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Voluntariado – missão e dádiva - Plataforma ONGD

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(…) quanto mais fui conhecendo, não sítios, mas pessoas, fui percebendo a vida deles e percebendotambém a minha, a nossa, e fui percebendo que quando se vê nas notícias que há uma pobrezaextrema, muita gente a morrer à fome, aquilo não é noutro planeta, é no nosso, está a acontecer nestemomento e é para aquele lado, para o lado Sul, a quatro horas de avião daqui, por isso não é uma coisairreal. E comecei, também, a ter este olhar mais global para a vida (…)


FEC <strong>–</strong> Fundação FÉ E COOPERAÇÃO. É uma <strong>ONGD</strong> portuguesa que atua nas áreas de Educação para oDesenvolvimento e Advocacia Social e Cooperação para o Desenvolvimento. Na área da cooperação, a sua intervenção realizasesobretudo em países de língua oficial portuguesa [www.fecongd.org]CIPAF- Centro de Investigação da Escola Superior de Educação de Paula Frassinetti. Commais de quinze anos de existência e trinta publicações próprias, para além de uma revista científica da especialidade (Saber &Educar), congrega cerca de quarenta investigadores. O CIPAF promove atualmente 2 linhas de investigação: “Problematizaçãoem Educação e Formação de Educadores” e “Construção da(s) Identidade(s) e Projetos de Desenvolvimento Pessoal eComunitário”. Estas linhas, ancoradas em projetos de pesquisa que também se ligam às práticas de aprendizagem, procuram,conjuntamente com a produção de conhecimento e a intervenção comunitária, aprofundar a sustentabilidade científica dosciclos de estudos em funcionamento na instituição. A vitalidade do CIPAF pode ser igualmente atestada pela qualidade dosprojetos de investigação-ação nacionais e internacionais que integra. O presente estudo foi desenvolvido pela equipa deinvestigadores da Educação Social.FICHA TÉCNICAEntidade responsável pelo estudo: Centro de Investigação de Paula Frassinetti - CIPAFCoordenador: Adalberto Dias de CarvalhoAutores: Ana Paula Gomes, Florbela Samagaio Gandra, Gastão Veloso, José Luís Gonçalves, Margarida Pechincha.Colaboração: Joana Brito, Joana Moço, Patrícia Alfano Moscôzo, Paula Sieiro, Cristina Meira, Cristiana Ribeiro, Joana Cunha, Soraia Neto,Vera Pinheiro.Fotos: FEC, Equipa d’África, Grupo Missionário Ondjoyetu, Nuno Macedo, GAS’África Porto, Projecto SABIOrganização gráfica: Emanuel Oliveira Soeiro


INTRODUÇÃOQuando, em 1988, nove jovens decidirampartilhar as suas vidas, durante dois anos,junto de pequenas comunidades de São Tomée Príncipe e da Guiné-Bissau, não sabiamque estavam a escrever o início da históriado voluntariado missionário em Portugal.Hoje, 20 anos depois da espontaneidade dasprimeiras partidas, são já mais de 50 os gruposorganizados que se entregam a esta específicaexpressão de voluntariado. Aproximandosedo voluntariado internacional para acooperação, o voluntariado missionáriodistingue-se pela motivação cristã, que inspiraa sua ação. Durante um período de tempoque, normalmente, oscila entre um mês edois anos, os voluntários oferecem, de formagratuita, o seu tempo e as suas competênciasa populações desfavorecidas dos países emdesenvolvimento, em especial os da Áfricalusófona. Através de ações concretas de lutapela justiça social e equidade distributivaprocura-se que as desigualdades sejam6atenuadas e que a promoção humana sejarealizada nas suas diversas dimensões.As duas últimas décadas ficaram marcadaspela partida de mais de 4000 voluntários,consolidando, assim, a ação do voluntariadomissionário em Portugal. Mas, fazendoo balanço deste anos e perspetivando ofuturo, surgem legítimas interrogações: quemovimento é este? Quem são os voluntáriosque partem? Quem são as organizações que osenviam? Quais as áreas em que atuam? O queos motiva a partir?Procurando dar resposta a estas questões, aFEC, enquanto coordenadora nacional da Redede <strong>Voluntariado</strong> Missionário, cujo principalobjetivo é estabelecer pontes, fomentar a açãode todas as entidades envolvidas e promoverinteresses comuns, promoveu um estudoinovador sobre esta tipologia específica devoluntariado, numa parceria com o Centro deInvestigação de Paula Frassinetti, da EscolaSuperior de Educação de Paula Frassinetti.O estudo <strong>Voluntariado</strong>: <strong>missão</strong> e <strong>dádiva</strong>, queaqui se apresenta, é, de facto, pioneiro einovador a diversos níveis. Por um lado, é aprimeira vez que, em Portugal, se analisa,de forma científica, a ação do voluntariadomissionário, enquanto fenómeno nacional; poroutro lado, descreve com rigor metodológicoesta realidade, pois beneficia da participaçãode dezenas de instituições que promovemo voluntariado missionário, resultando numretrato representativo e fiel desta realidade anível nacional.Privilegiando uma abordagem a partir doconceito de <strong>dádiva</strong>, o presente estudo revelaas intensas relações de pertença estabelecidasentre os voluntários e as comunidades locais,capazes de desenvolver fortes vínculos sociais eafetivos. O estudo demonstra ainda que, numa


elação de livre e incondicional gratuidade, osvoluntários buscam, acima de tudo, criar relaçõesde troca simbólica que procuram recriar a justiçasocial e promover a pessoa na sua singularidadee enquanto sujeito de si.<strong>Voluntariado</strong>: <strong>missão</strong> e <strong>dádiva</strong> permite-nos,assim, conhecer em pormenor o voluntariadomissionário em Portugal e viajar até à íntimaconvicção de quem optou por participar nestemovimento: os voluntários.Ana Patrícia FonsecaFEC, Rede de <strong>Voluntariado</strong> Missionário


SUMÁRIO EXECUTIVOIntegrando as celebrações do Ano Europeu do<strong>Voluntariado</strong>, a FEC <strong>–</strong> Fundação Fé e Cooperação 1 ,no âmbito de trabalho desenvolvido pela Redede <strong>Voluntariado</strong> Missionário, em parceria com aEscola Superior de Educação Paula Frassinetti 2 ,e com o apoio da Fundação CalousteGulbenkian, lançaram um estudo sobreo voluntariado missionário. Os resultadosapresentados neste documento pretendem serum contributo de qualidade, cientificamentefundamentado, para a discussão nacional einternacional sobre as diferentes realidadese experiências de voluntariado, em particularo voluntariado internacional de inspiração1A FEC <strong>–</strong> Fundação Fé e Cooperação - coordena,em Portugal, desde 1988, a Rede de <strong>Voluntariado</strong>Missionário, que envolve 57 entidades portuguesasque têm em comum a identidade cristã, o trabalhoem cooperação para o desenvolvimento e apromoção e integração de voluntários missionáriosnas suas ações.2Em particular através do CIPAF <strong>–</strong> Centro deInvestigação Paula Frassinetti.religiosa <strong>–</strong> o voluntariado missionário 3 . Assim,é apresentado um conjunto importantede informações e reflexões sobre odesenvolvimento desta atividade nas últimasdécadas, assim como recomendações quepossam sustentar a sua progressão futura.Num primeiro momento, foram analisadosdados de caracterização dos perfis dasinstituições e voluntários envolvidos, dadosrecolhidos junto de 57 organizações, atravésde 37 respostas obtidas aos questionáriosenviados. Num segundo momento, procedesea uma concetualização da noção de <strong>dádiva</strong>,uma vez que tal noção enforma o sentidodas iniciativas já concretizadas e a realizar.3Estando próximo do voluntariado internacional, ovoluntariado missionário tem uma matriz religiosa,cristã, quer a nível da génese de cada grupo ouentidade, da formação oferecida aos candidatos,quer ainda no que respeita aos parceiros com osquais os voluntários trabalham no terreno, quesão sobretudo missionários religiosos membros decongregações religiosas.Ao aprofundar-se o sentido da vida,engrandece-se, na plenitude dasua coerência humana, a dimensãoformativa do cidadão atravésde uma renovada conceção desolidariedade.Tal noção foi cruzada com as motivações queos voluntários exprimem quando partem oupartiram em <strong>missão</strong>. Para indagar sobre estasmotivações, foram aplicados 137 inquéritos avoluntários que frequentaram a formação FECem 2010, ex-voluntários ou voluntários em<strong>missão</strong> no momento. O estudo é enriquecidocom a análise dos discursos de Histórias deVida e com uma breve descrição, a títuloilustrativo, de uma instituição que, com o apoiode voluntários, tem implantado um projecto dedesenvolvimento em Angola. Finalmente, asrecomendações apresentadas visam promover9


oas práticas e melhorar o desempenho e oimpacto do voluntariado.É de realçar que o conceito de <strong>dádiva</strong> impregna,enquanto princípio ético, as conexões entrevoluntários e destinatários. Numa perspetivacristã da <strong>dádiva</strong>, que caracteriza o grupoalvo analisado no âmbito de presenteestudo, tornou-se decisivo identificar oscontornos, designadamente entre o dar e oreceber, ou seja, esclarecer como emerge, noestabelecimento de laços sociais, a relação de<strong>dádiva</strong>.Constata-se, então, que a vivência do sentidoda <strong>dádiva</strong> com intencionalidade cristã serevela decisiva para a motivação e a auto/heteroavaliação dos protagonistas e dasinstituições implicadas. É, aliás, neste quadroque também terão de ser analisados todosos fatores coadjuvantes nos projetos emanálise, tais como os processos de captaçãode voluntários, a relação entre as habilitaçõesdos mesmos e as intervenções preconizadas, asua formação, os seus vínculos institucionais, asimplícitas representações internas e externas,as avaliações dos impactos, etc.10No que respeita à vivência da <strong>dádiva</strong>, enquantomotivação, parece ser decisiva a clarificação doseu sentido. De facto, a falta de clareza na suaassunção plena pode desencadear fenómenosexistenciais de resistência, por exemplo, quantoà perceção do retorno, isto é, à retribuiçãorecebida, por autorrealização, de toda adedicação e esforço desenvolvidos em proldo outro. Na realidade, a compreensão de quea retribuição é, antes de mais, a efetiva e justapresença do outro em mim, pode constituirimportante força de motivação e de incrementodo projeto de voluntariado missionário,enquanto projeto de solidariedade humanaonde a reciprocidade gratuita é fundamental.O estudo evidencia que a vivência aprofundadada <strong>dádiva</strong> e das suas repercussões nos processosespontâneos de avaliação pode ter, por esta via,consequências nos tempos de permanênciados voluntários nos seus destinos, assimcomo na disponibilização para ações futuras.Constitui assim um fator decisivo, tanto parao trabalho realizado no decurso das missões,como para a mensagem que será transmitida,aquando do regresso, junto das comunidadesde origem.Um aspeto a destacar é o que se prende coma ideia de que o voluntariado missionáriose aprende ao mesmo tempo que gerasentimentos renovados de pertença e desejoreforçado de estabelecimento de relaçõesexigentes com os outros. Isto é, parece serperscrutável o princípio de que há, ou podehaver, nesta tipologia de voluntariado, umaevolução progressiva da vivência cristã da<strong>dádiva</strong>, constituindo-se deste modo no seuâmago uma espiral de crescimento que sealimenta e motiva a si mesma.Outro aspecto importante revelado tambémnestes dados preliminares do estudo éque, se a afetividade, a espontaneidade e ainformalidade constituem autênticas fontesque alimentam a dinâmica da implicaçãopessoal dos voluntários, também parece serverdade que haverá um esforço complementara fazer no sentido de se reforçar a componenteracional das organizações e projetos. Aspetoscomo o real impacto das ações junto dosseus destinatários, bem como das instituiçõesde acolhimento, a par de uma mais eficienterelação entre as competências dos voluntáriose os objetivos das suas intervenções devem ser


valorizados. Este último tópico deverá mesmoimplicar a introdução sistemática, na formaçãodos voluntários, de dados concretos sobre oscontextos de vida no destino e noções básicasde gestão de projectos.Proporcionando uma autêntica <strong>dádiva</strong>individual e coletiva junto de populações,especialmente carenciadas, este movimentomerece por isso a redobrada atenção. Esteé, sem dúvida, um primeiro passo na análisedas motivações que guiam os propósitos,realizações e sonhos dos voluntáriosfortalecendo o sentido humano da existênciae de cidadania que inspira os seus atos ealimenta as acções 4 . A ESEPF detém já umconjunto complementar de dados e reflexõesa incluir em relatórios e estudos futuros, como objectivo de continuar a contribuir para auma aprendizagem, melhoria e investimentoem boas práticas por parte FEC e de todas asinstituições e protagonistas envolvidos.4Algumas limitações condicionaram o presenterelatório, designadamente financeiras, impedindoa devida ponderação do impacto da atividade devoluntariado missionário junto das comunidadesde destino, aspeto a ser colmatado em avaliações einvestigações posteriores.


1VOLUNTÁRIOS MISSIONÁRIOS: PERFIL, AÇÃO E FORMAÇÃOPela amostra das 137 respostas obtidas, épossível definir de forma sucinta o perfil dovoluntário missionário 5 : é predominantementedo género feminino (75%), solteiro (cerca de80%) e titular de um curso superior (70%)ou habilitações académicas pós-licenciatura(15%). Nitidamente, quando se observa adistribuição dos voluntários por faixa etária,os jovens entre os 26 e os 35 anos são os quemais aderem (43%), seguindo-se-lhes de pertoo grupo até aos 25 anos (38%). Embora em5O inquérito por questionário foi inicialmentedivulgado aos voluntários que, durante o anode 2010/2011, frequentaram as formaçõesorganizadas pela FEC e tinham o objetivo de partirem <strong>missão</strong> ainda em 2011. Uma vez que o númerode respostas obtidas foi considerado insuficientepara a abrangência pretendida pelo estudo,posteriormente, e durante os meses de setembroe outubro, o inquérito foi aberto a todos os que seenvolveram no voluntariado missionário nos anosde 2010 e 2011, ou seja, podiam já ter realizadovoluntariado missionário no ano de 2010 ou queestivessem inclusive ainda em <strong>missão</strong> no momento.Desta forma conseguiu-se obter 137 respostas,sendo então esse o total da amostra final.número comparativamente muito menor, háainda voluntários a partirem em <strong>missão</strong> comidades muito mais avançadas. Em geral, houve,em todas as faixas etárias, e ao longo do tempo,um aumento muito elevado de voluntários.Os distritos de residência dos voluntáriossão bastante diversificados, podendo-se,no entanto, realçar uma predominância dosdistritos de Lisboa, Aveiro, Porto e Braga.No que se refere à situação profissional e àautonomia financeira, embora também hajavoluntários desempregados ou com empregotemporário, por norma ou são estudantes oudetentores de um emprego estável, sendo quecerca de 62% dos inquiridos afirmam gozar deautonomia financeira.No que respeita às profissões, mais de metadeexerce profissões de especialistas de atividadesintelectuais e científicas, sendo grande parte delesprofessores, psicólogos e profissionais de saúde.Dos que confirmaram que iriam realizar acçõesde voluntariado missionário durante o anode 2011, cerca de 70% responderam que,no âmbito destas acções, iriam trabalhar naárea para a qual têm competências técnicas,académicas ou profissionais.Pouco mais de metade dos inquiridos declarouque se envolveu espontaneamente novoluntariado missionário. Constata-se que hátambém uma percentagem muito relevante devoluntários que se comprometeu com a <strong>missão</strong>através da influência de amigos ou familiares,bem como da pastoral organizada.Quase 90% dos inquiridos afirmam professaruma religião e desses praticamente 70%declararam encontrarem-se envolvidosativamente em um ou simultaneamente emvários organismos, instituições ou grupos dareligião ou Igreja que professam.13


A duração da <strong>missão</strong> pode ser muito diversa,sendo que a maioria parte para missões decurta duração, por um período de permanênciaentre um a três meses. Também bastantesvoluntários escolhem missões que durammenos de um mês. Independentemente daduração, o número de voluntários enviadosaumentou muito, podendo-se ainda afirmarque é bastante frequente o aumento do períodode <strong>missão</strong> ou a repetição da experiência, assimcomo a permanência ligada a outras açõesde voluntariado levadas a cabo na mesmaorganização ou em outras.14


2AS INSTITUIÇÕES DE ENVIO DE VOLUNTÁRIOSSegundo as 37 respostas obtidas das 56instituições inquiridas 6 , a natureza dasinstituições que proporcionam voluntariadomissionário é muito variada, embora quase75% delas sejam de origem católica, tais comoCongregações Religiosas (9), OrganizaçõesNão-governamentais para o Desenvolvimento<strong>–</strong> <strong>ONGD</strong> (9), IPSS ou instituições diocesanas (6).As estratégias privilegiadas de captação dos6Para a obtenção dos resultados que aqui sereproduzem, foram aplicados dois inquéritospor questionário - um às instituições que enviamvoluntários e outro aos próprios voluntários - viaonline, numa plataforma criada para esse efeito e quese denomina: <strong>Plataforma</strong> do “Projeto <strong>Voluntariado</strong>:Missão com Impacto”. A divulgação do questionário,às instituições, foi feita junto dos responsáveis dasentidades de voluntariado missionário, que a FECforneceu, via e-mail e mesmo por telefone. Notou-seque os dados solicitados, nomeadamente no que serefere a um horizonte temporal mais longínquo, foramde difícil preenchimento, assim como as questõesrelacionadas com os resultados obtidos (impacto dasações). Num universo de 56 instituições contactadas,responderam 37.voluntários confinam-se às iniciativas espontâneas(21 menções) e através da pastoral organizada (19menções). No entanto, os familiares e amigos (12respostas) assim como a publicidade (11 respostas)também surgem como formas de divulgação e decaptação de voluntários.Os países-alvo da ação do voluntariadomissionário são preferencialmente os PALOP,destacando-se, entre estes, um maiorinvestimento em Moçambique (22) e Angola(15). Nos outros países, regista-se um equilíbriode ações em curso que rondam a dezena emcada um, incluindo o Brasil, para além de 9ações em outros tantos países.Quase todas as instituições declaram que aorigem preferencial dos recursos financeiroscaptados para o voluntariado missionário é aangariação de fundos (31 menções) e poucomenos de metade afirma que também recebedoações (17 menções). Apenas duas instituiçõesreferem as dotações oficiais e oito assinalamoutras origens para se proverem de recursosnecessários à prossecução dos seus objetivos.Campos de ação privilegiados: áreasde atuação, impactos percecionadose volume do número de voluntáriosQuase todas as instituições atuam na área daeducação/alfabetização/formação. A educaçãoformal e não-formal (bibliotecas, etc.), a formaçãode educadores, professores ou técnicos, bemcomo a alfabetização são as formas de ação maisevidenciadas nesta área e o impacto desta atuaçãoconstitui claramente o fator mais salientado naperceção das instituições inquiridas. Dos váriosexemplos dados pelas instituições, elencamosapenas alguns a título exemplificativo: aumentode frequência de alunos nas aulas e consequenteredução da taxa de abandono escolar e maiorsucesso escolar; iniciativas de criação de jardins--de-infância e capacitação dos seus educadores;15


incremento de explicações nas diversas disciplinase implementação de cursos de formação de curtaduração, a par do funcionamento de bibliotecasescolares.No que respeita à área da saúde, há igualmenteuma grande presença, designadamente nodomínio da educação para a saúde atravésde intervenções preventivas e campanhas desensibilização, no apoio genérico a instituições desaúde e na formação de técnicos especializados.Como resultados percetíveis, realça-se a reduçãoda taxa de mortalidade (especialmente a infantil),a melhoria na qualidade de prestação de cuidadosde saúde, a criação de farmácias comunitárias ede um centro de reabilitação nutricional.Os apoios ao nível jurídico, económico, pessoale social prestados pelos voluntários e pelasinstituições que os suportam constituem tambémáreas de atuação do voluntariado missionário. Oapoio jurídico é o menos prestado, seguido doeconómico, do pessoal e do social. O públicoalvoé essencialmente o dos jovens e das crianças.Quando se faz a comparação por género, verificaseque o apoio é prestado essencialmente apessoas do sexo feminino. O impacto nesta área é,16uma vez mais, muito variado. Por essa razão, nestemomento, distinguem-se apenas alguns exemplos:maior qualidade de vida, promoção da dignidadeda mulher e da criança, consciencialização paraa igualdade de género aliada a uma mudançade comportamentos, iniciativas de criação depróprio emprego através do microcrédito, criaçãode um centro de acolhimento para adolescentes,para além de formação de técnicos de carpintaria,mecânica ou outros.As escolas são as infraestruturas que mais usufruemde manutenção e melhoria com os recursosdisponibilizados. Contudo, também as instituiçõespastorais, as habitações, as instituições de apoiosocial são, com alguma frequência, alvo dessamelhoria. No que se refere ao impacto, destaca-sea melhoria das condições de vida que provém da(re)construção de bombas de água/depósitos deágua potável, escolas, lares, etc.O desenvolvimento comunitário, sobretudo emcontexto rural, não é das áreas de atuação maismencionadas. Todavia, também aqui as formasde atuação são muito diversas, realçando-se, emprimeiro lugar, o combate à fome e à carênciamaterial extrema, logo seguida da animaçãocomunitária (ações de capacitação cultural eintegração social). Na mesma linha de ação, masem contexto urbano, mantêm-se estas áreascomo predominantes, se bem que, neste terreno,haja mais instituições a atuar. Distinguem-se,por agora, algumas das ações desenvolvidas:dotar de meios os líderes locais, apoio em crisesextremas de fome e o incentivo ao aleitamentomaterno, distribuição de sementes e materialagrícola em troca de trabalho, formação sobre oHIV/SIDA através de jovens estudantes, criaçãode emprego nas missões para apoio à economialocal, entre outros.A disponibilização de recursos materiais efinanceiros é também uma das áreas emque menos instituições atuam. No entanto,a distribuição de recursos orientada paraa manutenção de projetos em curso e amobilização de recursos para a implementaçãode novos projetos são aspetos muito assumidospelas instituições. No que se refere ao impactodesta área, uma vez mais houve referência, porexemplo, ao aumento de frequência de alunosnas aulas, ao sucesso escolar e ao facto de setornar possível a produção de produtos agrícolasem maior quantidade e com melhor qualidade.


Houve ainda a indicação de outras áreasde atuação para além das anteriores: umainstituição referiu a formação de voluntários esete referiram a formação espiritual, pastorale no domínio da evangelização (explicamseestas respostas pelo facto de muitas dasinstituições serem de cariz religioso).Evolução do número de voluntáriospor área de atuaçãoCom o objectivo de apresentar dados maisprecisos quanto ao volume de voluntáriosmobilizados no âmbito do voluntariadomissionário nas últimas duas décadas, destacaseque, em quase todas as áreas de atuação,,abaixo assinaladas na tabela, o número de fluxosregistado em apenas cinco anos, entre 2000 a2005, foi semelhante ou superior àquele que serealizou em doze anos, entre 1988 a 2000. Noquinquénio seguinte, entre 2005 e 2010, o ritmode fluxos cresceu extraordinariamente, à razãomédia de, pelo menos, 30% a 50%, em cada área.Contudo, destaca-se neste crescimento a áreado desenvolvimento comunitário que teve umaumento exponencial de mais de 200% (pelosdados recolhidos, no período de 2000-2005partiram 232 voluntários em <strong>missão</strong> e, entreos anos de 2005-2010, foram 701 os que sevoluntariaram) sendo que a área da educação/alfabetização/formação quase duplicou onúmero de enviados.O aumento dos voluntários pode ser justificadonão só pelo interesse intrínseco que este tipode <strong>missão</strong> desperta, como por serem áreas emque, cada vez mais, as instituições têm vindo aatuar. Resumidamente, a tabela evidencia osseguintes resultados:EducaçãoAlfabetizaçãoFormaçãoSaúdePromoçãoHumana(Apoio: Jurídico,Económico,Pessoal e Social)Criação,Manutençãoe melhoria deInfraestruturasDesenvolvimentoComunitárioDisponibilizaçãode RecursosMateriais eFinanceirosOutra Área deAtuaçãoAção*1988 a 2000 493 372 428 361 352 116 602000 a 2005 592 313 406 329 232 107 1482005 a 2010 1067 468 590 459 701 195 272* 1 Instituição referiu Formação de voluntários e 7 Formação espiritual e pastoral/Evangelização 177Estes dados são apenas aproximados, tendo sido obtidos, num primeiro momento, através de inquérito por questionário aplicado às instituições. Esta imprecisão inicialnos números tornou necessário um procedimento adicional: como nem todas as instituições reponderam ao inquérito ou possuíam registos permanentes e rigorososdo número de voluntários enviados num horizonte temporal tão vasto, foi posteriormente solicitado que clarificassem os números fornecidos, tornando-os o maisaproximados possível à realidade constatada.17


Análise da ação da instituição,perspetivas de melhoria e resultadosobtidosRelativamente às áreas de melhoria em queas instituições progrediram mais nos últimosanos, há uma perceção clara de que houve,de uma forma geral, uma grande evoluçãono âmbito da organização do voluntariadomissionário. No entanto, existem naturalmente,áreas que progrediram mais. São elas: aqualidade da formação proporcionada aosvoluntários missionários antes da partida, aespecialização das instituições em áreas deatuação mais direcionadas e o incremento dasestratégias de recrutamento de voluntários. Acontinuidade dos resultados alcançados, paraalém do período de intervenção realizado pelosvoluntários, é assegurada fundamentalmentepelas congregações religiosas ou estruturase comunidades paroquiais e ainda pelascomunidades locais (voluntários e/ou técnicosformados pelos voluntários missionários).18


3VOLUNTARIADO MISSIONÁRIO COMO PRÁTICADE RELAÇÃO DE DÁDIVAO presente estudo privilegia uma abordagemao voluntariado missionário a partir da ótica da<strong>dádiva</strong>, procurando relacionar a ação voluntáriacom a prática de relação de <strong>dádiva</strong>. No presentedocumento pretende-se, de forma sumária,conceptualizar esta noção de <strong>dádiva</strong> entendidacomo uma forma própria de estabelecer laçossociais com profunda significação ética, namedida em que a <strong>dádiva</strong> possui uma estruturade gratuitidade e liberdade. Posteriormente,analisam-se as motivações dos voluntários e oimpacto da ação que realizam na sua própriavida, a partir da dinâmica instaurada na relaçãode <strong>dádiva</strong>. Como referido anteriomente, nesteestudo ainda não foi possível analisar o impactoda ação do voluntariado missionário junto dosseus destinatários e respetivas comunidades.A noção de <strong>dádiva</strong>De forma ampla, entende-se por <strong>dádiva</strong> a açãoou prestação de bens ou serviços realizadasem expectativa, garantia ou certeza deretribuição - o que compreende uma dimensãode gratuitidade - e que procura a criação,manutenção ou regeneração do vínculo social(Caillé, 2002a, 2002b). Desta definição resultaque a relação de <strong>dádiva</strong> não constitui umarelação de troca económica, utilitarista (o quenão significa que não tenha utilidade), masuma relação de troca simbólica (troca<strong>–</strong>para<strong>–</strong>o<strong>–</strong>vínculo), ou seja, uma relação propriamenteética que tem a sua razão de ser na abertura aooutro e na esperança de uma resposta.Numa relação de troca económica, o quecircula tem um valor de troca representável porum montante em dinheiro e um valor de usoque atribui à “coisa dada” uma importância emfunção da sua utilização e funcionalidade. Narelação de <strong>dádiva</strong>, pelo contrário, tudo o quecircula possui um valor de vínculo, isto é, o quecircula sob a forma de <strong>dádiva</strong> - um objecto, umserviço, um “gesto” - tem um valor simbólicona medida em que exprime, alimenta e reforçaos laços sociais (Godbout, 1992). A <strong>dádiva</strong>está ao serviço da relação, da amizade, dasolidariedade, constituindo uma forma deestabelecer o vínculo social. Na relação de<strong>dádiva</strong>, “o dar”, “o receber” e “o retribuir” estãopois subordinados à afirmação de cada pessoase constituir a si mesma como pessoa e semanifestar como tal na relação que estabelececom o outro. O que significa que os motivose os objetivos subjacentes à <strong>dádiva</strong> estãosubordinados à qualidade da relação que ossujeitos constroem entre si. Não se estabelece,pois, uma relação com o outro apenas para darou obter alguma coisa, mas para instaurar, emprimeiro lugar, um movimento em direção aooutro enquanto outro.A <strong>dádiva</strong> realiza uma aposta, introduz umgesto gratuito e incondicional - expresso nacapacidade de se abrir à incerteza quanto aoretorno -, colocando a relação num registo19


O voluntariado missionário,enquanto experiência de <strong>dádiva</strong>torna-se, assim, expressãode uma cidadania que se fixano valor intrínseco da pessoahumana, exigência da nossacontemporaneidade.e sociais tendencialmente violentas para adignidade humana e onde impera a faltade condições básicas de vida digna. A açãovoluntária procura, então, responder àinterpelação que provém do rosto de homense mulheres marcados pela injustiça social epela dor. Por isso, no centro da sua ação, devemestar essas pessoas com os seus sofrimentos,mas também os seus sonhos e esperanças.não há <strong>dádiva</strong> a não ser daquilo que excede, porsua dimensão simbólica, a dimensão utilitáriae funcional dos bens ou dos serviços (Caillé,2002). A prática do voluntariado integra umalógica da ação e uma lógica da doação, o “dar”da cooperação e o “dar-se” da generosidade(D. Moratalla, 1997) extensiva a todos os sereshumanos, especialmente àqueles que maisnecessitam, afirmando-se o valor do outro.de gratuitidade e de incondicionalidade,ambiente próprio das relações humanas econdição para que a confiança e a sociabilidadepossam acontecer. A partir desta experiência,é possível pensar a constituição do laço social- numa sociedade marcada por excessivaindividualização, uma “modernidade líquida”(Z. Bauman) onde os laços sociais tendem aser fortuitos e frouxos. E, ainda, a instauraçãode lugares de humanização, espaços deconstrução conjunta de consensos, em síntese,a criação de espaços que permitam a efetivaçãode uma vida em comum, entre sujeitos.O campo de ação do voluntariado missionárioé imenso, marcado por realidades pessoais20O compromisso com a justiça social é, nestecontexto, indispensável. Agir em favor da justiçasignifica promover as condições humanas esociais que confiram ao outro o seu direito a sersujeito, ser com liberdade e dignidade, autor eprotagonista da sua vida.Mas estabelecer uma relação com o outroque sofre tal violência é indissociável dadisponibilidade do voluntário dar o melhor desi, transcender-se na sua ação, transformadanuma experiência em que se dá a si próprio.Nesta relação, está presente como pessoa e,com a sua <strong>dádiva</strong>, permite que o outro tambémse reconheça como pessoa e se sinta valorizadona riqueza da sua singularidade. Este “dar-se”manifesta a dimensão simbólica da <strong>dádiva</strong>, poisProcurando concretizar o valor da solidariedadenos nossos dias, a ação voluntária deve ajudara criar as condições que permitam que aoutra pessoa seja sujeito de si, construa o seuprojeto de vida e se integre ativamente nacomunidade onde vive. O desenvolvimento decondições sociais de vida digna e a educaçãodesempenham um papel determinante naconcretização destes objetivos. Na verdade, a<strong>missão</strong> fundamental da educação consiste emajudar cada pessoa a conhecer-se, a conhecer ooutro e a “transformar a interdependência real”entre as pessoas em “solidariedade desejada”(UNESCO, 1996: 41), isto é, em capacidadede estabelecer vínculos e viver juntos. Ofundamental na acção educativa é a realizaçãoda progressiva autonomia das pessoas, numa


elação interpessoal marcada pelo diálogo,a participação e a corresponsabilização. Sóassim é possível “fazer com que cada indivíduosaiba conduzir o seu destino” e estabelecer o“exercício [de uma] cidadania ativa” (UNESCO,1996: 90). Deste modo, na intervençãovoluntária, é dada uma especial relevânciaaos projetos de caráter educativo e social,como ilustram os dados referentes às áreas deatuação/ação das instituições que participaramneste estudo.Motivações do voluntariadomissionário e especificidade cristãO estudo realizado pela ESEPF, visandocompreender as motivações que conduzem àprática do voluntariado missionário, evidenciousecomo uma tarefa complexa porque, desdelogo, essas motivações não são estáticas, antesse transformam na própria experiência devoluntariado, ou melhor, na relação de <strong>dádiva</strong>estabelecida (cf. Histórias de Vida).Considerando as características dos voluntáriosinquiridos, nomeadamente o facto de a maioria(cerca de 70%) ter já experiência de voluntariadomissionário, é expectável que, nas suasrespostas, esteja incorporada a reconstruçãodas próprias motivações, concretamente, atransformação de motivações mais centradasem si mesmo, como a vontade de viajar econhecer outros países e culturas, a procurade novas experiências. Estas motivações estãopresentes sobretudo na primeira experiênciade voluntariado, evoluindo depois paramotivações mais altruístas, resultantes darelação com o outro e da sua interpelação, maispresentes nos voluntários que repetem estaexperiência (cf. Histórias de Vida).Deste modo, os dados do inquérito porquestionário, realizado a 137 voluntáriosmissionários, permitem observar uma motivaçãopara a prática do voluntariado heterorreferenciada,isto é, verifica-se um movimento que, partindo deforma consciente e livre do voluntário missionário- 91.9% dos inquiridos consideram ser esta açãouma causa importante para si mesmos; 79.5%referem que dar e retribuir é tão importante comoreceber; 51.8% implicaram-se neste voluntariadode forma espontânea -, dirigem-se ao outro,enquanto outro. Assim, 94.2% dos inquiridosconsideram ser voluntários missionários porqueacreditam que, desta forma, estão a dar atenção anecessidades concretas de uma comunidade depessoas; 96.4% referem que é importante ajudaros outros; 74.4% sentem-se responsáveis pelooutro, seja ele quem for.Este movimento de descentração de si parece,de algum modo, confirmado quando seanalisam, por exemplo, os dados relativos àdimensão “Desenvolvimento de carreira” queapontam para uma não instrumentalizaçãodo outro e para uma perspetiva não utilitaristada ação voluntária. E, se é certo que a práticade voluntariado missionário pode enriquecero curriculum vitae do voluntário, também nãodeixa de ser verdade que ela pode constituirum obstáculo à integração e progressãoprofissional do voluntário quando este regressaao seu país de origem (cf. Histórias de Vida).Para 91.3% dos entrevistados, servoluntário missionário é muito gratificantee recompensador, razão pela qual muitosrepetem uma ou mais vezes a experiência.Os inquiridos reconhecem que da suaação resulta um reconhecimento: 68.6%dos respondentes afirmam experimentar a21


necessidades e 71.5% não concordam que avivência da fé tenha pouca influência na suaprática de voluntariado missionário.Para o voluntário cristão, a vivência da fémotiva e estimula a sua ação e constitui umaluz orientadora: Jesus Cristo é a expressãomáxima e paradigmática da forma como deveser estabelecida e vivida a relação de <strong>dádiva</strong>.Por isso, a experiência cristã constitui umagramática de <strong>dádiva</strong> que precede e conferesentido à ação do voluntário missionário. “Avivência espiritual cristã, marcada pela culturada gratuidade, cria uma disponibilidadeinterior para os outros, até à radicalidade daentrega, para servir as necessidades reaisdas pessoas (…). Quem é coerente com a fécristã transforma a vida e adota gestos defraternidade, busca o conhecimento dassituações a socorrer e sonha vias criativas desolução para os problemas.” (CEP, 2011: n.º 2).Na ótica cristã, o encontro com o outro é lugar deexperiência religiosa (Mt 10,40; 25,35), pelo que seestabelece uma leitura transcendente da relaçãoe se afirma que a razão primeira que motiva econfere qualidade a essa relação é o amor. Naverdade, o sentido cristão da <strong>dádiva</strong> funda-seno “excesso de dom”, excesso do amor de Deuspelo ser humano, que convida a uma resposta,concretizada em gestos de amor, de cada pessoaao outro e a Deus. Sendo a motivação religiosamuito importante, não é de estranhar que 92.7%dos inquiridos refiram que a sua ação voluntáriaprocura concretizar o amor pelos outros.A forma como o cristão deverá estabelecer arelação de <strong>dádiva</strong> implica a compreensão darealidade do amor. O Novo Testamento utilizao termo ágape para definir o amor. Ágapeé um amor exigente e livre, espontâneo egratuito, um amor singular e universal, capaz23


de amar os inimigos (Mt 5,43-44). Ágape é aaceitação do outro, de qualquer outro, talcomo ele é. A prática do ágape relaciona-seassim com o desapego, a descentração desi e o despojamento. Atitudes que, porém,não significam uma negação ou dissoluçãoda identidade de quem assim ama, antesa negação da tendência de referir-se a simesmo como fim. Ágape significa renunciarà plenitude do ego e ao poder, apresenta-secomo o oposto do egoísmo e da violência(Comte-Sponville, 1995).O amor ágape é relacional e, por isso, “ohomem não pode viver exclusivamenteno amor oblativo (…). Não pode limitar-sesempre a dar, deve também receber. Quemquer dar amor, deve ele mesmo recebê-loem <strong>dádiva</strong>.” (Bento XVI, 2006: n.º 7). Umaprática de relação de <strong>dádiva</strong> marcada peloamor ágape liberta a ação humana da esferado egoísmo, do narcisismo e hedonismo eexpressa a capacidade de autotranscendênciado ser humano. Contudo, vencer o egoísmo eestabelecer uma relação sob o signo da ágapenão é fácil. Além disso, no caso específico daação voluntária, é necessário considerar que24ela realiza-se, não poucas vezes, em situaçõesde grandes dificuldades e adversidades.Em tudo isto, porém, o voluntário cristão,refletindo sobre a mensagem de Jesus Cristo,inspirando-se no testemunho da Sua vida,sente-se reconfortado, protegido, garantido econfirmado neste caminho que quer percorrer.A vivência da fé apoia-o na superação desi mesmo, motiva-o para a ação e leva-o aacreditar na força da mesma.A ação voluntária poderá então transformar-senuma relação de <strong>dádiva</strong>, na perspetiva cristã,com as seguintes características: a) constituiresposta a uma necessidade concreta: osfamintos devem ser saciados, os nus vestidos,os doentes tratados, os presos visitados (cf. Mt25,35-36; Lc 10,30.33-35); b) é expressão doamor de que todo o homem tem necessidade;c) é um testemunho de Jesus Cristo; d) é umaação pela qual o cristão não dá apenas qualquercoisa a alguém, mas dá-se a si mesmo, o queimplica que está presente na <strong>dádiva</strong> comopessoa (cf. Bento XVI, 2006, nns. 31, 34-35).Resulta desta ação voluntária a concretizaçãode uma forma de solidariedade que, à luz dafé cristã, tende “(…) a superar-se a si mesma,a revestir-se das dimensões especificamentecristãs da gratuidade total, do perdão e dareconciliação” (João Paulo II, 1987: n.º 40) econstitui uma pedagogia para descobrir nooutro alguém convidado para o banquete davida: “a solidariedade ajuda-nos a ver o ‘outro’- pessoa, povo ou nação - como um nosso‘semelhante’ (Gn 2,18.20), que se há-de tornarparticipante, como nós, no banquete da vida,para o qual todos os homens são igualmenteconvidados por Deus.” (ibidem, n.º 39).Impacto da acção voluntária na vidado voluntário missionárioA gratuitidade e a liberdade estruturama <strong>dádiva</strong> e enquadram uma relação que,distanciando-se de uma lógica autocentrada(individualista, utilitarista), abre espaçoà possibilidade de autotranscendênciada pessoa e ao desenvolvimento de umdinamismo de superação e transformação dapessoa e das relações sociais. Neste processo,o estabelecimento da relação com o outroé, como já foi sublinhado, determinante. Porisso, o impacto da ação do voluntário, isto é,


a efetiva concretização dos objetivos que sepropõe realizar com os seus destinatários, bemcomo o impacto da sua ação sobre si próprioestão dependentes da qualidade da relação de<strong>dádiva</strong> que se estabelece.Por outro lado, a relação de <strong>dádiva</strong> enquantorelação social é dinâmica e em permanenteconstrução, o que permite compreender quese aprende a viver numa lógica de <strong>dádiva</strong>,na própria relação. A vivência progressivada relação de <strong>dádiva</strong> e o seu permanenteaprofundamento, resultante da transformaçãodas motivações, deverá determinar umimpacto também ele progressivo e positivoentre os parceiros da relação e nas respetivascomunidades de acolhimento. Impacto quenão significa apenas maior eficácia (maiorcorrespondência entre objetivos e resultadosalcançados), mas também maior efetividade(maior correspondência entre os resultadosalcançados e as necessidades pessoais e sociaisexistentes).O aprofundamento da <strong>dádiva</strong> e a crescenteriqueza do que circula nos momentos dodar, receber e retribuir são, de alguma forma,intrínsecos à própria dinâmica relacional que seestabelece e confirmam a presença do “excessode dom” na relação. Assim, por exemplo, ovoluntário experimenta que aprende mais,dando-se. E, quanto mais se dá, mais seenriquece a si e ao outro e, por isso, ambosaprendem mais. Na riqueza do encontro como outro, sujeito como eu, ocorre a novidade,a surpresa, o enriquecimento mútuo. O“excesso de dom” alimenta a relação e fá-lapercorrer patamares de maior crescimento eprofundidade, constituindo um movimentoem espiral em que aquela se alimenta e motivaa si mesma.Os dados obtidos nos inquéritos porquestionário confirmam este tipo dereciprocidade assimétrica, característica darelação de <strong>dádiva</strong>: 95.6% dos voluntários referemque dão, mas também que recebem dos outrose, mais especificamente, 79.6% consideram querecebem mais do que dão. A constatação de quese recebe mais do que se dá confirma a dinâmicada <strong>dádiva</strong> e do “excesso de dom”.A retribuição é um momento da relação de<strong>dádiva</strong>, porque elemento constitutivo darelação entre sujeitos. De facto, a relaçãocom o outro permite-nos entrar em contactocom a riqueza interior que cada pessoa é,tornando esse encontro numa oportunidadede aprendizagem e enriquecimento mútuo.Mas, também aqui é possível inferir umatransformação no tipo de retribuição que sebusca. Quando se aprofunda a relação de<strong>dádiva</strong>, compreende-se que a retribuiçãoencontra-se, em última instância, na própriarelação que o eu estabelece com o outro, nariqueza e aprendizagem que nela se estabelecee no crescimento e transformação pessoal quecada um dos sujeitos da relação experimentam.Ou seja, a retribuição constitui a efetiva e justapresença do outro em mim, a realização ealegria por sentir que se pertence cada vez maisà vida do outro, por se sentir participante natransformação da vida do outro, na construçãodo seu projeto de vida.25


4IR E VOLTAR: HISTÓRIAS DE VIDA DOS VOLUNTÁRIOSMISSIONÁRIOS - RELAÇÃO DE DÁDIVA“(…) penso que a diferença é, sobretudo, nãotanto a nível profundo de valor, quando ovoluntariado é bem exercido, mas mais a nívelde pertença e de organização… o voluntariadomissionário insere-se muito mais num contextode valor que tem a ver com o ser cristão... émotivado... por este contexto, destes valoresjá predefinidos, ou seja, vamos enviados emnome de Cristo…” (Entrevistado M 2)A história de vida “quer-se monólogo” (Poirer et.Al, 199: 85), procurando restituir a veracidadee a genuidade dos factos e da relação vividae experienciada. As Histórias de Vida foramelaboradas com base na unicidade dotestemunho, sem verificação.Sem pretensão de representatividade, foramouvidos dois elementos do género feminino edois elementos do género masculino num totalde quatro Histórias de Vida. Estas procuraramrecolher informação e reconstruir umaexperiência de vida individual, assim comoapreender um certo estado de espírito emsituação de ação voluntária missionária. Sãohistórias de vida centradas, por conseguinte,na experiência da ação social voluntáriamissionária. A técnica que permitiu a recolhade informação foi a entrevista semidiretiva. Ainformação recolhida foi comentada e, de certaforma, interpretada à luz da noção de <strong>dádiva</strong>,numa perspetiva sociológica.Assim, são apresentados de forma sumáriaretratos da vida do voluntário missionário, nãotendo constituído um critério metodológicoa reconstrução integral das histórias de vida.A análise efetuada teve como fio condutor aprocura de respostas face às seguintes questões:Quem são os voluntários missionários? Quaisas principais motivações que os levam apartir em <strong>missão</strong>? Como se processa a suaseleção, recrutamento e formação/preparaçãopara a <strong>missão</strong> voluntária? Qual a mais-valiadesta experiência na sua vida? E na vida dascomunidades de acolhimento? Como regressamos voluntários missionários ao seu país deorigem, que diferenças sentem na sua vida?As Histórias de Vida recolhidas não esgotama complexidade da realidade social analisada.Constituem uma visão parcial da mesma. Opresente trabalho de investigação constitui umaprimeira aproximação a uma realidade socialdesconhecida do ponto de vista académicoe científico. É um estudo que reúne e tornavisível um conjunto de informação relevantesobre o perfil do voluntário missionário, asprincipais motivações que levam os voluntáriosmissionários a partir em situação de <strong>missão</strong>,o contexto organizacional que se encontrasubjacente à mobilização do voluntariadomissionário, o impacto da experiência daprática do voluntariado missionário na vidados voluntários missionários, assim como navida das comunidades por onde passaram27


“… a disponibilidade e a capacidadede entrega e de serviço… E eupenso, que uma das característicasmais importantes no voluntariadomissionário é esta dimensão dedisponibilidade e simplicidade,de haver uma capacidade de nostranscender no sacrifício que nósfazemos, às vezes… que custa umpouco ultrapassar essas dificuldadesiniciais para depois, do outro lado,digo eu, descobrirmos que ganhamosmuito mais por ter tido este tipo desacrifício e tornamo-nos pessoasmuito diferentes, por nos termosdisposto… tornar disponíveis e afazer este tipo de sacrifício, este tipode trabalho.” (Ent. M 2)e onde se encontram atualmente. Tal comojá apresentado nas páginas anteriores, oestabelecimento de um perfil do voluntáriomissionário constitui um elementofundamental para as organizações promotoras28de voluntariado com esta especificidade. Operfil permite identificar e definir os requisitosessenciais, de natureza pessoal, de naturezaprofissional e de natureza social, para a práticada ação voluntária missionária.A análise das Histórias de Vida possibilitou averificação de determinadas competênciasnecessárias a mobilizar para a prática da açãovoluntária missionária. A flexibilidade notrabalho e a capacidade de, de modo imediato,fazer face ao imprevisto, constituiem duasdimensões quase transversais aos discursos.Outras competências são de destacar como,por exemplo, a capacidade de adaptação asituações novas e a condições adversas; atolerância e a compreensão face ao outro; acapacidade de relação com o outro, que, desdelogo, é culturalmente diferente.“Uma das grandes competências acho queé o desafio de querer aprender… Outracompetência acho que tem muito a ver comexplorar e o adquirir potencialidades que nuncaimaginou e… O descentrar-se, estar abertoao que está a acontecer e às necessidade,também, dos outros e discutir... A tolerância…também… e a compreensão são característicase competências que se vão desenvolvendo…(Ent. F.1)A noção de compromisso forte e segurona promoção da vida e da autonomia dooutro surge, nos discursos analisados, comouma preocupação constante por parte dosvoluntários missionários. Este compromissocom a situação do outro leva, muitas vezes,a que o voluntário missionário se superea si próprio. A noção de <strong>dádiva</strong> emerge econstrói-se na relação com o outro, aciona adoação e não espera, necessariamente, umaretribuição. Esta, a acontecer, prende-se com aautonomização do outro, na construção do seuprojeto de vida e permanece em memória navida do voluntário missionário:“… a disponibilidade e a capacidade deentrega e de serviço… E eu penso, que umadas características mais importantes novoluntariado missionário é esta dimensão dedisponibilidade e simplicidade, de haver umacapacidade de nos transcender no sacrifício quenós fazemos, às vezes… que custa um poucoultrapassar essas dificuldades iniciais para


depois, do outro lado, digo eu, descobrirmosque ganhamos muito mais por ter tido estetipo de sacrifício e tornamo-nos pessoas muitodiferentes, por nos termos disposto… tornardisponíveis e a fazer este tipo de sacrifício, estetipo de trabalho.” (Ent. M 2)Os voluntários missionários são pessoasfortemente motivadas para a ajuda ao outro.Esta motivação é, na maior parte dos casos,influenciada pela socialização familiar dovoluntário missionário e pela sua vivência na fécristã. “… vivência na fé de Cristo que faz quenós, com que a minha experiência missionáriaseja… é uma grande motivação para a minhaexperiência, para o voluntariado, eu sei quevou muito mais do que dizer a todos que têmque seguir Cristo, vou dar o meu testemunhode cristã e vou partir do princípio que issovai modificar… e, além disso, também, aconfiança em Deus, isso é uma das mais-valiasde optar pelo voluntariado missionário comocristão é isso, acreditar que, de facto, estamosprotegidos por Deus.” (Ent. F.2)Relativamente às principais motivações, queestão na origem da prática do voluntariadomissionário, apurámos um conjuntosignificativo que passamos sumariamente adescrever.A motivação para a aprendizagem edesenvolvimento pessoal e social. Na verdade,o facto de se querer viajar e conhecer novasrealidades é apontado como uma situaçãorecorrente por parte dos entrevistados. Amotivação para a pertença social constitui umadimensão que apresenta, igualmente, relativaregularidade nos discursos.O desejo de conhecer outros povos e outrasculturas. A possibilidade de contactar comnovas situações sociais faz dos voluntáriosmissionários agentes sociais que procuramum sentimento de pertença face a umacomunidade, face a uma organização ou facea uma causa. A análise, à luz dos depoimentosrecolhidos, sobre o contexto organizacionalque envolve o processo de promoção dovoluntariado missionário permitiu situar, emtermos de teoria e análise organizacional,as organizações em questão comofundamentalmente cognitivas e humanas. Sãofortemente marcadas pela espontaneidade“As motivações intrínsecas, elas sãovárias e foram mudando. Antes de ira primeira vez para fora, o desejo eramuito de conhecer e de perceber e deabrir horizontes. Também de todas asmotivações menos corretas, que todaa gente tem, e que é normal tê-las, oquerer conhecer, o querer viajar, o tera aventura também. Todas essas másmotivações, eu tive-as; também tiveas boas. Depois, com a experiência,quanto mais fui conhecendo, nãosítios, mas pessoas, fui percebendoa vida deles e percebendo tambéma minha, a nossa e fui percebendoque quando se vê nas notícias que háuma pobreza extrema, muita gente amorrer à fome, aquilo não é noutroplaneta, que é no nosso, que está aacontecer neste momento e é paraaquele lado, para o lado Sul, a quatrohoras de avião daqui, por isso não éuma coisa irreal. E comecei, também,a ter este olhar mais global para avida (…)”(Ent.M.1)29


“Uma das atitudes do voluntário,e para se trabalhar cada vez maisa informação, é esta capacidadede escuta, escuta ativa, não é só deouvir o que o outro está a dizer, é deperceber o meio onde está. O leigo,antes de partir, e cada vez mais naformação, tem esta etapa que nóschamamos de formação específicade projeto, que é perceber mais oprojeto que vai ser desenvolvido, massobretudo ter uma lógica de projeto,ou seja, mesmo que não seja esta asua área de formação académica, teruma lógica de projeto.” (Ent. F.1)e pela informalidade dos processos eprocedimentos, por exemplo, ao nível daseleção, do recrutamento e da formação dospotenciais voluntários missionários. Verificase,face a este nível de análise, a necessidadede se proceder a uma maior racionalização daspráticas organizacionais de gestão de recursoshumanos e formação. “No caso da J. D., aí tratasede um grupo mais pequeno, mais informal,30mas no qual a essência, … está lá e tem a vercom a… espiritualidade doroteia, portanto a P.F. (…) … há um recrutamento livre, as pessoaspor contacto vão saber do local, há umaformação com algumas temáticas, preparada,sobretudo, pelas Irmãs e alguns jovens que jáparticiparam em formações anteriores (…)”(Ent. M. 2)No que concerne à correspondência entrecompetências adquiridas pelos voluntáriosmissionários e necessidades de competênciasde trabalho detetadas no terreno, foi apurado,junto dos entrevistados, que, por vezes,não se verifica a correspondência desejávelentre as referidas competências, embora talnecessidade nem sempre seja imediatamentepercetível pelos voluntários “… é importanteno voluntariado missionário, penso eu, é adisponibilidade para dar… e não tanto umaformação muito específica…” (Ent. M. 2)Salienta-se que, relativamente à informaçãorecolhida e analisada, as opiniões dosentrevistados são díspares. Não se verificaa existência de uma posição consensual,por parte dos entrevistados, por exemplo,em relação à adequação das competênciaspreviamente adquiridas, pelos mesmos, face àsnecessidades detetadas no terreno.Toda a ação voluntária missionária se encontramarcada pela espontaneidade e informalidadedos diversos procedimentos. Seria pertinente,face a esta situação, integrar, no planode formação, que antecede a partida dosvoluntários missionários, o reforço de algunsaspetos da metodologia do trabalho/ciclo deprojeto, assim como alguns princípios básicosdo desenvolvimento local, nomeadamenteno que concerne à apreensão do territórioe à aprendizagem da relação com o outroque, naturalmente, se encontra tocada porum certo etnocentrismo social ou de classe.“Na minha primeira experiência, eu ia compouquíssima informação, porque fomos paraum sítio novo, onde nunca tinha lá estadoantes, portanto, a nossa preparação, eu diriaque, foi muito, muito longe daquilo que lá eranecessário (…)” (Ent. M. 2)O apuramento e a sistematização dainformação possibilitou ainda que se detetasseque, frequentemente, o voluntário missionário,


quando parte em <strong>missão</strong>, não se encontramunido de um diagnóstico de situação sólido erigoroso acerca da realidade que vai encontrar.Neste sentido, seria, igualmente pertinente quese elaborassem diagnósticos de situação maisprecisos sobre a realidade das comunidades deacolhimento.No âmbito da metodologia do trabalho/ciclode projeto, é oportuno ainda chamar a atençãopara uma outra necessidade apontada pelosentrevistados, ou seja, seria importante avaliarmetodologicamente o progresso dos projetosem curso nas comunidades de acolhimento, nosentido de estabelecer um guião de trabalho maisrigoroso e assegurar uma melhor continuidadede trabalho, em termos de ação voluntáriamissionária, nos mesmos. A ação voluntáriamissionária constitui uma das expressões dotrabalho social e, como tal, implica uma maiorracionalização na passagem de testemunhoentre os voluntários missionários, de modo aque se proceda à otimização dos resultados.O “Ir e Voltar” de uma experiência devoluntariado missionário assume-se como umaexperiência de vida fortemente marcante paraos entrevistados. A prática do voluntariadomissionário constitui um contexto privilegiadode aprendizagem e desenvolvimento dapessoa do próprio voluntário missionário. Osentrevistados experienciaram essa vivênciaregressando com outra postura perante a vida.Sentem-se pessoas diferentes, mais completasnas emoções e nos afetos, e mais resilientes:“Muito importante. Ganhei muito disto daresiliência de não desistir. Lembro-me depessoas com quem vivi e partilhei os meusdias e… elas precisam do nosso trabalho. Nãonos podemos dar ao luxo de desistir. Temos decontinuar.” (Ent. M.1)Aprenderam que também podem correr orisco de fragilizar os próprios princípios éticos,devido à conflitualidade nas adversidadesexperienciadas. “Em termos de ética, nacondição de irmos trabalhar para um paíscomo este e que está cheio de corrupção, etudo, acho que nos tornamos menos éticos...Evitámos que aquilo fosse estragar a própria…nossa convicção, se a gente acredita que osuborno está a estragar uma sociedade nãousamos, só em casos extremos…” (Ent. F.2).Os voluntários missionários, deslocandoseem <strong>missão</strong> para junto de comunidadeslongínquas, com lógicas de organizaçãosocial diferentes das sociedades europeias,podem experienciar situações de maiorexposição cultural e vulnerabilidade pessoal.Por vezes, poderão ocorrer situações em queos voluntários missionários, necessitando dedeterminados serviços, como por exemplo, umserviço de saúde, deverão estar aptos a não sefazerem valer do seu estatuto social, no seiodas comunidades de acolhimento, de modo aobtê-lo mais facilmente.Mobilizaram e desenvolveram a noção de<strong>dádiva</strong> com o outro. Não esperam retribuição,e perceberam que se ganharam, por umlado, também perderam um pouco por cá,muito concretamente ao nível do mercadode trabalho. “Eu estaria contratada no Estado,se calhar já estaria no quadro atualmente,mas neste momento estou com contrato equando não colocam, neste momento cá…não colocaram. Portanto, realmente, o granderisco de se fazer voluntariado missionário,é a precariedade que quem vai perde asoportunidades de quem cá está, e quecontinua a tê-las.” (Ent. F.2)31


“Sou voluntária 24 horas por dia,está tudo dito”. Por muito que eutenha dificuldades no trabalho, pormuito que eu tenha dificuldades nosprojectos é o meu compromisso, cabemea mim arranjar estratégias, pedircolaboração da minha comunidade,pedir colaboração de outras pessoasno terreno, pedir colaboração aosecretariado executivo, para tentarultrapassar….” (Ent. F.1)Assim, se por um lado, quem faz voluntariadomissionário ganha na relação da <strong>dádiva</strong>, poroutro lado, pode perder, em situação real,oportunidades de emprego e de estabilidadeno mesmo. “Até agora nada. Bem pelocontrário. Rouba-me o tempo, sobretudo. Equando me empenho nisto, não me empenhono trabalho. Não é que não cumpra as coisasque tenho que cumprir, mas talvez as arrastomais. Agora consegui também como professoraqui canalizar e aproveitar coisas boas quetenho aqui e aplicá-las lá fora. Mas acho que seeu não fizesse voluntariado poderia estar maisdesenvolvido em termos profissionais, mas nãohá arrependimentos.” (Ent. M.1)O facto de estarem ausentes do país levoua que abraçassem outras preocupações, asdas comunidades locais de acolhimento eque deixassem para trás as suas própriaspreocupações. Esta constitui também umaconcretização da noção de <strong>dádiva</strong>. A relaçãoda <strong>dádiva</strong> é uma história a construir no tempo,onde impera a entrega, livre e gratuita, de ajudaao outro, sem retribuição direta. Constrói-seem conjunto. Espera-se um desenvolvimentodas comunidades e das populações locais,com autonomia, em ordem a um mundo maisequilibrado e coeso.Regressam com uma noção de compromissoque marca a postura perante a vida.


5PROJETO “ONDJOYETU”, ANGOLA: EXEMPLO DE PROJETODE VOLUNTARIADO COM IMPACTO NO TERRENOO Gungo, em Angola, é uma comuna com2.200 km2 que conta com cerca de 25.000habitantes. É uma região montanhosa quefoi muito afetada pela guerra. A populaçãotenta aos poucos regressar à normalidade dasua vida, o isolamento e a falta de recursos(humanos e financeiros) cria dificuldades/obstáculos em ordem à resolução dos seusproblemas básicos. Nesta comuna não háenergia elétrica, comunicações, água potável,assistência médica e medicamentosa; aescolaridade é muito reduzida e não chegaa todas as aldeias. Os grupos missionários,que têm estado presentes em Angola, desde2003, desenvolveram a sua ação junto destacomunidade. Ao longo das seis ediçõesdeslocaram-se a Angola 25 pessoas em <strong>missão</strong>de voluntariado.Fruto da geminação celebrada entre asDioceses de Leiria-Fátima e de Diocese doSumbe, Angola, várias pessoas têm colaboradoneste projeto por períodos que têm osciladoentre dois meses e dois anos. Os voluntáriosmissionários têm-se substituído uns aos outros,permitindo assim dar continuidade ao projeto.Tendo como base o Sumbe, a equipa que estáno terreno desloca-se ao Gungo por períodosde uma a quatro semanas, rodando pelasdiversas zonas pastorais e atingindo assim,rotativamente, pessoas diferentes. O trabalhoé desenvolvido, dependendo também dosvoluntários presentes no terreno que actuamem áreas tão diversas como: alfabetização,educação, micro-projetos de desenvolvimento,culinária, economia doméstica, animaçãojuvenil, mecânica, reorganização e estruturaçãodas comunidades e áreas da pastoral como aassistência espiritual. Uma das iniciativas maisemblemáticas é o “Projeto Grão a Grão”, quetem como objetivo dinamizar uma moagempara a comunidade do Gungo. Este objetivojá foi parcialmente concretizado e, em breve,começará a funcionar uma moagem demartelos no Gungo. Depois destes períodosjunto das comunidades rurais mais isoladas,a equipa regressa ao Sumbe para descansar,comunicar com a família e amigos, enviarnotícias, abastecer a dispensa e preparar onovo trabalho. As vias de acesso ao Gungo sãoem terra batida e algumas encontram-se empéssimo estado, sendo que a certas localidadessó é possível aceder a pé.Em 2011, a equipa permanente que está emAngola é constituída por um padre e cincoleigos. As competências profissionais dosvoluntários atuais são variadas integrandoa fisioterapia, engenharia, educação e acarpintaria. Existe também diversidade noque diz repeito às faixas etárias, integrando ogrupo tanto recém-licenciados, como pessoasaposentadas.33


CONCLUSÕESA análise dos dados recolhidos permitemapresentar as seguintes conclusões 1 8.Assim, no que diz respeito aos voluntários:• A Rede de <strong>Voluntariado</strong> Missionário,coordenada pela FEC, é constituída porum conjunto cada vez mais numerosode pessoas qualificadas, disponíveis emotivadas para intervenções em locaisexigentes do ponto de vista humano,social e técnico.• As motivações fundamentais que levam osvoluntários a partir são maioritariamentede natureza heterorreferenciada, portantodescentradas do voluntário e centradas nooutro.8Algumas das conclusões apresentadas são aindaprovisórias, podem vir a ser complementadas com aedição do estudo completo/integral.• A maioria dos voluntários tem motivaçõescristãs para a sua atuação, encontrandono “excesso de dom” de Jesus Cristo o seuparadigma de relação/atuação.• Quando, no terreno, estes voluntáriosmanifestam abertura à novidade e àaprendizagem, são motivados por razõesaltruístas na sua ação e estabelecemrelações de <strong>dádiva</strong>, como característicapreferencial na construção do vínculosocial com os outros, a quem se sentemenviados.• Fruto da relação de <strong>dádiva</strong> estabelecida noterreno, os voluntários sentem-se pessoasdiferentes e mais resilientes após o regresso,aprendendo a enfrentar as dificuldades,a ter mais confiança e a superarem-se a sipróprios. A ação voluntária evidencia-se,assim, como um fator de desenvolvimentode múltiplas competências do voluntário.No que diz respeito às instituições queenviam voluntários:• A julgar pelo fluxo exponencial do númerode voluntários enviados nos últimos anos,as instituições projetam uma grandeatratividade junto destes voluntários, que asidentificam como mediadoras privilegiadaspara uma experiência missionária a realizarno estrangeiro. A sua credibilidade ésublinhada pela forma espontânea comouma boa parte dos voluntários chega aestas instituições (pela motivação intrínsecaque lhes habita ou por influência familiarou de amigos), mas também fruto de umapastoral já razoavelmente organizada.• As instituições evidenciam grandecapacidade e credibilidade na captaçãodos recursos necessários à prossecuçãodos seus objetivos, como as doações eangariação de fundos testemunham.35


• O estudo confirma que existem áreas deatuação relativamente solidificadas noterreno, tendo vindo a ganhar relevo nosúltimos cinco anos três áreas prioritárias: odesenvolvimento comunitário; a educação,alfabetização, formação e o apoio à saúde.• Do ponto de vista da sustentabilidadedos projetos em curso no terreno deintervenção dos voluntários, os resultadosdos inquéritos confirmam que é graças àexistência das organizações nos locais deintervenção que a ação de voluntariadose prolonga e se efetiva, permanecendoo impacto real da ação do voluntário noperíodo da sua estadia, ainda por apurarem toda a sua extensão.36


RECOMENDAÇÕESCom o objetivo de melhorar as práticas nesteâmbito são apresentadas recomendações, queras organizações de envio de voluntários, querà FEC enquanto organização coordenadora daRede de <strong>Voluntariado</strong> Missionário.Assim, quanto às organizações:Constatou-se no estudo que, quando instadasa identificar o impacto da ação dos voluntáriosalavancado no terreno com resultados de curto(até 1 ano), médio (até 3 anos) e longo (mais de 3anos) prazo, 2/3 das instituições não conseguiramidentificar, quantificar ou descrever tais resultados.• Recomenda-se que as instituições estabeleçamobjetivos claros e indicadores de concretizaçãotransparentes (nas diversas dimensõespessoais e sociais, da intervenção…) para quepossa haver uma avaliação dos resultadosque introduza a consciência de realização esatisfação em todas as partes;• Recomenda-se que as organizaçõessaibam recolher e valorizar a experiênciaadquirida pelos voluntários no terreno e ausem para o seu próprio desenvolvimentoe na comunicação interna e externa.O estudo demonstrou que os voluntários sãopessoas qualificadas e motivadas, mas que nemsempre a formação preparatória que antecedeo envio vai ao encontro das necessidadesdo terreno de intervenção, o que pode tercomo consequência que as competênciastécnicas dos voluntários não sejam cabalmenteaproveitadas nos projetos no terreno.• Recomenda-se que o voluntáriomissionário, quando parte em <strong>missão</strong>,se encontra munido de um diagnósticode situação sólido e rigoroso acerca darealidade que vai encontrar. Para quetal seja possível, as instituições poderãoadotar a metodologia do trabalho/ciclode projeto como instrumento de trabalhoprivilegiado, avaliando ainda metodológicae objetivamente o progresso das ações emcurso nas comunidades de acolhimento.Quanto à FEC:As Histórias de Vida recolhidas, o contactoestabelecido com algumas organizaçõese a informação recolhida pelos inquéritosdeixam transparecer que as organizaçõesvivem o processo de envio dos voluntários(recrutamento, formação, ação no terreno eregresso) de uma forma bastante implicada,mas ainda bastante espontânea e intuitiva,frequentemente centrada na liderança de umapessoa singular da organização promotora.• Recomenda-se que a FEC, entidadeque coordena, em Portugal, a Redede <strong>Voluntariado</strong> Missionário, possadisponibilizar formação às lideranças das37


organizações que permita trabalhar umduplo objetivo: por um lado, ajudar aintroduzir princípios mais racionalizadorese criteriosos nos procedimentos a adotarnestas organizações, no que ao processode recrutamento, seleção e envio dosvoluntários diz respeito; por outrolado, e salvaguardando a indispensáveloriginalidade de cada organização, poderáser do interesse das próprias organizaçõeselaborar e consensualizar um perfil mínimode voluntário missionário a trabalhar comos candidatos, salientando as característicase as competências fundamentais a adquirirantes da sua partida em <strong>missão</strong>.O estudo agora realizado adotou o conceitode <strong>dádiva</strong> como ótica preferencial paraanalisar a relação interventiva estabelecidapelo voluntário na sua atuação no terreno,recolhendo resultados quanto ao impactoque a sua ação obteve junto de si mesmo(motivações e transformações ocorridas apóso regresso). No entanto, a relação de <strong>dádiva</strong>compreende dois pólos: o “eu” e o “outro”.• Recomenda-se a realização de um estudoque identifique os “ganhos” efetivos obtidospela intervenção do voluntário no terrenodurante a sua estadia; i. é., que avalie oimpacto a curto, médio e longo prazo da suaação, quer do ponto de vista do visível, querdo ponto de vista mais simbólico, de formaimediata ou diferida no tempo (lembre-se apropósito que a relação de <strong>dádiva</strong> constitui,antes de mais, uma mediação simbólica).38


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS• Bento XVI. (2006). Carta Encíclica Deus Caritas Est. Deus é Amor. Braga: Editorial Apostolado da Oração.• Caillé, A. (2002a). Antropologia da <strong>dádiva</strong>. Petrópolis: Editora Vozes.• __ (2002b). Dádiva e Associação. In Paulo Henrique Martins (Org.), “A Dádiva entre os Modernos, discussão sobre os fundamentos e as regras dosocial” (pp. 191-205). Petrópolis: Editora Vozes.• Comte-Sponville, A. (1995). Pequeno Tratado das Grandes Virtudes. Lisboa: Editorial Presença.• Conferência Episcopal Portuguesa. (2011). Nota Pastoral: <strong>Voluntariado</strong> e nova Consciência Social [Em linha]. Disponível em: http://www.agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=84319. [Consultado em fevereiro 2011].• Domingo Moratalla, A. (1997). Solidariedade. In AAVV. Diccionario de Pensamiento Contemporáneo (pp.1116-1122). Madrid: San Pablo.• Godbout, J. (1992). O Espírito da Dádiva. Lisboa: Instituto Piaget.• João Paulo II. (1987). Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis [Em linha]. Disponível em: http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30121987_sollicitudo-rei-socialis_po.html. [Consultado em fevereiro 2008].• UNESCO (1996). A educação: um tesouro a descobrir. Porto: Edições ASA.39


Uma das características mais importantes no voluntariado missionário é esta dimensão dedisponibilidade e simplicidade, de haver uma capacidade de nos transcender no sacrifício que fazemos.Tornamo-nos pessoas muito diferentes, por nos termos disposto.Ganhei muito disto da resiliência de não desistir. Lembro-me de pessoas com quem vivie partilhei os meus dias e… elas precisam do nosso trabalho. Não nos podemos dar ao luxo de desistir.Temos de continuar.Realizado por:Com o apoio de:FEC

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