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A LEITURA-ESCRITURA CRÍTICA DE CLARICE LISPECTOR

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REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.A <strong>ESCRITURA</strong>-<strong>LEITURA</strong> CRÍTICA <strong>DE</strong> <strong>CLARICE</strong> <strong>LISPECTOR</strong>Rodrigo da Costa Araujo 1RESUMO: A análise de alguns contos de Clarice Lispector [1920-1977] evidencia,dentre vários aspectos, seu pendor metacrítico. Em meio às narrativas, muitas vezesautobiográficas, aparecem discussões sobre conceitos como literatura, conto ou mesmoleitura, além de reflexões sobre a infância, a memória e o diálogo constante com aprópria escritura. O estudo da metatextualialidade, recortado essencialmente no contoFelicidade Clandestina, permite-nos esboçar, de alguma forma, um olhar para a poéticaclariceana, isto é, compreender, por meio da própria ficção, alguns ideais estéticos daescritora.PALAVRAS-CHAVE: Clarice Lispector - metatextualidade - leitura-escritura.SUMMARY: The analysis of some short stories by Clarice Lispector [1920-1977]shows, among many respects, his penchant metacritical. Amid the stories, oftenautobiographical show discussions on concepts such as literature, or even story reading,and reflections on childhood, memory and constant dialogue with their own writing.The study of metatextualialidade clipped essentially the tale Felicity Clandestine allowsus to sketch in some way, a poetic look at the Clarice, that is, to understand, through thefiction itself, some aesthetic ideal of the writer.KEYWORDS: Clarice Lispector - metatextual - reading and writing.I. CONSI<strong>DE</strong>RAÇÕES INICIAIS:A leitura seria o gesto do corpo que, ao mesmo tempo, instala e perverte a sua ordem.[Roland Barthes. Leitura. 1987. p 198]"Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como aum rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sabe, às vezes penso queestou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas faço tantasfantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente amado. Uma dasfantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase lida, com lágrimas nosolhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: "Mas é que eu não sabia que sepode tudo, meu Deus!"[Clarice Lispector. In: A Descoberta do Mundo, 1992, p.246]Uma das maneiras de conhecer uma escritora é ler suas obras ou mapear suascitações literárias durante a leitura. Qualquer comentário, qualquer crítica ficará aquémdisso, ainda mais quando se fala da prosa de Clarice Lispector.Ainda assim, a partir da produção literária da referida escritora, é possívellembrar algumas de suas características, e, consequentemente, acompanhar seus traços,mesmo que, conscientes da impossibilidade de esgotá-los. Estudiosos de sua obra, comoAffonso Romano de Sant‟Anna e Olga Borelli 2 , dizem que, em suas narrativas ocorrem


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.momentos de revelação súbita, denominados de epifania, episódios quando as suaspersonagens rompem com as amarras da existência, com seus momentos de dor eprazer. Para tal recurso estilístico, Clarice Lispector valia-se de alguns procedimentosretóricos, tais como a valorização da consciência subjetiva da personagem principal,como centro privilegiado da narrativa e a paisagem interior. Assim, muitas vezes, suaficção estabeleceu, além desses recursos, diálogos bem tramados configurando-se,noutras leituras, 3 a si própria como personagem, vivendo ou experimentando as mesmassituações delicadas e epifânicas de suas outras criaturas.Esses recursos, por seu lado, aliados a consciência subjetiva, filtram os fatos esuas repercussões e os relata com certa roupagem de revelação, encantamento, desejo,espera e fruição. Tudo isso pode ser visto no conto Felicidade Clandestina, primeiranarrativa que também com esse título intitula a coletânea. Nesse livro a maior parte dashistórias reunidas já havia sido publicada, dispersamente, no Jornal do Brasil,especificamente na coluna semanal de crônicas, e sustenta-se, principalmente, em temasde infância e adolescência.Esse conto, portanto, é o que desperta, nesse ensaio, o interesse para o estudodos procedimentos metatextuais na ficção clariceana. Nele, que não é sem sentido otítulo principal do livro, verificam-se, nas entrelinhas, a retomada intertextual e o tommetalinguístico que perpassam a produção literária da escritora. Nessa construção,ainda, evidenciam-se o tema da leitura que atravessa significativamente muitos textosdo livro A Descoberta do Mundo, como também seu projeto estético-literário e,consequentemente, o sentimento do possível leitor no processo de interlocução. Decerto modo, assumindo o tom memorialista, a escritora procura resgatar, das situaçõescotidianas da infância, momentos de reflexão a respeito da vida, do desejo ou prazer deler que perpassam sua obra ou mesmo dos leitores que se aproximam dela.Nesse jogo estético e lúdico, ao mesmo tempo motivo e representação de suaescrita, surge a paixão enquanto possibilidade, experiência fundida entre viver-lerescrever;ler e escrever como condições essenciais para viver. Confundidas, - escrita emetatextualidade -, feito um conjunto harmonioso, ambas surgem inseparáveis e podemser lidas como identificação, gesto do autor, reflexões, crítica ou autocrítica no jogoespecular do texto.Com esse intuito, buscam-se, nesse ensaio, através do conto FelicidadeClandestina, as vias e desvios dessas representações apontadas acima, mirando sempre


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.no horizonte dos teóricos da semiologia, nas retomadas e investidas do dialogismo entretexto e intertexto enquanto “texto ideal”. Em outras palavras, percorrendo ametatextualidade nesse conto, apoiaremo-nos em ideias de Roland Barthes, GerardGenette e Maurice Blanchot para tal percurso apontado.II. O TEXTO, A ENCENAÇÃO DA <strong>LEITURA</strong> E A METATEXTUALIDA<strong>DE</strong>“No entanto na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde seacha o que se achar? [...] Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder?perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando”.[Clarice Lispector. A paixão segundo G.H. 1998, p.13]Dos procedimentos discursivos da construção do texto literário, ganha destaquede forma significativa no século XX, e mais ainda no século XXI, a reflexão crítica daarte sobre si mesma, do discurso artístico que ao construir-se fala ou sugere o modocomo se dá essa construção. Nessa trama, a literatura debruça-se sobre ela mesma e otexto, passa a ser tanto um produto de criação artística quanto um veículo de reflexãosobre o que vem a ser literatura. Trata-se, na verdade, de uma tentativa empreendidapela literatura de explicar-se a si mesma.O conto em questão, assim, enovela-se no processo de desmistificação dacriação literária que se desnuda diante do leitor e, ao mesmo tempo, referindo-se àleitura como num jogo de espelhos ou citações, a narrativa instiga criação e reflexãocrítica, investindo-se, questionando-se, analisando-se. E, mais ainda, transfere essasindagações ao leitor, envolvendo-o e fisgando-o com a ajuda do canto clariceano. Aessa reflexão, sobre a narrativa, elaborada na própria estrutura do texto artístico, GerardGenette, em Palimpsestos (1982), ao proceder ao estudo das relações transtextuais,chamou de metatextualidade. Em Introdução ao arquitexto [1986], outro livro do autor,ele define a metatextualidade como “a relação transtextual que une um comentário aotexto que comenta” (1986, p.97). Nesse percurso ele inclui a metatextualidade entre oscinco tipos possíveis de relações transtextuais, utilizando o termo transcendência textualpara designar o procedimento que coloca um texto em relação explícita com outrostextos. Nesse caso, o processo metatextual de construção do conto, o transforma numobjeto de leitura dupla, já que nele estão “ficcionalizados” tanto a matéria ficcional,quanto o comentário sobre a escritura-leitura da ficção.


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.Ficcionalizando o processo de leitura, então, a narrativa sugere uma construçãoque olha para si mesma, apontando para o seu processo, refletindo criticamente sobre osmecanismos utilizados na escritura e construindo, de certa forma, um modo de comodeve ser lida. Clarice Lispector salienta, indiretamente, a fascinação da leitura, e,também, da escrita, no sentido de orientar o entendimento de um sistema, que possa“explicar” a sua construção poética ou algum modo revelar os seus mecanismosnarrativos.A metatextualidade, nesse caso, funciona como um recurso metafórico para falardo ato de ler e da literatura em si mesma, como objeto desejado, encantador eenvolvente. O prefixo “meta” remete à relação crítica e se estabelece no apelo que umtexto faz à sua própria interpretação. Essa atividade crítica e discursiva inserida noconto clariceano sugere a preocupação da escritora em mostrar-se consciente de suaatividade de operação sobre a linguagem, de construtora de discursos que se misturam,se observam e se completam. O viés crítico, nesse contexto, - tematizando a paixão deler, - torna-se matéria constituinte do conto, de forma que a matéria da trama textualpassa a ser a própria literatura e a crítica indireta no processo de construção do própriotexto. A metatextualidade, nesse conto, portanto, passa a ser uma estratégia para falar da“felicidade e da fruição clandestina” do próprio ato de ler e escrever como desejoexperimentado e sugerido na ficção.A esse respeito, Roland Barthes considera que, enquanto linguagem, a literaturaé capaz de voltar-se para si mesma, descobrindo-se “ao mesmo tempo objeto e olharsobre esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura-objeto e metaliteratura” (BARTHES,1964, p.107) 4 . Para o autor de Le plaisir du texte, essa atitude da literatura de falar sobresi mesma aponta para o questionamento a respeito de sua natureza, de seu ser, afinal,por si só ecoando continuamente o questionamento: o que é literatura? Essas indagaçõescríticas, segundo esse olhar, acabam estabelecendo uma relação dialética entre aliteratura e ela mesma, seu processo de construção e sua identidade. Essa tendênciamoderna, como também fez Roland Barthes, em sua prática opera aproximações entrecrítica e produção literária, reflexão e fazer literário, tornando-os um único e mesmoobjeto.


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.III. O LIVRO DO <strong>DE</strong>SEJO / O <strong>DE</strong>SEJO DO LIVRO“Ler é desejar a obra, é pretender ser a obra, é recusar dobrar o obra fora dequalquer outra fala que não a própria fala da obra: o único comentário queum puro leitor, que puro se mantivesse, poderia produzir, seria o decalque(como indica o exemplo de Proust, amante de leituras e de decalques).Passar da leitura à crítica é mudar de desejo: é deixar de desejar a obra paradesejar a própria linguagem. [...] Assim, gira a fala em torno do livro: ler,escrever, de um desejo para o outro caminha a leitura. Quantos escritoresnão escreveram por terem lido? Quantos críticos não leram para escrever?”(BARTHES: 1987, p. 77).O livro As Reinações de Narizinho, uma das obsessões da narradora emFelicidade Clandestina, se desdobra em duas direções significativas e simultâneas. Deum lado ele se oferece tematizado no discurso como objeto de leitura, livro alheio, acujo prazer a personagem-narradora-leitora se entrega (ou gostaria de se entregar) comoaposta da aventura fictícia e a busca do prazer sempre adiado 5 pela antagonista. Essesentimento fica evidente quando a narradora confessa:“[...] Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nemnotava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livrosque ela não lia. Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma torturachinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de MonteiroLobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o,dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casano dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própriaesperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam eme traziam” [<strong>LISPECTOR</strong>, 1998, p.10].De outro lado, a leitura pelo objeto livro se faz da escritura da narradora/autora,empenhando, nesse momento, na construção de uma narrativa que se constitui comolugar da realização do desejo e que, consequentemente, acaba por transformar-se, oupelo menos sugerir, um desejo de realização. Como ato metatextual da escritora, a voznarrativa desenvolve-se tendo no discurso um narrador pessoal e agente que narraepisódios passados. Essa personagem, narradora-leitora-voraz e adulta, estando notempo do discurso narrativo (presente) ao mesmo tempo em que empreende o mergulhonas imagens da infância (tempo do significado narrativo) promove a revisão deexperiências que não foram compreensíveis desse passado, agora retomado em processode avaliação.Pelo desenrolar dos acontecimentos, a leitura desejada pela personagemnarradoraé a leitura de infância - as histórias presentes no livro As reinações deNarizinho -, entretanto, esse sentimento em contrapartida a outro tempo narrativo danarradora adulta, vê-se cada vez mais caracterizado por outros códigos que configuram


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.e delineiam o final do conto. Além da evidente intertextualidade com o livro deMonteiro Lobato [1882-1948], a narradora sugere, nas entrelinhas, comentáriosmetatextuais que ao mesmo tempo funcionam como antecipação de dados da história ede certa concepção de leitura e de escrita. Nesse jogo, fica evidente a relação que seestabelece entre as duas personagens, como um pacto que consiste na aceitação pacientedo estado de sofrimento, provocado pela não obtenção do objeto e o adiamento daentrega do mesmo pela antagonista.“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de oter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa,adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro,achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisaclandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece queeu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim. Eu era umarainha delicada” [<strong>LISPECTOR</strong>, 1998, p. 12].Nesse fragmento, como toda rede semântica que se estabelece da leitura com aescrita, é exatamente a encenação da espera que surge nessa releitura. Todos osencadeamentos das ações narradas processam como se fosse uma mulher à espera deseu amado - ela sabe que ele virá -, a menina vive o prazer de uma dor singela. Essaencenação da espera, portanto, denuncia sua passagem para outro universo além-livro,onde a memória e seu livro são agora, como ela própria nos diz, uma mulher e seuamante: “As vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, semtocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulhercom o seu amante” [<strong>LISPECTOR</strong>, 1998, p.12].O encontro com seu livro-amante, - agora com um sentido mais amplo -, passa aser o próprio ato da leitura, que ganha dimensões mais sedutoras à medida que é adiada.Estrategicamente protelada, a menina-mulher-leitora sabe que a espera é uma condiçãode sua felicidade clandestina. Percebe, também, que a duração dessa espera, da angustia,corresponde, metaforicamente, a intensidade de seu desejo e por isso cria falsasdificuldades de acesso ao corpo do outro quantas vezes pede sua vontade de tê-lo.Esperar, nesse caso, assume, também, certo pacto de sua paixão pelo livro, e,num determinado tempo narrativo, quando diariamente batia à porta da amiga naexpectativa de levá-lo apertado ao peito pelas ruas da cidade de Recife até sua própriacasa. Porém, agora, enquanto adulta que conta os fatos, trata-se de outra espera, aindamais instigante. Leitura, livro e amante se conjugam como se a moral da escritasucedesse o hedonismo da leitura e, consequentemente, a proximidade do amante. Pode-


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.se, nesse sentido, dizer-se mesmo que, em Clarice, como em Roland Barthes, o texto égerador da leitura e vice-versa. Construindo-se na própria leitura, a narradora adulta,antes menina, está mais perto do amante, fruto de suas encenações e processo ficcional.Entre a menina-leitora e a espera, agora em nova relação com o livro, apersonagem principal encena. Não se trata apenas de encenar a leitura, mas de recriarfalsos obstáculos, inventar situações que a aproximam do livro enquanto ficcionista,inventora de histórias. Uma verdadeira inventora criativa, audaciosa e envolvente, feitoEmília, personagem chave das narrativas metalinguísticas de Lobato. Esse gestocriativo, para Flávio Carneiro, em Entre o Cristal e a Chama: ensaios sobre o leitor(2001), quando comenta o referido conto, relacionando-o com o leitor e a espera,afirma:“Se esperar é a prova do seu amor maravilhoso, fingir a espera é a prova de seu amor por umlivro de fingimento e maravilhas. Ela não cria o faz-de-conta à espera de qualquer um. Nesse atotão agudo e frágil, o brincar, a menina desenha um perfil, uma forma, um corpo. Esse corpo, ocorpo dele, é um livro com histórias de faz-de-conta. / Para um amante assim, ela se enfeita comas pequeninas jóias da ficção. Arrumada, eis a leitora, mais bonita do que era antes. E brincandode seduzir, inventando, ela espera por ele prazerosamente - na ante-sala do prazer”[CARNEIRO, 2001, p.70].O melhor desse conto, segundo o crítico, é algo que deslizará por entre a posiçãosimplista e a criação de um outro jogo, ainda mais sutil: o erótico. Esse erotismo, elemesmo clandestino por natureza, se instala não entre corpos de homens e mulheres,“mas entre peles especiais: a de uma menina leitora e certo livro desejado”(CARNEIRO, 2001, p.55).Reforçando esse discurso, o espaço físico para os acontecimentos ou encenaçõesda leitura e movimentação das personagens, apesar de serem claramente localizados,remetem ao mundo da lembrança funcionando como locus apropriado para construçãode imagens e vaguidão que a leitura constroi. Ruas, praças de Recife, grandes jardins,casa ou porta de casas fornecem um espaço, imaginário e distendido, amplo, lugarespróprios para que a realidade possa extrapolar do limite cotidiano e repercutir noslimites do estado transgressor em que a narradora-leitora se coloca e dos quais asimagens serão motivo de leitura.Rememorando a leitura, o tempo atrelado ao espaço presente no conto, permiteexplorar o verbo ser como recurso linguístico que define as ações, podendo articular adescrição física das personagens ao espaço físico onde ocorrem as experiências, àinterioridade e solidão da leitura e à intensidade dos sentimentos que ela proporciona.


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.Essa “semiótica da leitura” ou leitura semiótica subtendida no conto, portanto,permite dialogar com o gesto do “leitor amoroso”, do sujeito enamorado e seu discursodiscutido por Roland Barthes em Fragments d’un discours amoureux [1977]. A meninaenamoradaem ação, é sujeito gestual, coreográfico, que desenha figuras em seudiscurso. Dentre as várias figuras alencadas por Barthes, nesse livro, a “espera” é umasignificativa. A esse respeito ele diz:“[...] Há uma cenografia da espera: eu a organizo, a manipulo, destaco um pedaço de tempo ondevou representar a perda do objeto amado e provocar todos os efeitos de um pequeno luto. Tudose passa como uma peça de teatro. [...] “Estou apaixonado? - Sim, pois espero”. O outro nãoespera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar,chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter oque fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamorado não é outra senão: souaquele que espera.” [BARTHES, 1994, p.95-96].Evidentemente, que no fragmento acima, o sujeito enamorado espera pelo outroe pode ser lido, nas palavras de Clarice, como espera do livro e do amantesimultaneamente. Nesse jogo ambíguo, construído ao longo do discurso, o que importanotar é o estado hipnótico que se estabelece nessa relação e na feitura da narrativa. A“felicidade clandestina”, nesse caso, repetida pelo paratexto que nomeia o conto, podeser solitária e intensamente fruída pela garota que toma eroticamente o livro desejado ediz: “Eu estava estonteada, e assim recebi o, livro nas mãos. Acho que eu não dissenada. Peguei o livro. Não, não sai pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Seique segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra meu peito”[<strong>LISPECTOR</strong>, 1988, p.12].Na ficção, assim, lê-se e afirma-se a metatextualidade e como o escritor/leitorassume o desejo de escrever, sugerindo nesse movimento a contradição entre a metáfora(o conto) e metonímia (a temática). Resgata-se discretamente da subjetividade danarradora, a imagem de si própria que Clarice tenta cristalizar ou teorizar, também, paraseu leitor.A partir do conto, e fora do campo da bibliofilia, aparece, singularmente, umateoria do livro como objeto. É a partir dessa situação - desejosa e adiada ao mesmotempo - entre leitor e o livro que se pode ordenar a relação semiológica entre autor eleitor. Sob vários aspectos apontados, encenados nessa narrativa e nas relações com olivro, é possível perceber uma tentativa de construir uma ideia do que poderia ser arecepção da obra, e assim, ao mesmo tempo, leitor e narrador são conduzidos a definir anatureza da escrita e suas relações com a leitura, literatura. A leitura, nesse processo, é


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.afirmada como ato de criação, liberdade, transgressão e como modo de fazer a obra virao mundo. Estabelecendo essa mesma relação do homem com o livro, Maurice Blanchotfala da obra. A obra, para ele, é o resultado do encontro do livro e do leitor:“O escritor escreve um livro mas o livro ainda não é a obra, a obra só é obra quando através delase pronuncia, na violência de um começo que lhe é próprio, a palavra ser, evento que seconcretiza quando a obra é a intimidade de alguém que a escreve e de alguém que a lê”[BLANCHOT, 1987, p.13].Essa “leitura” ou mesmo realização da obra é, contudo, propulsora da criação,ela permite captar a origem da tensão que presidiu a escrita. Aproximando-se deBlanchot, a noção de produtividade do texto leva Barthes a considerar a leitura e escritacomo atividade da mesma natureza, tendo o leitor vocação, em última análise, parasituar-se na mesma perspectiva que o leitor perante a linguagem concretizada que é otexto. A “teoria do texto”, de Barthes, insiste na equivalência produtiva da escrita e daleitura:“[...] Sem dúvida há leituras que não passam do simples consumo: precisamente aquelas aolongo das quais a significância é censurada; a leitura plena, ao contrário, é aquela em que o leitoré nada menos do que aquele que quer escrever, entregar-se a uma prática erótica da linguagem”.[BARTHES, 2004, p.283].Dialogando com esse raciocínio de Barthes, a intensidade dos sentimentos emClarice, principalmente quando fala da escrita, e consequentemente da leitura, jamais éatribuída. Manifesta-se no que surge e em quem escreve, quem lê - como nesse conto -já está envenenado por seu ato. Essa condição (a do leitor) e esse gesto (o de ler) nãosão impunes. O prazer e a beleza implicam a história do fazer. A beleza da leitura é,também, o registro do tumulto, a negação da amiga, a espera, o cenário e o desejo. É,também, a alegre dor do estar diante do que talvez venha a ser. Compreender, pelo que aescrita indica, está totalmente ligado ao processo do exaustivamente aludir. Importará,nesse mecanismo, seu próprio processo de fabricação e o trabalho com a linguagem.Nos gestos de sua letra pulsa uma força, erótica e indomável, anunciados pelo sensual epelo corpo enquanto leitura.O conto, nesse gesto, entendido como campo metodológico e movimento queatravessa a obra, opera uma produção metatextual cuja lógica é metonímica,deslocando-se continuamente, para uma prática de escritura. A narrativa, com esseenredo e processo de construção, então, pode ser rastreada enquanto prática de escrituraleitura,sua carpintaria verbal, ou seja, seu trabalho meticuloso com a palavra. Se esta


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.prática de escrita remete a um prazer de ler que é erótico, por outro lado, isso não sedeve ao caráter eventualmente erótico do tema tratado, mas da escrita, que se tornaerótica ao mostrar seus mecanismos retóricos.IV. ALGUMAS CONCLUSÕES: A FRUIÇÃO CLAN<strong>DE</strong>STINA DA <strong>LEITURA</strong>“Todas as palavras que digo, é por esconderem outras palavras. Equal é mesmo a palavra secreta?”[<strong>LISPECTOR</strong>, Clarice, 1981, P.85] 6“ [...] na leitura, todas as emoções do corpo estão ali, misturadas,enroladas: o fascínio, a ausência, a dor, a volúpia: a leitura produzum corpo perturbado [...]”.[Roland Barthes. Leitura. 1987. p 196]A leitura sensível e metatextual do conto Felicidade Clandestina vem reforçar,afinal, o lado ensombreado da escrita literária da autora de Uma Aprendizagem ou Olivro dos prazeres, os recursos retóricos que esclareçam alguma leitura ou percurso.Nesse jogo, também ele metatextual e redundante, o nosso próprio discurso se percebeguiado pelo plaisir du texte, conforme entende Barthes. Entre o texto e o críticoestabeleceu-se, - diante de encenações de leitura e encenações de leitor-, uma dialéticado desejo. Assim, e com a ajuda da metatextualidade, o prazer perverso do crítico,voyer, observando clandestinamente o prazer das personagens, entra, consequentemente,no jogo da mesma perversão 7 (ou encenação?).A crítica, ou mesmo esse ensaio, torna-se, pois, leitura, texto segundo, textodependente inscrito no jogo intertextual que constitui uma das propriedades, senãomesmo, a magia deste texto, a própria “felicidade clandestina”. Como Barthes, ClariceLispector joga com o saber/sabor como metáfora da erotização do texto e da leitura. Éexatamente pelo viés dessa erotização que se opera o encontro do sujeito da escrita como sujeito leitor: ambos se movem no trabalho do significante.Essas mesmas relações, também apontadas no livro A leitora Clarice Lispector(2001), de Ricardo Iannace, esclarecem que Clarice constitui um exemplo típico decomo escrita e leitura estão intimamente ligadas, sendo que o ato de escrever, com tudoo que ele implica de linearização, de contenção da palavra, de incompletude, tornou-separa ela quase uma obsessão. Nesse sentido, o conto, como também a obra de ClariceLispector, aparece-nos como um jogo, um quebra-cabeça a ser decifrado; enfim, uma


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.espera, com toda a sedução que isso implica, - como a protagonista do conto -, fazendoque seu leitor se torne um co-criador.Enfim, com essa narrativa e sua temática, podemos ver a leitora ou mesmo opróprio leitor de sua obra nessa dinâmica. O que o conto e a leitura 8 metatextual nospropõem é uma trajetória pelas leituras que pontuam a memória ou a biblioteca deClarice e que o leitor, por sua vez, é convidado a fazer nessa mesma construçãoconjunta que envolve a escrita/leitura, o livro/paixão e a invenção/interpretação.V. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris. Seuil. 1973.______. Fragmentos do discurso amoroso. Rio de Janeiro. Francisco Alves. 1994.______. Essais critiques. Paris. Seuil. 1964.______. S/Z. Paris. Seuil. 1970.______. Texto (Teoria do). In: Inéditos I. Teoria. São Paulo. Martins Fontes. 2004.______. & COMPAGNON, Antoine. Leitura. In: ROMANO, Ruggiero. Org.Enciclopédia Einaudi. Lisboa. Imprensa Nacional/Casa da Moeda. 1987.v.11. pp.184-206.BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro. Rocco. 1987.BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro.Nova Fronteira. 1981.CARNEIRO, Flávio. Entre o Cristal e a Chama: ensaios sobre o leitor. Rio de Janeiro.EDUERJ. 2001.GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil. 1982.______. Introdução ao arquitexto. Lisboa: Vega, 1986.GOTLIB, Nádia Battella. Clarice. Uma vida que se conta. São Paulo. Ática. 1995.JENNY, Laurent. Poétique. Intertextualidades. Revista de Teoria e Análise Literárias.Trad. Clara C. Rocha, Coimbra: Livraria Almedina, 1979.JOUVE, Vincent. A Leitura. São Paulo. Editora UNESP. 2002.<strong>LISPECTOR</strong>. Clarice. Felicidade Clandestina. In. Felicidade Clandestina: contos. Riode Janeiro. Rocco. 1988. pp.9-12.______. A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro. Francisco Alves. 1992.______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro. Rocco. 1998.


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.LOBATO, José Bento Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo. Brasiliense. 1993.IANNACE, Ricardo. A Leitora Clarice Lispector. São Paulo. Editora da Universidadede São Paulo. 2001.PERRONE-MOISÉS, Leila. Texto, crítica, escritura. São Paulo. Martins Fontes. 2005.ROSENBAUM, Yudith. Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. SãoPaulo. Editora da USP. 2006.SOUSA, Carlos Mendes de. Clarice Lispector. Figuras da Escrita. Lisboa.Universidade do Minho. [Centro de Estudos Humanísticos], 2000.VIGNOLES, Patrick. A Perversidade. Tradução: Nicia Adan Bonati. Campinas: SP.Papirus, 1991.Notas:1 Rodrigo da Costa Araújo é professor de Literatura Brasileira e infanto-juvenil na FAFIMA - Faculdadede Filosofia, Ciências e Letras de Macaé, Mestre em Ciência da Arte pela UFF e, também, Doutorandoem Literatura Comparada pela UFF. E-mail: rodricoara@uol.com.br2 Esses autores apresentam obras significativas sobre Clarice Lispector. SANT‟ANNA, Affonso Romanode. Análise Estrutural dos Romances Brasileiros. Petrópolis. Vozes. 1984. pp.182-212 e BORELLI, Olga.Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 1981.3 Esse mesmo conto, lido por Nádia Battella Gotlib, em Clarice uma vida que se conta, traz várias marcasdiscursivas de um discurso autobiográfico. “A menina Clarice já encontrava aí, então, um territóriopovoado de histórias imaginárias muito “verdadeiras” e com intensa problematização de questões ligadasao ato narrativo. [...] Forma-se, assim, a matéria-prima para parte de sua crônica - um dos livros de suavida – e mais um conto seu, intitulado “Felicidade Clandestina”; [...] Tanto a crônica quanto o conto, o“motivo” é o mesmo: a menina Clarice pede emprestado o livro, já que não tem dinheiro para comprá-lo.[GOTLIB, 1995, pp.105-106].4 A esse respeito ler com mais atenção o ensaio de Barthes, intitulado Littérature et méta-langage, in:Essais critiques. Paris. Seuil. 1964. pp.106-107.5 Sobre o tema do sadismo o leitor poderá recorrer ao estudo de Yudith Rosenbaum - Metamorfoses doMal: uma leitura de Clarice Lispector [2006] - que tenta analisar o sadismo na obra clariciceana não sóno seu aspecto temático, mas no próprio processo de construção da sua obra e na relação narrador-leitor:“Sadismo de uma escritora que se compraz em transgredir os modos comportados de narrar, deslocando atodo momento o leitor adormecido de seu berço. Objeto de uma escrita voraz e devoradora, esse mesmoleitor (que complementa a crueldade da narrativa) excita-se identificando com o exercício do mal.Verificamos, como núcleo central desse trabalho, que o sadismo surge como figura movente do enredo,ou seja, é na emergência das categorias do grotesco, do informe, da crueldade, da inveja - da negatividadedo ser humano em geral - que a história tensiona-se e impulsiona seu caminho” [ROSENBAUM, Yudith.Metamorfoses do mal: uma leitura de Clarice Lispector. 2006. pp.175-176]6 [<strong>LISPECTOR</strong>, Clarice. In: BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio deJaneiro. Nova Fronteira. 1981.p.85].


REVISTA LITTERIS – ISSN 1983 7429 Número 4, Março de 2010.7 Conceituo a escrita de Clarice Lispector de “perversa” porque ele enreda e seduz o leitor, tal qual umapresa fácil de sua armadilha textual. Nela, o leitor se esbate num estado de extremo mal-estar pósmodernoque é compensado, ao mesmo tempo, por uma envolvente fruição. Ainda sobre o assunto, ofilósofo Patrick Vignoles, em seu livro A Perversidade, afirma: “A perversidade é o mal que pode tomar amáscara do bem, da inocência assim como do crime” (p.78) “O perverso „diverte-se‟ com demolir omundo humano, como se recusasse fazer parte dele ou como se fosse impotente para nele integrar-se”(p.67).8 Ver melhor a esse respeito o livro: IANNACE, Ricardo. A Leitora Clarice Lispector. São Paulo. Editorada Universidade de São Paulo. 2001.

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