é mostrado, e que espiona avida dos cidadãos ininterruptamente,os reality shows são verdadeirosemblemas da fluidez contemporâneaentre realidade e ficção, entreos espaços público e privado, ede uma sociedade narcisista que,movida pela lógica consumista docapitalismo, se entrega ao vazio damercantilização da vida e à lógicadas aparências. Os programas BigBrother Brasil (BBB), com formatooriginal holandês, que nos últimosanos têm alavancado a audiência daRede Globo de Televisão, e agoraem 2007 tiveram sua sétima temporada,são referência para a análiseaqui feita.Janeiro 2008A súbita notoriedade quepessoas desconhecidas evazias ganham na cenatelevisiva constitui umsintoma regressivo de umacultura fundada num excessode visibilidade e ancoradaem valores mercadológicosA razão do êxito de fórmulascomo os reality shows em parte podeestar associada à reconfiguraçãodas formas de convívio social vigenteshoje. Os centros urbanos estãodeixando de ser espaços de intensoconvívio de pessoas para nelesinstaurar-se uma espécie de novosedentarismo, que cria uma “localizaçãosem localização”, promovidapelas telecomunicações, na qualsubmerge em grande medida nossosentido de coletividade. As cidades,no dizer de Bauman (2001), viraram“espaços públicos não civis”,em que estranhos se encontram,mas dispensam a interação.Enquanto isso a casa, antes reservadaà vivência da intimidadefamiliar e à gratuidade de pensamentos,hoje virou o nó de umarede através da qual o indivíduofreneticamente estabelece contatosde segundo grau com pessoasdistantes fisicamente e, na mesmamedida, está “protegido” do riscodos envolvimentos presenciais.Se o estrondoso sucesso dos realityshows nos incomoda e provocamal-estar, em primeiro lugar a ori-45


Janeiro 2008gem desse sentimento parece estarno enorme constrangimento que noscausa vermo-nos diante da banalidadee falta de sentido da vida. É vidaalheia, é verdade, mas a súbita notoriedadeque pessoas desconhecidase vazias ganham na cena televisivaconstitui um sintoma regressivo deuma cultura fundada num excessode visibilidade, que de forma perturbadoraexpõe a miséria de umaexistência ancorada em valores mercadológicos,na fragilização dos laçosafetivos e no culto às aparências.Que significado tem a visibilidadeno mundo contemporâneo?Desde a década de 1960, na suaclássica obra, Guy Debord (1997)oferecia uma das chaves para explicareste fenômeno típico da contemporaneidade,ao demonstrar o quanto asociedade passara a regular-se pelalógica da espetacularização, quehipervaloriza os eventos, em detrimentodos processos, negligenciandoas relações históricas que estão portrás dos fatos que se apresentam aoolhar. Os eventos espetaculares têmautonomia em relação aos seus referentes,com os quais não guardam relaçãode fidelidade. A lógica centraldo espetáculo, em seu aspecto paradoxal,é a “manutenção do segredogeneralizado”, como afirma Debord.As operações do poder passam a assumiruma dimensão espetacular, equanto mais se tornam visíveis, maisocultam aquelas operações que ficamrestritas ao consumo de poucos, longedos olhos da maioria, impermeáveisà observação pública.Os excessos do ver, portanto, acabampor tornar inacessível para nósmuito do que nos interessaria saber,como nos ensina Baitello (2007):A cultura das imagens (e a transformaçãode toda a natureza tridimensionalem superfícies imagéticas)abre as portas para uma criseda visibilidade, dificultando aqui nãoapenas a percepção das facetas sombrias,mas até mesmo, por saturação,aquelas regiões iluminadas. Assimcomo toda visibilidade carrega consigoa invisibilidade correspondente,também a inflação e a exacerbaçãodas imagens agrega um desvalor àprópria imagem, enfraquecendo suaforça apelativa e tornando os olharescada vez mais indiferentes, progressivamentecegos, pela incapacidade davisão crepuscular e pela univocidadedevoradora das imagens iluminadase iluminadoras (p.1).Neste cenário, o que se verifica éum esvaziamento da “força visionária”,a capacidade de antever e pensarcriticamente o mundo, já que ossistemas de visão, sobretudo os midiáticos,sucumbem sem escrúpulosao mal da auto-referência.Para além da visão instrumental,os meios de comunicação hojesão vistos como operadores dosentido, ou como o lugar mesmodas interações sociais. A sociedadeda midiatização, como o querFausto Neto (2005), é dotada deuma natureza sócio-técnica complexa,que desmonta todas as linearidadese, em seu lugar, instauradescontinuidades de vários tipos.“A nova vida tecno-social é origeme meio de um novo ambiente,no qual se institui um novo tipode real que está diretamente associadoa novos mecanismos deprodução de sentido, nos quaisnada escaparia às suas operaçõesde inteligibilidade” (p.3).Revista <strong>Adusp</strong>Essas operações vão, de formaintensa e ininterrupta, afetando osindivíduos e as instituições, moldandoa subjetividade dos primeirose modificando os ritos e papéis dasúltimas. A lógica que passa a prevaleceré a das redes e dos fluxos, emlugar da lógica dos vínculos.Nos dias de “paredão” noBig Brother Brasil, o paísfica polarizado em torno deargumentos banais sobrequem deve ser eliminado. Avotação pública por telefonerende milhões de reais àRede GloboPara legitimar-se como uma instânciaonde a realidade é tecida, amídia precisa mostrar aos demaiscampos sociais como faz para levara cabo esta operação, chamandoatenção para si mesma. É o queFausto Neto (2006) chama de autoreferencialidade,em que a mídiapassa do estágio de “construção darealidade” para evidenciar a “realidadeda construção”. Os makingoffs,debates eleitorais e realityshows, entre outros, são expressõesdesta lógica.Nos reality shows o espetáculoda auto-referência chega ao paroxismo.O público é levado a jogar ojogo instituído pela mídia. Nos diasde paredão no Big Brother Brasil,por exemplo, o país fica polarizadoem torno de argumentos banaissobre quem deve ser o eliminado.46


Revista <strong>Adusp</strong>A partir da indicação dos própriosmembros da casa, dois dos participantesdo jogo são submetidos àvotação pública por telefone, querende muitos milhões de reais àRede Globo. E a despeito de todoo empenho para fazer todo mundocrer que tudo é inteiramentetransparente para o público, não hácomo dissimular as opacidades queaí estão contidas.Na tela do BBB, pessoas enclausuradasnuma casa — espaço projetadonão para remeter à idéia deReproduçãoCapa do suplemento cultural do jornal Diário de S. Paulo (do grupo Globo), edição de8/1/08, promove o BBBum lar, que inevitavelmente tem asmarcas daqueles que os compartilham,mas um não-lugar, o palco deum espetáculo, onde tudo parecemoderno e luminoso 2 — expõem aolimite sua intimidade e encenam abanalidade de seu cotidiano. Tratasede um cotidiano fabricado, povoadode exibições narcísicas, de corpossarados, de roupas fashion, intrigas emesquinharias que giram em tornoda lógica de que o fim último perseguido— o prêmio em dinheiro e apossibilidade de futuros contratos naJaneiro 2008condição de celebridade instantânea— justifica os meios. Do outro ladoda tela, milhões de pessoas ficamhipnotizadas e aliviadas, por veremprojetada ali a banalidade de seupróprio cotidiano, só que revestidade um brilho sedutor que o seu cotidianodoméstico não tem.A convivência vazia que se dáa “espiar” a milhões de telespectadoresé um sintoma inquietantede que, como diz Olgária Matos 3 ,as pessoas perderam a capacidadede imaginar a própria vida. Segundoa autora, telenovelas e modelosmidiáticos existem mundo afora,o grande problema é quando essepassa a ser o padrão de organizaçãoda sociedade, como no Brasil.O sonho, o horizonte da vida, essareserva de uma utopia individual quemove a existência de cada um, sucumbiuaos formatos televisivos. Osque disputam o Big Brother aspirama tornar-se famosos, ainda que a famaseja absolutamente efêmera, umsopro. E os que os assistem embarcam,ainda que vicariamente, nestejogo ilusório. “Eu saio da banalidadeda minha vida e vou ver a banalidadeda vida do outro. Querer viver portransferência faz parte de um processode perda do significado das coisase de incapacidade de imaginação”,argumenta Olgária (2007: 47).É assim que, em busca da famaa qualquer preço, instala-se o quea autora chama de “escalada da insignificância”,em que a sociedadetende a espelhar-se em celebridadesartificialmente criadas. A famae a glória, que no passado estiveramligadas ao mundo ancestral eguerreiro, narradas de forma épicae atribuídas a heróis exemplares,47


Janeiro 2008parecem tornar-se potencial e ilusoriamenteacessíveis a todos. Osvalores da mídia e da indústria doentretenimento passam a moldar oshorizontes culturais.A insignificância pública doshomens na sociedade de massa, asociedade do anonimato, precisaser compensada, como nos instigaa pensar a psicanalista Maria RitaKehl (2004), pelo mecanismo deidentificação com a imagem de umlíder ou ídolo. O espaço público deixa,então, de ser o espaço do debatepúblico de idéias para se tornar espaçode adesão à palavra do líder.Rapidez, fluidez, novidade,são regras que presidema narrativa televisiva,com o intuito de prendera atenção do telespectador.Assim, os acontecimentosdevem ser portadores,sempre, de uma dimensãode novidade semelhanteà do discurso publicitárioEsse mecanismo de identificaçãodo sujeito na massa é diferente,porém, da condição do sujeito nasociedade do espetáculo, segundoa autora, estágio mais avançado emrelação à primeira. Com a expansãoda televisão, desenvolveu-se um espaçode visibilidade paralelo, quealém de substituir o espaço público,destina-se à catarse e ao entretenimentodas massas. Portanto não sepode exigir dele fidelidade à realidadesocial. Quando este se colocano centro da lógica de coesão social,através da esfera de visibilidadetelevisiva, acaba por se tornaruma ficção totalitária (p. 156).Rapidez, fluidez, novidade, sãoregras que presidem a narrativa televisiva,com o intuito de prender aatenção do telespectador para queele não mude de canal. Nessa lógica,os acontecimentos devem serportadores, sempre, de uma dimensãode novidade semelhante à dodiscurso publicitário, que apaga ahistória e insere toda informação eimagem na lógica dos aparecimentosmeteóricos.Impera, segundo Kehl, um estímuloao gozo permanente, comprevalência de uma moral hedonistaem que tudo é permitido ejustificável, desde que conduza aoprazer individual. As celebridadesRevista <strong>Adusp</strong>produzidas no sopro efêmero dosreality shows encarnam de formaemblemática os padrões e valoresdessa moral. Afinal, o que está emjogo é a capacidade de cálculo e deusar os estratagemas mais eficazespara vencer os outros na disputa.Não importa se, para isso, os meiossejam pouco nobres. É o jogo dovale-tudo. Espelho deformado queamesquinha o horizonte da vidacontemporânea.Sobre a autoraRosaly de Seixas Brito é professora adjuntada Faculdade de Comunicação da Universidade Federaldo Pará, coordenadora do curso de especialização emImagem e Sociedade da UFPA e membro do Núcleode Pesquisa em Comunicação e Culturas Urbanas daSociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares daComunicação (Intercom).Sobre o textoVersão resumida de trabalho originalmente apresentadono XXX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação/Intercom, realizado em setembro de 2007, em Santos (SP),e publicado na íntegra nos anais do congresso.Notas1 Nineteen Eighty-Four (1984) é o mais famoso dos romances de George Orwell (pseudônimo de Eric Arthur Blair,nascido nas Índias britânicas). Foi escrito dois anos antes da morte do autor, em 1948. Nos últimos anos de sua vida,Orwell, que havia lutado na Guerra Civil Espanhola e era fervoroso ativista político, desiludido com o stalinismo,dedicou-se a denunciar o papel do Estado no aniquilamento das liberdades individuais e da cidadania. No livro, quefaz uma metáfora futurista sobre o poder no ano de 1984, este estaria concentrado em três imensos superestados:Oceania, Eurásia e Lestásia, que vivem numa permanente guerra cujo objetivo é exclusivamente manter o poder dogrupo dominante. O enredo é conduzido pela ótica da Oceania, onde um sistema de teletelas permite perpetuar opoder político do Grande Irmão (Big Brother, em inglês), mantendo a vigilância sobre os indivíduos.2 Como bem lembrou Eugênio Bucci, citado por Maria Rita Kehl (2004:167), na casa do Big Brother há tudo do bome do melhor – eletrodomésticos de última geração, móveis modernos, piscina, sala de ginástica etc – que alguémpossa desejar, menos uma estante de livros.3 Na matéria “Fama para todos”, publicada na edição de 07/03/2007 da Revista Carta Capital, em que a filósofa é entrevistadapela repórter Ana Paula Sousa, a propósito da publicação de seu livro “Discretas esperanças” (EditoraNova Alexandria), p. 47.Referências bibliográficasBAITELLO, Norval. “O olho do furacão: a cultura da imagem e a crise de visibilidade.” Disponível em http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/convidado17. Acesso em 08/10/06.BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. 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In: Revista Carta Capital, nº. 434, São Paulo, 7/3/2007.VIRILIO, Paul. O espaço crítico. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.48


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008TV Brasil:o faz-de-conta daemissora públicaBia BarbosaJornalista, membro do Intervozes-Coletivo Brasil de Comunicação SocialDaniel GarciaAspecto da manifestação de 5/10/07, na Avenida Paulista“Quando o Estado se confunde com o governo, e este último como Presidente da República ou com o Primeiro-Ministro, a televisãopública é inviável”. A frase, do economista chileno Diego PortalesCifuentes, não poderia ser mais precisa para o momento históricoque o Brasil atravessa. No dia 2 de dezembro de 2007, estreou(somente para três capitais brasileiras, é bom lembrar) a TV Brasil,primeira emissora pública nacional do país. Ela nasceu cambaleantee vinculada quase só ao governo federal, com um Conselho Curadorelitista, sem representação de trabalhadores e movimentos sociais49


Janeiro 2008Nascido da fusão daRadiobrás, TVE/RJ eTVE/MA, o canal temo objetivo de rompero direcionamento eestreitamento dosconteúdos da TV privada, possibilitandoa pluralidade e regionalizaçãoda produção, e dando espaçoà diversidade brasileira. No papel,e nas intenções, tudo é louvável.Mas os caminhos que trouxeram aoar a TV Brasil foram, e tudo indicaque permanecerão sendo, um tantotortuosos.Olhando para a história dasemissoras públicas, vê-se que os primeiroscanais na Europa são marcadospor uma concepção elitista eum viés voluntarista: os intelectuaise artistas acreditam saber o queas massas precisam, e com isso recriama cultura nacional. Na AméricaLatina, as televisões nascemestatais antes que públicas, e muitorapidamente são privatizadas, dependendomaciçamente da indústriaamericana na programação eno modelo de produção.Em meados dos anos 1970, teminício a mudança do rumo ideológicoeconômico global e se inicia oprocesso de privatização da televisãoe do rádio na Europa. A liberalizaçãose expressou em menosregulamentações e maior rapidezna adoção de novas tecnologias.Em pouco tempo, no entanto, gerouum novo cenário, no qual a televisãopública perdeu sobretudoseu sentido de projeto cultural nacional.Ao ser posta para concorrercom os canais privados pelo “bolopublicitário”, e portanto pelos índicesde audiência, a TV pública seviu presa num paradoxo: fazer ouuma programação cada dia maisparecida à da TV privada, ou umaprogramação voltada para minoriasculturalmente sofisticadas.No Brasil, a radiodifusão chamadapública nasce em dois modelos:o estatal stricto sensu e os canaiseducativos. A primeira emissoraeducativa a entrar no ar foi a TVUniversitária de Pernambuco, em1967. Mas como a implantação dasTVs públicas se deu sem obedecera um planejamento que decorressede uma política setorial de governo,entre 1967 e 1974 surgiram noveemissoras educativas, cujas origense vinculações eram as mais diversas.Em 1988, a Constituição Federalprevê a complementaridade entreos sistemas privado, público e estatal.Compreende-se, portanto, quedeveria haver uma definição clarade cada um desses diferentes sistemas.Na prática, não há. Até hojenão existe de forma regulamentadaa figura jurídica do que seriamemissoras públicas no Brasil. Hápouquíssimo ou quase nada na legislaçãono que se refere a normasque assegurem o cumprimento dosrequisitos da prestação de serviçopúblico por estas emissoras.As que se autodenominam comotal são legalmente educativasligadas aos governos estaduais, algumasgeridas por fundações de direitoprivado, outras por fundaçõesde direito público, outras universitárias.A maioria funciona sob ummodelo de gestão subordinado aoEstado, contando com um conselhocom representantes da sociedade.Sua forma de financiamento é diferenciadae, geralmente, dentroRevista <strong>Adusp</strong>do orçamento de cada unidade daFederação, não há vinculações diretasa algum imposto ou outra fontede renda. Um dos resultados dessadependência financeira do Estado éa subordinação das emissoras públicasao poder político vigente.Enquanto a televisãocomercial fala aoconsumidor, a televisãopública dialoga como cidadão, formandotelespectadores críticos.Cabe a ela ampliar aspossibilidades simbólicasde representação para aconstrução da cidadaniaO avanço obtido em termos doque se define como radiodifusãopública no país veio com a lei queregulou a cabodifusão (8.977/95),que criou os “canais de uso público”e estabeleceu a obrigatoriedadedas operadoras de TV a cabo deveicularem tais canais: comunitário;Senado; Câmara Federal; canal Legislativomunicipal/estadual; universitárioe canal educativo-cultural.Posteriormente, foi acrescentadoo canal da Justiça. Em sua origem,eles já demonstram uma falta declareza entre o que se entende porcomunicação pública e o que se entendepor estatal.Em busca de uma identidade, asemissoras chamadas públicas buscaramconsolidar, na última década,50


Revista <strong>Adusp</strong>uma visão comum sobre sua missãoe papel na sociedade. Partem deum projeto público de televisão queofereça o reconhecimento e expressãoda diversidade cultural que representea pluralidade ideológicopolíticae propicie uma informaçãoindependente e inclusiva. Ou seja,enquanto a televisão comercial falaao consumidor, a televisão públicadialoga com o cidadão, formandotelespectadores críticos. Cabe a elaampliar as possibilidades simbólicasde representação para a construçãoda cidadania, através de processostransparentes e participativos, quegarantam a inclusão de outras estéticase outras narrativas.Neste sentido, a televisão públicaé um poderoso e necessário instrumentode transformação social.Para atingir este objetivo, precisa davontade da sociedade e da disponibilidadedo Estado e de suas instituiçõesem democratizar a informação,a formação e o entretenimento, nãodeixando isso apenas nas mãos dasemissoras privadas, e em garantir aindependência política e econômicada emissora pública.A informação deve produzirreflexão sobre os acontecimentose não uma submissão à emoçãoproposta por eles. Não interessa oespetáculo da notícia; interessa oacompanhamento e reflexão sobreos problemas brasileiros e mundiaise as alternativas para sua superação.Uma programação que permitaoutras abordagens de opinião; eque reconheça os processos sociaiscentrais para a comunidade que, apartir de suas especificidades, dãovisibilidade a outros sujeitos da comunicação.Assim como todas as emissorasde rádio e televisão, a programaçãodas públicas deve seguir os princípiosconstitucionais da preferênciaa finalidades educativas, artísticas,culturais e informativas; de promoçãoda cultura nacional e regional eestímulo à produção independenteque objetive sua divulgação; e deregionalização da produção cultural,artística e jornalística. Tudo isso écentral em seu processo de consolidação,de construção de sua credibilidadee também de sua audiência.O debate sobre a audiência dasemissoras públicas, aliás, está diretamentevinculado à sua programação.Na sua condição de televisão aberta,não é incorreto encarar a vocação datelevisão pública como uma vocaçãode massas. Há quem defenda queseus programas devem buscar atingirum grande público. É desta formaque trabalha a British BroadcastingCorporation (BBC), a rede públicada Inglaterra. O outro lado destamoeda é que o foco exclusivo naaudiência imediata, típico dos canaiscomerciais, deixa pouca margem deliberdade para a experimentação,a inovação e o desenvolvimento dadiversidade de programação.Esta ponderação faz-se especialmenteimportante no caso brasileiro,em que os limites de exploraçãoda linguagem por parte da televisãosão especialmente estreitos e o modelodas grandes redes comerciais éa única referência consolidada. Esteé o espaço que deve ser ocupadopela radiodifusão pública: buscar orompimento dos padrões estabelecidospela televisão privada.É bom lembrar ainda que o termoaudiência, desde suas origens,Janeiro 2008traz em si o duplo significado dereceber e emitir informação. Seriapreciso lutar então para que a televisãopública fosse assumida e praticadacomo dispositivo educativocultural-político;para que as câmerase microfones chegassem às mãosdas pessoas e assim eliminassem osmediadores profissionais, possibilitandoque cada voz se expressasseda sua própria e única maneira,garantindo o exercício do direito àcomunicação de toda a população.Falta uma regulamentaçãodo setor que defina osparâmetros e alcancesda participação popularna radiodifusão públicabrasileira. Participaçãoessencial para consolidara comunicação como umdireito e exercer controlesocial da mídiaEm Portugal, um dos canaisda Rádio e Televisão de Portugal(RTP), chamado de canal da sociedade,tem sua grade de programaçãoocupada justamente pelo queé produzido por dezenas de instituiçõessociais do país, em cumprimentoao que a Constituiçãoportuguesa diz sobre o objetivo daabertura progressiva das emissorasà sociedade civil. Por aqui, as experiênciasainda são pontuais. Mesmoquando a emissora consegue certaautonomia política em relação ao51


Janeiro 2008governo, ainda é muito restrita aabertura da programação à participaçãodireta da sociedade.Há um certo consenso no debatede que o ponto de partida de qualquerestratégia de longo prazo paraa consolidação da radiodifusãopública é a construção de um estatutojurídico que lhe proporcioneautonomia em relação ao governoem exercício. Enquanto este regimeconstitucional não chega, o caminhoque vem sendo trilhado é acriação de conselhos ou comissõesde televisão nos canais públicos. Essesórgãos não apenas devem abriras portas da emissora para que umpouco da diversidade social se reflitanas decisões sobre o funcionamentodos canais, como se transformar emespaços de exercício de direitos dapopulação. Devem ir muito além,portanto, da idéia de que a criaçãode pontes entre as emissoras e suasaudiências se limita a simples serviçosde atendimento e reclamaçãodos telespectadores.O cenário no país é bem diverso.Falta uma regulamentação do setorque defina os parâmetros e alcancesda participação popular na radiodifusãopública brasileira. Nãoseria nenhuma inovação em nossoordenamento jurídico regulamentara participação popular na definiçãode uma política pública; há exemplosdiversos em setores como a saúde e aassistência social. Em âmbito municipale estadual, são várias as ações depressão em prol da criação de conselhosde comunicação. Sua existênciaé essencial para uma mudança deparadigma rumo à consolidação dodireito à comunicação e ao exercíciodo controle social da mídia.Outro papel que caberia aosconselhos de comunicação seria agestão dos recursos que financiamas emissoras públicas. Três fontestêm sustentado a radiodifusão públicabrasileira: dotação orçamentáriados Estados, a prestação deserviços e venda de produtos, e usoda publicidade comercial. Por lei,as televisões educativas foram proibidasde veicular publicidade. Nosúltimos anos, as leis de incentivoà cultura, destinadas a arrecadarfundos na iniciativa privada, abriramespaço para um tipo diferentede patrocínio, caracterizado pelosanúncios institucionais.Cada uma dessas fontes deve seranalisada com cuidado. No caso dofinanciamento direto do Estado,corre-se o constante risco de contingenciamentode verbas. As própriasemissoras têm travado intensadisputa no sentido de aumentar suareceita. Muitas vezes, para que ocontingenciamento não se concretize,há uma ingerência política dogoverno sobre a emissora pública.Não são poucas as denúncias nestesentido. No caso da prestaçãode serviços, é importante observarque, em mais de 90% dos casos, ocliente desses serviços é o próprioEstado. Já a venda e licenciamentode produtos derivados de programasproduzidos pelo canal têm semostrado uma importante fonte alternativade receita.Este, na verdade, é um dos principaisdesafios que as emissoraspúblicas enfrentam hoje. Há setoresque atuam para criar alternativasque vão desde a permissão eaumento da publicidade à adoçãode modelos de contribuição diretaRevista <strong>Adusp</strong>por parte da população. Há aindaquem defenda a idéia de umataxação sobre a televisão privada,por considerarem inconcebível asempresas comerciais usarem espaçoda sociedade para se capitalizarprivadamente sem pagar coisa algumapor isso. Não seria uma propostainédita no país. Na área dastelecomunicações, o pagamentopela outorga e pelo direito de usode radiofreqüência já existe.Que valha o exemplo europeu:os orçamentos dos sistemas públicosde radiodifusão do Reino Unido,Dinamarca, Áustria, Alemanhae Suécia, em dados do final da décadade 1990, ultrapassam 0,3% doPIB desses países. No Brasil, o orçamentodas emissoras educativasde todo o país, incluindo todo oorçamento do sistema Radiobrás,não chega a R$ 450 milhões, ou0,025% do PIB.A consolidação da televisão públicano Brasil está longe, no entanto,de depender apenas de umregime jurídico que garanta sustentabilidadefinanceira, participaçãopopular e autonomia em relaçãoaos governos. Antes de mais nada, épreciso definir-se como se dá o processode complementaridade entreos diferentes sistemas de radiodifusão— público, privado e estatal.Está claro que o Brasil ainda tempela frente o desafio de buscar umquadro institucional já consagradoem outros países do mundo no séculoXX, especialmente nas normasque impedem a concentração depropriedade dos meios e incentivoà pluralidade de conteúdos. Alémdisso, a ausência histórica de umdebate público sobre este perfil de52


Revista <strong>Adusp</strong>televisão faz com que a maior parteda população se questione acerca,inclusive, da necessidade de umaemissora pública no país.A composição do ConselhoCurador foi marcada pelafalta de critérios e peloreceio do governo de um“bombardeio” da direitadiante de uma eventual “TVLula”. O resultado foi umórgão conservador e elitistaA resposta do governo brasileiroao desafio, como visto, gigantede implantar no país uma emissorade televisão pública de veiculaçãonacional foi a criação da TV Brasil.Começou cambaleando. Nadaque justifique o discurso dos partidosde oposição, para os quaisos R$ 350 milhões orçados para2008 para a TV Brasil significamdesperdício de dinheiro público.No entanto, para garantir o caráterpúblico da emissora, há ainda umlongo caminho a ser percorrido,que passa, necessariamente, pelarevisão da Medida Provisóriaque criou a Empresa Brasileira deComunicação (EBC), responsávelpela TV Brasil.A MP, publicada no dia 11 deoutubro de 2007, vincula quaseque exclusivamente a emissora aogoverno federal. Isso fica claro nasubordinação da empresa à Secretariade Comunicação Social daPresidência (Secom) e no poderdo Presidente da República de indicar80% dos membros do ConselhoAdministrativo e 95% dosintegrantes do Conselho Curador(responsável pelas diretrizes e linhaeditorial), formado por “representantesda sociedade civil”.Que representantes são estes? Emvez de optar por uma arquiteturapública de escolha de seus integrantes,o que se viu foi uma totalausência de critérios no processode definição do Conselho Curador.Aliado ao receio do governodo bombardeio da direita diantede uma eventual “TV Lula”, atreladaao governo, o resultado foium órgão conservador e elitista,sem qualquer representação dosmovimentos sociais e dos trabalhadores1 .A TV Brasil também nasce semoutros mecanismos de participaçãopopular. Alijada do processode discussão sobre os conselheiros,à população caberá agora esperara troca de mandatos no órgão para,através de uma consulta pública, semanifestar sobre os novos nomesapontados pelo Presidente. Comotal consulta funcionará e que poderesterá ainda não está claro. Élegítimo e necessário que o governofederal tenha um veículo de comunicaçãonacional, para estabelecerum contato direto com a populaçãoe prestar contas de suas ações. Osveículos vinculados a poderes daRepública, como governos, legislativose órgãos do Poder Judiciáriosão exemplos disso. São, no entanto,meios estatais, e esta diferençaprecisa ficar clara.Seu conteúdo, além de veiculadona própria TV Brasil, deve ficarJaneiro 2008restrito, num primeiro momento,a emissoras educativas menores,que se associarão à chamada redepública em função de sua demandade programação e recursos estatais,que serão distribuídos aos canaisassociados à TV Brasil. Televisõeseducativas em praças importantes,como São Paulo, Minas Gerais, RioGrande do Sul e Paraná, podemnão entrar na nova rede. Ainda ficaem aberto como funcionará o aproveitamentode produções independentese regionais, desenvolvidasfora dos grandes centros.O pontapé financeiro virá doorçamento da União. Para impedirque o controle sobre os recursosse transforme em uma formade ingerência, no entanto, é precisogarantir financiamento estávele vinculado a alguma fonte dereceita. De outro modo, este oufuturos governos podem atacar anova televisão pública, sucateandoa emissora. Diversos especialistase organizações da sociedade civildefendem a criação de um fundoespecífico para este fim. A MPda TV Brasil abre espaço paradotações orçamentárias diversase, embora proíba a veiculação deanúncios de produtos e serviços,permite a publicidade institucionalde empresas de direito privadoe deixa em aberto a possibilidadede outras formas de financiamento.Este último ponto provocouuma avalanche de emendas noCongresso Nacional, onde tramitaa medida provisória, em defesado interesse das emissoras comerciais,que temem que o novo canalesvazie as TVs comerciais da publicidadeestatal.53


Janeiro 2008Em cidades onde o espectroeletromagnético já estácongestionado, o risco denão haver um canal paraa veiculação da TV Brasilé seríssimo, mesmo com atransição para a TV digitalHá ainda um outro problema aser resolvido: em cidades onde oespectro eletromagnético já estácongestionado, o risco de não haverum canal para a veiculação daTV Brasil é seríssimo, mesmo com atransição para a TV digital. O esforçofrustrado do governo de colocara emissora no ar, para todo o país,no dia 2 de dezembro, junto coma estréia da TV digital, tinha esteentre seus objetivos: garantir espaçona TV aberta para o novo canal público.Em São Paulo, por exemplo, adestinação de 6 MHz adicionais paraque as atuais concessionárias dosinal analógico realizem em simultâneoa transmissão digital (emboraa nova tecnologia requeira menosespaço) fará com que a TV Brasilseja alocada nos canais 68 e 69 doUHF (analógico e digital), o que impõea ela uma condição marginal nodial. No entanto, segundo a própriaAnatel, esses canais não admitem aoperação analógica. Ou seja, em SãoPaulo, a TV Brasil estará disponívelsomente ao ínfimo contingente populacionalque terá acesso ao caroconversor da TV digital.Expectativas frustradas paraquem participou do I Fórum Nacionalde TV Públicas, uma iniciativapioneira do Ministério da Cultura,com apoio da Presidência da Repúblicaque, por nove meses, debateuconcepções e modelos para a TVpública brasileira. A Carta de Brasília,resultante do encontro finaldo processo, realizado em maio de2007, espelhava os anseios de pesquisadores,profissionais do campopúblico da comunicação, gestores,organizações da sociedade civil edefensores da democratização damídia. Falava de uma emissora quepromoveria o intercâmbio entre asmúltiplas identidades do país; queseria instrumento de universalizaçãodos direitos à informação e à comunicação;e cujas diretrizes de gestãoseriam atribuição de um órgão colegiadodeliberativo, representativoda sociedade, no qual o Estado ou oGoverno não teriam maioria.A Carta de Brasília tambémapontava para a construção de umsistema público de comunicação nopaís, o que implica ir além da TVBrasil e falar em outros canais públicos,universitários e comunitários,em rádios públicas, em Internet. Oformato deste sistema continua umaincógnita. Ele virá? Que incidênciaRevista <strong>Adusp</strong>a população terá sobre ele? Sair doatual estágio da criação de uma TVestatal com aspirações públicas paraum sistema público é tarefa urgentee necessária.No próximo período, os debatesem torno de uma nova Lei Geral deComunicações devem abrir espaçopara que a população se envolvanessas discussões. No momento,as entidades da sociedade civil quelutam pela democratização da comunicaçãooscilam entre a compreensãode que não é possível maispermanecer com a legislação atuale o receio do poder que os gruposeconômicos terão no processo, alémda correlação de forças desfavorávelno Congresso e na falta total de disposiçãodo governo em avançar emmedidas democratizantes neste campo.Mas até mesmo os radiodifusoresquerem regras mais definidasdiante da convergência tecnológica.A realização da primeira ConferênciaNacional de Comunicação podeser o espaço ideal para o debate detodas essas questões. E o empurrãofinal para que o Executivo federalcoloque em prática, no Brasil, umaagenda já executada há décadas poroutras nações.Sobre a autoraBia Barbosa é jornalista. Foi editora de DireitosHumanos e Educação da agência Carta Maior. Trabalhouna Editora Abril, no Departamento de Comunicação daUnesco e na Rádio França Internacional. Integra o Intervozes-ColetivoBrasil de Comunicação Social, entidadeque luta pela democratização do direito à comunicação.Notas1 O Conselho Curador tem a seguinte composição inicial: Ângela Gutierrez, empresária e colecionadora de arte; Cláudio Lembo, ex-governador de São Paulo (D<strong>EM</strong>); Delfim Netto, exdeputadofederal (PMDB); Ima Vieira, diretora do Museu Paraense Emílio Goeldi; Isaac Pinhanta, professor indígena; José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, proprietário da Redede TV Vanguarda e consultor da Rede Globo; José Martins, engenheiro mecânico; José Paulo Cavalcanti, advogado e jornalista; Lúcia Willadino Braga, diretora da Rede Sarah deHospitais; Luiz Edson Fachin, professor de Direito da Universidade Federal do Paraná; Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, proprietário de faculdade privada (Facamp); Maria daPenha Maia, biofarmacêutica cearense; MV Bill, rapper e militante do movimento negro; Rosa Magalhães, carnavalesca; Wanderley Guilherme dos Santos, professor de teoria políticada UFRJ. Belluzzo foi indicado por Lula para presidir o Conselho, cujos membros referendaram a escolha em sua primeira reunião.54


Revista <strong>Adusp</strong>A nova televisãobrasileiraLaurindo Lalo Leal FilhoProfessor da Escola de Comunicações e Artes da USPJaneiro 2008Daniel GarciaSão Paulo, 5/10/07: a faixa diz tudoArdilosamente confundida com uma TV estatal, a TV Públicapassou a ser acusada, antes mesmo de entrar no ar, de servir ainteresses do governo, ou, na linguagem da mídia hegemônica, de“chapa branca”. Tal fúria esconde o temor dos concessionáriosdos canais comerciais de enfrentar uma concorrência qualificada.Os defensores da TV Pública, por outro lado, ainda se ressentemda falta de elementos mais consistentes para defendê-la ejustificá-la. O que também é compreensível dada a quaseinexistência desse modelo entre nós até hoje55


Janeiro 2008No final do ano a sociedadebrasileira foiapresentada a doisnovos fenômenos televisivos:um tecnológico,a TV digital,e outro institucional, a TV pública.Pompas e circunstâncias marcaramo lançamento do modelo digital.Críticas e muxoxos cercaramo anúncio da TV não comercial.Tudo dentro da lógica do mercado.A televisão digital, tal como foiconcebida no Brasil, abre novasperspectivas de negócios para osradiodifusores, anunciantes, agênciasde propaganda, fabricantes dereceptores e todos os demais ramoscomerciais que gravitam emtorno da TV. Daí a festa. Ao telespectadorrestará ver os mesmosprogramas edificantes que temoshoje com um pouco mais de nitidez(quando puder comprar oconversor mais simples) e adquirirrapidamente o produto anunciadona tela (para aqueles que conseguirempossuir o conversor maiscaro). Convenhamos tratar-se deum uso medíocre para uma tecnologiatão sofisticada.A TV pública pode ser a exceçãoa essa regra. Seu compromissoé com o público e não com omercado. Por isso foi desde logoapedrejada. Ardilosamente confundidacom uma TV estatal passou— sem ainda estar no ar — a seracusada de servir a interesses dogoverno, ou na linguagem da mídiahegemônica, de “chapa branca”. Talfúria esconde o temor dos concessionáriosdos canais comerciais deenfrentar uma concorrência qualificada.Os defensores da TV pública,Revista <strong>Adusp</strong>por outro lado, ainda se ressentemda falta de elementos mais consistentespara defendê-la e justificá-la.O que também é compreensível dadaa quase inexistência desse modeloentre nós até hoje.E não é só aqui que ocorre essedebate. Mesmo na Europa, onde aTV em vários paises nasceu pública,as pressões do mercado exigem delasempre um estado de alerta. Foi amobilização da sociedade britânica,por exemplo, que evitou a privatizaçãoda BBC nos anos 1980, desejoardente do governo MargarethTatcher. A própria União Européiatem manifestado a preocupação dedefender a TV pública dos ventosneoliberais. Em 1997, no Protocolode Amsterdam, deixou isso claroao dizer que “o sistema de radiodifusãopública está diretamenterelacionado com as necessidadesdemocráticas, sociais e culturais decada país, e com a necessidade depreservar o pluralismo dos meiosde comunicação”.Com a chegada da televisão digitala defesa da TV pública se fezainda mais necessária. Em junhode 2004, os órgãos reguladores europeusde radiodifusão publicaramdocumento onde está dito que “emtodos os casos o desenvolvimentoda Televisão Digital Terrestre pareceestar diretamente conectadocom a sinergia de dois fatores: umaatitude proativa do Serviço Públicode Radiodifusão conjuntamentecom um modelo regulatório quegaranta um papel de liderança daradiodifusão pública”.Como aqui ainda estamos longedesse protagonismo exercidopela TV pública, cabe desenvolveralgumas idéias no sentido decolaborar com a argumentaçãoem sua defesa.Partimos de três razões centraisjustificadoras da existência da televisãopública no Brasil: a socializaçãoda produção de bens simbólicosproduzidos no país, a abrangêncianacional e sua necessidade social.O modelo comercial,regido por índices deaudiência, impede o acessoà televisão de bens culturaisnão transformados emmercadoria. A sociedade vêse,dessa forma, privada deconhecer e reconhecer a suaprópria produção simbólicaA primeira diz respeito à hegemoniado modelo comercial,regido por índices de audiência(mera sanção do mercado, no dizerdo sociólogo francês PierreBourdieu), que impede o acessoà televisão de bens culturais nãotransformados em mercadoria. Asociedade vê-se, dessa forma, privadade conhecer e reconhecer asua própria produção simbólica.Não cabe aqui detalhar os prejuízosdecorrentes dessa prática, maseles podem ser intuídos. Vão desdea fragilização das referênciasnacionais à inibição do surgimentode novas manifestações culturaise artísticas, vítimas da falta dereconhecimento público.56


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Reprodução/Daniel GarciaPersonagem da novela “Duas Caras”, da TV Globo: estereótipos dominam a TV comercialA segunda diz respeito à necessidadede uma rede de emissoraspúblicas, fenômeno desconhecidono país. As experiências até hojeexistentes de televisões públicasou estatais no Brasil foram semprefragmentadas, restritas a limitesregionais. Uma rede nacional teráque atender ao princípio da universalidadegeográfica, chegandoa todos os domicílios e buscandoatender a todos os tipos de público.Cabe lembrar que se trata de umserviço público, mantido pelos impostosde toda a população e que,portanto, todos os cidadãos devemter a possibilidade de acessá-lo.E quanto à necessidade socialtrata-se de algo quase auto-evidente.O histórico do modelo detelevisão de mercado oferecido àsociedade brasileira estabeleceuuma forma de pensamento uniformizado,reprodutor das idéias dominantese disseminadas a partirdos centros do capitalismo global.Individualismo, consumismo, enfraquecimentodo papel do Estado,tornaram-se matrizes ideológicasda produção televisiva. A elas, nomodelo hegemônico, não cabemalternativas. Como fonte única deinformação e entretenimento paramaioria da população, essas emissorasmoldam perigosamente comportamentos,especialmente dascrianças e adolescentes. Há relatosde pais de filhos bem pequenoscontando que a palavra “compra”surge muitas vezes junto ou mesmoantes de “mamãe” ou “papai”.Uma das alternativas a esse massacreideológico, respeitado o jogodemocrático, é a TV Pública.Cabe a ela, no dizer de Jay Blumler,professor emérito da Universidadede Leeds, desenvolver uma“ética da abrangência”, ou seja,procurar atender às expectativas detodo o tipo de público existente noraio de sua atuação. Para exemplificaressa idéia, o pesquisador britânico— ele foi diretor do Centrode Pesquisas de Televisão daquelauniversidade — contrapõe o modelode televisão pública existentena Europa ao dos Estados Unidos.Diz ele que este último pode serdefinido como “uma ilha de bemestarnum mar de comercialismo”.Nos Estados Unidos — prossegue— seriados como “Dallas” são exclusivosda televisão comercial, enquantorecitais de ópera têm comoveículo a televisão pública. O modeloeuropeu, por sua vez, procura“abranger” os dois públicos, daía idéia da ética da abrangência.Algo próximo do conceito de umatelevisão generalista, fundamentalpara atender diferentes gostos enecessidades simbólicas.57


Janeiro 2008Documentos produzidos em diferentestelevisões européias mostramque seus fundadores as conceberamcomo instrumentos responsáveispor sustentar e renovar ascaracterísticas culturais básicas dasociedade, capazes de oferecer aosatores, músicos, escritores, teatrólogose intelectuais de modo gerala oportunidade de disseminaremde forma ampla seu trabalho criativo.E de possibilitar aos ouvintes etelespectadores a oportunidade deacesso ao produto desses talentos.O primeiro diretor-geral da BBC,o escocês John Reith, dizia que oobjetivo do rádio era de “levar paradentro do maior número possível delares tudo o que de melhor existe emcada parte do esforço e realizaçãohumana”. Cerca de 50 anos depois,nos anos 1980, outro diretor da BBC,Alsdair Milne, afirmava que o “o serviçopúblico de rádio e televisão devetornar o popular respeitável e o que érespeitável popular”. Um belo desafiopara os nossos produtores.Em vários países da Europa,passada a maré privatistados anos 1980, as televisõespúblicas seguem dividindoao meio as audiências.Para as emissoras públicasa audiência não pode serobsessão, mas também nãopode ser desprezada, afinaltrata-se de dinheiro públicoAudiência das TVs públicas na Europa (2002)PaísCanais públicosMas vale a pena mencionar outraspreocupações dessas emissoras.Elas têm em comum a obrigação de“despertar o público para idéias egostos culturais menos familiares,ampliando mentes e horizontes, etalvez desafiando suposições existentesacerca da vida, da moralidadee da sociedade. A televisãopode, também, elevar a qualidadede vida do telespectador, em vez depuxá-lo para dentro do rotineiro”.São idéias que estão até hoje integradasem programas considerados,internacionalmente, de alta qualidade,“concebidos como forma decapacitar o telespectador para umaenriquecedora experiência de vida”,no dizer do professor Blumer.E não estamos falando de programaselitistas ou maçantes, comoalguns detratores da televisãopública gostam de rotulá-los. Provadisso são os índices de audiência.Em vários países da Europa,passada a maré privatista dos anos1980, as televisões públicas seguemdividindo ao meio as audiências.Canais privadosnacionaisRevista <strong>Adusp</strong>Outros*Alemanha 40,5% 41,5% 18%Espanha 30,5% 43% 26,5% (1)França 41,5% 47,5% 11%Itália 45% 44% 11%Reino Unido 46% (2) 30% 24%Países Baixos** 36% 41,5% 22,5%Portugal** 26,5% 63% 10,5%*Cabo, satélite, locais, etc.** Para esses países o ano de referência é 2002.(1) Dos quais 18% através dos canais “autonômicos” das principais províncias, transmitidos demodo terrestre.(2) Dos quais 10% pelo Channel 4.É sempre bom lembrar que paraas emissoras públicas a audiêncianão pode ser obsessão — como sedá com as emissoras comerciais— mas também não pode ser desprezada,afinal trata-se do uso dedinheiro público que, em qualquercircunstância, deve ser bem aplicado.Apenas para ilustrar, a tabelaacima traz alguns números de audiênciana Europa. Os dados sãode 2003 e foram publicados no livroLa Tèlèvision, de Régine Chaniac eJean Pierre Jézéquel, em 2005.Claro que para chegar a essesíndices é indispensável uma boa epermanente fonte de recursos. Masnão só. No caso de uma TV Públicaé fundamental também a sua independênciaem relação a interessesparticularistas, sejam eles políticos,comerciais, religiosos. Vinculandosea qualquer um deles, a TV Públicaperde não só a sua autonomia,mas também sua identidade e o queé pior, a sua credibilidade.Cabe, isto sim, ressaltar a importânciadesses fatores para a questão58


Revista <strong>Adusp</strong>central, deles decorrente: o conteúdoda programação. Afinal é elaa ponta final de todo o processo,aquilo que efetivamente chega àcasa do telespectador.Financiamento consistente econtrole democrático são pressupostosbásicos para a garantia deum conteúdo de qualidade. Conteúdoque, entre outras coisas dê,por exemplo, um amplo espaço aoscriadores brasileiros, espalhadospor todo o país, e impedidos pelooligopólio de mostrar o que fazem.Abrir para a experimentaçãoe a criatividade deve ser a missãocentral da televisão pública, dandoconta da diversidade cultural do país.Fugindo do monopólio estabelecidopelo eixo Rio-São Paulo, comofazem as emissoras comerciais.Na verdade, a televisãobrasileira não comunica,apenas informa, ou seja, põeas idéias na forma ideológicade quem a controla. Cabe à TVpública reverter esse quadropraticando um jornalismocrítico e independenteMas vamos a algumas hipótesesmais concretas de programação, deixandode lado, ainda que brevemente,as generalidades. Poderia ser definida,por exemplo, uma faixa deprogramas musicais para as 20 horas,de segunda a sexta. A cada dia daJaneiro 2008semana esse horário seria preenchidopor uma emissora pública de qualquerEstado, capaz de produzir ummusical de qualidade. Seria a grandeoportunidade de o brasileiro, finalmente,conhecer o que se faz em outrospontos do seu próprio país.Outra hipótese seria a da redetendo como missão dar ao públicoum cinema de bom nível, nacional eestrangeiro, exibido sem intervalos.Algo que alguns canais a cabo já fazempara poucos privilegiados (menosde 10% da população brasileira).Para não falar da necessidade de umaprogramação infantil sedutora, comconteúdo educativo, mas sem loiras,prêmios ou merchandisings. Quantoao jornalismo, é triste constatar a faltado debate na televisão comercialbrasileira. Algo tão comum, geralmentediário, na televisão de outrospaíses, aqui inexiste. Como o público,que só se informa pela TV, podeformar opinião se o contraditório sefaz ausente? Na verdade, a televisãobrasileira não comunica, no sentidode tornar os fatos comuns a todos,ela apenas informa, ou seja, põe asidéias na forma ideológica de quema controla.Cabe à TV pública reverter essequadro praticando um jornalismocrítico e independente, capaz de oferecerao telespectador informaçõesque o habilitem a tomar, ele próprio,suas decisões. O dono da verdadedeve ser o público e não a emissora.São algumas iniciativas que,quando concretizadas, darão ao públicoa oportunidade de experimentare de se acostumar com o “biscoitofino”, no dizer de Oswald de Andrade.Sem conhecer o que é bomfica difícil exigir o melhor. O resultadode uma programação desse tiposeria não só de dar diretamente aopúblico o melhor da arte, da culturae da informação existentes no país,mas também o de levar a televisãocomercial a rever seus padrões.A TV pública cumprirá dessa formaum duplo papel positivo: oferecerao seu telespectador uma programaçãode qualidade e, ao mesmo tempo,provocar mudanças para melhor natelevisão comercial. Situações comoessa justificam, sem muito esforço, osinvestimentos necessários para criare manter uma rede pública de televisão,capaz de servir de referência dequalidade para todo o país.Tentei traçar algumas das característicasdo que considero um “tipoideal” de TV Pública. Claro que algumasdelas, aqui apresentadas, nãose concretizarão. Outras, não mencionadas,farão parte do modelo. Issonão importa muito. O que realmenteconta é a possibilidade concreta queo país tem, desta vez, de por fim aoapartheid televisivo existente desdequando a televisão por assinaturachegou por aqui. A televisão públicacomeçará a cumprir sua missão quandose tornar a televisão paga dos quenão podem pagar por ela. E eles sãocerca 170 milhões de brasileiros.Sobre o autorLaurindo Lalo Leal Filho, jornalista esociólogo, é professor da Escola de Comunicações eArtes da Universidade de São Paulo e do Programa dePós-Graduação da Faculdade Cásper Líbero. Autor de ATV sob controle — a resposta da sociedade ao poderda televisão (São Paulo, Summus, 2006). Apresentao programa “VerTV”, transmitido pela TV Câmara e TVNacional de Brasília, entre outras emissoras.Sobre o textoEste artigo baseia-se em apresentação feita pelo autorno 1º Fórum Nacional de TVs Públicas, realizado em Brasíliaem maio de 2007.59


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Televisão digital:esta história nãocomeça em 2007Almir AlmasProfessor da Escola de Comunicações e Artes da USPNão há como negar que2007 ficará registradocomo marco na históriada TV brasileira. Agora,o seu significado dependedo andamento do bondeque se encontra em plenomovimento. Talvez, parauma grande parte dosbrasileiros, a TV Digitalainda seja um bicho-desete-cabeças.Entendoque se faz necessáriodesmistificá-la. Pensandode forma simples, TVDigital nada mais é do quea transposição do sinalanalógico de televisão parao seu correspondente emdados codificados em 0e 1. Só que não é só isso.A essa transposição purae simples pode-se dar onome de digitalizaçãoMaringoni60


Revista <strong>Adusp</strong>Para muitos, 2007 é oano da televisão digitalno Brasil. Para outros,nem tanto. Dependendode quem olha, esteano pode ser visto comoo ponto de chegada ou o ponto departida da televisão digital em terrasbrasileiras. Tanto para uns quanto paraoutros não há como negar que este2007 ficará registrado como marco nahistória da televisão brasileira. Agora,o seu significado depende do andamentodo bonde que se encontra empleno movimento.Talvez, para uma grande partedos brasileiros, a televisão digitalainda seja um bicho de sete cabeças;ou, se não, algo que ainda nãobateu, embora se vislumbre constantementesua feição logo na primeiraesquina. Diante disso, entendoque se faz necessário desmistificarum pouco essa tão faladatelevisão digital.Pensando de uma forma simples,e até certo ponto simplista, televisãodigital nada mais é do que a transposiçãodo sinal analógico de televisãopara o seu correspondente em dadoscodificados em 0 e 1. Só que não ésó isso. A essa transposição pura esimples pode-se dar o nome de digitalização.Porém, ao digitalizarmosqualquer informação sabe-se queessa ocupa um espaço físico dado,que, em última instância, atua comosuporte dessa informação. Paraotimização desse espaço, há a necessidadede que esses dados digitaissejam comprimidos. Então, pode-sedizer que num primeiro ponto temsea digitalização do sinal e num segundoponto a sua compressão. Issoé um fato e sem isso não há televisãodigital. Digitalização e compressão 1 .Dois pontos essenciais do mundo dainformática. Quer dizer, mais umavez, pode-se dizer, com o perdão darepetição, também de forma simplista,que televisão digital nada mais édo que uma das variantes do mundocibernético.Bill Nichols fala de sistema cibernético.Para ele, esse sistema incluielementos com “capacidade de processarinformações e de executar ações”,tais como redes de telefonia, satélites,sistemas de radares, redes de videotextosetc. 2 Dessa maneira, a televisão digitalestá também dentro desse universode processar informações a partir doconjunto binário 0 e 1. E pensando natelevisão digital interativa, em que interfacese aplicativos se colocam entreo telespectador e o aparelho de televisão,mais do que nunca se aplica o queBill Nichols chama sistema cibernético,uma vez que a TVDi 3 estaria dentrodesse “universo de intermediaçõestecnológicas, em que aparatos técnicos,culturais e semióticos estabelecemredes com o ser humano” 4 .Então, o primeiro ponto que sedeve esclarecer em relação à televisãodigital é esse aspecto tecnológicoexistente nesses dois pontos,digitalização e compressão do sinal.É preciso esclarecer que há tambémoutras duas pontas importantes nosistema de televisão digital: uma éa da transmissão e a outra é a da recepção.Sem sair das séries binárias,conceito caro ao mundo da matemática,pode-se dizer que em relaçãoao modelo (e aqui pode ser tanto omodelo de negócio quanto o modelode comunicação) tem-se dois atores,a emissora/rede de televisão de umlado e os telespectadores de outro.Janeiro 2008E mais ainda, no lado da emissora, atelevisão digital se dá em dois campos,no campo do aparato técnicoda emissão do sinal e no campo datecnologia de produção de conteúdo(independente de sua emissão).Dessa forma, pode-se estabelecerdiversos pares complementares:Digitalização CompressãoTransmissão RecepçãoDifusão Terminal de acessoCodificação DecodificaçãoModulação DemodulaçãoModelo de negócio Modelo de radiodifusãoEmissora/Rede de televisão TelespectadoresProdução de Conteúdo/programaçãoProdução de Conteúdo/suporte técnicoFalando em videoarte — denomes como Nam June Paik eJohn Cage, William Wegman,Stephen Beck, Steina e WoodyVasulka, Steve Rutt e Bill Etra— pode-se voltar no tempo edestacar a aproximação deartistas de audiovisual comengenheiros e os experimentosque desenvolveramFalando apenas de digitalização,a televisão digital já é realidade nomundo pelo menos desde 1993 e1994. Quer dizer, pelo menos numadas pontas da televisão digital, queé a da produção audiovisual. A outraponta é a da compressão, transmissãoe modulação do sinal. Os equipamentosdigitais para a produção deconteúdo audiovisual começaram a61


Janeiro 2008entrar no mercado de broadcasting,em grande escala, em 1993 e 1994,principalmente após as NABs 5 daquelesrespectivos anos, em que Sony,JVC e outras grandes companhias deequipamentos de televisão anunciarame exibiram seus primeiros parquesdigitais. Na esteira desses lançamentos,as grandes redes de televisãocomeçaram a comprar equipamentosdigitais e iniciou-se então a chamadaera digital. A própria NHK, uma dasprimeiras emissoras de televisão a sedigitalizar, já usava o termo era digital6 para se referir ao futuro que entãodespontava no horizonte. 7 Para falardo Brasil, a Rede Globo de Televisãojá naquela época inicia seu processode digitalização, sendo uma das primeirasempresas a comprar equipamentodigital de televisão, inclusivena própria NAB de 1994. 8Mas se a idéia é falar de conteúdoque tenha sido gerado comalguma base digital, pode-se colocarque na ponta da produção a televisãodigital já começa nos anos 1980,com os famosos DVE (Digital VídeoEffects), ADO, ME e TBC (TimeBase Corrector). Esses são equipamentosde efeitos especiais ou demanipulação de imagens que tomaramconta dos switchers de televisãodesde essa época e que acabaramchegando também às mãos dos produtoresindependentes e videoartistasque com eles fizeram um grandeestrago na linguagem de televisão.Falando em videoarte — de nomescomo Nam June Paik e John Cage,William Wegman, Stephen Beck, Steinae Woody Vasulka, Steve Rutt e BillEtra — pode-se voltar um pouco maisno tempo e destacar a aproximação deartistas de audiovisual com engenheiros,cujos resultados foram experimentaçõescom sistemas computacionais,desde o final dos anos 1960, resultandoem equipamentos como os vídeos sintetizadoresde Paik e Abe, de StephenBeck, e também o da dupla Rutt/Etra 9 .Alguns desses vídeos sintetizadorestinham sinais digitais controlados porsistemas analógicos. 10Saindo da televisão, mas continuandono campo da produçãode conteúdo audiovisual com basedigital, desde o final dos anos 1960esses recursos computacionais foramamplamente usados no cinema,culminando com o cinema plenamentedigital dos anos 2000.Nesse meio do caminho, algunsmarcos são importantes, como a criaçãodo Comitê MPEG e o início daspesquisas com o MPEG-1, em 1988,e o lançamento de um protótipo deHDTV digital, pela General Instruments,em 1991. Ou os lançamentosde softwares manipuladores e editoresde imagem, como o Image Studio, em1987, para Macintosh; o Adobe Premiere1.0, em 1991, para Macintosh,e o Adobe Premiere 1.0 em 1993 paraWindows; e o Vídeo Toaster, lançadopara o computador Commodore Amiga2000, em 1990, só para se ater empoucos exemplos. Nesse sistema VídeoToaster/Amiga era necessário terVTs acoplados, como numa ilha analógica,para a realização dos efeitos. Sóposteriormente, com o Vídeo ToasterFlyer, é que o sistema fica totalmentenão-linear 11 . Quando trabalhei na TVAnhembi, de 1990 a 1993, participeide trabalhos em que foi usado o VideoToaster, em 1991 e 1992. Também emmeus trabalhos de videoarte usei tantoo Video Toaster (desde 1992) quanto oPremiere (de 1993 em diante).Revista <strong>Adusp</strong>Na linha da compressão,transmissão e modulaçãodo sinal há também umemaranhado de plataformas.Por exemplo: a transmissãodigital terrestre, a digital viasatélite, a digital via cabo,a digital via IP, a digital viasistema de telefonia...Se na ponta da produção, hojeem dia, não há mais a necessidadede se discutir padrões tecnológicos,na ponta da compressão/transmissão/modulaçãoé que a televisão digitalse encontra em ebulição. Discute-se,em todos os países em queo processo de implantação da digitalizaçãodo sinal de televisão seencontra em andamento, qual o melhorpadrão técnico que otimize essetripé digital: compressão, transmissãoe modulação. Embora possa havera impressão de que essa discussãoesteja resolvida nos países em quea televisão digital já é realidade, elanão está. As questões técnicas estãoem constante mutação e a cada anonovidades invadem o mercado, levandoos países a repensarem suasopções tecnológicas.E sem se esquecer de que nessa linhada compressão, transmissão e modulaçãodo sinal há também um emaranhadode plataformas. Por exemplo, “atransmissão digital terrestre, a transmissãodigital via satélite, a transmissão digitalvia cabo, a transmissão digital via62


Revista <strong>Adusp</strong>IP, a transmissão digital via sistema detelefonia (linha comutada ou celular).Além disso, há também transmissão deáudio e vídeo, transmissão de dados, atransmissão em formatos diferentes desinal de televisão, a transmissão paracanalização de diferentes tamanhos. Porfim, a interação com o usuário.” 12Embora se entenda que nessaponta o estado de arte ainda nãoesteja consolidado, essa tecnologiadigital também já vem se desenvolvendohá muito. Para ficar nosexemplos dos três sistemas internacionaisinicialmente lançados, pode-seenumerar:a) a criação da ATSC (AdvancedTelevision System Committee)nos Estados Unidos em 1982 e aprimeira proposta de uma HDTVdigital, em 1990;b) a adoção do ATSC como padrãode televisão digital, pelo FCC,em 1996, nos Estados Unidos, e oseu lançamento comercial, em 1998;c) a criação do DVB-T (DigitalVideo Broadcasting – Terrestrial),na Europa, em 1993, e seu lançamentocomercial na França, em1996, e na Inglaterra em 1998;d) a criação da ARIB (sigla paraAssociation of Radio Industriesand Businesses [em japonês, ShadanHoujin Denpa Sangyookai]), em1995, e da DiBEG (Digital BroadcastingExperts Group [em japonêsDejitaru Hoosoo Gijutsu KokusaiFukyuu Bukai]), em 1997, no Japão;e) o lançamento comercial da televisãodigital por satélite em 2000e terrestre em 2003, no Japão. 13Destacam-se também outrosdois momentos, que de certa formase complementam. O primeiro é olançamento comercial da Hi-Vision,no Japão, em 1989; e o segundo éo lançamento do sistema DTH desatélite digital (DirecTV), em 1994.A Hi-Vision japonesa era misto deprocessamento digital com transmissãoanalógica e transmitido porcanais de satélite (BS), tendo passadopor três versões de padrão:uma de 1125 linhas, banda Y de20 MHz, banda C-larga de 7 MHze banda C-estreita de 5,5 MHz; asegunda de 1125 linhas, banda Y de20 MHz, banda C-larga de 6,5 MHze banda C-estreita de 5,5 MHz; e aterceira de 1125 linhas, banda Y de30 MHz, banda C-larga de 30 MHze banda C-estreita de 30 MHz.Como o mundo já caminhava paraa era digital e esse sistema nãoatendia plenamente esses requisitos,a Europa e os Estados Unidos, quetambém passam a pesquisar a alta definição,abandonaram seus projetosde HDTV em busca de um sistematotalmente digital. Os sistemas americanoe europeus nessa época eramo ATV (Advanced-Definition TV),de 1050 linhas e canal de 8 MHz, e oHD-MAC (High Definition MultipleAnalog Component), de 1250 linhase canal de 9 MHz, respectivamente.Para americanos e europeus, maisdo que desenvolver a transmissão emHDTV, da forma como os japonesesestavam fazendo, no misto analógico,o importante era pesquisar a digitalização.Com a digitalização a HDTVjá poderia nascer digital.Eu gosto de relembrar que as primeirasexperiências para se chegara uma padronização da televisão dealta definição (nos moldes das atuais)têm início em 1964 quando osLaboratórios de Pesquisa Científicae Tecnológica da NHK começamJaneiro 2008suas experiências em busca da sensaçãode “imersão”, própria do cinema.São essas pesquisas que levam àCriação do Sistema Muse, em 1984,que é a base da Hi-Vision japonesa.No Brasil as pesquisasdo tripé compressão,transmissão e modulação játêm uma boa história. Semter de voltar muito no tempo,destaco nesse processo ostestes de laboratório e decampo com os três principaissistemas internacionais, quecomeçaram em 1998Para finalizar, é preciso entender,efetivamente, o que acontece no Brasilneste ano de 2007. A tão discutidatelevisão digital que entrou em funcionamentocomercial em 2 de dezembrode 2007 por aqui nada maisé, tecnologicamente falando, do quea ponta da compressão, transmissão emodulação do sinal de televisão parauma plataforma específica, qual seja,a da radiodifusão terrestre (aquela emque se utilizam os canais de radiofreqüênciaem VHF e UHF 14 para fazerchegar a programação aos telespectadores,configurando assim um modelochamado de televisão aberta).O Fórum de TV Digital, constituídoem 2006, após o Decreto 5.820, de29⁄6⁄2006 15 , estuda as padronizações eespecificações técnicas de um sistemaque englobe as inovações tecnológicasdesenvolvidas no Brasil (principalmen-63


Janeiro 2008Daniel Garciate o MPEG-4 – H-264) aos protocolosde padronizações do ISDB-T (IntegratedServices Digital Broadcasting Terrestrial),sistema japonês de televisãodigital, no qual se baseia. Esse sistema,que foi inicialmente concebido comoSBTVD-T (Sistema Brasileiro de TV DigitalTerrestre), passou a ser conhecidocomo ISDTV (International System forDigital TV), para que se configurassecomo mais um sistema internacional enão se restringisse a ser apenas brasileiro.E, posteriormente, o sistema tambémfoi identificado como ISDB-Tb, ou seja,sistema brasileiro que tem como base oISDB japonês. Para que se chegasse atéaqui um longo caminho foi percorrido.E isso nos dá a certeza de que essa históriade televisão digital não começouagora e não vai parar por aqui.Para que se possa situar, por aquitambém o processo da televisão digitalnão é recente. Do lado do tripé compressão,transmissão e modulação,vale lembrar que aqui no Brasil tambémessas pesquisas já têm uma boahistória. Sem ter de voltar muito notempo, destaco nesse processo os testesde laboratório e de campo com os trêsprincipais sistemas internacionais quecomeçaram em 1998, numa parceriado grupo SET/ABERT e a UniversidadeMackenzie. Esses testes foram tãoimportantes que acabaram servindo dereferências em outros países e para ospróprios sistemas testados. Em 1999, aAnatel contrata o Centro de Pesquisase Desenvolvimento em Telecomunicações(CPqD) para validar a metodologiados testes realizados. Desses trabalhosresulta a edição, por parte do governofederal, da Consulta Pública 291/01, em2001, a qual trazia a público o “Relatóriode Análise dos Testes de Laboratórioe de Campo de Sistemas de TelevisãoDigital” e o “Relatório Integrador dosAspectos Técnicos e Mercadológicosda Televisão Digital”, do CPqD 16 .Outro momento importante foi aênfase dada às pesquisas realizadaspelas universidades. Isto é, buscou-seaproveitar ao máximo o que já se estudavapor aqui sobre a televisão digital,visando a criação de um sistema brasileiro.São dessa etapa o Decreto 4901,de 26/11/2003 17 , em que o SBTVDé instituído; as chamadas públicas eeditais da Finep para as pesquisas, apartir de maio de 2004; a criação dosconsórcios de pesquisadores e o Decreto5.820, de 29/6/2006 18 , que implantao SBTVD-T (Sistema Brasileirode Televisão Digital – Terrestre) e ditaas diretrizes da transição da televisãoanalógica para a digital.Também no Brasil, a ponta daprodução de conteúdo já se encontraquase toda ela digital. Não apenasna televisão, mas também na indústriacinematográfica e na produçãoRevista <strong>Adusp</strong>independente o digital é realidade.Outra característica da facilidadeque a digitalização tem proporcionadona produção de conteúdo se vêno grande número de produtos realizadospor amadores. Atualmente,os custos para produção de audiovisualcaíram vertiginosamente, sejade câmeras digitais, seja de hardwarese softwares de edição. Tudo issotem feito com que a produção deaudiovisual saia das grandes redes eprodutoras e passe a fazer parte docotidiano das pessoas.A produção própria paraTV Digital precisa crescer.Tivemos pouquíssimaspesquisas no âmbito deprodução de conteúdos eaplicativos. Produções paradescobrir e experimentarcomo ela pode trazermudanças na linguagem daTV são raras no BrasilNas redes de televisão brasileiras,experiências de produção de conteúdoque apontam o caminho dadigitalização já fazem parte de seudia-a-dia há algum tempo. Só paraficar em dois exemplos, primeiro oda Rede Globo de Televisão, onde asexperiências de produções no formatoHDTV já existem desde a metadedos anos 1990; segundo, o da parceriaentre a Rede Record e a finalizadoraCasablanca, na gravação de novelasem HDTV, há poucos anos (2004).64


Revista <strong>Adusp</strong>Mesmo já existindo hoje uma produçãoem digital e HDTV nas redesde televisão brasileiras, não creio quese possa dizer que há um padrão clarode produção visando a televisãodigital. A produção própria para atelevisão digital precisa crescer. Principalmenteaquela produção específica,com o potencial da televisão digital.Por exemplo, tivemos pouquíssimaspesquisas no âmbito de produção deconteúdos e aplicativos. Até o momento,pouquíssimas pesquisas procuramalinhar questões técnicas e estéticas.Produções que visem descobrir eexperimentar como toda essa mudançatecnológica pode trazer mudançasna linguagem da programação de televisãosão raras atualmente no Brasil.Como conclusão, entendo queprocessos como os relatados nesteartigo indicam como a digitalizaçãoacontece em duas frentes distintas,tanto no Brasil quanto no exterior:na produção e na transmissão. Adiscussão que se faz hoje no Brasilrecai sobre a ponta compressão,transmissão e modulação do sinal,qual o melhor padrão de transmissãode conteúdo digital. Do lado daprodução, o que acontece é que elajá é praticamente quase toda digital.Para a produção não há a necessidadede se discutir sobre padrão, umavez que essa questão já está resolvida.Em última instância, qualquerdos padrões de transmissão existentespode transportar os conteúdosproduzidos em sinais digitais. Principalmenteporque a base de todoseles, no que diz respeito ao transporte,é praticamente a mesma.Janeiro 2008O que pretendo destacar é que odesenvolvimento tecnológico para aprodução e transmissão de conteúdoaudiovisual de forma digital já estápresente no universo da televisãohá muito tempo. Seja através dessesprimeiros experimentos envolvendovideoartistas e engenheiros quantona busca de uma televisão de alta definiçãoe de melhora na qualidade detransmissão dos sinais. Televisão digitalnão é uma tecnologia que começaagora. É, antes, fruto de diversos fatorese momentos pelos quais passa atelevisão. É isso que a leva a evoluir.Sobre o autorAlmir Almas (Almir Antonio Rosa) é doutor em Comunicaçãoe Semiótica. É professor do Curso Superior doAudiovisual do Departamento de Cinema, Rádio e Televisãoda ECA-USP. É videoartista, membro dos coletivosC.O.B.A.I.A e Formigueiro; e especialista em TV digital.Notas1 Para entendimento de termos técnicos de broadcasting e convergência digital, veja: Glossário deConvergência Digital. http://www.set.com.br/glossario.htm. Acesso em 29/01/03 - 04h15min.2 Nichols, Bill (1996). “The work of culture in the age of cybernetic systems”. In Druckerey,Timothy (ed.). Eletronic culture - technology and visual representation. New York: ApertureFoundation, 1996. p. 121.3 TVDi: Televisão Digital Interativa. Em alguns artigos, o leitor poderá encontrar também ostermos TVi (Televisão Interativa) ou iTV (Interactive Television).4 ROSA, Almir Antonio. “Televisão digital terrestre: sistemas. Padrões e modelos”. 2005. 303f.Tese (Doutorado). Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica daPontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.5 NAB é a sigla para a convenção anual da National Association of Broadcasters, que aconteceem Las Vegas (EUA). Foi na NAB de 1994 (a de número 72) que a tecnologia digital nacaptação e gravação de sinais se consolidou.6 Veja os artigos: ROSA, Almir Antonio. “Possibilidades da TV Digital no Japão – Inquietude TV– A Técnica que me inquieta”. Publicado nos Anais do XIV Encontro Nacional de ProfessoresUniversitários de Língua, Literatura e Cultura Japonesa. Assis (SP): Universidade EstadualPaulista, Brasil, 2003. p. 61-75; e ROSA, Almir Antonio. “Um Programa De TV emHi-Vision Japonesa”. Publicado nos Anais em CD-ROM do XXV Congresso Brasileiro deCiências da Comunicação (INTERCOM). Salvador: Universidade Federal da Bahia, 2002.7 Almas, Almir [Almir Antonio Rosa]. “Shinhatsubai Sony e JVC”. Tela Viva, Revista de Tecnologiae Linguagem de Televisão e Cinema, São Paulo, nº 23, 1994. p. 8-12.8 Ibidem.9 “Paik, depois da Alemanha, fixou-se em Tóquio, onde realizou experiências com a TVem cores em colaboração com o engenheiro Shuya Abe, com quem, em 1969-1970,construiria vídeos sintetizadores nos estúdios da WGBH de Boston e da WNET-TVde Nova York.” (ZANINI, Walter. Videoarte: Uma Poética Aberta. In: Made in Brasil:Três décadas do vídeo brasileiro. São Paulo: Itaucultural, 2003. p. 51. [texto originalmentepublicado no catálogo do 1° Encontro Internacional de Vídeo Arte, Museuda Imagem e do Som (MIS), São Paulo, de 13 a 20 de dezembro de 1978]).“In 1970 he [Paik] worked closely with WGBH producers and with artists at MIT’s CA-VS to built a futurist environment. Having become the official advisor to Howard Kleinat the Rockefeller Foundation’s commitment to the media arts for two decades. WithRockefeller funding, Paik began to collaborate with engineers at WGBH, where he introducedhis own real-time television mixing console, which he built in collaboration withartist-engineer Shuya Abe. A one-man unit, Paik’s video synthesizer generated hoursof shifting luminescent abstractions during its maiden telecast.” (HUFMAN, Kathy Rae.“What’s TV got to do with It?” In HALL, Doug and FIFER, Sally Jo (ed.). IlluminatingVideo - An essential guide to video art. New York, USA: Aperture/BAVC, 1990. p. 83-84).“Renamed the National Center for Experiments in Television (NCET) in 1969,when its funding was renewed by the newly formed National Endowment for theArts (NEA) and CPB, this unusual artists-in-residence program brought visual artist,designers, painters, sculptors, musicians, and dancers together with technicians andaengineers. The center encouraged broad innovation in technology and design, sponsoringartist such as Stephen Beck, who developed his Direct Video Synthesizer whilea regular participant of KQED’s experimental studio facility.” (Ibdem p. 83).10 Veja também:www.vasulka.org/Kitchen/PDF_Eigenwelt/pdf/126-129.pdfwww.vasulka.org/Kitchen/PDF_Eigenwelt/pdf/136-139.pdfhttp://www.medienkunstnetz.de/works/paik-abe-synthesizer/http://www.audiovisualizers.com/toolshak/vidsynth/paik_abe/paik_abe.htmhttp://main.wgbh.org/wgbh/NTW/FA/TITLES/9328.HTMLhttp://www.audiovisualizers.com/toolshak/vidsynth/ruttetra/ruttetra.htmhttp://en.wikipedia.org/wiki/Video_synthesizerhttp://people.wcsu.edu/mccarneyh/fva/B/BeckDirectVideo.html11 JACOBS, Stephen. “Flying Toasters – High-flying New Tek, Whose Toasters revolutionizedvídeo production, is screaming to the next level”. Wired, Issue 2.05, maio de 1994.p. 60-70.12 ROSA, Almir Antonio. “Televisão digital terrestre: sistemas. Padrões e modelos”. 2005, cit.13 Ibdem. Veja também: http://www.dvb.org/, http://atsc.org/, http://www.dibeg.org/news/news-p.htm#DN007p.14 Para entender os conceitos técnicos de VHF e UHF, veja GROB, Bernard. Basic televisionand vídeo systems. New York, USA: Fifth Edition, McGraw-Hill, 1984.15 GOVERNO FEDERAL DO BRASIL. Decreto n° 5820, de 30 de julho de 2006. Disponívelem http://www.mc.gov.br. Acessado em 30/06/06 – 01h17. Ou em: http://sbtvd.cpqd.com.br/downloads/decreto_5820_290606.pdf.16 TOME, Takashi; PESSOA, Antônio; FRANÇA, Cláudio França; e RIOS, José ManuelMartins. “Relatório integrador dos aspectos técnicos e mercadológicos da Televisão digital”.Brasília, CPqD, Anatel, 2001. Consulta Pública 291, de 12/4/2001. Disponível em: (em português). (em inglês).17 GOVERNO FEDERAL DO BRASIL. Decreto 4901, de 26/11/2003. Disp. em http://www.mc.gov.br/tv_digital_decreto490127112003.htm. Acessado em 28/11/03 – 03h03.18 GOVERNO FEDERAL DO BRASIL. Decreto n° 5820, de 30/6/2006. op. cit.65


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Os desafiosda governançada InternetGustavo GindreJornalista, membro eleito do Comitê Gestor da Internet (CGIbr)Entre o nascimento e os dias atuais, ocorreraminúmeras transformações na Internet, com impactossociais, culturais e econômicos além da imaginação dequalquer um dos pesquisadores que participaram da suacriação. A Internet não é uma rede anárquica e semcontrole: existe um complexo, multifacetado e muitasvezes contraditório sistema internacional que garante achamada “governança da Internet”. Os desdobramentosdesta governança determinarão como será aquilo que asfuturas gerações chamarão pelo nome de InternetAidéia de construção deuma rede de transmissãonão-linear de dadoscomeçou a ser exploradateoricamentejá no final da décadade 1950, nos Estados Unidos. Desdeo seu princípio, a iniciativa foipatrocinada pelo Pentágono, quetinha receio que um ataque soviéticopudesse interromper definitivamenteas comunicações das forças66armadas norte-americanas (cujasredes, como as telecomunicaçõesem geral, funcionavam em linha).Em 1966, a DARPA (DefenseAdvanced Research ProjectsAgency), central de pesquisa & desenvolvimentodo Departamentode Defesa, lançou a idéia de criaçãoda ARPANET (Advanced ResearchProjects Agency Network). Foi emtorno desta proposta que começoua surgir o que hoje chamamos Internet.A partir do financiamentodo governo norte-americano, se somaramdiversas outras universidadese empresas privadas (como aRand Corporation, ainda hoje umadas peças-chave do complexo industrial-militardos Estados Unidos).Em setembro de 1969, portantohá 38 anos, foi trocada a primeiramensagem da ARPANET, entreo Network Measurement Center,da Universidade da Califórnia, e o


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Stanford Research Institute. Paraefeitos históricos, podemos situaraqui o nascimento daquilo que viria,depois, a ser chamado de Internet.Entre o nascimento e os dias atuais,ocorreram inúmeras transformaçõesna Internet, com impactossociais, culturais e econômicos alémda imaginação de qualquer um dospesquisadores que participou do seunascimento. A mais evidente passapelo enorme crescimento do númerode máquinas conectadas à rede.Grosso modo, podemos dividir taismudanças em dois grupos 1 .1) De caráter tecnológicoForam a miniaturização constantee progressiva da capacidadede armazenamento de dados e oaumento exponencial da velocidadedo processamento destes dados quepermitiram que a Internet se expandissepara fora dos computadoresde mesa, invadindo notebooks,PDAs, telefones celulares e até oseletrodomésticos. Com o processode convergência tecnológica, a Internetvai deixando de ser uma redede computadores para perseguir ameta da ubiqüidade.Por outro lado, foi graças à criaçãoda interface gráfica (a linguagemHTTP, de 1993, e o conseqüenteambiente www) que a Internetrompeu os limites dos usos dados67


Janeiro 2008pelos “especialistas” e alcançou ousuário leigo. Mas, principalmente,merece destaque a adoção da duplade protocolos TCP/IP.Ao longo dos anos 1960 foramsurgindo diversos protocolos de comunicaçãoem rede. A característicabásica que unia quase todosera a tecnologia proprietária: SNA(IBM), DecNet (Digital), XNS (Xerox),entre outros. Muitos continhamimportantes avanços e algunscontinuam operando até hoje. Já osprotocolos não proprietários TransmissionControl Protocol (TCP) eInternet Protocol (IP) 2 surgiram,em 1974, para permitir a comunicaçãoentre diferentes redes, independentementedo software e dohardware que estivessem sendo usadosem cada uma delas (bem comodas mudanças futuras que cadarede viesse a sofrer). Embora nãofosse o único padrão aberto, foi odecisivo apoio da ARPANET quependeu o fiel da balança. Em 1983,todos os nós da rede operavam apartir do TCP/IP. A ARPANETtambém passou a financiar a introduçãodo TCP/IP no sistema operacionalUnix, então o mais adotadopela indústria.A tecnologia de transmissão depacotes de dados pela rede (utilizadapelo TCP/IP) pode ser consideradao substrato tecnológico doatual processo de convergência demídias, que vai rompendo as tradicionaisfronteiras entre os diferentesmeios de comunicação. Com todoconteúdo digitalizado e quebradoem pacotes de dados, torna-se qualitativamenteindiferente para a redese este conteúdo é um texto, umaimagem, um áudio ou um vídeo. Aúnica diferença existente é a quantidadede pacotes de dados que formamaquele específico conteúdo. Asredes passam a se distinguir apenaspela sua maior capacidade de transmitirpacotes de dados (a largura dabanda) e não pelo tipo de conteúdoque fazem trafegar.2) Quanto à sua governançaAo contrário do que o senso comumindica, a Internet não é umarede anárquica e sem controle. Defato, existe um complexo, multifacetadoe muitas vezes contraditóriosistema internacional que garante achamada “governança da Internet”.Este modelo se constituiu historicamentemediante processos queocorreram em paralelo, alguns emâmbito nacional (em especial nosEstados Unidos) e sem coordenaçãoentre si.Os desdobramentos desta governançadeterminarão como seráaquilo que as futuras gerações chamarãopelo nome de Internet.No início da Internet, osblocos de endereços IPforam distribuídos quaseque só para empresas euniversidades dos EUA. Ademanda por endereços IPpassou a ser mundial. Masaté hoje persistem enormesdesigualdadesna distribuição de IPsRevista <strong>Adusp</strong>2.1 – Nomes e númerosAtualmente, a Internet funcionacom a versão quatro do InternetProtocol (IPv4) 3 . Esta versão permitecerca de 4,3 bilhões de númerosde IP (usados para identificarcada computador na rede).No início da Internet, os blocosde endereços IP foram distribuídosquase que exclusivamente para empresase universidades norte-americanas.Com a explosão de acesso aInternet, a demanda por endereçosIP passou a ser mundial. Mesmoassim, o processo inicial contaminoude tal forma a distribuição deendereços que, até hoje, persistemdesigualdades impressionantes. Porexemplo, o Massachusetts Instituteof Technology (MIT) possui, parauso exclusivo, um bloco com 16,7milhões de IPs.Desde 1983, estabeleceu-se umacamada intermediária entre o usuárioe os endereços IP, que visa,entre outras coisas, facilitar o usoda Internet. É o Domain NameSystem (DNS) que possibilita associarum nome a um, ou um grupode, endereços IP.Existem dois tipos básicos denomes na Internet: os genéricos(Generic Top Level Domain –gTLD) e os de países (Country CodeTop Level Domain – ccTLD).Praticamente não existe nenhumaforma de controle públicosobre os gTLDs (“.com”, “.org”,“.net”, etc). Por exemplo, o domínio“.org” (em tese, reservadopara entidades da sociedade civil)é administrado por uma empresaprivada norte-americana(Verisign), que disponibiliza umnome com terminação “.org” pa-68


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008ra qualquer pessoa ou empresaque possua um simples cartão decrédito.Já os ccTLDs são deixados a cargodos países, que configuram seuspróprios sistemas de governança,podendo variar da administraçãoprivada à acadêmica ou estatal.Para que qualquer interessadopossa acessar livremente umendereço (ou enviar uma mensagem)é preciso que exista umatabela que ligue os nomes aosnúmeros e estes às máquinas. Estatabela, constantemente atualizada,é gerenciada por treze servidores-raiz,sendo dez em solonorte-americano, um no Japão,um na Suécia e o outro na Inglaterra.Em última instância,é a Internet Corporation forAssigned Names and Numbers(ICANN, “ong” criada pelogoverno Clinton em 1998)que administra o sistemade nomes e números daInternet. A ICANN respondediretamente ao Departamentode Comércio dos EUAA figura 4 reproduzida nesta páginarepresenta um projeto aprovadopelo Conselho Consultivo doSistema de Servidores-Raiz (RS-SAC, na sigla em inglês) da InternetCorporation for Assigned Namesand Numbers (ICANN), apresentadono encontro da entidade nacidade de Yokohama, Japão, em julhode 2000. Entre as atribuições doprojeto estava a implementação deum servidor-raiz mestre (não-público)para a distribuição dos arquivosda zona-raiz a todos os outros 13servidores-raiz. Este servidor “nãopúblico”ficaria sob controle diretoda ICANN.Ou seja, em última instância, éa ICANN que administra todo osistema de nomes e números da Internet.Sem este sistema, ninguém“vê” ninguém na Internet.69


Janeiro 2008A partir da explosão de acesso àInternet ocorrida na segunda metadeda década de 1990, ficou evidenteque o sistema de gestão dos nomese números era precário. O governoBill Clinton decidiu, em 1998, pelacriação de uma organização nãogovernamental, com sede na Califórnia,para cuidar exclusivamenteda gestão de nomes e números, retirandoesta atribuição da NationalScience Foundation (NSF).A ICANN tem a tarefa de administraras portas lógicas 5 dos diferentesserviços-padrão da Internet(FTP, HTTP, POP3, SMTP, etc.), geriros nomes de domínio e os númerosIP, bem como os servidores-raiz.A ICANN responde diretamenteao Departamento de Comérciodos Estados Unidos através de umMemorando de Entendimentos(MoU), que obriga a instituição aprestar contas anualmente de suasatividades. Caso haja necessidade,o presidente da ICANN pode serchamado a depor perante o Senadonorte-americano.Aos demais países, caso queiram,resta a participação em um conselhoconsultivo, o Governmental AdvisoryCommitee (GAC). O board daICANN é formado por 19 membrosescolhidos, em parte, pelos três órgãos6 que integram o organogramada entidade e por um comitê formadopela própria ICANN.Para a atribuição de númerosIP, a ICANN delega a tarefa a umaoutra entidade (a ela subordinada):Internet Assigned Numbers Authority(IANA). A IANA, por sua vez,administra este processo com o auxíliodos RIRs (Regional InternetRegistry) 7 .As decisões “técnicas” dasentidades encarregadasde definir os protocolosimpactam diretamenteo modelo de negócios daInternet. Por exemplo,o resultado da disputaentre padrões abertos eproprietários é crucial paraMicrosoft, HP e Sun2.2 – Infra-estruturaA camada de infra-estrutura dizrespeito ao transporte dos conteúdos.Basicamente, esses conteúdos podemser transmitidos em redes “físicas” eredes “sem fio”. No cenário mundial,a International TelecommunicationsUnion (ITU) é a entidade responsávelpela administração desta infraestrutura.Embora integre o SistemaONU, a ITU possui uma gestão suigeneris, pois dela participam tanto osgovernos nacionais quanto os grandesgrupos privados que operam onegócio das telecomunicações.Para efeitos do presente estudo,o trabalho realizado pela ITUpossui um impacto decisivo paraa governança da Internet. É a suaRecomendação D.50 (InternationalInternet Connection), por exemplo,que define os critérios para a cobrançados “custos de interconexãodas redes”. Esta é uma questão fundamentalporque, para que um paístenha acesso à Internet, ele precisaRevista <strong>Adusp</strong>garantir que sua(s) rede(s) irá(irão)se conectar a um (ou mais de um)backbone internacional, que são asespinhas dorsais da rede, capazes dedistribuir o tráfego da Internet pelomundo. Ocorre que estes backbonessão privados e os custos de interconexão,além de altíssimos, acabampromovendo um subsídio cruzadoàs avessas, cobrando mais caro dospaíses mais pobres, que possuemmenor poder de negociação frenteàs operadoras privadas dos backbones.Graças à fragilidade da RecomendaçãoD.50 (e aos sucessivos repassesde custos ao longo da cadeiaprodutiva da conexão de Internet), ousuário final na cidade de Salvadorpaga R$ 0,16 à empresa Telemar porum Kbps enquanto em Londres elepagaria R$ 0,01 à British Telecom(uma diferença de 1.600%).2.3 - Protocol supportingorganizationSão as entidades responsáveis pordefinir os parâmetros técnicos da rede.Além da ITU, tratada especificamenteno tópico acima, encontramostambém a Internet Engineering TaskForce (IETF) e o World Wide WebConsortium (W3C), responsáveispor padronizar os protocolos usadosna Internet. Estas duas são abertasà participação de empresas, órgãosreguladores e universidades.O senso comum, inclusive aqueleexistente entre os pesquisadoresda área, afirma que ambos são organismos“técnicos”. Contudo, éóbvio que suas decisões impactamdiretamente o modelo de negóciosda Internet. Por exemplo, o resultadoda disputa entre padrões abertose proprietários é crucial para70


Revista <strong>Adusp</strong>definir o sucesso, ou o fracasso, degigantes como Microsoft, HP e Sun.Infelizmente, são quase inexistentesos estudos empíricos sobre asdisputas econômicas e políticas queinfluenciam o trabalho de padronizaçãorealizado pela IETF e o W3C.Algumas empresas jáfabricam e vendem os“farejadores de pacotes”.Seus clientes são governosinteressados em censurar arede (como EUA e China)e empresas operadoras detelecomunicações e de TVpaga, que buscam influenciara navegação dos usuários2.4 – Neutralidade de redesEmbora este seja um tema reguladonacionalmente, seu impacto acabaatravessando fronteiras, especialmenteem relação aos Estados Unidos.Basta lembrar que mais da metadedos endereços de e-mail dos brasileirostem suas caixas postais localizadasem território norte-americano 8 .Dado o fato de que na Internetcirculam apenas pacotes de dados,um software “farejador de pacotes”(packet snifer) capaz de ler em altíssimavelocidade estes pacotes conseguiriadeterminar o tipo de conteúdo(texto, imagem, áudio, vídeo),o protocolo utilizado (por exemplo,o peer to peer típico das redes detroca de arquivos 9 ), o endereço doemissor e do destinatário e até mesmosaber o que diz a mensagem.No mundo, algumas empresasjá fabricam e vendem tais “farejadoresde pacotes”. Seus clientessão basicamente de dois tipos. Governosinteressados em censurara rede (caso de Estados Unidos 10e China). E as empresas donas dainfra-estrutura (operadoras de telecomunicaçõese de TV paga) queprocuram, de forma subreptícia,influenciar na navegação de seususuários, constrangendo o uso dealguns serviços enquanto facilitama utilização de outros.“(...) torna-se óbvia a motivaçãoreal – reduzir ao máximo possível aeficácia de serviços de terceiros quepossam competir com serviços similaresoferecidos pela operadora. O casomais evidente é telefonia voIP, mas,à medida que nos aproximamos daconsolidação da chamada ‘Web 2.0’(envolvendo muito mais interaçãoentre usuários e serviços de comunicaçãoe informação, bem como umcrescente comércio de multimeiossob demanda, como TV sobre IP eJaneiro 2008outros), acompanhada da concentraçãode serviços Internet nas mãos deoperadoras de infra-estrutura, podemosconsiderar que estamos apenasno começo de tentativas muito maisagressivas de qualificar (ou desqualificar)a conexão do usuário à Internetcomo um todo.” 11No momento, o Congresso norte-americanodebate um projeto delei que legalizaria a ingerência dasempresas donas da infra-estruturasobre o uso de suas redes. Seria, portanto,o fim do princípio da “neutralidadedas redes”. Dado o fato deque boa parte do conteúdo da Internetcircula nas redes dos EstadosUnidos, uma decisão como esta teriaevidentes impactos mundiais.Sobre o autorGustavo Gindre, jornalista, é pós-graduado emTeoria e Práxis do Meio Ambiente (ISER) e mestre emComunicação e Cultura pela UFRJ. Integrante do Intervozes-ColetivoBrasil de Comunicação Social, coordenadoracadêmico do Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação(Nupef) e membro eleito do Comitê Gestor da Internet(CGIbr). Fellow da The Ashoka Society. Autor do livroComunicação nas sociedades de crise (IEditora, 2001)e co-autor de Comunicação digital e a construção doscommons (Perseu Abramo, 2007).Notas1 - Tal divisão segue critérios apenas didáticos. Não defendo a idéia de que aspectos “tecnológicos” não estariam sujeitosaos impactos da governança da rede e que estes, por sua vez, não teriam elementos tecnológicos.2 - O TCP/IP funciona como duas camadas realizando operações distintas. O TCP é responsável por, numa ponta, “quebrar”a mensagem em diversos pacotes de dados que irão percorrer a rede através das rotas mais favoráveis e, naoutra ponta, reunir os pacotes e remontar a mensagem original. Ao IP cabe a tarefa de imprimir, em cada pacote, omesmo endereço de destinatário. Este endereço será checado por todos os roteadores no meio do caminho, que (apartir de uma tabela de endereços) saberão para onde remeter os diferentes pacotes.3 - Várias redes da Internet já começam a migrar para o IPv6 (3,4 x 10 38 de números IP). Mas, durante alguns anos, oIPv4 ainda será o mais usado na rede.4 - http://www.icann.org/general/crada-report-summary-14mar03.htm5 - Segundo AFONSO, Carlos (no paper “Internet: quem governa a infra-estrutura?”): “para que, na conexão, umcomputador saiba que está requisitando, por exemplo, mensagens de e-mail, e não uma página www, é necessárioum identificador (conhecido como ‘porta lógica-padrão’ ou ‘parâmetro’ do serviço desejado). O computador que osolicita tem, então, de seguir um padrão de envio desse identificador para que as coisas funcionem”.6 - Domain Name Supporting Organization (DNSO), Address Supporting Organization (ASO) e Protocol SupportingOrganization (PSO).7 - Atualmente existem cinco RIRs: ARIN (Estados Unidos, Canadá e uma parte do Caribe), LACNIC (América Latinae outra parte Caribe), APNIC (a Ásia do Pacífico e Oceania), RIPE NCC (Europa, Ásia Central e Oriente Médio)e AFRINIC (África).8 - Casos de Hotmail, Yahoo e Gmail.9- Donde seria possível saber se alguém está trocando arquivos protegidos por copyrights.10 - Denúncia da Eletronic Frontier Foundation (EFF), através das informações passadas por um ex-funcionário, comprovaramque a AT&T permitiu a instalação, em sua rede, de um farejador de pacotes da National Security Agency (NSA).11 - AFONSO, Carlos. “Todos os datagramas são iguais perante a rede”. Paper ainda inédito.71


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>No Brasil, avanços e recuosO modelo de governança da Internet no Brasil é destacado, atéinternacionalmente, como referência, por incorporar diferentesatores sociais e por ser o primeiro no mundo a ter membroseleitos. Porém, a nova face do Comitê Gestor da Internet noBrasil (CGIbr) ao mesmo tempo motivou e assustou o governo.Provavelmente, foi essa estranheza que fez o governo desprivilegiare desacelerar aquela que seria a grande função desse novoCGIbr: servir de laboratório para os processos de regulação daconvergência, envolvendo o maior número possível de atores sociaisEm 1995, o governo FHC criouo Comitê Gestor da Internet noBrasil (CGIbr). Sua função principalera administrar os recursosfinitos da Internet (números IP enomes de domínio).Mas foi no governo Lula que oórgão ganhou maior importância.Primeiro, com a eleição direta (epor setor) de seus membros nãoestatais1 . Depois, pela criação deuma figura jurídica que permitiuao CGIbr fazer a administração diretados recursos provenientes dagestão dos nomes de domínio 2 . Porfim, por assumir que sua missão vaimuito além da administração de“nomes e números”.O modelo de governança da Internetno Brasil é destacado, atémesmo internacionalmente, comoreferência, por incorporar diferentesatores sociais e por ser o primeirono mundo a ter membros eleitos.72Na prática, contudo, existem aindadiversos problemas a serem resolvidos.Basicamente de duas ordens.A nova face do CGIbr ao mesmotempo motivou e assustou ogoverno, que se viu diante de umorganismo estranho, quase estatale quase privado, e com presença dediversos setores da sociedade civilem seu interior. Provavelmente, foiessa estranheza que fez o governodesprivilegiar e desacelerar aquelaque seria a grande função dessenovo CGIbr: servir de laboratóriopara os processos de regulação daconvergência, envolvendo o maiornúmero possível de atores sociais.Por outro lado, o CGIbr paga opreço da inexistência de um marcoregulatório capaz de lidar com ofenômeno da convergência de mídias,ao contrário do que foi feitoem outros países 3 . No Brasil, temosum Código Brasileiro de Telecomunicações(CBT), com exatos 45anos de vida e que desde 1997 ficouconfinado a regular apenas a radiodifusão(mesmo assim, com regrastotalmente defasadas). Bem como,uma Lei Geral de Telecomunicações(LGT) que, apesar de ter apenas10 anos de existência, possui umalógica interna anti-convergência, eque em nenhum momento mencionaa expressão Internet e seus desdobramentos.Com a inexistência deum marco regulatório capaz de lidarcom a Internet e a convergência demídias, o CGIbr repousa como umcorpo tão interessante quanto estranhoao funcionamento “normal” dosorganismos de Estado.Sem políticas públicas, estamostranspondo para o universo da Interneto mesmo padrão de exclusãoque encontramos em outras mídiasbrasileiras e, por extensão, em todoo campo da cultura.


Revista <strong>Adusp</strong>Apenas 14,49% dosdomicílios brasileirospossuem acesso à Internet.E dos que estão conectadosmenos de metade possuialgum tipo de acessodedicado à Internet. É omesmo padrão de exclusãodas demais mídias no paísNa radiodifusão, apenas a RedeGlobo, em 2001, reteve 53% do faturamentoda TV aberta (que por suavez representa 56% do bolo publicitáriobrasileiro). A mesma Globo ficoucom 54% da audiência. Atravésde 138 grupos afiliados, as 6 maioresredes privadas controlam 668 veículos(TVs, rádios e jornais) 4 .Segundo a Associação Nacionaldos Jornais (ANJ), os cinco maioresperiódicos do Brasil 5 têm umpúblico leitor somado de cerca de0,7% dos moradores do Brasil. Já aAssociação Nacional dos Editoresde Revistas (ANER) afirma que astrês maiores revistas semanais vendemjuntas exemplares suficientespara 1,01% dos brasileiros 6 .De acordo com a AssociaçãoBrasileira de TVs por Assinatura(ABTA), o Brasil possui hoje 4,9milhões de residências que assinamalgum serviço de TV. Admitindoa média de 3,4 pessoas por casa(de acordo com a Pesquisa Nacionalpor Amostragem Domiciliar– PNAD – realizada pelo IBGEem 2006), seriam algo em torno de16,6 milhões de pessoas com acessoa TV paga, ou aproximadamente9% do total de nossa população.Desde a chamada “retomada”do cinema nacional, com o lançamentode Carlota Joaquina, em1994, conforme a Agência Nacionaldo Cinema (Ancine), apenas 16películas brasileiras conseguiramultrapassar a marca dos 1% da populaçãoem público pagante.A Associação Brasileira de Produtoresde Discos (ABPD) divulgaapenas o nome dos mais vendidose não a quantidade dos respectivosCDs. Mas a imprensa especializadainformou que o Padre Marcelo(o campeão no ranking da ABPDem 2006) vendeu 867 mil CDs, ouo equivalente a menos de 0,5% dosbrasileiros.Quatro em cada cinco municípiospossuem bibliotecas públicas.Mas 68,6% dispõem de somenteuma. E apenas 0,8% contam commais de seis. Os museus só estãoJaneiro 2008presentes em 17,5% dos municípiosbrasileiros, sendo que 13,9%têm um único museu. No caso dosteatros a situação é ainda pior:13,4% das cidades contam com teatros,sendo que 10,9% com umúnico espaço para as artes cênicas.Menos de um município em cadadez (8,2%) dispõem de cinemase destes 5,6% relacionaram umaúnica sala de exibição 7 .Apenas 19% das residênciaspossuem computadores de mesa e1% dispõem de notebooks. A concentraçãotambém se aplica ao planoregional. O percentual de casascom desktops é de 24,2% no sudeste,24,6% no sul, 18,9% no centro-oeste,8,5% no nordeste e 10,4% no norte 8 .Apenas 14,49% dos domicíliospossuem acesso à Internet. E “conformeaumenta a escolaridade e arenda do respondente, aumenta aproporção de domicílios com acessoà Internet. O mesmo ocorre emrelação à classe social, quanto maisalta a classe social do respondente,maior o acesso à Internet”.Das residências conectadas,49,06% utilizam acesso dial-upvia telefone. E 9,18% não souberamresponder. Ou seja, menosda metade dos domicílios brasileirosque estão conectados possuemalgum tipo de acesso dedicado àInternet.Notas1 O CGIbr é composto por oito indicados por diferentes órgãos do goverrno federal, porum membro do fórum estadual de secretários de ciência e tecnologia, por um membrode notório saber e por 11 eleitos, sendo um pelos empresários em geral, um pelasempresas de infra-estrutura, outro pela indústria de softwares, um pelos provedoresde acesso, três pela comunidade acadêmica e quatro pelo chamado “terceiro setor”.2 Atualmente, cada um dos mais de 1 milhão de domínios “.br” paga R$ 27,00 por ano aoCGIbr, através de sua figura jurídica, o NICbr .3 Austrália - Digital Television and Datacasting Act (2000); Canadá - Broadcasting Act& Telecommunications Act (2002); EUA - Telecommunications Act (1996); França- Telecommunications Act (1996) & Loi relative aux communications électroniqueset aux services de communication audiovisuelle (2004); Reino Unido – CommunicationsAct (2003); Japão – Broadcast Law (1999).4 Dados obtidos na pesquisa “Os donos da mídia”, realizada pelo Instituto de Estudos ePesquisas em Comunicação (Epcom).5 O Globo, Folha de S. Paulo, Extra, O Estado de S. Paulo e Zero Hora.6 Veja, Época, IstoÉ.7 De acordo com a pesquisa “Equipamentos culturais e de lazer existentes nos municípios”,do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), que procura analisaro “Perfil dos municípios brasileiros: pesquisa de informações básicas municipaisde 1999”, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).8 Estes dados e os seguintes foram obtidos na “Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias daInformação e da Comunicação no Brasil - TIC DOMICÍLIOS”, realizada por demandado Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGIbr).73


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>Jornalismo na selvaLúcio Flávio PintoJornalista74


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Meu Jornal Pessoal completou 20 anos de vida. Se ele nãoexistisse, informações importantes, análises elucidativas e idéiasúteis deixariam de adquirir a forma impressa. Isso fortaleceriagrupos e pessoas que gostariam de manipular a opinião pública —e se apresentariam com seus press-releases sem o contraponto dachecagem, do questionamento. Quinzenal, o Jornal Pessoal é lidopor 30 mil pessoas só em Belém (PA) e já acumulou 33 processosjudiciais por revelar casos de grilagem de terras, extração ilegal demadeira, manipulação da opinião pública, enriquecimento ilícitoEm setembro deste ano,meu Jornal Pessoalcompletou 20 anos devida. A data me impôsuma reflexão, que dividicom meus leitores:qual a razão de tão extensa perenidade?Duvido que seja, ao contráriodo que sugerem alguns adversáriosda publicação, por merocapricho ou vaidade pessoal, pormaiores que eles fossem. Minhaslimitadas condições materiais e minhasafiadas exigências mais íntimasnão me permitiriam manter oJP simplesmente por capricho ouvaidade, se ele não cumprisse umafunção pública, se não preenchesseuma exigência social.Tirando-o do mostruário dasbancas de revistas e expondo-o aolado dos jornais diários de Belém,verifico que, se o JP não existisse,informações importantes, notíciasrelevantes, abordagens ilustrativas,análises elucidativas e idéiasúteis deixariam de adquirir a formaimpressa. Provavelmente empobreceriama opinião pública efortaleceriam grupos e pessoas quegostariam de manipulá-la — mais emelhor. Esses grupos e essas pessoasse apresentariam com seus cartõesde visita e seus press-releasessem o contraponto da checagem,da verificação, da dúvida, do questionamento.O JP é um jornal deuma só pessoa, um faz-tudo (oupau-para-toda-obra, como se diziaantigamente), mas não é um empreendimentoiconoclasta, emboraàs vezes pareça.Com tiragem de 2 mil exemplares,é lido por pelo menos 30 milpessoas só em Belém, pela facilidadecom que é reproduzido através dexerox, e circula entre leitores de váriaspartes do mundo. Já acumulou33 processos na justiça de Belém, amaioria com base na chamada Leide Imprensa, de 1967, um dos “entulhosautoritários” que remanescena ordem legal democrática. Emquatro dessas ações, fui condenado.Mas os autores nunca escreveramuma carta para o jornal (que tempor diretriz publicar na íntegra todasas mensagens que recebe, mesmoas extensas) e jamais contestaramde público o conteúdo das matériasque os desagradaram. Em nenhumadelas o assunto versou sobre a intimidadedessas pessoas.Sempre foram questões de interessepúblico, como grilagem deterras, extração ilegal de madeira,exploração dos recursos naturaisem geral, manipulação da opiniãopública, enriquecimento ilícito. Oobjetivo das ações judiciais é claro:impedir que o jornal prossigaou minar sua qualidade, desviando75


Janeiro 2008seu único redator de sua atividadeprofissional para as lides forenses 1 .Os estímulos vieram de fora, comoum dos mais prestigiosos prêmiosde jornalismo da Itália, o Colombed’Oro per La Pace, em 1997, e ahonraria conferida pelo CPJ (Comitêde Proteção aos Jornalistas),de Nova York, em 2005.O Jornal Pessoal é umjornal de elite. Nem podiaser de outra maneira. Comapenas 12 páginas, emformato ofício, sem cor,praticamente sem fotografia,escrito por um únicoredator, seu exemplar custa3 reais. É mais caro do queum jornal convencionalO Jornal Pessoal é um jornalde elite. Nem podia ser de outramaneira. Com apenas 12 páginas,em formato ofício (só um poucomaior do que uma folha de papelA4), sem cor, praticamente semfotografia, escrito por um únicoredator, seu exemplar quinzenalcusta três reais. É mais caro doque um jornal convencional, quetem muito mais páginas e atrativos(ou espelhinhos e balangandãs)para o leitor. Quem o quiserler terá que ir até uma banca derevistas para comprá-lo, cada vezmais difícil de freqüentar (inclusivepelo risco de assaltos às suasproximidades). Não há a possibilidadede recebê-lo em casa, atravésde assinatura.Freqüentemente, o leitor enfrentarátextos longos, analíticos,cheios de números e estatísticas,ironias e sutilezas, ceticismo e indignação.Um analfabeto funcionalnão encontrará qualquer estímulopara encará-lo. Quem mal conseguearranjar dinheiro no acanhadoorçamento para pagar o ônibusruim de cada dia está fora do seuâmbito. Portanto, tinha que ser umjornal dirigido à elite.Mas o Jornal Pessoal tem comoseu primeiro alvo a elite à qual sedestina, sem qualquer preconceitonem elitismo. Não há outro destinopara um jornal verdadeiramenteindependente, que rejeitapublicidade desde o primeiro número,e reduz todos os seus custospara poder viver exclusivamenteda venda avulsa, que só lhe devolve30% líquidos sobre o preço decapa (ou 90 centavos por exemplar,feitos os descontos com adistribuição, comercialização, encalhe,perdas e cortesias).O povão não o lerá, infelizmente.Não com a periodicidadeque seria desejável, ou necessária,para dar-lhe a devida conseqüência.Talvez fosse possível alcançara massa dos cidadãos se o jornalcontasse com alguma publicidadeou um mecenas poderoso. Opreço dessa abrangência, porém,seria a perda da independência, ofim da possibilidade de fazer umjornalismo radical (de radicare: iràs raízes), que só tem um limite:a capacidade do jornalista que opratica. É uma contradição, masela é inevitável.Revista <strong>Adusp</strong>Se a sua difusão não pode serampla, o Jornal Pessoal transformaessa limitação em arma de combate,pois seu grande objetivo é criticara elite, fustigando-a, cobrando-lheos compromissos devidos(e, em alguns casos, declarados),exigindo sua participação, denunciando-a,desmascarando-a, desnudando-a,expondo-a àquilo quemais detesta: ser analisada pelosdemais cidadãos.Ao contrário dos marxistas ortodoxos,partilho o entendimentode intelectuais mais perceptivos àcomplexidade humana (como KarlManheim, Max Weber, Lucien Goldman,Wright Mills e, claro, SigmundFreud, aquele que tudo explica),de que o papel das elites émuito mais decisivo do que estãodispostos a admitir os sacerdotesda determinação econômica (aindaque atenuada pelo aposto da “últimainstância”).Com esse fundamento, respondoaos que consideram excessivaa atenção que dispenso às elites,materializada no Jornal Pessoal.A leitura das 400 edições publicadaspelo jornal até o seu 20º aniversárioajudarão a compreenderalguns dos problemas que a sociedadeparaense, em particular, aamazônica, em maior amplitude,e a brasileira, em geral, enfrentam.E a explicar por que não seconsegue transformar nosso potencialde riqueza em bem-estarpara nossos cidadãos, traduzindomaterialmente uma expectativaque se vai tornando quimera.Numa região como a amazônica,cuja condição colonial é resultantede sua impossibilidade (ou76


Revista <strong>Adusp</strong>incapacidade) de tomar as rédeasda sua história, o diagnóstico daselites é uma chave elucidativa. Comoelas têm mais condições materiaisde percepção e antecipaçãodos fatos, no momento mesmo emque eles ocorrem (ao menos emtese), se forem provocadas paradescer à rinha, talvez se consigaajustar o tempo da consciência aoda história, disfarçada de cotidiano(geralmente considerado insosso esem glamour).A única razão para falarsobre a Amazônia paradistintas senhoras de umclube feminino instaladona avenida Estados Unidos,nos lindos jardins deSão Paulo, era ter nascidona Amazônia. Senti-meum índio quinhentistanos salões reais da EuropaA grande e mortal deficiênciadas colônias resulta do descompassoentre o que acham que estáacontecendo e o que realmentesucede. Vêem o que está diantedos seus olhos desnudos. Essa éa ilusão da realidade. A realidadeconcreta exige as lentes da ciência,do conhecimento e de umarede de informações. Porque asraízes dos fatos mais importantesque ocorrem na Amazônia estãomergulhadas na aparência econectadas a teias extremamentecomplexas e de ramificação internacional.À medida que ia me informandosobre a Amazônia, para poderinformar meus leitores, descobriaque o jornalismo, sozinho,era insuficiente para dar conta dacomplexidade das questões comas quais me debatia quase diariamente.Elas eram profundas e, aomesmo tempo, sujeitas a uma mutaçãoincrivelmente rápida, responsávelpelo tom fascinante e aomesmo tempo assustador do ritmoda expansão da “fronteira” naAmazônia comparativamente aosoutros domínios coloniais, onteme hoje. Era preciso recorrer a métodosmais sólidos para identificaras novidades, a tarefa principal dojornalismo, e compreender o significadodesses fatos, o que já requerum saber organizado, testado, demonstrado—e aí o campo passa aser o da ciência. Por isso, podendocursar sem problemas o curso dejornalismo (porque já tinha o registroprofissional antes da exigênciado curso de comunicação socialpara o exercício da profissão, notriste ano de 1969), preferi a sociologia.Achei que ela me seria maisproveitosa. E achei certo.Mas também percebi logo, porcomeçar na profissão na flor dos16 anos, que só publicando matériasnão conseguiria bem servirmeus concidadãos amazônicos:precisava ir além da profissão, pormelhor que a exercesse. Fiz minhaprimeira palestra em 1967. Asegunda só aconteceu dois anosdepois, em 1969. A única razãopara falar sobre a Amazônia paradistintas senhoras de um clubeJaneiro 2008feminino instalado na avenida EstadosUnidos, nos lindos jardinsde São Paulo, era ter nascido naAmazônia. Senti-me como um índioquinhentista nos salões reaisda Europa. Sem a companhia deperiquitos e papagaios, é claro.Acho que já passei dos dois milharesde palestras desde então.Vejo numa anotação que em 1982elas somavam 962. De lá para cánão deu mais para manter o registro.Em mais de 95% dos casos,foram apresentações gratuitas. Geralmenteporque concordei coma relação, risonha e franca, “pelacausa”; mas também por abuso demuitos dos meus anfitriões, malacostumados à minha fidalguia, àsvezes compulsória (como no casodo herói, sem tempo para fugir).É que, quando tinha um saláriofixo, não me importava em serexplorado, especialmente quandoera uma exploração lúdica, que meproporcionava a oportunidade deter contato direto com muitas e diferentespessoas, o melhor nessemissionarismo palestrante. Queriadisseminar informações, partilharidéias e fomentar interesse pelaAmazônia. Há mais de uma década,porém, vivo de rendimentos eventuais.Eu me reciclei para viver assim.Meus convidados, não.Mas não é esse detalhe lateralo que interessa. Queria falar sobreo constrangimento que involuntariamenteeu criava quando tinhaque ser apresentado ao público. Oapresentador indagava pelo meutítulo. Eu respondia rapidamente,sem qualquer dúvida sobre a minhacondição: jornalista. “Só?”, reagia ointerlocutor.77


Janeiro 2008Quando comecei a trabalhar,o jornalismo era associado aempirismo, impressionismo,inexatidão, incapacidadede demonstrar, falta debase documental. Haviapreconceito nessa atitude, maso procedimento dos jornalistasalimentava essa má-vontadeDurante alguns anos, era só issomesmo. Um tanto contrariado ouconstrangido, o apresentador declaravao meu título, como se pedissedesculpas. Algum tempo depois queme formei em sociologia, já cienteda circunstância desfavorável,acrescentei meu título acadêmicoao profissional. Propiciei um grandealívio ao apresentador, sobretudono meio acadêmico. Eu deixava deser “apenas” jornalista: felizmente,era também sociólogo. Surgia entãouma explicação mais aceitável paraeu ser convidado para as palestras.Quando comecei a trabalhar, ojornalismo era associado a empirismo,impressionismo, inexatidão,imprecisão, incapacidade para demonstrar,falta de base documental,não-científico. Havia boa dose depreconceito nessa atitude, mas o procedimentodos jornalistas alimentavaessa má-vontade, enfática nos acadêmicos.Quanto mais eles destacavamo que os distinguia e distanciava dosjornalistas, mais reforçavam seu própriovalor como homens de ciência,mesmo quando agiam assim inconscientemente.Entrei pela primeira vez comoprofissional, na redação deA Província do Pará, em 1966,com um caderno na mão. Logoobservei: era o único comesse hábito. Os demais pegavamalgumas folhas de papel (aslaudas, que na Província eramrudimentares: nem marcação depáginas tinham), nelas faziamsuas anotações e as jogavam foraquando concluíam a matéria.Comecei minha pregaçãopara que todos usassem cadernos.Assim poderiam transformá-losem arquivos, recorrendoa eles quando necessário.Ainda mais porque apenasuma parte das anotações ia parao texto que escreviam, chegandodessa forma à página impressa dojornal. As laudas acabavam na cestade lixo, destino inglório, desperdíciode informação, que nuncamais podia ser recuperada.Tenho centenas de cadernosmeus e alguns outros de terceiros.Um dos meus projetos paraa velhice é voltar a eles e tentarabordar a história que vivi e testemunheide uma perspectiva maispessoal, menos enquadrada no rigorda bitola jornalística. Algunsdesses cadernos são preciosos. Porexemplo: alguns dos que RaimundoRodrigues Pereira 2 escreveudurante a edição especial da revistaRealidade sobre a Amazônia, em1971, que ganhou o Prêmio Essodaquele ano e se tornou legendáriapor sua qualidade incomum.Raimundo foi um dos meus mestresno aprendizado do jornalismo.Revista <strong>Adusp</strong>Fotos registram as marcas de agressão sofrida por Lúciodono do jornal O Liberal (Diário do Pará, 22/1/05)Através dele, me confrontei com origor das ciências exatas, meu bicho-papãona escola convencional.Raimundo viera da física para ojornalismo. Com ele, não podia sermais ou menos. Só aceitava colocarem letra de forma o que pudesseser exemplificado, demonstrado,reconstituído. A apuração precisavaser meticulosa e bem clara a exposição.Além disso, o texto tinha queconter humor, ironia, espírito (nosentido daquela “espirituosidade”capaz de distinguir a pessoa brilhantedo tipo padrão).Espicaçado pelas exigências ecobranças de Raimundo na retaguardada edição, íamos para “campo”mais alertas e perspicazes. Senão levávamos tanta munição perceptiva,tínhamos que reescrever,voltar a checar, ampliar a apuraçãodos fatos, enriquecer, evoluir.Evoluí tanto com esse mestre quecheguei ao estágio de me confron-78


Revista <strong>Adusp</strong>Flávio em janeiro de 2005, quando foi espancado pelotar com ele. O que mais me honraé poder tê-lo — se não como igual— como um equivalente, poder ombreá-loalgumas vezes.A novidade que a universidadedeu aos jornalistas quepassaram a freqüentá-lana década de 1960 foi ométodo. Não importava tantoqual o curso superior quefaríamos. Aprendemos a agire raciocinar com método,por etapas, com hipóteses.Não estávamos mais sujeitosà tentação de reinventar omundo a cada dia de trabalhoQual era esse ponto de nivelamentopor cima, marcantenessa geração, que entrou nasredações entre o golpe militarde 1964 e o AI-5, de 1968? Opé que ela tinha na universidade,principalmente. Fomosbuscar um diploma. E comoainda não havia essa bitola empobrecedora,a busca foi amplae imprevisível. Vários, comoRaimundo, vieram da física.Acho que esta foi a novidadeem relação à geraçãoanterior, que sobreviveu aoEstado Novo (1937-1945) ouse revelou com a democratizaçãoseguinte. Os jornalistasdesse período foram até maisbrilhantes do que nós, maisamplamente talentosos, com maiordiversidade de recursos pessoais.Mas confiaram exageradamenteem seus talentos, em sua intuição,em seu brilho excepcional. Estudavampouco, apuravam insuficientemente,não davam aos fatos a importânciaque eles intrinsecamentetêm (e precisam sempre ter) notrabalho do jornalista. Não tinhammétodo, em suma.Foi essa a novidade que a universidadedeu aos jornalistas quepassaram a freqüentá-la na décadade 60 do século passado. Não importavatanto qual o curso superiorque faríamos, uns aparentementemais coerentes, nas ciências humanas,outros parecendo deslocados,nas exatas e naturais. Talvez as humanasdessem maior capacidadecrítica, mas as exatas e naturais imprimiammaior apreço pela exatidãodos fatos, por sua demonstração,graças ao seu experimentalismo.Janeiro 2008Seguindo um ou outro caminho,ou os combinando, atravésdo diálogo e da experiência emcomum, aprendemos a agir e raciocinarcom método, por etapas,trabalhando com hipóteses, seguindoum roteiro, suficientementeconsistente para nos orientar,mas aberto às novidades, para nãonos limitar. Demarcando o caminhocom pedras, para poder refazê-lo,e não com miolo de pão, acausa da perdição de João e Mariana fábula infantil. Não estávamosmais sujeitos à tentação de reinventaro mundo a cada dia de trabalho:encaixávamos-nos no processocumulativo de informação econhecimento do nosso meio, domundo, da humanidade.Essa formação acadêmica nosprotegeu do empirismo e da faltade rigor que predominavam nojornalismo. Eu chegava à redaçãocom meu caderno e saía com umbocado de papel debaixo do braço,Ganhei meu primeiro apelido: “sovacoilustrado”. O ceticismo geral,implícito nesse batismo, diminuiuum pouco depois do primeiro “furo”,ainda em 1966: uma entrevistaexclusiva com o historiador inglêsArnold Toynbee, considerado omaior na época, que passou porBelém a caminho dos Estados Unidos,para uma palestra.Uma das minhas qualificaçõespara a matéria, reproduzida em páginainteira pelo Correio da Manhã,do Rio de Janeiro (o que me ajudariadepois, na temporada carioca),era conhecer pelo menos parte daobra do autor de Um Estudo da História,um cartapácio em 15 volumes(na minha edição), que reconstitui79


Janeiro 2008a trajetória da humanidade. O velhohistoriador, que morreria anosdepois, foi condescendente com omenino curioso ao constatar queseu entrevistador podia dialogarcom certo conhecimento de causasobre o tema proposto.Nessa época não havia nenhumarquivo de texto nos jornais deBelém, recurso ainda pouco usualaté mesmo na grande imprensanacional. Tentei sem sucesso sensibilizara direção de A Provínciapara esse investimento vital, massomente anos depois ela aceitoucriar o primeiro arquivo do jornal,restrito, porém, a fotografias.Até hoje essa é uma das mais flagranteslacunas na retaguarda daimprensa local. Esse é recurso essencialpara um jornalismo de melhorconteúdo. Uma das razões dosucesso do Jornal do Brasil na passagementre os anos 1950 e 60 foio seu Departamento de Pesquisa,criado por Murilo Felisberto, recentementefalecido (sem o destaquemerecido), e aprimorado porFernando Gabeira.As especialidades sãouma ferramenta a maisno estojo do jornalista,um profissional que éespecífico, único e útilporque testemunha de fatoacontecimentos tão díspares.Esteve no olho do furacão.Pode dizer: “meninos, eu vi”Muitos leitores, como eu, liamos textos do JB de baixo para cima,do box, preparado pelo Departamentode Pesquisa, para a matériado dia. Esse modo de procederenriquecia o acompanhamento docotidiano ao encadeá-lo no processohistórico.Antes mesmo de me profissionalizareu já organizava minha coleçãode recortes de jornais e revistas,um fardo que foi crescendopaquidermicamente ao longo dosanos. Também procurava documentosoficiais e publicações corporativas,o que me tornou clienteprecoce do IBGE. Fui leitor compulsivodesde a primeira hora daalfabetização, e, por isso mesmo,desorganizado, caótico. Mas oacesso à teologia e à filosofia dosprimeiros existencialistas me fezperceber que precisava de disciplina.Queria continuar a ler peloprincípio do prazer, que se tornoumeu norte de vida. Mas tinha tambémque produzir, criar.Para isso, precisava seguir umprocesso de acumulação de dados,sempre mais seguros e mais amplos,guiado por uma bibliografiasistemática, que formava graças auma conta-corrente numa livrariade Belém, que comprava todosos títulos disponíveis nos catálogosdas editoras. Sempre à catade curiosidades interessantes parailustrar meus “causos” ou paradesvendar raízes obscuras ou insólitas,também fui imberbe clientedos “sebos”.Graças a essa dupla via, achoque formei minha carapaça dejornalista sem perder o enchimentode vivacidade e leveza,Revista <strong>Adusp</strong>que a leitura por puro prazerproporciona. Como eu, muitosoutros que, em várias partes dopaís, seguiam a mesma trajetória,no rumo de um jornalismoenriquecido. Tão acrescido quecomeçaram a surgir adjetivosacompanhantes para qualificálo:investigativo, econômico, ambiental,indigenista, amazônico.As especialidades, de fato, sãonecessárias. Mas são complementares,uma ferramenta a mais noestojo de um profissional que éespecífico, único e útil porque testemunhaacontecimentos tão díspares,testemunhando-os de fato,não por mera leitura, por ouvirdizer. Esteve no olho do furacão.Pode dizer: “meninos, eu vi”. Semser presunçoso ou pretensioso.Empenhado em assegurar para asociedade a perenidade do cotidiano,eliminando o efêmero que seesfuma no dia-a-dia, desprovido deconteúdo, de história.Fazer esse jornalismo é difícil edesgastante. Quando saímos parauma reportagem especial, que geralmenteexige viagem, seguimosorientados pela consulta a materialde arquivo, mas não só isso,que se tornou trivial (embora nãoseguro) com os google da vida,acessíveis pela rede mundial decomputadores. Dispomos de ummétodo científico, que nos possibilitaaplicar amostras ao universoque iremos cobrir, percebertipos, extrair (ou aplicar) conceitosa uma realidade que se apresentaaparentemente inescrutável,amorfa, indefinida.Claro que não vamos “a campo”apenas para confirmar hipóte-80


Revista <strong>Adusp</strong>ses ou teorias. Se fizéssemos isso,nosso jornalismo não teria valor.Temos que estar em condições deperceber as novidades, as diferenças,os específicos de cada casoque abordamos. Mas não atiramosao léu. Se quisermos que nossomaterial tenha concretude e valorde referência, precisamos entrevistarmuita gente, percorrer muitoslugares, captar o que está noar, disseminado pelo universo. Eo texto precisa ser claro, acessível,fluente. Para ser lido e entendido.Quando enfrenta osacontecimentos do dia coma lupa do saber organizado,o jornalismo torna-se umafonte de referência. O maiorexemplo do significado dessejornalismo é I. F. Stone,que de 1952 a 1971 editou,sozinho, seu I. F. Stone’sWeekly (depois quinzenário)Só um profissional que tem aoseu alcance a maior diversidadepossível de experiências humanas,que pode transitar entre todas aspartes da sociedade, do alto dopoder até a base da vida dos indivíduos,em contato com as pessoasmais célebres e as mais anônimas,pode combinar os dois elementos:a informação fresca, captada emsua fonte primária, e a narrativacativante, que atrai o interesse efixa a atenção. Alguns jornalistasJaneiro 2008evoluem tanto que se tornam escritores.E, às vezes, vice-versa,mas com freqüência muito menorporque o trânsito no sentido contrárioé muito mais difícil.Com tudo isso, o jornalismopassou a ser, pelo menos, uma“quase-ciência”. E jornalistas pularamo muro da academia, se tornandopesquisadores, professores,autores de livros que podem sercitados, que podem ser incluídosem bibliografias de publicaçõesacadêmicas, avalizados pelo sineteda ciência.Nem sempre a exclusão dostrabalhos jornalísticos da referênciados acadêmicos é sem razão.Pelo contrário: a regra é mesmoque as obras de jornalistas nãosirvam de referência aceitável emdissertações de mestrado, teses dedoutoramento ou outras empreitadasdesse gênero. Nossos livrosraramente têm notas de pé de páginaou remontam às suas fontesde consulta, assim autorizando aconferência da informação usada.Muitas vezes escritos no calor dahora, não deixam tempo para taiscuidados metodológicos.Independentemente dessas limitaçõesconvencionais, porém, ojornalismo se afirma exatamentequando enfrenta os acontecimentosdo dia com a lupa do saberorganizado, do conhecimentoque já existe a respeito de taisacontecimentos, estabelecendo oelo entre o presente e o passado—e, sempre que possível, tambémcom o futuro. É comum queum jornalista, na aplicação doseu método de pesquisa, deparesecom fatos ou fenômenos inteiramentenovos, tanto para elequanto para a sociedade da qualparticipa.Se o evento é relevante e temsignificado, deve observá-lo, anotá-lo,apresentá-lo, situá-lo notempo e no espaço e procurar umaexplicação para o seu significado.Nessa busca, um jornalista tem aomenos a possibilidade de chegarao novo, àquilo que, começando ater o seu curso na história, aindasob a aparência fugaz de cotidiano,vai marcar a vida das pessoas,do local específico ou de cenáriosmuito mais amplos.Quando realiza esse trabalho,o jornalismo se transforma numafonte indescartável de referência.Mesmo quando não é citado explicitamente,por motivos vários(incluindo a desonestidade intelectualde diversos autores), é matrizde cultura, no seu mais amplosentido antropológico. É o párachoqueda sociedade, seu barômetro,sua biruta e sua ferramentade trabalho.O maior exemplo do significadodesse jornalismo é I. F. Stone,jornalista americano que morreuaos 82 anos, em 1989. De 1952a 1971 ele editou, sozinho, seuI. F. Stone’s Weekly (a partir decerto período, quinzenário). Omaterial do semanário sempre foiusado pelos acadêmicos, porqueStone lia, traduzia e interpretavadocumentos oficiais, geralmenteáridos e pouco lidos, apesarde sua importância, mas raros ocitavam. Apropriavam-se de seutexto ou o tomavam como pistapara suas pesquisas, sem o devidocrédito.81


Janeiro 2008A pirataria começou a se tornarmais evidente quando seleções doWeekly passaram a ser publicadasna forma de livro, 10 anos depoisdo surgimento do “jornalzinho”.Hoje, é impossível considerar a“outra versão” dos anos 1950 a 70sem passar por Stone, respeitandoseu legado.O título de professor daUFPa, que me honra muito,me ajuda a me sentirem casa quando subo dojornalismo à academia. Foicomo me senti ao recebera homenagem especial nasessão de abertura da 59ªReunião Anual da SBPC, aoque parece a primeira dessetipo prestada a um jornalistaÉ esse acervo que foi modificandoo relacionamento entre aacademia e o jornalismo. Depoisde muitas palestras, na recepçãoao meu título de jornalista já nãoera tão marcante a reação adversado apresentador e do público. Amuleta da sociologia ainda ajudava— e continua a ajudar — meuRevista <strong>Adusp</strong>tráfego entre os sacerdotes do saber,minha aceitação pelos que,afinal, são um tanto meus pares.Saí da Universidade Federal doPará há 10 anos, mas continuo aser tratado como se fora professorda instituição.O título, dado sem minha sugestão,mais por gravitação deuma necessidade protocolar, mehonra muito. Minha memória dossete anos na UFPA é boa, mantémagradável recordação e saudade.Quando o balanço é positivo, o títulose torna vitalício, como o dossenadores italianos, sem a contaminaçãodos benefícios espúriosda vitaliciedade, quando imerecida.O título me ajuda a me sentirem casa quando subo do jornalismoà academia, como fiz dezenase dezenas de vezes, nesse já longociclo de palestras.Foi como me senti no dia 8 dejunho de 2007, dentre mais de duasmil pessoas presentes ao centrode convenções de Belém (obra doelitismo tucano, que se manteveà frente do governo do Estadoao longo de 12 anos, mimetizadapelos neopopulistas do PT, queassumiram o poder neste ano),ao receber a homenagem especialna sessão de abertura da 59ª ReuniãoAnual da Sociedade Brasileirapara o Progresso da Ciência, asegunda realizada na Amazônia,ao que parece a primeira homenagemdesse tipo prestada a umjornalista e a um paraense-amazônida.Foi a homenagem da maiorentidade científica do continentea um jornalismo que, como apoesia de Carlos Drummond deAndrade, está comprometido comseu tempo e sua gente. Um tempopresente, um mundo presente,como disse nosso irmão-gêmeode terra minerada, o homem quelamentou a perda de Itabira, masnão pôde ver Carajás.Sem o poder dos versos e sema grandeza de Drummond, o quenos resta é sermos operários dasletras, que moldam com palavrasa percepção desta nova epopéia,tão distante das Minas Gerais,tão ao feitio dos seus feitores.Nenhum de nós extraiu de si atéagora lamento como o de Drummond.Conseguiremos, então, naAmazônia colonizada, criar umahistória que não dê motivos paraversos de tristeza, como os do poetaitabirano?É a pergunta que fica e o desafioque se impõe ao nosso tempo.Sobre o autorLúcio Flávio Pinto, criador e editor do JornalPessoal, é jornalista e sociólogo. Foi repórter do Correioda Manhã, da revista Realidade e do jornal O Estado deS. Paulo, onde trabalhou por 17 anos e cuja sucursal emBelém criou e chefiou. Autor de vários livros, entre elesAmazônia: no rastro do saque (Hucitec, 1980), Jari:toda a verdade sobre o projeto de Ludwig (Marco Zero,1986) e O Jornalismo na Linha de Tiro (2007).Notas do Editor1 Dos processos movidos contra Lúcio Flávio, 13 são de autoria de membros da família Maiorana, que vêm a ser os proprietários do Grupo Liberal, ao qual pertencem o jornal e a TVdo mesmo nome, esta afiliada à Rede Globo. No dia 21 de janeiro de 2005, o jornalista foi agredido a socos e pontapés, em local público, por Ronaldo Maiorana e por dois policiaismilitaresque trabalham ilegalmente como seguranças do empresário.2 Raimundo Rodrigues Pereira notabilizou-se, posteriormente, como um dos mais importantes jornalistas da imprensa de oposição ao regime militar. Foi o principal editor dos jornaisAmanhã, Opinião e Movimento. Uma apreciação notável, porém controvertida, do papel desempenhado por Raimundo à frente desses jornais pode ser encontrada em Jornalistas eRevolucionários, de Bernardo Kucinsky (Scritta, 1994).82


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Um balanço dacampanha pelademocratizaçãoda informaçãoBernardo KucinskiProfessor da Escola deComunicações e Artes da USPFotos: Daniel GarciaSão Paulo, 5/10/0783


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>O movimento pela democratização da comunicação socialalcançou um inédito acúmulo de forças no país. Centrais sindicais,partidos políticos e movimentos sociais finalmente entenderama dimensão estratégica da comunicação e incluíram na suapauta prioritária a luta pela democratização da informação.O Observatório Brasileiro de Mídia está desenvolvendo umferramental completo de acompanhamento e crítica do discursomidiático. A maior fraqueza do campo popular está no contextoideológico. O panorama é contraditório, desafiando uma definiçãoDesde a Constituintede 1988, não tínhamoso nível de acúmulode forças hojealcançado na lutapela democratizaçãoda mídia no Brasil. Mesmo na negociaçãoda regulação das Tevês acabo, em que forçamos as concessionáriasa fornecer gratuitamentequatro canais de uso público, o quese deu foi muito mais uma articulaçãoda cúpula do movimento.Hoje, há uma rede articulada,com ramificações em vários setoresda sociedade civil, engajada na democratizaçãoda informação. VáriasONGs e sites na Internet dedicam-seao acompanhamento da mídia e daspolíticas públicas de comunicação.Temos uma dezena de observatóriosda imprensa dedicados à críticade discurso midiático, indo muitoalém, em profundidade, fundamentaçãoe consistência, da crítica autoindulgenteque antes prevalecia. 184Em Santa Catarina, procuradoresda República estão montando umaação inédita contra o grupo RBS porformação de um monopólio de mercado,depois da compra pelo grupodo jornal A Notícia.Algumas centrais sindicais, partidospolíticos e movimentos sociaisfinalmente entenderam a dimensãoestratégica da comunicação eincluíram na sua pauta prioritáriaa luta pela democratização da informação,como é o caso do site“Vermelho”, do PCdoB. Com apoiodecisivo de sindicatos importantes,o Observatório Brasileiro de Mídiaestá desenvolvendo um ferramentalcompleto de acompanhamento ecrítica do discurso midiático.Já levamos o governo a adotarduas políticas públicas inovadoras:o recadastramento de todas as concessõespúblicas de rádio e TV e ainstituição de uma rede nacionalde TV pública. Conseguimos tambémalguma mudança para melhorno atendimento dos pedidos deregularização das rádios comunitáriaspelo Ministério das Comunicações,embora ainda prevaleça umapostura restritiva. Pela primeiravez, uma entidade inter-sindical,a Fundação Comunicação Culturae Trabalho, conseguiu a outorgade uma concessão de geradora deTV, hoje em fase de instalação emMogi das Cruzes. 2 No Congresso,novas autorizações de concessõesestão sendo submetidas a umexame mais criterioso, inclusiveo pedido da mesma fundação, deum canal de rádio FM, em São Vicente.O BNDES abriu uma linhade financiamento para produçãoindependente de imagem. Pode sera primeira de uma série de políticaspúblicas compensatórias paraestimular o pluralismo e a diversificaçãotemática na mídia.Em junho foi realizado em Brasíliao primeiro Encontro Nacionalde Comunicação, com apoio da


Revista <strong>Adusp</strong>Câmara dos Deputados, reunindocerca de 30 entidades da sociedadecivil. No horizonte, a primeira grandeConferência Nacional de Comunicação,marcada para 2008. Oobjetivo comum desses movimentosé instituir o interesse público nadefinição das políticas de comunicação,incluindo as concessões decanais de rádio e TV. 3O contexto em que tudo isso estáacontecendo é o de uma transformaçãoprofunda, ainda em progressãoveloz, no modo de produçãoe no mercado da comunicação.A passagem dos sinais analógicospara os digitais permite multiplicarpor até dez o número de canais noespectro eletromagnético. A Interneteclodiu como uma nova e poderosamídia, além de ferramentade trabalho. E mal se passaram algunsanos, os aparelhos celularesjá podem ser definidos como maisuma nova mídia, um modo portátilde ver o mundo e interagir com asoutras mídias.Além dos cinco jornais dereferência nacional, degrande visibilidade, mas quesubstituíram o jornalismofactual pela ideologia pura,o mercado editorial seenriquece, se diversifica,graças aos baixos custosde produção que a Internettornou possíveisEsse conjunto de novos meiosmuda por completo o panoramada comunicação social. Pela primeiravez, as tecnologias, além dedemocratizarem a comunicação,barateiam custo, descentralizam aprodução. Pela primeira vez, surgeuma tecnologia que dá, a cada serhumano minimamente inserido numasociedade moderna, o direito deinformar, como distinto do direitode ser informado. Essa é a mais importantedimensão da Internet.O barateamento dos custos explicaa explosão de revistas de pequenacirculação hoje no Brasil,inclusive revistas temáticas de altopadrão editorial, em todos os camposdo conhecimento e da atividadehumana. Além dos cinco jornaisde referência nacional, de grandevisibilidade, mas que substituíramo jornalismo factual pela ideologiapura, descolando-se do sentimentopopular, o mercado editorial seenriquece a cada dia, se diversifica,se fragmenta, graças aos baixoscustos do novo modo de produção,circulação e acesso, desbloqueadospela Internet.Os grandes grupos tentam mantero domínio de mercado atravésdo controle dos canais de comercialização,das megafusões e da práticado super-sinergismo pelo qualveículos diferentes do mesmo conglomeradopromovem-se uns aosoutros, e da insistência no conceitode “pirataria”. 4 Trata-se, no entantode uma ação reativa, que não conseguefrear o desenvolvimento dasforças produtivas da comunicação,hoje movidas por uma exuberânciatecnológica que torna difícil mantero padrão anterior de controle. AJaneiro 2008nova tecnologia é intrinsecamentelibertária e desconcentradora.O governo Lula é mais sensívelàs demandas dos setores organizadosdos trabalhadores e deminorias secularmente excluídas.Por isso mesmo, é hostilizado fortementepelas elites tradicionais e,em conseqüência, pela mídia convencional,que na América Latinatem raízes oligárquicas, perfil elitistae cultura autoritária. Procurandoproteger seus flancos, Lulafirmou, primeiro, um pacto estratégicocom o capital financeiro.Depois, firmou outro, com a RedeGlobo, valendo-se do poder de retaliaçãoadquirido pela chegada aopoder. O governo cobra da Globoum mínimo de isenção.As decisões de partir para o recadastramentoe para a formaçãode uma rede pública de TV sugeremo esgotamento do acordo deconvivência com a Globo. Não sãoapenas o resultado das lutas pelaredemocratização dentro do aparelhode Estado. O próprio executivoconvenceu-se de que na campanhada reeleição a Globo violou asregras mínimas de isenção, retomandoa postura de querer ditaros destinos do país em vez de selimitar a reportá-los.No contexto ideológico está amaior fraqueza do campo popular.O panorama é contraditório,desafiando uma definição. Na facevisível das manifestações políticase culturais parece prevalecer o valorneoliberal, do “cada um por si,Deus por todos”. Mas, nas águasmais profundas, os valores dominantessão os do “politicamentecorreto”, tolerância e pluralismo,85


Janeiro 2008defesa da paz, da solidariedade humanae da preservação da natureza;repúdio às agressões e à guerracontra o Iraque.A luta pela democratizaçãoda informação pareceatrair movimentos dos maisdiversos matizes. O momentoé promissor, mas basta ogoverno usar tudo isso pararenegociar seu pacto coma Globo, e muito do que seconseguiu será perdidoA sociedade, sacudida por fenômenoscomo a Internet e a liberaçãototal de costumes, parece serevitalizar na própria tragédia, nosseus roteiros de violência e desemprego.O contingente de jovens nasuniversidades cresce exponencialmente.Em toda a América Latinaos movimentos sociais tomaram ainiciativa, mudando de modo significativoa correlação de forças e opanorama político.No Brasil, o quadro não é deanomia e sim de uma ebulição aindasem rumo. Muitos movimentossociais no Brasil movem-se poragendas setoriais estanques quenão falam entre si, e o maior partidopolítico de esquerda demora emreelaborar suas idéias para tornálascompatíveis com o atual estadodas forças produtivas e visões demundo da juventude. O governo sóagora começa a elaborar um projetonacional. A luta pela democratizaçãoda informação pareceatrair movimentos dos mais diversosmatizes. Não só por sua funçãoinstrumental e por atender direitosdifusos, que beneficiam a todos,como por implicar necessariamentenuma luta pela democratização doaparelho de Estado. O momentoé promissor, mas basta o governousar tudo isso para renegociar seupacto com a Globo, e muito do quese conseguiu será perdido.Nossa principal frente de atuaçãodeve se dar em torno da regulaçãodo novo espectro eletromagnéticoampliado pela digitalização.Essa luta movimenta os pesos pesadosda indústria da comunicação.Tambémestá no centro daspropostas temáticas da comissãoautodenominada Pró-Conferência,que vem se reunindo periodicamentepara preparar a Conferênciade 2008. Os desafios colocadospara todos, em especial para asforças populares, é enorme, mesmoporque as variáveis tecnológicasainda estão em movimentode redefinição. O próprio caráterdas novas tecnologias, que pulverizaramo espectro e popularizaramo acesso à informação, mas aomesmo tempo propiciam a convergênciade plataformas e serviços,dificulta a aplicação de conceitosclássicos, como os de concentraçãode mercado, monopólio, oligopólioe cartel.Durante a conferência preparatória,ocorrida em setembro emBrasília, a Frente Nacional PelaDemocratização da Comunicaçãodefendeu o conceito de uma redepública e única com garantia deRevista <strong>Adusp</strong>acesso universal a todos os sinais(som, imagem e dados) e que aomesmo tempo otimize o uso socialmenterelevante das diferentes plataformastecnológicas de comunicação.Trata-se de inverter a lógicamercantil da Lei Geral das Telecomunicaçõesde 1997, baixada como objetivo de privatizar tudo, e quesubordinou até mesmo os sistemaspúblicos à lógica do mercado. Seupretexto principal era o de que aprivatização e competição entregrupos incrementaria o fluxo dalivre informação, mas aconteceu ocontrário.Como conseguir que na definiçãode uma nova Lei Geral das Telecomunicaçõesprevaleça a óticado interesse público? O recadastramentoé um bom começo, porquevai nos desvendar quem sãoos reais concessionários no Brasil.Mas dada a correlação de forças noCongresso, a complexidade técnica,e a tendência do governo de cederem áreas que não considera estratégicas,para obter apoio em outrasáreas, é muito difícil conseguir-seuma mudança tão profunda.É prioritário desenvolver o ativismodentro do Conselho Consultivode revisão da Lei Geral dasTelecomunicações, anunciado peloministro Hélio Costa. É possívelnesse âmbito focar uma agenda mínimafactível; alguns princípios poruma nova regulação democrática,que independam da forma como secompletará a transição tecnológica.Um rol de especificações bemclaras. Tais como: (a) controle púbicodo processo de concessões doespectro; (b) abertura do espectroa entidades da sociedade civil; (c)86


Revista <strong>Adusp</strong>impedir por normas claras o monopólioregional e o monopólio cruzado;(d) subordinar a concessão àapresentação de projetos editoriaisharmônicos com políticas públicaspreviamente acordadas em fórunslegítimos e democráticos; (e) regrasclaras de operação, limitandotempo de propaganda, obrigandotempo mínimo de noticiário e taxamínima de ocupação com produçãonacional e regional.Nosso trabalho de crítica eacompanhamento de mídiajá conseguiu forçar dirigentesda mídia convencional auma explicação pública desuas práticas. Mas é pouco,frente ao fosso que separa aprática jornalística no Brasildos princípios éticos autoproclamadospelo jornalismoA constituição da rede públicade TV é hoje a nossa segunda maisimportante frente de luta, mesmo naperspectiva de declínio relativo daimportância da TV no futuro próximofrente à Internet. 5 O movimentopela democratização da informaçãotem uma estratégia clara para entrarna briga pela definição do caráterda rede pública? Parece que não.As definições vêm se dando aos pedaços,tentando por um lado acomodardisputas internas de grupospalacianos e por outro, não assustaro campo conservador. Daí o cuidadoextremo na formação de seu corpodirigente e de seu conselho, formadospor quadros do próprio sistemadominante. Procura-se a legitimidademimetizando. “Na crise surgeuma grande variedade de sintomasmórbidos”, disse Gramsci nos seusCadernos do Cárcere. A crise consisteprecisamente no fato de que “ovelho está morrendo, e o novo aindanão consegue nascer”.Vamos torcer e trabalhar paraque a TV pública não seja apenasmais um “sintoma mórbido”, maisum apêndice culturalmente melhoradodo sistema de comunicaçãode massa mercantil. É preciso queela tenha peso no processo de formaçãoda agenda nacional e se guiepor princípios de pluralidade, radicalidadejornalística e republicanismo.Não é impossível tirar o projetode TV pública de seu invólucrodefensivo e burocrático. A explosãocriativa do cinema nacional mostraque há vida além da Rede Globoe da Globosat. Que há uma novageração de artistas e intelectuaisquerendo falar e tendo o que falar.Eles deveriam estar no cerne da redepública de TV.Nossa terceira frente de luta éa interna, na esfera da ética jornalística.Nosso trabalho de crítica eacompanhamento de mídia já conseguiuforçar dirigentes da mídiaconvencional a uma explicação públicade suas práticas. Mas é pouco,frente ao fosso que separa a práticajornalística no Brasil dos princípioséticos auto-proclamados pelo jornalismo.Não por acaso, o Brasil é opaís em que há mais processos contrajornalistas, em termos relativos,por crimes de imprensa. 6Janeiro 2008As entidades de acompanhamentode mídia podem aumentar muitosua capacidade de intervenção, alargandoa brecha já aberta, se optarempor críticas tópicas mais imediatas,em cima de episódios específicos.Ao mesmo tempo podem robustecersua ação, aumentar em muitosua legitimidade, intensificando seuscontatos com a academia, que fazestudos mais metódicos, mas numtempo de maturação mais lento.A frente da ética é difícil porquemuitos jornalistas tiram o corpo, alegandoque “são os patrões que mandamfazer assim”. Os sindicatos e aFenaj contribuíram para essa dissociação,criando um “código de éticados jornalistas”, que não é negociadocom o patronato e muito menospor eles subscrito. Além disso, o códigode ética dos jornalistas brasileirosé meramente simbólico, porquea maioria dos jornalistas o ignora eos comitês de ética dos sindicatos sófuncionam nos casos de defesa deinteresses corporativos. Não punemas violações da ética profissional.Também tratam indiferentementejornalistas e assessores de imprensa.Nessa esfera deveríamos encetaruma campanha por etapas, que conseguissenum primeiro momento,seja através de acordos coletivos detrabalho ou por lei do Congresso,a implantação da cláusula de consciêncianas redações. Uma cláusulaque proteja o jornalista contrapunições por motivos de opinião.Seria interessante também impedira prática do anonimato, que já évedado pela Lei de Imprensa, maspraticado amplamente. Instituir aassinatura das matérias como práticaobrigatória.87


Janeiro 2008Não se pode culpar o patronatopor defender seus interesses.Foi para isso que se criaramgrandes jornais de referêncianacional, que pautam a mídiaeletrônica. Pode-se, isso sim,culpar a esquerda, por até hojenão ter lançado um grandejornal de referência nacionalFinalmente, a grande pergunta:o que fazer com a mídia oligárquicaimpressa? Não há nada a fazer, excetocriar mídias impressas do campo popular.Se nos meios eletrônicos devemprevalecer critérios claros de neutralidadepolítica, já que são concessõesdo poder público, nos meios impressoso princípio geral é a liberdade total dealinhamento ideológico e mesmo partidário,incidindo apenas as restriçõesda Lei de Imprensa, que tipifica crimesde injúria, calúnia e difamação.É válido o esforço de desconstruçãodo discurso da mídia porque podecolocar na defensiva os promotoresda mentira ou do golpe. Mas nãose pode culpar o patronato por defenderseus interesses. Foi para issoque criaram grandes jornais de referêncianacional, que pautam a mídiaeletrônica. Pode-se, isso sim, culparos movimentos sociais e centrais sindicais,ou partidos que se dizem deesquerda, por não terem lançado atéhoje um grande jornal de referêncianacional que defenda os interessespopulares e nacionais. Que se contraponhaà mídia impressa oligárquica.Muitos fatores explicam os recorrentesfracassos dos projetos demídia impressa da esquerda. Emprimeiro lugar, o sectarismo, quedificulta a colaboração entre gruposde extrações ideológicas diferentes,seja na produção ou na distribuição.Os veículos tornam-se instrumentosde disputa interna ou externa. Essefoi o mecanismo que enterrou quasetoda a imprensa alternativa nos anos1970. No mundo sindical, em que olançamento de um jornal nacionalpoderia até mesmo economizar recursos,ao consolidar grande númerode pequenos jornais, predominaa atomização, a subordinação dasações de comunicação aos interessespolíticos do grupo dirigente ou limitando-asàs lutas locais da categoria.As dezenas de jornaizinhos e revistasproduzidas pelos sindicatosexercem alguma influência na basesocial, mas não conseguem quebraro monopólio da formação da agendados grandes veículos oligárquicos decomunicação de massa. Para isso, omovimento popular também teriaRevista <strong>Adusp</strong>que ter um grande veículo de comunicaçãode massa, e que se dirigisseaos grandes temas nacionais. Mas poderiao campo popular desempenharesse papel, se também ele não é portadorde um projeto nacional, apenasde pautas setoriais e corporativas?Jornais eletrônicos na Internet sãoa nova oportunidade do campo popular,pelo seu baixo custo e modernidadeintrínseca. A dinâmica está naInternet. Se eu fosse hoje fazer umprojeto de um jornal de influência nacional,optaria por um site na Internet,de alto padrão jornalístico, capaz degerar sua própria reportagem, comuma coluna analítica e interpretativa euma janela de TV Web, para debates.Uma espécie de UOL de esquerda: éo que se deveria tentar hoje no Brasil,com os recursos disponíveis. Seria omelhor projeto do ponto de vista darelação custo-benefício, além de sesituar na vanguarda tecnológica.Sobre o autorBernardo Kucinski, físico, jornalista, é professortitular (aposentado) da Escola de Comunicações e Artesda USP. Autor de vários livros, entre os quais Jornalistase Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa(Scritta, 1991) e Jornalismo na era virtual: ensaios sobreo colapso da razão ética (Perseu Abramo/Unesp, 2005).Sobre o textoOriginalmente apresentado para discussão na mesa “OsObservatórios de Mídia e Democracia”, do Fórum InternacionalMídia, Poder e Democracia, realizado em Salvador de12 a 14 de novembro de 2007, promovido pela Faculdadede Comunicação da Universidade Federal da Bahia, ObservatórioBrasileiro de Mídia e outras entidades.Notas1 Entre eles, Observatório Brasileiro de Imprensa, Observatório Brasileiro de Mídia, ObservatórioBrasileiro do Direito à Informação, Monitor de Mídia; Boletins da FNDC, daEpcom e da Intervozes, “Vermelho” (PCdoB), Carta Maior, Rede Nacional de JornalistasPopulares; Blog do Professor Chaparro.2 Até hoje, sindicatos têm que alugar espaço em tevês ou emissoras de rádio para veicular seuspontos de vista. É o que faz a Corrente Sindical Classista, do PCdoB, especialmente naBahia. A CUT em São Paulo fez um convênio com a Rádio 9 de Julho, da Cúria, paratransmitir o seu programa “Bom Dia Trabalhador”.3 Essa concessões são o exemplo extremo da ilegalidade e apropriação do espaço público porinteresses privados. Durante sucessivos governos serviram de moeda de troca em barganhaspolíticas e hoje 51 deputados e 27 senadores controlam, direta ou indiretamente,emissoras de rádio ou Tevê. Entrevista do professor Venício Lima à Rede Nacional deJornalistas Populares, julho de 2006.4 Um exemplo de megafusão é da AOL com a Time-Warner em 2000, com valor de mercado estimadoentão em US$ 350 bilhões. Um exemplo de tentativa de controle da distribuição éa compra da Chinaglia pela Dinap, este ano, dando origem à distribuidora Treelog S/A. Sefor aprovada pelo Cade, a nova empresa terá domínio de praticamente 100% do mercado,criando-se um problema gravíssimo de monopólio num setor vital da sociedade.5 Esse declínio já é notável hoje, com a perda de 3,6 pontos de audiência pela Rede Globo, semganho significativo das outras redes. Dados de setembro de 2007 em relação a outubro de2006. Conforme Daniel Castro in Folha de S. Paulo.6 Relatório da ONG “Artigo 19”, da Inglaterra. Conforme “Vermelho”, site do PCdoB, 19/10/07.88


Revista <strong>Adusp</strong>Janeiro 2008Voltando à bailaSP tem 1º Congressode Ex-Presos ePerseguidos PolíticosBruno MandelliNo dia 13/12/07, data em que secompletavam 39 anos da promulgaçãodo AI-5, cerca de 500 pessoasse reuniram no anfiteatro do antigocolégio Caetano de Campos, paraabertura do 1º Congresso Estadualde Ex-Presos e Perseguidos Políticosdo Estado de São Paulo.Organizado pelo Fórum Permanentedos Ex-Presos e PerseguidosPolíticos do Estado de São Paulo,o congresso teve dois dias de duração.Sua programação contou comquatro seminários de debate, comos temas “A anistia política e a legislação”,“Movimento Operário eCamponês – Ontem e Hoje”, “Osmeios de comunicação, a cultura ea herança da censura” e “A DitaduraMilitar e a impunidade”.“Nós avaliamos que o congressofoi muito positivo, teve uma boarepercussão, comparecimento acimado esperado, e atingiu todos osseus objetivos”, declara RaphaelMartinelli, presidente do Fórum.Na avaliação de Cloves de Castro,ex-preso político presente ao congresso,o evento foi importante por“reafirmar a nossa posição pelaAspecto do congresso no dia14/12. No destaque, professorFábio Konder Comparato e IvanSeixas, um dos organizadoresabertura dos arquivos daDitadura Militar e a lutacontra a impunidade daquelesque nos torturarame oprimiram”.São Paulo foi o primeiro Estadoa realizar um encontro desse tipo,mas a iniciativa deverá nacionalizarse,com a realização do 1º CongressoNacional de Ex-Presos Políticos,Fotos: Daniel Garciaprevisto para agosto de 2008. Naopinião de Martinelli, o congressopaulista foi “um forte estímulo paraa convocação do congresso nacionale também para a realização de umcongresso latino-americano”.89


Janeiro 2008Revista <strong>Adusp</strong>CARTAEscola Nacional do MSTPrezados jornalistas,Vi a matéria sobre a Escola Nacional do MST (“Escola FlorestanFernandes, marco na história do MST”, Revista <strong>Adusp</strong>36). Recebi a revista do Professor Pablo Rúben Mariconda.Matéria extensa e boa. Muito bem ilustrada com as edificações.Me parece que seria justo reconhecer o crédito da autoriadesta arquitetura — que afinal não passa batida, não é?Sou a arquiteta responsável por toda essa aventura, desde aconcepção da técnica construtiva (construir com terra), a metodologiade construção (construção por brigadas de trabalhadoressem-terra de todo o Brasil) e o projeto arquitetônico.Atenciosamente,Lilian Avivia Lubochinski, arquitetaSão Paulo-SPDaniel Garcia90

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